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Autocrítica ou anticomunismo?
20 de novembro de 2019

por Jones Manoel

Revista Opera

Aportes teóricos para compreender a


autofobia na esquerda brasileira

Domenico Losurdo (1941-2018), um dos


maiores intelectuais da história do
marxismo.
Um pensador dos condenados da terra.

É comum ouvirmos falar de forma genérica que “a esquerda tem que fazer uma
autocrítica dos seus erros passados”. Os autores dessa frase partem, no entanto, de
um pressuposto falso. Essa autocrítica não só existe, como desde a década de 1990 até
hoje é praticamente impossível se a rmar marxista sem citar os “erros do passado”. A
autocrítica, porém, parece nunca ter m. Como um el católico, quanto mais perdão
pedimos, mais pecados parecemos ter.

O nível de domínio ideológico dessa falsa concepção de “autocrítica” é tão grande que,
habitualmente, quando se necessita de um exemplo negativo para criticar um governo,
partido ou movimento de direita, o exemplo é buscado no nazifascismo ou em algum
país socialista. Jair Bolsonaro já foi comparado com Lênin, Hugo Chávez, Mao Tsé-Tung
e Fidel Castro. Na hagiogra a do mundo construída pelo liberalismo em que se conta:
“era uma vez um mundo feliz para sempre e democrático; um dia, porém, dois lobos
maus – o nazismo e o comunismo – tentaram devorar a Dona Democracia.” Mas o
liberalismo consegue derrotar os dois, e Fim da História!
Para compreendermos de verdade porque isso não tem nada a ver com autocrítica –
não passando de uma expressão do anticomunismo [1] – cabe buscar adentrar nos
fundamentos dessa ideologia caracterizando seus aspectos centrais, fundamentos
teóricos e seu balanço histórico da modernidade burguesa. Depois de feito esse
percurso, buscaremos pontuar o papel da falsi cação histórica, retirada dos horrores
da história dos comunistas do seu quadro histórico-concreto e pontuar a substancial
ignorância que existe na esquerda brasileira sobre produções recentes que derrubam
vários mitos da Guerra Fria. Terminado esse caminho, nalizamos com a conclusão.

A hagiogra a do liberalismo, o recalque da questão colonial e o mito da não violência


Marx ironiza as visões românticas sobre o surgimento do capitalismo a partir do
esforço individual de uma parte mais laboriosa e disciplinada da população, e diz que:
“na história real, como se sabe, o papel principal é desempenhado pela conquista, a
subjugação, o assassínio para roubar, em suma, a violência” (MARX, 2015, p. 786). O
que Marx combate é uma autoimagem do liberalismo, produzida por seus próprios
ideólogos e vencedora ao nal do século XX, que coloca a história do liberalismo como
um caminho inexorável em defesa das “liberdades individuais” e da democracia contra
seus inimigos – especialmente o movimento operário.

Na história real o liberalismo nasce compreendendo que os direitos naturais não se


estendiam aos escravos, povos coloniais, mulheres e trabalhadores, como bem
demonstra Losurdo (2006, p. 13-42; 2017, p. 179-211). Ao contrário da visão muito
difundida, o liberalismo nasce organicamente conectado com a escravidão. Não só
grandes pensadores liberais, como John Locke e Adam Smith, eram abertamente a
favor do lucrativo negócio da escravidão colonial – sendo Locke acionista numa
empresa de trá co de escravos; como também a Revolução Gloriosa na Inglaterra e a
Revolução Americana deram grande impulso ao negócio da escravidão[2].

