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FICHA CATALOGRAFICA, (Preparada pelo Centro de Catalogagto-na-fonte do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, Rd) Lévi-Strauss, Claude, 1908- Lotte ‘As Estruturas elementares do parentesco; tra- duo de Mariano Ferreira. Petropolis, Vozes, 1982. 540p.ilust. 23¢m, Do original em francés: Les structures é1é- ‘mentaires de la parent. Bibliografia, 1, Parentesco. |. Titulo. IL Série. DD - 301.442 76-0059 (DU — 301.185 CAPITULO I Natureza e Cultura humanidade durante a qual esta, na auséncia de toda organizacho social, nem por isso tivesse deixado de desenvolver formas de atividade que so parte integrante da cultura, Mas a disting&o proposta pode admitir inter- pretagdes mais validas. Os etndlogos da escola de Elliot Smith e de Perry retomaramna para : edificar uma teoria discutivel mas que, fora do detalhe arbitrdrio do ! esquema historico, deixa aparecer claramente a profunda oposieio entre dois niveis da cultura humana e 0 caréter revoluciondrio da transforma. co neolitica, O Homem de Neanderthal, com seu provével conhecimento da linguagem, suas induistrias Iticas e ritos funerérios, nfio pode ser con- siderado como vivendo no estado de natureza. Seu nivel cultural 0 opée, no entanto, a seus sucessores neoliticos com um rigor comparével — | embora em sentido diferente — ao que os autores do século XVII ou do século XVITI_atribuiam & sua propria _distingio, as excitagdes exteriores ou interiores, algumas dependem inteiramente de sua natureza, outras de sua condigio. Por isso nio hd dificuldade alguma em encontrar a origem respectiva do reflexo pupilar e da posi- fem compre‘ astingio” 6 tao facil sccm. Squatetentl oat? hem sempre a distincfo ¢ tao facil assim. pa maloria io realmente € a resposta do sujeito ' constitu verdadelra integragio dae fontes bioldgicas e dae fonles socials j 1 Bilamos, hole preferveimente lado de naturesa estado de eiltura. Parece, “com ‘efeito, que 0 medo do escuro. ni ‘gee yintor més,’ Geno. ww, Walenune, “Ine Tnaale “Basie of Fear’ Journal of Jsyohology, vol. 81, 1850. 4 de seu comportamento, Assim, € 0 que se verifica na atitude da mie com relagéo ao filho ou nas emocées complexas do espectador de uma parade militar. # que a cultura no pode ser considerada nem simples- mente justaposta nem simplesmente superposta & vida, Em certo sentido substituise & vida, e em outro sentido utilizaa e a transforma para rea lizar uma sintese de nova ordem. Se é relativamente fécll estabelecer a distingdo de principio, a di ficuldade comega quando se quer realizar a anélise. Esta dificuldade 6 dupla, de um lado podendo tentarse definir, para cada atitude, uma causa de ordem bioldgica ou social, e de outro lado, procurando por que mecanismo atitudes ce origem cultural podem enxertarse em compor tamentos que sio de natureza bioldgica, ¢ conseguir integrélos a si. Ne- gar ou subestimar a oposi¢ao € privarse de toda compreensao dos fe- nomenos sociais, e 80 Ihe darmos seu inteiro aleance metodoldgico cor- Chive ao tas ondens. Ond acaba a natenn® Onde comecn a ealura? entre as duas ordens # possivel conceber varios metos de responder a esta dupla questi, Mas todos mostraramse até agora singularmente decepcionantes. © método mais simples consistiria em isolar uma crisnga recém-nas- cida e observar suas reagdes a diferentes excitagdes durante as primeiras horas ou os primeitos dias depois do nascimento. Podersela entéo su- Por que as respostas fornecidas nessas condigbes séo de origem psi ‘cobiolégicas, ¢ nio dependem de sinteses culturais ulteriores. A psicolo- tia contemporinea ‘obteve por este método resultados cujo interesse nfo deve lovar a esquecer seu carter fragmentario © limitado. Em primelro lugar, as tinicas observacées vélidas devem ser precoces, porque podem surgir condiclonamentos 20 cabo de poucas semanas, talvez mesmo de dias. Assim, somente tipos de reago muito elementares, como certas ‘expresses emocionais, podem na prética ser estudados. Por outro lado, as experiéncias negativas apresentam sempre carter equivoco. Porque per manece sempre aberta a questiio de saber se a reacio estudada esté ausente por causa de sua origem cultural ou porque os mecanismos fi- sioldgicos que condicionam seu aparecimento ndo se acham ainda mon- tados, devido a precocidade da observagio. O fato de uma criancinha nko endar nao poderia levar & concluséo da necessidade da aprendizagem, porque se sabe, a0 contrério, que a crianga anda espontaneamente desde que organicamente for capaz do fazé-lo.’ Uma situagao anéloga pode apre- sentarse em outros terrenos. O tinico meio de eliminar estas incertezas seria prolongar a observaco além de alguns meses, ou mesmo de al guns anos. Mas nesse caso ficamos is voltas com dificuldades insoltiveis, Porque o meio que satisfizesse as condigées rigoroses de fsolamento exi- gido pela experiencia nfo 6 menos artificial do que o meio cultural a0 qual se pretende substitutlo. Por exemplo, os cuidados da mie durante 8 primeiros anos da vida humana constituem condi¢&o natural do de- senvolvimento do individuo. O experimentador acha-se portanto encerra- do em utn circulo vicioso. # verdade que 0 gcaso parece ter conseguide as vezes aquilo que © artificio ¢ incapaz de fazer. A imaginago dos homens do século XVIII 3.M, B. McGraw, The Neuromuscular Maturation of the Humen Infant, Nova orquie eis. 42 cP eet Eee foi fortemente abalada pelo caso dessas “criangas selvagens”, perdidas nno campo desde seus primeiros anos, as quais, por um excepcional con- curso de probabilidades, tiveram a possibilidade de subsistir e desenvol- verse fora de toda influéncia do meio social, Mas, conforme se nota muito claramente pelos antigos relatos, a maloria dessas crlangas foram anormais congénitos, sendo preciso procurar na imbecilidade de que pa- ecem, quase unanimemente, ter dado prova, a causa inicial de seu aban- dono, e nfo, como as vezes se pretenderia, ter sido o resultado." ‘Observagées recentos confirmam esta maneira de ver. Os pretensos “meninostobos" encontrados na fndia nunca chegaram a aicancar © nivel normal. Um deles — Sanichar — jamais pdde falar, mesmo adulto. Kellog relata que, de duas eriangas descobertas. juntas, hé cerca de vinte anos, © mais mogo permanecen incapaz, de falar e 0 mais velho vivew até os Seis anos, mas com o nivel mental de uma crianca de dois anos e meio @ uum vocabulario de cem palavras apenas." Um Telatdrio de 1989 con- sidera como idiota congénito uma “crianga-babuino” da Africa do Sul, descoberta em 1903 com a idade provével de doze a quatorze anos.* Na maloria das vezes, aliés, as cizeunstancias da descoberta sio duvidosas, Além disso, estes exemplos devem ser afastados por uma razio de principio, que nos coloca imediatamente no coragio dos problemas cuja Gisoussio € 0 objeto desta Introdugio. Desde 1811 Blumenbach, em um estudo dedieado @ uma dessas eriancas, 0 Seloagem Peter, observava que hada se poderia e; ‘Assim, € possivel esperar ver um animal doméstico, por exemplo, um geto, um cachorro ou uma ave de galinheiro, quando se acha perdido ou isolado, voltar ao comportamento natural que era o da espécie antes da intervencio exterior da domesticagéo. Mas nada de semelhante pode se produzir com o homem, porque no caso deste itimo no existe comportamento natural da espécie ao qual o individuo isolado possa voltar mediante regresséo. Conforme dizia Voltaire, mais ow ‘menos nestes termos, uma abelha extraviada longe de sua colineia e incapaz de encontréJa 6 uma abelha perdida, mas nem por isso se tor- nou uma abelha mais selvagem. As “criangas selvagens", quer sejam pro- duto do acaso quer da experimentagdo, podem ser monstruosidades cul- turais, mas em nenhum caso testemunhas fidis de um estado anterior. impossivel, portanto, esperar no homem a ilustragio de tipos de comportamento de cardter pré-cultural. Seré possivel entéo tentar um ‘caminho inverso e procurar atingir, nos niveis superiores da vida animal, atitudes e manifestages nas quais se possam reconhecer 0 esboco, 0s sinais precursores da cultura? Na aparéncia, 6 a oposigdo entre comporta- 4,3 M- Mand, Ropports et mémories, sur te sauvage de UAveyrom, ete, Pa HH Jaa. A. Yon" Feuerbach, Cospar Hauser, ‘Trad. sgl, Londres. 1858, 5°G. ©, Rervis, Sanichar, the Wolf'toy’ of Tadig, Nova Torque i902, P. Scuires, SWolishndrege™ ot Arierion Journal 9f Pepehology,” vol. 38, 8 SIs Ni Rellog, More about the “woltenaren” of taka Wd, vol #8, 160, > ee A. Purthat Note, on the wolfchildren® of 1 di Haid va 38 Ea ‘Yor tambem, rabre" este poltmicn, JA, Singh Ru'M Finge, Wolkedlaren” and Fejal Men, Now Torgue Bia,"e&. Gest, Wourehud end fama Child, Nowa Toraue 5. J.P, Foley, 31, The *Baboon-oy” of South Africa. American Journal of Psycho lomy, a 8, 28, BM zine. Bore alu the abo: oy. of Sou, Aes oi sical Treatises "of a. F. “Btmenbach, "Londres 109," p. 339 2 43, mento humano e 0 comportamento animal que fornece a mais notével ilustragéo da antinomia entre a cultura e a natureza. A passagem — se existe — nao poderia pois ser procurada na etapa das supostas socie- dades animais, tals como so encontradas entre alguns insetos. Porque em nenhum lugar melhor que nesses exemplos encontram-se reunidos 0s atributos, impossiveis de ignorar, da natureza, a saber, o instinto, o equipamento anatémico, unico que pode permitir’o exercicio do instinto, ea transmissio hereditéria das condutas essenciais & sobrevivéncia do Individuo e da espécie, Néo hd nessas estruturas coletivas nenhum lugar mesmo para um esboco do que se pudesse chamar o modelo cultural universal, isto ¢, linguagem, instrumentos, instituigdes sociais e sistema de valores estéticos, morais ou religiosos. ¥ & outra extremidade da es- cala animal que devemos nos dirigir, se quisermos descobrir 0 esboco desses comportamentos humanos. Serd com relagho aos mamiferos su: eriores, mais especialmente os macacos antropéides. Ora, as pesquisas realizadas hé mais de trinta anos com os grandes macacos sio particularmente desencorajantes a este respeito. Nao que os componentes fundamentals do modelo cultural universal estejam ri gorosamente ausentes, pois é possivel, & custa de infinitos cuidados, con. duair certos sujeitos a articularem alguns monossilabos ou dissflabos, aos quais aliés nfo ligam nunca qualquer sentido. Dentro de certos I mites, 0 chimpanzé pode utilizar instrumentos elementares e eventual- mente improvisi-los.* Relagdes tompordrias de solidariedade ou de su- bordinagio podem aparecer e desfazerse no interior de um determinado grupo. Finalmente, 6 possivel que alguém se divirta em reconhecer em algumas atitudes singulares 0 esbogo de formas desinteressadas de ativi dade ou de contemplagio. Um fato notdvel ¢ que slo sobretudo os senti mentos que associamos de preferéneia 4 pgrte mais nobre de nossa na tureza, cuja expressio parece poder ser mais faciimente identificada nos antropéides, como o terror religioso e a ambigilidade do sagrado.” Mas se todos estes fendmenos advogam favoravelmente por sua presenga, 860 ainda mais elogiientes — e em sentido completamente diferente — por sua pobreza. Fieamos menos impressionados por seu esboco elementar do qe pelo fato — confirmado por todos os especialistas — da impos: sibilid-de, ao que parece radical, de levar esses esbocos além de sua expresso’ mais primitiva, Assim, 0 fosso que se poderia esperar preencher Por mil observagdes engenhosas na realidade é apenas deslocado, para aparecer ainda mals intransponivel. Quando se demonstrou que nenhum obsticuio anatémico impede o macaco de articular os sons da linguagem, © mesmo conjuntos sildbicos, sé podemos nos sentir ainda mais admit rados pela irremediavel auséncia da linguagem e pela total incapacida- de de atribuir aos sons emitidos ou ouvidos o cardter de sinais. A mes: ma verificagéo impée-se nos outros terrenos. Explica a conclusio pes- simista de um atento observador que se resigna, apds anos de estudo e de experimentagéo, a ver no chimpanzé “um ser empedernido no es- treito circulo de ‘suas imperfeigdes inatas, um ser ‘regressivo’ quando 8,P, Gillaume «1. Meyerson, recherches sur Tintligenco. dessin sonic arara, cries rear keane a ae Soh, node sol ah ant ok eo a ew. “iccnits, “The “Mentauty of Apes, apenalee a segunda ‘eaigha. | 44 comparado ao homem, um ser que nfo quer nem pode enveredar pelo caminho do progresso”."” > Porém, ainda mais do que pelos insucessos diante de tentativas bem definidas, chegamos a uma convicgio pela verificagio de ordem mais geral, que nos leva a penetrar mais profundamente no émago do pro: blema. Queremos dizer que é impossivel tirar conclusdes gerais da ex periéneia. A vida social dos macacos nfo se presta & formulacdo de ne- nhuma norma. Em presenga do macho ou da fémea, do animal vivo ou morto, do jovem e do velho, do parente ou do estranho, 0 macaco comportase com surpreendente versatilidade. No somente 0 comporta- mento do mesmo sujeito nfo é constante, mas néio se pode perceber nenhuma regularidade no comportamento coletivo. Tanto no dominio da vida sexual quanto no que se refere as outras formas de atividade, 0 estimulante, externo ou interno, ¢ os ajustamentos aproximativos por in- fluéncia dos erros e acertos, parecem fornecer todos 0s elementos ne- cossarios & solugo dos problemas de interpretagio. Estas incertezas aparecem no estuido das relacées hierarquicas no interior de um mesmo grupo de vertebrados, permitindo contudo estabelecer uma ordem de subordinago dos animais uns em relagéo aos outros. Esta ordem é no- tavelmente estével, porque o mesmo animal conserva a posicéio dominan- te durante periodos de ordem de um ano. E no entanto a sistematiza- 80 tornase impossivel devido a freqlientes srregularidades. Uma gall- nha subordinada a duas congéneres que ocipam um lugar mediocre no quadro hlerérquico ataca no entanto o animal que possui a categoria mais elevada. Observamsse relagées triangulares, nas quais A domina B, B domina Ce C domina A, a0 passo que todos’ os trés dominam o resto do grupo," dos comportamentos, 0 eo chimpanzé assemelham-se singularmente ao ho- mem.'*-Malinowski) est portanto enganado quando diz que todos os fatores que definem o comportamento sexual dos machos antropdides 10. abt, Ta Conduite di petit cy. chimpanad et de, enfant de Yhomme, Journal. de" Poyehotogie, vol. 94, 18H", p. ‘Si; @ 0s, QULrOS artigos do, mesmo -aulor: ochocches ur" Vintaligence’du'chimpanes pata ‘mathode’ dy “hein wapres modtle™ Hoi, yal 2, 1625; Les Aptodes motrces saaptatives du sings inirieur 10id, WoL 11. W. C. Allee, Social Dominance and Subordination among Vortsbrates, em Levels of jmiemation'in'biological and Social Systems, iological Symposia, vol. VEit, Lane Sete" Aix Masiom, Comparative, Behavior of Primates, VI; Food Preferences ot Pringich, Jouraal of Computatine Papchtogy, Wa. ier p ios oy Be Seite the" Female Batis cf Human Serul'lthavcr. Quarterly Review MRC be Teresa erogra of Aattzopold Research, American Jourol of Purch na, Stare pe ke nest Yoruad ve. Sit Eider, Gstrus"ocoptty and “i Chimpainee. Comparative Payenotopy Monographs; vol" Ta, ea 108, Se. 48 sio comuns @ todos os membros da espécie “funcionando com uma tal Uniformidade que, para cada espécie animal, basta um grupo de dados e um 86... 