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os afogados e os sobreviventes primo levi PAZ E TERRA Aqueles que experimentaram 0 en- carceramento nos campos de extermi- rio nazistas da Segunda Grande Guerra se dividem basicamente em duas cate- kgorias: os que se calam e os que falam. Figura de destaque dentro do segundo ‘grupo, o italiano Primo Levi jamais se Calou, Mundialmente conhecido desde a publicacao de E isto um homem? Nos anos 1940 — livro onde relata sua experiéncia como prisioneito judeu em Auschwitz — neste Os afogados e os sobreviventes ele bate na mesma tecla. Bate fundo. Marcado pelo estigma da sobrevi véncia, Primo Levi oferece aqui sua coniribuigao definitiva sobre 0 Holo- causto, Sua meta é tentar responder Aqueles tipos de perguntas que, com © passar dos anos, martelaram insis- tentemente as entrevistas e a conscién- cia dos que sobreviveram: Por que no fugiram? Por que vocés nao se rebelaram? Sao perguntas dificieis, para as quais © distanciamento temporal @ a refle- xo moral séo fundamentais. Ora, como explicar as acbes © os medas de um universo de prisioneiros tao dispar ‘como os judeus de toda a Europa, os politicos anti-nazistas, os homosse- xuais € 0s criminosos comuns? Como procurar uma mesma resposta junto a individuos de sexos, idades ¢ condi- ‘Goes sociais em nada similares, alguns riundos das nacoes democraticas da Europa ocidental e a grande maioria clos patses do Leste, que — por sinal — s6 agora tém a oportunidade de experi- mentar © gosto da liberdade como a conhecemos? OS AFOGADOS E OS SOBREVIVENTES PRIMO LEVI OS AFOGADOS E OS SOBREVIVENTES Os delitos, os castigos, as penas, as impunidades ‘Tradugio de Luiz Sérgio Henriques 2 edigio PAZ E TERRA (© by Gio Finaudl Edhore spa ‘Tradusido do original em italiano J sommerie saath Dados de Catalogasio da Publicagio Imemacional (CIP) (Camara Brasileiea do Livro} Levi, Primo, 1919-1989, 0s afogados e os sobrevivente £ Primo Levi: taduxio Lz Séngia Henriques. — S30 Paulo-Paz Terra, 2004 ISHN 85-219.0502-5, 1. Auschwite — Poldinla — Campos de coneentragdo 2, Holocausto juden (1939-1945) — Narttivas pestoals 3. Levi, Primo, 1919-1989 1. Titulo, 90-0908 cop-940.5472458 ‘940.0092924 40.53503924 EDITORA PAZ B TERRA S/A, Rua do Tanto, 177 ‘Santa ligéaia, Sao Paulo, SP — CEP 01212-010 Tel: (O11) 3337-8399) E-mail: vendaserpazeterra.com br Home Page: ww.pazeterta.com.br 2004 Impresso na Bras! Prine in Brasit InpIcE Prefécio . 9 1A meméria da ofensa .. 7 19 M.A zona cinzenta 31 UL. A vergonha 6 IV. Comunicar 7 V.Violéncia iniitil . a1 VI. intelectual em Auschwitz VIL. Esteredtipos 127 VILL. Cartas de alemaes B COMCUSTO sone cs 7 Since then, at uncertain hour, ‘That agony returns: And till my ghastly tale is told This heart within me burns. 5. T. Coleridge, ‘The Rime of time Ancient Mariner, vw. 582-5, | PREFACIO As primeiras noticias sobre os campos de exterminio nazistas comegaram a difundir-se no ano crucial de 1942, Eram noticias vagas, mas convergentes entre si: delineavam um massacre de proporgées to amplas, de uma crueldade tao extrema, de moti- vacies tao intrincadas que o piblico tendia a rejeité de seu proprio absurdo. F significative como essa rejeigio tenha sido prevista com muita antecipagio pelos préprios culpados; muitos sobreviventes (entre outros, Simon Wiesenthal, nas tilti- mas paginas de Gli assassin! sono fra noi, Milo, Garzanti, 1970) recordam que os $S se divertiam avisando cinicamente os prisio- neiras: “Seja qual for o fim desta guerra, a guerra contra voces nds ganhamos; ninguém restaré para dar testemunho, mas, mesmo que alguém escape, o mundo nao Ihe dard crédito. Talvez haja suspeitas, discusses, investigagies de historiadores, mas nao haverd certezas, porque destruiremos as provas junto com vocés. E ainda que fiquem algumas provas ¢ sobreviva alguém, as pes- soas dirdo que os fatos narrados so to monstruosos que no merecem confianga: dirdo que sao exageros da propaganda aliada € acreditarao em nds, que negaremos tudo, € ndo em voces, Nos € que ditaremos a hist6ria dos Lager” — campos de concentracio. Curiosamente, esse mesmo pensamento (“mesmo que con- tarmos, no nos acreditardo”) brotava, sob a forma de sonho las em razao notumo, do desespero dos prisioneiros. Quase todos os sobrevi ventes, oralmente ou em suas memérias eseritas, recordam um, sonho muitas vezes recorrente nas noites de confinamento, va~ riado nos particulares mas tinico na substancia: o de terem vol- tado para casa ¢ contado com paixao e alivio seus sofrimentos passados, dirigindo-se a uma pessoa querida, ¢ de ndo terem cré- dito ou mesmo nem serem escutados. Na forma mais tipica (c mais cruel), o interlocutor se virava ¢ ia embora silenciosamen- tc. Este € um tema ao qual retomaremos, mas desde agora & importante ressaltar como ambas as partes, as vitimas e os opres sores, tinham viva a consciéncia do absurdo e, portanto, da nao credibilidade daquilo que ocorria nos Lager; e, podemos aqui acrescentar, nao s6 nos Lager mas nos guetos, nas retaguardas da frente original, nos postos de policia, nos hospitais para os defi- cientes mentais Felizmente as coisas nao se desenrolaram como as vitimas temiam ¢ como os nazistas esperavam. Mesmo a mais pertei das organizagées apresenta falhas, ¢ a Alemanha de Hitler, so- bretudo nos tiltimos meses antes do colapso, estava longe de ser uma maquina perfeita. Muitas provas materiais dos exterminios em massa foram suprimidas, ou se buscou mais ou menos habil- mente suprimi-las: no outono de 1944, os nazistas explodiram as cmaras de gés € os fornos crematérios de Auschwitz, mas as ruinas ainda existem e, a despeito do contorcionismo dos epigo- nos, € dificil justificar suas fungbes recorrendo a hipdteses fanta- siosas. O gueto de Varsdvia, apds a famosa insurreigio da prima vera de 1943, foi destrufdo, mas o esforgo sobre-humano de alguns combatentes-historiadores (historiadores de si mesmos!) fez com que, entre os escombros de muitos metros de espessura, ou contrabandeado para além dos muros, outros historiadores reencontrassem 0 testemunho de como, dia apés dia, aquele gueto viveu € morreu. Todos os arquivos dos Lager foram quei- mados nos tiltimos dias da guerra, e esta foi verdadeiramente uma perda irremedidvel, tanto que ainda hoje se discute se as vitimas foram quatro, seis ou oito milhdes: mas sempre de mi IhGes se fala. Antes que os nazistas recorressem aos gigantescos foros crematérios miiltiplos, os intimeros caddveres das pré- 10 prias vitimas, assassinadas deliberadamente ou desirufdas pelos padecimentos ¢ pelas doengas, podiam constituir uma prova ¢ deviam ser eliminados de algum modo. A primeira solucdo, tao macabra que ¢ dificil falar dela, foi a de empilhar simplesmente os corpos, centenas de milhares de corpos, em grandes fossas comuns, 0 que foi feito particularmente em Treblinka, em outros Lager menores e nas retaguardas russas. Era uma sohugdo provi- séria, tomada com uma negligéncia hestial quando os exércitos alemaes triunfavam em todas as frentes e a vit6ria final parecia certa: depois se veria o que fazer, de todo modo 0 vencedor € dono também da verdade, pode manipulé-la como the convier, de alguma maneira as fossas comuns seriam justificadas, ou eli- minadas, ou ainda atribuidas aos soviéticos (que, de resto, de- monstraram em Katyn nao ficarem muito tras). Mas apés a virada de Stalingrado houve uma revisdo: melhor apagar tudo de uma vez. Os proprios prisioneiros foram obrigados a desen terrar aqueles pobres restos e a queimé-los em fogueizas a céu aberto, como se uma operagdo dessas proporgies, ¢ to inco- mum assim, pudesse passar totalmente inobservada. Os comandos SS ¢ os servigos de seguranga tomaram todas as cautelas para que nenhuma testemunha sobrevivesse. £ este o sentido (dificilmente se pode! iginar um outro) das trans- feréncias mortais ¢ aparentemente ensandecidas com que se encerrou a histéria dos campos nazistas nos primeiros meses de 1945: os sobreviventes de Majdanek para Auschwitz, os de Aus- chwitz para Buchenwald ¢ para Mauthausen, os de Buchenwald para Bergen Belsen, as mulheres de Ravensbriick para Schwe- rin, Todos, em suma, deviam ser subtraidos a libertagao, depor- tados novamente até o coragao da Alemanha invadida pelo leste € pelo oeste; nao tinha importancia que morressem no caminho, importava que nao contassem. Com eleito, depois de terem fun- cionado como centros de terror politico, em seguiida como fébri- cas da morte e, sucessivamente (ou simultaneamente), como ili- mitado reservatério de mao-de-obra escrava sempre renovada, os Lager se haviam tornado perigosos para a Alemanha mori- bunda, porque continham 0 segredo dos préprios Lager, o crime ‘maximo na historia da humanidade. O exército de espectros que u neles ainda vegetava era constituido por Geheimnistrager, porta- dores de segredo, dos quais era preciso livrar-se; ja destruidas as instalagdes de exterminio, por sua ver elogiientes, escolheu-se 0 caminho de transferi-los para o interior, na esperanga absurda de ainda encerré-los em Lager menos ameagados pelas frentes que avangavam, explorando-lhes as tiltimas capacidades de tra- balho, ¢ na outra esperanga menos absurda de que o tormento. daquelas marchas biblicas reduzisse seu ntimero. E, com eleito, © nitmero fot espantosamente reduzido, mas alguns tiveram a fortuna e a forga, de sobreviver, e ficaram para testemunhar. E menos conhecido ¢ menos estudado 0 fato de que muitos portadores de segredo também se encontravam na outra parte, na parte dos opressores, embora muitos soubessem pouco ¢ pou- cos soubessem tudo. Ninguém jamais conseguira estabclecer com preciséo quantos, no aparelho nazista, nao podiam deixar de saber das atrocidades espantosas que eram cometidas; quantos sabiam alguma coisa, mas podiam fingir ignorancia; quantos, ainda, tinham a possibilidade de saber tudo, mas escolheram 0 caminho mais prudente de tapar olhos ¢ ouvidos (e sobretudo a boca). Seja como for, € j4 que nao se pode supor que a maioria dos alemaes aceitasse levianamente 0 massacre, € certo que a nao difusdo da verdade sobre os Lager constitui uma das maio- res culpas coletivas do povo alemao e a mais aberta demonstra- Go da vileza a que o terror hitleriano o tinha reduzido: uma vileza tornada habito, ¢ to profunda que impedia os maridos de contar as mulheres, os pais aas filhos; sem a qual nao se teria chegado aos maiores excessos, € a Europa ¢ 0 mundo, hoje, se~ riam diferentes. Sem diivida, aqueles que conheciam a horrivel verdade por serem (ou terem sido) responsaveis tinham fortes razées para calar; mas, como depositérios do segredo, mesmo calando nao tinham sempre a vida segura. 0 que demonstra o caso de Stangl € dos outros carniceiros de Treblinka, que, apés a insurreigao ¢ 0 desmantelamento daquele Lager, foram transferidos para uma das zonas de guerrilha mais perigosas. A ignorncia deliberada € © medo também calaram muitas potenciais testemunhas “civis” das infamias dos Lager. Especial- 2 mente nos tiltimos anos de guerra, os Lager constituiam um sis- tema extenso, complexo € profundamente entrelagado com a vida cotidiana do pais: falou-se com razdo de univers concentra tionnaire, mas no era um universo fechado. Sociedades indus- triais grandes e pequenas, empresas agricolas, fébricas de arma- mentos obtinham lucro da mao-de-obra quase gratuita fornecida pelos campos. Algumas exploravam os prisionciros sem pieda- de, aceitando 0 principio desumano (¢ também esttipido) dos SS, segundo 0 qual um prisioneiro valia por outro €, se morresse de cansago, podia ser imediatamente substituido; outras, poucas, tentavam cautelosamente atenuar-lhes as penas. Outras indtis- irias, ou talvez as mesmas, luctavam com fornecimentos aos prd- prios Lager: madeira, materiais de construgio, tecido para o uni- forme listrado dos prisioneizos, vegeiais desidratados pata a sopa etc. Os fornos crematérios mesmos tinham sido projetados, cons- truidos, montados e testados por uma empresa alem4, a Topf de Wiesbaden (cm atividade até 1975: construia fornos para uso Givil, sem considerar oportuno modificar a razdo social). £ dificil pensar que © pessoal dessas empresas nao se desse conta do sig- nificado expresso pela qualidade ou pela quantidade das merca- dorias ¢ dos equipamentos que eram encomendados pelos co- mandos SS. A mesma argumentacdo se pode fazer, ¢ foi feita, em relagao ao fornecimento do veneno empregado nas cémaras de gas de Auschwitz: o produto, substancialmente écido cianidrico, ha muitos anos era usado para a desinfeccéo dos pordes das embarcagdes, mas 0 brusco aumento das encomendas a partir de 1942 nao podia passar inobservado. Devia gerar diividas, e cer- tamente as gerou, mas elas foram sutocadas pelo medo, pela avi dez de lucro, pela cegueira e estupidez voluntaria que mencio- ramos, ¢ em alguns casos (provavelmente poucos) pela fandtica obediéncia nazista. E natural e Gbvio que o material mais consistente para a reconstrugao da verdade sobre os campos seja constituido pelas memérias dos sobreviventes. A parte a piedade e a indignagao que suscitam, elas devem ser lidas com olho critico. Para um co- nhecimento nos Lager, os Lager mesmos nem sempre eram um bom observatério: nas condigdes desumanas a que estavam sub: B metidos, era raro que os prisioneiros pudessem adquirir uma visio de conjunto de seu universo. Podia acontecer, sobretudo Aqueles que ndo compreendiam o alemao, que os pri xno soubessem nem mesino em qual ponto da Europa se acha- va o Lager em que estavam e ao qual tinham chegado apés uma viagem massacrante € tortuosa em vagoes lacrados. Nao sabiam da existéncia de outros Lager, talvez a poucos quilémetros de distancia, Nao sabiam para quem trabalhavam. Nao compreen- diam 0 significado de certas imprevistas mudangas de condigao e das transferéncias em massa. Cercado pela morte, muitas vezes 0 deportado nao era capaz de avaliar a extensio do massacre que se desenrolava sob seus olhos. © companheiro que hoje tinha trabalhado a seu lado amanhé sumia: podia estar na barraca pro- xima ou ter sido varrido do mundo; nao havia jeito de saber. Em suma, sentia-se dominado por um enorme edilicio de violencia € de ameaga, mas ndo podia daf construir uma representagéo porque seus olhos estavam presos ao solo pela caréncia de todos 08 minutos. Fsta caréncia condicionou os testemunhos, verbais ou escri- 108, dos prisioneiros “normais”, dos nao-privilegiados, vale dizer, daqueles que constituiam o cerne dos campos ¢ que s6 escapa- ram da morte por uma combinagio de eventos improvaveis Eram maioria nos Lager, mas exigua minoria entre os sobrevi- ventes: entre estes, so muitos mais numerosos aqueles que, no cativeiro, desfrutaram um privilégio qualquer. Numa distancia de anos, hoje se pode bem afirmar que a histéria dos Lager foi escrita quase exclusivamente por aqueles que, como eu proprio, no tatearam seu fundo, Quem o fez nao yoltou, ou entao sua capacidade de observagio ficou paralisada pelo sofrimento e pela incompreensio. Por outra parte, as testemunhas “privilegiadas” dispunham de um observatério certamente melhor, quando nada porque estava situado mais no alto e, portanto, dominava um horizon- te mais amplo; mas era também falseado em maior ou menor medida pelo préprio privilégio. A argumentacao sobre o privilé gio (nao s6 no Lager!) € delicada, ¢ tentarei desenvolvé-la mais adiante com a maxima objetividade possivel: mencionarei aqui ionciros u somente 0 fato de que os privilegiados por exceléncia, ou scja, aqueles que obtiveram o privilégio submetendo-se & autoridade do campo, nao testemunharam em absoluto, por motives dbvios, ow entio deixaram testemunhos lacunosos, distorcidos ou total- mente falsos, Os melhores historiadores dos Lager. assim, surgi- ram entre os pouqufssimos que tiveram a habilidade e a fortuna de alcancar um observatorio privilegiado sem se dobrarem a compromissos, bem como a capacidade de narrar tudo 0 que viram, sofreram e fizeram com a humildade do bom cronista, ou seja, considerando a complexidade do fendmeno Lager e a varie- dade dos destinos humanos que af se registrava. Estava na légi- ca das coisas que estes historiadores fossem quase todos prisio- neiros politicos: € isto porque os Lager eram um fendmeno politico; porque os presos politicos, muito mais do que os judeus © do que 0s criminosos (eram estas, como se sabe, as trés cate~ gorias principais de prisionciros), podiam dispor de um substra- to cultural que Ihes permitia interpretar os fatos a que assistiam; porque, justamente na qualidade de ex-combatentes, ou ainda de combatentes antifascistas, se davam conta de que um teste- munho era um ato de guerra contra o fascismo; porque tinham acesso mais facil aos dados estatisticos; e, enfim, porque muitas vezes, além de desempenharem fungdes importantes nos Lager, ram membros das organizagies secretas de defesa, Pelo menos nos tiltimos anos, suas condigdes de vida eram toleraveis, permi- tindo-Ihes, por exemplo, escrever e conservar anotagies; coisa que nao era imaginAvel para as judens e ai tinham interesse em fazer. Por todos os motivos aqui expostos, a verdade sobre os Lager yeio & luz através de um caminho longo e de uma porta estrei- ta, € muitos aspectos do univers concentracionério ainda nao foram aprofundados. Ja transcorreram mais de quarenta anos desde a libertagao dos Lager nazistas; este considerdvel intervalo suscitou, em termos de esclarecimento, efeitos diferenciados, que buscarei arrolar. Houve, em primeiro lugar, a decantagao, processo desejavel € normal, gragas a0 qual os fatos hist6ricos s6 adquirem suas 15 linhas ¢ sua perspectiva alguns decénios apés sua concluséo. No fim da Segunda Guerra Mundial, os dados quantitativos sobre as deportagées ¢ sobre os massacres nazistas, nos Lager € em outros lugares, nao estavam disponiveis, nem era facil entender seu aleance ¢ especificidade, Somente ha poucos anos se veio a com- preender que o massacre nazista foi tremendamente “exemplar” € que, se um outro pior nao acontecer nos préximos anos, ele serd lembrado como o fato central, como a mancha do século xx. Num sentido contrério, o decorrer do tempo esta provocan- do outros efeitos historicamente negatives. A maior parte das testemunhas, de defesa e de acusacao, j4 desapareceram, ¢ aque- les que restam ¢ ainda (superando seus remorsos ou entdo suas feridas) concordam em testemunhar, dispdem de lembrangas cada vez mais desfocadas ¢ estilizadas; freqiientemente, sem que © saibam, lembrangas influenciadas por noticias havidas mais, tarde, por leituras ou por narracies alheias. Em alguns casos, naturalmente, a desmeméria ¢ simulada, mas os muitos anos transcorridos Ihe dao crédito, mesmo em juizo: os “nao sei” ou 5 “nao sabia", proferidos hoje por muitos alemaes, ndo mais escandalizam, ao paso que escandalizavam, ou deviam esean dalizar, quando os fatos eram recentes Por uma outra estilizagao somos responsdveis nés mesmos, nos sobreviventes, ou, mais precisamente, aqueles entre nés que aceitaram viver sua condigio de sobreviventes do modo mais simples e menos critico. Nao € certo que as ceriménias ¢ as cele bragdes. os monumentas e as handeiras sejam sempre ¢ par toda parte deploravels, Talvez seja indispensdvel uma certa dose de retorica para que dure a meméria, Era verdade no tempo de Fos- colo ¢ € verdade ainda hoje que os sepuleros, “as urnas dos for- tes", predispdem os espiritos a coisas sublimes ou, pelo menos, conservam a meméria dos feitos passados; mas ¢ preciso ter cau tela com as simplificagdes excessivas. Toda vitima deve ser la mentada c todo sobrevivente deve ser ajudado € visto com com- paixdo, mas nem todos os seus comportamentos devem ser propostos como exemplo. 0 interior dos Lager era um microcos- mo intrincado e estratificado; a “zona einzenta” da qual falarei mais adiante, aquela dos prisioneiros que em alguma medida, le talvez com boa intengao, colaboraram com a autoridade, nao era ténue, constituindo, antes, um fendmeno de fundamental im- portancia para 0 historiador, 0 psicdlogo e o socidlogo. Nao ha prisioneiro que nao o recorde, ¢ que ndo recorde seu espanto de entio: as primeiras ameacas, os primeiros insultos, os primeiros golpes nao vinham dos $$, mas de outros prisioneiros, de “cole- gas’, daqueles misteriosos personagens que também vestiam 0 mesmo uniforme de listras recém-vestido pelos novatos. Este livro pretende contribuir para 0 esclarecimento de al- guns aspectos do fendmeno Lager que ainda so obscuros, Pro- poe-se também um fim mais ambicioso: pretende responder a pergunta mais urgente, & pergunta que angustia todos aqueles que tiveram oportunidade de ler nossas narrativas: em que me- dida 0 mundo concentracionario morreu € ndo retornaré mai como a escravidao ¢ 0 cédigo dos duclos? Em que medida retor- nou ou esta retornando? Que pode fazer cada um de nds para que, neste mundo pleno de ameagas, pelo menos esta ameaga seja anulada? Nao tive intengdo, nem seria capaz, de fazer uma obra de historiador, isto é, de examinar exaustivamente as fontes. Limi- tci-me quase exclusivamente aos Lager nacional-socialistas, por que s6 destes tive experiéneia direta: deles tive também uma grande experiéncia indireta, através dos livros lidos, das narrati- vas ouvidas ¢ dos encontros com os leitores de meus primeiros dois livros, Além disto, até o momento em que escrevo, € no obstante o horror de Hiroshima c Nagasaki, a vergonha dos Gulags, a inutile sangrenta campanha do Vietna, 0 autogenoci- dio cambojano, os desaparecidos na Argentina e as muitas guer- ras atrozes ¢ esttipidas a que em seguida assistimos, o sistema concentraciondrio nazista permanece ainda um unicum, em ter mos quantitativos ¢ qualitativos. Em nenhum outro tempo e lu gar se assistiu a um fendmeno tao imprevisto e tio complexo: jamais tantas vidas humanas foram eliminadas num tempo to breve, e com uma tao hicida combinaggo de engenho tecnol6gi- co, de fanatismo ¢ de crucidade. Ninguém absolve os conquista dores espanhdis pelos massacres por eles perpetrados na Améri- a durante todo 0 século xvi. Parece que provocaram a morte de pelo menos sessenta milhdes de indios; mas agiam por vontade propria, sem ou contra as diretrizes de seu governo; diluiram seus crimes, na verdade muito pouco “planejades”, por um arco de mais de cem anos; ¢ foram ajudados pelas epidemias que involuntariamente trouxeram consigo. B, por fim, nao tinhamos tentado nos livrar disso, alegando que eram “coisas de outros tempos”? 1s | | A MEMORIA DA OFENSA A meméria humana é um instrumento maravilhoso, mas falaz. Esta é uma verdade gasta, conhecida nao 36 pelos psicdto- gos, mas também por qualquer um que tenha prestado atengéo 20 comportamento de quem 0 rodeia, ou a seu préprio compor- tamento. As recordagdes que jazem em nés nao estao inscritas na pedra; nao s6 tendem a apagar-se com 0s anos, mas muitas vezes se modificam ou mesmo aumentam, incorporando elementos estranhos. Sabem-no bem os magistrados: quase nunca sucede que duas testemunhas oculares do mesmo fato 0 descrevam do mesmo modo € com as mesmas palavras, ainda que o fato seja recente € nenhum dos dois tenha interesse em deformé-lo. Esta escassa confiabilidade de nossas recordagdes $6 serd explicada de modo satisfatério quando soubermos em qual linguagem, em qual alfabeto elas sao escritas, sobre qual material, com qual instrumento: ainda hoje, € uma meta de que estamos longe. Conhecem-se alguns mecanismos que falsificam a meméria em condigdes particulares: os traumas, no apenas os cerebrais; a interferéncia de outras recordagbes “concorrentes”; estados anor mais da consciéncia; represses; recalques. Todavia, mesmo em condigdes normais desenrola-se uma lenta degradagio, um ofus- camento dos contornos, um esquecimento por assim dizer natu- ral, a que poucas recordagdes resister. £ provavel que aqui se w possa reconhecer uma das grandes forgas da natureza, aquela mesma que degrada a ordem em desordem, a juventude em velhice ¢ apaga a vida com a morte. E certo que 0 exercicio (neste caso, a evocacao freqiiente) mantém a recordagao fresca € viva, assim como se mantém eficiente um miisculo exercitado muitas veres; mas é também verdade que uma recordagéo evocada com excessiva freqiiéncia, © expressa em forma narrativa, tende a fixar-se num esterestipo, numa forma aprovada pela experién- Gia, cristalizada, aperieigoada, ataviada, que se instala no lugar da recordagio no trabalhada € cresce a sua custa, Quero examinar aqui as recordagdes de experiéncias extre- mas, de ofensas sofridas ou infligidas. Neste caso atuam todos ou quase todos os fatores que podem obliterar ou deformar 0 registro mneménico: a recordagao de um trauma, sofrido ow in- fligido, é também traumiética, porque evocé-la déi ou pelo me nos perturba: quem foi ferido tende a cancelar a recordagao para nao renovar a dor; quem feriu expulsa a recordagao até as camadas profundas para dela se livrar, para atenuar seu senti- mento de culpa Aqui, como em outros fenémenos, encontramo-nos diante de uma analogia paradoxal entre vitima ¢ opressor, ¢ importa ser claro: os dois esto na mesma armaditha, mas é 0 pressor, € s6 ele, quem a preparou e fez disparar, e, se sofre com isto, € justo que sofra; ¢ € iniquo que com isto sofra a vitima, como efetiva mente sofre, mesmo numa distancia de decénios, Mais uma vez se deve constatar, com pesar, que a ofensa é insandvel: arrasta se no tempo, € as Erinias, em quem € preciso também crer, nao atribulam s6 0 atormentador (se € que 0 atribulam, ajudadas ou nao pela punigao humana), mas perpetuam a obra deste, negan- do a paz ao atormentado. Nao se Iéem sem espanto as palavras escritas por Jean Améry, o fil6sofo ausiriaco torturado pela Ges- tapo por militar na resisténcia belga e depois deportado para Auschwitz por ser judew Quem foi tornurado permanece torturado. (..) Quem sofreu o tormento nao poderd mais ambientar-se no mundo, a miséria do aniquilamento jamais se extingue, A contian. 20 ca na humanidade, jé abalada pelo primeiro tapa no rosto, demo: lida posteriormente pela tortura, nao se readquite mais Para ele, a tortura foi uma morte interminavel: Améry, sobre quem voltarei a falar no capitulo sexto, se matou em 1978, Nao queremos confusdes, freudismos vulgares, morbosida- de, indulgéncia. 0 opressor continua como tal, tanto quanto a vitima: nao séo intercambiaveis, 0 primeiro deve ser punido e execrado (mas, se possivel. compreendido}, a segunda deve ser Jamentada e ajudada; mas ambos, em face da indecéncia do fato que foi irrevogavelmente cometido, tm necessidade de reftigio e de defesa, indo instintivamente em busca disso. Nao todos, mas a maioria; e com freqiténcia por toda a sua vida J4 dispomos de intimeras confissbes, depoimentos, admis- sdes por parte dos opressores (nao falo 56 dos nacional-socialis- tas alemaes, mas de todos aqueles que cometeram delitos hor- rendos ¢ miiltiplos por obediéncia a uma disciplina): alguns prestados em juizo, outros no decorrer de entrevistas, outros ainda contidos em livros ou em memérias. A meu ver, sao docu- mentos de extrema importéncia, Em geral, pouco interessam as deserigdes das coisas vistas ¢ dos atos realizados: elas coincidem amplamente com aquilo que foi narrado pelas vitimas; muito ra~ ramente sdo contestadas — passaram em julgado ¢ ja fazem par- te da Historia. Muitas vezes séo dadas como sabidas. Sio muito mais importantes as motivagdes € as justificagdes: por que voce fez isso? Voc’ se dava conta de que cometia um delito? As respostas a essas duas perguntas, ou a outras anélogas, sdo muito semelhantes entre si, independentemente da perso- nalidade do interrogado, seja ele um profissional ambicioso € inteligente como Speer, um gélido fandtico como Fichmann, um funciondrio de visdo curta como Stangl, de Treblinka, € Hiss, de Auschwitz, ou uma besta obtusa como Boger ¢ Kaduk, invento- res de tortura. Expressas com formulagdes diversas, ¢ com maior ou menor insoléncia segundo o nivel mental ¢ cultural de quem fala, clas terminam por dizer substancialmente a mesma coisa fiz porque me mandaram; outros (meus superiores) cometeram ages piores que as minhas; dada a educagao que recebi ¢ dado 21 © ambiente em que vivi, nao podia fazer outta coisa; se nao 0 tivesse feito, outro agiria com maior dureza em meu lugar. Para quem [é estas justificagdes, 0 primeiro movimento é de asco: eles mentem, nao padem acreditar que se acredite neles, nao podem deixar de ver o desequilibrio entre suas desculpas ¢ a dimensao de dor e morte que provocaram. Mentem sabendo que mentem: esto de mé-fé Ora, todo aquele que tenha suliciente experiéncia das coi- sas humanas sabe que a distingéo (a oposigao, diria um lingitis~ ta) boa-fé/mé-fé é otimista ¢ iluminista, e 0 € ainda mais, e com muito mais razdo, se aplicada a homens como aqueles recém- nomeados. Pressupde uma clareza mental que € de pouicos € que mesmo estes poucos perdem imediatamente quando, por um motivo qualquer, a realidade passada ou presente neles provoca Ansia ou mal-estar. Nessas condigoes, existe decerto quem minta de modo consciente, falsificando friamente a prépria realidade, mas sio iniimeros aqueles que levantam Ancoras, afastam-se, momentaneamente ou para sempre, das recordagoes genuinas ¢ fabricam uma realidade conveniente. Para eles, 0 pasado pesa; experimentam repugnancia pelas coisas feitas ou sofridas € dem a substitué-las por outras. A substituigéo pode comegar em plena consciéncia, com um cenério inventado, mendaz, restau- rado, mas menos penoso do que o real: repetindo sua descrigio, para outros mas também para si mesmo, a distingdo entre ver- dadeiro ¢ falso perde progressivamente suas linhas, € 0 homem termina por acreditar plenamente na narrativa que fez tao fre- giientemente e que ainda continua a fazer, podando ¢ retocando aqui € ali os detalhes menos plausiveis, ou incongruentes entre si, ou ainda incompativeis com 0 quadro dos acontecimentos sabidos: a mé-f6 inicial tornou-se boa-fé. A passagem silenciosa da mentira para o auto-engano é itil: quem mente de boa- mente melhor, desempenha melhor seu papel, adquire mais fa- cilmente a confianga do juiz, do historiador, do leitor, da mulher, dos filhos, Quanto mais se afastam os eventos, mais se completa € aper- feigoa a construgao da verdade de conveniéncia. Acredito que 36 através desse mecanismo mental se possam interpretar, por 22 exemplo, as declaragies feitas a L’Express, em 1978, por Louis Darquier de Pellepoix, ex-comissério encarregado das questes, judaicas do governo de Vichy por volta de 1942, e, como tal, res- ponsavel pessoalmente pela deportagao de setenta mil judeus. Darquier nega tudo: as fotografias das pilhas de cadaveres sao montagens; as estatisticas dos milhoes de mortos foram fabrica- das pelos judeus, sempre avidos de publicidade, de comiseragao € de indenizagées; talvez tenha havido deportagbes (ser-lhe-ia dificil contesté-las: sua assinatura esté aposta em muitos olicios que dispdem sobre as préprias deportagies, inclusive de erian- as), mas ele ndo sabia para onde nem com qual desfecho; em. Auschwitz, havia decerto cdmaras de gés, mas s6 serviam para matar piolhos e, de resto (note-se a coeréncia!), foram constru das com objetivo de propaganda apés 0 fim da guerra. Nao pre- tendo justificar esse homem vil ¢ esttipido, e me déi saber que viveu por longo tempo sem problemas na Espanha, mas me parece poder nele detectar 0 caso tipico de quem, acostumado a mentir publicamente, termina por mentir também privadamen- te, inclusive a si mesmo, ¢ por edificar uma verdade confortével que Ihe permite viver em paz. Manter separadas a boa ¢ a mé-fé € custoso: requer uma profunda sinceridade consigo mesmo, exige um esforgo continuo, intelectual e moral. Como se pode pretender esse esforco por parte de homens como Darquier? Quando se Iéem as declaragées feitas por Fichmann duran- te o proceso de Jerusalém, bem como as de Rudolf Héss (0 pe- ntiltimo comandante de Auschwitz, o inventor das cdmaras com Acido cianidrico) em sua autobiografia, nelas se reconhece um. processo de elaboracio do pasado mais sutil do que aquele ora mencionado. Em. substincia, ambos se defenderam do modo dlassico dos sequazes nazistas, ou melhor, de todos os sequazes: fomos educados para a obediéncia absoluta, a hierarquia, o na Gionalismo; fomos embriagados de slogans, encharcados de ceri ménias € manifestagdes; ensinaram-nos que a tinica justiga era aquela que servia a nosso povo, e a tinica verdade eram as pala- vras do Chefe. 0 que queriam de nés? Como podem pretender de nés, depois de tudo, um comportamento diferente daquele que foi 0 nosso € o de todos os que eram como nés? Fomos exe- 2 cutores diligentes ¢, por nossa diligéncia, fomos louvados e pro- movidos. As decisées nao foram nossas, porque o regime no qual crescemos nao nos concedia decisdes autonomas: outros decidi- ram por nés, nem podia ser diferente, porque nos fora tolhida a capacidade de decidir. Nao s6 nos fora proibido decidir, mas haviamo-nos tornado incapazes para tanto. Por isto, nde somos responsaveis ¢ ndo podemos ser punidos. Ainda que projetada no contexto das chaminés de Birke- hau, essa argumeniagio no pode ser tomada como fruto de pura imprudéncia. A pressdo que um modemo Estado totalité- rio pode exercer sobre o individuo é tremenda. Suas armas sao substancialmente trés: a propaganda direta ou dissimulada pela educagao, pela instrugao, pela cultura popular; o impedimento ‘posto ao pluralismo das informagdes; 0 terror. Todavia, nao licito admitir que essa pressdo seja irresistivel, muito menos no breve perfodo dos doze anos do Terceiro Reich: nas afirmagies € nas desculpas de homens com gravissimas responsabilidades, como Hiss ¢ Eichmann, é patente o exagero e, mais ainda, a ma- nipulagdo da recordagdo. Ambos nasceram e se educaram muito antes que 0 Reich se tornasse verdadeiramente “totalitario", & sua adesdo havia sido uma escotha, ditada mais pelo oportunis mo do que pelo entusiasmo. A reelaboragao de seu passado foi obra posterior, lenta € (provavelmente) nao metédica. Pergun- tar se tenha sido feita de boa ou mé-fé é ingénuo. Também eles, to fortes diante da dor alheia, quando 0 destino os colocou diante dos juizes. diante da morte que mereceram. construiram um pasado de conveniéncia e terminaram por acreditar nele: de modo especial Hiss, que ndo era um homem sutil. Como se depreende de seu texto, era antes um personagem tao pouco propenso ao autocontrole ¢ a introspecgéo que nao se dé conta de confirmar seu grosseiro anti-semitismo no momento mesmo em que 0 nega e 0 renega, bem como nao percebe quia viscoso € seu auto-retrato de bom funcionario, pai ¢ marido, A propésito destas reconstrugdes do pasado (mas nao sé dessas: € uma observagio que vale pata todas as memérias), deve-se observar que a distorcdo dos fatos muitas vezes é li- mitada pela objetividade dos préprios fatos, em torno dos quais 24 existem testemunhos de terceiros, documentos, “corpos de deli- to", contextos historicamente definidos. E geralmente dificil negar que se tenha cometido uma dada acao, ou que tal ago tenha ocorrido; a0 contrério, € facilimo alterar as motivagoes que nos induzem a uma agao, assim como paixdes que em nbs acompanharam a ago mesma. Esta € matéria extremamente fluida, sujeita a deformar-se sob forgas até muito débeis; para as perguntas — “por que vocé fez isso?” ou: “ao fazer, em que pen sava?” — no existem respostas confidveis, porque os estados de animo séo voléteis por natureza, ¢ ainda mais volatil é€ sua meméria. ‘Como caso limite da deformagéo da recordago de um crime cometido, existe sua supressio, Também aqui o limite entre boa e ma-{é pode ser vago; por trés dos “nao sei” € dos “no me lem- bro” que se ouvem nos tribunais, as vezes ha 0 propésito defini do de mentir, mas outras vezes se trata de uma mentira fossil zada, enrijecida numa f6rmula. 