O direito de voto também era negado aos trabalhadores. Immanuel Kant, Bernard
Mandeville, Barão de Montesquieu, Alexis de Tocqueville e muitos outros justi cavam,
a partir de diversos argumentos, a restrição ao direito de voto para os operários. Um
dos argumentos mais comuns era de que os operários são “instrumentos de trabalho
falantes”, “máquinas bípedes”. Em suma, seres despidos da razão e das luzes e
incapazes de participar do poder. Muitos pensadores liberais, como o Barão de
Montesquieu, ainda sublinhavam que a participação do povo nos negócios políticos
tinha potencial de criar o caos na República e ameaçar a propriedade privada
(LOSURDO, 2004. p. 15-60). Por falar em Tocqueville, é oportuno lembrar que o autor,
no seu clássico “A democracia na América”, de niu os EUA como um exemplo de
democracia a despeito da escravidão dos negros, o extermínio dos povos indígenas
peles vermelhas e as formas de segregação racial que enfrentavam os negros livres – a
democracia na América era democrática porque a raça dos senhores, os proprietários
brancos, desfrutava de um regime constitucional-representativo. (LOSURDO, 2006b, p.
83-86; TOCQUEVILLE, 2005).

O alargamento da esfera dos portadores de direitos naturais do homem, o m do


sistema colonial clássico, a derrubada de regimes de apartheid, a luta pelo sufrágio
universal e a criação de uma democracia burguesa que não fosse um regime
constitucional com direitos políticos apenas para burguesia não foram conquistas do
liberalismo em defesa das liberdades individuais, mas vitórias do movimento operário
e das lutas de libertação nacional nas colônias contra o liberalismo (LOSURDO, 2015).
[3]

A primeira tese fundamental do anticomunismo atual, portanto, é a exclusão do


liberalismo da sua história real, transformando-o em um mito, produzindo uma
hagiogra a liberal. Esse mito está profundamente ligado a outro elemento central: o
recalcamento da questão colonial. A história da dominação colonial, ser constitutivo do
capitalismo, é apagada como se nunca tivesse existido ou tratada de forma idílica, uma
versão atualizada da ideologia do “fardo civilizatório do homem branco” (LÊNIN, 2016;
LOSURDO, 2017).

Podemos usar três exemplos ilustrativos desse recalcamento da questão colonial na


história do capitalismo. O lósofo Norberto Bobbio defendia nos anos posteriores à
Segunda Guerra que os comunistas precisavam incorporar o liberalismo na sua teoria e
prática de governo nos países socialistas. O comunista italiano Palmiro Togliatti,
porém, faz o seguinte questionamento: “Quando e em que medida foram aplicados
aos povos coloniais aqueles princípios liberais sobre os quais se diz fundado o Estado
inglês do século XIX?” E prossegue a rmando que “a verdade é que a doutrina liberal
[…] está fundada numa discriminação bárbara entre as criaturas humanas, que se
alastra não só nas colônias, mas na própria metrópole, como demonstra o caso dos
negros estadunidenses” (TOGLIATTI apud LOSURDO, 2018, p. 72).

Bobbio sabia que liberalismo e democracia não são convergentes e que essa última foi
uma construção das lutas do movimento operário; ao mesmo tempo, pensava o
liberalismo apagado da questão colonial e absolutizava uma certa visão da história do
liberalismo na realidade europeia – balanço histórico em si também miti cado[4].
Basta citar, por exemplo, a realidade colonial da Irlanda. Já a losofa alemã Hannah
Arendt, no seu clássico livro “As Origens do Totalitarismo” (ARENDT, [1949] 2012),
começa falando do imperialismo europeu na África e Ásia e mostra como instituições
totais, como o campo de concentração, foram uma criação da política colonial dos
Estados europeus. Eis que, misteriosamente, na terceira parte do seu livro, o
imperialismo colonial desaparece de cena e o totalitarismo diz respeito apenas ao
nazismo e a URSS (ARENDT, 2012, p. 415-611).