05 variagSes so tio pequenas 'e tio insignificantes que zodlogo esté plenamente autorizado a ignorélas”." Qual 6, a0 contrario, a realidade? A poliandria parece reinar entre os macacos gritadores da regiio do Panamé, embora a proporgio dos machos com relagéo as fémeas seja de 23 a 72. De fato, observamse relagoes de promiscuidade entre uma fémea no cio e vérios machos, mas sem se poder definir preferéncias, uma ordem do prioridade ou ligagdes durdveis."" Os gibdes das florestas do Siéo viveriam em familias mondgamas relativamente estdvels. Entretanto, as relagies sexuals ocor tem indiferentemente entre membros do mesmo grupo familiar ou com um individuo pertencente @ outro grupo, confirmando assim — dirseia = a crenca indigena de que os gib0es sto a reencarnaclo dos amantes infelizes."" Monogamia © poligamia existem lado a lado entre os rhesus *, @ 08 bandos de chimpanzés selvagens observados na Africa variam en tre quatro e quatorze individuos, deixando aberia a questéo de seu re gime matrimonial." Tudo parece passarse como se os grandes maca- cos, j4 capazes de se libertarem de um comportamento especitico, no pudessem chegar a estabelecer uma norma num plano novo. O compor- tamento instintivo perde a nitidez e a precisio que encontramos na maioria dos mamiferos, mas a diferenga 6 puremente negativa e 0 do- minio abandonado pela natureza permanece sendo um territério nio ‘ocupado. Esta auséncia de regra parece oferecer critério mais seguro que permita distinguir um processo natural de um processo cultural. Nada hha de mais sugestivo a este respeito do que a oposigdo entre a atitude Ga crianga, mesmo muito jovem, para quem todos os problemas so regulados por nitidas distingdes, mais nitidas e as vezes imperiosas do que entre 0s adultos, e as relagdes entre os membros de um grupo si miesco, inteiramente ‘abandonadas 20 acaso @ dos encontros, nas quais ‘© comportamento de um sujeito nada informa sobre o de seu congénere, nas quais a conduta do mesmo individuo hoje nfo garante em nada seu comportamento no dia seguinte. que, com efeito, hé um circulo vicloso ao se procurar na natureza a origem ‘das regras institucfonais que supem — mais ainda, que séo jé — a cultura, ¢ cuja instauragio no ‘interior de um grupo dificitmente pode ser concebida sem a intervencio a linguagem. A consténcia e a regularidade existem, a bem dizer, tanto ma natureza quanto na cultura, Mas na primeira aparecem precisamente no dominio em que na segunda se manifestam mais fracamente, © vice versa, Em um caso, 6 0 dominio da heranca bioldgiea, em outro, o da tradiciio externa, Néo se poderia pedir a uma iluséria’ continuidede en- tre as duas ordens que explicasse os pontos em que se opéem. 18. B, Malinowski, Ser and Repression in Savage Society, Nova YorqueLondres 102%, 18k 6.0. FR. Carpenter, A Field Study of the Behavior and, Social Relations | of Hosling’ Monkeyer Comberatite Beyeolbg™ Monogrepha, vols. 101i, ioe 1089. 15 VIC, 'R. Carpenter, A Field Stuay inv Siam.of the’ Bohevicr ard Social Welatlons of, the “Gibbon fHylobates ‘lar). Comparative Psychology Monographs, vol. 16, 1-8, Carpenter, Soxusl Behavior of Free Range Rhesus Monkeys (Macaca mulatia)’ Comparative Payshatogy Monographs, ‘ol. aE” oe Ts.t. W. Nissen, A. Wold ‘Study of the Chimpinzes. Comparative Psychology Mo- nographs, voi. 8, nut, 1881, sér, 98, P. TS 46 Por conseguinte, nenhuma andlise real permite apreender o ponto de passagem entre os fatos da natureza e os fatos de cultura, além do meeanismo da articulacio doles. Mas a discussio precedente nao nos ofereceu apenas este resultado negativo. Forneceu, com a presenga ou ‘a auséncia da regra nos comportamentos néo sujeitos as_determinagoes ise ideal, que pode permitir — a0 menos em certos casos e em certos limites — isolar os elementos naturais dos ¢l de um fato, ou fatos, que nao esta longe, & luz das definigdes Precedentes, de aparecer como uum escindalo, a saber, este conjunto com ‘Mas esta proibigio, sancio- cugdo dos culpados até a reprovagio difusa, e as vezes somente até a zomibaria, esté sempre presente em qualquer ‘grupo social. Com efelto, nfo se poderia invocar neste assunto as famosas exce- {goes com que & sociologia tradicional se satistaz freatientemente, ao mos- rar como sé poucas. Porque toda sociedsde faz excegio a proibigio do incesto quando s consideramos do ponto de vista de outra sociedade, cuja regra & mais rigorose que @ sua, Treme-se 20 pensar no ntimero de excegdes que um indio paviotso deveria registrar a este respeito. Quando nos referimos as trés excegbes cldssicas, o Egito, o Peru, o Havas, @ que aliés € preciso acrescentar algumas outras (Azande, Madagéscar, Birmania, etc.), nfo se deve perder de vista que estes sistemas sio exce: ges relativamente ao nosso préprio, na medida em que a proibigio abrange af um dominio mais restrité do que entre nés. Mas a nocio ssp medians» de_ ng catmpoross pr, oem int ogc 2 es covers po Pere ag Rai ee a ae 48, n. 5, 100, p. 448, eee ae 47 de excogio 6 intelramente relativa, e sua extenséo seria muito diferente para um australiano, um tonga ou um esquimd. ‘A questo nio consiste portanto em saber se oxistem grupos que permitem casamentos que so exclufdos em outros, mas, em vez disso, em saber se hé grupos nos quais nenhum tipo de casamento ¢ proibido. A resposta deve ser entio absolutamente negativa, e por dois motivos. Primetramente, porque 0 casamento nunca é autorizado entre todos os parentes préximos, mas somente entre algumas categorias (meiairm& com exclusio da irm, irmi com exclusio da mie, etc.). Em segundo lugar, porque estas unides consangtiineas ou tém cardter tempordrio ¢ ritual ou carter oficial e permanente, mas neste tltimo caso so privilégio de uma categoria social muito restrita. Assim 6 que em Madagéscar a mie, a irmé © as vezes também a prima sio cénjuges proibidos para ‘as pessoas comuns, 80 passo que para os grandes chefes e os rels So- mente a mie — mas assim mesmo a mie — 6 fady, “proibida”. Mas hi to poucas “excegdes” & proibigéo do incesto que esta é objeto de ex trema susceptibilidade por parte da consciéncia indigena. Quando um matriménio 6 estéril, postulase uma relagao incestuosa embora ignorada, @ as ceriménias expiatérias prescritas so. automaticamente celebradas."* © caso do Egito antigo é mais perturbador, porque desoobertas re- centes” sugerem que 0S casamentos consangilineos — particularmente ‘entre irma e irmio — representaram talvez um costume espalhado entre ‘0s pequenos funciondrios e artesdos, e n&o limitado, conforme se acre: ditava outrora”, A casta reinante e As mais tardias dinastias. Mas em matéria de incesto nio poderia haver excegio absoluta, Nosso eminente colega Ralph Linton observounos um dia que na geneslogia de uma fa- milla nobre de Samoa, estudada por ele, em oito casamentos consecuti- vos entre irmo e irmé somente se refere a uma irmA mais moga, ¢ que opinido indigena tinha condenado como imoral. O easamento entre o ir- mio e a irm& mais velha aparece pois como uma concessiio ao direlto de primogenitura, e nfo exclui a proibieio do incesto, porque, além da mie e da filha, a irma mais moca continua sendo um cOnjuge proibido, ‘ou pelo menos desaprovado. Ora, um dos raros textos que possufmos sobre @ organizagéo social do antigo Feito indica uma interpretagdo ané- loga. Trata-se do papiro de Boulag n. 5, que relata a historia da filha de ‘um fet que quer casarse com seu irmio mais velho. A re pon “Se no tiver fllhos depots desses dois, nfio 6 obrigat6rio casé- tos tm com outro?" Tambémagul parece tsiarse de ume formula: de proibicdo que autoriza 0 casamento com a irmf mais velha, mas repro- Yaa com @ mais moga, Veremos adiante que os antigos textos Japoneses descrevem 0 incesto como unifio com a irm& mais moga, sendo excluida @ mais velha, alargando assim 0 campo de nossa interpretacio. Mesmo hhesses casos, que Poderiamos ser tentados a considerar como limites, 8 21. M. Dubols, 6.3, gg Bots, Pranaus ot Mémoires de Posi entitle, Bens "sah a ere A: ature Mgetlge in Rie Harp, em Congres international des Sclences ential Cmples “rod ries Baa. “nitons, East "sir ‘Pevottonnisiovgke et phlowophigue des idées mo- see dine Pte’ ancien zibosingae “cof Ecgle Mugu ae Her Eh aes. ps, S/W. t FundotePetse, Socal Lije Ancient Biypt, Lonaren Sh, es ere, Contes oplaires” de Egypte axcienne, Parts 1860, p. 11. 48 a regra da universalidade nio € menos aparente do que o carter norma. tivo da instituicéo. Eis aqui, pols, um fendmeno que apresenta simultaneamente o ca réter distintivo dos fatos da natureza e 0 cardter distintivo — teorica: mente contraditério do precedente — dos fatos da cultura, A proibigio do incesto possui ao mesmo tempo a universalidade das tendéncias e dos instintos e 0 cardter coercitivo das leis e das instituicdes. De onde provém entio? Qual 6 seu lugar e significagéo? Ultrapassando inevitavel- mente os limites sempre histdricos.e geogréficos da cultura, coextensiva no tempo e no espago com a espécie biolégica, mas reforcando, pela proibicio social, a agéo esponténea das forgas naturais a que se opée por seus caracteres proprios, embora identificandose @ elas quanto a0 campo de aplicagio, a proibi¢o do incesto aparece diante da reflexio socioldgica como um terrivel mistério. Poucas prescrig6es sociais preser- varam, com igual extensfo, em nossa sociedade a auréola de terror res- peitoso que se liga as coisas sagradas. De maneira signiticativa, e que teremos necessidade de comentar e explicar_mais_adiante, ‘qual, ainda mesmo na sociedade moderna, a instituigéo evolui. Este ambiente envolve também, no plano tedrico, debates aos quais, desde as origens, fa sociologia se dedicou com uma tenacidade ambigua: “A famosa ques. tao da proibigio do incesto, declara Levy-Bruhl, esta verata quaestio de que os etnélogos e os sociélogos tanto procuraram a solucéo, nao admite nenhuma, Nao ha oportunidade em colocéla. Nas sociedades das quais acabamos de falar é inutil perguntar por que razio 0 incesto é proibido. Esta proibicho ndo existe...; ninguém pensa em proibila. # alguma coi- ‘sa que nfo acontece. Ou, se por impossivel isso acontecesse, seria alguma coisa inaudita, um monstrum, uma transgressio que espalha o horror e © pavor. As sociedades primitives conhecem a proibicao da autofagia ou do fratricidio? Essas sociedades nio tém nem mais nem menos razSo para proibir 0 incesto”. No nos espantaremos em encontrar tanto constrangimento em um autor que néo hesitou contudo diante das mais audaciosas hipsteses, se considerarmos que os socidlogos sio quase unanimes em manifestar, dt ante deste problema, a mesma repugndncia e a mesma timidez, 25. L. LaeyBruhl, Le Surnaturel et la Nature dans ta mentale primi 1931, p. 247, i et 49 CAPITULO II O Problema do Incesto © problema da proibigio do incesto apresentase & reflexio com toda Deveremos retornar a este ultimo ponto. a gem, por si mesma natural, entre a natureza e ‘cultura, 0 que seria inconcebivel, mas explica uma das ‘razies poles quais € no terreno da vida sexual, de preferéncia a qualquer outra, que @ passagem entre as duas ordens pode e deve necessariamente efetuar- se. Regra que abrange aquilo que na sociedade Ihe 6 mals alhelo, mas ao mesmo tempo regra social que retém, na natureza, o que 6 capaz de superéla. A proibicéo do incesto esté ao mesmo tempo no limiar da cultura, na cultura, e em certo sentido — conforme tentaremos mostrar — € a propria cultura. Por enquanto, basta notar a dualidade de ca raoteres a que deve seu cardter ambiguo e equivoco. Em vez de explicar esta ambigitidade, os socidlogos preocuparam-se quase exclusivamente em reduzila. As tentativas que fizeram podem classificarse em trés tipos principais, que nos limitaremos aqui a caracterizar e discutir em seus tragos essenciais, 50 defender a espécie dos resultados nefastos dos ca. samentos consangilineos. Esta teorla apresenta um carter notédvel, o de ser obrigada a estender, por seu proprio enunciado, a todas as socieda- des humanas, até as mais primitivas, que, em outros terrenos, de modo algum dao prova de tal clarividéncia eugénica, 0 priviléngio sensacional da revelagio das supostas conseqiiéneias das unides endogamas. Ora, esta Justiticagio da protbigéo do incesto é de origem recente, néo aparecendo em parte alguma em nossa sociedade antes do século XVI. Plutarco que, de acordo com o plano geral das Moralia, enumera todas as hipéteses possiveis sem manifestar preferéncias por nenhuma, propde trés, todas de natureza socioldgica, nenhuma das quais se refere a eventuais taras da descendéncia,” No sentido contrario, sé é possfvel citar um texto de Gre- gorlo 0 Grande’, que parece no ter suscitado nenhum eco no pensa- mento dos contemporaneos ¢ dos comentadores ulteriores.* ~$ Invocamse, 6 verdade, as diversas monstruosidades prometidas, no folclore de diversos povos primitivos, principalmente os australianos, & descendéncia de pais incestuosos\ Mas, além do tabu coneebido & maneira australiana ser provavelmente 0 que menos se preocupa com a proximi- Gade bioldgica (acomodandose, alids, muito bem com unides, tais como entre 0 tioavd ea sobrinhaneta, cujos efeitos nao podem ser particu- larmente favoréveis), bastard notar que estes castigos sio habitualmente previstos pela tradigéo primitiva para todos aqueles que violam as re gras, nfo sendo de modo algum reservado a0 dominio especifico da re producéo. A que ponto devemos descontiar de observagées apressadas, € coisa que bem ressalta do seguinte testemunho de Jochelson: “Os yakut Gisseramme ter notado que as criancas nascidas de unides consangtiineas hndo tém boa satide. Assim, Dolganov, meu intérprete, refere, a propésito dos Tukaghir que praticam’ 0 casamento entre primos @ despeito da prot bigio habitual chamada n-exiifi... que as eriancas nascidas desses casa mentos morrem ou que os proprios pais sofrem de moléstias freqtien- temente mortais”.’ Eis ai o que se pode dizer sobre as sangBes naturais. Quanto as sangies sociais, sio tdo pouco fundadas sobre consideragdes fisioldgicas que nos Kenyah e nos Kayan de Bornéu, que condenam o casamento com a mie, a irmé, a filha, a irmé do pai ou da mie, © {fitha do irmio ou da’ irmd, “no caso'das mulheres que se encontram relativamente ao individuo ne mesma relagdo de parentesco, mas por JS! H: 8. Maino, Disserations on Barly Law and Custom, Nova Torque 1886, odes: Ouestiones romanae, em Gusres, trad. Amyot, Lito 165, 2, p Sik hur, ,Coropolopica, Note gn the, Physiological Explanation, of the Prohibition “of Ince. Journal of Retioious Paychology, vol. 8.191, p. 20625 vn agit Cooper, acest Probitiions in Primitive Culture," Primitive an, vol. 5, " &.W. dochelson, The Yukaghir and, the Yukaghirized Jesup, North Pactic agealten, oho” (Memavr of the “american Museum of Natura History, volt, i os inueres chamam "0 Ineesto “siflis" porque vem em ‘urna "0 ‘eastigd * tule Ge B.°E! EvansPrlichard, Exogemous Rules among the Nuer. Mat, VOl, 51 a a a adogéo, estas interdigdes ¢ os castigos que as punem sio — se tal pos sivel — ainda mais severamente aplicadas”.