0 portador da recordagio qui tomar-se um nao-portador € conseguiu: & forga de negar sua existéncia, expulsou de si a recordagao nociva como se expele uma excrecio ou um parasita. Os advogados de defesa bem sabem que 0 vazio de memoria ou a verdade putativa que suge- rem a scus clientes tendem a se tornar esquecimento e verdade efetiva. Nao é preciso penetrar na patologia mental para encon- trar exemplares humanos cujas alirmagies nos deixam perple- xos: sao certamente falsas, mas nao conseguimos distinguir se 0 sujeito sabe ou ndo que mente. Supondo por absurdo que o mentiroso se tome veraz por um instante, cle mesmo nao sabe~ ria responder ao dilema; no ato em que mente, é um ator total- mente envolvido com seu personagem, nao se pode mais distin- gui-los. E um exemplo patente disso, nos dias em que escrevo, 0 comportamento do turco Ali Agca no tribunal, autor do atenta- do contra Joao Paulo tt, 0 melhor modo para defender-se da invasio de memérias dificeis é impedir seu ingresso, estender um cordio sanitario ao longo do limite. £ mais f4cil vetar o ingresso a uma recordagio do que dela se livrar depois que foi registrada, Para isso, em subs- tancia, serviam muitos dos artificios imaginados pelos comandos 25 nazistas a fim de proteger a consciéncia dos responsaveis pelos trabalhos sujos ¢ de assegurar seus servigos, despreziveis inclu: Ve para 0s sicdrios mais endurecidos. Aos Emsatzkonmmandas, que nas retaguardas da frente russa metralhavam os civis a beira das valas comuns que as proprias vitimas eram obrigadas a cavar, cra distribuido éleool a vontade, de modo que o massacre fosse en- coberto pela embriaguez. Os eufemismos bem conhecidos (“s0- lugao final”, “tratamento especial”, 0 proprio termo Einsatzkom- ‘mando recém-citado, que literalmente significava “unidade de pronta wiilizagio”, mas mascarava uma realidade espantosa) ndo serviam s6 para iludir as vitimas ¢ prevenir suas reagies de defe sa: também valiam, nos limites do possivel, para impedir que a opinido publica, bem como 0s préprios destacamentos das forgas armadas nao diretamente implicados, tivessem conhecimento do que ocorria em todos 0s territ6rios ocupados pelo Terceiro Reich. De resto, toda a historia do curto “Reich Milenar” pode ser relida como guerta contra a memoria, falsificagao orwelliana da meméria, falsificagio da realidade, negagao da realidade, até o ponto de fuga definitiva da realidade mesma. Todas as biografias de Hitler, diserepantes quanto a interpretagao a ser dada a vida desse homem tao dificil de classificar, concordam sobre a fuga da realidade que assinalou seus tiltimos anos, sobretudo a partir do primeiro inverno russo, Tinha proibido ¢ negado aos stiditos o acesso verdade, conspurcando sua moral ¢ sua meméria; mas, em medida progressivamente crescente até a parandia do Buatker, barrara o caminho da verdade também para si mesmo, Como todos os jogadores de azar, construfra em torno de si um cend- rio tecido de mentiras supersticiosas, no qual terminara por rer com a mesma fé fandtica que pretendia de todo alemao. Seu co- lapso nao foi s6 uma salvacéo para o género humano, mas tamn- bém uma demonstracao do prego que se paga quando se cons- purea a verdade. Também no campo bem mais amplo das vitimas se observa uma derivagio da meméria, mas aqui, evidentemente, falta o dolo. Quem recebe uma injustiga ou uma ofensa no tem neces- sidade de elaborar mentiras para se desculpar de uma culpa que nao tem (embora, por um mecanismo paradoxal que menciona- 26 remos, possa acontecer que experimente vergonha); mas isto ndo exclui que mesmo suas recordagies possam ser alteradas. Obser- vou-se, por exemplo, que muitos sobreviventes de guerras ou de outras experiéncias complexas € trauméticas tendem a filtrar inconscientemente suas recordagdes: evocando-as entre eles mes- mos ou narrando-as a terceiros, preferem deter-se nas tréguas, nos momentos de alivio, nos interliidios grotescos, estranhos ou relaxados, esquivando-se dos episédios mais dolorosos. Estes tiltimos nao sao trazidos de bom grado do magma da meméria €, por isto, tendem a enevoar-se com 0 tempo, a perder seus contornos. £ psicologicamente digno de crédito 0 comporiamen- to do Conde Ugolino, que experimenta um retraimento ao nar- rar a Dante sua morte terrivel, induzindo-se a fazé-lo nao por complacéncia, mas s6 por vinganga pdstuma contra scu eterno inimigo. Quando dizemos: “jamais esquecerel isto”, referindo- nos a um evento qualquer que nos feriu profundamente, mas que no deixou em nés ou em torno de nés uma marca mate- rial ou uma auséncia permanente, somos precipitados: mesmo na vida “civil”, esquecemos de bom grado os particulares de uma doenga grave de que nos curamos, ou de uma operagio cintrgi- ca bem-sucedida. Com 0 objetivo de defesa, a realidade pode ser distorcida nao s6 na recordacao, mas no ato mesmo em que se verifica, Durante todo © ano de meu encarceramento em Auschwitz, tive como amigo fraterno Alberto D.: era um jovem robusto e cora~ joso, mais perspicaz. do que a média, e, por isso, bastante critico ‘em relagao aos tantos que fabricavam, para ministrarem-se rec! procamente, ilusdes consolatérias (“a guerra terminaré em duas semanas’, “nao haverd mais selegbes”, “os ingleses desembarca~ ram na Grécia’, “os poloneses da Resisténcia esto para libertar ‘0 campo”, ¢ assim por diante: cram boatos que corriam quase todo dia, pontualmente desmentidos pela realidade). Alberto tinha sido deportado junto com o pai, de quarenta ¢ cinco anos. Na iminéncia da grande selegéo de outubro de 1944, Alberto € ‘eu tinhamos comentado 0 fato com terror, célera impotente, rebelio, resignac2o, mas sem buscar reftigio em verdades con- solatérias. Veio a selegao, 0 “velho” pai de Alberto foi escolhido 27 para o gas, e Alberto mudou em poucas horas. Havia ouvido noticias que Ihe pareciam dignas de fé: os russos estavam perto, 5 alemaes nao mais ousatiam persistir no exterminio, aquela nao cra uma selegdo como as outras, nao era para as cémaras de 4s, fora feita para escolher os prisioneiros debilitados mas recu- peraveis, como seu pai, exatamente, que estava muito enfraque- cido mas nao enfermo; ao contrério, ele sabia até para onde os eriam mandado, para Jaworzo, nao muito longe, para um campo especial destinado a convalescentes capazes s6 de traba- hos leves. Naturalmente, o pai no mais foi visto, € 0 préprio Alberto desapareceu durante a marcha de evacuagio do campo, em janeiro de 1945. Estranhamente, sem saber do comportamento de Alberto, também seus parentes, que tinham ficado escondi- dos na Italia evitando a captura, se conduziram como ele, recu- sando a verdade insuportavel € construindo uma outra. Assim que fui repatriado, julguei um dever ir logo a cidade de Alberto, para expor & mie ¢ ao irmao tudo o que sabia. Fui recebido com afetuosa cortesia, mas, logo depois de comecar minha narrativa, a mae me suplicou que parasse: ela j4 sabia tudo, pelo menos no tocante a Alberto, ¢ era imitil repetir-lhe as costumeiras historias de horror. Ela sabia que o filho, s6 ele, tinha conseguido afastar- se da coluna sem que 0s SS 0 metralhassem, tinha se escondido na floresta ¢ estava ileso nas maos dos russos: ainda nao pudera mandar noticias, coisa que logo faria, ela estava certa; ¢ agora, que por favor eu mudasse de assunto e Ihe narrasse como eu. mesmo havia sobrevivide, Um ano depois passei casualmente por aquela cidade e visitei de novo a familia. A verdade mudara levemente: Alberto estava numa clinica soviética, estava bem, mas tinha perdido a memoria, nao recordava nem mesmo seu nome; mas comegara a melhorar € retornaria logo, ela o sabia de fonte segura. Alberto jamais retornou. Passaram-se mais de quarenta anos; nao mais tive a coragem de voltar e contrapor minha verdade dolorosa a “verdade” consolatéria que, ajudando-se mutuamente, 65 familiares de Alberto construiram 28 Uma defesa é necessaria. Este mesmo livro esté embebido de meméria: ainda por cima, de uma meméria distante. Serve-se portanto, de uma fonte suspeita, ¢ deve ser defendido cantra si mesmo. Dai que contenha mais considerages do que lembran- gas, se detém de boa vontade mais no estado das coisas tal como E hoje do que na crénica retrospectiva. Além disso, os dados que contém esto fortemente escorados pela imponente literatura que veio a se formar sobre o tema do homem desaparecido (ou *salvo"}, inclusive com a colaboragio, voluntéria ou nao, dos culpados de entao; e neste corpus a concordancia € abundante, a discordancia é minima. Quanto a minhas recordagdes pessoais € aos poucos epissdios inéditos que citei € citarei, examinei-os todos com cuidado: 0 tempo os desbotow um pouco, mas ndo destoam do contexto e me parecem a salvo das derivagies que descrevi ll | A zona CINZENTA Fomos capazes, nds sobreviventes, de compreender ¢ de fazer compreender nossa experiencia? Aquilo que comumente entendemos por “compreender” coincide com “simplificar*: sem uma profunda simplificagéo, 0 mundo a nosso redor seria um cmaranhado infinito ¢ indefinido, que desafiaria nossa capacidade de nos orientar ¢ decidir nossas ages. Em suma, somos obri gados a reduzir 0 cognoscivel a um esquema: tendem a este ob- jetivo os admiraveis instrumentos que construimos no curso da evolugdo € que séo especificos do género humano, a linguagem € 0 pensamento conceitual. ‘Tendemos a simplificar inclusive a hist6ria; mas nem sempre © esquema no qual se ordenam os fatos se pode determinar de modo univoco, € pode ocorrer, pois, que historiadores diferentes compreendam e construam a histéria de modos incompativeis entre si; todavia, é ta forte em nés — talvez por razdes que remontam a nossas origens de animais sociais — a exigéncia de dividir 0 campo entre “nds” e “eles’, que este esquema, a bipar- {igo amigo-inimigo, prevalece sobre todos 0s outros. A historia popular, ¢ também a historia tal como € tradicionalmente ensi- nada nas escolas, se ressentem dessa tendéncia maniqueista que evita os melos-tons ¢ a complexidade: sao propensas a reduzir a torrente dos acontecimentos humanos aos conflitos, € 0s confli- a tos a duelos, nds € eles, os atenienses ¢ os espartanos, os roma- nos € 0s cartagineses, Decerto, este € 0 motivo da enorme popu- laridade dos esportes espetaculares, como o futebol, o beiscbol € © pugilismo, nos quais os contendores sfo dois times ou dois individuos, bem distintos € identificaveis, e no fim da partida haveré os derrotados ¢ os vencedores. Se o resultado € 0 empa- te, 0 espectador se sente fraudado ¢ desiludido: num nivel mais ou menos inconsciente, ansiava por vencedores ¢ perdedores, lentificando-os respectivamente com os bons ¢ os maus, por- {que so os bons que devem levar a melhor, sendo © mundo esta- ria de pernas para o ar. Esse desejo de simplificagao & justificado, a simplificagao nem sempre o €, £ uma hipétese de trabalho, titil na medida em que seja reconhecida como tal nao confundida com a realidade; a maior parte dos fendmenos histéricos € naturais nao é simples ou, pelo menos, nao tem a simplicidade que nos agradaria. Ora, nao era simples a rede das relagdes humanas no interior dos Lager: nao se podia reduzi-la a dois blocos, o das vitimas e 0 dos opressores. Em quem Ié (ou escreve) hoje a historia dos Lager € evidente a tendéncia, ou melhor, a necessidade de dividir o bem e 0 mal, de poder assumir um lado, de repetir 0 gesto do Cristo no Juizo Universal: aqui os justos, 1é réprobos. Os jovens, sobre. tudo, pedem clareza, 0 corte nitido; sendo eseassa sua experién- cia do mundo, eles nao amam a ambigitidade. Sua expectativa, de resto, reproduz com exatido aquela dos recém-chegados ao Lager, jovens ou ndo: todos, com excegao de quem ja tivesse atravessado uma experiéncia andloga, esperavam encontrar um mundo terrivel mas decifrével, de acordo com aquele modelo simples que atavicamente trazemos conosco, “nds” dentro ¢ 0 inimigo fora, separados por um limite nitido, geogratico. Ao contratio, 0 ingresso no Lager constitu‘a um choque em razao da surpresa que implicava. 0 mundo no qual se precipita va era decerto terrivel, mas também indecifravel: nao era confor- me a nenhum modelo, 0 inimigo estava ao redor mas também dentro, 0 “n6s” perdia seus limites, os contendores nao cram dois, nao se distinguia uma fronteira mas muitas e confusas, talvez intimeras, separando cada um do outro, Entrava-se esperando 32 pelo menos a solidariedade dos companheiros de desventura, mas 9s aliados esperados, salvo casos especiais, nao existiam; exis- tiam, ao contrério, mil ménadas impermeaveis ¢, entre elas, uma uta desesperada, oculta e continua. Esta revelagao brusca, que se manifestava desde as primeiras horas de cativeiro, muitas vezes sob a forma imediata de uma agressio concéntrica por parte daqueles em que se esperava encontrar os futuros aliadios, era tao dura que logo derrubava a capacidade de resistir. Para muitos foi mortal, indiretamente ou até diretamente: é dificil defender-se de um golpe para 0 qual nao se esta preparado, Nessa agressdo se podem distinguir diversos aspectos. & pre- ciso recordar que o sistema concentracionario, desde suas origens (que coincidem com a subida do nazismo ao poder na Alema- nha), tinha o objetivo primario de romper a capacidade de resis téncia dos adversérios: para a diregio do campo, 0 recém-chega do era um adversario por definigao, qualquer que fosse a etiqueta que Ihe tivesse sido afixada, ¢ devia ser demolido imediatamente para que nao se tomasse um exemplo ou um germe de resistén- cia organizada. Neste ponto os SS tinham idéias claras ¢, sob este aspecto, deve-se interpretar todo o sinistro ritual, diferente de Lager para Lager mas tinico na substancia, que acompanhava 0 ingresso; os chutes e os murros desde logo, muitas vezes no rosto; a orgia de ordens gritadas com célera auténtica ou simulada; 0 desnuudamento total; a raspagem dos cabelos: a vestimenta de far- rapos. dificil dizer se todas essas particularidades foram estabe- lecidas por algum especialista ou aperfeigoadas metodicamente com base na experiéneia, mas por certo eram deliberadas € nao casuais: uma direcdo havia, e era aparatosa. Mas para o ritual do ingresso e o colapso moral que ele pro- piciava contribufam também, mais ou menos conscientemente, 05 outros componentes do mundo concentraciondrio; os prisio- neiros simples e os privilegiados. Raramente sucedia que 0 recém- chegado fosse acolhido, no digo como um amigo, mas pelo menos como um companheiro de infortinio; na maior parte dos casos, os velhos (¢ se virava velho em trés ou quatro meses: a transformagio era répida!) manifestavam aborrecimento ou mesmo hostilidade. © “novato” (Zugang: observe-se que em ale- 3 mao é um termo abstrato, administrative; signilica “ingresso”, “entrada") era invejado porque parecia trazer ainda consigo 0 cheiro de sua casa, ¢ era uma inveja absurda, jé que, com feito, se sofria muito mais nos primeiros dias de cativeiro do que depois, quando o costume, por uma parte, € a experiéncia, por outra, permitiam que se construissem defesas. Era submetido a zombarias ¢ a brincadeiras cruéis, como acontece em todas as comunidades com os “conscritos” e os “calouros”, bem como nas ceriménias de iniciagao dos povos primitivos: e nao hé diivida de que a vida no Lager comportava uma regressao, acarretava com- portamento — precisamente — primitivos. & provavel que a hostilidade para com o Zugang fosse subs- tancialmente motivada como todas as outras intolerancias, ou seja, consistisse numa tentativa inconsciente de consolidar 0 “nds” & custa dos “outros”, de criar, em suma, aquela solidari dade entre os oprimidos, cuja auséncia era fonte de sofrimento adicional, mesmo que nao percebida diretamente, Entrava em Jogo também a busca do prestigio, que em nossa sociedade pare- ce ser uma necessidade insuprimivel: a multidao desprezada dos velhos prisioneiros tendia a reconhecer no recém-chegado um alvo sobre o qual desafogar a humilhagéo, a encontrar a sua usta uma compensagio, a construir a suas expensas um indivi- duo de nivel mais baixo sobre o qual despejar 0 peso das ofen- sas recebidas do alto. No tocante aos prisioneios privilegiados, 0 rac complexo € até mais importante: a meu ver, é fundamental. £ ingenuo, absurdo € historicamente falso julgar que um sistema infernal, como 0 nacional-socialismo, santifique suas vitimas: a0 contrario, ele as degrada, assimila-as a si, ¢ isto tanto mais quan- to elas sejam disponiveis, ingénuas, carentes de uma estrutura politica ou moral. Muitos sinais indicam que parece ter chegado © tempo de explorar © espaco que separa (ndo s6 nos Lager na zistas!) as vitimas dos opressores, ¢ de fazé-lo com a mao mais, gil € © espirito menos turvo do que se fez, por exemplo, em alguns filmes. $6 uma ret6rica esquematica pode sustentar que aquele espago seja vazio: jamais 0 é, esté coalhado de figuras tor- es ou patéticas (as vezes possuem as duas qualidades ao mesmo M tempo), que é indispensdvel conhecer se quisermos conhecer a espécie humana, se quisermos saber defender nossas almas quan- do uma prova andloga se apresentar novamente, ou se somente quisermos nos dar conta daquilo que ocorre num grande estabe lecimento industrial. Os prisioneiros privilegiados eram minoritérios na popula- Go dos Lager, mas representam, ao contrério, uma forte maio- ria entre os sobreviventes; de fato, ainda que nao se leve em conta 0 cansago, 0s golpes, 0 frio, as doengas, deve-se lembrar que a raga alimentar era nitidamemte insuficiente até para o prisioneiro mais sébrio: gastas em dois ou trés meses as reservas fisiolégicas do organismo, a morte por fome, ou por doencas induzidas pela fome, era o destino normal do prisioneiro. Podia ser evitada apenas com um suplemento alimentar e, para obté lo, era preciso um privilégio, grande ou pequeno; em outras palavras, um jeito, actroyé ou conquistado, astuto ou violento, licito ou ilicito, de estar acima da norma ra, ndo se pode esquecer que a maior parte das recorda- Gdes dos sobreviventes, narradas ou escritas, comega assim: 0 choque contra a realidade concentracionéria coincide com a agres- sdo, ndo prevista € ndo compreendida, por parte de um inimigo novo € estranho, o prisioneiro-funciondrio, que, ao invés de the pegar a méo, tranqiiilizé-lo, ensinar-the 0 caminho, se arroja sobre voce gritando numa lingua desconhecida e Ihe golpeia o rosto, Ele quer domé-lo, quer apagar a centelha de dignidade que vocé talvez ainda conserve e que ele perdeu. Mas vocé esta- 4 perdido se esta sta dignidade o levar a reagir: esta é uma lei do escrita mas {érrea, o zurtickschlagen, a resposta na mesma moeda, € uma transgressao intolerdvel, que s6 pode ocorrer a uum “novato”, Quem a comete deve tomar-se um exemplo: outros funcionérios acorrem em defesa da ordem ameagada, ¢ 0 culpado é surrado com raiva e método, até ser domado ou mor- to. O privilégio, por definigdo, defende e protege o privilégio. Lembre-se de que o termo local, idiche e polonés, para indicar 0 privilégio, era protekoia, de evidente origem italiana ¢ latina; ¢ me foi narrada a hist6ria de um “novato” italiano, um militante dla Resistencia, jogado num Lager de trabalho com a etiqueta de 35 prisioneiro politico quando ainda estava no vigor de suas forgas. Fora maltratado durante a distribuigdo da sopa ¢ havia ousado dar um empurrao no funciondrio-distribuidor: acorreram os co- legas deste tiltimo, e 0 réu foi afogado exemplarmente com a cabega afundada na panela da prépria sopa. Aascensio dos privilegiados, nao 96 no Lager mas em todas as situagdes humanas, € um fendmeno angustiante mas inevité- vel: eles 56 ndo existem nas utopias. £ dever do homem justo declarar guetta a todo privilégio nao merecido, mas nao se deve esquecer que esta € uma guerra sem fim, Onde existe um poder exercido por poucos, ou por um 6, contra a maioria, o privilé- gio nasce e prolifera, inclusive contra a vontade do poder mes- ‘mo; mas € normal que 0 poder o tolere € encoraj nos ao Lager, que, no entanto, mesmo em sua versio soviética, pode bem servir como “laborat6rio": a classe hibrida dos pri- sioneiros-funciondrios constitui sua base e, simultaneamente, 0 ‘taco mais inquietante. E uma zona cinzenta, com contornos mal definidos, que ao mesmo tempo separa € une os campos dos senhores © dos escravos. Possui uma estrutura interna incri- velmente complicada ¢ abriga em si o suficiente para confundir nossa necessidade de julgar. A zona cinzenta da provekcja e da colaboragio nasce de nvil- tiplas raizes. Em primeiro lugar, a drea do poder, quanto mais estreita, tanto mais precisa de auxiliares externos; 0 nazismo dos liltimos anos no podia prescindir deles, resolvido como estava a manter sua ordem no interior da Europa subjugada ¢ a ali- mentar as trentes de guerra debilitadas pela resistencia militar crescente dos adversérios. Era indispensdvel buscar nos paises ocupados nao s6 mao-de-obra mas também forgas da ordem, delegados ¢ administradores do poder alemao, entao empenha- do em outros lugares até o ponto da exaustao. Nesta 4rea devem ser catalogados, com nuangas diferentes de peso € qualidade, Quisling na Noruega, 0 governo de Vichy na Franga, 0 Judenrat de Vars6via, a Repiiblica de Salo, bem camo os mercenérios ucranianos ¢ bélticos empregados em toda parte nas tarefas mais sujas jamais em combates), 0s Sonderkommandos, dos quais deveremos falar. Mas 0s colaboradores que proyém do campo 36 10 indignos de confianga por essén- gé-los adversario, os ex-inimigos, Ga: trafram uma vez € podem trair outra, Nao basta rele as tarefas marginais; o modo melhor de comprometé-los € car regd-los de crimes, mancha-los de sangue, expd-los tanto quan- to possivel: assim contraem com os mandantes 0 vinculo da Cumplicidade e nao mais podem voltar atras. Esse modo de agir € conhecido das associagées criminosas de todos os tempos © lugares, tem sido praticado pela Méfia desde sempre, e, entre outras coisas, € 56 0 que explica os excessos, de outra forma indecifraveis, do terrorismo italiano dos anos 1970. Em segundo lugar, € em contraste com uma certa estilizagéo hagiografica e ret6rica, quanto mais feroz a opressao, tanto mais se difunde entre os oprimidos a disponibilidade de colaboragéo com o poder. Também essa disponibilidade ¢ matizada por nuai cas e diferenciagies infinitas: terror, engodo ideol6gico, imitacdo barata do vencedor, ansia miope por um poder qualquer, mesmo que ridiculamente circunscrito no espago € no tempo, covardia, © até hicido célculo dirigido para escapar das regras e da ordem. imposta. Todos esses motivos, singularmente ou em combina- ‘Gao, foram operantes na origem da faixa cinzenta, cujos compo- nentes, em relagao aos néo-privilegiados, eram unidos pela von- tade de conservar € consolidar seu privilégio. Antes de discutir em separado os motives que induziram alguns prisioneiros a colaborar, em medida variada, com a auto- ridade do Lager, é preciso, contudo, afirmar com vigor que, diante de casos humanos como esses, é imprudente precipitar-se emitindo um juizo moral. Deve estar claro que a maxima culpa recai sobre o sistema, sobre a estrunura mesma do Estado totali- tario; 0 concurso no crime por parte dos colaboradores singula- res, grandes ¢ pequenos (jamais simpaticos, jamais transparen- tes!), € sempre dificil de avaliar. E um juizo que gostariamos de confiar somente a quem se achou em circunstancias andlogas ¢ teve oportunidade de verificar em si mesmo 0 que significa agit em circunstancias forgadas. Manzoni o sabia bem: “Os provoca- dores, os opressores, todos aqueles que, de um modo qualquer, fazem mal aos outros, sao réus nao somente do mal que come- tem, mas também da perversao a que conduzem o animo dos 7 oprimidos”. A condigio de vitima ndo exclui a culpa, ¢ esta com freqiiéncia & objetivamente grave, mas nao conheco tribunal humano ao qual atribuir sua avaliagao, Se dependesse de mim, se fosse obrigado a julgar, absolveria facilmente todos aqueles cujo concurso para o crime foi minimo ¢ sobre 0s quais a coagao foi maxima. Em torno de nés, prisio: neiros sem graduagio, fervilhavam os funcionérios de escalio in ferior. Constituiam uma fauna pitoresca: varredores, lavadores, guardas-noturnos, arrumadores de cama (que exploravam em beneficio préprio, e mintisculo, a mania alemé de beliches arru- mados meticulosamente), controladores de piolhos ¢ de sarnas, mensageiros, intérpretes, ajudantes dos ajudantes. Em geral, era pobres-diabos como nés, trabathando em horério integral como todos 0s outros, mas que, por um pouco de sopa a mais, se pres- tayam a executar essas ¢ outras fungies “tercidrias”: inécuas, as vezes iiteis, freqiientemente inventadas do nada, Raramente eram lentes, mas tendiam a desenvolver uma mentalidade tipica- mente corporativa ¢ a defender com energia seu “posto de traba- Iho” contra quem, de cima ou de baixo, tramasse insidias. Seu privilégio, que de resto comporiava um incomodo ¢ um cansago suplementares, Ihes valia pouco € nao os subtraia a disciplina € a0 sofrimento dos outros; sua esperanca de vida era substancial- mente igual aquela dos nao privilegiados. Eram rudes e insolen: tes, mas nao percebidos como inimigos. 0 juizo se torna mais delicado € mais diferenciado para aque- les que ocupavam posigdes de comando: os chefes (Kapos: 0 ter mo alemdo deriva diretamente do italiano, e a promincia trunca- da, introduzida pelos prisioneiros franceses, s6 se difundiu muitos anos depois, divulgada pelo filme homénimo de Pontecorvo & favorecida na Italia justamente pelo seu valor diferencial) das brigadas de trabalho, os chefes de alojamento, os escriturdrios, bem como 0 mundo (que eu entéo nem imaginava) dos prisio- neiros que desempenhavam atividades diversas, as vezes delica- dissimas, nos escritérios administrativos do campo, a Segao Po- litica (de fato, uma segio da Gestapo), 0 Servigo do Trabalho, as celas de punigéo. Alguns destes, gracas & sua habilidade ou fortuna, tiveram acesso as informagoes mais secretas dos respec- 38 tivos Lager, ¢, como Hermann Langbein em Auschwitz, Eugen Kogon em Buchenwald, ¢ Hans Marsalek em Mauthausen, tor- naram-se depois seus historiadores. Nao se sabe 0 que mais ad- mirar: se sua coragem pessoal ou sua astiicia, que Ihes permitiram ajudar concretamente seus companheiros de muitas maneiras, estudando atentamente os diferentes oficiais SS com os quais estavam em contato, ¢ intuindo quais deles podiam ser corrom- pidos, quais dissuadidos das decisdes mais cruéis, quais chanta- geados, quais enganados, quais atemorizados pela perspectiva de um rede rationem com o fim da guerra, Alguns entre eles— por exemplo, 0s trés citados — também eram membros de organi- zagoes secretas de defesa ¢, por isto, o poder de que dispunham gragas a suas fungdes era contrabalangado pelo perigo extre- mo que corriam, na qualidade de “resistentes” e de detentores de segredos. Os funciondrios ora descritos no eram em absoluto, ou cram 6 aparentemente, colaboradores, mas sim opositores en- cobertos, Nao era 0 caso da maior parte dos outros detentores de posiges de comando, que se revelaram exemplares humanos entre mediocres péssimos. Mais do que desgastar, 0 poder cor~ rompe: € seu poder, que era de natureza peculiar, corrompia ainda mais intensamente. © poder existe em todas as variedades da organizagao social humana, mais ou menos controlado, usurpado, investido a par- tir de cima ou reconhecido a partir de baixo, atribuido por méri- to, por solidariedade corporativa, por sangue ou por mecanismo censitanio: € verossimil que uma certa medida de dominio do homem sobre o homem esteja inscrita em nosso patriménio ge- nético de animais gregarios. Nao esté demonstrado que o poder seja intrinsecamente nocivo a coletividade. Mas o poder de que dispunham os {uncionérios dos quais se fala, inclusive os de es- calao inferior, como os Kapos das brigadas de trabalho, era subs- tancialmente ilimitado; ou melhor, & sua violéncia se impunha um limite inferior, no sentido de que eles eram punidos ou de: titufdos se nao se mostrassem suficientemente duros, mas ne- nhum Limite superior. Em outros termos, estavam liberados para cometer contra seus subordinados as piores atrocidades a titulo » de punigdo para qualquer transgresso, ou mesmo sem motivo algum: até 0 fim do ano de 1943, nao era raro que um prisionei- +o fosse assassinado a pancadas por um Kapo, sem que este tives~ se de temer qualquer sangao. $6 mais tarde, quando a caréncia de mao-de- pbra se tornou mais aguda, € que se introduziram algumas limitagées: os maus-tratos que os Kapos podiam infligir 05 prisioneiros nao deviam reduzir permanentemente sua capacidade de trabalho; mas jé entao se difundira a deformagao, € nem sempre a norma foi respeitada Reproduzia-se assim, dentro dos Lager, em escala menor mas com caracteristicas ampliadas, a estrutura hierarquica do Estado totalitétio, no qual todo o poder emana do alto € um controle de baixo para cima & quase impossivel. Mas esse “quase” é im- portante: jamais existiu um Estado que fosse realmente “totali tario” sob esse aspecto. Uma forma qualquer de reacao, retivo ao arbitrio total, jamais deixou de haver, nem no Terceiro Reich nem na Unio Soviética de Stalin: num como noutro caso, serviram como freio, em maior ou menor medida, a opi- nido piiblica, a magistratura, a imprensa estrangeira, as Igrejas, 6 sentimento de humanidade e justiga que dez ou vinte anos de Urania ndo conseguem eliminar. $6 dentro do Lager o controle 2 partir de baixo cra nulo, ¢ 0 poder dos pequenos sdtrapas era absoluto. F compreensivel que um poder de tal amplitude atrais- se com forga aquele tipo humano que 6 avido de poder; que a ele aspirassem também individuos de instintos moderados, atrai- dos pelas muitas vantagens materiais das fungdes; ¢ que tais individuos fossem fatalmente intoxicados pelo poder de que dis- punham, Quem se tornava Kapo? Mais uma vez é preciso distinguir. Em primeiro lugar, aqueles a quem a possibilidade era oferecida, 0 seja, os individuos nos quais 0 comandante do Lager ou seus delegados (que muitas vezes eram bons psicélogos) entreviam a potencialidade de colaborador: criminosos comuns egressos das prises, aos quais a carreira de esbirro oferecia uma excelente alternativa 8 detengio; prisioneiros politicos enfraquecidos por cinco ou dez anos de solrimentos ou, um modo ou de outro, moralmente debilitados; mais tarde, até judeus, que viam na 40 inico modo de migalha de autoridade que se thes oferecia escapar da “solugao final”, Mas muitos, como dissemos, aspira~ vam ao poder espontaneamente: buscavam-no os sédicos, por cerio nao numerosos mas muito temidos, uma vez que para cles a posigio de privilégio coincidia com a possibilidade de infligir 0s subordinados sofrimento ¢ humilhagao. Buscavam-no os frus- trados, € também isto € um trago que reproduz no microcosmo do Lager 0 macrocosmo da sociedade totalitéria: em ambos, fora da capacidade e do mérito, o poder é concedido generosamemte a quem esteja disposto a reverenciar a autoridade hierérquica, conseguindo assim uma promogao social inalcangavel de outro modo. Buscavam-no, enfim, muitos entre os oprimidos que so- friam 0 contagio dos opressores e tendiam inconscientemente a identificar-se com eles. Sobre esse mimetismo, sobre essa identificagao ou imitagao, ou ainda troca de papéis entre o opressor e a vitima, ja se discu- tiu muito. Disseram-se coisas verdadeiras ¢ inventadas, pertur- badoras e banais, agudas e esttipidas: ndo é um terreno virgem, a0 contrario, € um campo arado desajeitadamente, pisado € re volto, A diretora Liliana Cavani, a quem se pedira expressar su- cintamente 0 sentido de um filme seu, belo ¢ falso, declarou: “Somos todos vitimas ou assassins € aceitamos estes papéis vo- luntariamente. $6 Sade ¢ Dostoievski compreenderam isto bem”; disse também acreditar “que em todo ambiente, em toda rela- ao, hd uma dinmica vitima-carrasco mais ou menos claramen te expressa e geralmente vivida em nivel nao consciente”. Nao entendo muito do inconsciente ou do profundo, mas sei que poucos entendem disto e que esses poucos sao mais cau- telosos: nao sei, « me interessa pouco saber, se em meu profun- do se aninha um assassino, mas sei que fui vitima inocente, assassino nao; sei que os assassinos existiram, nao s6 na Alema- nha, ¢ ainda existem, inativos ou em servico, e que confundi-los com suas vitimas é uma doenga moral ou uma afetagio estética ou um sinal sinistro de cumplicidade; sobretudo, € um precios servico prestado (intencionalmente ou nao) aos negadores da verdade. Sei que no Lager. ¢ mais em geral no teatro humano, acontece tudo, ¢ que por isto o exemplo singular demonstra aL pouco. Dito claramente tudo isto ¢ reafirmado que confundir os dois papéis significa querer mistificar desde a raiz nossa necessi- dade de justica, algumas consideragdes restam por fazer. B sempre verdade que, no Lager e fora dele, existem pessoas 7entas, ambiguas, dispostas ao compromisso. A tensio extre- ma do Lager tende a aumentar suas fileiras; elas possuem auto- nomamente uma cota (tanto mais relevante quanto maior sta liberdade de escolha) de culpa, e, além desta, ficam os vetores € 0s instrumentos da culpa do sistema, E sempre verdade que a maior parte dos opressores, durante ou (mais freqlientemente) apés suas agdes, se den conta de que aquilo que fazia ou tinha feito era iniquo, eles experimentaram talvez diividas ou mal- estar, ou mesmo foram punidos; mas esses sofrimentos nao sio suficientes para arrolé-los entre as vitimas. Do mesmo modo, nao bastam 0s erros ¢ as concessdes dos prisioneiros para alinhé- los com seus guardides: os prisioneiros dos Lager, centenas de milhares de pessoas de todas as classes sociais, de quase todos os paises da Europa, representavam uma amostragem média, ndo selecionada, de humanidade: ainda que nao se quisesse levar em conta o ambiente infernal em que foram bruscamente precipita dos, ¢ il6gico pretender deles, ¢ é retérico € falso sustentar que todos tenham sempre seguido, 0 comportamento que se espera dos santos € dos fil6sofas estéicos. Na realidade, na esmagadora maioria dos casos, seu comportamento foi ferreamente condicio- nado: ao cabo de poucas semanas ou meses. as privagies a que foram submetides os conduziram a uma condigao de pura sobre- vivéneia, de luta cotidiana contra a fome, o frio, a fadiga, 0 es- pancamento, condi¢ao na qual 0 espago para as escolhas (espe- cialmente para as escolhas morais) estava reduzido a nada; entre les, pouguissimos sobreviveram a prova, gragas 4 soma de mui- tos eventos improvaveis; em resumo, foram salvos pela sorte, ¢ ndo tem muito sentido buscar em seus destinos algo comum, a nao ser talvez a boa satide inicial. Um caso-limite de colaboragio € representado pelos Sonder- kommandos de Auschwitz e dos outros Lager de exterminio. Aqui a hesito em falar de privilégio: quem deles fazia parte s6 era privi- legiado na medida em que (€ com que custot) por alguns meses comia suficientemente, nao decerto porque pudesse ser inveja- do, Com esta denominagdo deliberadamente vaga, “Esquadréo Especial’, era indicado pelos SS 0 grupo de prisioneiros aos quais estava confiada a gestao dos fornos crematérios. A eles cabia man- ter a ordem entre os recém-chegados (muitas vezes imteiramen- te inconscientes do destino que os esperava) que deviam ser in- troduzidos nas cimaras de gas; tirar das cimaras os cadaveres; extrair 0 ouro dos dentes; cortar os cabelos das mulheres; sepa- rar € classificar as roupas, 0s sapatos, 0 contetido das bagagens; Lransportar os cadaveres para os fornos crematérios ¢ cuidar do funcionamento dos fornos; retirar € eliminar as cinzas. O Esqua- drdo Especial de Auschwitz contava, dependendo da época, com um efetivo entre setecentos € mil prisioneiros. Esses Esquadrdes Especiais nao