Progredindo nesse caminho, no seu livro “Sobre a revolução” (ARENDT, [1965] 2011,
p.92-158), a lósofa a rma que a Revolução Americana, ao contrário da Francesa,
garantiu a “liberdade” constituindo-se num processo revolucionário não violento que
nunca conheceu episódios como o terror jacobino. A Revolução Americana, por não ter
a questão social como centro, evitou os perigos totalitários presentes no pensamento
e na ação de uma tradição histórica que vai de Robespierre, Marx, Lênin e encontra seu
ápice em Stálin. O colonialismo interno dos EUA com a “marcha para o oeste” e o
extermínio dos peles vermelhas, a ampliação da escravidão, o regime de supremacia
racial e a ação imperialista dos EUA nos anos pós revolução – expropriação de
territórios do México, anexação do Havaí, neocolonialismo nas Filipinas,etc. – não têm
peso na construção teórico- losó ca e no balanço histórico da autora. Sai a análise
histórica, e assume o papel central a apologia.[5]

Só que a apologia em Arendt ainda é indireta, tendo como fundamento o ocultamento.


Já com o historiador Niall Ferguson, há uma exaltação do colonialismo. Ferguson é um
saudosista do Império inglês e do colonialismo ocidental. Ele reconhece vários de seus
atos de barbárie, como os massacres, práticas de tortura em massa, campos de
concentração, segregação racial; mas, a despeito de tudo isso, celebra o Ocidente
liberal como portador de valores superiores de democracia, direitos humanos, etc.
(FERGUNSON, 2010; 2011) [6]. Ainda atribui ao Ocidente o mérito inquestionável de
ter fornecido uma via à modernidade para os colonizados. Nesse sentido, por exemplo,
não importa se quase metade da população do Congo foi massacrada pelo
colonialismo belga; mesmo assim, a Bélgica representava a civilização contra a
barbárie nativa e possibilitou a esse povo “entrar na modernidade” (LOSURDO, 2017, p.
253-308).

O apagamento da questão colonial e a apologia do imperialismo caminham pari passu


com o terceiro mito burguês: a não violência. Na visão ideológica do capitalismo, a
violência não é parte constitutiva e estrutural do funcionamento desse sistema
socioeconômico. Segundo Habermas (2011) e Arendt (2011), a política é por essência
uma ação humana mediada pela comunicação e o consenso (ROUANET, 1987). No
plano losó co, está excluída a violência que existe na história real. Para Joseph
Schumpeter, o capitalismo não tem qualquer necessidade de guerra e violência, sendo
esses fenômenos um resquício de elementos pré-capitalistas [7]. A violência na política
é uma perversão introduzida pela tradição democrático-revolucionária que vai do
jacobinismo ao bolchevismo [8].

Os massacres nas metrópoles capitalistas como a repressão à Comuna de Paris, o


assassinato de militantes na Revolução Alemã de 1918, as duas grandes guerras
mundiais, o ciclo de ditaduras empresariais-militares na América Latina, massacres
como o dos comunistas na Indonésia e tantos outros episódios históricos não
perturbam a visão do liberalismo e da democracia burguesa como essencialmente não-
violentos (MAGRI, 2014, p. 76-84).

A partir desses três pilares é que toda violência, repressão e aparecimento de


instituições totais nas experiências socialistas devem ser vistas. Não em um quadro
histórico-concreto em toda sua complexidade, mas como um derivado necessário da
ideologia marxista, ela própria portadora de um vírus essencialmente totalitário – em
suma, uma excepcionalidade histórica em um mundo democrático e pací co. Nesse
sentido, é dever de todos os comunistas que zeram a devida “autocrítica” olhar toda
sua história como o ápice – ao lado do nazifascismo – da barbárie na modernidade.
Podemos ilustrar essa tese a partir da abordagem de duas guras históricas do
primeiro plano durante a Segunda Guerra: Winston Churchill e Josef Stálin.

O primeiro é considerado um grande estadista e democrata. Churchill, todavia, foi um


político que ganhou notoriedade como um fanático defensor do império colonial
inglês. Era um entusiasta da white supremacy (supremacia branca), considerava os
povos colonizados como bárbaros, foi responsável por inúmeros massacres coloniais
na Índia, defendeu com obsessão o esmagamento militar da Rússia Soviética e nutria
muitas simpatias pelo fascismo italiano [9]. Segundo Gandhi, o governo inglês de
Churchill era “hitleriano” e aplicava na Índia tudo o que os nazistas defendiam[10].