* Nao se deve, aliés, perder de vista que desde o fim do paleotitico © homem utiliza procedimentos de reprodugo endogamicos, que leva ram as espécies cultivadas ou domésticas a um crescente grau de per- feigéo. Como, portanto, supondo que 0 homem tenha tido conseiéneia dos resultados desses métodos, e que, como também se supée, procedesse nnesse assunto julgando de maneita racional, como explicar que tenha { chegado no dominio das relagdes humanes a’ conclustes opostas as que sua experiéncia verificava todos os dias no dominio animal e vegetal, do qual dependia seu bemestar? Se o homem primitivo tivesse sido sensivel 2 consideragées dessa ordem, como compreender sobretudo que tenha parado nas protbigGes © néo 'tivesse passado is prescrigées, cujo rest tado experimental — ao menos em certos casos — teria mostrado efeitos benéficos? Néio somente nfo 0 fez, mas nos recusamos ainda a todo em- preendimento dessa ordem e fol preciso esperar teorias sociais recentes — enjo caréter irracional é aliés denunclado — para ver o homem pre- conizar para si a reproducdo orientada. As prescrigdes positivas que mais freqiientemente encontramos nas sociedades primitivas ligadas & protbicao do incesto sio as que tendem a multiplicar as unides entre primos cru- zados (respectivamente nascidos de um irmao e de uma irmA), por con- seguinte, que colocam nos dois pdlos extremos da regulamentagio soclal tipos de unides idénticas do ponto de vista da proximidade, a saber, a unio entre primos paralelos (respectivamente nascides de dois. irmios ‘ou de duas irmfs) igualada ao incesto fraterno, e a unio entre primos cruzados, sendo esta ultima considerada como correspondendo a um ideal, apesar do grat muito estreito de consangtinidade entre os cOnjuges. no entanto notével observar até que ponto o pensamento con- temporaneo tem repugnéncia em abandonar a idéia de que a proibicao das relagdes entre consangilineos ou colaterais imediatos seja justificada por motivo de eugenia. Isto devera acontecer sem dulvida porque — con- forme a experiéncia quo tivemos durante os wltimos dez anos — ¢ nos conceitos biolégicos que residem os ultimos vestigios de transcendéncia i de que disp6e 0 pensamento moderno. Um exemplo particularmente sig- nifieativo ¢ fornecido por um autor cuja obra cientifica contribuiu em alto grat para dissipar os preconceitos relativos &s uniGes consangilineas. . M. East mostrou, com efeito, mediante admirdveis trabalhos sobre reproducio do milho, que a criacéo de uma linhagem endogimica tem como primeiro resultado um perfodo de fiutuagSes durante o qual 0 tipo estd sujelto a extremas variagdes, devidas sem duivida ao ressurgimento de caracteres recessivos habitualmente mascarados. Depois, as variabili- | daces diminuem progressivamente, terminando em um tipo constante o ‘invaridvel,|Ora, erm uma obra destinada a um auditério mais amplo, 0 autor, depois de ter lembrado estes resultados, tira a conclusio que as ‘crengas populares relativas aos casamentos entre parentes prdximos so grandemente fundadas. O trabalho de laboratério no faria senéo contfix- mar 0s preconceitos do folciore. Segundo a expressio de um velho au- el ele elo gat eat 2 fie tat: ebony re oh ak albaindr Egat ae REE ae IS 52 pe eee eee tor, “Superstition iz often awake when reezon iz asleep”.' E isto porque “os caracteres recessivos pouco desejéveis sio tio freatientes na familia humana quanto no milho”. Mas este deplordvel reaparecimento de ca- racteres recessivos s6 6 explicdvel — exclufdas as mutagdes — na hi- Pétese em que se trabalha com tipos jé selecionados, pois os caracteres ‘que reaparecem sio precisamente aqueles que o esforco secular do cria- dor tinha conseguido eliminar. Esta situagio nfo poderia encontrar'se no homem, porque — como acabamos de ver — a exogamia, tal como é praticada pelas socledades humanas, 6 uma exogamia cega. Mas, sobretu- do, East estabeleceu indiretamente ‘com seus trabalhos que estes supos- tos perigos nio teriam jamais aparecido se a humanidade tivesse sido ‘endogamica desde a origem, Neste caso nos achariamos sem duvida em presenga de ragas humanas to constantes e definitivamente fixadas quan fo as linhagens . onsangiineds, com feito, apenas combinam genes do mesimo tipo, 20 passo que um sistema no qual a tniso dos Sex0s fosse determinada exclusivamente pela lel das probabilidades. (*panmnixin” de Dantberg) os. misturaria ao acaso. Mas a natureza dos genes © sels caracteres individuals continiam sendo os mesmos nos dols casos, Bae ta que a5 unides. consangtineas se interrompam para que a composigho geral da populagso se restabelega tal como se poderia prever com base na “panmixia”. Os casamentos consangiifneos arcaicos, por conseguinte, néo tém influéneis, no. atuam sendo sobre as geragoes imediatamente con secutivas. Mas esta influéneia é fungéo das dimensdes absolutas do gr po. Para uma populago de um volime dado, podese sempre definir tim estado de equlliorio no qual.» freqiéncia’ dos casamentos consan- giiineos seja igual & probabilidade de tais casamentos em regime de “panmixia”. Sea populagio ullrapassa este estado de equilfbrio, perma necendo a mesma a freqiiéncia dos casamentos consangiiineos, 0 numero de portadores de caracteres recessivos aumenta, "O aumento do’ grupo acarreta o acréscimo de heterozigotismo a expenses do homozigotismo”,” Se a populagio cai abaixo do estado de equilforio, permanecendo “nor mal” a freqiléncia dos casamentos consangilineos com relagéo a esse es- fado, os caracteres recessivos reduzem-se segundo uma taxa progressiva 0,0572% em uma populagao de 500 pessoas com dois filhos por familia; 0,1697% se a mesma populagao cai a 200 pessoas. Dahlberg péde por conseguinte concluir que, do ponto de vista da teoria da hereditariedade, “as profbig6es do casamento’ nao. parecem justiieadas”.” TE verdade que as mutagées determinantes do sparecimento de uma tara recessiva sdo mals perigosas nas poquenas popllagdes que nas gray des] Nas primeiras, com efelto, as probebilidades de passagem ao homozi gotismo sio mais elevadas. Em compensacio, esta mesma passagem ré- ida e completa ao homorigotismo, em prazo ‘mais ou menos longo, deve 1. EM. Bast, Heredity, and Human Alfairs. Now York 1988, Gunnar ‘Caniberg, On Rare Detects In Human Vopulsions ‘with Particular Regasd {o, Inpreedlng and “Tagine Effects Proceedings 0) the Royal Society" of Bainburgh, vol. 8 TagtoG8 p22 sta. tnbreeaihg ‘in’ Men. Genetie, vol. 14, 1929, p. 486 53 assegurar a eliminagio do cardter temido. # possivel, portanto, consi- derar que, em uma pequena populagéo endégama de composigéo estdvel, Gujo. modelo € oferecido por muitas sociedades primitivas, o tinico isco Go easamento entre consangilineos provem do aparecimento de novas ‘mu: tagées — risco que pode ser calculado, porque esta taxa do aparecimen- to € conhecida — mas as probabilidades de encontrar no interior do grupo um heterozigoto recessive tomaram-se mais fracas que as de ocor- Fénoia possivel no casamento com um estranho. Mesmo naquilo que se refere aos caracteres recessivos que surgem por mutagio em uma po pulagio dada, Dahlberg julga que o papel dos casamentos consangilineos 6 muito fraco na produgao dos homozigotos. Porque, para um homozigoto resultante de um casamento consangiiineo, hé um ntimero enorme de heterozigotos que, caso 8 populagéo seja suflclentemente pequena, serdo necessariamente Ievados se reproduzir entre si{Assim, em uma populs- io de 8) pessoas, a proibigio do casamento entre parentes préximos, Inclusive primos em primeiro grau, nfo diminuiria 0 niimero dos port dores de caracteres recessivos raros senfo de 10 a 15%."" Estas consi- | deragées so importanges porque levam em conta a nogdo quantitative do volume da populacéo, JOra, as sociedades primitivas ou arcaicas so. I mitadas, por seu regime econdmico, a um volume populacional muito restrito’e 6 justamente para volumes desta ordem que a regulamenta- go dos casamentos consangiiineos sé pode ter conseagiiéncias genéticas Gesprezivels. Sem chegar 20 fundo do problema — para o qual os teéri- cos modernos 6 ousam fornecer solugdes provisdrias e muito matiza das '! — 6 possivel portanto considerar que a humanidade primitiva nio se encontrava em uma situago demografica tat que fosse capaz mes- mo de recolher os dados do problema. Um @BGEEBB tipo de explicagéo tende a eliminar um dos termos da antinomia entre os caracteres, natural ¢ social, da instituigéo. Para um grande grupo de socidlogos e psicélogos, dos quais Westermarck eH. 5 ins fazendo derivar o horror do incesto, postulado na origem da proi- bigio, da natureza fisiolégica do homem, enquanto outros o derivam das tendéneias psfquicas, Na verdade, limitamse estes autores a retomar 0 velho preconceito da “von do sangue”, expresso aqui em forma mais nogativa que positiva, Ora, 0 fato do pretenso horror do incesto nfo poder ser derivado de uma fonte instintiva esta suficientemente estabelecido pela verificagéo de que se manifesta somente por ocasiéio de um conhe- cimento suposto, ou posteriormente estabelecido, da relacdo de paren- tesco entre os culpados. Resta a interpretagio pelo estimulo — ou antes @ falta de estimulo — atual. Assim, para Havelock Ellis a repugnéncia 10. 1d, On Rare Defects in Human Populations with Particular Regard to Inbreed: tng ‘and. isolate tects. Op. cit p. 220 i. "Banr, ku Fischer, P iahe, "Menschitche Erotichteltslehre, Munique 1922. . Danlberg, Inaucht hel Polytiybrialtdt bel Menschen, Heredias, vol. (4, 1990. 0. Flogben, Genetic ‘Principles “in Medicine and Social. Soiences, Londres 1031. J. B.S.” Haleane, Heredity and "Politics, ‘Londres 38, cf. tambern adlante, cap. VIE. 54 a esses autores que confundem dois tipos de hébitos: 0 que se desenvolve entre dois individuos sexualmente untdos, sendo sabido que, tal habito acarreta geralmente o enfraquecimento do desejo — a ponto, declara um biologista contemporaneo, “de introduzir um elemento de desordem em todo sistema social”; e 0 que reina en- tre parentes préximos, ao qual se atribui o mesmo resultado, embora © costume sexual, que desempenba o papel determinante no primelro ‘caso, esteja manifestamente ausente no segundo. A interpretagio propos- ta reduzse pois a uma peticSo de principio, isto 6, na auséncia de qual quer verificagéo experimental ¢ impossivel saber se @ suposta observa- Go sobre a qual nos apoiamos — a menor freqiiéncia dos desejos se- xuais entre parentes prdximos — explica-se pelo hibito fisico ou psico- l6gico, ou como conseqiiéncia dos tabus que constituem a prépria prot bicgdo.’ Por conseguinte, pretendendo explicéla, 0 que se faz é postu: ‘Mas nio ha nada mais duvidoso que esta Porque 0 incesto, embora proibido pela lei e pelos costumes, exis. te, sendo mesmo, sem diivida, muito ‘anomalias ser4 preciso definir em que consistem essas ano- malias, no Unico plano no qual é possivel invoci-las sem tautologia, isto €, 0 plano fisiolégico, ¢ isto seré sem diivida tanto mais dificil quanto uma importante escola contemporanea tomou, em relacéo a esse proble ma, uma atitude totalmente contraditoria & de Havelock Ellis e Wester marck. A psicandlise descobre um fendmeno universal ndo na repulsfio em face das relagdes incestuosas, mas, 20 contrdrio, na procura delas. Também nao € certo que o hébito seja sempre considerado como devendo ser fatal para 0 casamento. Muitas sociedades pensam de outra maneira. “O desejo de mulher comega pela irma”, diz o provérbio Azande. Os Héhé justificam a pratica do casamento’ entre primos cru: zados pela longa intimidade reinante entre os futuros cOnjuges, verda deira causa, segundo dizem, da atragio sentimental e sexual. '' E o pré: 12, Mavelock Elis, Serual Selection im Man, Flladeltia. 1906, E. Westermarck, The Hisiory 0] Human Marriage, vol. 1, p. 2605s, Vol. 2, p. 2O"ss. — A” posicho. de. Wester. ‘marek’ dpresenta “ciiosas’iiuluagses ‘Tendo, partido’ de “uma imeFpretacso “de base fhstintiva muito proxima. da concepcao de" Havelock Ellis ia primelra ediean sua History. o) Human. Marriage, Iria cvelult para. umn concopeie mals psicol fica, que. se fevela ne ‘segunda ecigio. No’ final ‘de sua vida, contudo’ Wester. ‘marek, Recent’ Theories of Exogamny. Sociological Review, vol. 6, 108), devia, voltar. corno ‘reagio' contra, B. Z, ‘Soligman ‘© Malinowski, no) somento b sta. posigho dé Wei,’ mas até crenga de “que a. origem ultima. "da provbicao deve. ser procurada, fm. uma “conscigneia confuse das Consequenclas “nocivas “das urges consangiliness (E. Wostermaci, ‘Three Essays on Ser and Marriage. Londres 1004, "p._ 53s) 18. G._S, Miller, ‘The Primate Basis ‘of Human Segal Behavior Quarterly ke: view of Bioiogy. vol. 8 n. 4, 1861, —p. 398. — Bota, tendenciainata.do ‘homem a se ‘cansar” de set ‘parceite ‘textile comum a ele 'e ‘sos macacos superiores.” (bid DSB 14, G. Gordon Brown, HeheCross-cousin Marriage, em Bssays Presented to C. &. Seligman. Londres "isia, p. 55, prio tipo de relagdes consideradas por Westermarck e Havelock Ellis co- mo a origem do horror do incesto é aquele que os Chukchee esforcam-se or tornat o modelo do casamento exogamos “A maloria dos eesamentos oureparentos (isto 6, primes) sho. combinadoo numa idade ‘mullo. tore ra ka?yeses mete Guando'® nolve a nolva achamse na menor ie ncla, Colebrase # cerlmonia oa crlangas crescem brineando. juntas, Cees eee eee cre eee ee parte. Naturalmente, desenvolvese entre eles uma ligacio mais profun- Pad eee eg gt eee eee en ee bem de posur ou a0" sulelda. "Os cnsamontos ‘entro fall Unidas pelos lagos de amizade, mas sem parentesco entre si, ajustam-se ao mes- To Upo. Hotes families he venes ‘elabelecent tun condo. sobre ©. case mente, do seus ‘hos respectivos, antes mesmo. de, werem. nascido” = Mesmo entre os tndios do aio Thompson, na Cohimble. Brttnica, onde preasemento entre primes am segundo’ erau 6 tralado como lncesto,¢ fevedo ao alculo, Sota hostldade os. casamentos consengilineos, mes mo afastados, nfo impede que os homens fiquem noivos de mogas vinte anos mais jovens."' Os fatos deste género poderiam ser indefinidamente generaliseaos “S. Mas existe, atrés da atitude que discutimos, uma confusto intinta- mente mais grave. Se o horror do incesto resultasse de tendéncias {i siolégicas ou psicolégicas congénitas, por que se exprimiria em forma Sent eae ue meee mee see eee atte dee tnoontreda om todas ay socledaion humans aureolada pelo msm" Pres tigio sagrado? Nao existe nenhuma razéo para proibir aquilo que, sem plolbigte, nto cavreria'o risco do ser executedo. ‘Duns reapostas, odern ee ere ee re ee re ee ig&io sé se destina a casos excepcionais, quando a natureza falha em Cae aete die ea oeeee Caeee eT Eee ee obriga a considerar como extremamente raras, e a importancia da re- gulamentagéo de que sio objeto? E, sobretudo, por que os hdbitos ne- fasten seriam prolbidos, ou, mais singe, castigaos em mumeroses. 0. Glededes com. ¢ axivem Wigor' que contwosrioe, se° mio fossamn conse rados como nocivos e perigosos? Se este perigo existe para o grupo, pare, os,individuos inleressados ou sun descendéndia, 6_nele Suna Ih td Gh’ preening gD Somos inovlawelmenta recondusidce'h cxpllengho procoea Poder-se-ia, é verdade, invocar a comparacio com © sutcidio, que os toatumnes, © Treqlentemerite também @ iy, combeter por miluiplas sary g6es, embora a tendéncia & preservagio seja natural no ser vivo. Mas faalogin entre o'Incesto' e6aulello S apenas ‘aparenie, Porgue. se, nos dois casos, a sociedade proibe, esta proibigio aplicase no primeiro caso a um fen6meno natural, comumente realizado entre os animais, ¢ to sefundo casos um fendmene gomplotamente esitanho b vide anita que se deve considerar como fungio da vida 15, W;,Bogoras, The Chukches, iesup, North Paollo Expedition, vol. 9. (Memol of the “amertean Museum of Natural” History, vol. ti, 041000), p. 16. james Tek, te Thomason “inuang cfBaach Conumbia, Alemobe af the Ame- neat ituseum of’ Natural History, woh. 2, parla 4° Anthropology L, p. S2i 326 56 Se & weno: prom ‘que, enquanto toda sociedade profbe 0 incest hd nenhuma que nao’ conceda um lugar ao suicidio, reconhecendo a legitimidade dele em certas cireunsténcias ou por certos motivos, justamente aqueles em que a atitude individual coincide acidentalmente com um. interesse soclal. Resta, Portanto, sempre descobrir as razGes pelas quais o incesto causa pre- Juizo & ordem social. ‘As explicagbes tipo tém em comum com a que acaba de ser discutida 0 fato de rem, também elas, eliminar um dos termos da antinomia, Neste sentido, ambas se opdem as explicagdes do primetro tipo, que conservam os dois termos, embora tentando dissocié1os. Mas, enquanto os partidérios do segundo tipo de explicagéo querem reduzir A profpiplo do incesto a um fencmeno peleologieo ou fisloldeleo de ca maior numero de detaines que as precedentes. Considerada como instituigio social, a proibicéo do incesto aparece sob dois aspectos diferentes. Ora achamo-nos somente em presenca da proibico da unifio sexual entre consangiiineos ou colaterais préximos, ora esta forma de proibicéo, fundada sobre um critério biolégico definido, € apenas um aspecto de um sistema mais amplo, do qual parece estar ausente qualquer base biolégica. Em numerosas sociedades a regra da exogamia) profhe 0 casamento entre categorias sociais que incluem os arentes préximos, mas, juntamente com eles, um ntimero considerdvel de individuos entre os quais no 6 possivel estabelecer nenhuma relagio de consangilinidade ou de colateralidade, ou, em todo caso, s6 relagdes muito distantes, Neste ultimo caso, é 0 capricho aparente da nomenclatura que equipara os individuos feridos pelo interdito a parentes Dioldgicos. Os partidérios das interpretagées do terceiro tipo dio principalmente atencéo a esta forma ampla e socializada da proibicéo do incesto. Afaste- mos imediatamente certas sugest6es de Morgan e de Frazer, que véem nos sistemas exdgamos métodos destinados a prevenir as unides incestuosas, isto é, uma pequena fragéo das unides que de fato profbem. © mesmo resultado, com efeito (o exemplo das sociedades sem cli nem metade é a prova), poderia ser obtido sem o incOmodo edificio das regras exo- gimicas. Se esta primeira hipstese dé uma explicagio muito pouco sa- listatéria da exogamia, no fornece nenhuma sobre a proibicao do in- cesto. Muito mais importante, de nosso ponto de vista, sio as teorias que, dando uma interpretagio socioldgica da exogamia, ou deixam aberta @ possibilidade de fazer da proibico do incesto uma derivacio da exo- gamia, ou afirmam categoricamente a existéncia desta derivagio. ~ No primeiro grupo incluiremos as idéias de McLennan, Spencer e Lubbock", no segundo, as de Durkheim. McLennan e Spencer viram nas 41.3. B. MeLennan, An Inquiry into the Orlein of Bzogamy, Londres 1806, 1. ‘Spencer, Principles 0f "Sociology, 3 vols., Londres. 