escapavam do destino de todos; antes, por parte dos SS havia todo 0 cuidado para que nenhum homem que deles havia participado pudesse sobreviver © contar. Em Auschwitz se sucederam doze esquadrbes; cada qual atuava alguns meses, em seguida era eliminado, sempre com um artificio diferente para prevenir eventuais resisténcias, © 0 esquadrao sucessivo, como iniciagdo, queimava os cadaveres dos predecessores. © dltimo esquadrao, em outubro de 1944, rebelou-se contra os $S, explodiu: um dos fornos crematérios € foi exterminado num combate desigual, a que aludiret mais adiante. Os sobreviventes dos Esquadrdes Especiais, portanto, foram pouquissimos, salvos da morte por algum lance imprevi- sivel do destino. Nenhum deles, apés a libertagao, falou de bom grado, ¢ nenhum fala de bom grado de sua terrivel condigao. As informagdes que possuimos sobre os Esquadroes provém dos minguados depoimentos desses sobreviventes; das contissdes de seus “mandantes” processados diante de diferentes tribunais; de alusdes contidas em depoimentos de “civis” alemaes ou polone- ses, que casualmente tiveram oportunidade de entrar em conta- to com os esquadroes; ¢, finalmente, de paginas de didrio escri- tas febrilmente para memoria {utura, e sepultadas com extremo cuidado nas proximidades dos fornos crematérios de Auschwitz, 4B por parte de alguns de seus componentes. Todas essas fontes sao concordes entre si; porém, é-nos dificil, quase impossive truir uma representagio de como esses homens viviam dia apés dia, de como viam a si mesmos e aceitavam sua condigao. Num primeiro momento, eles eram escolhidos pelos $5 c tre os prisioneiros jd presentes nos Lager, ¢ ha testemunho de que a escolha se dava nao s6 com base no vigor fisico mas tam- bém no estudo aprofundado das fisionomias. Em alguns casos raros, o alistamento aconteceu por punigéo. Mais tarde, prefe- riu-se buscar os candidatos diretamente nas plataformas ferro- vidrias, 3 chegada de cada comboio: os “psicélogos” dos $8 se haviam dado conta de que 0 recrutamento era mais facil se tives- se como alvo aquela gente desesperada ¢ desorientada, enerva- da pela viagem, carente de resisténcias, no momento crucial do desembarque do trem, quando verdadeiramente todo recém- chegado se sentia & beira da escuridao e do terror de um espaco do terrestre Os Esquadrdes Especiais eram constituides em sua maior parte pelos judeus. Por um lado, isso ndo pode espantar, uma vex que o objetivo principal dos Lager era destruir os judcus € que a populacdo de Auschwitz, a partir de 1943, era constituida por judeus numa proporgao entre 90 € 95%; por outro, fica-se atdnito diante deste paroxismo de perfidia e de ddio: os judeus € que deveriam p6r nos fornos os judeus, devia-se demonstrar que 6s judeus, sub-raga, sub-homens, se dobram a qualquer humi Ihagio, inclusive a destruigo de si mesmos. Além do mais, ate: tou-se que nem todos os $$ aceitavam de bom grado 0 massacre como tarela cotidiana; delegar as préprias vitimas uma parte do trabalho, ¢ justamente a mais suja, devia servir (e provavelmen- para aliviar al Por certo, seria iniquo atribuir essa aquiescéncia a alguma particularidade especificamente judia: dos Esquadrées Especiais também fizeram parte prisioneiros ndo judeus, alemaes ¢ polo- heses, porém com as fungdes “mais dignas” de Kapos; ¢ também prisioneiros de guerra russos, que os nazistas consideravam $6 um pequeno degrau acima dos judeus. Foram poucos, porque em Auschwitz havia poucos russos (em sua grande maioria eram umas consciéncias, “4 exterminados antes, imediatamente apés a captura, metralhados 4 beira de enormes valas comuns): mas nao se comportaram de modo diferente daquele dos judeus. Os Esquadroes Especiais, na qualidade de portadores de um horrendo segredo, eram todos rigorosamente separados dos ou tros prisioneiros ¢ do mundo exterior, Todavia, como sabe todo aquele que tenha atravessado experiéncias anélogas, nenhuma barreira jamais é destituida de falhas: as informagées, mesmo incompletas ¢ distorcidas, tém um poder enorme de penetragio, alguma coisa sempre transpira. Sobre esses Esquadrdes, boatos vagos ¢ truncados j4 circulavam entre nés durante o confina- mento ¢ foram confirmados mais tarde pelas outras fontes men- cionadas anteriormente, mas o horror intrinseco dessa condigéo humana impés a todos os testemunhos uma espécie de pudor; por isso, ainda hoje ¢ dificil construir uma imagem do que “sig nificava” ser forcado a exercer esse oficio durante meses. Alguns testemunharam que aqueles desgragados dispunham de uma grande quantidade de bebidas alcodlicas, encontrando-se per- manentemente num estado de embrutecimento e de prostracéo total, Um deles declarou: “Ao fazer este trabalho, ou se enlou- quece no primeiro dia, ou entdo se acostuma”. Mas outro disse: “Por certo, teria podido matar-me ou me deixar matar; mas eu queria sobreviver, para vingar-me e para dar testemunho. Voces nao devem acreditar que nés somos monstros: somos como voces, s6 que muito mais infelizes”. E evidente que tais afirmacdes, bem como as outras, intime- ras, que por eles € entre eles terdo sido ditas mas néo chegaram até nds, no podem ser tomadas ao pé da letra. De homens que conheceram essa destituigao extrema nao se pode esperar um de- poimento no sentido juridico do termo, e sim algo que fica entre ‘© lamento, a blasfémia, a expiagao € 0 esforco de justificativa, de recuperacao de si mesmos. Deve-se esperar antes um desafogo libertador do que uma verdade com 0 rosto de Medusa, ‘Ter concebido € organizado os Esquadrdes foi o delito mais demoniaco do nacional-socialismo. Por tras do aspecto pragmé- tico (fazer economia de homens validos, impor a outros as tare- fas mais atrozes) se podem ver outros mais sutis. Através dessa 46 instituigdo, tentava-se transferir para outrem, e precisamente Para as vitimas, 0 peso do crime, de tal sorte que para 0 conso- lo delas nao ficasse nem a consciéncia de ser inocente. Nao é facil nem agradavel examinar esse abismo de maldade, mas eu penso que se deva fazé-lo, porque o que foi possivel perpetrar ontem poderd ser novamente tentado amanha, poder envolver @ nds mesmos ou a nossos filhos. Experimenta-se a tentagio de Virar 0 rosto ¢ afastar o pensamento: é uma tentagéo a que devemos resistir. Com eleito, a existéncia dos Esquadrées tinha um significado, possuia uma mensagem: “Nos, 0 povo dos Se- nhores, somos quem os destréi, mas vocés nao séo melhores do que nés; se quisermos, ¢ o queremos, nds somos capazes de des- truir ndo s6 seus corpos mas também suas almas, tal como des- truimos as nossas*. Miklos Nyiszli, médico hiingaro, esteve entre os pouquissi- mos sobreviventes do tihimo Esquadrao Especial de Auschwitz Era um conhecido anatomatopatologista, especializado em au. tOpsias, € 0 médico-chefe dos $5 de Birkenau, aquele Mengele que morreu_hé poucos anos fugindo da justiga, se valia de seus servigos; reservava-lhe um tratamento de favor e o considerava uase como um colega. Nyiszli devia dedicar-se especialmente a0 estudo dos gémeos: com efeito, Birkenau era o tinico lugar no mundo em que existia a possibilidade de examinar cadaveres de gémeos assassinados no mesmo momento. Ao lado desta tarefa particular, & qual, diga-se de passagem, nao parece que ele se tenha oposto com muita determinagdo, Nyiszli era 0 médico do Esquadrio, com 0 qual vivia cin estreito contato. Pois bem, ele narra um fato que me parece signiticativo. Os $8, como disse, escolhiam cuidadosamente, nos Lager ou nos comboios que chegavam, os efetivos dos Esquadroes, nao hesitando em suprimir na hora aqueles que se recusavam ou se Mmostravam inadaptados a suas fungdes. Em relagio aos mem- bros reeém-admitidos, eles mostravam o mesmo comportamen- to de desprezo ¢ distancia que tinham por habito demonstrar em face de todos os prisioneiros, especialmente os judeus; fora-lhes nculeado que se tratava de seres vis, inimigos da Alemanha e, por isso, indignos de viver; no caso mais favoravel, podiam ser 46 obrigados a trabalhar até a morte por exausiao. Mas nao se com- portavam assim em relagéo aos veteranos do Esquadrao: viam- hos de algum modo como colegas, jd t30 desumanizados como cles préprios, ligados 4 mesma condigdo, unidos pelo vinculo imundo da cumplicidade imposta. Nyiszli, assim, narra ter assis- tido, durante uma pausa de “trabalho”, a uma partida de futebol entre SS e SK (Sonderkommando), vale dizer, entre uma represen- tagdo dos $$ de guarda no forno crematério e uma representa- ‘cdo do Esquadrao Especial; a partida assistem outros soldados SS © 0 resto do Esquadrao, torcendo, apostando, aplaudindo, enco- rajando 05 jogadores, como se a partida se desenrolasse nao diante das portas do inferno, mas num campo de aldeia Nada semelhante jamais aconteceu, nem seria concebivel, com outras categorias de prisioneiros; mas com eles, com 0s “cor- vos do forno crematério”, os $S podiam entrar em campo, em igualdade ou quase. Por tras dese armisticio se 1@ um riso sata- nico: est consumado, conseguimos, voces nao sao mais a outra raga, a anti-raca, 0 inimigo primeiro do Reich milenar: voces ndo sio mais © povo que refuta as {dolos. N6s os abragamos, corrom- pemos, arrastamos para 0 fundo conosco. Voces sao como nés, vocés com seu orgulho: sujos de seu sangue, como nés. Também vocés, como nds € como Caim, mataram o irmao. Venham, po- demos jogar juntos. Nyiszli narra um outro episddio digno de meditagao. Na cd- mara de gas foram amontoados € assassinados os prisioneiros de um trem recém-chegado, € 0 Esquadrao esta cumprindo a hor renda tarela de todos os dias, desfazer 0 emaranhado de cadave- tes, lavé-los com os hidrantes e transporté-los para os fornos cre- matérios, mas no chao encontram uma jovem ainda viva. O evento é excepeional, tinico; talvez os corpos tenham feito uma barreira ao redor dela, retendo um pouco de ar que permaneceu respirdvel. Os homens estdo perplexos: a morte € seu oficio de todos os momentos, a morte é um habito, porque, precisamente, “ou se enlouquece no primeiro dia, ou entao se acostuma”, mas aquela mulher esta viva. Escondem-na, aquecem-na, trazem-lhe caldo de carne, interrogam-na: a moga tem dezesseis anos, nao se orienta nem no espago nem no tempo, nao sabe onde esti, per a7 correu sem entender o suplicio do trem lacrado, da brutal seleggo preliminar, do desnudamento, do ingresso na camara de onde ninguém jamais saiu vive. Néo compreende, mas viu; por isso, deve morrer, ¢ os homens do Esquadrao sabem disto, tanto quan. to sabem que eles préprios devem morrer, e pela mesma razio. Mas esses escravos embrutecidos pelo dlcool ¢ pelo exterminio cotidiano se transformaram; diante deles ndo ha mais a massa anénima, a torrente de pessoas espantadas, atonitas, que desce dos vagoes: hd uma pessoa. Como nao lembrar 0 “insélito respeito” € a hesitagdo do “ignobil covciro” diante do caso singular, diante da menina Cecf- lia morta pela peste, que, em 0s noivs, a mae nao deixa ser joga- da na carroga, misturada entre os outros mortos? Fatos como esse espantam, porque contrariam a imagem que abrigamos em 1nés do homem concorde consigo mesmo, coerente, monolitico; © nao deveriam espantar, porque o homem nao € assim. Pieda- de € brutalidade podem coexistir, no mesmo individuo ¢ no mes- mo momento, contra toda logica; de resto, a propria piedade foge 8 légica. Nao existe proporgdo entre a piedade que experimenta- mos € a extenso da dor que suscita a piedade: uma s6 Anna Frank gera mais comogio do que uma infinidade que sofreu como ela, ‘mas cuja imagem permaneceu na sombra. Talvez seja necessd- tio isso; se devéssemos ¢ pudéssemos sofrer os solrimentos de todos, nao poderiamos viver. Talvez somente aos santos seja con- cedido 0 terrivel dom da piedade por muitos; aos coveiros, aos membros do Esquadrao Especial ¢ a todos nés somente resta, no melhor dos casos, a ptedade eventual dirigida ao individuo, a0 Mitmeensch, a0 co-homem: ao ser humano de carne e sangue que est diante de nés, ao aleance de nossos sentidos providencial- mente mfopes. E chamado um médico, que reanima a moga com uma inje- Gao: certo, o gas nao fez seu papel, ela poder sobreviver, mas onde € como? Naquele momento surge Muhsfeld, um dos solda- dos $$ encarregados dos equipamentos da morte; 9 médico 0 chama a parte ¢ lhe expde 0 caso. Muhsfeld hesita e depois deci de: ndo, a moga deve morrer; se fosse mais velha, 0 caso seria diferente, cla teria mais jutzo e talvez se pudesse convencé-la a 48 calar sobre tudo 0 que Ihe ocorrera, mas tem s6 dezesseis anos: nao se pode confiar nela, Mas nao a mata pessoalmente, chama 1 tire na nuca, Ora, este um subordinado para elimind-la com ui Mubsfeld nao era um miscricordioso; sua cota didria de massa- cre estava coberta de episédios arbitrétios ¢ caprichosos, marca- da por suas invengdes de refinada crueldade. Foi processado em 1947, condenado a morte e enforcado em Cracivia, 0 que foi justo; mas nem mesmo ele era um monolito. Se tivesse vivido hum ambiente € numa época diferente, é provavel que se com- portasse como qualquer outro homem comum Em Os irmdes Karamazov, Gruchenka narra a fabula da cebo- la, Uma velha malvada morte ¢ vai ao inferno, mas seu anjo da uarda, vasculhando a meméria, se lembra de que ela, uma ve7, uma 36, havia dado a um mendigo uma pequena cebola de sua horta: estende-Ihe a cebola, € a velha a ela se agarra, salvando- se do {ogo do inferno. Essa fébula sempre me pareceu revoltan- te: que monstro humano nunca tera dado uma pequena ccbola em sua vida, se nao a outros, pelo menos a seus filhos, a mulher, a0 cio? Aquele instante singular de piedade logo cancelada nao basta, certamente, para absolver Mubsfeld, mas é suficiente para colocar também a ele, ainda que na margem extrema, naquela faixa cinzenta, naquela zona de ambigitidade que se irradia dos regimes fundados no terror € na obediéncia Nao € dificil julgar Muhsfeld, ¢ nao creio que o tribunal que © condenou tenha tido diividas; a0 contrario, nossa necessidade e nossa capacidade de julgar se detém diante do Esquadrao Espe Gal. Imediatamemte surgem as perguntas, perguntas convulsivas, as quais é arduo mister dar uma resposta que nos tranqiiilize sobre a natureza do homem. Por que eles aceitaram aquela tar fa? Por que nao se rebelaram, por que nao preferiram a morte? Numa certa medida, os fatos de que dispomos nos permitem, tentar uma resposta. Nem todos aceitaram; alguns se rebelaram, sabendo que morreriam. De pelo menos um caso temos infor magio precisa: um grupo de quatrocentos judeus de Corfu, que em julho de 1944 fora recrutado para 0 Esquadrao, rejeitou com- pletamente o trabalho, sendo imediatamente assassinado por asfixia. H4 registro de varias revoltas singulares, todas logo puni- 49 das com uma morte atroz (Filip Miller, um dos pouqufssimos sobreviventes do Esquadrao, dé conta de um seu companheiro que 0s $$ puseram vivo na fornalha), e de muitos casos de su cidio no ato do recrutamento ou imediatamente depois. Por fim, deve-se lembrar que precisamente o Esquadrao Especial foi que organizou, em outubro de 1944, a tinica e desesperada ten- lativa de revolta na histéria dos Lager de Auschwitz, que jé mencionamos. As informacées dessa tentativa que chegaram até nés no jo nem completas nem coincidentes; sabe-se que os revoltosos (os encarregados de dois dos cinco fornos crematérios de Aus- chwitz-Birkenau), mal-armados e sem contatos com os guerri- Iheiros poloneses fora do Lager e com a organizagdo clandestina de defesa dentro do Lager, explodiram o forno crematério ni mero 3 ¢ lutaram contra 05 SS. O combate terminou muito rapi damente; alguns rebeldes conseguiram romper o arame farpado € fugir, mas foram capturados pouco depois. Nenhum deles sobreviveu; cerca de 450 foram imediatamente mortos pelos SS; destes iiltimos, trés foram mortos ¢ doze feridos. Assim, em relacao aos miseréveis executores do exterminio, aqueles de quem temoy noticia so os outros, 0s que em cada oportunidade preferiram algumas semanas a mais de vida (e que vidal) 4 monte imediata, mas que em nenhum caso se indu- ziram, ou foram induzidos, a matar de préprio punho. Repito: acredito que ninguém esteja autorizado a julgé-los, nem quem conheceu a experiéncia do Lager, nem muito menos quem ndo @ conheceu. Gostaria de convidar todo aquele que ousar tentar um juizo a realizar sobre si mesmo, com sinceridade, uma expe- riéncia conceitual: imagine, se conseguir, ter passado meses ou anos num gueto, atormentado pela fome erdnica, pelo cansago, pela promiscuidade pela humilhagao; ter visto morrer ao re- dor, um a um, os préprios entes queridos; ter sido arrancado do mundo, sem poder receber nem transmitir noticias; ter sido, por fim, embarcado num comboio, oitenta ou cem pessoas em cada vagao de carga; ter viajado para o desconhecido, as cegas, por dias € noltes insones; e ver-se afinal langado entre os muros de um inferno indecifravel. Aqui se Ihe ofercce a sobrevivencia e se 50 Ihe propée, ou antes, impde, uma tarefa sinistra mas vaga. 6 este, me parece, 0 verdadeiro Befelunetstand, “0 estado de coagao conseqiiente a uma ordem": nao aquele sistematica e despudo- radamente invocado pelos nazistas levados a juizo e, mais tarde (mas seguindo suas pegadas), pelos criminosos de guerra de muitos outros patses. O primeiro é uma alternativa rigida, a obe- digncia imediata ou a morte; o segundo € um fato interno ao centro de poder, podendo ser resolvido (com efeito, muitas vezes foi resolvido) com uma manobra qualquer, com algum atraso na carreira, com uma punigio moderada, ou, no pior dos casos, com a transferéncia do recalcitrante para a frente de guerra A experiéncia que propus nao € agradavel; tentou represen- \é-la Vercors, em sua narrativa Les armes de la nuit (Paris, Albi Michel, 1953), na qual se fala da “morte da alma” e que, relida hoje, me parece intoleravelmente viciada de esteticismo ¢ de afetagao literdria, Mas ¢ indiscutivel que se trata de morte da alma; ora, ninguém pode saber por quanto tempo, € a quais pro- vas, sua alma resistiré antes de dobrar-se ou de quebrar. Todo ser humano possui uma reserva de forgas cuja medida Ihe € desco- nhecida: pode ser grande, pequena ou nula, ¢ s6 a adversidade extrema the permite avalid-la. Mesmo sem recorrer ao caso- limite dos Esquadrdes Especiais, sucede com freqiiéncia a nés, sobreviventes, quando contamos nossas vicissitudes, que o in- terlocutor diga: “Eu, em seu lugar, nao teria resistido um dia” A afirmagao nao tem um sentido preciso: nunca se est no lugar de um outro, Cada individuo € um objeto de tal modo complexo que € vio querer prever seu comportamento, ainda mais em situagdes extremas; nem mesmo € possivel antever o proprio comportamento. Por isto, peso que a histéria dos “corvos do Jomo crematério” seja meditada com piedade ¢ rigor, mas que o ique suspenso. julgamento sobre eles A mesma impoientia judicandi nos paralisa diante do caso Rumkowski, A histéria de Chaim Rumkowski ndo é propriamen- te uma histéria de Lager, embora no Lager se conclua: € uma his- tOria de gueto, mas to elogiiente sobre o tema fundamental da ambigitidade humana fatalmente provocada pela opressio, que 3 me parece caber muito bem em nosso discurso. Repito-a aqui, embora jé a tenha narrado em outra parte Voltando de Auschwitz achei no bolso uma curiosa moeda de liga leve, que ainda conservo. Esté arranhada e corroida; traz numa face a estrela hebraica (o “Escudo de Davi"), a data de 1943 € a palavra getto, que se 1é gueto, a moda alema; na outra face, as legendas: QUITTUNG UBER 10 MARK ¢ DER ALTESTE DER JUDEN IN LITZMANNSTADT, ow seja, respectivamente, Recibo de 10 marcos © 0 decano des judeus em Litzmannstadt: em resumo, era a moeda intema de um gueto. Por muitos anos esqueci sua exis- téncia, mas por volta de 1974 pude reconstruir sua histéria, que ¢ fascinante e sinistra Com o nome de Litzmannstadt, em honra de um general Litzmann vitarioso sobre os russos na Primeira Guerra Mundial, 8 nazistas tinham rebatizado a cidade polonesa de Lodz! No fim de 1944 0s tiltimos sobreviventes do gueto de L6d# foram depor- tados para Auschwitz: eu devo ter encontrado no chao do Lager aquela moeda jé intiti Em 1939, Lédé tinha 750 mil habitantes e era a mais indus- trial das cidades polonesas, a mais “moderna” ¢ a mais feia: vivia da indistria téxtil, como Manchester € Biella, ¢ estava marcada pela presenga de uma mirfade de estabelecimentos grandes pequenos, em sua maioria obsoletos | entdo. Como em todas as Cidades de uma certa importancia da Europa Oriental ocupada, os haristas se deram pressa em construir af um gueto, restabelecen- do, agravado por sua ferocidade moderna, o regime dos guetos da dade Média ¢ da Contra-Reforma, 0 gueto de Léd#, estabelecido j4 em fevereiro de 1940, foi 0 primeiro cronologicamente ¢ 0 segundo, apés o de Varsévia, em termas de consisténcia numéri- ca: chegou a possuir 160 mil judeus € s6 foi dissolvido no outo- no de 1944. Foi, pois, o mais duradouro dos guetos nazistas, ¢ isto deve ser atribuido a duas razdes: sua importancia econdmica ¢ a perturhadora personalidade de seu presidente. 1A grafia correta € Kod# (pron.”Uiidj’). Por dificuldade de repro dugdo sera grafada Léd# no texto. (NE) 52 Chamava-se Chaim Rumkowski: ex-pequeno industrial fali- do, apés varias viagens ¢ muitas vicissitudes se estabelecera em L6dé em 1917. Em 1940 tinha quase sessenta anos ¢ era vitivo sem filhos; desfrutava uma certa estima € era conhecido como diretor de obras pias hebraicas ¢ como homem enérgico, inculto © autoritério. O cargo de presidente (ou decano) de um gueto era intrinsecamente espantoso, mas era um cargo, constituia um reconhecimento social, significava um degrau acima e conferia direitos a privilégios, isto é, autoridade: ora, Rumkowski amava apaixonadamente a autoridade. Como obteve a investidura néo se sabe: talvez se tratasse de uma zombaria no torpe estilo nazi ta (Rumkowski era, ou parecia, um tolo com ares de honestida- de; em suma, um objeto ideal de escérnio); talver ele proprio tivesse manobrado para ser escolhido, to forte devia ser nele a vontade de poder. Esté provado que os quatro anos de sua pre: sidéncia, ou melhor, de sua ditadura, foram um emaranhado surpreendente de sonho megalomaniaco, de vitalidade barbara € de real capacidade diplomatica e organizativa. Logo ele passou a ver-se na condigéo de monarca absoluto mas iluminado, ¢ certa~ mente foi estimulado nesse caminho por seus patrdes alemaes, que naturalmente brincavam com ele mas estimavam seus talen- tos de bom administrador e de homem da ordem. Deles obteve autorizagio para cunhar moeda, seja metdlica (a tal moeda em poder), seja dinheiro-papel, em papel filigranado que Ihe foi fornecido oficialmente, Nessa moeda eram pagos 0s operatios ex- tenuados do gueto: podiam gasté-la nos armazéns para adquirir sua ragio alimentar, que equivalia em média a 800 calorias did- rias (recordo, de passagem, que so necessarias pelo menos duas mil calorias para sobreviver em estado de absoluto repouso). Desses seus stiditos esfomeados Rumkowski ambicionava receber ndo s6 obediéncia e respeito, mas também amor: nisto as ditaduras modernas diferem das antigas. Como dispunha de um punhado de artistas ¢ artesdos excelentes, fez desenharem € imprimirem selos que trazem sua efigie, com os cabelos ¢ as bar bas resplandecentes & luz da Esperanga e da Fé. Teve uma sege puxada por um cavalo esquelético, com a qual percorria as ruas de seu minisculo reino, entupidas de mendigos ¢ de pedintes m 33 ‘Teve um manto real, cercando-se de uma corte de aduladores € de sicdrios; fez com que seus poetas-cortesdos compusessem hinos em que se celebrava sua “mao firme € potente”, bem como a paz ¢ a ordem que reinavam no gueto gragas a ele; ordenou que as criangas das nefandas escolas, todo dia devastadas pe- las epidemias, pela desnutrigao e pelas incursdes alemas, fossem designados temas em louvor “a nosso amado € sagaz presiden- te. Como todos 0s autocratas, se apressou em organizar uma policia eficiente, nominalmente para manter a ordem, de fato para proteger sa pessoa € para impor sua disciplina: era cons- tituida de seiscentos guardas armados de bastéo e um miimero incerto de delatores. Pronunciou muitos discursos, alguns dos quais se conservaram ¢ cujo estilo é inconfundivel: havia adota do a técnica oratéria de Mussolini de Hitler, aquela da recita- ¢ao inspirada, do pseudocoléquio com a multidao, da criagao do consenso através da adesdo € do controle. Talve7 esta sua imita Gio fosse deliberada; talvez, ao contrario, fosse uma identificagao inconsciente com © modelo do “heréi necessario” que entao dominaya a Europa ¢ fora cantado por D’Annunzio; mas é mais provavel que sua atitude nascesse de sua condigao de pequeno tirano, impotente diante dos de cima ¢ onipotente diante dos de baixo. Quem tem trono € cetro, quem nao teme ser contradito nem escamecido, fala assim. No entanto, sua figura foi mais complexa do que sugerimos até aqui. Rumkowskt no foi somente um renegado e um ctim- plice; em alguma medida, além de fazer com que os outros se convencessem, cle progressivamente deve ter se convencido de ser um messias, um salvador de seu povo, cujo bem, pelos menos a intervalos, ele deve também ter desejado. £ preciso bencticiar para se sentir benelico, € sentir-se benefico € gratili- cante até para um sétrapa corrompido. Paradoxalmente, & sua identificagao com os opressores se alterna ou se justapoe uma identificagao com 0s oprimidos, porque o homem, diz Thomas Mann, é uma criatura confusa; ¢ se torna mais confusa, pode- mos acrescentar, quanto mais submetida a tensdes: entdo escapa nosso juizo, assim como enlouquece uma biissola diante do pélo magnético. 34 Embora tenha sido constantemente desprezado ¢ escarne- cido pelos alemaes, € provavel que Rumkowski pensasse em si mesmo nao como um escravo, mas como um senhor. Deve ter tomado a sério sua autoridade: quando a Gestapo se apoderou, sem prévia notificagdo, de “seus” conselheiros, acorreu corajosa~ mente em auxilio deles, expondo-se a zombarias ¢ a humilha- ses que soube suportar com dignidade. Mesmo em outras oca- sides, buscou negociar com os alemaes, que exigiam cada vez mnais tecidos de L6dZ, bem como contingentes cada vez mais nu- merosos de bocas intiteis (velhos, criangas, doentes) para man- dar as camaras de gas de Treblinka ¢ depois de Auschwitz. A pr6- pria dureza com que se precipitou a reprimir os movimentos de insubordinacao de seus stiditos (existiam em Léd7, como nos outros guetos, nticleos de temerdria resisténcia politica, de raiz sionista, comunista ou influenciada pelo Bund) nao provinha tanto de servilismo diante dos alemaes quanto de “lesa-majesta de”, de indignagio pelo ultraje langado a sua real pessoa Em setembro de 1944, como a frente russa estivesse proxi- ma, os nazistas deram inicio & liquidago do gueto de Lédz. Dezenas de milhares de homens ¢ mulheres foram deportados para Auschwitz, aus mundi, lugar de drenagem iiltima do uni- verso alemao; exauridos como estavam, foram quase todos eli- minados de imediato. Permaneceu no gu mens, desmontando a maquinaria das fabricas e apagando os vestigios do massacre: foram libertados pelo Exército Vermelho pouco depois, ¢ a eles se devem as informacdes aqui reportadas. Sobre © destino final de Chaim Rumkowski existem duas versdes, como se a ambigitidade sob cujo signo vivera se arras- tasse para envolver sua morte. Segundo a primeira versio, no decorrer da liquidagio do gueto cle teria buscade opor-se & deportagio de seu irmao, de quem nao queria separar-se; um oficial alemao the teria entao proposto partir voluntariamente com @ irmao, ¢ ele teria aceito. Uma outra versio afirma, ao con- trdrio, que a salvacao de Rumkowski teria sido tentada por Hans Biebow, outro personagem carregado de duplicidade, Este mise- ravel industrial alemdo era o funciondrio responsavel, a0 mesmo. tempo, pela administragéo do gueto e pelos contratos de forne to um milhar de ho- 35 cimento: sua fungio, portanto, era delicada, porque as fabricas téxteis de Lédé trabalhavam para as forgas armadas. Biebow nao era um monstro: ndo Ihe nem punir os judeus por sua culpa de serem judeus, mas sim lucrar com os fornecimentos, de um modo licito ou nao. O tor mento do gueto 0 atingia, mas s6 por via indireta; descjava que 05 operdrios-escravos trabalhassem e, por isto, que ndo morres- sem de fome; seu sentido moral se detinha aqui. De fato, cra o verdadeiro patrdo do gueto e estava ligado a Rumkowski por aquela relagao comitente-fornecedor que muitas vezes desem- boca numa éspera amizade. Bicbow, misero saqueador, tao cini- co que nao podia tomar a sério a demonologia racista, haveria de querer adiar indefinidamente o desmantelamento do gucto, que para ele cra um 6timo negécio, € preservar Rumkowski da deportagao, em cuja cumplicidade confiava: de onde se vé como freqiientemente um realista seja objetivamente melhor do que um te6rico, Mas 0s te6ricos $$ tinham parecer contrario, ¢ cram mais fortes. Eram griindlich, radicals: abaixo 0 gueto, fora Rumkowski, Nao podendo dispor de outra maneira, Biebow, que tinha boas relagoes, entregou a Rumkowski uma carta enderegada ao comandante do Lager de destinagao, garantindo-lhe que ela 0 protegeria € asseguraria um tratamento favoravel, Rumkowski teria pedido a Biebow, e obtido, que viajasse até Auschwitz — cle, Rumkowski, ¢ sua familia — com 0 decoro adequado a sua condigio, vale dizer, num vagao especial, enganchado no fim do comboio de vagoes de carga lotados de deportados sem privilé- gios: mas o destino dos judeus nas maos dos alemdes era um s6, fossem covardes ou herdis, humildes ou soberbos. Nem a carta nem 0 vagio serviram para salvar do gés Chaim Rumkowski, rei dos judeus interessava criar sofrimentos iniiteis Uma histéria como essa nao se encerra em si mesma. Nao € univoca, propoe mais perguntas do que responde, resume em si toda a tematica da zona cinzenta ¢ deixa perplexidades. Grita € exige ser compreendida, porque nela se entrevé um simbolo, como nos sonhos € nos signos do céu 56 Quem € Rumkowski? Nao é um monstro nem um homem comum:; no entanto, a nosso redor muitos so semelhantes a ele. 0s fracassos que precederam sua “carreira” sao significativos: os homens que retiram forga moral de um fracasso sao poucos. Parece-me que em sua histéria se pode reconhecer de uma for- ma exemplar a necessidade quase fisica que faz nascer da coagio politica a drea indefinida da ambigiiidade ¢ do compromisso. Aos pés de todo trono absoluto, homens como ele se amontoam para obterem sua pequena fatia de poder: é um espetdculo recorren- te, voltam a meméria as lutas sangrentas dos tiltimos meses da Segunda Guerra Mundial, na corte de Hitler e entre os ministros de Sala; homens cinzentos também estes, ainda mais cegos do que criminosos, encarigados na luta pela repartigio das miga~ Ihas de uma autoridade celerada e moribunda. 0 poder € como a droga: a falta de um ¢ de outro é desconhecida de quem nao os provou, mas, apds a iniciagdo, que (como pata Rumkowski) pode ser fortuita, nascem a dependéncia ¢ a necessidade de doses cada vez mais altas; também nasce a recusa da realidade ¢ 0 retorno aos sonhos infantis de onipoténcia. Se for valida a inter- pretacio de um Rumkowski intoxicado de poder, € preciso ad- mitir que a intoxicacao sobreveio ndo por causa, mas apesar do ambiente do gueto; ou seja, que ela € téo poderosa que prevale- ce até em condigoes que parccem extinguir toda vontade indivi- dual, De fato, nele era bem visivel, como em seus modelos mais famosos, a sindrome do poder prolongado ¢ incontestado: a vi- sao distorcida do mundo, a arrogincia dogmatica, a necessidade de adulagao, a obsessdo convulsiva pelas alavancas de comando, © desprezo das leis. Tudo isso nao livra Rumkowski de suas responsabilida- des. Dol € fere que um Rumkowski tenha surgido da aflicao de L6dé; se tivesse sobrevivido a sua tragédia, ¢ a tragédia do gue- to por ele conspurcada com a sobreposigéo de sua imagem de histriéo, nenhum tribunal o teria absolvido, nem cerlamente © podemas absolver no plano moral. Mas ele tem atenuantes: uma ordem infernal, como 0 nacional-socialismo, exerce um. espantoso poder de corrupgio, do qual é dificil escapar. Degra~ da suas vitimas € torna-as semelhantes a si, porque The so ne~ 37 cessdrias cumplicidades, grandes © pequenas. Para resistir a cla, € preciso uma envergadura moral muito sélida, ¢ aquela de que dispunha Chaim Rumkowski, o comerciante de Lédé, junto com toda a sua geragio, era frégil: mas nds, europeus de hoje, a teriamos forte? Como se comportaria cada um de nés se fosse premido pela necessidade e, ao mesmo tempo, atraido pela seducdo? A historia de Rumkowski é a historia desagradavel e in- quietante dos Kapos dos funciondrios dos Lager; dos chefetes que servem a um regime a cujos crimes se mostram delibera~ damente cegos; dos subordinados que assinam tudo, porque uma assinatura custa pouco; de quem balanga a cabega, mas consente; de quem diz: “se eu nao o fizer, um outro pior do que eu 0 fara” Nessa faixa de consciéncias medianas deve colocar-se Rum- kowski, figura simbélica ¢ exemplar. Se no alto ou embaixo, € dificil dizer: s6 ele poderia esclarecer isto se pudesse falar diante de n6s, talvez até mentindo, como sempre mentia, inclusive a si mesmo; de qualquer modo, ajudar-nos-ia a compreendé-to, tal como todo acusado ajuda o seu juiz, mesmo que nao queira, mesmo que minta, porque a capacidade do homem de represen- tar um papel nao é ilimitada, ‘Mas tudo isso nao basta para explicar o sentido de urgéncia € de ameaga que emana dessa hist6ria, Talvez scu significado seja mais amplo: em Rumkowski nos espelhamos todos, sua ambigiiidade € nossa, congénita, hibridos — que somos — de baru e espirito; sua febre € nossa, € a de nossa civilizagao oci- dental que “desce ao inferno com trompas ¢ tambores”, © seus miseraveis ouropéis so a imagem distorcida de nossos simbo- los de prestigio social. Sua loucura é a do homem presungoso € mortal, como 0 descreve Isabella em Misura per misura, 0 ho- mem que, ammantato d’autorita precaria, i cid ignaro di cui si crede certo, = della sua essenva, chy’e di vetro —, quale una scimmia arrabbiata, gioca talt 38 insulse bulfonate sotto il ciele dda far piangere gli angeli* Como Rumkowski, também nés somos ofuscados pelo po- der ¢ pelo prestigio a ponto de esquecer nossa fragilidade essen- cial: pactuamos com o poder, de bom grado ou nao, esquecendo gue no gucto estamos todos, que 0 gueto esté cercado, que além de seu perimetro estao os senhores da morte, ¢ que nao muito distante espera o trem. 2... coberto de precéria autoridade, / ignaro daquilo de que se er® conto, 1 — de sua esséncia, que € de vidro —, / qual um mono irado, representa J tanta insulsa estupidez sob os céus / que faz chorar os anjos.” 