A despeito de tudo isso, é possível, sem quaisquer problemas, reivindicar Churchill


como exemplo de democrata; já qualquer menção a Stálin que não seja a mais
apressada condenação, é lida como adesão ao totalitarismo. Não importa se durante a
liderança de Stálin na URSS houve um rme apoio aos movimentos de libertação
nacional, combate ao racismo e ao apartheid; se a URSS, sob Stálin, foi o primeiro país
do mundo a criminalizar o racismo na Constituição de 1936 e a pôr em prática uma
e ciente política educacional e cultural de promoção da igualdade racial; ou se a URSS
tornou-se, no auge do stalinismo, um centro mundial de formação política, cultural e
militar totalmente gratuita para milhares de pessoas quebrarem as correntes do
colonialismo; ou se toda periferia do sistema capitalista, da África do Sul passando pela
Argélia, Vietnã até o gueto negro dos EUA, Stálin era símbolo de libertação e
emancipação (MAGRI, 2014; LOSURDO, 2010; SALEM, 2008).[11]

O ato de considerar, concretamente, a dialética entre emancipação e desemancipação


nas experiências socialistas, é imediatamente interditado pela ideologia burguesa.
Aliado a isso, os próprios momentos de horror – e eles aconteceram! – devem ser
retirados do quadro histórico real e reduzidos a uma abordagem dedutiva da ideologia
ou da personalidade de tal ou qual líder. Nesse sentido, a repressão stalinista é
desconectada do permanente estado de exceção imposto à URSS pelo imperialismo e
seus atos de sabotagem, terrorismo, ameaça de guerra, bloqueio econômico, etc.

Um exemplo é su ciente para demonstrar isso: quando os comunistas conseguem


chegar ao poder na China, a cúpula do Estado norte-americano além de ameaçar usar
armas atômicas, impôs um duro bloqueio econômico. Eles sabiam que como os
comunistas não tinham experiência na administração da economia urbana, o bloqueio
econômico, junto de outros expedientes, como a pressão militar permanente,
conduziriam a erros (POMAR, 2003). O “Grande Salto para Frente” nada mais foi que
uma tentativa desesperada de queimar etapas no desenvolvimento econômico para
superar as fragilidades da economia subdesenvolvida sabotada pelo imperialismo.
Frente aos erros e tragédias desse período histórico da China, porém, essa “parte” da
história incomoda, deve ser apagada e tudo se resume a um instinto assassino dos
comunistas.

Na guerra, a primeira vítima é a verdade


No quadro hegemônico do balanço histórico do movimento operário comunista no
século XX, não é exagerado insistir na retirada das condições histórico-concretas onde
os horrores foram produzidos. Isso, evidentemente, não signi ca nenhum relativismo
moral, mas uma compreensão verdadeiramente cientí ca da história [12]. A requisição
por um balanço histórico sério torna-se ainda mais urgente com a percepção de que a
ideologia dominante, na sua operação de escrita da história, recorre à pura e simples
mentira. Vejamos.

Os números fantásticos de mortos na URSS que sobem a cada ano sem o mínimo de
rigor cientí co são um bom exemplo desse tipo de mentira [13]. Números de presos e
mortos durante a repressão no período maoísta também são in ados – mesmo
fenômeno que já atinge o jacobinismo francês (LOSURDO, 2018, p. 22). Mas, se nesse
caso existe um falseamento a partir de uma base real (mortes realmente
aconteceram), em outros, a mentira caminha livre de qualquer lastro na realidade.
Podemos citar alguns exemplos: a) o mito de que Stálin con ava em Hitler e ele e a
direção do PCUS caram surpresos com a quebra do Pacto de não agressão germano-
soviético (Medvedev, 2006, p. 291); b) a existência de um suposto “Holodomor” contra
os ucrânios, mentira fundamental para aproximar soviéticos e nazistas (cada um com
sua “Solução nal”) (LOSURDO, 2010, p. 198); c) a fome planejada na China que
exterminou 90 milhões de camponeses (ARRIGHI, 2008, p. 375); e d) o antissemitismo
soviético como política de Estado (LOSURDO, 2010, p. 217).