1887 1806. Sir” John. Lupbock, Lord Axerbury, The Origin of Civlleation aid the Primitive Condition of Man, Londres 18t0,"p. 'sies, Marriage, Totemism ‘and Religion, ‘Londres. 1011. 57 eo” préticas exogtmicas a fixagko pelo costume dos hébitos de tribos guer- Teiras, nas quais a captura era o meio normal de obter esposas. Lubbock traga "um esquema de uma evolugéo que teria consagrado a passagem do casamento de grupo, de cardter endogimico, ao casamento exogimico por caplura, AS esposas obtidas por este iiltimo procedimento, por opo- sigdo As precedentes, serlam as dnicas que possuirlam o estatuto de bens individuais, fornecendo assim 0 protétipo do casamento individua- lista moderno. Todas estas concepgdes podem ser afastadas por uma razio muito simples: se no querem estabelecer nenhuma conexio entre @ exogamia e a proibig&io do incesto sio estranhas ao nosso estudo; se, a0 contrario, oferecem solugbes aplicivels nfio somente as regras da. exo gamia mas a esta forma particular de exogamia constituida pela proi- big&o do incesto, sao inteiramente inadmissiveis. Porque pretenderiam en- {80 fazer derivar uma lel geral — a proibigho do incesto — de tal ou qual fendmeno especial, de carter freqlientemente anedético, préprio sem diivida de certas sociedades, mas cuja ocorréncia nio pode ser universa- lizada, Este vicio metodolégico, e alguns outros ainda, sio comuns com. teoria de Durkheim, que constitul a forma mais consciente ¢ sistemé- tica de interpretacio por causas puramente sociais. A hipétese levantada por Durkheim no importante trabalho que inau- gura o primelro volume do Année Soctologique"* apresenta um triplice caréter: ‘primelramente, fundase na universalizagdo de fatos observados em um limitado grupo de sociedades; em seguida, faz da profbigio de incesto uma consegiléncia longingua das regras da exogamia. Finalmente, estas ultimas sGo interpretadas em fungéo de fenédmenos de outra ordem. E a observacho das sociedades australianas, consideradas coro ilustra- ho de um tipo primitivo de organizagio outrora comum a todas as sociedades humanas, que fornece, segundo Durkheim, a solugdo do pro- blema do incesto. A vida religiosa dessas sociedades, conforme se sabe, 6 dominada por crengas que afirmam @ identidade substancial entre 0 28 ¢ 0 totem epdnimo. A erenga na identidade substancial explica as Proibigdes especiais que afetam o sangue, considerado como o simbolo sagrado e a origem da comunidade magico-bioldgica que une os membros de um mesmo cla. Este temor do sangue clfinico é particularmente in- tenso no caso do sangue menstrual, e explica por que na maioria das sociedades primitivas as mulheres so, primeiramente por ocasiio das Tegras, e depois de maneira mais geral, objeto de crencas madgicas e Mmarcadas por especiais proibigdes. Os interditos referentes As mulheres © & sua segregacéo, tal como se exprime na regra da exogamia, nfo seriam portanto senfio a repercussio longingua de erencas religiosas que primitivamente nio fazem discriminagio entre os sexos, mas que se trans- formam sob a influéneia da aproximagao que se estabelece, no espirito dos homens, entre 0 sangue e 0 sexo feminino. Em wltima anilise, se, de scordo com a regra da exogamia, um homem nfo pode contratar casamento no interior de seu prdprio clA, € porque, se agisse de outra maneira, entraria em contato, ou correria 0 risco de entrar em contato, com este sangue que 6 0 sinal visivel e a expressio substancial do pe. Tentesco com o seu totem. Esse perigo no existe para os membros de ‘outro clé, porque o totem de outrem nfo sofre nenhum interdlto, nko € 18. E, Durkheim, La Prohibition de Yinceste. L'Année Sociolopique, vol. 1, 1908. 58 depositario de nenhuma forga magica, do que decorre a dupla regra do casamento interclnico e da proibiego do incesto no interior do cla. A Proibigio do incesto, tal como a concebemos atualmente, seria portanto um vestigio, a sobrevivéncia deste conjunto complexo de crencas e prol- digdes que ‘mergulham suas raizes em um sistema magico-religioso no qual reside, afinal de contas, a explicacio. Assim pois, seguindo urma_mar- encontram origem no temor do € essa proibicéo ¢ apenas um caso particular de temor do sangue em geral, sendo que finalmente este wltimo exprime somente certos sentimentos que decorrem da crenga na consubstancialidade do in- dividuo, membro de um cli, com seu totem. A forca desta interpretacio provém da possibilidade de organizar em um sé e mesmo sistema fendmenos muito diferentes uns dos outros, ESS sessed OSL DRE fen OeeDe dE A fraqueza da interpretacio reside no fato das conexdes assim es- tabeiecidas serem frdgels e arbltréries. Deitemos de lado a objecao ante. cipada tirada da nfo universalidade das crencas totémicas. Com efeito, Durkheim postula esta universalidade, sendo provavel que, diante das observagées contempordneas que de modo algum justificam, sem poder entretanto, e com razio, invalidar esta exigéncia tedrica, mantivesse sua Posi¢ao. Mas, mesmo colocandonos por um instante nos quadros da hi- Pétese, ndo se percebe nenhuma ligagéo ldgica que permita deduzir as diferentes etapas partindo do postulado inicial. Cada etapa estd ligada & precedente por uma relagio arbitraria, sobre a qual néo ¢ possivel dizer, a priori, que nfo tenha podido ocorrer, mas sobre a qual nada demonstra que tenha efetivamente se produzido. Tomemos, primeiramen- te, @ crenga na substancialidade totémica. Sabemos que nio opée obs- téculo @ consumacéo do totem, mas apenas confere a este ato um ca- rater cerimonial. Ora, 0 casamento e, em muito numerosas sociedades, © préprio ato sexual apresenta carter cerimonial e ritual, de modo al: gum incompativel com a operaco suposta de comunhéo’ totémica que ele se quer discernir. Em segundo lugar, 0 horror do sangue, principal- mente do sangue menstrual, nio 6 um fendmeno universal." Os jovens Winnebago visitam suas amantes aproveitando o segredo a que as con- dena o isolamento prescrito durante o periodo da menstruagio. * Por outro lado, nos lugares em que o horror do sangue menstrual parece atingir o ponto culminante, néo é de modo aigum evidente que a impureza tenha predilegdes ou limites. Os Chaga sio Banto que vi- vem nas encostas do Kilinanjaro. Sua organizagKo social ¢ patrilinear. Entretanto, as instrugdes fornecidas as mogas durante a iniciacéo avisam- nas contra os perigos gerais do sangue menstrual e ndo contra os peri- g0s especiais a que estariam expostos os depositérios do mesmo sangue. Mais ainda, 6 a mie — e nfo o pal — que parece correr o perigo mais grave: “Nao 0 mostres a tua me, ela morreria! Nao o mostres a tuas ‘companheiras, porque pode haver entre elas uma maldosa, que se apo- 1s. wn, Waters, Te, olscent Gite among Prive People, Journal of Re we Fea eaten of Wonebam tndan, Urorty fal ruoktalons ie anuricet woke, ont BONDE, Wish eR oo 38 59 dere do pano com que te limpaste, e teu casamento serd estéril. Néo © mostres a uma mulher mé, que tomaré o pano para colocélo no alto de sua cabana... de tal modo que no poderds ter filhos. Nao jogues © pano no caminho ou no mato. Uma pessoa md pode fazer coisas ruins com ele. Enterra-o no chio. Esconde o sangue do olhar de teu pai, de teus irmfos e de tuas irmis. Se deixares que o vejam 6 um pecado”.”" ‘Um Aleuta néo copula com sua mulher durante as regras, com medo de fazer mé caca, mas se o pai vé a filha durante suas primeiras re- gras, @ moca arriscase a ficar muda e ceya. Os perigos so para ela © nlio para.ele."” De maneira geral uma mulher é impura durante o peifodo das‘ regras, no somente para os parentes de cl, mas também iS quais traria solugho, Ore, estas, proibigoes ‘no’ slo. suspenses. pela aplicagéo da regra ‘da exogamia e atingem, de modo indistinto, tanto os membros endogamicos quanto os exogamicos do grupo. Se, ademais, & Tegra da exogamia tivesse de ser inteiramente derivada dos preconceltos Telativos a0 sangue menstrual, como teria aparecido? A proibigio das re- lagdes sexuais com @ mulher durante as regres basta para prevenir 0 isco da polug&o. Se os preceltos da exogamia nfo tém outra fungio, sua existéncta 6 supérflua e incompreensivel, sobretudo quando tmagi- namos gs inumerdveis complicagdes que introduzem na vida do grupo. Se estes preceitos tiveram comego porque correspondem a outras exi génclas @ desempenham outras fungdes. Todas as interpretagbes sociolégicas, tanto as de Durkheim quanto as de McLennan, Spencer ¢ Lubbock aprosentam enfim um vicio co- mum e fundamental, Procuram fundar um fendmeno universal sobre uma seqtiéncia histérica cujo desenrolar nfo é de modo algum inconcebivel em um caso particular, mas cujos episddios so t4o contingentes que se deve excluir inteiramente que tenha podido se repetir sem alteragéo em todas 2s socledades humanas. Sendo a seqléncla durkheimiana a mais ‘complexa, ¢ ela que se encontra, ainda uma vez, principalmente atingida or esta critica, Pode conceber-se que, em uma sociedade dada, o nas: cimento de determinada instituicdo particular se explique por transfor mag6es de cardter altamente arbitrério, conforme os exemplos forneci- dos’ pela histéria, Mas a histéria mostra também que processos desse tipo conduzem a instituigdes multo diferentes segundo a sociedade con Siderada, e que, no caso em que instituigdes andlogas nascem indepen- dentemente em diversas partes do mundo, as seqiiéncias histéricas que araram seu aparecimento s&0 muito diferentes. © o que se chama etna as etal ia so sige vox now encontrztmos (com te ellncis sions) em Tace de resultados, sempre iden. ticos, procodentes, de uma. sucosoho de. aconteclmentenimutavelmente Tepetidos, poderiamos concluir com certeza que estes acontecimentos nfio slo @ razdo de ser do fenémeno, porém manifestam a existéncia de uma 21.0. F.- Roum, Initiation among the Chage, American Anthropologist, vol. 41, sae W. Jooneuon, Contes aléoutes. Ms, em New York Publle Library, ef. por R. Jakobson, nn. 34-35. pre = a _ 60 lei, na qual unicamente reside a explicaco. Ora, Durkheim nao propie nenhuma Tei que explique a passagem necesséria, para o espfrito humano, a crenga na substancialidade totémica ao horror do sangue, do horror do sangue a0 medo supersticioso das mulheres, e deste tltimo sentimento & instauragéo das regras exogamicas. A mesma critica pode ser dirigida as reconstrugdes fantasistas de Lorde Raglan. Mostramos, ao contrdrio, que nfo h4 nada mais arbitrério que esta série de passagens. Supondo que s6 elas estivessem presentes na origem da proibicho do incesto te- Tiam autorizado muitas outras solugdes, algumas das quais pelo menos deveriam ter sido realizadas pelo simples jogo das probabilidades. Por exemplo, os interditos que atingem as mulheres durante 0 perfodo de suas Tegras fornecem uma resposta muito satisfatéria ao problema, é muitas sociedades poderiam ter se contentado com ela. Por conseguinte, 0 equivoco é mais grave do que parece. Nio se refere somente, nem prineipalmente, ao valor dos fatos invocados mas B concepgio que se dove fazer da propria prolbigéo. McLennan, Lubbock, Spencer, Durkheim consideram a proibigo do incesto uma sobrevivéncia de um passado inteiramente heterogéneo relativamente as condigées ‘atuais da vida social. Assim sendo, encontram-se eolocados diante de um dilema: ou este caréter de sobrovivéncia esgota a totalidade da institui- géo, e como compreender ent&o a universalidade e a vilalidade de uma Tegra da qual s6 se poderiam exumer aqui e ali vestigios informes; ou a Proibigao do incesto corresponde, na sociedade moderna, a fungdes no- vas € diferentes. Mas neste caso ¢ preciso reconhecer que a explicagio historica nfo esgota o problema. Em seguida, e sobretudo, levanta-se & questéo do saber se a origem da institulgio no se encontra nessas fungdes sempre atuais e verificaveis pela experiéncia, mais do que em um esquema histérico vago e hipotético, O problema da proibigio do incesto no consiste tanto em procurar que configuragées histricas, di: ferentes segundo os grupos, explicam as instit que acreditasse esgotar, pela histéria do vocabuldrio, 0 conjunto das leis fonéticas ou morfolégicas que presidem 0 desenvolvimento da lingua. A decepcionante anélise a que acabamos de nos entregar explica a0 menos por que a sociologia contemporanea preferiu muitas vezes con: fessar sua impoténeia em vez de encarnicarse numa tarefa em que tantos malogros parecem ter sucessivamente fechado as saidas. Em vez de admi- tir que seus métodos so inadequados se néo permitem atacar um pro- blema de tal importincia, e em vez de empreender a revisio e 0 rea- justamento de seus prinefpios, proclama que a proibigio do incesto acha- se fora de seu dominio. Assim é que, em seu Tratado de Sociologia Pri- mitiva, a que se deve a renovagio de tantos problemas, Robert Lowie eonclui, a propésito da questéo que nos acupa: “Nao compete ao etné- grafo, mas ao biologista e a0 psicdlogo, explicar por que também 0 homem. sente’profundamente 0 horror do incesto. O observador de uma socie- dade contentase com 0 fato do temor do incesto limitar 0 niimero das 61 uniées biologicamente possiveis”."" Outro especialista escreve a respeito do mesmo assunto: “Talvez soja impossivel explicar um costume unt versal e descobrirlhe @ origem. Tudo quanto podemos fazer é estabele- cer um sistema de correlagdes com fatos de outro tipo”"', 0 que coincide com a rentincia de Lowie. Mas a proibigio do incesto ‘representaria 0 tinico caso em que se exigiria das cléncias naturais que explicassem a existéncia de uma regra sancionada pela autoridade dos homens. % verdade que, pelo caréter de universalidade, a proibigio do in- cesto toca a natureza, isto é, a biologia ov a psicologia, ou ainda uma © outra, mas nio 6 menos certo que, enquanto regra, constitui um fe nOmeno social e pertence ao universo das regras, isto 6, da cultura, e Por conseguinte & sociologia que tem por objeto o estudo da cultura. Lowie aprenden tio bem este aspecto que 0 Apéndice ao Tratado retor- na & declaracéo citada no parégrafo anterior: “Nao creio, contudo, como fazia outrora, que o incesto repugne instintivamente a0 homem... De- vemos... considerar a averséo pelo incesto como uma adaptagio cul tural antiga”."" Do malogro praticamente geral das teorias n&o se pode estar autorizado @ tirar uma conclusto diferente. Muito ao contrério, a andlise das causas desse fracasso deve permitir 0 reajustamento dos prin- cipios e dos métodos que unicamente podem fundar uma etnologia vié- vel. Com efeito, como se poderia pretender analisar e interpretar regras se diante da Regra por exceléncia, a unica universal ¢ que assegura o dominio da cultura sobre e natureza, a etnologia devia confessarse impotente? Mostramos que os antigos tedricos que se dedicaram ao problema da proibigao do incesto colocaramse em um dos trés pontos de vista seguintes: alguns invocaram o duplo caréter, natural e cultural, da re- gra, mas se limitaram a estabelecer entre um e outro uma ‘conexdo extrinseca, constitufda por uma atitude racional do pensamento. Outros, ou quiseram explicar a proibigéo do incesto, exclusivamente ou de ma. neira predominante, por causas naturais, ou entao viram nela, exclusi- vamente ou de maneira predominante, um fendmeno de cultura. Veri- ficamos