59 II] | A VERGONHA Exist um quadro estereotipado, proposto infinitas vezes, consagrado pela literatura e pela poesia, registrado pelo cinema ao fim da tempestade, quando sobrevém a “quietude apés gtor- menta’, todo coracdo se alegra. “Sair da afligao nos raz prazer” ‘Apés a doenga retorna a satide; para romper as cadeias chegam ‘05 nossos, os libertadores, com as bandeiras desfraldadas; 0 sol- dado volta ¢ reencontra a familia ¢ a paz. A jullgar pelas narrativas feitas por muitos sobreviventes € pelas minhas proprias recordagdes, 0 pessimista Leopardi, nesta sua representagdo, foi além da verdade: malgrado ele mesmo, demonstrou-se otimista. Na maior parte dos casos, a hora da li- ertagdo nao foi nem alegre nem despreocupada: soava em geral num contexto tragico de destruiggo, massacre e sofrimento. Naquele momento, quando voltavamos a nos sentir homens, ou seja, responsaveis, retornavam as angtistias dos homens: a an- guistia da familia dispersa ou perdida; da dor universal ao redor; do préprio cansaco, que parecia definitivo, nao mais remediavel; da vida a ser recomegada em meio as ruinas, muitas vezes s6. Nao “prazer, filho da afligao”: afligio, filha da afligao, Sair do tor- ‘mento foi um prazer somente para uns poucos afortunados, ou somente por poucos instantes, ou para almas simples; quase sempre coincidiu com uma fase de angiistia. A angtistia € conhecida de todos, desde a infancia, € todos sabem que muitas vezes é branca, indiferenciada. £ raro trazer uma etiqueta legivel, contendo sua motivacao; quando a traz, muitas vezes ¢ falsa. Podemos crer-nos ou declarar-nos angus. tiados por um motivo, ¢ sé-lo por outro inteiramente diferen te: crer que sofremos diante do futuro, mas sofrer pelo proprio passado; crer que sofremos pelos outros, por piedade, por com- 0, mas sofrer por motivos nossos, mais ou menos profun- dos, mais ou menos confessaveis € contessados; as vezes to profundos que s6 0 especialista, o analista de almas, sabe como desenterré-los. Naturalmente, nao ouso afirmar que a seqiiéncia a que alu- di seja falsa em qualquer caso. Muitas libertagées foram vividas com alegria plena, auténtica: sobretudo por parte dos combaten- tes, militares ou politicos, que viam realizar-se naquele momen- to as aspiragdes de sua militancia de sua vida; além disso, por parte de quem sofrera menos, ou por menos tempo, ou sozinho, € nao por familiares, amigos ou pessoas queridas. E depois, por sorte, os seres humanos nao séo todos iguais: entre nds, existe também quem tem a virtude e o privilégio de separar, isolar aque- les instantes de alegria, gozando-os plenamente, como quem extrai ouro puro da ganga. E finalmente, entre os testemunhos lidos ou escutados, ha também aqueles inconscientemente esti lizados, nos quais a convengio prevalece sobre a meméria ge- nuina: “Quem é libertado da escravidao, experimenta alegria com isto; eu fui libertado, logo também experimentei alegria. Em todos os filmes, em tudus us romances, come no Fidélio, 6 Tompimento das cadeias é um momento de jtibilo solene ou fer voroso; portanto, também o meu foi assim”. E este um caso par- ticular daquela derivagio das recordacdes que mencionei no pri- meiro capitulo, e que se acentua com 0 passar dos anos e com 0 actimulo das experiéncias alheias, verdadciras ou supostas, so- bre a camada das préprias experiéncias. Mas quem, deliberada- mente ou por temperamento, se mantém longe da retérica fala normalmente em outro tom. Assim, por exemplo, desereve sua libertagao 0 j4 mencionado Filip Miller — que também teve uma experiéncia muito mais terrivel do que a minha — na dlti- a ma pagina de suas memorias, Eyewitness Ausclnwite — Three Years in the Gas Chambers. Por mais que possa parecer incrivel, experimentei um comple- to abatimento, Aquele momento, sobre 0 qual hé tres anos se ha~ viam concentrado todos os meus pensamentos ¢ os meus desejos jade nem qualquer outro secretos, ndo suscitou em mim nem felt sentimento. Sai de meu estrado e me arrastei até a porta. Assim que me vi do lado de fora, me esforcei em vdo para prosseguir, depois simplesmemte me estirei por terra, no bosque, ¢ cai no sono. ‘Agora releio passagem de La tregua. O livro foi publicado s6 em 1963 (Turim, Einaudi), mas eu havia escrito essas palavras a partir de 1947; fala-se dos primeiros soldados russos em presen- a de nosso Lager cheio de cadaveres € de moribundos: 10 sorriam; pareciam oprimidos no 6 pela Nao saudavam, piedade mas também por uma discrigio confusa, que cerrava suas boas prendia seus ollios ao censrio hinebre. Bra a mesma ver- gonha bem conhecida de nds, aquela que nos acometia apés as selegbes ¢ sempre que nos cabia presenciar ou sofrer um ultraje: @ vergonha que os alemaes no conheceram, que 0 justo experi- ‘menta em face do crime cometido por outros, e Ihe aflige que exis- ta, que tenha sido introduzida irrevogavelmente no mundo das coisas que existem, ¢ que sua vontade tenha sido nula ou pouca, endo tenha valido como defesa Nao acredito ter nada a cortar ou a corrigir, mas sim algo a acrescentar. E-um fato verificado e confirmado por numerosos depoimentos que muitos (¢ eu mesmo) tenham experimentado, *yergonha’, isto, sentimento de culpa, durante 0 confinamento € depois, Pode parecer absurdo, mas existe. Tentarei interpretar isto por mim mesmo € comentar as interpretagbes dos outros. Como aludi no inicio, o mal-estar indefinide que acompa- hava a libertagao talvez nao fosse propriamente vergonha, mas cra percebido como tal. Por qué? Podem-se tentar varias expli- cagoes. 8 Excluirei do exame alguns casos excepcionais: os prisionei- tos, quase todos politicos, que tiveram a forca ¢ a possibilidade de agir dentro do Lager em defesa € em beneticio de seus com- panheitos. Nbs, a quase totalidade dos prisioneiros comuns, os ig- nordvamos, nem mesmo suspeitévamos de sua existéncia: coisa Logica, ja que, por Sbvia necessidade politica ¢ policial (a Secao Politica de Auschwitz ndo era nada além de um ramo da Gesta- po}, eles deviam operar em segredo, nao s6 em relacao aos alemaes mas também a todos. Em Auschwitz, império concen- tracionério que em minha época se constituia de judeus numa proporgéo de 95%, essa pequena rede politica era embrionaria; cu assisti a um s6 episédio que deveria fazer-me intuir algo se no estivesse esmagado pela atribulagao de todos os dias. Em maio de 1944, nosso quase indcuo Kapo fot substituido, © 0 recém-chegado se mostrou um individuo temivel. Todos os Kapos espancavam: isto fazia parte Gbvia de seu oficio, era sua linguagem mais ow menos aceita: de resto, era a tinica lingua- gem que naquela perpétua Babel podia ser verdadeiramente entendida por todos. Em suas varias gradagdes, era entendida como incitamento ao trabalho, como admoestagao ou punicao, na hierarquia dos suplicios ocupava os iiltimos lugares. Ora, 0 novo Kaze espancava de modo diferente, de modo convulsivo, maligno, perverso: no nariz, nas canelas, nos genitais. Batia para fazer mal, para produzir sofrimento € humilhagao. Nem era, como muitos outros, por cego Gdio racial, mas pela vontade de- clarada de infligir dor, indiscriminadamente e sem um pretexto, em todos os seus subordinados. & provavel que fosse um doen- te mental, mas estd claro que, naquelas condigdes, a indulgéncia que em relagio a esses doentes sentimos hoje como obrigat6ria seria destituida de sentido. Falei disso com um colega, um comu- nista judeu da Crodcia: 0 que fazer? Como defender-se? Agir co- Ietivamente? Ele sorriu estranhamente e apenas me disse: “Voce veré que ele ndo vai durar muito”. De fato, 0 espancador desa- areceu em uma semana, Mas, anos mais tarde, num simpésio de sobreviventes, soube que alguns prisionciros politicos com fungies no Fxcritério do Trabalho dentro do campo tinham 0 poder terrivel de substituir os mimeros de identificagao nas lis 64 tas dos prisioneiros destinados ao gés. Quem tinha a oportuni dade ¢ a vontade de agir assim, de enfrentar assim ou de outra forma a maquina do Lager, estava imune a “vergonha”: ou, pelo menos, daquela de que estou falando, porque talvez sinta uma outra. Igualmente imune devia estar Sivadjan, homem silencio- so ¢ tranqililo que citei casualmente em Se questo @ tu somo (Se isto € um homem) (Tarim, Einaudi, 1958), no capitulo “O canto de Ulises”, de quem soube na mesma ocasiéo que introduzia ex- plosivo no campo, com vistas a uma possivel insurreigao. ‘A meu ver, o sentimento de vergonha ou de culpa que coin: cidia com a liberdade reconquistada era fortemente complexe continha em si elementos diferentes, € em proporgées diferentes para cada individuo singular. Deve-se recordar que cada um de nés, seja objetivamente, seja subjetivamente, viveu o Lager a seu modo. A saida da escuridao, sofria-se em razdo da consciéncia re- adquirida de ter sido aviltado. Nao por vontade, nao por pusila nimidade, nem por culpa, vivéramos durante meses ou anos num nivel animalesco: nossos dias tinham sido assolados, desde a madrugada até a noite, pela fome, pelo cansago, pelo frio, pelo medo, € © espago para pensar, para raciocinar, para ter afeto, tinha sido anulado. Suportéramos a sujcira, a promiscuidade ¢ a Gestituigao, sofrendo com elas muito menos do que sofreriamos na vida normal, porque nosso metro moral havia mudado. Além disso, todos roubaramos: na cozinha, na fabrica, no campo, rou- béramos “dos outros”, da contraparte, mas era furto do mesmo modo; alguns (poucos) se rebaixaram até 0 ponto de roubar 0 pao do proprio companheiro, Esquecéramos nao s6 nosso pais € nossa cultura, mas a familia, o passado, 0 futuro que nos havia~ mos proposto, porque, como os animais, estévamos restritos ao momento presente, Dessa condigao de aviltamento safamos s6 a raros intervalos, nos pouquissimos domingos de repouso, nos minutos fugazes antes de cair no sono, durante a ftiria dos bom- bardeios aéreos, mas eram safdas dolorosas, justamente porque nos davam oportunidade de medir, de fora, nossa diminuigao, Creio que exatamente a esse recuo para observar a “égua perigosa” € que se dever os muitos casos de suicidio apés (as 65 veres, logo apés) a libertagao, Era sempre um momento critico, que coincidia com uma vaga de revisio e de depressdo. Inversa- mente, todos os historiadores dos Lager, inclusive dos soviéticos, so concordes em abservar que os casos de suicidi durante 0 cativeiro eram raros, Tentaram-se diferentes explicagdes para © fato; por meu turno, proponho trés, que nao se excluem rec procamente. Primeiro: 0 suicidio & proprio do homem e nao do animal, isto €, trata-se de um ato meditado, uma escolha nao instintiva, nao natural; ¢ no Lager havia poucas oportunidades de escolher, -se justamente como os animais subjugados, que as vezes se deixavam morter, mas nao se matam. Segundo: *havia mais em que pensar’, como se diz comumente. 0 dia estava ocupado: tinha-se de pensar em satisfazer a fome, em evitar de algum modo 0 cansago € 0 frio, em escapar dos golpes; justamente pela iminéncia constante da morte, faltaya o tempo para concentrar~ se na idéia da morte. Tem a rudeza da verdade a observagao de Svevo, em A consciéncia de Zeno, quando descreve sem piedade a agonia do pai: “Quando se morre, ha mais 0 que fazer do que pensar na morte. Todo 0 seu organismo estava dedicado a respi- ragdo”. Terceiro: na maior parte dos casos, 0 suicidio nasce de ‘mento de culpa que nenhuma punigao conseguiu ate- nuar; ora, a dureza do cativeiro era percebida como uma puni- Gao, ¢ 0 sentimento de culpa (se hé punigdo, uma culpa deve ter havido) estava relegado ao segundo plano, ressurgindo apés a libertagao: em outras palavras, nao era preciso punir-se com o suicidio por uma culpa (verdadeira ou suposta) que ja se expia va com 0 sofrimento de todos os dias Qual culpa? Depois de tudo, emergia a consciéncia de nao ter feito nada, ou de nao ter feito o suficiente, contra o sistema no qual foramos absorvides. Da falta de resisténcia nos Lager, ou melhor, em alguns Lager, se falou demais e com demasiada su- perficialidade, sobretudo por parte de quem tinha outzos tipos de culpa para dar conta, Quem passou pela prova sabe que exis- tiam situagies, coletivas € pessoais, nas quais uma resisténcia ativa era possivel; e outras, muito mais freqiientes, nas quais nao © era, Sabe-se que, especialmente em 1941, cairam em maos um se 66 alemas milhdes de prisioneiros militares soviéticos. Eram jovens, em sua maioria bem nutridos € robustos, tinham uma prepara- io militar e politica, muitas vezes constitufam unidades org cas com militares graduados, suboficiais e oficiais; odiavam os alemées, que haviam invadido seu territério: no entanto, rara~ mente resistiram. A desnutrigao, a privagdo € os outros sofrimen- tos fisicos, que € 30 facil © econdmico provocar ¢ em que os nazistas eram mestres, sdo rapidamente destrutivos e, antes de destruir, paralisam; ainda mais quando sao precedidos par anos de segregacio, humilhagdo, maus-tratos, migracdes forcadas, dilaceramento dos lagos familiares, ruptura dos contatos com 0 resto do mundo, Ora, essa era a condigéo da maior parte dos pri- sioneiros que chegavam a Auschwitz, apés inferno preparaté- io dos guetos ou dos campos de triagem. Por isso, no plano racional nao haveria muito do que se envergonhar, mas a yergonha restava do mesmo modo, sobretu- do diante dos poucos, licidos exemplos de quem tivera a forga € a possibilidade de resistir; aludi a isto no capitulo “O ultimo”, de Se questo @ un wom, no qual se descreve o enforcamento puibli- co de um resistente diante da multidao aterrada e apatica dos prisioneiros, Trata-se de um pensamento que entéo nos tocara apenas de leve, mas que voltou “depois”: também vocé talvez, pudesse, certamente devia; € € um julgamento que o sobrevi vente vé, ou acredita ver, nos olhos daqueles (especialmente dos jovens) que escutam suas narragdes e julgam com facilidade os fatos passados; ou que, quem sabe, sente ser-lhe enderecado sem piedade, Conscientemente ou ndo, sente-se acusado e jul- gado, forcado a justificar-se e a defender-se Mais realista € a auto-acusagdo, ou a acusagao, de ter falha- do no aspecto da solidariedade humana, Poucos sobreviventes se sentem culpados de ter deliberadamente lesado, subtraido, gol- peado um companheiro: quem o fez (os Kapos, mas nao s6 eles) trata de recalcar a lembranga; inversamente, quase todos se sen- tem culpados de omissao de socorro. A presenga a seu lado de um companheiro mais fraco, ou mais indefeso, ou mais velho, ‘ow demasiado jovem, que 0 assedia com pedidos de ajuda, ou com a simples “presenga” que por si s6 € uma stiplica, é uma ni “7 constante da vida do Lager. 0 pedido de solidariedade, de uma palayra humana, de um conselho ou apenas de atencao era per- manente € universal, mas raramente encontrava satistacao. Fal- tavam 0 tempo, 0 espaco, a privacidade, a paciéncia, a forga; no mais das vezes, aquele a quem o pedido era dirigido se achava, por seu turno, num estado de caréncia, de erédito. Lembro com um certo alivio ter uma vez tentado encorajar (num momento em que me sentia capaz) um rapaz. italiano recém-chegado, que se debatia no desespero sem fundo dos pri- eiros dias do campo: esqueci o que Ihe falei, certamente pala~ vyras de esperanga, talvez uma mentira adequada a um “novato”, dita com a autoridade de meus vinte e cinco anos e de meus trés meses de experiéncia; seja como for, prestei-lhe uma atengao momentinea. Mas lembro também, com mal-estar, ter algado os ombros com impaciéncia muito mais vezes diante de outras stiplicas, ¢ isto justamente quando jé tinha quase um ano de campo ¢, portanto, acumulava uma boa dase de experiéneia: no entanto, havia também assimilado profundamente a regra prin- cipal do lugar, que prescrevia a cada qual cuidar antes de tudo de si mesmo. Jamais encontrei esta regra expressa com tanta franqueza quanto no livro Prisoners of Fear (Londres, Victor Gol- lancz, 1958), de Ella Lingens-Reiner (no qual, porém, a frase é atribuida a uma doutora que, contra seu enunciado, se revelou generosa e corajosa, salvando muitas vidas): Como pude sobreviver a Auschwitz? Meu principio 6: em pri- meiro lugar, em segundo € em terceiro estou eu, Depois mais nada, Entdo, eu de novo; e depois, todos os outros. Em agosto de 1944, fazia muito calor em Auschwitz. Um vento quente, tropical, levantava nuvens de pé dos edific ruinados pelos bombardeias aéreos, secava-nos 0 suor no corpo © engrossava-nos 0 sangue nas veias. Minha equipe fora manda- da a um depésito para retirar os escombros, ¢ todos sofriamos com a sede; um castigo novo, que se somava ou, antes, se mul- liplicava com 0 velho castigo da fome. Nem no campo nem nas reas de trabalho havia 4gua potdvel; naqueles dias, muitas 68 vezes faltava até a gua dos lavat6rios, nao potavel, mas adequa- da para nos refrescar ¢ livrar da pocira. Normalmente, para satis- lazer a sede bastava com sobras a sopa da noite € o sucedaneo de café que era distribuido pelas dez da manha; agora nao bastavam mais, ¢ a sede nos atormentava. E mais imperiosa do que a fome a fome obedece aos nervos, concede adiamento, pode ser tem- porariamente coberta por uma emogio, uma dor, um medo (per cebéramos isto na viagem de trem desde a Italia); mas nao a sede, que nao da trégua. A fome extenua, a sede enfurece; na- queles dias ela nos acompanhava de dia € de noite: de dia, nos locais de trabalho, cuja ordem (nossa inimiga, mas de qualquer modo uma ordem, um lugar de coisas légicas e certas) se havia transformado num caos de objetos despedagados; de noite, nos alojamentos carentes de ventilagie, onde arquejdvamos no ar cem veres respirado. 0 canto do depésito que me fora confiado pelo Kapo para que o desentulhasse era contiguo a um amplo local ocupado por apetrechos quimicos em curso de instalagéo, mas j4 danificados, pelas bombas. Ao longo da parede, vertical, havia um cano de duas polegadas, que terminava com uma torneira pouco aci ma do pavimento, Uma tubulacao de agua? Experimentei abrir a tomeira, estava 86, ninguém me via. Estava emperrada, mas, usando uma pedra como martelo, consegui deslocé-la alguns milimetros. Sairam algumas gotas, nao tinham cheiro, recolhi-as nos dedos: parecia mesmo agua. Nao tinha recipiente; as gotas pingavam lentas, sem pressao: a tubulagdo devia estar cheia até somente a metade, talvez menos. Estirei-me por terra com a boca debaixo da torneira, sem tentar abri-la mais: era uma agua aquecida pelo sol, insipida, talvez destilada ou de condensacao; de qualquer modo, uma delicia Quanta agua pode conter um cano de duas polegadas, com uma altura de um metro ou dois? Um litro, talvez nem isso. Po- dia bebé-la toda imediatamente, seria 0 caminho mais seguro. Ou deixar um pouco para o dia seguinte. Ou dividi-la meio a meio com Alberto. Ou revelar 0 segredo a toda a equipe. Escolhi a terceira alternativa, aquela do egoismo estendido a quem Ihe esté mais vizinho, que um amigo meu num tempo 69 distante chamou apropriadamente de “nés-ismo”. Bebemos toda aquela dgua, a pequenos sorvos avaros, alternando-nos sob a tomeira, s6 n6s dois. Em segredo; mas na marcha de volta para ‘© campo me vi ao lado de Daniele, todo cinza de po de cimento, com 05 labios rachados € 5 olhos luzidios, € me senti culpada Troquei um olhar com Alberto, compreendemo-nos de imedia- to, esperando que ninguém nos tivesse visto. Mas Daniele nos entrevira naquela estranha posi¢ao, deitados junto & parede em meio aos escombros, suspeitara de alguma coisa e depois adivi- nhara. Disse-me isso com dureza muitos meses depois, na Riis- sia Branca, apés a libertagao: por que vocés dois, eu ndo? Era © cédigo moral “civilizado” que ressurgia, o mesmo cédigo pelo qual a mim, homem hoje livre, se revela terrivel a condenagéo 8 morte do Kapo espancador, decidida € realizada sem apelacao, em siléncio, com um movimento de borracha de apagar. Justifi- ca-se ou no a vergonha posterior? Nao consegul estabelecé-lo entao, assim como nao consigo hoje, mas a vergonha havia ¢ hé, concreta, pesada, perene. Daniele agora esté morto, mas em ‘nssos encontros de sobreviventes, fraternos, aletuosos, 0 véu daquele ato no havido, daquela Agua pouca no compartitha- da, estava entre nds, transparente, inexpresso, mas perceptivel e “custoso”. Mudar de c6digo moral é sempre custoso: sabem-no todos 08 heréticos, os apdstatas e os dissidentes. Nao mais somos capa 2es de julgar nosso comportamento ¢ o alheio, tido noutra época segundo 0 cédigo de entao, com base no cédigo de hoje: mas se parece justa a c6lera que nos invade quando vemos que algum dos “outros” se sente autorizado a nos julgar a nds, “apésiatas’, ou melhor, reconvertidos. Vocé tem vergonha porque esta vivo no lugar de um outro? E, particularmente, de um homem mais generoso, mais sensivel, mais sabio, mais util, mais digno de viver? E impossivel evitar isso: voce se examina, repassa todas as suas recordagies, espe- rando encontré-las todas, e que nenhuma delas se tenha masca- rado ou travestido; nao, vocé nao vé transgressdes evidentes, nao defraudou ninguém, nao espancou (mas teria fora para tanto?), 70 nao aceitou encargos (mas nao lhe ofereceram...), néo roubou o pao de ninguém; no entanto, € impossivel evitar. £ s6 uma supo- sig3o ou, antes, a sombra de uma suspeita: a de que cada qual seja 0 Caim do seu irmao e cada um de nés (mas desta vez digo “nos” num sentido muito amplo, ou melhor, universal) tenha defraudado seu proximo, vivendo em lugar dele, E uma suposi- «do, mas corréi; penetrou profundamente, como um carcoma; de fora nao se vé, mas corréi e grita, Ao retornar do campo, veio visitar-me um amigo mais velho do que eu, sereno € intransigente, cultor de uma religiao sua, pessoal, mas que sempre me pareceu severa e séria. Estava con- tente de me reencontrar vivo € substancialmente ileso, talvez amadurecido e fortalecido, certamente mais rico. Disse-me que 0 fato de ter sobrevivido nao podia ter sido obra do acaso, de um acimulo de circunstancias afortunadas (como sustentava € como ainda sustento), mas sim da Providéncia. Eu era um esco- Ihido, um eleito: eu, 0 nao crente, ¢ ainda menos crente apds 0 periodo de Auschwitz, fora tocado pela Graga, um salvo. E por que justamente eu? Nao se pode saber, ele me respondeu. Tal vez, porque escrevesse, €, escrevenda, trouxesse um testemunho: com efeito, ndo estava escrevendo entdo, em 1946, um livro so- bre meu cativeiro? Essa opinigo me pareceu monstruosa. Doeu-me como quan- do se toca um nervo exposto, reavivando a diivida que expus acima: poderia estar vivo no lugar de um outro, a custa de um ‘outro; poderia ter de fraudado, ou seja, matado efetivamente. Os salvos” do Lager nao cram os melhores, os predestinados ao bem, os portadares de uma mensagem: tudo 0 que eu tinha visto vivido demonstrava o exato contrario. Sobreviviam de prefe- 1éncia os piores, 05 egoistas, os violentos, os insensiveis, os cola~ boradores da “zona cinzenta”, os delatores. Nao era uma regra certa (no havia nem ha, nas coisas humanas, regras certas), mas era de qualquer modo uma regra. Decerto me sentia ino- cente, mas, arrolado entre os sobreviventes, buscava permanen- temente uma justificagao diante de meus othos € dos de outros Sobreviviam os piores, isto é, os mais adaptados; os melhores, todos, morreram. n Morreu Chajim, relojociro de Cracévia, juden piedoso, que a despeito das dificuldades de linguagem se esforgara por me entender ¢ por se fazer entender, explicando a mim, estrangei- ro, as regras essencials de sobrevivéncia nos primeiros dias cru iais de encarceramento; morreu Szabé, o taciturno camponés hiingaro, que, tendo quase dois metros de altura, tinha mais fome do que todos, mas que, enquanto teve forgas, nao hesitou em ajudar os companheiros mais fracos a se erguerem ¢ segui- rem adiante; ¢ Robert, professor da Sorbonne, que irradiava coragem ¢ confianga ao redor de si, falava cinco linguas, se con- sumia em registrar tudo em sua meméria prodigiosa, ¢, caso ria respondido aos porqués a que cu nao sei respon der; morreu Baruch, estivador do porto de Livorno, imediata mente, no primeiro dia, porque respondeu com socos ao primei- Fo soco que recebera, € foi massacrado por trés Kapos juntos. Estes, € intimeros outros, morreram ndo malgrado scu valor, ‘mas por causa de seu valor. 0 amigo religioso me havia dito que eu sobrevivera a fim de dar testemunho, Eu 0 dei da melhor forma que pude, e nao teria podido deixar de dé-lo; ¢ ainda o fago, sempre que se me apr senta a ocasido; mas a idéia de que o privilégio de sobreviver aos ‘outros ¢ de viver por muitos anos sem maiores problemas tenha propiciado este meu testemunho, esta idéia me inquieta, porque nao vejo proporgio entre o privilégio eo resultado. Repito, ndo somos nds, os sobreviventes, as auténticas tes- temunhas. Esta é uma nogio incomoda, da qual tomei conscién- ‘ia pouco a pouco, lendo as memérias dos outros € relendo as minhas muitos anos depois. N6s, sobreviventes, somos uma mi- noria andmala, além de exfgua: somos aqueles que, por prevari- cago, habilidade ou sorte, ndo tocamos o fundo, Quem o fez, quem fitou a gérgona, nao voltou para contar, ou voltou mudo; mas so cles, 0s “muculmanos’, os que submergiram — sao eles as testemunhas integrais, cujo depoimento teria significado geral. Eles sao a regra, nds, a excecao. Sob um outro céu, mas sobrevi vente de uma escravidio andloga e diferente, também Soljenit- sin observou issor vivesse, n ‘Quase todos aqueles que sofreram uma longa pena, © com os quais nos congeatulames na condigio de sobreviventes, sao indis- cutivelmente pridurki, ou 0 foram durante a maior parte do encar- 10 deve ser ceramento, Porque os Lager so de exterminio, 0 que n esqueeido. Na linguagem daquele outro univers concentracionédrio, chamam-se pridurki os prisioneiras que, de um modo ou de ‘outro, obtiveram para si uma posigio de privilégio; sio aqueles que entre nés se chamavam os Proeminentes. Nés, tocados pela sorte, tentamos narrar com maior ou menor sabedoria nao $6 nosso destino, mas também aquele dos outros, dos que submergiram: mas tem sido um discurso “em nome de terceiros’, a narragao de coisas vistas de perto, nao ex- perimentadas pessoalmente. A demoligio levada a cabo, a obra consumada, ninguém a narrou, assim como ninguém jamais voltou para contar sua morte. Os que submergiram, ainda que tivessem papel e tinta, nao teriam testemunhado, porque sua morte comecara antes da morte corporal. Semanas © meses an- tes de morrer, ja tinham perdido a capacidade de observar, re~ cordar, medir ¢ se expressar. Falamos nds em lugar deles, por delegagao. Eu nao saberia dizer se o fizemos, ou 0 fazemos, por uma espécie de obrigagio moral para com os emudecidos ou, entao, para nos livrarmos de sua meméria: com certeza o fazemos por um impulso forte € duradouro, Nao creio que os psicanalistas (que se atiraram sobre nossa trama com avider profissional) sejam competentes para explicar esse impulso. Seu saber foi construido e verificado “fora”, no mundo que por simplicidade chamamos de civilizado: reproduz-Ihe a fenomenologia ¢ tenta explicd-la; estuda-lhes os desvios e tenta curd-los. Suas interpre- tages, mesmo aquelas de quem, como Bruno Bettelheim, pas- sou pela prova do Lager, me parecer aproximativas e simplifica~ das, como as de quem quisesse aplicar os teoremas da geomettia plana a resolucao dos tridngulos esféricos. Os mecanismos men- lais dos Hafilinge (prisioneiros) eram diferentes dos nossos; cu- riosamente, paralelamente, diversa era também sua lisiologia B € patologia. No Lager, o resfriado e a gripe cram desconhecidos, mas se mortia, as vezes subitamente, por males que os médicos jamais tiveram oportunidade de estudar. Saravam (ou se torna~ vam assintomaticas) as tileeras gastricas ¢ as doengas mentais, mas todos sofriam de um mal-estar incessante, que perturbava 0 sono € que nao tem nome. Defini-lo como “neurose" € redutivo € ridiculo, Talvez.fosse mais justo nele reconhecer uma angiistia atdvica, aquela cujo eco se sente no segundo versiculo do Gene- sis: a anguistia — inscrita em cada qual — do 13h vavdhu, do uni verso deserto € vazio, esmagado sob 0 espirito de Deus, mas do qual o espirito do homem esta ausente: ainda nao nascido ou id extinto. E hd uma outra vergonha mais ampla, a vergonha do mun- do. John Donne disse admiravelmente, ¢ foi citado inimeras vezes com ou sem propdsito, que “nenhum homem é uma ilha” € cada sinal de monte ressoa para todos, No entanto, existe quem, diante da culpa alheia ou da propria, da as costas a fim de nao vé-la nem se sentir por ela tocado: foi o que fez a maior parte dos alemaes nos dove anos hitlerianos, na ilusio de que nao ver significasse ndo saber e que nao saber os livrasse de sua cota de cumplicidade ou de conivéncia. Mas a nés o biombo da ignorancia deliberada, o partial shelter de T. $. Elliot, foi negado: nao pudemos deixar de ver. © mar de dor, passado e presente, nos circundava, e seu nivel subia de ano em ano até quase nos fazer submergit. Eta intl fechar os olhos ou virar-the as costas, porque estava inteiramente em torno de nés, em toda diregéo até 0 horizonte. Nao nos era possivel, nem quisemos, ser ilhas: entre nés, os justos, nem mais nem menos numerosos do que em qualquer outro grupo humano, experimentaram remorso, vergonha, dor — em resumo —, pelo crime que outros, ¢ nao eles, tinham cometido, e no qual se sentiram envolvidos, porque sentiam que tudo quanto acontecera em torno deles, em sua presenga, € neles, era irrevogavel. Jamais poderia ser cancelado; demonsirava que © homem, o género humano, nés, em suma, ramos potencialmente capazes de construir uma quantidade infinita de dor; e que a dor a tinica forca que se cria do nada, sem custo ¢ sem cansago. Basta ndo ver, ndo ouvir, nao fazer. ” Muitas vezes nos & perguntado, como se nosso passado nos conferisse uma virtude profética, se “Auschwitz” retomara: ou seja, se acontecerdo outros exterminios em massa, unilaterais, sistematicos, mecanizados, intencionais em nivel de governo, per petrados contra populagdes inocentes © inermes, e legitimados pela doutrina do desprezo, Para nossa sorte nao somos profetas, mas algo se pode dizer. Pode-se dizer que uma tragédia andloga, quase ignorada no Ocidente, ocorreu. por volta de 1975, no Camboja: que 0 massacre alemao pode ser dellagrado, depois se alimentando de si mesmo, por ansia de servidao ¢ por mesqui- nhez de espirito, gracas & combinagio de alguns fatores (0 esta~ do de guerra; 0 perfeccionismo tecnolbgico ¢ oxganizativo ale- mao; a vontade € o carisma de Hitler; a auséncia, na Alemanha, de sdlidas raizes democraticas), nd muito numerosos, cada um deles indispensdvel mas insuficiente se tomado isoladamente. Esses [atores podem reproduzir-se, € parcialmente ja se estéo reproduzindo, em vérias partes do mundo. A recombinagio de todos, em dez ou vinte anos (de um futuro mais distante nao faz sentido falar), € pouco provavel mas nao impossivel. A meu ver, uum massacre de massas ¢ particularmente improvavel no mun. do ocidental, no Japao ¢ mesmo na Unido Sovietica: os Lager da Segunda Guerra Mundial ainda estéo na memoria de muitos, seja na populagio, seja no governo, ¢ est em agao uma espécie de defesa imunolégica, que coincide amplamente com a vergo- nha da qual falei, Acerca do que pode ocorrer em outras partes do mundo, ou depois, prudente suspender o juizo; e o apocalipse nuclear, cer~ tamente bilateral, provavelmentc instantaneo ¢ definitive, € um horror maior e diferente, estranho, novo, que supera 0 tema que escolhi 1V_ Comuntcar 0 termo “incomunicabilidade”, to em voga nos anos 1970, jamais me agradou; em primeiro lugar, porque € um monstro lingiifstico, em segundo por razdes mais pessoais. No mundo normal de hoje, aquele que por convengao € por contraste chamamos de “civilizado” ou de “livre”, quase nunca acontece chocarmo-nos contra uma barreira lingilistica total: encontrarmo-nos diante de um ser humano com 0 qual deve- ‘mos absolutamente estabelecer uma comunicacdo, sob risco de vida,e ndo conseguirmos. Disso deu um exemplo famoso, mas incompleto, Antonioni em Deserto vermello, no episédio em que a protagonista encontra na noite um marinheiro turco que nao sabe uma palavra de nenhuma lingua sendo a sua, e tenta em vao se fazer entender. Incompleto, porque de ambas as partes, mesmo daquela do marinheiro, a vontade de comunicar existe: ou, pelo menos, falta a vontade de recusar 0 contato. Segundo uma teoria em voga naqueles anos, ¢ que me pare- ce frivola e irritante, a “incomunicabilidade” seria um ingredien te inevitavel, uma condenagao perpétua inserida na condigao humana, em especial no modo de viver da sociedade industrial: somos ménadas, incapazes de mensagens reciprocas, ou 36 capa- zes de mensagens truncadas, falsas desde a emissao, desentendi- das na recepgio. O discurso ¢ ficticio, puro ruido, véu postigo 1 que recobre o silencio existencial; pobres de nés, somos s6s, mes- mo se (ou especialmente se) vivemos a dois. Parece-me que essa lamentagao procede de preguiga mental ¢ a revela; ceriamente, encoraja-a, num perigoso circulo vicioso. Salvo casos de incapa~ cidade patologica, pode e deve comunicar-se: € um modo titi ¢ f4cil de contribuir para a paz alheia e a prépria, porque o silén. cio, a auséncia de sinais, € por vez um sinal, mas ambiguo, ¢ a ambigiiidade gera inquietude © suspeigao. Negar que se pode comunicar é falso: sempre se pode, Recusar a comunicagao € cri- me; para a comunicagéo, ¢ especialmente para aquela sia forma altamente evoluida ¢ nobre que € a linguagem, somos biologica- mente € socialmente predispostos. Todas as ragas humanas fa Jam; nenhuma espécie ndo-humana sabe falar. ‘Também sob 0 aspecto da comunicagao, ou melhor, da nao- comunicagio, nossa experiencia de sobreviventes é peculiar. £ um cansativo costume nosso intervir quando alguém (os filhos!) fala de frio, de fome ou de cansago. Voces, 0 que sabem disso? Deveriam passar pelo que passamos, Por razdes de bom gosto € de boa vizinhanga, buscamos em geral resistir 4 tentagao destas intervengdes préprias de miles gloriesus; a qual, porém, para mim se toma imperiosa justamente quando ouco falar de comunica~ so malograda ou imposstvel. “Deveriam passar pelo que passa- mos”. Nao € compardvel com 0 turista que vai a Finlandia ou ao Japao ¢ encontra interlocutores aloglotas, mas profissionalmen- te (ou mesmo espontancamente) gentis e bem-intencionados, que se esforgam por entendé-lo e Ihe ser titeis: de resto, quem é que num canto qualquer do mundo nao balbucia um pouco de inglés? E os pedidos dos turistas so poucos, sempre os mesmos: assim, as aporias sdo raras, e o quase-ndo-entendimento pode até ficar divertido como uma brincadeira E cerlamente mais dramatico 0 caso do imigrante, o italia- no na América hd cem anos, 0 turco, 6 marroquino ou 0 paqu fanés na Alemanha ou na Suécia hoje. Aqui nao se trata mais de uma rapida incursao sem imprevistos, levada a efeito a0 Tongo das trilhas bem testadas das agéncias de viagem: trata-se de uma transplantacio, talvez definitiva; € uma insergéo num trabalho que hoje raramente é elementar e no qual a comprecn- 78 so da palavra, pronunciada ou escrita, é necesséria; compor- ta relagdes humanas indispenséveis com os vizinhos de casa, os lojistas, os colegas, os superiores: no trabalho, na rua, no bar, com gente estranha, de costumes diversos, muitas vezes hostil. Mas 0 corretivos nao faltam, a prépria sociedade capitalista é bastante inteligente para compreender que aqui seu lucro coin- cide amplamente com 0 rendimento do “trabalhador de fora” ¢, portanto, com seu bem-estar € sua insergao. E-the concedido trazer a familia, ou seja, um pedaco da patria; bem ou mal ¢ pro- videnciado um alojamento; ele pode (as vezes deve) freqiientar escolas de lingua. O surdo-mudo que desembarca do trem é aju- dado, talvez sem amor, ndo sem eficiéncia, ¢ em breve readqui- rea palavra, Nés vivemos a incomunicabilidade de modo mais radical. Refiro-me em especial aos deportados italianos, iugoslavos e gre gos; em medida menor, aos franceses, entre os quais muitos eram de origem polonesa ou alema, ¢ alguns, sendo alsacianos, enten diam bem o alemao; ¢ a muitos htingaros, que provinham do campo. Para nés, italianos, o choque contra a barreira lingiiistica ocorreu dramaticamente ja antes da deportacio, ainda na Itélia, no momento em que os {uncionérios da Seguranga Piblica italia nha nos cederam, com visivel relutancia, aos SS, que em Fevereiro de 1944 se arrogaram a gestdo do campo de triagem de Fossoli perto de Médena. Logo nos demos conta, desde os primeiros con- tatos com os homens desdenhosos com distintivos negros, de que saber ou nao o alemao era um divisor de éguas. Com quem os compreendia e Lhes respondia de modo articulado, instaurava-se uma aparéncia de relago humana. A quem nao os compreendia os homens de negro reagiam de um modo que nos espantou e amedrontou: a ordem, que havia sido pronunciada com a voz tranqtiila de quem sabe que sera obedecido, era repetida em voz alta ¢ enfurecida, depois berrada a plenos pulmdes, como se faria com um surdo, ou melhor, com um animal doméstico, mais sen- sivel ao tom do que ao contetido da mensagem. Se alguém hesitava (hesitavam todos, porque nao compre- endiam ¢ estavam aterrorizados), vinham os golpes, ¢ era evi- dente que se tratava de uma variante da mesma linguagem: o 0 uso da palavra para comunicar © pensamento, este mecanismo necessario ¢ suficiente para que 9 homem seja homem, tinha caducado. Era um sinal: para eles, nao éramos mais homens; conosco, como com vacas ou mulas, ndo havia diferenga subs- tancial entre 0 berro eo murro, Para que um cavalo corra ou pare, mude de diregao, puxe ou pare de puxar, nao € preciso ne- gociar com ele ou dar-lhe explicages minuciosas; basta um dicionario constituido de uma diizia de signos diferentemente combinados mas univocos, ndo importa se aciisticos, tateis ou visuais: tragdo das rédeas, aguilhao das esporas, gritos, gestos, gol- pes de chicote, estalos dos labios, pancadas no dorso, tudo serve igualmente. Falar com 0 cavalo seria uma agao esttipida, como falar sozinho, ou um patetismo ridiculo: o que ele compreende~ ria? Narra Marsalek, em seu livro Mauahausen (Milao, La Pietra, 1977), que nesse Lager, ainda mais diversificado lingiiisticamen- te do que Auschwitz, 0 chicote se chamava der Dolmetscher, 0 ntérprete: aquele que se fazia compreender por todos, De fato, 0 homem inculto (€ os alemaes de Hitler, especial- mente os 8, eram terrivelmente incultos: nao tinham sido “edu- cados”, ou 0 tinham sido mal) nao sabe distinguir nitidamente entre quem nao compreende sua lingua e quem nao compreende ‘out court, Martelara-se na cabega dos jovens nazistas que no mundo existia uma s6 civilizagio, a alema; todas as outras, pre~ sentes ou passadas, s6 cram aceitéveis na medida em que conti- vessem alguns elementos germénicos. Por isso, quem nao com- preendia nem falava o alemao cra um barbaro por definigdio; se se obstinava em tentar expressar-se em sua lingua, ou melhor, em, sua ndo-lingua, era preciso fazé-lo calar-se a sopapos e repd-lo em seu lugar, a puxar, a carregar, a empurrar, porque nao era um Mensch, um ser humano. Vem-se & meméria um epis6dio elo- qiiente, No local de trabalho, © Kapo novato de uma brigada, cons- titufda prevalentemente de italianos, franceses gregos, nao havia percebido que as suas costas se aproximara um dos mais temiveis vigilantes SS. Voltou-se de uma s6 vez, perfilou-se desconcertado © enunciou a Melding — informagao prescrita: “Comando 83, quarenta ¢ dois homens’, Em sua perturbagio, dissera exatamen- te aweiundvierzig Mann, “homens”. 