Guardada toda diversidade, no campo da direita, qualquer questionamento a essas


mentiras é lido como algo inaceitável. No diverso campo da esquerda, no geral, é visto
como um relativismo moral de alguém que ainda não aceitou a “necessária
autocrítica”. Ora, recuperar a verdade histórica e mostrar, por exemplo, que o gulag
soviético não pode ser comparado ao campo de extermínio nazista não signi ca dizer
“o gulag era lindo”.

Nessa temática, a particularidade brasileira é ainda mais grave. A chamada “nova


historiogra a soviética”, que surge ao nal dos anos de 1970 e ganha força na década
seguinte, conseguiu derrubar vários mitos anticomunistas construídos durante a
Guerra Fria. Essa historiogra a, porém, simplesmente não tem espaço no mercado
editorial brasileiro e também não é do interesse dos partidos de esquerda realizar sua
divulgação [14]. Nesse sentido, as obras de Geo rey Roberts, J. Arch Getty, Robert W.
Thurston e Annie Lacroix-Riz, para citar alguns exemplos, continuam sendo
desconhecidas do público leitor e do conjunto da militância brasileira.

Conclusão: superar a autofobia e realizar uma verdadeira autocrítica


Domenico Losurdo detalha um fenômeno interessante: grupos sociais derrotados,
muitas vezes na história, passam a assimilar a ideologia, identidade e balanço histórico
dos vencedores. Essa é a autofobia. A negação da história e identidade em um
processo de fuga da história. Essa postura pode assumir uma feição de “direita” e
outra de “esquerda”. Vários ex-comunistas renegaram esse passado vermelho, mesmo
sendo dirigentes de partidos, e a rmaram que “nunca foram comunistas” e assumiram
os “valores universais” do Ocidente: propriedade privada, democracia burguesa,
OTAN,etc. Outros, porém, continuam se a rmando socialistas e lutam por uma
sociedade pós-capitalista; mas fazem isso guiados pela ideologia dominante.
Confundem, assim, autocrítica com autofobia, diz Losurdo:

Porém, apesar das assonâncias, autocrítica e autofobia constituem duas posições


antitéticas. Em seu rigor, e até mesmo em seu radicalismo, a autocrítica exprime a
consciência da necessidade de acertar as contas com a própria história; a autofobia é
uma fuga vil desta história e da realidade da luta ideológica e cultural que sob ela que
ainda arde. Se a autocrítica é o pressuposto da reconstrução da identidade comunista,
a autofobia é sinônimo de capitulação e de renúncia da identidade autônoma
(LOSURDO, 2004, p. 15).

Nesse sentido, a verdadeira autocritica não deve renegar toda experiência do


movimento comunista do século XX. Posturas como defender um mítico “retorno a
Marx” como se todos os líderes, militantes, partidos e movimentos no século passado
tivessem traído a palavra sagrada revelada nas escrituras, não passa de uma fuga
covarde da realidade e uma expressão da autofobia que redunda no anticomunismo.
Esse tipo de postura nos impede, por exemplo, de responder uma pergunta
fundamental que o século XX colocou aos revolucionários e que algumas experiências
socialistas, como Cuba, ainda procuram responder: como garantir a democracia
socialista e uma forma de liberdade superior – a de tipo burguesa – numa situação de
estado de guerra permanente imposto pelo imperialismo e tendo que superar o
subdesenvolvimento e a dependência?

A verdadeira autocrítica pressupõe, portanto, um balanço crítico e cientí co sobre o


nosso passado; combatendo a ideologia dominante, inserindo os erros de nossa
história em um quadro histórico-concreto e valorizando o nosso legado emancipatório.
Sem o movimento comunista, dentre outras coisas, o mundo provavelmente ainda
conheceria o nazismo e a escravidão racial aberta.