que cada uma dessas trés perspectivas condus a impossibilidacies ou a contradigées. Por conseguinte, s6 resta aberto um is 9 que fara da_anélise estética_& sintese_dinamica. Constitui o passo fundamental gracas ao qual, pelo qual, mas sobretudo | no qual se realiza a passagem da naturera & cultura. Em certo sentido pertence & natureza, porque é uma condi¢&o geral da cultura, e por con- seguinte nio devemos nos espantar em véla conservar da natureza sou caréter formal, isto é, a universalidade. Mas em outro sentido também 44 6 a cultura, agindo e impondo sua regra no interior de fendmenos 1 ue néio dependem primeiramente dela. Fomos levados @ colocar o pro- Dlema do incesto @ propésito da relago entré a existéncia biolégica e Dee ae are ents ae SPL een pe tra hee tt Seal msn, sop Bun volcan siey: Tee Tet = ai nt 9 wea 62 (eer a existéncla social do homem, e logo verificamos que a proibigio nio ‘depende exatamente nem de. uma nem de outre. Propomonos neste tra- patho fornecer a. solugo.dessa anomalia, mostrando que a proibigéo do incesto constitul justamente o vinculo que as une uma a outra. Mas esta unific._nfio 6 nem estética nem arbitréria, e desde que se estabelece a situagio total aparece completamente modificada. Com efei- to, € menos uma uniio do que uma transformacdo ou passagem. Antes dela a cultura ainda nao esté dada. Com ela a natureza deixa de oxistir, no homem, como um réino soberano. A proibicéo do incesto 6 0 processo pelo qual a natureza se ultrapassa a sl mesma, Acende a faisca sob a agio da qual formase uma estrutura de novo tipo, mais complexa, “¢ se superpée, integrandoas, as estruturas mais simples da vida psiquica, assim como estas se superpdem, integrandoas, as estruturas, mais sim. ples que elas préprias, da vida animal, Realiza, e constitul por si mesma, © advento de uma nova ordem. CAPITULO XXIX Os Principios do Parentesco Assim, € sempre um sistema de troca que encontramos na origem das regras do casamento, mesmo daquelas cuja aparente singularidade parece poder justificarse somente por uma interpretagio simultaneamente espe- cial e arbitréria. Em todo este trabalho vimos a nogdo de troca complicar- se e diversificarse. Apareceu-nos constantemente em outras formas. Ora a troca apresentou-se como direta (6 0 caso do casamento com a prima dilateral), ora como indireta (e neste caso pode corresponder a duas f6r- mulas, continua © descontinua, referentes a duas rogras distintas de casa mento com a prima unilateral). Ora a troca funciona em um sistema global (6 0 carter, teoricamente comum, do casamento bilateral e do casamento matrilateral), ora provoca a formacdo de um mimero ilimi- tado de sistemas especiais e de ciclos estreitos, sem relagio entre si (e, nessa forma; ameaga, como risco permanente, os sistemas de metades, & ataca, como inevitavel fraqueza, os sistemas patrilaterais). Ora a troca aparece como uma operagio @ vista, ou a curto prazo (com a troca 6 explicita e, ora implicita (conforme vimos no exemplo uma operagio a Prazo mais dilatado (como nos casos em que os graus proibidos englo- ‘am os primos em primeiro grau e as vezes em segundo grau), ora, a troca das irmas e das filhas, e 0 casamento avuncular), ora, como do Pretenso casamento por compra). Ora a troca 6 fechada (quando 0 casamento deve satisfazer a uma regra especial de alianca entre classes matrimoniais ou de observaneia de graus preferenciais), ora é aberta (quando a regra da exogamia reduzse a um conjunto de estipulagdes negativas, deixando a escolha livre além dos graus proibidos). Ora é cau- cionada por uma espécie de hipoteca sobre categorias reservadas (classes ou graus), ora (como no caso da prolbigho do incesto simples, como é encontrada em nossa sociedade) repousa sobre uma garantia mais larga e de caréter financeiro, a saber, a liberdade tedrica de pretender qualquer mulher do grupo, mediante a rentincia a certas mulheres determinadas do circulo da familia, liberdade assegurada pela extensio a todos 0s ho mens de uma proibigéo semelhante & que afeta cada um deles em par- ticular. Mas, seja em forma direta ou indireta, seja em forma global ou especial, mediata ou postergada, explicita ou implicita, fechada ou aberta, concreta ou simbélica, é a troca, sempre a troca, que aparece como base fundamental e comum de todas as modalidades da instituigéo matrimo- nial. Se estas modalidades podem ser reunidas sob a designacéo geral de exogamia (porque, assim como vimos na primeira parte deste trabalho, a 519 ee endogamia néo se ope & exogamia, mas a supde), 6 com a condicéo de perceber, atrés da expressio superficlalmente negativa da regra da exo- gamia, a finalidade que tende a garantir, pela proibicio do casamento nos graus interditos, a circulagio total e continua desses bens do grupo por exceléncia que so as mulheres e suas filhas. (© valor funcional da exogamia, definida em sentido mais amplo, foi com efeito sendo determinado e afirmado nos capitulos precedentes. Este valor é @ principio negativo. A exogamia fornece 0 tinico meio de manter © grupo como grupo, de evitar o fracionamento ¢ a divisio indefinidos que seriam o resultado da prética dos casamentos consangtiineos. Caso houvesse 0 recurso a eles persistentemente, ou apenas de maneira dema- siado freaiiente, estes casamentos no tardariam em fazer 0 grupo social “explodir” em uma multidio de famflins, que formariam outros tantos sistemas fechados, ménadas sem porta nem janela, cuja proliferago © antagonismos néo poderiam ser impedidos por nenhuma harmonia pre- estabelecida. Este perigo mortal para o grupo, a regra da exogamia, apli- cada em suas formes mais simples, nfo basta intetramente para afastélo. Tal 6 0 caso da orgenizagio dualista, Com a organizacéo dualista 0 risco de ver uma familia bioldgica erigirse em sistema fechado fica sem duvida definitivamente eliminado, O grupo biologico néo pode mais estar 86, e 0 vinculo de alianca com uma familia diferente assegura o dominio do social sobre 0 biolégico, do cultural sobre o natural. Mas outro risco aparece imediatamente, o de ver duas familias, ou melhor, duas linha gens, isolarem’se do continuum social em forma de um sistema bipolar, de um par éntimamente unido por uma série de intercesamentos, bas. tandose a si mesmo indefinidamente. A regra da exogamia, que deter mina as modilidades de formagéo desses pares, conferelhes caréter de- finitivamente social e cultural, mas 0 social poderia nio ser dado senio para ser, logo em seguida, fragmentado. Este perigo é evitado pelas formas mais complexas de exogamia, como 0 principio da troca genera- Uizads, e também as subdivis6es das metades em secodes e subsecces, ‘onde grupos locais, cade vez mais numerosos, constituem sistemas inde finidamente mais complexos. Dé-se, portanto, com as mulheres 0 mesmo que com a moeda de troca, cujo nome freqlentemente elas recebem, & que, segundo a admirével expressio indigens, “figura o jogo de uma aguiha de coser os tetos, que, estando uma vez fora e outra ves dentro, leva e traz sempre 0 mesmo cip que fixa a palha”.' Mesmo na auséncia esses procedimentos, a organizacgo dualista, reduzida a si mesma, nio € impotente, Vimos como @ interveneo dos graus de parentesco preferi- ‘dos, mesmo no interior da metade — por exemplo, a predilecao pela ver- dadeira prima cruzada, e mesmo por um certo tipo de verdadeira prima cruzada, conforme acontece entre os Kariera —, fornece 0 meio de atenuar 98 riscos do funcionamento demasiado automético das classes. Diante da endogamia, tendéncia a impor um limite ao grupo e a criar discrimi nag6es no interior deste, a exogamia é um permanente esforco no sentido de maior coeséo, solidariedade mais eflcaz e articulacio mais flexivel. que, com efeito, a troca no vale somente o que valem as coisas crocadas. A troca, e por conseguinte a regra de exogamia que 2 exprime, tem por si mesma um valor social. Fornece 0 meio de lgar os homens 1.M, Leenhardt, Notes d'Ethnotopie néocuiédontenne, op. cit, p. 48 © Ot 520 entre sie do superpor aos tagos naturais do parentesco os lagos daf em diante artificiais, porque libertados do acaso dos encontros ou da pro miscutdade da existéncia familiar, da alianga governada pela regra. A este Tespeito 0 casamento serve de modelo a esta “conjugalidade” artificial € temporaria que se estabelece em certos colégios entre jovens do mesmo sexo, fato que Balzac observou profundamente, mostrando que nunca se superpde aos lagos de sangue, mas os substitul. “Coisa bizarra! Nunca, em meu tempo, conheei inmaos que fossem parceiros. Se 0 homem vive apenas pelos sentiments, talvez julgue empobrecer sua existéncia mistu rando uma afeigio nova a uma afeicio natural” Algumas teorias da exogamia, criticadas no inicio deste trabalho, en: contram neste novo plano um valor e uma significagéo. Se a exogamia © a proibicéio do incesto possuem, conforme sugerimos, valor funcional permanente ¢ coextensive a todos os grupos sociais, como as interpreta: ‘Goes que Ihe foram dadas pelos homens, por mais diferentes que possam Ser, néo possuiriam todas uma sombra de verdade? Assim, as teorias de McLennan, de Spencer e de Lubbock tém, pelo menos, um sentido simbé- ico. Lembramo-nos que, quanto ao primeiro, a exogamia teria encontrado origem em tribos que praticavam 0 infanticidio das filhas, sendo por conseguinte obrigadas a procurar fora esposas para seus filhos. De maneira andloga, Spencer sugeriu que a exogamia deve ter comecado entre tribos Buerreiras, que raptavam mulheres nos grupos viinhos. Lubbock apre- sentou a hipdtese da oposicéo primitiva entre duas formas de casa- mento, 0 casamento endogamico, no qual as esposas sao consideradas propriedade: comum dos homens do grupo e 0 casamento exogimico, que equipara-as mulheres capturadas a uma espécie de propriedade indl vidual do véncedor, dando assim nascimento 20 casamento individual moderno.. FE possivel discutir este detalhe concreto, mas a idéia funda: mental é justa, isto é, a exogamia tem um valor menos negativo do que positivo, afirma a existéncia social de outrem, @ 86 proibe 0 casamento endégamo para introduzir e prescrever 0 casamento com um grupo dife- rente da familia bioldgica, Certamente nfo é porque algum perigo bio. logico se ligue ao casamento consangitinco, mas porque do casamento exdgamo resulta um beneficio social Assim, pois, a exogamia deve ser reconhecida como um elemento im- portante — sem duivida como, de muito, 0 elemento mais importante — desse conjunto solene de manifestagdes que, continua ou periodicamente, asseguram a integragéo das unidades parciais no interior do grupo total, e exigem a colaboragdo dos grupos estrangeiros. Tais sio os banquetes, as festas, as ceriménias de diversas espécies que formam a trama da existéncia social. Mas a exogamia nfo é apenas uma manifestagdo incluida no meio de muitas outras, pois as festas e as ceriménias sio periddicas, ea maior parte delas correspondem a fungées limitadas. A lei da exoga- mia, a0 contrario, é onipresente, atua de maneira permanente e continua, €, ainda mais, refere-se a valores — as mulheres — que sio os valores por exceléncia, tanto do ponto de vista bioldgico quanto do ponto de vista social, e sem os quais a vida nfo é possivel, ou pelo menos fica 2,78 couple om op wn um, no cuz oie enmininnge chareinge a te ae 521 reduzida as plores formas de abjecho. Nio 6 portanto exagerado dizer que essa lei 6 0 arquétipo de todas as outras manifestagses com base na reciprocidade, que fornece a Tegra fundamental e imutével mantene dora da existéncia do grupo enquanto grupo. Entre 0s Maori, conforme nos relata Eldson Best, “as mocinhas de categoria aristoordtica, e também (os rapazinhos de mesma classe, eram casados com membros de tribos poderosas e importantes, pertencentes mesmo, talvez, a grupos intelra- mente estrangeiros, como meio de obter a assisténcis dessas tribos em cocasiéo de guerras. Vemos ai uma aplicagio deste provérbio dos antigos tempos: He taura taonga e motu, he taura tangata e kore e motu (um. vinculo estabelecido por presentes pode ser quebrado, mas nfo um vinculo humano). Dois grupos podem unirse mediante relagdes amistosas e trocar presentes, embora disputem e combatam entre si mais tarde, mas 0 in- tercasamento liga-os de maneira permanente”. Mais adiante cita este outro provérbio: “He hono tangata e kore e motu, kapa he taura waka, e motu: uum Iago 6 industrutivel, mas 0 mesmo nio acontece com 0 cabo de embarcacSo, porque pode romperse”’ A filosofia contida nestas frases € tanto mais’significativa quanto os Maori niio eram de modo slgum in- sensiveis as vantagens do casamento no interior do grupo. Se as duas familias brigam ¢ se insultam, dizem, isto nfo seré sério, mas apenas Juma questo de familia, e a guerra estard evitada.* ‘preender o cardter dela. Todos 0s erros de interpretag&o da proibigéo do incesto derivam da tendéncia a ver no casamento um processo descontinuo, Que tira de si proprio, em cada caso individual, seus lnites e possiblidades Assim ¢ que se procura em ums qualidade intrinseca da mie, da filha ou da irm& as razdes que podem impedir o casamento com elas. Quem assim procede 6 entho infalivelmente srrastado a consideregSes biolégicas, porque somente de um ponto de vista bioldgico, e nao certa- mente de um ponto de vista social, que maternidade, « sororalldade Ou a filistidade — se assim 6 possivel dizer — ako propricdades. dos individuos considerados. Mas, do ponto de vista social, estas quelificagdes nao podem ser admitidas como definindo individuos {solados, e sim rela- gdes entre estes individuos e todos os outros. A maternidade ¢ uma relagio n&o somente de uma mulher com seus filhos, mas desta mulher com todos os outros membros do grupo, para os quais néo é mGe, mas irmé, ‘esposa, prima ou simplesmente estranha no que respeita ao parentesco, O'mesino se dd com todas as relagbes familiares, que se definem, simu taneamente, pelos individuos que englobam e também por aqueles que excluem, Isto 6 téo verdadeiro que os observadores muitas vezes se im- pressionaram com a impossibilidade que os indigenas demonstram de conceber uma relacéo neutra, ou mais exatamente a auséncia de relacio. ‘Temos o sentimento — alids ilusério — que a auséncia de parentesco 3. Elsdon Best, The whare Kohanga (the “Nest House") and its Lore. Dominlon seu “Bulgin, welling. va, © 36, ‘aor, Wellington “vas, You, p. 4. 522 determina, em nossa consciéncia, esse estado. Mas a suposicio de que possa ser assim para o pensamento primitive nfo resiste ao exame. Cada relagio familiar define um certo conjunto de direitos ¢ de deveres, © 2 auséneia de relacéo familiar ndo define nada. Define a hostilidade. “Se aiguém quiser viver entre os Nuere, deveré proceder & maneira deles. Deveré tratélos como uma espécie de parentes, © eles tratario também a pessoa como uma espécie de parente. Direitos, privilégios, obrigagées, tudo € determinado pelo parentesco. Um individuo qualquer deve ser ou tum parente real ou ficticio ou entio um estranho, com 0 qual nio se esté ligado por nenbuma obrigagio reciproca, e que s¢ trata como um inimigo virtual”." © grupo australiano definese’exatamente nos mesmos termos. “Quando umm estranho se aproxima de um acampamento que nunce vi sitou antes, nao penetra no acampamento mas conservase a uma ceria distancia. Depois de um momento, um Pequeno grupo de ancifies aborda-o ea primeira tarefa a que se entrogam consiste em descobrir quem é 0 estranho. A pergunta que mals freqiientemente Ihe ¢ feita 6 esta: Quem 6 teu macit (pai do pai)? A discussio prossegue sobre quest6es de genea- logia, até que todos 0s interessados se declaram satisfeitos quanto & de terminagao exata da relagio do estranho com cada um dos indigenas presentes no acampamento. Chegado a este ponto, o estranho pode ser Tecebido no acampamento, sendothe indicados cada homem e cada mu: Ther, com a relagio de parentesco correspondente entre ele proprio cada um... Se sou um indigena e encontro um outro indigena, este deve ser ou meusparente ou meu inimigo. Se ¢ meu inimigo, devo aproveltar primeira ocasiao para maté-lo, com recoio de que ele me mate. Tal era, antes da chegada do homem branco, a concepgio indigena dos deveres para com o DrOximo”.