0 soldado o corrigiu em tom 80 severo € pateno: ndo se diz assim, diz-se zweiuundvierzig Hifitinge, quarenta e dois prisioneiros. Era um Kapo jovem e, portanto, me recedor de perdao, mas devia aprender o oficio, as conveniéneias sociais € as distdncias hierdrquicas. 0 {ato de “nao ser interpelado” tinha efeitos rapidos ¢ devas tadores. A quem nao Ihe fala, ou s6 se the ditige com gritos que parecem inarticulados, vocé nao ousa dirigir a palavra. Se voce tem a sorte de encontrar a seu lado alguém com quem tenha uma lingua comum, tanto melhor: poder trocar impresses, aconselhar-se, desafogar-se; se ndo encontra ninguém, a lingua se Ihe esvai em poucos dias, e, com a lingua, 0 pensamento. Além disto, no plano mais imediato, nao se entendem as ordens ¢ as proibigdes, ndo se decifram as prescrighes, algumas fiiteis e risiveis, outras fundamentais, Em suma, vocé se vé no vario € compreende prépria custa que a comunicagéo gera a informagao e que, sem informagao, nao se vive. A maior parte dos prisioneiros que nao conheciam o alemao — portanto, quase todos 0s italianos — morreu nos primeiros dez ou quinze dias de sua chegada: & primeira vista, por fome, frie, cansago, doenga; num exame mais atento, por insuficiéncia de informagio. Se tivessem podido comunicar-se com os companheiros mais anti 20s, teriam se orientado melhor: aprenderiam antes a obter rou- pas, sapatos, comida ilegal; a evitar 0 trabalho mais duro e os encontros, muitas vezes mortais, com os SS; a cuidar sem erros fatais das doengas inevitaveis. Nao quero dizer que néo morre- riam, mas teriam vivido por mais tempo, tendo maiores possibi- lidades de recuperar o terreno perdido. ‘Na meméria de todos nés, sobreviventes, sofriveimente poli- slotas, os primeiros dias de Lager ficaram impressos sob a forma de um filme desfocado e frenético, cheio de som e de fliria, € ca- rente de significado: um caleidoscépio de personagens sem nome nem face, mergulhados num continuo ¢ ensurdecedor barulho de fundo, sobre 0 qual, no entanto, a palavra humana nao aflo- rava. Um filme em cinza e negro, sonoro mas nao falado. Em mim mesmo ¢ nos outros sobreviventes notei um efeito curioso desse vazio € dessa caréncia de comunicagio, Quarenta anos depois, ainda recordamos de forma puramente actistica 81 palavras ¢ frases pronunciadas em torno de nés em linguas que nao conheciamos nem depois aprendemos: para mim, por exem- plo, cm polonés ou hiingaro, Ainda hoje me lembro de como se enunciava em polonés nao meu niimero de controle, mas o do prisioneiro que me precedia na listagem de um certo alojamen- to: um emaranhado de sons que terminava harmoniosamente, como se indecifraveis cirandas infantis, em algo como stergishi siéri (hoje sei que essas duas palavras querem dizer *quarenta € quatro”). Com efeito, naquele alojamento eram poloneses o dis- tribuidor da sopa ¢ a maior parte dos prisioneiros, ¢ o polonés se tomara a lingua oficial; quando se ouvia 0 proprio numero, era preciso estar pronto com o prato estendido para nao perder a vez, e por isso, para nao ser colhido de surpresa, convinha le- vyantar-se ao ser chamado © companheizo com 0 numero de con- tole imediatamente anterior. Aquele stergishi stéri funcionava como a campainha que condicionava os caes de Pavlov: provo- cava uma imediata sccregao de saliva. Esses sons estrangeitos se inscreveram em nossas memoérias como sobre uma fita magnética vazia, em branco; do mesmo modo, um estémago faminto assimila rapidamente até um ali- mento indigesto, O sentido deles ndo nos ajudou a recorda-los, porque para nés nao tinham sentido; no entanto, muito mais larde, recitamo-los para pessoas que os podiam compreender, € um sentido, ténue ¢ banal, eles o tinham: eram imprecagies, blasfémias, pequenas frases cotidianas repetidas com freqiéncia, tais como “que horas s802*, “nao posso andar” ou “me deixa em paz". Eram fragmentos arrancados a indistingao: fruto de um esforgo inttil e inconsciente de captar um sentido no insensato. ‘Também eram 0 equivalente mental de nossa necessidade cor- pérea de nutrigéo, que nos levava a buscar cascas de batata nas imediagées das cozinhas: pouco mais do que nada, melhor do que nada, Também 0 cérebro subalimentado sofre uma fome especifica, Ou, talvez, essa meméria intitil e paradoxal tinha um outro significado © um outro escopo: era uma preparagao in- consciente para 0 “depois”, para uma sobrevivéncia improvavel, na qual cada migalha de experiéncia se tornaria uma pega de um amplo mosaico, 22 Narrei nas paginas iniciais de La tregua um caso extremo de comunicagao necessdria ¢ malograda: o do menino Hurbinek, de trés anos, talvez nascido clandestinamente no Lager, a quem ninguém tinha ensinado a falar e que experimentava uma exi- géncia intensa de falar, expressa por todo 0 seu pobre corpo. Também sob este aspecto, o Lager era um laboratério cruel em ‘que se podia assistir a situagies e comportamentos nunca vistos antes nem depois, nem em outra parte. Eu aprendera algumas palavras de alemao poucos anos antes, quando ainda era estudante, com 0 tinico objetivo de entender os textos de quimica e de fisica: por certo, nao para transmitir ativa- mente meu pensamento nem para compreender a linguagem falada, Eram os anos das leis raciais fascistas, ¢ um encontro meu com 0 alemao ou uma viagem 3 Alemanha pareciam eventos muito pouco provaveis. Atirado em Auschwitz, nao obstante a confusio inicial (antes, talvez exatamente gragas a ela), com: preendi muito bem que meu limitadissimo Wortschatz se tornara tum fator essencial de sobrevivéncia, Wortschate significa “patrimé- nio lexical”, mas literalmente “tesouro de palavras”; jamais um termo foi t0 apropriado. Saber o alemdo era a vida: bastava olhar ao redor. Os companheiros italianos que nao 0 compreendiam, isto é quase todos salvo alguns triestinos, afogavam-se um a um no mar tempestuaso do néo-entendimento: néo entendiam as ordens, recebiam murtos e pontapés sem compreender por qué. Na ética rudimentar do campo, estava previsto que um golpe se justificasse de algum modo, para facilitar 0 estabelecimento da corrente transgressao-punigao-arrependimento; assim, muitas ve~ 2zes 0 Kapo ou seus adjuntos faziam acompanhar a pancada com um grunhido: “Sabe por qué?*, a que se seguia uma suméria “comunicagao do delito”. Mas para os novos surdos-mudos esse cerimonial era initil. Refugiavam-se instintivamente num canto para protegerem as costas: a agressio podia vir de todas as dire- ‘des. Olhavam ao redor com ollos confusos, como animais presos numa armadilha, em que, com efeito, se haviam transformado. Para muitos italianos foi vital © auxilio dos companheiros franceses ¢ espanhdis, cujas linguas eram menos “estranhas” do 8 que o alemao. Em Auschwitz nao havia espanhdis, ao passo que os franceses (mais precisamente: os deportados da Franga ou da Bélgica) eram muitos, talvez 10% do total em 1944. Alguns eram alsacianos ou entéo judcus alemaes e poloneses, que no dec precedente haviam buscado na Franga um reftigio que se reve- lara uma armadilha: todos estes conheciam bem ou mal o ale- mao ou 0 idiche. Os outros, os franceses metropolitanos, prole- tarios, burgueses ou intelectuais, tinham sofrido um ou dois anos antes uma selecdo anéloga a nossa: 0s que néo compreendiam safram de cena. Os restantes, quase todos metecos, a seu tempo acothidos na Franga bastante mal, haviam conseguido uma tris- te desforra. Eram nossos intérpretes naturais: traduziam para nds os comandos ¢ as adverténcias fundamentais da jornada, “levantar”, “agrupar”, “em fila para o pao", “quem esta com 0 sapato estragado?", “trés a trés”, “cinco a cinco” etc Por certo nao bastava. Supliquei a um deles, um alsaciano, que me desse un curso privado e intensivo, distribuido em cur- tas ligdes ministradas em vor baixa, entre 0 momento do toque de recolher ¢ aquele em que cediamos ao sono; ligdes que se pagariam com pio, outra moeda nao havia. Ele aceitou, e creio que jamais se empregou 0 pao téo bem. Explicou-me o que sig- nificavam os berros dos Kapos € dos $S, os lemas anédinos ou irdnicos escritos em gético e afixados nos alojamentos, o que sig. nificavam as cores dos triangulos que traziamos no peito sobre © miimero de controle. Assim pude observar que 0 alemao do Lager, descarnado, gritado, coalhado de obscenidades ¢ de im- precag6es, tinha somente um vago parentesco com a linguagem precisa e austera de meus textos de quimica e com 0 alemao me- lodioso e refinado das poesias de Heine, que me recitava Clara, uma de minhas companheiras de estudo. Nao me dava conta, ¢ $6 me dei conta disto muito mais tarde, de que 0 alemao do Lager era uma lingua prépria: pata dizé-lo justamente em alemdo, era oris- und zeitgebunden, ligada ao lugar © ao tempo. Era uma variante, particularmente barbara, daquilo que um filélogo judeu alemao, Klemperer, tinha batizado como Lingua Tertii Impirii, a Vingua do Terceiro Reich, inclusive propon- do para cla a sigla LT, em irdnica analogia com as muitas outras Ba (NSDAP, $5, SA, SD, KZ, RKPA, WVHA, RSHA, BDM...) caras Alemanha de ent3o. Sobre a LTI € sobre seu equivalente italiano jé se escreveu muito, mesmo da parte dos lingilistas. E 6bvia a observagdo de que, quando se violenta 0 homem, também se violenta a lingua gem; € na Itélia no esquecemos as tolas campanhas fascistas contra 0s dialetos, contra os “barbarismos”, contra os topénimos do Vale d'Aosta, do Vale de Susa, do Alto Adige, contra a forma *senhor {Lei}, servil e alienigena’. Na Alemanha, as coisas anda- vam de outro modo: jé hi séculos a lingua alema mostrara uma averséo espontanea pelas palavras de origem nao-germénica, de modo que os cientistas alemdes se haviam esforcado por rebati- zara bronquite de “inflamagao nos canais de ar”, 0 duodeno de “intestino de doze dedos’, € 0 dcido pirtivico de “Acido queima- uva"; por isto, ao nazismo, que queria purificar tudo, restava muito pouco neste aspecto para purificar. A LTI diferia do ale- mao de Goethe sobretudo por certos deslocamentos semanticos € pelo abuso de alguns termos: por exemplo, 0 adjetivo wilkiselt (‘nacional, popular”), que se tornara onipresente ¢ carregado de arrogancia nacionalista, e um outro, fanatisch, cuja conotagéo mudara de negativa para positiva, Mas no arquipélago dos Lager alemaes se delineara uma linguagem setorial, um jargéo, 0 Lagerjargon, subdividido em subjargées especificos de cada Lager € estreitamente aparentado com 0 velho alemao das casernas prussianas ¢ com 0 novo alemao dos SS. Nao espanta que ele se maostre paralelo ao jargao dos campos de trabalho soviéticos, varios de cujos termos sao citados por Soljenitsin: cada um deles, encontra seu correspondente exato no Lagerjargon. A traducao alema do Arquipélago Gulag nao deve ter apresentado muitas difi- culdades; ou, se apresentou, nao foram terminol6gicas. Era comum a todos os Lager 0 termo Muselmann, “mugul- mano’, atribuido ao prisioneiro irreversivelmente exausto, exte~ nuado, prximo a morte. Propuseram-se para 0 fato duas expli- cages, ambas pouco convincentes: 0 fatalismo ¢ as faixas na cabe¢a, que podiam simular um turbante, Aquele termo est re- fletido exatamente, inclusive em sua ironia cinica, pelo russo dokhodjaga, literalmente “chegado ao fim", “acabado”, No Lager 85 de Ravensbriick (0 Gnico exclusivamente feminino), 0 mesmo conceito se expressava, segundo me diz Lidia Rolfi, com os dois substantivos opostos Scmuostiick ¢ Schmuckstitck, respectivamen- te “imundicie" ¢ *jéia”, quase homéfonos, um parddia do outro. As italianas nao captavam seu sentido aterrorizante ¢, unifican. do 0s dois termos, pronunciavam smistig. Também Prominent & temo comum a todos os subjargies. Sobre os “procmincntes", 0s prisioneiros que fizeram carreira, falei amplamente em Se questo @ un wonto; sendo um componente indispensavel na socio- logia dos campos, também existiam nos soviéticos, onde (lem: brei-o no terceiro capitulo) eram chamados pridurki Em Auschwitz, “alimentar-se” se indicava com fressen, verbo que em bom alemao s6 se aplica aos animais. Para “va embora” usava-se a expresséo haw’ ab, imperativo do verbo abhauen; este, em bom aleméo, significa *cortar, decepar”, mas no jargio do Lager equivalia a “ir para o infemo”, “afastar-se”, Sucedeu-me uma vez usar de boa-fé esta expressdo (Jetzt hauen wir ab) pouco apés o fim da guerra, para despedir-me de alguns educados fun- Gonarios da Bayer depois de uma conversa de negécios. Era como se tivesse dito: “Agora vamos dar 0 fora", Olharam-me espantados: 0 termo pertencia a um registro lingiiistico diferen- te daquele no qual se desenrolara a conversacdo precedente, e certamente nao € ensinado nos cursos convencionais de “lingua estrangeira”. Expliquei-lhes que nao tinha aprendido 0 alemao na escola, mas sim num Lager de nome Auschwitz; dai surgiu um certo embaraco, mas, estando cu no papel de compradot, continuaram a tratar-me com cortesia. Mais tarde me dei conta de que também minha proniincia era tosca, mas deliberadamen- te nao procure: melhoré-la; pelo mesmo motivo, jamais quis retirar a tatuagem do braco esquerdo. © Lagerjargon, como € natural, era fortemente influenciado or outras linguas que se falavam no Lager e nas adjacéncias: pelo polonés, pelo fdiche, pelo dialeto silesiano, mais tarde pelo hiin- garo. Do rufdo de fundo de meus primeiros dias de confinamen- to logo emergiram, com insisténcia, quatro ou cinco expresses que ndo eram alemas: deviam indicar, pensei, alguns objetos ou ages hasicas, como trabalho, agua, pao. Estavam gravadas na me- 86 méria, naquele curioso modo mecinico que descrevi acima, $6 ‘muito mais tarde um amigo polonés me explicou, de ma vonta- de, que simplesmente queriam dizer “célera”, “sangue de cdo”, “raios”, “filho da puta” e “fodido”; as trés primeiras, com fungio de interjeigies, 0 idiche era de fato a segunda lingua do campo (substituida mais tarde pelo Iiingaro). Eu nao s6 nao o entendia como sé vagamente sabia de sua existéncia, com base em algumas cita~ Ses ou historietas ouvidas de meu pai, que por alguns anos havia trabalhado na Hungria. Os judeus poloneses, russos, htin- garos espantavam-se com o lato de que nés, italianos, no o faldssemos: Gramos judeus suspeitos, em quem nao se podia confiar; além de sermos, naturalmente, badoglios' para os $8 © mussolinis para os franceses, para os gregos e para os prisionciros politicos. Mesmo deixando de lado os problemas de comunica- do, ndo era cémodo ser judeu italiano. Como ja se sabe apés merecido sucesso do livro dos irmaos Singer € tantos outros, 0 fdiche € substancialmente um antigo dialeto aleméo, diferente do alemao modero em termos de Iéxico © de prontincia. Angustiava-me mais do que o polonés, que eu nao compreendia em absoluto, porque “deveria compreendé-lo”, Escutava-o com atengdo tensa: muitas vezes me era dificil entender se uma frase a mim dirigida, ou pronunciada perto de mim, era alema ou fdi che, ou ainda hibrida: com efeito, alguns judeus poloneses bem- intencionados se esforgavam por germanizar seu fdiche © maxi mo possivel, a fim de que eu os compreendesse. Do fdiche respirado no ar ha um indicio singular em Se ques- to un womo. No capitulo “Kraus” esté transcrito um didlogo: Gou- nan, judeu francés de origem polonesa, se dirige ao hiingaro Kraus com a frase: “Langsam, die blider Biner, langsam, verstan- den?”, que significa, traduzida palavra por palavra: “Devagar, tu esttipido um, devagar, entendido?*, Soava um pouco estranha, 1. Do nome do marechal Pietro Badoglio (1871-1956) que assumiu as fungées de presidente do Conselho de Ministros apés a queda de Mussolini, tendo negociado 0 armisticio com os Aliados em 1943. (NT) 87 mas me parecia justamente té-la ouvido assim (eram memeérias recentes: escrevia em 1946) ¢ a transcrevi tal e qual. O tradutor alemao nao ficou convencido: eu devia ter ouvido ou recordado mal. Apds uma longa discussao epistolar, cle me propés retocar a expressdo, que nao Ihe parecia aceitével. Com efcito, na tradugio logo publicada ela aparece assim: “Langsant, du bidder Heini...”, onde Heit € 0 diminutive de Heinrich, Henrique. Mas recente- mente, num belo livro sobre a historia ¢ a estrutura do fdiche (Mante Loshen, de J. Geipel, Journeyman, Londres, 1982), desco- bri que € tipica dessa lingua a forma: “Khamoyer du eyner!”, “Esti pido t um!”, A meméria mecdnica funcionara corretamente. Nem todos softiam em igual medida com a ndo-comunica- do ou com a pouca comunicagao. Nao sofrer com isto, aceitar 0 eclipse da palavra, era um sintoma infausto: assinalava a aproxi- magio da indilerenga definitiva. Alguns poucos, solitérios por natureza, ou acostumados ao isolamento ja em sua vida “civil”, nao davam mostras de sofrer; mas a maior parte dos prisioneiros que haviam superado a fase critica da iniciago buscava defen- der-se, cada qual a scu modo: uns mendigando migalhas de in- formagio, outros propalando sem discernimento noticias triun- fais ou desastrosas, verdadeiras, falsas ow inventadas, outros ainda esticando os olhos ¢ 0s ouvidos para captar e tentar inter- pretar todos os sinais oferecidos pelos homens, pela terra e pelo céu. Mas a escassa comunicagéo interna se somava a escassa comunicagao com o mundo exterior. Em alguns Lager, o isola~ mento era (otal; 0 meu, Monowitz-Auschwitz, podia conside rar-se privilegiado nesse aspecto. Quase toda semana chegavam prisioneiros “novos” de todos os paises da Europa ocupada, tra~ zendo noticias recentes, muitas vezes como testemunhas ocula- res; a despcito das proibigdes e do perigo de ser denunciado a Gestapo, na enorme area de trabalho falévamos com operérios poloneses € alemies, as vezes até com prisioneitos de guerra ingleses; encontrévamos nas latas de lixo jornais velhos de dias anteriores, ¢ os liamos avidamente. Um arrojado companheiro meu de trabalho, bilingiie por ser alsaciano ¢ jornalista de pro- fissdo, gabava-se até de ter feito uma assinatura do Vélkischer 88 Beobachter, 0 mais respeitado cotidiano da Alemanha de entdo: 0 que havia de mais simples? Tinha pedido a um operério alemao, de confianga, que fizesse a assinatura, trocando-a depois por um dente de ouro, Toda manha, na longa espera do chamamento, nos reunia em torno dele € nos fazia um cuidadoso resumo das noticias do dia. Em 7 de junho de 1944 vimos irem ao trabalho os prisionei- ros ingleses, e havia neles algo diferente: marchavam em boa formagao, empertigados, sorridentes, marciais, com um paso de tal modo vivo que a sentinela alema que os escoltava, um mili- ciano nao mais jovem, tinha dificuldades em segui-los. Sauda- ram-nos com o “V" da vitéria, Soubemos no dia seguinte que, por um aparelho de radio deles, dandestino, tinham ouvido a noticia do desembarque aliado na Normandia, ¢ foi um grande dia também para nés: a liberdade parecia ao aleance da mao. Mas na maior parte dos campos as coisas eram muito piores. Os recém-chegados provinham de outros Lager ou de guetos, por sua vez separados do mundo, ¢ por isto s6 traziam as horrendas noticias locais. Nao se trabalhava, como nds, em contato com tra~ balhadores livres de dez ou doze paises diferentes, mas em esta- belecimentos agricolas, em pequenas oficinas, em pedreiras ou areais, ou ainda em minas: € nos Lager-niinas as condicdes eram, as mesmas que levavam a morte os escravos de guerra dos ro- manos ¢ 0 indios submetidos pelos espanhdis; de tal modo mor- tiferas que ninguém voltou para descrevé-las, As noticias “do mundo”, como se dizia, chegavam vagas ¢ espacadas. Os prisio- neiros se sentiam esquecidos, como os condenados deixados & morte nas oublietes® da Idade Média. Aos judeus, inimigos por antonomésia, impuros, semeado- res de impureza, destruidores do mundo, estava vedada a comu- nicagio mais preciosa, aquela com a regido de origem e com a familia: quem experimentou o exilio, em uma qualquer de suas tantas formas, sabe quanto se sofre com esse corte vital. Dai nas- 2. Masmorras da Idade Média: celas destinadas a prisdo perpétua. (wry 89 ce uma impressio mortal de abandono e também um ressenti- mento injusto: por que nao me eserevem, por que no me aju- dam, eles que estao livres? Tivemos a oportunidade de entender hem, entao, que do grande continente da liberdade a liberdade de comunicar é uma provincia importante, Como acontece com a satide, 86 quem a perde avalia quanto vale. Mas a perda néo se da somente em nivel individual: nos paises € nas épocas em que se impede a comunicagao, murcham todas as outras liberda- des; morre por média a discussdo, grassa a ignorancia das opi- nides alheias, triunfam as opinides impostas; € um exemplo disso a ensandecida genética pregada na URss por Lissenko, que, na falta de discussoes (seus contraditores foram exilados na ibéria), comprometeu as colheitas por vinte anos. A intoleran- ia tende a censurar, ¢ a censura aumenta a ignorancia das ra- bes alheias e, portanto, a prépria intolerancia: é um eirculo vi ioso rigido, dificil de romper. A hora semanal em que nossos companheiros “poli recebiam a correspondéncia de casa era, para nds, a mais des- consolada, aquela em que sentiamos todo o peso de ser diferen- tes, estranhos, separados de nosso pais ou, antes, do género hu- mano. Era a hora em que sentiamos a tatuagem queimar como uina ferida, invadindo-nos como uma avalanche de lama a cer teza de que nenhum de nos retornaria. De resto, mesmo que nos fosse concedido escrever uma carta, a quem a enderegariamos? As familias dos judeus da Europa tinham desaparecido, estavam dispersas ou destruidas. A mim (narrei-o em Lilit (Turim, Einaudi, 1981]) me coube 4 rarissima sorte de poder trocar algumas cartas com minha fa- milia. Devo isso a duas pessoas muito diferentes entre si: um vellio pedreiro quase analfabeto ¢ uma joven corajosa, Bianca Guidetti Serra, que agora € uma conhecida advogada. Sei que esse foi um dos fatores que me permitiram sobreviver; mas, como disse antes, cada um de nés, sobreviventes, sob muitos aspectos € uma excecao; coisa que nds mesmos, para exorcizar 0 passado, tendemos a esquecer. 90 7 | \V VIOLENCIA INUTIL © titulo deste capitulo pode parecer provocador ou até ofensivo: existe uma violéncia titil? Infelizmente sim. A morte, mesmo a nao provocada, meso a mais clemente, é uma vio~ lencia, mas ¢ tristemente titil: um mundo de imortais (0s struld- bruggs de Switt) nao seria concebivel nem vivivel, seria mais vio~ lento do que o j4 violento mundo atual. Nem ¢ indtil, em geral, 0 assassinato: Raskolnikov, matando a velha usurdria, se pro- punha um escopo, ainda que criminoso; da mesma forma, Prin- cip em Sarajevo e os seqiiestradores de Aldo Moro na via Fani. Pondo de lado 0s casos de loucura homicida, quem mata sabe por que o faz: por dinhciro, para suprimir um inimigo verdadei- 10 OU suposto, para vingar uma ofensa. As guertas so detesta~ veis, so um péssimo modo de resolver as controvérsias entre nagdes ou entre faccdes, mas nao se podem definir como inti teis: visam a um objetivo, quem sabe infquo ou perverso. Nao sio gratuitas, ndo se propdem infligir sofrimentos; as sofrimen- tos existem, sao coletivos, dilaceradores, injustos, mas sio um, subproduto, um acréscimo, Ora, acredito que os doze anos hi: tlerianos compartilhem sua violéncia com muitos outros espa- cos/tempos histéricos, mas que se caracterizem por uma difusa violéncia imitil, com um fim em si mesma, voltada unicamente para a criagao de dor: as vezes, voltada para um objetivo, mas, oO sempre redundante, sempre fora de proporgdo em relagdo ao prdprio objetivo. Revendo a posteriori aqueles anos, que devastaram a Europa ¢, afinal, a Alemanha mesma, oscilamos entre dois juizos: terfa- mos assistido ao desdobramento racional de um plano desuma- no ou a uma manifestagao (‘inica, por ora, na historia, ¢ ainda mal explicada) de loucura coletiva? Légica virada para o mal ou auséncia de Iégica? Como € freqiiente nas coisas humanas, as duas alternativas coexistiam. Nao ha diivida de que o projeto fundamental do nacional-socialismo tinha uma racionalidade pré- ria: o impulso para o Leste (velho sonho alemao), o sufocamen- to do movimento operério, a hegemonia sobre a Europa conti- nental, 2 aniquilacao do bolchevismo e do judaismo, que Hitler simplistamente identificava, a repartigao do poder mundial com a Inglaterra e os Estados Unidos, a apoteose da raga germanica com a eliminagao “espartana” dos doentes mentais ¢ das bocas imtiteis: todos esses pontos compatibilizavam-se entre si ¢ por diam ser deduzidos de alguns poucos postulados jé expostos com negavel clareza em Mein Kampf. Arrogancia ¢ radicalismo, iybris € Griindlichkeit; légica insolente, nao loucura Odiosos, mas nao loucos, eram também os meios previstos para obter os fins: desencadear agressoes militares ou guerras desapiedadas, alimentar quintas-colunas internas, transferir po- Pulagdes inteiras, ou subjugd-las, ow esterilizé-las, ou extermi- né-las. Nem Nietzsche, nem Hitler, nem Rosenberg eram loucos’ quando se embriagavam ¢ a seus sequazes com sua pregagao do mito do super-homen, a quem tudo € permitido em reconhec mento de sua superioridade dogmatica e congénita; mas ¢ digno de meditagao 0 faro de que todos, 0 mestre ¢ os alunos, tenham saido progressivamente da realidade na medida em que sua moral se descolava daquela moral, comum a todos 0s tempos e a todas as civilizagdes, que & parte de nosso Iegado humano e a que também, em Ultima anélise, é preciso dar reconhecimento, A racionalidade cessou, ¢ 05 discipulos superaram (e trai ram!) amplamente o mestre, exatamente na pratica da cruelda- de intitil. 0 verbo de Nietzsche me repugna profundamente; te- nho dificuldade em nele encontrar uma afirmagio que nao 92 coincida com o contrério daquilo que me apraz pensar; me cansa seu tom oracular; mas me parece que nele nao emerja nunca 0 desejo do sofrimento alheio, A indiferenga, sim, quase em toda pagina, mas munca a Schadenfreude, a alegria pelo dano do préxi- mo, muito menos a alegria por fazer deliberadamente softer. A dor do vulgo, dos Ungestalten, dos informes, dos que nao nasce- ram nobres, € um prego a pagar pelo advento do reino dos elei- tos; € um mal menor, mas sempre um mal; ndo € desejével em si, Bem diferentes eram 0 verbo € a pratica hitleriana “Muitas das intiteis violéncias nazistas jé pertencem a historia: pensemos nos massacres “sem proporgdes” das Fossas Ardeatinas, de Oradour, Lidice, Boves, Marzabotto ¢ tantos outros, nos quais © limite da represélia, jd intrinsecamente desumano, foi enorme- mente ultrapassado; mas outros menores, singulares, permane- cem escritos em caracteres indeléveis na meméria de cada um de nés, ex-deportados, como detalles do grande quadro. Quase sempre, no inicio da seqiiéncia da recordagdo, esté 0 trem que assinala a partida para 0 desconhecido; nao sé por razbes cronolégicas, mas também pela crueldade gratuita com que eram empregadas para um objetivo incomum aquelas (nor- malmente inécuas) composigdes de vagoes de carga. Nao ha dirio ou narrativa, entre os muitos nossos, em que nao surja o trem, o vagao blindado, transformado de veiculo comercial em prisdo ambulante ou mesmo em instrumento de morte. Est sempre lotado, mas parece haver um caleulo grossei ro no ntimero de pessoas que, em cada caso, nele eram ajunta- das: entre cingiienta e cento e vinte, segundo a distancia da via~ gem € 0 nivel hierérquico que o sistema nazista atribuia ao “material humano” transportado. Os comboios partidos da Ilia “s6* continham 50-60 pessoas por vagao (judeus, prisionciros politicos, guerrilheiros, gente comum pega pelas ruas, militares capturados apés 0 esfacelamento de 8 de setembro de 1943} pode ser que se tenham levado em conta as distancias ou, tal- vez, também a impressio que esses Comboios podiam exercer em eventuais testemunhas presentes ao longo do percurso, No extremo oposto estavam os deportados da Europa Oriental: os 8 eslavos, especialmente se judeus, eram mercadoria mais vil, ou melhor, destituida de qualquer valor; de qualquer modo deviam morrer, nao importa se durante a viagem ou depois. As compo- sigdes que transportavam os judeus poloneses dos guetos para os Lager, ou de Lager para Lager, continham até 120 pessoas em cada vagao: a viagem era curta... Ora, cingiienta pessoas num vagao de carga ficam muite mal acomodadas; podem estirar-se simultaneamente para repousar, mas corpo contra corpo. Se sao em ou mais, mesmo uma viagem de poucas horas é um infer- no, deve-se ficar em pé ou agachar-se alternadamente; € muitas vezes, entre 0s viajantes, existem velhos, deentes, criangas, mulheres em periodo de aleitamento, loucos ou individuos que enlouquecem durante a viagem e por eleito da viagem. Na pratica dos transportes ferrovidrios nazistas se distin- guem varidveis ¢ constantes; ndo nos € dado saber se em sua base havia um regulamento ou se os funcionarios encarregados, tinham carta branca. Constante era o conselho hipécrita (ou a ordem) de levar tudo quanto era possivel: especialmente o ouro, as Olas, as moedas fortes, as peles, em alguns casos (certas deportagdes de judeus camponeses da Hungria ¢ da Eslovaquia) até os animais pequenos. “£ tudo coisa que podera servir a vo- és" — dizia entredentes € com ar ctimplice 0 pessoal de acom- panhamento. De fato, era um saque: um artificio simples e eng nhoso para translerir valores para o Reich, sem publicidade nem complicagdes burocraticas, sem transportes especiais nem temo- res de lurtos enroute: com efeito, na chegada tudo era seqiiestra- do, Coustante era 0 despojamento total dos vagoes; as autorida- des alemas, para uma viagem que podia durar até duas semanas (6 0 caso dos judeus deportados de Salénica), nao providencia- vam literalmente nada: nem viveres, nem agua, nem esteiras ou palha no chao de madeira, nem recipientes para as necessidades corporais; ¢ muito menos se preocupavam em advertir as auto- ridades locais, ou os dirigentes (quando existiam) dos campos de triagem, no sentido de providenciarem alguma coisa. Um aviso ngo custaria nada: mas, justamente, essa negligéncia sistematica se resolvia numa crueldade intitil, numa criagao deliberada de dor como um fim em si mesma. 94 Em alguns casos, os prisioneiros destinados 4 deportagio estavam em condigées de aprender algo da experiéncia: tinham visto partir outras composigdes, aprendendo, a custa de seus pre- decessores, que deviam suprir, eles proprios, todas essas necessi- dades logisticas, 0 melhor que pudessem, ¢ compativelmente com as limitagdes impostas pelos alemaes. F tipico 0 caso dos tens que partiam do campo de triagem de Westerbork, na Ho- landa; cra um campo vastissimo, com dezenas de milhares de prisioneiros judeus, € Berlim exigia do comandante local que toda semana partisse um trem com cerca de mil deportados: no total, partiram de Westerbork 93 trens, com destino a Aus- chwwitz, a Sobibér € a outros campos menores. Os sobreviventes foram cerca de 500, ¢ nenhum destes viajara nos primeiros com- boios, cujos ocupantes tinham partido as cegas, na esperanga infundada de que se suprise de praxe as necessidades mais clementares de uma viagem de trés ou quatro dias; por isso, ndo se sabe quantos foram os mortos durante o transite, nem como a terrivel viagem se desenrolou, porque ninguém voltou para contar. Mas depois de algumas semanas um encarregado da en- fermaria de Westerbork, observador perspicaz, notou que os vagoes de carga das composigdes eram sempre os mesmos: iam ¢ vinham entre 0 Lager de partida e o de destinagao. Foi assim que alguns entre os sucessivamente deportados puderam man- dar mensagens escondidas nos vagdes que retornavam vazios, € a partir dai se pode providenciar pelo menos uma reserva de viveres ¢ de agua, além de um balde para os exerementos. ‘0 comboio no qual fui deportado, em levereiro de 1944, era © primeiro que partia do campo de triagem de Fossoli (outros tinham partido antes, de Roma e de Mildo, mas nao nos chega- 1a noticia deles). Os $$ que pouco antes haviam tomado da Seguranga Piiblica italiana a gestéo do campo nao deram nenhu- ma disposicao precisa para a viagem: s6 fizeram saber que seria longa ¢ deixaram vazar 0 conselho interessado ¢ irdnico que mencionei (“Lever ouro e jéias, ¢ sobretudo roupas de la ¢ pele, porque voces vao trabalhar num pais frio”), © Kapo do campo, também deportado, teve o bom senso de fazer um estoque ta- zoAvel de alimento, mas nao de agua: égua nao custa nada, nao 95 € verdade? E os alemaes nao dao nada de graca, mas so bons organizadores... Nem pensou em dotar cada vagao com um reci- plente que servisse como latrina, este esquecimento se revelou gravissimo: provocou uma afligao muito pior do que a sede € 0 frio, Em meu vagao havia muitos ancidos, homens ¢ mulheres: entre outros, estavam todos os internos do asilo israclita de Ve~ heza. Para todos, mas especialmente para estes, evacuar em pii- blico era angustioso ou impossivel: um trauma para 0 qual nossa civilizagao nao nos prepara, uma ferida profunda infligida a dig- nidade humana, um atentado absceno © cheio de pressigios: mas também 0 sinal de uma malignidade deliberada e gratuita. Para nossa paradoxal sorte (mas hesito em escrever esta palayra neste contexto), em nosso vagao havia também duas jovens maes com suas criangas de poucos meses, ¢ uma delas trazia um urinol: um s6, pata servir a umas cingiienta pessoas. Depois de dois dias de viagem, encontramos pregos fincados nas paredes de madeira, Tepregamos dois num canto, ¢ com um barbante c um pano im- provisamos um anteparo, substancialmente simbélico: ainda nao somos animais, ndo o seremos enquanto buscarmos resistir. £ dificil imaginar 0 que ocorreu nos outros vagoes, destitut dos dessa protegao minima, © comboio foi parado duas ou trés veres em pleno campo, as portas dos vagoes foram abertas, pe mitindo-se que os prisioneiros descessem: mas nao que s¢ alastas- sem da ferrovia nem que se separassem. De outta vez, as portas foram abertas, mas durante uma parada numa estagao austriaca de transito. Os 8S da escolta nao escondiam seu divertimento a0 ver homens e mulheres agacharem-se onde podiam, nas platafor- mas, no meio dos trilhos; € os passageiros alemaes exprimiam abertamente seu desgosto: gemte como essa merece seu destino, basta ver como se comportam. Nao so Menschen, seres humanos, mas animais, porcos: € evidente como a luz do sol Era efetivamente um prélogo. Na vida que devia vir, no rit ‘mo cotidiano do Lager, a olensa ao pudor representava, pelo me nos no inicio, uma parte importante do sofrimento global. Nao era facil nem indolor habituar-se & enorme latrina coletiva, a0 limite de tempo estrito ¢ obrigatério, & presenga, em sua frente, do aspirante & sucesso; em pé, impaciente, as vezes suplicante, 6 outras vezes prepotente, insiste a cada dez segundos: “Hast du gemacht?", * Ninda nao terminou?”