Pode parecer um truísmo – e de fato o é -, mas os intelectuais e ideólogos burgueses


não estão interessados em divulgar e debater o legado emancipatório dos comunistas.
Para eles, como já dissemos, tudo não passa de uma série in nita de horrores. Se não
defendermos criticamente a nossa história, ninguém o fará. O nosso passado será
expropriado – como é a mais-valia dos trabalhadores – e o futuro, interditado. Como
bem disse Walter Benjamin na famosa tese 7 sobre o conceito de História: “O dom de
despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador
convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer.
E esse inimigo não tem cessado de vencer”.

Notas:

[1] – É importante negritar que esse debate não é uma escolástica acadêmica restrita
ao ambiente universitário. Na linguagem política de políticos pro ssionais, como
Fernando Haddad e Ciro Gomes (ambos candidatos a presidência em 2018, cando,
respectivamente, com o segundo e o terceiro lugar do pleito), nos meios de
comunicação chamados de “progressistas”, como a Revista Carta Capital e no jornal El
País e em meios de informação cada vez mais responsáveis pela “educação política” de
uma parcela da população, como canais no Youtube, a ideia de fugir de extremos
iguais, extrema direita e extrema esquerda, ambos violentos, autoritários e
antidemocráticos – o comunismo soviético, o representante por excelência da
“extrema esquerda” e o nazismo da “extrema direita” – é cada vez mais forte. Essa
ideologia tem íntima relação com a hagiogra a do liberalismo. Esperamos que ao nal
do texto o leitor perceba claramente essa relação.

[2] – “A escravidão não é algo que permaneça não obstante o sucesso das três
revoluções liberais; ao contrário, ela conhece o seu máximo desenvolvimento em
virtude desse sucesso: “o total da população escrava nas Américas somava
aproximadamente 330.000 no ano de 1700, chegou a quase três milhões no ano de
1800, até alcançar o pico de mais de 6 milhões nos anos 50 do séc. XIX” (LOSURDO,
2006. p. 47).”

[3] – Em 5 de junho de 1920, no Esboço inicial das Teses sobre a Questão Nacional e
Colonial, no II Congresso da Internacional Comunista, Lênin expressa em termos
teóricos o que, na prática, foi um elemento central (não sem contradições e erros) da
ação dos comunistas no século XX: “não só em toda propaganda e agitação dos
partidos comunistas – tanto da tribuna parlamentar como fora dela – devem ser
incansavelmente desmascaradas as constantes violações da igualdade das nações e
das garantias dos direitos das minorias nacionais em todos os Estados capitalistas, a
despeito das suas constituições ‘democráticas’ […]; Segundo, é necessário uma ajuda
direta de todos os partidos comunistas aos movimentos revolucionários nas nações
dependentes ou que não gozam de igualdade de direitos (por exemplo, na Irlanda,
entre os negros da América etc.) e nas colônias” (LÊNIN, 2017, p. 438).

[4] – Importante pontuar que posteriormente, já nos anos de 1970, Bobbio expressa
uma história mais crítica do liberalismo e reconhece suas cláusulas de exclusão e a
barbárie colonial. Exemplo disso é seu livro Política e Cultura, Editora Unesp, [1977]
2015. Mesmo assim, porém, em situações concretas, como na invasão de Granada,
Panamá e nos atos terroristas dos EUA contra a Nicarágua Sandinista, Bobbio manteve
silêncio e apoiou a primeira guerra [neocolonial] contra o Iraque. Esse último episódio
chocou bastante os alunos e seguidores de Bobbio dado sua imagem de “paci sta” e
defensor de uma ordem mundial baseada no direito internacional e não na força.
[5] – Não é demais lembrar que Alexis de Tocqueville, o famoso liberal francês, torna-
se uma das grandes referências teóricas de Hannah Arendt e é notória sua in uência
no livro “Sobre a Revolução”. Tocqueville, que dentre outras proezas, foi um defensor
total da conquista colonial francesa no Mabreg e da cruci cação colonial da China.