* Estes dois exemplos apenas confirmam, em seu Significativo paralelismo, uma situagio universal. “Durante um tempo con- siderdvel e em um grande numero de sociedades, os homens se aprox ‘maram em um curioso estado de espfrito, de temor e de hostilidade exage rados, ¢ de generosidade igualmente exagerada, mas que 56 sio insensatas ap nossos olhos. Em todas as sociedades que nos precederam imediata mente, e ainda nos ceream, e mesmo em numerosos costumes de nossa moralidade popular, nio hé meio termo. # preciso confiar inteiramente ou desconfiar inteiramente, depor suas armas e renunciar & magia de que se dispde, ow entéo dar tudo, da hospitalidade fugaz até as filhas ¢ ‘05 bens”.’ Ora, néo ha nesta atitude nenhuma barbérie, e mesmo, pro- priamente falando, nenhum arcaismo, mas somente a sistematizagio, le vads a0 extremo, dos caracteres inerentes as relagbes sociais. Uma relago nio pode ser isolada arbitrariamente de todas as outras, e também no é possivel que o individuo se mantenha aquém ou além do mundo das relagbes, © meio social nfio deve ser concebido como um quadro vazio no interior do qual os seres ¢ as coisas podem ser ligados, ou simplesmente justapostos. O meio 6 insepardvel das coisas que nele habitam. Em conjunto constituem um campo de gravitacio onde as cargas @ as distancias formam um conjunto coordenado, e onde cada elemento, 0 se modificar, provoca a alteragio do equilibrio total do sistema. For. 5. EE. Evans Pritchard, Te Nuer, Oxford 1940, p. 18. 4 A Radelitte Brown, Three ‘ribes of Western usiraic, op. cit, p, 181 1M Mauss, Eesol sur ie don, op. cit, p. IBS. 523 necemos uma ilustragio, ao menos parcial, deste principio quando anali- samos 0 casamento dos primos eruzados.’Mas vemos como seu campo de aplicagio deve ser ampliado a todas as regras de parentesco, antes de outra qualquer a esta regra universal e fundamental que 8 proibicio do incesto, porque € 0 caréter total de todo sistema de parentesco (e nfo hé socledade humana que nio o possua) que faz a mie, a irmi, a filha serem, desde toda a eternidade, se assim 6 possivel dizer, serem con- jugedas a elementos do sistema que nfo tém com elas nem a relagio de fitho, nem de irmio, nem de pai, porque estes individuos acham-se eles préprios conjugados a outras mulheres, ou outras classes de mulheres, ou elementos femininos definidos por uma relaglo de outra ordem. ¥ Porque 0 casamento é uma troca, porque o casamento € 0 arquétipo da troca, é que a andlise da troca pode ajudar a compreender esta solidarie- de que une 0 dom e 0 contradom, 0 casamento a0s outros casamentos. B, Seligman contesta, 6 verdade, que a mulher seja o instrumento \inleo ou predominante da allanga,* A autora invoca a instituicho da fra- temnidade de sangue, tal como se exprime pela relagSo de henamo entre os indigenss da Nova Guiné. A instauragdo da fraternidsde de sangue erta, com efeito, um lago de allanga entre os individuos, mas ao mesmo tempo, equiparando os interessados a irmios, acarreta a proibigio do casamento com a irm&. Nao nos passa pela cabeca pretender que a troca ‘ou o dom das mulheres seja nas sociedades primitivas 0 unico meio de estabelecer a.alianca. Mostramos em outro lugar como, entre alguns gru- Pos indigenas do Brasil, a comunidade podia exprimir-se a0 mesmo tempo pelo termo “cunhado” 'e pelo termo “irmio”. O cunhado ¢ 0 aliado, 0 colaborador. ‘o:amigo, £ 0 nome que se dé aos homens adultos do grupo ‘com 0 qual foi contraida a alianga. Quando se trata, no interior do mesmo grupo, do cunhado potencial, isto 6, do primo cruzado, é aquele com 0 qual, quando adolescente, praticamse brinquedos homossexuais, que dei- xario sempre um vestigio no comportamento mutuamente afetuoso dos mais velhos.’ Mas, ao mesmo tempo que utilizam a relagio de cunhado, 0s Nhambiquara sabem recorrer & nooo de fraternidade. “Selvagem, no 65 mais meu irmao!”, exclama o individuo durante ume briga com alguém que néio 6 parente, Os objetos encontrados em forma de série, por exem- plo, os barrotes da cabana, os tubos da flauta de Pan, etc, chamamse ‘irmos” uns dos outros, ou sio chamados “outros” em suas relagdes Tespectivas, detalhe terminol6gico que merece ser aproximado da obser- vago de Montaigne segundo a qual os indios brasileiros, encontrados por ele em Rouen, chamavam os homens “metades” uns dos outros, assim como nds dizemos “nossos semelhantes”."° Mas vemos também a dife- Tenga que h4 entre os dois tipos de vinculos, a qual seré definida de maneira suficlentemente clara se dissermos que um desses tipos verifica uma solidariedade mectnica (rmo), enquanto o outro invoca uma so- ldariedade organica (cunhado ou compadre). Os irmios sio préximos ‘uns dos outros, mas sfo tal por sua semelhanga, assim como as estacas ‘ou 0s tubos das flautas. Ao contrério, os cunhados sio soliddrios porque se completam e possuem, um para o outro, uma eficécia funcional, quer 48,3. Z,Seligman, The Incest Taboo as a Social Regulation. The Sociological Review, i 9 ta Vie et sociale des Indlens Nombikwara, op. cit. 16. Bssais, livro 1, cap. “SORT (Des "connibalos). 524 vo. porque desempenham o papel do outro sexo nos brinquedos erdticos da infancia, quer porque a alianca masculina com eles na idade adulta é sancionada pelo fornecimento a cada um daquilo que nio possul — uma esposa — gracas & remincia simulténea ao que um e outro detém, a saber, uma inn. A primeira forma de solidariedade no acrescenta nada, no une nada, Fundase num limite cultural, que se satisfez pela reproducao de um tipo de conexio, cujo modelo é fornecido pela natureza. A outra reallza uma integragiio do grupo em um novo plano. ‘Uma observagio de Linton sobre a fraternidade de sangue nas ilhas Marquesas ajuda a situar as duas instituigdes (fraternidade de sangue e intercasamento) em suas perspectivas reciprocas. Os irmfos de sangue sio chamados enoa. “Quando uma pessoa é enoa de um homem tem os mesmos direitos que este sobre suas propriedades ¢ esté com relacdo a seus parentes no mesmo grau de parentesco que ele”."" Mas ressalta cla- ramente do contexto que o sistema dos enoa apenas uma solucéo indi- vidual que desempenha 0 papel de substituto, quando a solugo verda- detra ¢ eficaz das relagdes entre 0s grupos, isto ¢, a solugdo coletiva e orgdnica dos intercasamentos, com a fuséo consecutiva das tribos, torna-se impossivel por motivo da situagio internacional. Apesar de estarem em. ‘curso vendetas, a institulgio dos enoa, questio puramente individual, pode assegurar um minimo de ligagio e de colaboragéo, quando 0 casarento, que 6 uma questo de grupo, achase impedido de operar. De maneira ainda mais direta, a teoria indigena confirma nossa. con- copcio. Os ‘informantes Arapeshe de Margaret Mead sentiram de inicio Gificuldade ‘em responder suas perguntas sobre as eventuais infragées as proibigées do casamento. Mas seu comentério, quando conseguiram for: mulé-lo, revela claramente a origem do malentendido. Para eles, a proi- igo no 6 concebida enquanto tal, isto 6, pelo aspecto negative. # apenas © reverso ou @ contrapartida de uma obrigacdo positiva, a tinica viva e presente na conseiéncia. Acontece que um homem coabita com sua irm&? A questéo 6 absurda. Néo, certamente néo, respondem eles. “N&o coabitamos com nossas irmas. Damos nossas irmas a outros homens © estes outros nos dio suas irmés”. A etndgrafa insiste. Mas se esta even- tualidade, por impossivel, se realizasse, que pensariam? Que diriam se um de nés dormisse com sua irm&? — Que pergunta! — Mas suponha que isto acontega... Com a continuago, e tendo o informante dificuldade em se colocar na situagio, que para ele ¢ quase inconcebivel, na qual deveria discutir com um companheiro culpado de incesto, obtémsse esta resposta ao didlogo imaginério; “Mas como! Quererias casar com tua irmA? © que hé contigo? Néo queres ter um cunhado? Nao compreendes que se te casares com a irma de outro homem e um outro homem se casar com tua irmé terds pelo menos dois cunhados, enquanto se te casares com tua prépria irma nfo terés nenhum? E com quem irds cagar? Com quem fards as plantagbes? Quem irés visitar?” " Sem dtivida, tudo isto é um pouco suspeito, porque ¢ provocado. Mas os aforismos indigenas recolhidos pela mesma pesquisadora, e que eitamos como epigrafe da primeira parte deste trabalho, nfo sio suspeitos, e i, Ralph, tinton, Marauesan, Culture, em A. Kardiner, The Indiottucl and ts society Nova Tongue 1886." Tao, oat i,Mead, Ser ind’ Femperoment im Three Primitive Societies, Nova Torque Pe 525, eat EEE Peo eee eee eee ee eee eee eee SSeS tee seu sentido é 0 mesmo. Outros testemunhos corroboram a mesma tese. Para os Chukchee, uma “mé familia” definese como uma familia isolada “sem irmio e sem primo”."* Por outro lado, a necessidade de provocar © comentario (cujo contevido em todo caso é espontineo), e a dificuldade de obtélo, revelam o malentendido inerente ao problema das proibig6es do casamento. Estas sO sho proibigdes em cardter secundério e derivado. Antes do serem uma proibigho que afeta ume certa categoria de pessoas slo uma prescricho que visa a outra categoria. Como a teoria indigena a este respeito é mais clarividente do que tantos comentérios contempo- rineos! Nada existe na irmé, na mée, nem na filha que as desqualifique enquanto tais. O incesto € socialmente absurdo antes de ser moralmente culpével. A exclamagio incrédula arrancada ao informante: Mas entao nao ‘queres ter cunhado? fornece a regra de ouro do estado da sociedade. No existe, portanto, solugio possivel para o problema do incesto no interior da familia biolégica, mesmo se supusermos esta ultima {6 situada em um contexto cultural que Ihe imp6e suas exigénciss espe- cificas. O contexto cultural nfio consiste em um conjunto de condigées abstratas, mas resulta de um fato muito simples, que o exprime por intefro, a saber, que a familia bioldgica nfo esta sozinha, mas deve re- correr’& alianga com outras famflias para se perpetuar. Sabe-se que Ma- linowski esforgouse por defender uma concepgéo diferente, segundo a qual a proibittio do incesto resultaria de uma contradicéo interna, no proprio seio da familia biolégica, entre sentimentos mutuamente incom ativels, por exemplo, as emog6es ligadas as relagGes sexuais e 0 amor pelos pais, ou “os sentimentos naturais que se travam entre irmios e irmis”."* Estes sentimentos, entretanto, sé se tornam incompativels por motivo do papel cultural que a famflia bioldgica é levada a desempenhar. © homem tem de ensinar a seus filhos, e esta vocagio social, exercendo-se naturalmente no meio do grupo familiar, estaria irremediavelmente com- Prometida se emog6es de outro tipo viessem perturbar a disciplina indis- Pensdvel & manutengéo de uma ordem estdvel entre as geragées. “O in- cesto equivaleria & confuséio das idades, & mistura das geragGes, & desor- ganizacio dos sentimentos e a uma inversio brutal de todos os papéis, no momento exato em que a familia representa um agente educativo de pri- meira importéneia, Nenhuma sociedade poderia existir em semelhantes condigbes”. % lastimavel, para esta tese, que nio exista praticamente nenhuma Sociedade primitiva que nfo the inflija uma contradicéo flagrante sobre cada ponto. A familia primitiva termina sua fungéo educativa mais cedo que a nossa, ¢ desde a puberdade — e multas vezes até mesmo antes — transfere para o grupo a carga dos adolescentes, cuja preparagio 6 en- ‘tregue a casas de solteiros ou circulos de iniciagéo. Os rituais de iniciagéo sancionam esta emancipagéo do Jovem ou da jovem da célula familiar, © sua definitiva incorporagdo ao grupo social. Para chegar a esta fina- lidade, estes rituais apelam exatamente para os processos cuja eventuali- aw. ‘The Chukchee, op. cit, B.S. cared gh; Mallngwitd, Preticio eH isn Hoghin, ‘Zaw and Order in Polynesia, Lon- 18'B Maiinowshd, Sex ond Repression in Sasage Society, Nova Torque 1921, p. 251. 526 dade sé é lembrada por Malinowski para denunciar os perigos mortais que acarreta, isto 6, desorganizacao afetiva e troca violenta dos papéis, troca esta que pode chegar até a pratica, na pessoa do iniciado, de usos muito pouco familiares por parentes préximos. Finalmente, sabe-se que Os diferentes tipos de sistemas classificatérios cuidam muito pouco de man- ter clara distincéo entre as idades e as geracdes. Nao é menos dificil, contudo, para uma crianga hopi do que seria para uma das nossas apren- der a chamar um velho “meu filho”, ou qualquer outra assimilagao do mesmo género.'' A situagao, pretensamente desastrosa, que Malinowski se esforca por pintar para justificar a proibigao do incesto nao é, em suma, sendo um quadro muito banal de qualquer sociedade, quando o consideramos de um outro ponto de vista diferente do seu proprio. Este egocentrismo ingénuo é tao desprovido de novidade e de ori- ginalidade que Durkheim tinha feito uma critica decisiva dele, muitos anos antes de Malinowski lhe ter dado uma tempordria recrudescéncia de vitalidade. As relagées incestuosas e os sentimentos familiares sO aparecem contradit6rios porque concebemos estes como excluindo irredutivelmente os outros. Mas se uma longa e antiga tradigao permitisse aos homens unirem-se a seus parentes préximos, nossa concepcao do casamento seria inteiramente diferente. A vida sexual nao se teria tornado o que é. Pos- suiria um caradter menos pessoal, daria menos lugar ao livre jogo da ima- ginacAo, aos sonhos, as espontaneidades do desejo. O sentimento sexual teria sido moderado e amortecido, mas por isso mesmo se aproximaria dos sentimentos domésticos, sem que houvesse dificuldade alguma em conciliar-se com estes. Terminaremos esta pardfrase por uma citagao: “Sem duvida, a questéo nao se levanta, uma vez que se sup6e o incesto proibido. Porque a ordem conjugal, sendo desde ent&éo excéntrica 4 ordem doméstica, devia necessariamente desenvolver-se em um sentido diver- gente. Mas nao se pode, evidentemente, explicar esta proibigao por idéias yt que manifestamente derivam dela’. Nao sera preciso ir ainda mais longe? Numerosas sociedades praticam, por ocasiao do casamento, a confusao das geracoes, a mistura das idades, a inversio dos papéis e a identificagéo de relagdes aos nossos olhos in- compativeis. E como estes usos lhes parecem em perfeita harmonia com a proibicio do incesto concebida as vezes de maneira muito rigorosa, é possivel concluir, por um lado, que nenhuma dessas praticas exclui a vida da familia, e de outro lado, que a proibicao deve se definir por caracteres diferentes, que Ihe sejam comuns através de suas multiplas modalidades. Entre os Chukchee, por exemplo, “a idade das mulheres trocadas em casamento pouco é levada em consideracao. Assim, no rio Oloi, um homem chamado “QImIqai casou seu filho, de cinco anos de idade, com uma moca de vinte anos. Em troca deu sua filha, que tinha doze anos, e esta casou-se com um jovem de mais de vinte anos. A mu- lher do menino desempenhava o papel de ama, dava-lhe de comer e punha-o na cama...” O autor cita também o caso de uma mulher casada com uma criancinha de dois anos, e que, tendo tido um filho de um “companheiro de casamento”, isto é, de um amante oficial e temporario, dividia seus cuidados entre as duas criancinhas. “Quando dava de mamar a seu pbebé, 16. Leo W. Simmons, Sun Chief, op. cit., p. 69. 17. E. Durkheim, La Prohibition de Vinceste, op. cit., Pp. 63. D2 dava também de mamar a seu marido-bebé... e neste caso, 0 pequeno marido tomava com satisfagio 0 selo de sua mulher. Quando pedi que me explicassem 0 comportamento da mulher, o Chukchee respondeu: Quem. sabe? Talvez seja um meio mégico para assegurar 0 futuro amor de seu Jovem marido”. # certo, em todo caso, que estas uniées na aparéncia inconcebiveis sio compativeis com um folelore de exaltado romantismo, cheio de paixdes stibitas, de Principes Encantados e de Belas Adormecidas no Bosque, de belezas ciumentas e de amores triunfantes.