. Todavia, em poucas semanas ‘0 mal-estar se atenuava até desaparecer: sobrevinha (nao para todos!) 0 costume, o que € um modo caridoso de dizer que a transformagao de seres humanos em animais jé estava a meio caminho. Nao creio que essa transformagao jamais tenha sido projeta- da nem formulada explicitamente, em nenhum nivel da hierar quia nazista, em nenhum documento, em nenhuma “reunio de trabalho". Era uma conseqiiéncia légica do sistema; um regime desumano difunde ¢ estende sua desumanidade em todas as di- reqGes, inclusive € especialmente para baixo; salvo resistencias € témperas especiais, também corrompe stias vitimas € seus oposi- tores, A imitil crueldade do pudor violado condicionava a exis téncia de todos os Lager. As mulheres de Birkenau contam que, uma vez obtida uma gamela (uma grande vasilha esmaltada), dela deviam se servir para trés usos distintos: para tomar a sopa cotidiana; para evacuar 4 noite, quando 0 acesso a latrina era vedado; ¢ para se lavarem, quando havia Agua nos lavabos regime alimentar de todos os campos compreendia um litro de sopa por dia; em nosso Lager. por concessao do estabe lecimento quimico para 0 qual trabalhévamos, os litros eram dois, Assim, a 4gua a ser eliminada era muita, e isto nos obriga- va a pedir muitas vezes que fossemos ao banheiro, ow a arran. jarmo-nos de outro modo pelos cantos do local de trabalho. Alguns prisioneiros ndo conseguiam controlar-se: seja por pro- blemas de bexiga, seja por acessos de medo, seja por neurose, eram obrigados a urinar com urgéncia, ¢ freqiientemente se molhavam, pelo que cram punidos e ridicularizados. Um italia~ no, meu contemporaneo, que dormia na parte de cima de um heliche de trés planos, teve um incidente noturno e molhou os inquilinos dos planos inferiores, que logo denunciaram 0 fato ao Kapo do alojamento. Este foi para cima do italiano, que negou a imputagao contra toda evidéncia. 0 Kape, entao, ordenou-lhe que urinasse naquele lugar ¢ naquele momento para demons. trar sua inocéncia; o prisioneiro, naturalmente, nao conseguiu ¢ foi coberto de pancadas, mas, apesar de seu pedido razoavel, nao 7 foi transferido para o leito de baixo. Era um ato administrativo que comportaria excessivas complicagdes para o beleguim do alojamento. Andlogo ao constrangimento dos excrementos era o da nu- dez, No Lager se entrava nu: ow antes, mais do que nu, privado nao s6 das roupas € dos sapatos (que eram confiscados), mas dos cabelos ¢ de todos os outros pélos. Certamente, 0 mesmo se faz, (ou se fazia, também no ingresso em casema, mas no Lager a ras- pagem era total e semanal, ¢ a nude ptiblica ¢ coletiva era uma condigio recorrente, tipica e cheia de significado. Também esta era uma violéncia com algumas raizes de necessidade (é claro que devemos nos desvestir para um banho ou uma visita médica), mas ofensiva em razao de sua redundancia inttil. 0 cotidiano do Lager estava coalhado de infimeros desnudamentos vexatérios: devido ao controle dos piolhos, as buscas nas roupas, a lavacdo matinal, a visita das sarnas; ¢, além disso, devido as selegdes periddicas, nas quais uma “comissao” decidia quem ainda estava apto para o trabalho e quem, ao contrério, estava fadado a elimi- nagio. Ora, um homem nu € descalgo sente as nervas € os ten- does truncados: € uma presa inerme. As roupas, mesmo aquelas imundas que eram distribuidas, mesmo os sapatos ordindrios com sola de madeira, so uma defesa ténue, mas indispensdvel. Quem no 0s tem nao se percebe a si mesmo como um ser humano, € sim como um verme: nu, lento, igndbil, vergado ao chao. Sabe que poderd ser esmagado a todo momento. ‘A mesma sensaqao debilitante de impoténcia e de destituigao era provocada, nos primeiros dias de confinamento, pela falta de uma colher: € este um detalhe que pode parecer marginal a quem estd habituado desde a infancia @ abundancia de apetrechos de que dispde até a mais pobre das cozinhas, mas marginal nao era. Sem colher, a sopa cotidiana nao podia ser consumida sendo sor- vendo-a como fazem os ces; s6 depois de muitos dias de apren- dizagem (¢ também aqui, como era importante conseguir lo- g0 compreender ¢ fazer-se compreender!) se vinha a saber que havia calheres no campo, mas era pre do negro, pagando-as com sopa ou pao: uma colher custava ha~ bitualmente meia ragao de pao ou um litra de sopa, mas aos iso compra-las no merca~ 98 recém-chegados, inexperientes, sempre se pedia muito mais. No entanto, na libertagao do campo de Auschwitz, encontramos nos depdsitos milhares de colheres novissimas de plastico, além de dezenas de milhares de colheres de aluminio, de ago ou até de prata, que provinham da bagagem dos deportados na chegada Nao se tratava, portanto, de uma questo de economia, mas de uma intengao precisa de humilhar, Vem 4 mente o episédio nar- rado no Livro dos Juézes, 7.5, em que o chefe Gededo escolhe os melhores entre seus guerreiros, observando 0 modo como se comportam ao beberem agua no rio: descarta todos aqueles que lambem a agua, “como faz 0 cdo”, ou que se ajoclham, e sé acei- {a aqueles que bebem em pé, levando a mao a boca. Eu hesitaria em definir como inteiramente iniiteis outras humilhagdes e violéncias que foram descritas repetidamente € convergentemente por toda a memorialistica dos Lager. Sabe-se que em todos os campos se procedia uma ou duas vezes por dia 4 uma chamada. Por certo, ndo era uma chamada nomi seria impossivel para milhares ou dezenas de milhares de prisio neiros: tanto mais que estes jamais eram designados com seu home, mas sim apenas com 0 numero de controle, de cinco ou. seis algarismos. Era um Zahlappell, uma chamada-contagem complicada e dificil, porque devia levar em conta os pris transferidos para outros campos ou para a enfermaria na véspe- ra € aqueles mortos de noite, € porque o eletivo devia coincidir justamente com os dados do dia precedente ¢ com a contagem cinco a cinco que acontecia durante a marcha das turmas em diregao ao trabalho. Eugen Kogon reporta que em Buchenwald deviam comparecer & chamada vespertina inclusive os moribun- dos © 0s mortos; estendidos pelo chéo, ao invés de permanecer em pé, também deviam ser dispostos em filas de cinco, para faci- litar a contagem. A chamada se desenrolava (naturalmente ao ar livre) com qualquer tempo, e durava pelo menos uma hora, mas até duas ou trés se a conta nao fechava; € mesmo 24 horas ou mais, se se suspeitasse de uma evasdo. Quando chovia ou nevava, ou quan do 0 frio era intenso, tornava-se uma tortura, pior do que 0 pro- prio trabalho, a cujo cansago se somava no fim do dia; era per- que jonciros 99 cebida como uma ceriménia vazia e ritual, mas sem que prova- velmente 0 fosse. Nao era imiitil, como de resto, nesta chave interpretativa, nao eram intiteis a fome, o trabalho extenuante, © nem mesmo (me seja perdoade o cinismo: estou tentando raciocinar com uma légica que nao € minha) a morte por gas de adultos ¢ criangas. Todos esses sofrimentos constituiam 0 desdo- bramento de um tema, aquele do suposto direito do povo supe rior de subjugar ou eliminar 0 povo inferior; assim também era aquela chamada, que em nossos sonhos de “depois” se tornaria © proprio emblema do Lager, resumindo em sio cansago, o rio, a lome, a frustragéo. © sofrimento que provocava, e que todo dia de inverno provocava alguns colapsos ou algumas mortes, estava dentro do sistema, dentro da tradigao do Drill! da feroz pratica militarista que era legado prussiano e que Buchner eter- nizou em Woyzek. Alids, parece-me evidente que, sob muitos de seus aspectos mais penosos ¢ absurdos, © mundo concentracionario era tao- somente uma versio, uma adaptagao da prética militar alema. O exército dos prisioneiros nos Lager devia ser uma cépia ingléria do exército propriamente dito: ou melhor, uma sua caricatura. Um exército tem uma farda: limpa, honrada e coberta de insig- nias aquela do soldado; sérdida e cinzenta aquela do Héfiling: ‘mas ambas devem ter cinco botdes, sendo estao mutiladas. Um exército marcha com passo militar, em ordem cerrada, a0 som de uma banda: por isso, deve haver uma banda também no Lager, € 0 desfile deve ser um desfile meticuloso, em estilo mili tar diante do palanque das autoridades, ao som de mtisica. Esse cerimonial é de tal modo necessario, de tal modo ébvio, que pre- valece até sobre a legislatura antijudaica do Terceiro Reich: com parandica sofisticagao, cla vedava aos miisicos e as orquestras judaicas tocarem partituras de autores arianos, porque assim estes seriam contaminados. Mas nos Lager de judeus nao havia miisicos arianos, nem de resto existem muitas marchas militares escritas por compositores judeus; por isto, derrogando as regras 1. Adestramento 100 de pureza, Auschwitz era 0 tinico lugar alemao em que miisicos judeus podiam, ou melhor, deviam tocar miisica ariana: a neces- sidade nao tem leis. Heranga da caserna também era o rito de “arrumar a cama”. Naturalmente, este tiltimo termo é amplamente eufemistica; se havia beliches, cada leito era constituide de um misero colchao cheio de aparas de madeira, de duas cobertas ¢ de um travessei- ro de crina, ¢ af dormiam em regra duas pessoas. As camas deviam ser arrumadas logo apés 0 despertar, simultaneamente em todo © alojamento: era preciso, pois, que 0s inquilinos dos planos inferiores se pusessem a arrumar colchao ¢ cobertas em. meio aos pés dos inquilinos dos planos superiores, em equilibrio precério sobre as bordas de madeira ¢ aplicados a0 mesmo tra balho: todas as camas deviam estar arrumadas em um minuto ‘ou dois, porque imediatamente depois comegava a distribuigéo do pao. Eram momentos frenéticos: a atmostera se enchia de pocira até se tornar opaca, de tensao nervosa ¢ de xingamentos trocados em todas as linguas, porque “arrumar a cama” (better bauen: tratava-se de um termo técnico) era uma operacio sagra- da, a ser executada segundo regras férreas. O colchao, fétido de mofo ¢ coalhado de manchas suspeitas, devia ser esticado: para ral fim havia duas aberturas no forro, nas quais se introduziam ‘as maos. Uma das duas cobertas devia ser estendida sobre col- chao, a outra dobrada sobre o travesseiro, formando um degrau nitido, regular. No fim da operagéo, 0 conjunto devia apresentar- se como uum paralelepfpedo retangular com faces bem planas, a0 qual se sobrepunha o paralelepipedo menor do travesseiro, Para os $5 do campo €, consegiientemente, para todos os chefes de alojamento, o hettenbauen revestia-se de uma impor tancia primaria e indecifravel: talvez fosse 0 simbolo da ordem da disciplina. Quem arrumasse mal a cama ou se esquecesse de fazé-lo era punido publicamente ¢ com ferocidade; além disso, ‘em cada alojamento existia uma dupla de funciondrios, os Bert- nachzieher (“controladores de cama”: termo que nao creio existir no alemo normal e que, decerto, Goethe nao compreenderia), cuja tarefa cra verificar cada cama individual e depois cuidar de seu alinhamento transversal. Para tal fim estavam munidos de 101 uma corda do mesmo comprimento do alojamento: estendiam- ha por sobre as camas arrumadas, retificando milimetricamente os desvios eventuais. Mais do que atormentadora, essa ordem de maniacos parecia absurda ¢ grotesca: com efeito, 0 colchao esti- cado com tanta apli¢ago nao tinha nenhuma consisténcia ¢. de hoite, sob © peso do corpo, achatava-se imediatamente até as Labuas que o sustentavam, De fato, dormia-se sobre a madeira. Num contexto bem mais amplo, tem-se a impressio de que por toda a Alemanha hitleriana 0 cédigo e 0 costume da caser- na deviam substituir aqueles tradicionais ¢ “burgueses”: a vio- lencia insipida do Drill havia comegado a invadir desde 1934 0 campo da educagao ¢ se voltava contra o proprio povo alemao A partir dos jornais da época, que tinham conservado uma certa liberdade em termos de crénica e de erftica, hé noticias de mar chas extenuantes impostas a rapazes € a mogas, no quadro dos exercicios pré-militares: até cingiienta quilémetros por dia, com mochila as costas, ¢ nenhuma piedade pelos retardatarios. Os pais ¢ os médicos que ousavam protestar eram ameagados com punigoes politicas. Dilerente € 0 raciocinio a fazer sobre a tatuagem, invengio autéetone de Auschwitz, A partir do inicio de 1942, em Aus- chwitz € nos Lager subordinados (em 1944, cerca de quarenta), 0 nniimero de controle dos prisioneiros nao era mais somente cos- turado nas roupas, mas tatuado no antebrago esquerdo. Desta norma s6 estavam isentos os prisionciros alemaes nao-judeus. A operagao era executada com metédica rapide por “escreventes” especializados, no ato de identificagao dos recém-chegados, pro- venientes seja da liberdade, seja de outros campos ou dos guctos. Em reveréncia ao tipico talento alem&o para as classificagées, logo se delincou um auténtico eédigo: os homens deviam ser tatuados na parte externa do braco, as mulheres na interna; 0 ntimero dos ciganos deveria ser precedido de um Z; 0 dos judeus, a partir de maio de 1944 (ou seja, da chegada em massa dos judeus htingaros), devia ser precedido de um A, que pouco depois foi substitufdo por um B. Até setembro de 1944 nao exis tiam crlangas em Auschwitz: eram todas mortas a gas na chega- 102 da, Depois dessa data, comegaram a chegar familias inteiras de poloneses, detidos aleatoriamente durante a insurreigio de Var- sGvia: todos eles foram tatuados, inclusive os recém-nascidos A operacao era pouco dolorosa e nao durava mais que um. minuto, mas era traumética, Seu significado simbélico estava claro para todos: este um sinal indelével, daqui nao sairao mais; esta é a marca que se imprime nos escravos € nos animais destinados ao matadouro, € voces se tornaram isso. Vocés nao 1ém mais nome: este é seu nome. A violéncia da tatuagem era gratuita, um fim em si mesmo, pura ofensa: nao bastavam os irés ntimeros de pano costurados nas calgas, no casaco € no aga- salho de inverno? Nao, nao bastavam: era preciso algo mais, uma mensagem nao verbal, a fim de que © inocente sentisse eserita na carne sua condenagio. Tratava-se também de um retorno a barbarie, tanto mais perturbador para os judeus orto- doxos; de fato, justamente para distinguir os judeus dos “barba- ros", a tatuagem € vetada pela lei mosaica (Levitico, 19.28) Quarenta anos depois, minha tatuagem se tornow parte de meu corpo, Ndo me vanglorio dela nem me envergonho, nao a exibo nem a escondo, Mostro-a de ma vontade a quem me pede por pura curiosidade; prontamente e com ira, a quem se declara incrédulo. Muitas vezes os jovens me perguntam por que nao a retiro, ¢ isto me espanta: por que deveria? Nao somos muitos no mundo a trazer esse testemunho. E preciso fazer violencia (:itil?) sobre si mesmo para se indu- zir a falar do destino de tantos indefesos. Ainda uma vez, tento seguir uma légica que nao é minha, Para um nazista ortodoxo devia ser Gbvio, nitido, claro que todos os judeus tinham de ser mortos: era um dogma, um postulado. Também as criangas, por certo: também ¢ especialmente as mulheres grévidas, para que ndo nascessem futuros inimigos. Mas por que, em suas razias furiosas, em todas as cidades e povoados de seu império imenso, violar a porta dos moribundos? Por que se meterem a arrasta-los, até os trens, para levé-los a morrer longe, apés uma viagem in- sensata, na Poldnia, no limiar das cdmaras de g4s? Em meu com- boi havia duas moribundas de noventa anos, arrancadas da 103 enfermaria de Fossoli: uma morreu na viagem, assistida em vao pelas filhas. Nao teria sido mais simples, mais “econémico”, dei xé-las morrer, ou quem sabe assassind-las, em seus leitos, em vez de inserir sua agonia na agonia coletiva do trem? Verdadeira- mente, somos induzidos a pensar que, no Terceiro Reich, a esco- Iha melhor, a escolha imposia de cima para baixo, fosse aquela que comportava a maxima afligao, 0 maximo esbanjamento de solrimento fisico ¢ moral. 0 “inimigo” nao devia apenas morrer, mas morrer no tormento. Sobre o trabalho nos Lager se escreveu muito; eu mesmo o descrevi a seu tempo. O trabalho nao pago, isto é, escravista, cra um dos trés abjetivos do sistema concentracionsrio; 0s ou tros dois eram a eliminagao dos adversarios politicos ¢ 0 exter- minio das chamadas ragas inferiores. Diga-se de passage: 0 regime concentraciondrio soviético diferenciava-se do nazista essencialmente pela falta do terceiro termo e pelo predominio do primeiro. Nos primeiros Lager. quase contemporaneos da conquista do poder por Hitler, o traballio era puramente persecutorio, pra- ticamente inuitil para fins produtivos: mandar gente desnutrida remover turfa ou quebrar pedra s6 servia como objetivo terro- rista, De resto, para a retdrica nazista e fascista, herdeira nisto da ret6rica burguesa, “o trabalho enobrece”, e, portanto, os igné- beis adversérios do regime nao sao dignos de trabalhar no senti- do usual do termo. Seu trabalho deve ser allitive: ndo deve abrir espaco para a competéncia profissional, deve ser aquele dos ani mais de carga, puxar, emputrar, levar peso, vergar sobre a terra. ‘Também esta, uma violéncia imitil: talvez itil apenas para que- brar as resisténcias atuais ¢ punir as resisténcias passadas. As mulheres de Ravensbriick narram jomadas intermindveis trans- cortidas durante 0 perfodo de quarentena (ou seja, antes do enquadramento nas brigadas de trabalho em fabrica) a remover areia das dunas: em cfrculos, sob o sol de julho, cada deportada devia deslocar a arcia de seu monte para o monte da vizinha da direita, num circuito sem meta nem fim, uma vez que a arcia voltava para 0 lugar de onde era tirada oa Mas é duvidoso que esse tormento do corpo © do espirito, nitico ¢ dantesco, tivesse sido imaginado para prevenir a forma- do de niicleos de autodefesa ou de resisténcia ativa: os $$ dos Lager cram antes brutos obtusos do que deménios sutis. Tinham sido educados para a violéncia: a violencia corria em suas veias, era normal, ébvia. Transbordava de seus rostos, de seus gestos, de sua linguagem. Humilhar, fazer 0 “inimigo” sofrer era seu ficio de cada dia; nao raciocinavam sobre isso, nao tinham se gundas intengdes: a intengao era aquela. Nao quero dizer que fossem feitos de uma substancia humana perversa. diferente da nossa (entre eles também havia os sédicos, 0s psicopatas, mas cram poucos): simplesmente, tinham sido submetidos por al- guns anos a uma escola em que a moral corrente fora invertida. Num regime totalitario, a educagao, a propaganda e a informa- io nao encontram obstéculos: tém um poder ilimitado, uma idéia do qual dificilmeme pode fazer quem nasceu e viveu num regime phiralista. A diferenca da atribulacao puramente persecutoria, tal como a que acabo de descrever, 0 trabalho as vezes podia tornar-se uma defesa. Assim 0 era para os poticos que no Lager conse- guiam ser inseridos em seu préprio oficio: alfaiates, sapateiros, marceneiros, artifices, pedreiros; estes, reencontrando sua ati: vidade habitual, recuperavam ao mesmo tempo, numa certa medida, sua dignidade humana, Mas também 0 era para muitos outros, como exercicio da mente, como evaséo do pensamento da morte, como modo de viver o dia-a-dia; de resto, € experién- cia comum que os afazeres cotidianos, ainda que penosos ou cansativos, ajudam a desviar a mente de ameagas mais graves, mas mais distantes. Observei com freqiiéncia em alguns companheiros meus (3s vyezes até em mim mesmo) um fendmeno curioso: a ambigao do “trabalho bem-feito” esta tao enraizada que impele a “fazer bem” mesmo trabalhos adversos, nocivos aos seus € a sua parte, tanto que € preciso um esforgo consciente para executd-los “mal”. A sabotagem do trabalho nazista, além de ser perigosa, comportava inclusive a superagao de resistencias internas atavi- cas. O pedreiro de Fossano que me salvou a vida, ¢ que desere- 105 vi em Se questo é un uomo ¢ em Lili, detestava a Alemanha, os ale- mas, sua comida, sua maneira de falar, sua guerra; mas, quan- do o puseram para erguer muros de protecao contra as bombas, fazia-os corretamente, s6lidos, com tijolos bem assentados e com toda a argamassa que era necesséria; nao em reveréncia as ordens, mas por dignidade profissional. Em Unt dia na vida de Iva Dentssovitch (Turim, Einaudi, 1963), Soljenitsin descreve uma situagdo quase idéntica: Iva, 0 protagonista, condenado sem nenhuma culpa a dez anos de trabalho forcado, se compraz em erguer uma parede com perfeigio, constatando depois que foi bem-sucedido: Iva ~... era feito justamente daquele modo creti- ho, nem os oito anos passados nos campos tinham podido fazer com que perdesse aquele habito: estimava cada coisa e cada tra- balho, € nao podia permitir que se arruinassem inutilmente* Quem assistiu a um eélebre filme, A ponte do rio Kwai, recordara © zelo absurdo com que 0 oficial inglés prisioneiro dos japoneses se obstina em construir para eles uma audaciosissima ponte de madeira, se escandaliza quando se da conta de que os sapado- tes ingleses a minaram. Como se vé, o amor pelo trabalho bem- feito é uma virtude fortememte ambigua. Animou a Michelange- lo até seus iiltimos dias; mas também Stangl, o diligentissimo camiceiro de Treblinka, replica com irritagao a sua entrevista- dora: “Tudo aquilo que fazia por minha livre vontade tinha de fazer da melhor forma que podia. Fui criado assim”. Da mesma virtude se orgulhava Rudolf Hiss, 0 comandante de Auschwitz, quando narra o trabalho criativo que o induziu a inventar as camaras de gés. Ainda quero aludir, como exemplo extremo de violencia si- multancamente estipida simbélica, ao uso cruel que foi Leito (nao episodicamente, mas com método) do corpo humano como um objeto, uma coisa de ninguém, da qual se podia dispor de modo arbitrério. Sobre as experiéncias médicas conduzidas em Dachau, em Auschwitz, em Ravensbriick ¢ outros lugares, ja muito se esereveu, ¢ alguns responsaveis, que nem sempre eram médicoy mas com freqiiéncia se improvisavam como tais, foram até punidos (nao Jose! Mengele, 0 maior ¢ 0 pior de todos). A gama desses experimentos sc estendia desde o controle de novos 106 medicamentos em prisioneiros desinformados até torturas in- sensatas € cientificamente intiteis, como aquelas desenvolvidas em Dachau por ordem de Himmler € por conta de Luftwaffe. Aqui, os individuos selecionadas, a vezes previamente supera- limentados para voltarem & normalidade fisiol6gica, eram sub- metidos a longos periodos em agua gelada, ou introduzidos em cimaras de descompressdo nas quais se simulava a rarefagio do ar a 20 mil metros (nivel que os avides da época estavam muito longe de atingir), para estabelecer em qual altitude o sangue humano comega a ferver: um dado, este, que se pode obter em qualquer laboratério, com despesa minima ¢ sem vitimas, ou mesmo deduzir de tabelas comuns, Parece-me significative re- cordar estas ignominias numa época em que, com Tazo, discu- tem-se os limites nos quais seja licito conduzir experiéncias cien- tificas dolorosas em animais de laboratério. Esta crueldade tipica € sem objetivo aparente, mas altamente simbslica, estendia-se, justamente porque simbélica, aos despojos humanos ap6s a morte: aqueles despojos que toda civilizagao, a partir da mais longinqua pré-histéria, respeitou, honrou ¢ as vezes temeu. 0 tratamento a que eram submetidos nos Lager queria expressar que nao se tratava de restos humanos, mas de matéria bruta, indiferente, boa no melhor dos casos para alguns empregos in- dustriais. Suscita horror e estremecimento, depois de decénios, a vitrina do museu de Auschwitz onde estéo expostos desordena- damente, aos montes, os cabelos das mulheres destinadas ao gés ‘ou ao Lager: 0 tempo os descobriti e corrompew, mas continuam a murmurar diante do espectador sua muda acusagéo. 0s ale- maes nao tiveram tempo de encaminhéd-los para sua destinagao: esta insélita mercadoria era adquirida por alguns industriais téx- teis alemaes, que a usavam para a confeccao de aniagem e de outros tecidos industriais. E pouco provavel que os utilizadores no soubessem de qual material se tratava. F igualmente pouco provavel que os vendedores, ou seja, as autoridades $8 do Lager, tirassem disso um lucro efetivo: sobre a motivagio do lucro pre- valecia aquela do ultraje. As cinzas humanas provenientes dos fornos crematérios, toneladas por dia, eram facilmente reconheciveis como tais, uma 107 ver que continham com freqiiéncia dentes ou vértebras. Nao obs- tante, foram usadas para varios fins: para aterrar trechos panta- hosos, como isolante térmico nos intersticios de construgoes de madeira, como fertilizante fostético; assinaladamente, foram ‘empregadas em vez de saibro para revestir os caminhos da vila dos $5, situada ao lado do campo. Eu nao saberia dizer se pura- mente pela consisténcia ou se, ao contrario, pelo fato de que, em sua origem, aquele material devia ser pisado. Nao me iludo de ter esgotado a questio, nem de ter de- monstrado que a crueldade inti haja sido patriménio exclusi- vo do Terceiro Reich € conseqtiéncia necessaria de suas premis- sas ideol6gicas; 0 que sabemos, por exemplo, do Camboja de Pol Pot sugere outras explicagies, mas o Camboja esté longe da Europa € dele sabemos pouco: como poderiamos discutir? De- certo, este foi um dos tragos fundamentais do hitlerismo, nao s6 dentro dos Lager; ¢ me parece que seu melhor comentario se encontra resumido nestas duas frases extraidas da longa entre- vista feita por Gitta Sereny ao ja citado Franz Stangl, ex-coman- dante de Treblinka (it quelle tenebre, Milo, Adelphi, 1975, p.135) “Visto que os matatiam a todos (...) que sentido tinham as humithagdes, as crueldades?” — pergunta a escritora a Stangl, detido para sempre no cércere de Diisseldorf; ¢ este responde: “Para condicionar aqueles que deviam executar materialmente as operagdes. Para tornar-Ihes possivel fazer 0 que faziam”. Nou- tras palavras: antes de morrer, a vitima deve ser degradada, a fim de que 0 assassino sinta menos 0 peso de seu crime. £ uma explicagao ndo carente de légica, mas que brada aos céus: nica wtilidade da violencia imitil 108 V1 | O INTELECTUAL EM AUSCHWITZ Entrar em polémica com um morto € embaragoso € pouco leal, ainda mais quando o ausente é um amigo potencial ¢ um interlocutor privilegiado; mas pode ser uma passagem obrigats- ria. Estou falando de Hans Mayer, alids Jean Améry, 0 fil6sofo suicida e teérico do suicfdio, que jd citei na pagina 31: entre estes dois nomes se desdobra em tensao sua vida sem paz ¢ sem busca da paz. Nascera em Viena em 1912, de uma familia predominan- temente judia, mas assimilada ¢ integrada no Lmpério Austro- HGngaro. Embora ninguém se tivesse convertido ao cristianismo nas formas devidas, em sua casa se festejava o Natal em torno da rvore enfeitada; por ocasiao dos pequenos incidentes domésti- cos, sua mae invocava Jesus, José © Maria, ¢ a lotogratia-lem- branga de seu pai, morto na frente durante a Primeira Guerra Mundial, nao mostrava um sdbio judeu de barbas, mas um ofi- cial no uniforme dos Kaiserjiger tiroleses. Até os dezenove anos, Hans jamais ouvira falar na existéncia de uma lingua fdiche, Diploma-se em Viena em Letras e Filosofia, ndo sem alguns choques com 0 nascente partido nacional-socialista: para ele ser judeu nao importa, mnas para os nazistas suas opinides ¢ tendén- Gias ndo tém nenhum peso; a tinica coisa que conta € o sangue, © seu sangue € suficientemente impuro para fazer dele um ini- migo do germanismo. Um murro nazista Ihe quebra um dente, Los € 0 jovem intelectual fica orgulhoso da falha na arcada, como se fosse uma cicatriz havida num duelo estudantil. Com as leis de Nuremberg de 1935 ¢, depois, com a anexacio da Austria pela Alemanha em 1938, seu destino conhece uma reviravolta, ¢ 0 jovem Hans, cético e pessimista por natureza, nao tem ilusdes. E suficicntemente hicido (Luziditat seré sempre um de seus vocs- bulos preferidos) para compreender precocemente que cada judeu em maos alemas é “um morto em férias, alguém a ser assassinado”, Judeu ele nao se considera: ndo conhece o hebraico nem a cultura hebraica, ndo dé ouvidos ao verbo sionista, religiosa- mente é um agndstico. E ndo se sente em condigdes de construir uma identidade que nao possui: seria uma falsificagéo, uma fan- farronice. Quem nao nasceu dentro da tradicéo judaica ndo é um judcu, ¢ dificilmente pode tomnar-se um: por definigio, uma radigao é herdada; € um produto dos séculos, ndo se fabrica a posteriori. No entanto, para viver € preciso uma identidade, ou seja, uma dignidade, Para ele os dois conceitos coincide, quem perde uma perde também a outra, morre espiritualmente: desti- tuido de defesas, esta exposto inclusive a morte fisica. Ora, a cle, € a0s tantos judeus alemaes que, como ele, tinham acreditado na cultura alemé, a identidade alema fora denegada: nas paginas imundas do Sitirmer de Streicher, 0 judeu aparece deserito pela Propaganda nazista como um parasita peloso, gordo, de pernas curtas, nariz pontiagudo, orelhas de abano, apto somente para lesar os outros, Por axioma, alemao nao é: ao contrario, basta sua presenga para contaminar os balnearios piiblicos ¢ até os bancos de praca. Dessa degradacéo, Fnewiirdigung, & impossivel defender-se © mundo inteiro a ela assiste, impassivel; os judeus alemaes mesmos, quase todos, submetem-se a prepoténcia do Estado e se sentem objetivamente degradados, O tinico modo de se subtrat rem dela é paradoxal e contradit6rio: aceitar 0 préprio destino, este caso o judaismo, e a0 mesmo tempo rebelar-se contra a escolha imposta. Para 0 jovem Hans, judeu de retorno, ser jude € simultancamente impossivel ¢ obrigatério; sua divisio, que 0 seguird até a morte € a provocard, comega aqui. Nega possuir no coragem fisica, mas ndo Ihe falta coragem moral: em 1938 deixa sua patria “anexada” e emigra para a Bélgica. Daf por diante sera Jean Améry, um quase-anagrama de seu nome original. Por dig- nidade, nao por outra coisa, aceitard 0 judafsmo, mas como judeu *fird] pelo mundo como doente de uma daquelas enter- midades que ndo provocam grandes sofrimentos, mas tém segu- ramente um desfecho letal”. Ele, um culto humanista € eritico alemdo, se esforga por virar um escritor franeés (jamais 0 conse- guird) e adere na Belgica a um movimento da Resistencia cujas esperangas politicas efetivas sio muito escassas; sua moral, pela qual pagar um prego muito alto em termos materiais ¢ espiri- tnais, jé esta transformada: pelo menos simbolicamente, con: te em “dar 0 troco”. Em 1940 a maré hitleriana também submerge a Bélgica, ¢ Jean, que apesar de sua escolha permaneceu um intelectual soli- tdrio ¢ introvertido, em 1943 cai nas maos da Gestapo. Exigem- Ihe que revele os nomes de seus companheiros € dirigentes, sob pena de tortura, Ele nao é um herdi: em suas paginas, admite honestamente que, se os conhecesse, teria falado, mas nao os conhece. Amarram suas maos as costas € o suspendem pelos pulsos a uma roldana. Segundos depois, os bragos estao desloca- dos e ficam voltados para cima, em sentido vertical, nas costas. 