[6] – A ideologia da superioridade civilizatória do europeu comparece, inclusive, em


vários sujeitos políticos – intelectuais, veículos de comunicação, partidos políticos etc.
– identi cados com a esquerda. Ano passado, durante uma entrevista ao jornal
espanhol El país, disse o lósofo Slavoj Žižek: “aceitemos que as pessoas venham para
cá porque, apesar de toda a corrupção, continuamos oferecendo ao mundo aquele que
talvez seja o grande modelo de bem-estar relativo, um único modelo que combina
bem-estar e liberdade, o melhor até agora na história mundial. Portanto, deveríamos
estar orgulhosos do nosso destino europeu. O fantástico da nossa tradição
democrática é que a imperfeição está dentro do sistema, faz parte da capacidade da
nossa democracia de ser crítica consigo mesma. É um sistema único, que inclui a
autocrítica.” A entrevista completa pode ser acessada nesse link:
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/12/14/cultura/1544788158_128530.html

[7] – Para uma crítica à visão de Schumpeter, presente em “The Sociology of


Imperialism” (A sociologia do imperialismo), ver o também já citado Losurdo, 2018, p.
155-158.

[8] – “Neste aspecto, é surpreendente como boa parte das éticas contemporâneas, tão
em voga nas academias, busca encontrar solução para os problemas da sociedade
contemporânea, a partir de pretensos princípios morais universalizáveis, sem
considerar a sua viabilidade junto à base econômica-material que move a sociedade
civil. Como se fosse possível construir-se valores morais justos sobre uma
infraestrutura injusta [e eu acrescendo: violenta]. É o caso das éticas discursivas de K.
Apel e J. Habermas e da teoria da justiça de Jonh Rawls” (VIEIRA, 2006, p. 16)

[9] – Churchill era um grande admirador de Mussolini, que chegara ao poder em Itália
em 1922. Saudava tanto o anticomunismo de Mussolini, quanto a sua forma autoritária
de organizar e disciplinar os italianos. Visitou a Itália em 1927 […] e encontrou-se com
Mussolini, sobre quem proferiu rasgados elogios numa conferência de imprensa […].
‘Se fosse italiano, estou seguro que estaria de todo o coração ao vosso lado, desde o
início até ao m, na vossa luta triunfante contra os apetites e paixões animalescas do
Leninismo’. E sobre as simpatias de Churchill pelos golpistas espanhóis escreve
Ponting: “todas as suas simpatias estavam com Franco e o lado nacionalista. […]
Descreveu o governo legítimo e a parte republicana como ‘um proletariado pobre e
atrasado que exige o derrube da Igreja, do Estado e da propriedade e a instalação dum
regime Comunista’. Contra eles erguiam-se ‘forças patrióticas, religiosas e burguesas,
sob o comando do exército […] em marcha para reestabelecer a ordem através da
instauração duma ditadura militar’” – CADIMA, Jorge. Nos 70 anos da vitória de 1945,
2015. Disponível no link: https://pcb.org.br/portal2/8195/nos-70-anos-da-vitoria-de-
1945/

[10] – “Na Índia, temos um governo hitleriano, ainda que camu ado em termos mais
brandos […] Hitler foi o pecado da Grã-Bretanha. Hitler é apenas uma resposta ao
imperialismo britânico” (GANDHI apud LOSURDO, 2010, P. 191).