* Conhecem-se fatos analogos nd América do Sul.” Por inusitados que possam parecer, estes exemplos no sio tinicos, € 0 incesto & maneira egipcia constitui provavelmente apenas o limite deles. Encontramos casos andlogos entre 0s Arapeshe da Nova Guiné, onde os noivados infantis so freqtientes, crescendo as duas criangas como irmio ¢ irmé. Mas desta ver é em favor do marido que se estabelece a dif renga de idade. “Um rapaz Arapesh educa sua mulher. De acordo com © hébito do pai funda seu direito néo sobre o fato de ter dado nasci- mento ao filho, mas sobre o fato de havélo alimentado. Igualmente, 0 marido Arapesh exige de sua mulher atengSes de devotamento, nio ‘in- Yocando © preco que pagou por ela, ou seu direito de proprietério, mas em virtude da alimentacéo que the forneceu durante seu crescimento ¢ ‘que se tornou 0 osso € a carne de seu corpo”. Ainda aqui, este tipo de re- Jagoes, na aparéncia anormais, fornece o modelo psicoldgico do casamento regular. “Toda organizacio social fundase na analogia estabelecida entre ‘os filhos e as esposas, que so considerados como um grupo mais jovem, menos responsdvel do que a sociedade masculina, e que por conseguinte & necessério-dirigir, Por definigio, as mulheres entram nesta categoria infantil... com relago a todos os homens, mais velhos do que elas, do ld onde deve casar-se”.“" De maneira semethante, entre os Tapirapé do Brasil central, os fend- ‘menos de depopulagao generalizaram um sistema de casamento’com me ninas, © “marido” vive na casa de seus sogros e a mie da “mulher” asse- gura os trabalhos femininos,“" © marido Mohave carrega nos ombros a menina com quem se casou, ocupase com os cuidados doméstices e, de maneira mals geral, atua simultaneamente como marido e in loco parents. Os Mohave comentam a situagio com cinismo, e perguntam, as veves mesmo na presenca do interessado, se 0 homem no teria se casado com sua propria filha. “Quem é que carregas nas tuas costas? perguntam. Seré tua filha? Quando os casamentos deste tipo se desfazem, no é Taro que ‘© marido tenha um ataque de loucura’,”* Nés préprio assistimos, entre os Tupi Kawahibe do Alto Madeira, no Brasil central, as mipciss ‘de um homem de cerca de trinta anos com uma crianeinha de dois anos, que a mae carregava ainda nos bragos. Nada mais comovente do que a emogdo com a qual o futuro marido seguia os ig eng, the Can, oo, re, 19. PA, Means, Ancient Civilizations of ihe ,Andes, Nova, lorque, 183), p. 3 Big Se ERT rte Ge ge ei alt tn 3 a oi i ‘ed by tie Rati Ft ‘Transactions 0)" the New York Academy" of Sciences, “2% G, Devereux, The Social and Cultural Implications of Incest among the Mohave wn ASE SLA SNS a 528 brinquedos pueris de sua pequens desposeda. Nio se cansava de admiré-la @ de fazer os espectadores partilharem de seus sentiments. Durante anos seu pensamento seria ocupado pela perspectiva de montar um lar. Sentir- seja reconfortado, pela certeza do crescer a seu lado em forga e em beleza, de escapar um dia & maldicéo do celibato. Desde jé, sua nascente ternura exprimia.se em inocentes presentes. Este amor, dilacerado, se- gundo nossos critérios, entre trés ordens irredutiveis, a paterna, a fraterna € a marital, em um contexto apropriado nio oferecia qualquer elemento de perturbagio, e nada podia levar a adivinhar nele ume tara, que pusesse em petigo a future felicidade do casal, e menos ainda a ordem social intetra. Contra Malinowski, e contra seus discfpulos que procuraram manter em vio uma posigio obsoleta,* devemos dar razio aos autores que, como Fortune e Williams, continuando 0 modo de pensar de Tylor, encontraram fa origem da proibigéo do incesto em suas implicagées positivas."" Con- forme diz com razio um observador, “dase com 0 casal incestuoso 0 ‘mesmo que com a familia avara: Isola-se eutomaticamente do jogo que consiste em dar e em receber, ao qual se reduz toda a vida da tribo. Nesse corpo coletivo, tornam-se um membro morto ou paralisado”. Um casamento néo poderia, pots, ser isolado de todos os outros, passa: dos ou futuros, que ocorreram, ou irdo realizarse, no grupo. Todo casa- mento é 0 término de um movimento, 0 qual, uma vex chegado a esse onto, deve inverterse para se desenrolar em novo sentido. Se 0 movi mento parar todo o sistema de reciprocidade ficard abalado. Ao mesmo tempo qué 0 casamento € a condigdo para que se realize a reciprocidade, a cada lance poe, por conseguinte, em risco a existéncia da reciprocidade, pois que Aconteceria se uma mulher fosse recebida sem que uma filha Ou uma irm fosse restituida? H preciso correr este risco, no entanto, se quisermos que a sociedade continue. Para salvaguardar a perpetuidade’ so: lal da alianga € preciso comprometer-se com as fatalidades da filiagao, isto 6, em suma, da infraestrutura bloldgica do homem. Mas o reconheci mento social do casamento (isto , a transformagio do encontro sexual com base na promiscuidade em contrato, em cerimOnia ou em sacramento) 6 sempre uma aventura angustiante. Compreende-se que a sociedade tenha procurado defender-se contra os riscos que acarreta pela imposi¢io con- tinua e quase maniaca de sua marca, Os Hehé, diz Gordon Brown, pra- ticam o casamento dos primos cruzados, mas nao sem hesitacéo, porque se permite manter 0 vinculo clanico, ao mesmo tempo faz correr 0 risco de destrui-lo em caso de mau casamento. Os informantes indicam que, “por causa disso, multas pessoas se recusam a ele”. Esta atitude ambivalente dos Heng, com relagio a uma forma especial do casamento, é a atitude social por exceléncia diante do easamento om todas as suas formas. Ao reconhecer e sancionar a unllio dos sexos e a reprodugéo @ sociedade impoe-se & ordem natural mas ao mesmo tempo da & ordem natural sua possibilidade, sendo licito dizer, a respeito de todas as culturas do mundo, ‘© que um observador relatou'a propdsito de uma delas. “A mais fu 28, BZ. Seligman, ‘The tnoest Bagrioc: its Role in Social Organisation. British Journal. of Payehotogy, Wo. 22,1991 1882, RE. Fortune, “artigo, Incest, na Encyclopaedia o/ the Social Sciences, op. ci ¥ B. Williams, Papuans of the Trans-Fiy, Oxford. 1046, p- i68; E. B. tyior, On Method of Vnvestvatina he Development of Institutions". Op. ct svereux, Op. elt, p 38: G. Gordon Brown, liéhe “Cross-cousin Marriege, loc. cit. 529 damental das nogSes religiosas é a que se refere & diferenca reinante entre os sexos. Cada qual é perfeltamente normal & sua maneira, mas 0 contato deles mostra-se carregado de perigo para ambos”." Todo casamento € pols um encontro dramético entre a natureza e a eultura, @ alianga e 0 parentesco. “Quem deu a noiva?”, canta o hino hindu do casamento. “A quem pois a deu? # 0 amor que a deu, 6 ao amor que fol dado. O amor deu, o amor recebeu. O amor encheu o oceano. Com amor aceito-a. Amor que esta mulher te pertenca”.”" Assim, o casamento é uma arbitragem entre dois amores, o amor dos pais e 0 amor conjugal. Mas todos dois séio amor, e no momento do casamento, se considerarmos este instante isolado de todos os outros, ambos se encontram e se misturam, “o amor encheu 0 oceano”. Sem dtivida, sé se encontram para se substi- tuirem um ao outro e realizam uma espécie de contradanca. Mas 0 que, para todo 0 pensamento social, faz do casamento um mistério sagrado, € que, para se cruzar, 6 preciso, a0 menos por um instante, que se junter. Nesse momento, todo casamento tangencia o incesto, ou melhor, 6 incesto, pelo menos incesto social, se é verdade que o incesto, entendido em sen- tido mais largo possivel, consiste em obter por si mesmo e para si mesmo, em lugar de obter por outrem ou para outrem. ‘Mas, uma vez que é preciso ceder & natureza para que a espécie se perpetue, e com ela a allanca social, é preciso ao menos que a contradi- gamos, ao mesmo tempo em que cedemos, e que o gesto realizado em direcio a ela seja sempre acompanhado de um gesto que a restringe. Este gcordo entre a natureza e a cultura estabelece-se de duas maneiras, pois dois caso$ se apresentam, um no qual a cultura deve ser introduzida porque a sociédade € todo-poderosa, o outro em que a natureza deve ser exclulda porque desta vez é ela que governa. Diante da fillacso, pela afir- magio do principio unilinear, diante da alianga, pela instauragio dos graus proibidos. ‘As multiplas regras que protbem ou prescrevem certo tipo de conju: ges, e proibigio do incesto, que as resume, esclarecemse a partir do momento em que se estabelece ser necessdrio que a sociedade exista. Mas a sociedade teria podido nio existir. No teremos, portanto, julgado re- solver um problema seno para langar todo o peso dele sobre outro problema, cuja soluc&o parece ainda mais hipotética do que aquela a que nos dedicamos exclusivamente? Na verdade, observernos, nao estamos dian. te de dois problemas, mas de um s6. Se a interpretagio que propusemos 6 exata, as regras do parentesco e do casamento no se tornaram neces: sérias pelo estado da sociedade. Sio o préprio estado da sociedade, remo- delando as relagdes biolégicas e os sentimentos naturais, impondo-Ihes tomar posigao em estruturas que as implicam ao mesmo tempo que 2 Beta tt m,n, 2 2 Sa et hal So, ge Pinto tii Sel ll Me Bad ae Se Sgt ole eam Rewentie Meat” ar Sian eh ee ee ee ‘Fede onto obrigados ‘nse consagrarem ‘fades, e seria ieolrem se os cols, Quand See, SS ee Pe Se Petite ae GA Sieh crea oe Co ieee aie Se ee Ee BAe as 530 outras ¢ obrigando-as a sobrepujarem seus primeiros caracteres. O estado de natureza s6 conhece a indivisio e a apropriagto além da mistura dessas 20 acaso. Mas, conforme jd Proudhon tinha observado a propésito de outro problema, no 6 possivel superar esses nocSes senfio colocandose em um novo piano. “A propriedade é a nfo-reciprocidade e a nio-reci- procidade 6 0 roubo... Mas @ comunidade ¢ também a nio-reciprocidade, poraue é @ negacio dos termos adversos. E ainda 0 roubo, Entre a pro- priedade e a comunidade eu construiria um mundo”."" Ora, que é esse mundo senfo aquele do qual a vida social procura inteframente construir © reconstruir sem cessar uma imagem aproximada e nunca integraimente perfeita, 0 mundo da reciprocidade, que.ag lels do parentesco © do casa- mento, por sta prdpria conta, fazem Isboriosamente brotar de relagdes ue, sem isso, estariam condenadas a permanecer ou estéreis ou abusivas? ‘Mas © progresso da etnologia contemporanea seria insignificante se tivéssemos de nos contentar com um ato de fé — sem duivida fecundo ©, em seu tempo, legitimo no processo dialttico que deve inevitavelmente fazer nascer 0 mundo da reciprocidade, como a sintese de dois caracteres contraditérios inerentes & ordem natural. O estudo experimental dos fatos pode {r ao encontro do pressentimento dos fildsofos, nao somente para comprovar que as coisas passaram-se realmente assim, mas para descre- ver, ou comecar a descrever, como se passaram. A este respeito a obra de Freud oferece um exemplo e uma ligho. A partir do momento em que se pretendia explicar certos tragos atuais do espftito hathano por um acontecimento ao mesmo tempo historicamente certo e ldgicamente necessério, era permitido, e mesmo prescrito, tentar reconstituir. escrupulpsamente a seqtiéneia dos’ fatos. O malogro de Totem € Tabu, longe de ser inerente ao propdsito do autor, prendese mais & hesitago que o impediu de se prevalecer até o fim’ das conseqlléncias implicadas nas suas premissas. Era preciso tor visto que fendmenos que se referem & estrutura mais fundamental do espirito humano néo feriam podido aparecer de uma ver por todas. Repetem-se inteiramente no in- terior de cada consciéncia e a explicagio de que dependem pertence a uma ordem que transcende ao mesmo tempo as sucessies historias ¢ as correlagdes do presente. A ontogénese nfo reproduz a filogénese, ou 0 contrdrio. As duas hipdteses conduzem &s mesmas contradigSes. SO se pode falar de explicagao a partir do momento em que o passado da espécie torna a representar-se em cada instante no drama indefinidamente multiplicedo de cada pensamento individual, porque sem diivida ele pro- prio nao € senfio a projecio retrospectiva de uma passagem que se pro- duriu porque se produz continuamente. Do ponto de vista da obra de Freud esta timides conduz a um estranho e duplo paradoxo. Freud explica com éxito no o inicio da civilizagio mas seu presente, ‘Tendo partido & procura da origem de uma protbigio, consegue explicar nao por que 0 incesto é conscientemente condenado, mas como acontece que seja inconselentemente desejado. J4 fot dito e repe- tido 0 que torna Totem ¢ Tabu inadmissivel, como interpretagéo da prot icdo do incesto e de suas origens, a saber, a gratuidade da hipdtese da horda dos machos e do assassinio Primitivo, cireulo vicioso que faz nas- cor 0 estado social de atividades que o suptem. Mas, como todos os 28. P.J. Proudhon, Solution du Probleme social. Guores, vol. 131 531 mitos, 0 que é apresentado, com téo grande forca dramética, por Totem e Tabu admite duas interpretagGes. O desejo da mae ou da irmé, o assas sinio do pai e 0 arrependimento dos filhos nao correspondem, sem dt- vida, a qualquer fato, ou conjunto de fatos, que ocupam na histéria um lugar definido, Mas traduzem, talvez, em forma simbdlica, um sonho ao mesmo tempo duradouro e antigo.” O prestigio desse sonho, seu poder de modelar, sem que se saiba, os pensamentos dos homens, provém jus tamente do’ fato dos atos por ele evocados nunca terem sido cometidos, porque a cultura sempre e em toda parte se opds a isso. As satistagies simbélicas nas quais, segundo Freud, se expande o sentimento do incesto néo constituem, portanto, a comemoracao de um acontecimento. Sao outra coisa e, mais do que isso, so a expressio permanente do desejo de de sordem, ou antes, de contraordem. As festas representam a vida social ‘as avessas, nic porque tenha sido tal outrora, mas porque nunca foi nem poderia jamais ser, de outro modo. Os caracteres do passado s6 tém valor explicativo na medida em que coincidem com os do futuro e do presente. Freud sugeriu 5 vezes que alguns fenémenos bisicos encontravam) explicagio na estrutura permanente do espirito humano, mais do que em sua historia, Assim, 0 estado de angustia resultaria ‘da contradigio entre as exigéncias da ‘situngio e os meios de que 0 individuo dispée para enfrenté-la, num caso particular, pela impoténcia do recém-nascido diante do afluxo das excitagdes exteriores. A ansiedade apareceria por- tanto antes do nascimento do superego. “N&o € inconcebivel que fatores de ordem quantitativa, por exemplo, uma dose excessiva de excitacio, € ruptura das. barreiras que se opdem a ela, sejam a causa imediata da represso primitiva”."" Com efeito, a susceptibilidade do superego néo guarda de modo algum relago com o grau de severidade que sofreu. A inibigGo daria prova, assim, de uma origem interna © nao externa.” Estas concepeées parecem-nos ser as tinicas capazes de responder a uma questio que © estudo psieanalitico das criancas levanta de maneira muito per- turbadora, Nas criancas jovens o “sentimento do pecado” parece mais exato e melhor formado do que deveria resultar da hist6ria individual de cada caso. A coisa se oxplicaria se, conforme Freud supés, as inibig6es, entendidas em sentido mais ampo (repugnancia, vergonha, exigéncias ‘mo- rais e esiéticas), pudessem ser “organicamente determinadas, e ocasio- nalmente produzidas, sem 0 concurso da educacéo”. Haveria duas formas de sublimacéo, uma derivada da educagio e puramente cultural, outra, “forma inferior”, atuando segundo uma reacio autonoma, e cujo apare- cimento se colocaria no inicio do periodo de laténcia. Poderia mesmo acon- tecer que nesses casos, excepeionalmente favoravels, continuasse durante “toda a existencia, ” Estas auddclas relativamente & tese de Totem ¢ Tabu ¢ as hesitagoes que as acompanham sao reveladoras. Mostram uma ciéncia social como a psicanélise — porque é uma delas — ainda flutuante entre a tradigio da sociologia histérica que procura, conforme fez Rivers, em um passado longinguo a razdo de ser de uma situagéo atual, e uma atitude mais BAR peer Totem ant radoo, Retrospect. op. ct BLS Freud,” Heinmung,” Sympton’ und Angst, Viena 106, p. 31 e 16, &2 Freud Civilization Gnd ‘ile Discontents, Londres 1925, "p. 116 33. Froud, Infanitie Sezuaity, em Three Contriduitons fo the Theory of Sex (The Basie’ Writings of Sigmund Prova, Nova Torque 1088, p. 583500. 