0s carrascos insistem, agoitam 0 corpo suspenso ja quase incons- ciente, mas Jean nao sabe nada, ndo pode refugiar-se nem mes- mo na traigdo. Recupera-se, mas ¢ identificado como judeu, © 0 remetem para Auschwitz-Monowitz, 0 mesmo Lager em que eu também senia confinado alguns meses mais tarde. Apesar de nao nos termos revisto nunca, trocamos algumas cartas ap6s a libertagao, reconhecendo-nos, ou melhor, conhe- cendo-nos através dos livros respectivos, Nossas recordagbes coincide bastante bem no plano dos detalhes materiais, mas divergem num particular curioso: eu, que sempre sustentei ter conservado de Auschwitz uma meméria completa e indelével, esqueci sua figura; ele afirma lembrar-se de mim, embora me confundisse com Carlo Levi, jé entéo conhecido na Franga como exilado © como pintor, Diz. até que passamos algumas semanas no mesmo alojamento € que ndo me esqueceu porque os italia- ut znos eram 10 poucos que quase constitufam uma raridade; além disso, porque no Lager, nos tiltimos dois meses, eu excrcia subs- tancialmente minha profissao, a de quémico: ¢ esta era uma rari dade até maior, Esta minha andlise pretende ser, ao mesmo tempo, um re- sumo, uma paréfrase, uma discussao € uma critica do ensaio amargo ¢ gélido, que tem dois titulos (0 intelectual em Auschwitz © Nos limites do espirito), Foi extraido de um volume que hé mui- tos anos gostaria de ver traduzido em italiano: com, também, dois titulos, Além da culpa e da expiagdo ¢ Tentativa de superagaio de um oprimido (Jenseits von Schuld und Siihne, Munique, Szczesny, 1966). Como se vé pelo primeiro titulo, o tema do ensaio de Améry €st4 circunscrito com precisdo, Améry esteve em varias prisdes nazistas €, além disto, depois de Auschwitz, ficou brevemente em Buchenwald ¢ em Bergen-Belsen, mas suas observacdes, por bons motivos, se limitam a Auschwitz: os confins do espirito, 0 hao-imagindvel estavam 1. Ser um intelectual em Auschwitz eta uma vantagem ou uma desvantagem? E preciso, naturalmente, definir o que se entende por int lectual. A definigéo que Améry propae € tipica e discutivel: Certamente, nao pretendo aludir a quem quer que exerga uma das chamadas profissGes intelectuals: ter tido um bom nivel de instrugao talvez seja uma condicdo necessatia, mas nao su ciente. Cada um de nés conhece advogados, médicos, enge- heiros, provaveimente até fildlogos, que nao so por certo inte: ligentes, muitas vezes até excelentes em seu ramo, mas que nao podem ser definidos como intelectuais, Um intelectual, como eu gostaria que aqui fosse entendido, € um homem que vive num sistema de referéncia que € espiritual no sentido mais amplo. O campo de suas observagbes é essencialmente humanista ou filo~ s6fico, Tem uma consciéneia déncia ¢ por aptidao, é atrafdo pelo pensamento absirato (...) stét ica bem desenvolvida. Por ten- Quando se the fala de “sociedade”, no compreende 0 termo no sentido mundano, mas no sociologico. O fendmeno fisico que conduz. a um curto-circuito no the interessa, mas ele conhece m2 profundamente Neidhart von Reuenthal, pocta cortestio do mun- do camponés. ‘A definigao me parece inutilmente restritiva: mais do que uma definigéo, € uma autodescrigao, e, pelo contexto no qual esté inserida, dela nao excluo uma pitada de ironia: com efeito, conhecer von Reuenthal, como certamente Améry 0 conhecia, valia pouco em Auschwitz, Parece-me mais oportuno que no termo “intelectual” também se incluam, por exemplo, 0 mate- mético, 0 naturalista ou o filésofo da ciéncia; além disto, deve- se observar que em pafses diferentes ele assume tonalidades iferentes. Mas nao hé motivo para disputas sutis; vivemos, afi nal, numa Europa que se pretende unida, ¢ as consideragdes de Améry ainda subsistem mesmo se 0 conceito em discussao for entendido em seu sentido mais amplo; ¢ nao quero seguir a tri- Iha de Améry, modclando uma definigao alternativa a partir de minha condigao atual (“intelectual” talvez eu seja hoje, embo- ra a palavra me dé um vago mal-estar; certamente, ndo 0 era entio, por imaturidade moral, ignoréncia ou alienacdo; se de pois me tornei intelectual, devo-0 paradoxalmente a experiéncia do Lager). Proporia ampliar 0 termo a pessoa culta, independen- temente de seu oficio cotidiano; cuja cultura seja viva, na medi- da em que se esforca por renovar-se, ampliar-se e atualizar-se; € que nao experimente indiferenga ou aborrecimento diante de nenhum ramo do saber, mesmo que, evidentemente, nao os possa cultivar a todos. De qualquer modo, seja qual for a definigao que se retenha, sé se pode concordar com as conclusdes de Améry. No trabalho, que cra predominantemente manual, 0 homem culto em geral estava no Lager em situacdo muito pior do que o inculto. Falta~ va-lhe, além da forca fisica, a familiaridade com os instrumentos 0 treinamento, que freqiientemente possuiam seus colegas ‘operarios ou camponeses; ao contrério, era atormentado por um agudo sentimento de humilhagio © d “30. De Entwitrdi- ‘gug, precisamente: de dignidade perdida, Recordo com preciso meu primeiro dia de trabalho no canteiro de servigos da Buna. Antes ainda de fazer constar a chegada dos italianos (quase to- 1B dos profissionais liberais ou comerciantes) nos registros do cam. po, mandaram-nos temporariamente alargar uma grande trin- cheira de terra argilosa, Botaram-me na mao uma pé ¢ foi logo um desastre: deveria pegar a terra removida do fundo da trin- cheira e jogé-la sobre a borda, que ja tinha uma altura de mais de dois metros. Parece facil, mas nao €: se nao se trabalha com impeto, € com impeto justo, a terra ndo fica na pé e volta a cair, muitas vezes na cabega do cavador inexperiente, ‘Também o mestre de obras “civil” a que fomos entregues era provisorio. Tratava-se de um alemao ja velho, tinha a aparéncia de um homem capaz, ¢ se mostrava sinceramente escandalizado com nossa falta de jeito. Quando tentamos explicar-Ihe que quase nenhum de ns jamais tinha tido uma pa nas méos, deu de ombros com impaciéncia: que diabo, éramos prisioneiros de uniforme listado, ainda por cima judeus. Todos devem trabalhar, porque “o trabalho liberta’: nao estava escrito assim na entrada do Lager? Nao era uma brincadeira, era exatamente assim. Bem, se nao sabiamos trabalhar, s6 0 que havia a fazer era aprender; nao ramos talvez capitalistas? Nés mereceriamos: hoje eu, ama- nha vocé. Alguns de nés se rebelaram € levaram as primeiras Pancadas de suas vidas dos Kapos que inspecionavam a drea: outros se abateram; outros ainda (entre eles, eu) intuiram con- fusamente que ndo havia saida e que a melhor solugao seria aprender a manejar a pa e a picareta. No entanto, a diferenga de Améry € de outros, meu senti- mento de humilhago devido ao trabalho manual foi moderado: evidentemente, nao era ainda suficientemenie “intelecttial”. No fundo, por que no? Possua um diploma, certo, mas trataya-se de sorte ndo merecida; minha familia tinha sido suficientemen- te rica do ponto de me fazer estudar: muitos coeténeos meus haviam mexido com terra desde @ adolescéncia. Nao queria a igualdade? Pois agora a tinha. Fui obrigado a mudar de opiniao poucos dias depois, quando as maos e os pés se cobriram de bo- thas ¢ de feridas: nao, nem mesmo cavadores de terra se impro- visam. Tive de aprender rapidamente algumas coisas fundamen- tais, que os menos afortunados (mas no Lager cram os mais afortunados!) aprendem desde criangas: 0 modo justo de empu- 14 har os instrumentos, 0s movimentos corretos dos bragos ¢ do tronco, 0 controle do cansaco € a resisténcia a dor, a intuigao de parar pouco antes da exaustio, 4 custa de tomar murros ¢ chu- tes dos Kapos e, as vezes, também dos alemaes “civis” da TG Far- benindutrie. Os golpes, como disse noutta parte, geralmente ndo s80 mortais, ao contrério do colapso; um murro bem dado con- tém em si sua propria anestesia, seja corpérea, seja espiritual A parte o trabalho, também a vida no alojamento era mais penosa para 0 homem culto, Era uma vida hobbesiana, uma guerra continua de todos contra todos {insisto: trata-se de Aus- chwitz, capital concentracionéria, em 1944. Em outros lugares, ‘ou em outras épocas, a situagao podia ser melhor, ou até muito pior). © soco dado pela Autoridade podia set accito, era, literal- mente, um caso de forga maior; ao contrério, ndo se podiam aceitar, porque inesperados ¢ fora das regras, os golpes recebidos dos companheiros, aos quais raramente 0 homem civilizado sabia reagir. Além disso, uma dignidade podia ser encontrada no trabalho manual, inclusive no mais cansativo, ¢ era possivel a ele adaptar-se, quem sabe nisto percebendo uma ascese grossei- ra ou, segundo 0 temperamento, um “medir-se” conradiano, um. reconhecimento dos préprios limites. Era muito mais dificil acei- tara routine do alojamento: arrumar a cama no modo perfeccio- nista ¢ idiota que descrevi entre as violéncias intiteis, lavar 0 chao de madeira com s6rdidos trapos molhados, vestis-se € des nudar-se sob ordens, exibir-se nu por ocasio dos intimeros con troles de piolhos, sarnas, da limpeza pessoal, adotar a parédia militarista da “ordem unida’, da “posicdo de sentido”, de “tirar © gorro” de improviso diante do SS graduado, de ventre suino. Isto, sim, era percebido como uma destituigéo, uma regressio mortal para um estado de infancia desolado, carente de amor € de mestres. ‘Também Améry-Mayer afirma ter sofrido em razao da muti- lagao de linguagem que mencionei no quarto capitulo: no entan- to, ele era de lingua alema. Sofreu com isso de modo diferente de és, aloglotas, reduridos condigio de surdos-mudos: se me for licito, de um modo mais espiritual do que material. Sofreu com isso porque era de lingua alemé, porque era um filélogo amante 15 de sua lingua: como sofreria um escultor que visse deturparem (ou amputarem uma estétua dele. Assim, o sofrimento do intelec- tual era diferente, neste caso, daquele do estrangeiro inculto: para este, 0 alemao do Lager era uma linguagem que ele néo compreendia, com risco de sua vida; para aquele, era um jargio barbaro, que ele compreendia mas the esfolava a boca se tentava falé-lo. Um era deportado, outro, um estrangeiro na patria A propésito dos golpes entre companheiros: nao sem di- vertimento ¢ altivez retrospectiva, Améry narra em outro ensaio seu_um episédio-chave, a ser inserido em sua nova moral do zuritckschlagen, de “dar 0 troco”. Por uma bobagem, um crimino- so comum polonés, um brutamontes, Ihe dé um murro na cara; ele, nao por reacéo animalesca, mas por revolta deliberada con- tra o mundo subvertido do Lager, devolve o golpe da melhor forma que pode. “Minha dignidade’, diz, “estava toda naquele soco desferido contra seu qucixo; 0 fato de que no fim das eon- tas tenha sido eu, muito mais fraco fisicamente, que sucumbi sob uma pancadaria desapiedada, ndo mais teve nenhuma importan cia, Dofdo com as pancadas, estaya satisfeito comigo mesmo’, Aqui devo admitir uma absoluta inferioridade minha: ja- mais soube “dar 0 troco*, nao por santidade evangélica nem por aristocracia intelectualista, mas por incapacidade intrinseca. Tal- vex por falta de uma educagao politica séria: de fato, nao existe programa politico, até o mais moderado, até o menos violento, que nao admita uma forma qualquer de defesa ativa. Talvez por falta de coragem fisica: possuo-a em certa medida diante dos perigos naturats e da doenga, mas nunca diante do ser humano que agride. “Brigar” € uma experiéncia que me falta, desde a €poca mais remota a que chega minha meméria: € nao posso dizer que lamento isto. Justamente por isso minha carreira na Resisténcia foi tao breve, dolorosa, estiipida e trégica: desempe- hava o papel de outro. Admiro a virada de Améry, sua escolha corajosa de sair da torre de marfim e ir 4 luta, mas isto estava, € ainda esta, fora de meu alcance. Admiro-a: mas devo constatar que esta escolha, que se prolonga por todo o seu periodo pés- Auschwitz, 0 conduziu a posigoes de uma tal severidade ¢ in iransigéncia que ele se tornou incapaz de encontrar alegria na 16 vida, ou melhor, de viver: quem “briga” com o mundo todo reencontra sua dignidade, mas paga-a a um prego altissimo, por- que esta seguro de ser derrotado, O suicidio de Améry, ocorrido em 1978 em Salzburgo, como todos os suicidios admite uma miriade de explicagdes, mas, a posteriori, 0 episédio do desafio contra o polonés oferece-Ihe uma interpretagio. Soube hé alguns anos que, numa carta que escreveu a uma amiga comum, Hety S., de quem falarei posteriormente, Améry me definiui como “o perdoador”. 0 que nao considero nem uma ofensa nem um elogio, mas uma imprecisdo. Nao tenho tendén- cia a perdoar, jamais perdoei a nenhum de nossos inimigos de entao nem tenho vontade de perdoar a seus imitadores na Argé- lia, no Vietna, na Unido Soviética, no Chile, na Argentina, no Camboja, na Africa do Sul, porque ndo conhego atos humanos que possam cancelar um crime; exijo justiga, mas nao sou capar, pessoalmente, de brigar nem de dar o troco, S6 uma vez tentei fazé-lo. Elias, 0 ando robusto de que falei em Se questo @ un womo € em Lilit, aquele que, segundo toda apa- réncia, “no Lager era feliz”, nao me lembro por qual motive me havia prendido as mos, me insultava ¢ impelia contra uma parede. Como Améry, tive um acesso de orgulho: consciente de trair a mim mesmo e de transgredir uma norma transmitida por intimeros antepassados avessos a violéncia, tentei defender-me e Ihe acertei um chute na tibia com o solado de madeira. Blias rugiu,, nao pela dor mas por sua dignidade atingida. Como um raio, dobrou-me os bragos no peito e me pds por terra com todo (0 seu peso: entao me apertou a garganta, observando-me aten- tamente a face com seus olhos que recordo muito bem, a um palmo dos meus, fixos, de um azul pélide de porcelana. Apertou até que viu aproximarem-se os sinais de inconsciéncia; ai, sem uma palavra, largou-me ¢ foi embora. Depois dessa confirmagéo, prefiro, nos limites do possivel, delegar punigdes, vingangas € retaliagdes as leis de meu pais. E uma escolha forcada: sei como os respectivos mecanismos fun- Gionam mal, mas eu sou tal qual fui construido por meu passa- Go, € nao me € mais possivel mudar. Se também tivesse sentido 0 mundo desabar; se tivesse sido condenado ao exilio € & perda 7 da identidade nacional; se também tivesse sido torturado até perder os sentidos ou coisa pior, talver aprendesse a dar 0 troco € nutrisse, como Améry, aqueles “ressentimentos” aos quais cle dedicou um longo ensaio cheio de angiistia Essas as evidentes desvantagens da cultura em Auschwitz. ‘Mas ndo havia mesmo vantagens? Seria ingratidao, em face da modesta (¢ “datada”) cultura ginasiana e universitaria que me coube, se 0 negasse; nem o nega Améry. A cultura podia servir: nao freqiientemente, nao por toda parte, ndo para todos, mas algumas vezes, em alguma rara ocasiao, valiosa como uma pedra preciosa, a cultura também servia, € nos sentiamos como levan- tados do chao; com @ risco de cair de novo pesadamente, fazen- do-nos tanto mais mal quanto mais alta e mais longa tivesse sido a exaltagio Améry narra, por exemplo, o caso de um amigo seu que em Dachau estudava Maiménides; mas 0 amigo era enfermeiro no ambulatério, e em Dachau, que também era um Lager durissimo, havia nada menos que uma biblioteca, ao passo que em Aus- chwitz s6 0 fato de passar os olhos num jornal constituia um evento inaudito perigoso. Narra também ter sentado num fim de tarde, na marcha de volta do trabalho, em meio a lama polo- esa, reencontrar em certos versos de Hélderlin a mensagem poética que em outra época o comovera, sem ter conseguido: os versos estavam ali, ressoavam-lhe no ouvido, mas nao Ihe diziam mais nada; enquanto num outro momento (tipicamente, na en- fermaria, depois de ter tomade uma sopa suplementar, isto é, numa trégua da fome) se entusiasmara até a embriaguez evocan- do a figura de Joachim Ziemssen, o oficial mortalmente enfermo, mas fiel ao dever, da Montara magica, de Thomas Mann. A mim a cultura foi titil: nem sempre, as vezes por vias sub- terréneas ¢ imprevistas, mas me serviu ¢ talvez me haja salvo. Releio apés quarenta anos, em Se questo ¢ um vomo, 0 capitulo “0 canto de Ulisses”: € um dos poucos episédios cuja autenticidade pude verificar (trata-se de uma operacao reconfortante; a distan- cia, como disse no primeiro capitulo, pode-se duvidar da propria meméria), porque meu interlocutor de entao, Jean Samuel, gura entre os pouquissimos personagens do livro que sobrevive- 1s ram. Permanecemos amigos, encontramo-nos varias vezes, € suas recordagdes coincidem com as minhas: ele se lembra daquela conversa, mas, por assim dizer, sem énfases, ou com as énfases deslocadas. Dante, entao, nao Ihe interessava; interessava-Lhe eu, em minha tentativa ingénua € presuncosa de transmitir-Ihe Dante, minha lingua € minhas confusas reminiscéncias escolares, num perfodo de meia hora e sob o taco da fome, durante a distribu do da sopa. Ora, ao escrever “daria a sopa de hoje para poder Jembrar até o fim*, nao mentia e ndo exagerava. Teria dado ver- dadeiramente pao e sopa, ou seja, sangue, para salvar do nada aquelas recordagdes, que hoje, com o apoio seguro do papel im- presso, posso reavivar quando quero € de modo gratuito, € que por isso parecem valer pouco, 14, naquele momento, valiam muito, Permitiam-me resta- belecer uma ligagao com o pasado, salvando-o do esquecimen- to € fortalecendo minha identidade. Convenciam-me de que a mente, apesar de premiada pelas necessidades cotidianas, ndo tinha deixado de funcionar. Promoviam-me a meus olhos ¢ aos ‘olhos de meu interlocutor. Concediam-me um descanso eféme- To mas nao embotado; ao contrario, libertador e diferencial: um. modo, em suma, de reencontrar a mim mesmo. Quem leu ou viu Fahrenheit 451 (Milo, Mondadori, 1966), de Ray Bradbury teve ocasido de imaginar o que significaria ser obrigado a viver num mundo sem livros ¢ o valor que nele assumira a meméria dos livros, Para mim o Lager foi isto também: antes ¢ apos “Ulis ses”, lembro-me de ter assediado obsessivamente meus compa- nheiros italianos para que me ajudassem a recuperar este ou aquele farrapo de meu. mundo anterior, nao obtendo muita coisa € Iendo em seus olhos, ao contrario, cansago € suspeita: 0 que este sujeito esta tentando, com Leopardi e 0 Ntimero de Avogra- do? Serd que a fome o esté enlouquecendo? Nao devo desprezar a ajuda que obtive de meu oficio de qui- mico. No plano pratico, salvou-me provavelmente de pelo me- nos algumas selegies para o gas: daquilo que li depois sobre © tema (particularmente em The Crime and Puntishment of IG-Far- ben, de J. Borkin, Londres, McMillan, 1978), soube que o Lager de Monowitz, embora dependesse de Auschwitz, pertencia a 1G- 19 Farbenindustrie, era em suma um Lager privado; ¢ 0s industriais alemaes, um pouco menos miopes do que os dirigentes nazistas, se davam conta de que os especialisias, entre os quais me situa- va depois de ter passado no exame de quimica a que fui subme- tido, nao eram facilmente substituiveis. Mas nao quero aludir aqui a esta condigao de privilégio nem as vantagens dbvias de trabalhar num ambiente fechado, sem cansago fisico e sem Kapos violentos: aludo a uma outra vantagem. Creio poder contestar, “por experiéncia pessoal”, a afirmagéo de Améry que exclui os ientistas, € mais ainda os técnicos, do rol dos intelectuais: estes siltimos, para ele, deveriam recrutar-se exclusivamente no cam- po das letras ¢ da filosofia. Leonardo da Vinci, que se definia “homem sem letras”, ndo era um intelectual? Junto com a bagagem de nogies praticas, eu havia obtido dos estudos mentais e trazido para o Lager um patrimdnio mal definido de habitos mentais que derivam da quimica ¢ areas relacionadas, mas que encontram aplicagdes mais amplas. Se ajo de um certo modo, como reagiré a substancia que tenho entre as maos, ou o meu interlocutor humano? Por que a substancia, ou ele, ou cla, manifestam, interrompem ou mudam um deter- minado comportamento? Posso antecipar © que ocorrers em tomo de mim daqui a um minuto, amanha ou daqui a um més? Se sim, quais so 05 sinais que contam € quais os que podem ser postos a parte? Posso prever o golpe, saber de que lado vira, deté-lo, desviar-me? Mas sobretudo, ¢ mais especificamente: com meu oficio. contrai um habito que pode ser julgado de modos diferentes € definido a vontade como humano ou desumano, o de nao per- ‘manecer jamais indiferente aos personagens que 0 acaso me apre- senta, Sao seres humanos, mas também “amostras”, exemplares de um catélogo, a serem reconhecidos, analisados ¢ sopesados. Ora, a amostragem que Auschwitz me descortinara era abun- dante, variada e estranha; composta de amigos, de neutros ¢ de inimigos, ou seja, alimento para minha curiosidade, que alguns, entao ¢ depois, julgaram distanciada, Um alimento que certa~ mente contribuit para manter viva uma parte de mim e que, Posteriormente, me forneceu matéria para pensar € para cons- 120 truir livros. Como disse, ndo sei se era intelectual 1a: talvez. o fosse episodicamente, quando a pressao arrefecia; ¢ se depois me tornci um, a experiéncia alcangada por certo me deu uma con- uribuigdo, Esta atitude “naturalista”, eu o sei, nao provém s6 nem necessariamente da quimica, mas pata mim provelo da qui mica. Ademais, que nao pareca cinico afirmar: para mim, como para Lidia Rolfi ¢ para muitos outros sobreviventes “afortuna- dos", 0 Lager foi uma universidade; ensinou-nos a olhar em redor ¢ a medir os homens. Neste aspecto, minha visio de mundo foi diferente, ¢ com- plementar, daquela de meu companheiro ¢ antagonista Améry. De seus escritos transparece um interesse diverso: o do comba- tente politico diante da enfermidade que empestava a Europa € ameagava (¢ ainda ameaga) 0 mundo; 0 do filésofo diante do Espirito, que em Auschwitz era vacante; 0 do erudito mutilado, a quem as forcas da historia retiraram a patria ¢ a identidade. Com efeito, seu ponto de vista estd voltado para 0 alto, detendo- se raramente na multidao do Lager ¢ em seu personagem tipico, 0 ‘muculmano”, o homem depauperado, cujo intelecto esté mo- ribundo ou morto, Portanto, a cultura podia servir, embora apenas em alguns casos marginais ¢ por curtos perfodos; podia embelezar algu- mas horas, estabelecer uma ligacao fugaz com um companheiro, manter a mente viva ¢ sadia, Decerto, nao servia para orientar nem para compreender: a esse respeito, minha experiéncia de estrangeiro coincide com a do alemao Améry. A rardo, a arte, a poesia nao ajudam a decifrar 0 lugar do qual foram banidas. Na vida cotidiana de “ld embaixo’, feita de nausea coalhada de hor ror, era salutar esquecé-las, do mesmo modo como era salutar aprender a esquecer casa ¢ familia; nao quero falar de um esque~ cimento definitive, do qual aliés ninguém é capaz, mas de um langamento aquele desvio da meméria onde se acumula 0 material que estorva e nao serve mais 8 vida de todos os dias. ‘A essa operagao estavam mais inclinados os incultos do que os cultos, Adaptavam-se antes Aquele “nao tentar entender”, que era 0 primeiro lema de sabedoria a ser aprendido no Lager; ten 11 tar entender, 14, no local, cra um esforgo intitil, mesmo para os muitos prisioneiros que vinham de outros Lager ou que, como Améry, conheciam a hist6ria, a légica ea moral, e que, além disso, Unham experimentado a prisdo a tortura: um desperdicio de energias, que seria mais itil investir na luta cotidiana contra a fome ¢ © cansago. Légica ¢ moral impediam a aceitagao de uma realidade il6gica e imoral: dai decortia uma recusa da realidade que em regra conduzia rapidamente 0 homem culto ao desespe- 10; mas as variedades do animal-homem sao inumeraveis, ¢ vi € descrevi homens de cultura refinada, especialmente jovens, dela se livrarem, simplificarem-se, embrutccerem € sobreviverem. © homem simples, habituado a ndo formular perguntas, estava protegido do intitil tormento de perguntar por qué; além disto, muitas vezes possuia um oficio ou uma habilidade manual que facilitavam sua insergo. Seria dificil dar uma relagdo com- pleta de tais ocupagies, até porque variavam de Lager para Lager ede momento para momento. A titulo de curiosidade: em Aus- chwitz, em dezembro de 1944, com os russos as portas, os bom- bardcios didrios ¢ @ gelo que rachava os dutos, foi instituido um Buchhatter-Konmmando, uma Brigada Contabil; chamou-se inclusi- ve para dela fazer parte aquele Steinlauf que descrevi no tercei- ro capitulo de Se questo 2 un womo, o que nao bastou para salva- lo da morte, Naturalmente, tratava-se de um caso-limite, a ser enquadrado na loucura geral do ocaso do Terceiro Reich: mas era normal e compreensivel que encontrassem um bom lugar os alfaiates, os sapateiros, as mecanicos, os pedreitos; estes eran até extremamente escassos; exatamente em Monowitz foi insti- tnida (certamente, nao por um objetive humanitério) uma esco- la do oficio de pedreiro para os prisioneiros com idade inferior a dezoito anos, ‘Também 0 [il6sofo, diz Améry, podia chegar a aceitagio, mas por um caminho mais longo. Podia suceder que rompesse a bar- reira do senso comum, que Ihe vetava considerar como boa uma realidade excessivamente feroz; enfim, podia admitir que, vi- vendo num mundo monstruoso, os monstros existem, € que ao lado da ldgica de Descartes existia a dos SS: 122 E se aqueles que se propunham aniquilé-lo tivessem razao, com base no fato inegivel de que eram os mais fortes? Deste modo, a tolerancia espiritual bésica e a diivida metédica do inte lectual se tornavam fatores de autodestruigao. Sim, os SS podiam muito bem fazer 0 que faziam: 0 direito natural ndo existe, © as categorias morais nascem e morrem como as modas. Havia uma ‘Alemanha que mandava para a morte os judeus € os adversirios politicos porque julgava que S6 por esta via poderia realizar-se. E dat? Também a civilizagdo grega se fundara na escravidao, ¢ um exército ateniense aquartelara em Melos al como os SS na Ucra- nia, Eliminaram-se vitimas humanas em ntimero inaudito até onde a luz da histéria pode iluminar 0 passado, ¢, de qualquer ano seria tdo-somente uma ingenuidade nascida no séeulo xix. “Links, zwei, drei, vier”, a voz de comando dos Kapos para ritmar a marcha, era um ritual como tan- 105 outros. Diante do horror nao hd muita coisa a opor:a Via Appia fora ladeada por duas filelras de escravos crucificados, € em Birke- nau exalava o fedor de corpos humanos queimados. No Lager 0 modo, a perenidade do progresso hu intelectual nao estava mais do lado do Crasso, mas de Espartaco: cis tudo, Essa capitulagao diante do horror intrinseco do passado po- dia conduzir 0 homem culto a abdicagao intelectual, fornecen- do-Ihe a0 mesmo tempo as armas de defesa de seu compa- nheiro inculto: “sempre foi assim, sempre sera assim”. Talvex a ignorancia da histéria me haja protegido dessa metamorfose; por ‘outro lado, para sorte minha, também nao estava exposto a um outro perigo que Améry menciona com justeza: por natureza, 0 intelectual (alemao, permito-me acrescentar a seu enunciado) tende a fazer-se cimplice do Poder ¢, portanto, a aprové-lo. ‘Tende a seguir as pegadas de Hegel € a deificar o Estado, qual- quer Estado: s6 0 fato de existir justifiea sua existéncia, O noti- Giério da Alemanha hitleriana fervilha de casos que confirmam essa tendéncla: a ela se submeteram, confirmando-a, Heidegger, © fildsofo, mestre de Sartre; Stark, 0 fisico, Prémio Nobel; Fau- Ihaber, o cardeal, suprema autoridade catélica na Alemanha, en- meros outros. ure in 123 Ao lado dessa propensio latente do intelectual agnéstico, Améry observa aquilo que todos nés, ex-prisionciros, observa- mos: os ndo-agndsticos, os seguidores de qualquer credo resist ram melhor a seducdo do Poder, desde que, naturalmente, nio fossem crentes do verbo nacional-socialista (a reserva nao é su- périlua: nos Lager, ¢ também marcados com o triangulo verme- tho dos prisionciros politicos, havia mesmo alguns nazistas con- victos, que haviam caido em desgraga por dissidéncia ideol6gica ‘u por razdes pessoais. Causavam incémodo a todos); em det nitivo, também suportaram melhor a prova do Lager ¢ sobrevi- veram em niimero proporcionalmente mais elevado. Como Améry, eu proprio entrei no Lager na condigéo de h4o-crente, como tal fui libertado € vivi até hoje; antes, a expe~ riéncia do Lager, sua iniqiiidade espantosa me confirmaram em minha laicidade. impedizam-me, e ainda me impedem, de con- ceber uma forma qualquer de providéncia ou de justica trans- cendente: por que os moribundos em vagoes de gado? Por que as ctiangas no gas? Todavia, devo admitir ter experimentado (e, de novo, s6 uma vez) a tentagao de ceder, de buscar refiigio na oragao, Isto ocorreu em outubro de 1944, no tinico momento em que me aconteceu perceber Iucidamente a iminéncia da morte: quando, nu ¢ espremido entre os companheiros nus, com minha licha pessoal nas mos, esperava desfilar diante da “co- misao” que, com uma passada de olhos, decidiria se eu iria logo para a cémara de gas ou se, ao contrario, ainda estava bas tante forte para trabalhar. Por um instante, experimentei a ne- cessidade de pedir ajuda ¢ rettigio: depois, apesar da angustia, prevaleceu a serenidade: nao se mudam as regras do jogo no fim da partida, nem quando se esté perdendo, Uma prece na- quela condigio teria sido nao s6 absurda (quais direitos podia reivindicar? E de quem?) mas blasfema, obscena, carregada da méxima impiedade de que um nao-crente seja capaz. Afastei aquela tentagao: sabia que de outro modo, se sobrevivesse, me envergonharia dela, Nao s6 nos momentos cruciais das selegdes ou dos bombar: deios aéreos, mas também na opressdo da vida cotidiana, os adeptos de uma crenga viviam melhor: tanto eu quanto Améry 124 observamos isto. Nao tinha nenhuma importéncia qual fosse seu credo, religioso ou politico. Sacerdotes catélicos ou reformados, rabinos das varias ortodoxias, sionistas militantes, marxistas ingé- niuos ou sofisticados, Testemunhas de Jeova estavam irmanados pela forga salvifica de sua fé. Seu universo era mais amplo do que 10. noss0, mais estendido no tempo e no espaco, sobretud mais compreensivel: possufam uma chave € um ponto de apoio, um, amanha milenarista pelo qual podia ter um sentido sacrificarem- se, um lugar no céu ou na terra em que a justica © a misericérdia haviam vencido ou venceriam num futuro talvez longinquo, mas certo: Moscou, a Jerusalém celestial ou a terrestre. Sua fome era diferente da nossa; era uma punigdo divina, ou uma expiagao, ou uma oferta yotiva, ou o fruto da podridao capitalista. A dor, neles ou ao redor deles, era decitravel e, por isto, nao desaguava no desespero. Olhayam-nos com comiscragao, as vezes com despre- zo; alguns deles, nos intervalos da fadiga, buscavam evangelizar- nos. Mas como um leigo pode fabricar ou aceitar momentanea- mente uma fé “oportuna” s6 porque ¢ oportuna? Nos dias fulgurantes ¢ muito densos que se seguiram ime- diatamente 8 libertagio, num cenério miserdvel de moribundos, de mortos, de vento infecto € de neve suja, os russos me man- daram ao barbeiro pela primeira vez em minha nova vida de homem livre. 0 barbeiro era um ex-prisionciro politico, um operdtio francés da ceinture; sentimo-nos logo irmaos, eu fiz, alguns comentarios banais sobre nossa improvavel salvac3o: éra- mos condenados 3 morte libertados no estrado da guilhotina, certo? Ele me olhou boquiaberto c em seguida exclamou escan- dalizado: *... mais Joseph était Iaf”.’ Joseph? Foram precisos al- guns instantes para compreender que ele aludia a Stalin, Ele nao, jamais desesperara; Stalin era sua seguranga, a Fortaleza que se canta nos Salmos. A demarcagio entre cultos € incultos, naturalmente, nao coincidia de modo algum com aquela entre crentes ¢ nao-eren- tes: antes, cortava esta tiltima em Angulo reto, constituinde qua- 1. "Mas José estava lat” 125 tro quadrantes bastante bem definidos: os cultos crentes, os cul- tos laicos, os incultos crentes, os incultos laicos; quatro pequenas has recortadas e salientes, que se destacavam no mar cinzento, infindo, dos semivivos que talvez tivessem sido cultos ou cren- tes, mas que jé ndo se propunham mais perguntas © a quem seria imtitil e cruel propd-las. O intelectual, observa Améry (e eu especificaria: 0 intelectual Jovem, tal como cle ¢ eu éramos no tempo da prisio e do confi- namento), obtinha de suas leituras uma imagem da morte inodo- sa, ataviada e literdria, Traduzo aqui “em italiano” suas observa- ‘Ges do fildsofo alemao, que deve citar o “Mais luz!” de Goethe, a Morte em Veneza e Tristao, Entre nés, na Iidlia, a morte € 0 segun- do termo do bindmio “amor e morte”; é a gentil transfiguragio de Laura, Ermengarda ¢ Clorinda; € o sacrificio do soldado na bata- tha (“Quem pela patria morre, bastante viveu"); é “Um bem mor- rer enobrece toda a vida”. Este acervo infindo de formulas defen- sivas © esconjuratérias, em Auschwizt (alids, mesmo hoje em qualquer hospital), tinha vida curta: a Morie em Auschwitz era tri- vial, burocratica ¢ cotidiana, Nao se comentava, nao tinha o "con forto do pranto”. Diante da morte, do habito da morte, o limite entre cultura ¢ incultura desaparecia. Améry afirma que nao se pensava mais em se a morte viria, mas em como viria: Discutia-se sobre o tempo necessdirio para que o veneno das cdmaras de gas fizesse efeito. Especulava-se sobre a dor da morte por injesau de fenol. Devia-se desejar um golpe na cabeca ou a mor- te por exaustao na enfermaria? Neste ponto minha experiéncia ¢ minhas recordagies se sepa- ram das de Améry. Talvez porque mais jovem, talvez porque mais ignorante do que ele, ou menos marcado, ou menos consciente, quase nao tive tempo para dedicar 4 morte; tinha coisas muito diferentes em que pensar, achar um pouco de pao, evitar 0 traba- Iho massacrante, remendar o calgado, surrupiar algum utensilio, interpretar os sinais ¢ os rostos em tomo de mim. Os objetivos de vida so a defesa étima contra a morte: nao s6 no Lager. 