[11] – “A URSS de Stalin in uencia poderosamente a luta dos afro-americanos (e dos


povos coloniais) contra o despotismo racial. No Sul dos EUA se assiste a um fenômeno
novo e preocupante do ponto de vista da casta dominante: é a crescente ‘imprudência’
dos jovens negros. Estes, graças aos comunistas, começam, de fato, a receber o que o
poder teimosamente lhes negava, a saber, uma cultura que vai muito além da instrução
elementar tradicionalmente transmitida aos que estão destinados a fornecer trabalho
semiescravo a serviço da raça dos senhores. Agora, porém, nas escolas organizadas
pelo partido comunista no norte dos Estados Unidos ou nas escolas de Moscou, na
URSS de Stalin, os negros se empenham em estudar economia, política, história
mundial; interrogam essas disciplinas para compreender também as razões da dura
sorte reservada a eles num país que se comporta como campeão da liberdade”
(Losurdo, 2010, p. 280-281)

[12] – Interessante destacar que as duas principais revoluções liberais hoje defendidas
pela burguesia, a Revolução Inglesa e a Americana, não são moralizadas por sua
violência ou elementos de barbárie, como a manutenção e ampliação da escravidão. O
olhar moralizador e de horror é reservado apenas às revoluções socialistas e
anticoloniais. Professor que sou, debatendo com colegas de pro ssão, quando
apresento a contra-história das revoluções liberais, a resposta que sempre escuto era
“isso era a ideologia da época”. Ou seja, a Revolução Americana, por exemplo, está
livre de qualquer juízo ético, político e moral, a nal, era “assim que se pensava no
período”.

[13] – Jean Salem (2008, p. 30-32) mostra como essa lógica se desenvolve na França.
Um cálculo que começa com 10 milhões de mortos na URSS e consegue,
tranquilamente, alcançar a casa dos 110 milhões de mortos já anos de 1970 (2008, p.
27).
[14] – As exceções, como as traduções de Domenico Losurdo e de Wendy Goldman,
apenas con rmam a regra.

Referências:

ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo: antissemitismo, imperialismo,


totalitarismo. Companhia das Letras, São Paulo, 2012.

_______________. Sobre a revolução. Companhia das Letras, São Paulo, 2011.

ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith em Pequim – origens e fundamentos do século XXI.


Boitempo Editorial, São Paulo, 2008.

FERGUSON, Niall. Colosso: ascensão e queda do império americano. Planeta, São


Paulo, 2011.

_______________. Imperio: como os britânicos zeram o mundo moderno. Planeta, São


Paulo, 2010.

HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo – vol. 1: Racionalidade da ação e


racionalização social. Martins Fontes, São Paulo, 2011.

LÊNIN, V. I. Imperialismo, etapa superior do capitalismo. Expressão Popular, São Paulo,


2016.

__________. Lenin e a revolução de outubro – textos no calor da hora (1917-1923).


Expressão Popular, São Paulo, 2017.

LOSURDO, Domenico. A luta de classes. Uma história política e losó ca. Boitempo
Editorial, São Paulo, 2015.

__________________. Contra-história do liberalismo. Ideias e Letras, São Paulo, 2006.

__________________. Democracia ou bonapartismo? Triunfo e decadência do sufrágio


universal. Editora Unesp, São Paulo, 2004.

__________________. Fuga da história? A Revolução Russa e a revolução chinesa vistas


de hoje. Editora Revan, Rio de Janeiro, 2004.
__________________. Guerra e revolução – o mundo um século após Outubro de 2017.
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__________________. Liberalismo. Entre a civilização e a barbárie. Editora Anita


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__________________. O marxismo ocidental. Como nasceu, como morreu, como pode


renascer. Boitempo Editorial, São Paulo, 2018.

__________________. Stálin – uma história crítica de uma lenda negra. Editora Revan,
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MAGRI, Lucio. O alfaiate de Ulm – uma história possível do Partido Comunista Italiano.
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MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política – Volume I. Boitempo Editorial, São
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MEDVEDEV, zhores A.; MEDVEDEV, roy A. Um Stálin desconhecido: novas revelações


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POMAR, Wladimir. A Revolução Chinesa. Editora Unesp, São Paulo, 2003.

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SALEM, Jean. Lênin e a Revolução. Expressão Popular, São Paulo, 2008.

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VIEIRA, Luiz Vicente. A Democracia com pés de Barro: O diagnóstico de uma crise que
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