532 Re moderna ¢ cientificamente mais sdlida, que espera da anilise do pre sente o conhecimento de seu futuro e de seu passado. # realmente esse, alids, 0 ponto de vista do prético. Mas nunca 6 demais acentuar que, a0 aprofundar a estrutura dos conflitos de que o doente é palco, para refazer a historia dele e chegar assim & situacio inicial em torno da qual todos 05 desenvolvimentos ulteriores se organizaram, 0 pratico segue um cami. niho contrério ao da teoria, tal como € apresentada em Totem e Tabu. Em um caso, remontase da experiéncia aos mitos, e dos mitos a estru- tura, Em outro, inventase um mito para explicar os fatos. Em resumo, procede-se do mesmo modo que 0 doente, em lugar de interpretdto. Apesar desses prossentimentos, entre todas as ciéncias sociais sé uma chegou ao ponto em que a explic¢ao sincrénica e a explicagéo diacrénica se retinem, porque a primeira permite reconstituir a génese dos sistemas, fazendo a sintese deles, enquanto a segunda evidencia sua légica interna e apreende a evolucio que os dirige para um alvo. Esta ciéncia social é fa lnglifstica concebida como estudo fonol6gico.”* Ora, quando conside- ramos seus métodos, ¢ mais ainda seu objeto, podemos perguntar se a sociologia da familia, tal como foi concebida neste trabalho, referese a uma realidade tao diferente quanto se poderia crer, e se, por conseguinte, no dispGe das mesmas possibilidades. As regras do parentesco e do casamento apareceram a nds esgotando na diversidade das modalidades historias e geograficas todos os méto- dos possiveis pera garantir a integragio das familias bioldgicas no grupo social. Constatamos também que certus regras, na aparéncia complicadas © arbitririas, podiam ser reduzidas a um pequeno ntimero. SO ha trés estruturas elementares de parentesco possivels. Estas trés estruturas cons: troem-se por meio de duas formas de troca, e estas duas formas de troca dopendem de um tinico carter diferencial, a saber, 0 cardter harménico ou desarménico do sistema considerado. Todo o aparelho imponente das preserig6es e profbig6es poderia ser, no limite, reconstruido @ priori em fungiio de uma pergunta, e de uma's6: qual 6, na sociedade em questio, a relagéo entre a regra de residéncia e a regra de filiagio? Porque todo regime desarmdnico conduz & troca restrita, assim como todo regime harménico anuncia a troca generalizada, A marcha de nossa andlise é portanto vizinha da seguida pelo lin- guista fondlogo. Porém ha mais. Se a probicho do incesto e a exogamia ‘tém uma fungéo essencialmente positiva, se sua razio de ser consiste em estabelecer, entre os homens, um virculo sem o qual néo poderiam elevar- se acima da organizacio bioldgica para atingir a organizac&o social, entio € preciso reconhecer que lingilistas e sociélogos nio somente aplicam os mesmos métodos mas se dedicam ao estudo do mesmo objeto. Deste ponto de vista, com efeito, “exogamia e linguagem tém a mesma fungio fundamental, isto 6, a comunicagio com 0 outro e a integragio do grupo”. E possivel lamentar que depois desta profunda observacdo seu autor mude repentinamente e equipare a proibigao do incesto 2 outros tabus, como a interdigdo das relages sexuais com um rapaz nfo-circunciso entre os Wachagga ou a inversio da regra hipergamica na India.” Porque @ 34, N. Trubetzkoy, La Phonologie actuelle, em Psychologie du tangage, Paris 1903; Grandstige. der’ Phorologie, Praga, 190 8. Wet. Thomas, Primitive “Benapior, Nova TorqueLondres 1937, p. 1825. 533 proibigéio do incesto néo € uma protbicko igual as outras, mas a proibi edo, na forma mais geral, aquela talvez a que todas as outras se reduzem ="comegando pelas que acabam de ser citadas — como casos particulares. A protbi¢éo do incesto é universal, como a linguagem. Se ¢ verdade que temos maiores informagées sobre a natureza da segunda do que sobre a origem da primeira, é somente seguindo a comparagio até 0 ponto final que pederemos esperar descobrir 0 sentido da instituicao. A civilizagio modema chegou a um tal dominio do instrumento lin- Bilistico © dos meios de comunicagéo, e faz deles um uso tho diversifi- cado, que estamos por assim dizer imunizados & linguagem, ou pelo menos Julgamos estar. Nao vemos mais na lingua seno um intermedidrio inerte ® privado por si mesmo de eficécia, o suporte passivo de idéias As quais expressio néo confere nenhum cardter suplementar. Para a maioria dos homens a linguagem apresenta sem impor. Mas a psicologia moderna refutou esta concepcéo simplista. “A linguagem no entra em um mundo de percepgdes objetivas acabadas, para associar somente a objetos indi- viduais dados e claramente delimitados uns com relagao aos outros, “no- mes”, que seriam sinais puramente exteriores ¢ arbitrérios. Mas a lingua- gem 6 um mediador na formagio dos objetos, em certo sentido é 0 de nominador por exceléncia”."* Esta concepgio mais exata do {ato lingtiis tico nfo constitui uma descoberta ou novidade, Apenas substitul as pers: pectivas estreitas do homem branco, adulto e civilizado, no émbito de uma experiéncia humana mais vaste’ e por conseguinte mais valida, na ‘ual a “mania de denominagéo” da crianga e 0 estudo da profunda revo: lugio produzida, nos individuos retardados, pela stibita descoberta da fungio da lirjguagem corroboram as observagées feitas no terreno. Dai resulta que concepcdo da palavra como verbo, como poder e acéo, Tepresenta realmente um trago universal do pensamento humano. Alguns fatos tomados da psicologia patolégion tendem Jé a sugerir que as relagdes entre os sexos podem ser concebidas como uma das modalidades de uma grande “fungio de comunicagéo”, que compreende também a linguagem. Um desses fatos 6, por exemplo, a conversa ruidosa, ‘que parece ter para certos obsedados a mesma significacdo que a atividade sexual sem freio. No falam senio em voz baixa e num murmurio, como se @ vor humana fosse inconscientemente interpretada como uma espécie de substituto da poténcia sexual. Mas, mesmo se néo estivermos dis- postos a acolher e utilizar estes fatos sendo com restrighes (e s6 recor- Femos aqui & psicologia porque permite, assim como a psicologia infantil € a etnologia, 0 alargamento da experiéncia), devemos reconhecer que cer- tas observagdes de costumes ¢ atitudes primitivas dio-lhe impressionante confirmacéo. Bastard lembrar que na Nova Caledénia a “mé palavra” é 0 adultério, porque “palavra” deve provavelmente ser interpretada no sen- tido de “ato”. Aiguns documentos sio ainda mais significativos. Para varias populacdes muito primitivas da Maldsia 0 pecado supremo, que desencadela a tormenta e a tempestade, compreende uma série de atos 8. K, Cassirer, Le Langage et Ia construction du monde des objets, em Psychologte du Langage, Paris’ 1985,"p° 8, Gist, op. op. i An Basey on Man, Now Haven 1044, piss, BM Teenhardt, “Emnologie dé Ia parole. Capers Internationauz de Sociologie, vol. ly Paris Primitive Polynesian Economics, op. cit, p. St. ‘38.Tm. Refi,” tual Poychoanaiytic Studies, Londres’ 131, p. 262 88. Leonhardt, op. “cit, BB. 534 a aparéncia heterdclitos © que os informantes enumeram confusamente, @ saber: 0 casamento entre parentes proximos, o fato do pai e da filhs ‘ou da mie e do filho dormirem demasiado perto tm do outro, a ln- muagem incorreta entre parentes, as conversas imprudentes, os brinque- dos ruidosos das criancas e a manifestagio de uma alegria demonstrative por parte dos adultos nas reunides sociais, a imitagio do grito de certos insetos ou passaros, 0 rirse de sua prépria cara contemplada num es- pelho ¢, finalmente, implicar com os animais e, mais particularmente, vestir lum macaco como homem, e zombar dele.” Que relagdes pode haver entre atos reunidos de modo tio extravagante? Facamos aqui um breve paréntese. Em uma regiéo vizinha, Redcliffe Brown recolheu uma tinica dessas proibicdes. Os indigenas das ilhas An- daman acreditam que se provoca a tempestade matando uma cigarra ou fazendo rufdo quando ela canta. Como a proibigéo parece existir em estado isolado, € 0 socidlogo inglés evita todo estudo comparado, em nome do principio segundo 0 qual cada costume se explica por uma funcéo ime- diatamente aparente, quis tratar este exemplo numa base puramente em- pirica, A proibi¢éo ‘decorreria do mito do antepassado que mata uma cigarra, fazendos gritar, e a noite aparece. Este mito, diz RadcliffeBrown, exprime portanto a diferenca de valor que 0 pensamento indigena atribui a0 dia e & noite. A noite mete medo, este medo traduzse em uma prot digéo. Como nio se pode agir sobre a noite, é a cigarra que se torna o ‘objeto do tabu." Se quiséssomos aplicar este método ao sistema completo das proi- bigdes, tal- como foi por nés reconstituido anteriormente, seria preciso invocar unis explicagao diferente para cada uma delas. Mas, nesse caso, como se compreenderia que 0 pensamento indigena as agrupe sob o mesmo titulo? Ou este pensamento deve ser fulgado incoerente ou devemos pro- curar 0 caréter comum que tora, em certo sentido, estes atos, aparente- mente heterogéneos, a tradugio de uma situagio idéntica. ‘Uma observagao indigena iré colocarnos na pista. Os Pigmeu da pe- ninsula malaia consideram um pecado zombar de sua propria face vista, no espelho. Mas, acrescentam, niio 6 pecado zombar de um ser humano verdadeiro, porque este pode defenderse. Esta interpretagéo aplicase tam- bem evidentemente a0 macaco vestido, que & tratado como se fosse um ser hhumano quando o irritamos, e parece um ser humano (como o rosto no espelho), embora realmente nao o seja. Podemos estendé-la também & imitagio do grito de certos insetos ou passaros — animais “cantores”, sem duivida, como a cigarra de Andaman —. Ao imité-los, tratamos uma emisséo sonora que “tem @ aparéncia” de uma palavra, como se fosse uma manifestagéo humana, quando néo é isto 0 que acontece, Encontramos, portanto, duas categorias de atos que se definem como uso indevido da lin: guage, uns do ponto de vista quantitatitvo, como brincar ruidosamente, xr demasiado alto, manifestar com excesso seus sentimentos, e outros do ponto 40, WW. Seats © Ch. 0. Blagdan, Pagan Races of the Malay Pentnsuio, op. ct ol ite p28 'B, Schebesta Among the Forest’ Dara. of Melays. Londros 28 HX, Mavans, Studies’ tn "Religion, Foikiora. and Customs. in, British. North Bomes dad ine Malay ‘bentasula, Cambridge 182, p. 19820; The Negritos of Malayo, Gambsidge. 189%, ps 11 ACR. Radditte Brown, The Andaman Islanders, Cambridge 1608, p. 185186 @ 535, HS de vista qualitativo, por exemplo, responder a sons que nfo sio palavras, tomar como interlocutor um individuo (espelho ou macaco) que apenas tem aparéncia de humanidade. “ Todas estas proibigdes reduzem-se, por- tanto, a um denominador comum, a saber, constituem um abuso da lin guagem, e sio, por este aspecto, grupadas com a proibigio do incesto ou com os atos evocadores do incesto. Que significa isso senfo que as prd- prias mulheres so tratadas como sinais, das quais se abusa quando nio se Ihes d4 0 emprego proprio dos sinais, que é serem comunicados? Assim, a linguagem e a exogamia representariam duas solugdes para uma mesma situacdo fundamental. A primeira atingiu alto grau de per- feigio, enquanto a segunda permaneceu aproximada e precéria. Mas esta desigualdade nfo deixa de ter um contrapeso. Era da natureza do sinal lingllistico néo poder permanecer muito tempo na etapa a que Babel pos fim, quando as palavras eram ainda os bens essenciais de cada grupo particular, valores tanto quanto sinais, preciosamente conservados, pro- nunciados com conhecimento de causa, trocados por outras palavras, cujo sentido desvendado ligaria o estrangeiro, como @ pessoa se ligaria a si propria ao imité-lo, porque, a0 compreender e fazerse compreender, 0 Fhomem entrega alguma coisa de si e adquire influéncia sobre 0 outro. A atitude respectiva de dois individuos que se comunicam adquire um sen- tido que de outro modo nfo possuiria. De agora em diante os atos e os pensamentos tornam-se reciprocamente dependentes, e a pessoa perde a Miberdade de se, equivocar. Mas, na medida em que as palavras puderam tomar-se propriedade de todos e em que sua funcéo de sinal suplantow © cardter de talor, a linguagem contribuiu, com a civilizagio cientitica, ” Para empobrécgr a percepcéo, despojéla das implicagées afetivas, est ticas © magicas, e para esquematizar 0 pensamento. Quando se passa do discurso a allanga, isto é, a um outro dominio da comunicagdo, a situagao invertese. O surgimento do pensamento sim- délico devia exigir que as mulheres, tal como as palavras, fossem coisas que se trocam. Exa, com efeito, neste novo caso, 0 tinico meio de superar a contradicéo que facia perceber a mesma mulher por dois aspectos in- rompativeis, de um lado, objeto de desejo prdprio, por conseguinte, exci- tante dos instiritos sexuais e de apropriagio, e a0 mesmo tempo sujcito, percebido como tal, do desejo de outro, isto &, meio de ligé-lo aliando-se a cle. Mas a mulher nfo podia nunca tornarse sinal e nada mais que isso, Porque em um mundo de homens ela 6 de todo modo uma pessoa, ¢ 2 Fodese inchir ng mesma detnigio todos os, ston classficados pelos dayskes come, tjettiee “tprdidae ac "iin, Nomen Cou'e” vimcanimat ult one dae sng’ ‘0 aetr ou "nda Ihe ‘conver, der dele sighmst bisa que’ sja_contranie San Mnluces, por exomlo, disc" do" isle’ qut ane, do rats de canta, Ga mnmece que Seiepare’ Qhutrea de, ne nomen que em por muha gure ia“, at aguerouloafmal epegrr ante vos deondo Snir "um, met rdnlandDajetinch Deuisches WSrierbuch: citade”por_W Calloie, eHfomma ‘et fe Sacre, Paria Tol. hae acveltamon ness aos Ream ‘einetpretaguo” postive Bor nde agut propostn, mais Wo" ade" Av interpretacho, Yncada”"stbre sa" daworder Br asta omen’: corease. por He, Callas lop “ck, up.) MA. nemossenual diag? mistiga®“parecénoe' urn funn "aegoria,”porgue. f° nomossaualtade’ io #0 Droletipo' do “frou ‘uao" de" comunicagio! "mis ort Ge" seus “casos paricuare, do Fskno nso nt eid" iferenis) go nous &Yodon ee Salton ats’ de “B58, eilimgEo clenuica que lende a empabrecer nossa percepsto" (W. Koller, Pevenolopical Ramatis on Sone Quaelons Of RRROpclogy Sororces Toure! OF By chology, ‘vol. 50, 1937, p. 277). oe ae 536, , pcSECea CRE ER Coen Eee ent eee eee ea eee | na medida em que é definida como sinal ficamos obrigados a reconhecer nela um produtor de sinais. No didlogo matrimonial dos homens, a mu: ther nunca é puramente aquilo de que se fala, porque se as mulheres, em geral, representam uma certa categoria de sinais, destinados a deter- minado tipo de comunicagio, cada mulher conserva um valor particular, proveniente de seu talento, antes e depois do casamento, de desempenhar ‘sua parte em um dueto. Ao contrario da palavra, que se tornou integral- mente sinal, a mulher permaneceu, portanto, sendo, ao mesmo tempo que sinal, valor. Explicase, assim, que as relag6es entre os sexos tenham preservado esta riqueza afetiva, este fervor e mistério que sem diivida im- Pregnaram na origem todo 0 universo das comunicagSes humanas. ‘Mas 0 ciima ardente e patético no qual brotaram o pensamento sim- bélico e a vida social, que constitui a forma coletiva do primeiro, aquece ainda nossos sonhos ‘com uma miragem. Até nossos dias a humanidade sonhou apreender e fixar este instante fugitivo em que foi permitido acreditar ser possivel enganar a lei da troca, ganhar sem perder, gozar sem partilhar. Em todo o mundo, nas duas extremidades do tempo, 0 mito Sumério da idade de ouro e o mito Andaman da vida futura correspondem um ao ‘outro. © primeiro colocando o fim da felicidade primitiva no momento em que a confusio das linguas tornou as palavras propriedade de todos, e 0 segundo descrevendo a beatitude do Além como um ¢éu no qual as mulheres nfo serio mais trocadas, isto 6, lancando num futuro ou num passado igualmente inatingivels a dogura, eternamente negada a0 hhomem social, de um mundo no qual se poderia viver entre si. 537

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