126 \V 11 | EsTEREOTIPOs Aqueles que experimentaram 0 encarceramento (¢, muito mais em geral, todos os individuos que atravessaram experién~ cias severas) se dividem em duas categorias bem distintas, com poucas gradagées intermedidrias: os que calam ¢ 05 que falam. Ambos obedecem a razSes validas: calam aqueles que experi- mentam mais profundamente um mal-estar que, para simplifi- car, chamei de “vergonha”, aqueles que nao se sentem em paz consigo mesmos ou cujas feridas ainda doem. Falam, € muitas vezes falam muito, os outros, obedecendo a impulsos diversos. Falam porque, em varios niveis de consciéncia, percebem no (ainda que ja longinquo) encarceramento o centro de sua vida, ‘0 evento que no bem e no mal marcou toda a sua existéncia. Palam porque sabem ser testemunhas de um processo de dimen- sio planetaria e secular. Falam porque (cita um provérbio idi- che) “6 bom narrar as desgracas passadas”; Francesca diz a Dante nao haver nenhuma dor maior do que lembrar na miséria o tempo feliz, mas é verdade também o inverso, como sabe qual- quer sobrevivente: & bom sentar-se no aconchego, diante do ali- mento € do vinho, e recordar para si € os outros 0 cansaco, 0 frie a fome: ¢ assim que Ulisses, na corte do rei dos fedcios, logo code a urgéncia de narrar diante da mesa posta. Falam, quem sa- be exagerando, como “soldados fanfarrdes”, descrevendo medo 27 € coragem, astticias, ofensas, derrotas e algumas vit6rias: assim fazendo, diferenciam-se dos “outros”, consolidam sua identida- de com a inserg3o numa corporagao € sentem aumentado seu prestigio, Mas falam, alias (posso usar a primeira pessoa do plural: nao pertenco aos taciturnos) falamos, também porque somos convi dados a fazé-lo, Hé alguns anos Norberto Bobbio escreveu que ‘05 campos nazistas de exterminio foram “nao unt dos eventos, mas e evento monstruoso, talvez irrepetivel, da histéria humana”. Os outros, os ouvintes, amigos, filhos, leitores ou mesmo estranhos, © intuem, para além da indignagdo da comiseragdo; compreen- dem a unicidade de nossa experiéncia ou pelo menos se estor cam por compreendé-la, Por isto, estimulam-nos a narrar e nos formulam perguntas, as vezes colocando-nos em embarago: nem sempre € f4cil responder a certos porqués, nao somos historiado- res nem filésofos mas testemunhas, c de resto ndo esta assenta- do que a histéria das coisas humanas obedega a esquemas légi cos rigorosos. Nao est assentado que cada mudanga decorra de ‘um 56 porqué: as simplificagdes sao adequadas somente para os textos escolares, os porqués podem ser muitos, confundidos entre si, ou incognosefveis, quando nao até mesmo inexistentes. Nenhum historiador ou epistemélogo demonstrou ainda que a histéria seja um processo determinista. Entre as perguntas que nos sdo postas existe uma que nunca std ausente; alids, 2 medida que os anos passam, ela é formula~ da com uma insisténcia cada vez maior e com um tom de acusa~ ao cada vez menos oculto. Mais do que uma pergunta singular, € uma familia de perguntas. Por que vocés nao fugiram? Por que nao se rebelaram? Por que nao escaparam da captura “antes”? Justamente por nunca falharem ¢ por erescerem com 0 tempo, esas perguntas merecem atengao. © primeiro comentario a essas perguntas, bem como sua primeira interpretagao, sao otimistas. Hé paises nos quais a liber- dade jamais foi conhecida, de vez que a necessidade que natu- ralmente o homem dela possui vem depois de outras necessida- des bem mais urgentes: de resistir ao frio, a fome, as doenca: 0s parasitas, as agressdes animais ¢ humanas. Porém, nos pai 18 ses em que as necessidades clementares esto satisleitas, os jo- vens de hoje sentem a liberdade como um bem ao qual ndo se deve renunciar em caso algum: dela nao se pode prescindir, & um direito natural € ébvio, € além do mais gratuito, como a satide ou 0 ar que se respira. Os tempos € os lugares nos quai esse direito congénito é negado sao percebidos como distantes, alheios, estranhos. Por isso, para cles a idéia do eércere esté con- catenada a idéia da fuga ou da revolta. A condigao do prisionei- ro € sentida como indevida, anormal: como uma doenga, em suma, que deve ser curada com a evasao ou com a rebeliao. De resto, 0 conceito de evasdo como dever moral tem raizes sélidas: segundo os cédigos militares de muitos pafses, o prisioneiro de guerra deve escapar de qualquer modo para retomar seu posto de combatente, e, segundo a Convengao de Haia, a tentativa de fuga nao deve ser punida. Na consciéncia comum, a evasao lava © extingue a vergonha do encarceramento, Diga-se de passagem: na Unido Soviética de Stalin, a priti- ca, quando nao a lei, era diferente e muito mais dréstica; para o prisioneiro de guerra soviético repatriado nao havia remédio nem redengio, ele era considerado irreversivelmente culpado, ainda que tivesse conseguido fugir ¢ reunir-se ao exército com- batente. Deveria ter morrido em ver de render-se, e, além disto, tendo ficado (algumas vezes por poucas horas) nas maos do ini- migo, era automaticamente posto sob a suspeigao de conluio com ele, Em seu incauto retorno a patria, foram deportados para a Sibéria, ou assassinados, muitos militares que na frente tinham. sido capturados pelos alemaes, levados para os ternitérios ocupa- dos, mas que fugiram € se uniram aos grupos guerrilheiros que operavam contra os alemaes na Itélia, na Franga ou na prépria retaguarda russa, Também no Japao em guerra 0 soldado que se rendia era considerado com extremo desprezo: dai 0 tratamento durissimo a que foram submetidos os militares aliados que cai- ram prisioneiros nas maos dos japoneses. Nao eram sé inimigos, mas também inimigos covardes, degradados pelo fato de se te- rem rendido. Mais ainda: 0 conceito de fuga como dever moral e como conseqiiéncia obrigatoria do cativeiro é constantemente reitera- 19 do pela literatura romantica (0 Conde de Monte Cristo!) e popu lar (lembre-se 0 sucesso extraordindrio das memérias de Papillon IMilao, Mondadori, 1974}). No universo do cinema, 0 heréi injustamente (ou as vezes justamente) encarcerado & sempre um personagem positivo, sempre tenta a fuga, até nas circuns- tdncias menos verossimeis, e a tentativa & invariavelmente co- roada de sucesso, Entre mil filmes sepultados pelo esquecimen- to, restam na meméria Jo sono wn evaso € Uragano. O prisioneiro tipico € visto como um homem fntegro, em plena posse de seu vigor fisico © moral, que, com a forga nascida do desespero e com © engenho estimulado pela necessidade, arremete contra as bar reiras, saltando-as ou transgredindo-as. Ota, essa imagem esquemética da prisdo e da fuga asseme- Iha-se muito pouco a situagao dos campos de concentragao. Com- preendendo esse termo em seu sentido mais amplo (ou seja, incluindo também, além dos campos de exterminio de nome universalmente conhecido, os muitissimos campos para prisio- neiros e internados militares), existiam na Alemanha varios mi- Ihdes de estrangeiros em condigéo de escravidao, extenuados, desprezados, subalimentados, malvestidos e malcuidades, priva- dos do contato com suas patrias, Nao eram “prisioneiros tipicos’, nao estavam inteiros, mas, antes, desmoralizados ¢ enfraque- cidos. Devem excetuar-se 0s prisioneiras de guerra aliados (os americanos ¢ os pertencentes & Commonwealth britanica), que re- cebiam viveres ¢ roupas através da Cruz Vermelha internacional, possuiam um bom treinamento militar, uma motivagao forte € um solide espiity de corporayau, aléin de ween conservado uma hierarquia interna bastante firme, imune dquela “zona cin- zenta” da qual falei em outro ponto; salve poucas excegdes, podiam confiar uns nos outros, e, além disso, sabiam que, se fos- sem recuperados, seriam tratados segundo as convengoes inter nacionais. Entre eles, com efeito, muitas fugas foram tentadas, € algumas levadas a cabo com sucesso. Para os outros, os parias do universo nazista (entre os quais, devem incluir-se os ciganos € os prisioneios soviéticos, militares € civis, que racialmente eram considerados pouco superiores aos judeus), as coisas tinham um aspecto diferente. Para eles, a eva- Bo sao era dificil e extremamente perigosa: estavam enfraquecidos, além de desmoralizados, pela fome € pelos maus-tratos; eram considerados, e assim se percebiam, como menos valiosos do que animais de carga. Tinham cabelos raspados, roupas repugnantes logo reconheciveis, calgados de madeira que impediam um passo rapido ¢ silencioso, Se estrangeiros, nao possiviam conhecimen- tos ou reftigios possiveis nos arredores; se alemaes, sabiam ser atentamente vigiados € fichados pela onisciente policia secret pouquissimos compatriotas seus arriscariam a vida ou a liberda- de para acobertd-los. © caso particular (mas numericamente imponente) dos judeus era o mais trégico. Mesmo admitindo que conseguissem superar a barreira do arame farpado ¢ a cerca eletrificada, evitar as patrulhas, a vigilancia das sentinelas armadas de metralhado- ras nas torres de guarda, os des adestrados na caca ao homem, para onde poderiam dirigir-se? A quem pedir reftigio? Estavam fora do mundo, homens e mulheres de vento. Nao mais tinham. uma patria (haviam sido privados da cidadania de origem) nem uma casa, desapropriada em favor dos cidadaos a titulo pleno. Salvo excegdes, nao mais tinham familia, ou, se ainda viviam alguns parentes, nao sabiam onde encontré-los ou para onde Ihes eserever sem por a policia em seu encalgo. A propaganda anti-semita de Goebbels e de Streicher deta frutos: a maior parte dos alemaes, especialmente os jovens, odiava os judeus, despre- zava-0s € considerava-os inimigos do povo; 0s outros, com pou- ‘quissimas ¢ herdieas exeegées, se abstinham de qualquer aju da por medo da Gestapo. Quem abrigava ou mesmo 6 ajudava um judeu corria 0 risco de punighes terriveis: e a esse propésito € justo recordar que alguns milhares de judeus sobreviveram durante todo 0 periodo hitleriano, na Alemanha € na Poldnia, escondidos em conventos, em adegas, em s6tdos, por obra de cidadaos corajosos, misericordiosos e, sobretudo, bastante inteli- gentes para conservar durante anos a discrigao mais estrita. Alem disso, em todos os Lager até a fuga de um s6 prisionei- ro era considerada como uma falta gravissima de todo 0 pessoal da vigilancia, a partir dos prisioneiros-funciondrios até o coman- dante do campo, que cortia o risco da destituigéo. Na légica na- BL zista, tratava-se de um evento ntolerdvel: a fuga de um escravo, em particular se pertencesse as ragas de “menor valor biolégico", parecia carregada de valor simbdlico, representaria uma vit6 daquele que ¢ derrotado por definigéo, um arranhdo no mito; € também, mais realistamente, um dano objetivo, porque cada pri sioneizo vira coisas que 0 mundo nao deveria saber. Como con- seqiiéncia, quando um prisionciro faltava 4 chamada (coisa nao rarissima: muitas vezes se tratava de um simples erro de conta- gem ou de um prisioneiro exausto até o desfalecimento), dese! cadeava-se 0 apocalipse. O campo todo era posto em estado de alarme; akém dos $8 encarregados da vigilancia, intervinham patrulhas da Gestapo; Lager, locais de trabalho, casas de colonos, habitagies dos arredores eram revistados. Ao arbitrio do coman- dante do campo, tomayam-se providéncias de emergéncia. Os compatriotas, 0s amigos notorios e os vizinhos de leito do fugi- tivo eram interrogados sob tortura e depois assassinados; com efeito, uma fuga representava um empreendimento dificil, sen- do inverossimil que o fugitivo nao tivesse ctimplices ou que nin- guém se desse conta dos preparativos. Seus companheiros de alojamento ou, as vezes, todos os prisionciros do campo eram obrigados a ficar em pé, no local da chamada, sem limite de tem- po, talvez durante dias, sob a neve, a chuva ou 0 sol de vera, até que 0 fugitive fosse recapturado vivo ou morto. Se fosse re- capturado vivo, era punido invariavelmente com a morte por enforcamento priblico, mas sua morte se fazia preceder de um cerimonial que variava caso a caso, sempre de ferocidade inau dita, no qual se desencadeava a crucidade fantasiosa dos $5. Pata ilustrar qudo desesperado era 0 empreendimento de uma fuga, mas nao s6 para isto, lembrarei aqui a agao de Mala Zimetbaum; de lato, gostaria que ficasse registrada na memeéria. A evasio de Mala do Lager feminino de Auschwitz-Birkenau foi narrada por muitas pessoas, mas os detalhes coincidem. Mala cra uma jovem judia polonesa que fora capturada na Belgica € que falava correntemente muitas linguas; por isso, em Birkenau servia como intérprete © como mensageira, desfrutando assim uma certa liberdade de deslocamento. Era generosa ¢ corajosa; ajudara muitas companheiras € era amada por todas. No verao 12 de 1944, decidiu fugir com Edek, um prisioneiro politico polonés Nao queriam apenas reconquistar a liberdade: pretendiam docu- mentar para 0 mundo 0 massacre cotidiano de Birkenau. Con- seguiram corromper um SS ¢ obter dois uniformes. Sairam dis- fargadoy e chegaram até a fronteira eslovaca; af foram detidos pelos guardas alfandegétios, que suspeitaram tratar-se de dois, desertores € os entregaram a policia. Foram imediatamente reco- nhecidos ¢ devolvidos a Birkenau. Edek logo foi enforcado, mas, nao quis esperar que, segundo 0 rito cruel do lugar, se lesse a sentenga: meteu a cabeca no né da forca e se atirou do estrado. Mala também tinha resolvido morrer sua prépria morte. Enquanto esperava numa cela ser interrogada, uma companhei- 1a pode aproximar-se e Ihe perguntou: “Como esté, Mala?”. Ela respondeu: “Tudo bem comigo’, Tinha conseguido ocultar uma lamina de navalha, Junto a forca, cortou um dos pulsos. © SS que fazia as veres de carrasco tentow arrancar-Ihe a lamina, ¢ Mala, diante de todas as mulheres do campo, golpeou-Ihe a face com a mao ensangiientada. Logo acorreram outros soldados, ferozes: uma prisioneira, uma judia, uma mulher ousara desalié- os! Pisotearam-na mortalmente; para sua sorte, ela expirou no veieulo que a levava ao forno crematorio. Isso nao era “violéncia intitil”. Era til: servia para cortar pela raiz toda veleidade de fuga; era normal que pen- sasse na fuga 0 prisioneira novo, sem conhecimento dessas té&- nadas ¢ experimentadas; era rarissimo que esse pensa~ puito bem nicas re mento passasse pela cabega dos mais velhos; com efeito, era ‘comum que os preparativos de uma evasao fossem denunciados pelos componentes da “zona cinzenta” ou até apenas por tercei- ros, temerosos das represdlias descritas, Lembro-me com um sortiso 0 episédio que me aconteceu ha vérios anos numa turma de curso clementar, em que fora convidado para comentar meus livros ¢ responder as perguntas dos alunos, Um menino de ar vivo, aparentemente o lider da classe, me dirigi a pergunta ritual: “Mas 0 senhor, por que no fugiu?”, Eu Ihe expus rapidamente tudo o que escrevi aqui; cle, pouco convencido, pediti-me que tragasse no quadro um esbo- co do campo, indicando a colocagao das torres de guarda, dos BB portdes, das cercas e da central elétrica, Fiz 0 que pude, sob trin- ta pares de olhos atentos, Meu interlocutor estudou o desenho por alguns instantes, pediu alguns novos detalhes e, em seguida, me expés 0 plano que arquitetara: aqui, de noite, degolar a sen- tinela; depois, vestir seu untforme; correr imediatamente a cen- tral ¢ interromper a corrente elétrica, de modo que os holofotes se apagariam e se desativaria a rede de alta tensio; por fim, eu poderia ir embora tranqiiilo, Acrescentou seriamente: “Se Ihe acontecer de novo, faga como eu disse: verd que consegue”. Em seus limites, me parece que o episédio ilustra bem a dis- crepancia que existe, € que se amplia de ano para ano, entre as coisas como eram “Ié embaixo” ¢ as coisas como sdo representa- das pela imaginagao corrente, alimentada por livros, filmes ¢ mitos aproximativos, Essa imaginacao, fatalmente, desliza para a simplificagao ¢ o esterestipo; gostaria de levantar aqui uma bar- reira contra essa derivacao. Mas, a0 mesmo tempo, gostaria de recordar que nao se trata de um fendmeno restrito a percepgao do pasado préximo nem das tragédias histéricas: € muito mais geral, faz parte de uma nossa dificuldade ou incapacidade para perceber as experiéncias alheias, 0 que é to mais pronunciado quanto mais essas experiéncias sao distantes das nossas no tem- po, no espago ou na qualidade. Tendemos a assimilé-las aquelas mais “habituais", como se a fome de Auschwitz fosse a de quem perdeu uma refeigio, ou como se a fuga de Treblinka fosse assi- milivel & fuga de um cércere comum. £ tarefa do historiador sanar a discrepincia, que é to mais ampla quanto mais tempo houver transcorrido desde os eventos estudados. Com igual freqiiéneia © até com uma énfase acusatsria mais acentuada, é-nos perguntado: “Por que vocés nao se rebela- ram?*. Esta pergunta nao ¢ essencialmente diferente da anterior; possui natureza andloga, fundando-se também num esterestipo. E oportuno dividir a resposta em duas partes. Em primeio lugar: nao é verdade que nao tenha havido revoltas em nenhum Lager. Varias vezes se descreveram, com abundincia de detathes, as revoltas de Treblinka, de Sobibér, de Birkenau; outras aconteceram em campos menores. Foram faca~ M4 has de extrema audacia, dignas do mais profundo respeito, mas nenhuma delas se concluiu com a vitéria, se por vitéria se en- tende a libertagdo do campo. Seria insensato visar a esse objeti- vor a superioridade das tropas de guarda era de tal ordem que 0 fracasso ocorreria em poucos minutos, na medida em que os insurgentes estavam praticamente desarmados. © objetivo real cera danificar ou destruir as instalagdes da morte ¢ permitir a fuga do pequeno miicleo dos rebeldes, o que as vezes (por exemplo, em Treblinka, ainda que s6 parcialmente) se dew. Jamais se pen- sou numa fuga em massa: teria sido uma tentativa louca, Que sentido, que utilidade teria abrir as portas para milhares de indi- viduos capazes apenas de se arrastarem € para outros que, ex terra inimiga, nao saberiam onde buscar reftigio? De qualquer modo, houve insurreigies; foram preparadas com inteligéncia e incrivel coragem por minorias resolutas ¢ fisi- camente ainda intactas. Custaram um prego espantoso em ter ‘mos de vidas humanas ¢ de sofrimentos coletivos infligidos a titt- lo de represélia, mas serviram e servem para demonstrar ser falso alirmar que os prisioneiros dos Lager alemaes jamais tentaram revoltar-se, Na intengio dos rebeldes, deveriam conduzir a um outro resultado mais concreto: levar ao conhecimento do mundo livre 0 segredo terrivel do massacre. Com efeito, 0s poucos que obtiveram éxito e que, ap6s outras peripécias extenuantes, pude- ram ter acesso aos drgaos de informagao, falaram: mas, como mencionei na introdugao, quase nunca foram escutados ou tive- ram crédito, As verdades incémodas tém um caminbo dificil Em segundo lugar: como 0 nexo encarceramento-fuga, tam- ‘bém o nexo opressdo-rebeliao € um esteredtipo, Nao quero dizer que nao seja valido jamais: digo que nao é valido sempre. A his- Loria das rebelides, isto é, das revoltas de baixo para cima, da *maioria oprimida” contra a “minoria poderosa”, é tio velha quanto a histéria da humanidade ¢ igualmente variada ¢ trégi ca, Houve algumas poucas rebelides vitoriosas, muitas foram derrotadas, intimeras outras sufocadas em seu bergo, € téo pre- cocemente que nao deixaram vestigio nas cronicas. As varidveis em jogo so muitas: a forga numérica, militar ¢ ideoldgica dos rebeldes, hem como da autoridade desafiada, as respectivas coe- 135 ses ou cisdes internas, a ajuda externa a uns ou outros, a habi- lidade, 0 carisma ow a audicia dos lideres, a sorte, Mas, em todo caso, observa-se que a frente do movimento jamais figuram os individuos mais oprimidos: habitualmente, a0 contrério, as revolugdes sao dirigidas por Lideres audaciosos ¢ atrevidos, que se langam & luta por generosidade (ou talvez por ambigao) mes- mo tendo a possibilidade de viver pessoalmente uma vida segu- ra ¢ tranqiila ou, inclusive, privilegiada. A imagem tantas vezes fixada nos monumentos, do escravo que rompe seus pesados sgrilhdes, 6 ret6rica: seus grilhdes sio quebrados pelos compa- heiros cujas cadeias so mais leves e mais frouxas © fato no pode surpreender. Um lider deve ser cficiente: deve possuir forca moral e fisica, € a opressao, se levada além de um certo nivel muito baixo, deteriora uma e outra, Para suscitar a célera € a indignagao, que sao os motores de todas as revoltas verdadeiras (as de baixo para cima, naturalmente: ndo, por certo, os puisclt nem as “revoltas palacianas”}, € preciso com cer teza que a opressao exista, mas cla deve ser de proporgio mo- desta, ou conduzida com pouca eficiéncia. A opressdo nos Lager era de proporgao extrema, além de ser conduzida com a conh cida, ¢ em outros campos clogiavel, eficiéncia alema. 0 prisio- neiro Upico, aquele que constituia 0 cerne do campo, estava no limite da exaustao: faminto, enfraquecido, coberto de chagas {especialmente nos pés: era um homem “impedido”, no sentido original do termo. Nao é um detalhe secundériol) ¢, portanto, profundamente aviltado, Era um homem-trapo, ¢ com os trapos, como ja sabia Marx, as revolugies nao se fazem no mundo real mas somente no da retérica literéria ou cinematografica. Todas as revolugdes, tanto as que mudaram a his to as mimtisculas, de que nos ocupamos aqui, foram guiadas por personagens que conheciam bem a opressio, mas nao na pré- pria pele. A revolia de Birkenau, que jé mencionei, foi desenca- deada pelo Kontmando Especial encarregado dos fornos cremat6- rios: tratava-se de homens desesperados exasperados, mas bem nutridos, vestidos ¢ calgados. A revolta do gueto de Varsévia cons- tituiu uma faganha digna da mais reverente admiragao, como a primeira “resisténcia” européia ea tinica conduzida sem a mini- 16ria do mundo quan. 136 ma experanga de vitéria ou de salvagao; mas foi obra de uma elite politica que, justamente, se reservara alguns privilégios fun damentais com o objetivo de conservar a prépria forga, Chego a terceira variante da pergunta: por que vocés ndo escaparam “antes”? Antes que as fronteiras se fechassem? Antes que a armadilha fosse acionada? Também aqui devo recordar que muitas pessoas ameagadas pelo nazismo € pelo fascismo fu- giram “antes”. Eram exilados propriamente politicos ou mesmo intelectuais malvistos pelos dois regimes: milhares de nomes, muitos obscuros, alguns ilusires, como Togliatti, Nenni, Saragat, Salvemini, Fermi, Emilio Segré, Meitner, Arnaldo Momigliano, ‘Thomas e Heinrich Mann, Arnold e Stelan Zweig, Brecht, ¢ tan~ tos outros; nem todos retornaram, ¢ foi uma hemorragia que debilitou a Europa, talvez de modo irremedidvel, Sua emigracao (para a Inglaterra, os Estados Unidos, a América do Sul, a Unido Soviética; mas também a Bélgica, a Holanda, a Franga, onde a maré nazista 0s alcangaria poucos anos depois: eles eram, ¢ 10 dos somos, cegos diante ao futuro) nao foi uma fuga nem uma desergao, mas sim uma busca natural de aliados potenciais ou reais, em cidadelas a partir das quais se pudesse retomar sua luta ou sua atividade criativa, No entanto, é também verdade que em sua maioria as fami- lias ameagadas (em primeiro lugar, os judeus) ficaram na Italia € na Alemanha. Perguntar por que € mais uma vez o sinal de uma concepgao estereotipada © anacrOnica da histéria; mais simplesmente, de uma ignorancia e de um esquecimento difu- so, que tendem a aumentar com 0 distanciamento dos fatos no tempo. A Europa de 1930-40 nao era a Furopa de hoje. Emigrar € sempre doloroso; na época, era também mais dificil e custoso do que hoje. Para fazé-lo, eta preciso nao 6 muito dinheiro mas também uma “cabeca de ponte" no pais de destinagdo: parentes ou amigos dispostos a dar garantias ou mesmo hospedagem. Muitos italianos, sobretudo camponeses, tinham emigrado nos decénios precedentes, mas foram impelidos pela miséria € pela fome, além de terem uma cabega de ponte ou acreditarem té-la; muitas vezes foram convidados € bem acolhidos, porque local- 137 mente a mao-de-obra escasseava; seja como for, também para eles © para suas familias deixar a patria havia sido uma decisio traumética “Patria*: nao sera initil determo-nos no termo, Coloca-se vistosamente fora da linguagem coloquial: nenhum italiano, se- do por brincadeira, jamais dird: “pego o trem e volto a patria’. E de criacao recente € nao tem sentido univoco; nao tem equi- valentes exatos em linguas diferentes do italiano, nao aparece, que eu saiba, em nenhum de nossos dialetos (¢ isto € um sinal de sua origem culta ¢ de sua abstracao intrinseca), nem teve sempre 0 mesmo significado na Itélia. Com efeito, segundo as €pocas, indicow instancias geograficas de extensao diversa, desde a aldeia onde se nasce € (etimologicamente) onde viveram os pais, até, depois do Risorgimento, toda a nacao. Em outros paises, equivale mais ou menos ao lar ou ao lugar de nascimento; na Franca (¢ 4s vezes também entre nés), 0 termo assumiu uma conotacao simultaneamente dramética, polémica ¢ ret6rica: a Patrie ressurge quando esté ameagada ou € alvo de ingratidao. Para quem se muda, 0 conceito de patria se torna doloroso ©, a0 miesmo tempo, tende a esvanecer; jd Pascoli, afastando-se (e nao por muito tempo) de sua Romagna, “doce terra”, suspi- rava: “eu, minha patria agora € onde vivo". Para Lucia Mondel- la, a patria se identificava visualmente com os “cimos desiguais” de suas montanhas que surgem das Aguas do lago de Como. Ao contrario, em paises ¢ em tempos de intensa mobilidade, como sdo hoje 0s Estados Unidos e a Unido Soviética, nao se fala de patria sendo em termos politico-burocraticos: qual é 0 lar, qual a “terra dos pais” daqueles cidadaos em eterno deslocamento? Muitos deles nao 0 sabem nem se preocupam com isto. Mas a Europa dos anos 1930 era bem diferente. J4 indus- trializada, revelava-se ainda profundamente camponesa, ou estavelmente urbanizada. O “exterior”, para a enorme maioria da populacdo, constitua um cenério distante e vago, sobretudo para a classe média, menos assediada pelas necessidades. Dian- te da ameaca hitleriana, a maior parte dos judeus natives, na Itdlia, na Franga, na Polénia, na prépria Alemanha, preferiu continuar naquela que sentiam como sua “patria”, com motiva- ne Ses amplamente comuns, ainda que com nuangas diferentes de lugar para lugar. ‘A todos foi comum a dificuldade organizativa da emigragao, Eram tempos de graves tensdes internacionais: as fronteiras curopéias, hoje quase inexistentes, estavam praticamente fe- chadas, a Inglaterra e as Américas admitiam cotas de imigracdo extremamente reduzidas. No entanto, acima dessas dificuldades erguia-se uma outra de natureza interna, psicolégica. Esta al- deia, ou cidade, ou regido, ou nagao, € minha, aqui nasci, aqui repousam meus antepassados. Falo sua lingua, adotei seus cos- tumes, a cultura; talvez tenha contribuido para esta cultura. Paguei impostos, observei suas leis. Combati suas batalhas, sem preocupar-me se fossem justas ou injustas: arrisquei minha vida por suas fronteiras, alguns de meus amigos ou parentes jazem nos cemitérios de guerra, cu. mesmo, em deferéncia a ret6rica corrente, me declarei disposto a morrer pela patria, Nao posso nem quero deixa-la: se morrer, morrerei “na patria”, seré meu modo de morrer “pela pat E Obvio que essa moral, mais sedentaria e doméstica do que ativamente patridtica, nao resistiria se 0 judafsmo europeu tives- se podido antever 0 futuro, Nao que faltassem os sinais premo- nit6rios da camificina: desde seus primeiros livros € discursos, Hitler havia falado claro, os judeus (ndo sé 0s judeus alemaes) eram os parasitas da humanidade ¢ deviam ser eliminados como se eliminam os insetos nocivos. Mas as deduces inquietantes tém vida dificil: até o ponto extreme, até as incursdes dos sequa-~ z¢s nazistas (¢ fascistas) de casa em casa, encontrou-se modo de desconhecer 0s sinais, de ignorar perigo, de fabricar aquelas verdades de conveniéncia de que falei nas primeiras paginas deste livro. Isso aconteceu na Alemanha em medida maior do que na Itélia, Os judeus alemies eram quase todos burgueses ¢ cram. alemaes: como seus quase-compatriotas “arianos”, amavam a lei © a ordem, ¢ ndo $6 nao previam como também eram organica- mente incapazes de conceber um terrorismo de Estado, mesmo quando ja o tinham ao redor. Hé um famoso ¢ densissimo verso de Christian Morgenstem, bizarro poeta bévaro (ndo-judeu, 139 apesar do sobrenome), que aqui vem a calhar, embora tenha sido escrito em 1910, na Alemanha limpa, proba ¢ amante das leis, descrita por J. K, Jerome em Tre omni a zonzo. (Trés homens ao {éu). Um verso de tal modo alemdo de tal modo rico de signifi- cado que virou provérbio, nao podendo ser traduzido em italia- ho senao através de uma perifrase desajcitada: Nich sein kann, was nica sein dar. £0 fecho de uma curta poesia emblematica. Palmstrém, um Cidadao alemao extremamente submisso, € atropelado por um au tomével numa rua em que a circulagao é proibida. Levanta-se machucado € rememora: se a circulagio € proibida, os veiculos nao podem circular, isto é, nao circulam. Ergo, 0 atropelamento ndo pode ter acontecido: € uma “realidade impossivel”, uma Unmnogliche Tatsache (este € 0 titulo da poesia). Ble deve ter somen- te sonhado com o atropelamento, porque, precisamente, “nao po- dem existir as coisas cuja existéncia ndo € moralmente licita” E preciso estar em guarda contra os juizos a posteriori e os esteredtipos. De modo mais amplo, € preciso evitar 0 erro que consiste em julgar épocas ¢ lugares distantes com 0 metro que prevalece aqui € agora: erro 120 mais dificil de evitar quanto maior for a distancia no espago € no tempo. £ esse 0 motive pelo qual para nés, nao especialistas, & to ardua a compreensio dos textos biblicos € homéricos, ou mesmo dos classics gregos ¢ lati- nos. Muitos europeus de entdo, ¢ nao s6 curopeus, € nao s6 de entio, se comportaram ¢ s¢ comportai como Palistrém, ne- gando a existéncia das coisas que nao deveriam existir. Segundo © senso comum, que Manzoni sagazmente distinguia do “bom. senso", 0 homem ameagado antecipa-se, resiste ou foge; mas muitas ameacas de entdo, que hoje nos parecem evidentes, naquela época eram veladas pela incredulidade intencional, pelo recalque, pelas verdades consolatorias generosamente trocadas € Aqui surge a pergunta obrigatéria: uma contrapergunta. Em. que nivel de seguranga vivemos nés, homens do fim do século ¢ do milénio? E, mais em particular, nés, curopeus? Disseram- 140 nos, ¢ nao hé motivo para duvidar, que para cada ser humano do planeta esta reservada uma quantidade de explosive nuclear ual a trés ou quatro toneladas de trinitrotolueno; se fosse usa~ do mesmo s6 um por cento disso, imediatamente haveria deze- nas de milhdes de mortas bem como lesdes genéticas espantosas para toda a espécie humana, ou melhor, para toda a vida sobre a terra, talvez com excecao dos insetos, Além disso, é pelo me~ nos provavel que uma terceira guerra generalizada, mesmo con- vencional, mesmo parcial, se travaria em nosso territério, entre 6 Allntico e os Urais, entre © Mediterraneo ¢ o Artico. A amea- ca € diferente daquela dos anos 1930: menos préxima, porém mais vasta; ligada, segundo alguns, a um demonismo da Histé- ria, novo, ainda indecifravel, mas desligada (até agora) do demo- nismo humano. Esté voltada contra todos €, portanto, € particu- larmente “imitil”. E entao? Os medos de hoje serio menos ou mais fundados do que os daquela época? Diante do futuro somos no menos cegos do que nossos pais. Suicos € succos tém os reftigios anti- nucleares, mas o que encontrarao quando safrem a céu aberto? Hé a Polinésia, a Nova Zelandia, a Terra do Fogo, a Antdrtida: tal- vex fiquem ilesas. Obter passaporte e vistos de entrada € muito mais facil do que no pasado: por que nao partimos, por que ndo abandonamos nosso pais, por que nao fugimos “antes”? ut VII CARTAS DE | ALEMAES Se questo ® un uomo é um livro de dimensdes modestas, mas, como um animal némade, ha jé quarenta anos deixa um rastro longo e intrincado. Fora publicado pela primeira vez em 1947, numa tiragem de 2500 exemplares, bem acolhidos pela critica mas vendidos apenas parcialmente: os 600 exemplares que res taram, armazenados num depdsito em Florenga, perderam-se na enchente do outono de 1966. Apés dez anos de “morte aparen- te”, voliou a vida através do editor Einaudi, em 1957, Muitas vezes me propus uma pergunta fiitil: 0 que teria acontecido se 0 livro tivesse tido imediatamente uma boa difusao? Talvez nada especial: € provavel que continuasse minha dificil vida de quimi- co que se tornava escritor nos domingos (mas nem mesmo todos os domingos); ou talvez, ao contrario, me deixasse seduzir © des- fraldasse, nao sei com qual resultado, a bandeira de eseritor em grandeza natural. A questa, como dizia, € ociosa: o oficio de re- construir 0 passado hipotético, aquilo-que-aconteceria-se, ¢ 180 desacreditado quanto o de prever o futuro. Malgrado este comego em falso, 0 livro teve seu trajeto. Foi traduzido em oito ou nove Iinguas, adaptado para o radio e para 6 teatro na Itdlia € no exterior, comentado em intimeras escolas. Em seu itinerério, uma etapa teve para mim uma importéncia fundamental: a de sua tradugio para a lingua alema e a publica~ 3 «ao na Alemanha Federal. Quando, em 1959, soube que um ed tor alemao (a Fischer Biicherei) tinha adquirido os direitos de tradugdo, me senti tomado por uma emogao violenta e nova, a de ter vencido uma batalha, Ora, eu escrevera aquelas paginas sem pensar num destinatério especifico; para mim, tratava-se de coisas que carregava, que me invadiam e que tinha de por para fora: dizé-las, ou melhor, grité-las & luz do dia; mas quem grita 4 luz do dia se ditige a todos ¢ a ninguém, clama no deserto. Com a novidade daquele contrato, tudo mudara e se me torna ra claro: 0 livro, por certo 0 havia escrito em italiano, para os ita- lanos, para os filhos, para quem ndo sabia, para quem nao quc ria saber, para quem ainda no era nascido, para quem, de bom grado ou no, fora conivente com a ofensa; mas seus destinaté- rios verdadeiros, aqueles contra os quais 0 livro se voltava como uma arma, eram cles, oy alemaes. Agora a arma estava pronta para disparar, Lembremos, desde Auschivitz s6 haviam passado quinze anos: os alemaes que me leriam eram “aqueles”, ndo seus descenden- tes, De opressores ou espectadores indiferentes cles se tornariam leitores: eu os forcaria a ficar diante de um espelho. Chegara a hora de acertar as contas, de por as cartas na mesa. Sobretudo, @ hora do didlogo. A vinganga nao me interessava: intimamente me satisfizera a sagrada (simbolica, incompleta, tendenciosa) representagao de Nuremberg, mas para mim estava bem assim, que 0s outros, 0s profissionais, cuidassem dos justificadissimos enforcamentos. A mim competia compreender, compreendé-los. Nao 0 punhado dos grandes culpados, mas eles, o povo, aqueles que eu vira de perto, aqueles entre os quais foram recrutados os soldados $$, ¢ também os outros, os que haviam acreditado, os que, nao acreditando, haviam calado, nao haviam tido a cora- gem sutil de nos olhar nos olhos, de nos dar um pedaco de pao, de murmurar uma palayra humana, Recordo muito bem aquele tempo aquele clima, ¢ acredi- to poder julgar os alemaes de entao sem preconceitos e sem edlera. Quase todos, mas ndo todos, tinham sido surdos, cegos € mudos: uma massa de “invélidos” em torno de um naicleo de per- versos, Quase todos, mas nao todos, tinham sido covardes. Jus 4 tamente aqui, e com alivio, para mostrar quao longe de mim estdo 0s juizos globais, gostaria de narrar um episédio: foi excep- Gional, mas também aconteceu. Em novembro de 1944, estévamos no trabalho, em Aus- chwitz; eu, com dois companheiros, estava no laboratério qui- mico que descrevi no lugar oportuno, Soou © alarme aéreo, € logo depois foram vistos os avides de bombardeio: cram cente- nas, afigurava-se uma incursdo monstruosa. Havia nas dreas de trabalho alguns grandes bunker, mas eram para os alemaes, para nds estavam proibidos. Deviam bastar-nos os terrenos abando. nados, entao jé cobertos de neve, no interior das cercas. Todos, prisioneiros e civis, nos precipitamos pelas escadas rumo as re: pectivas destinagdes, mas o chefe do laboratério, um téenico ale- mao, deteve-nos, os Hifilinge-quimicos: “Voces trés, venham co- migo”, Surpresos, seguimo-lo apressados para 0 bueker, mas na entrada estava um guarda armado, com a suéstica no brago, O guarda Ihe disse: “Vocé entra; os outros, déem 0 fora!”. 0 chefe respondeu: “Est4o comigo: ou todos ou nenhum”, tentando forgar pas- sagem; seguiu-se uma troca de murros. Por certo, 0 robusto guarda levaria a melhor, mas para sorte de todos o sinal de alar- me cessou: a incursdo nao era contra nés, os avides tinham seguido para o norte. Se (um outro se! Mas como resistir ao fas Ginio dos caminhos que se bifuream?), se os alemaes anémalos, capazes dessa modesta coragem, fossem mais numerosos, a bis- t6ria de entao e a geografia de hoje seriam diferentes. Eu nao confiava no editor alemao. Escrevi-lhe uma carta quase insolente: intimava-o a ndo cortar ou trocar uma s6 pala vra do texto, € exigia mandar-me 0 original da tradugao por par- tes, capitulo por capitulo, a medida que o trabalho prosseguisse; queria controlar sua fidelidade, nao sé lexical mas interna. Junto com 0 primeizo capitulo, muito bem traduzido, me veio uma comunicagao do tradutor, em italiano perfeito, O editor Ihe mos- trara minha carta: eu nao tinha nada a temer, nem do editor nem dele, tradutor, Apresentava-se: tinha a mesma idade que eu, estudara varios anos na Italia, além de tradutor era um italianis- la, estudioso de Goldoni. Também ele era um alemao andmallo. 45 Fora convocado mas 0 nazismo o repugnava; em 1941, simula- ra uma doenga, fora internado num hospital e conseguira passar © periodo de suposta convalescenga estudando literatura italiana na Universidade de Pédua, Em seguida, deveria reincorporar-se a0 exército mas permaneceu em Padua, onde entrou em conta- to com os grupos antilascistas de Concetto Marchesi, de Meneg- hetti e de Pighin. Em setembro de 1943 ocorreu 0 armisticio italiano, ¢ os ale- maes, em dois dias, ocuparam militarmente 0 Norte da Itélia. Meu tradutor se junto “naturalmente” aos guerrilheiros padua nos das formag6es Giustizia ¢ Liberta, que combatiam nos montes Euganei contra os fascistas de Sald e contra seus compattiotas. Nao tivera diividas, sentia-se mais italiano do que alemao, guer- rilheiro € no nazista, mas sabia dos riscos que corria: lutas, peri- £05, suspeitas, mal-estar; se capturado pelos alemaes (e, com efei- to, fora informado de que 0s SS estavam em seu encalgo), uma morte atroz; além disso, em seu pais, a qualificagio de desertor € também, talvez, de traidor. Com o fim da guerra, estabcleceu-se em Berlim, que naque- le tempo nao estava cortada pelo muro mas submetia-se a um. complicadissimo regime de condominio dos “Quatro Grandes” de entao (Estados Unidos, Unido Soviética, Gra-Bretanha e Franca) Ap6s sua aventura guerrilheira na Itélia, era um perfeito bilin- siie: falava o italiano sem sinal de sotaque estrangeiro. Fez tradu- @®es: Goldoni em primeiro lugar, porque o amava e porque conhecia bem os dialetos vénctos; pelo mesmo motivo, o Ruzan- te de Agnolo Beolco, até entéo desconhecido na Alemanha; mas também autores italianos modernos, Collodi, Gada, D’Arrigo, Pirandello, Nao era um trabalho bem pago, ou melhor, ele era excessivamente escrupuloso €, portanto, exeessivamente lento, de sorte que sua jornada de trabalho nao era adequadamente remunerada; no entanto, jamais se dispos a buscar emprego nu- ma editora. Por dois motivos: amava a independéncia ¢, além disso, sutilmente, por vias obliquas, suas escolhas politicas pesa- vam sobre ele. Ninguém jamais Ihe disse abertamente, mas um. desertor, mesmo na Alemanha superdemocratica de Bonn, mes- mo na Berlim quadripartida, era persona non grata 46 Traduzir Se questo 2 1n womo o entusiasmava: o livro The era afim, confirmava, reforgava por contraste seu amor pela liberda- de € pela justiga; traduzi-lo era um modo de continuar sua luta temeréria ¢ solitéria contra seu pais desencaminhado. Naquela época estévamos ambos to ocupados que nao podiames viajar, e nasceu entre nds uma troca de cartas frenética, Ambos éramos perleccionistas: ele, por habito profissional; eu porque, por mais que tivesse encontrado um aliado, ¢ um aliado valoroso, temia que cu texto empalidecesse, perdesse suas conotagées. Era a prime! ra vez que vivia a aventura sempre excitante, jamais gratuita, de ser traduzido, de ver o prdprio pensamento manipulado, refran- gido, a propria palavra passada no crivo, transformada, ou mal entendida, ou ainda enriquecida por algum inesperado recurso da nova lingua. Desde as primeiras amostras pude constatar que na realida- de minhas suspeitas “polfticas’ nao tinham fundamento: meu parmer cra to inimigo dos nazistas quanto eu, sua indignacéo no era menor do que @ minha. Mas persistiam as suspeitas lin- sgiiisticas. Como aludi no capitulo dedicado a comunicagio, 0 ale- mao do qual meu texto precisava, sobretudo nos didlogos € nas citagdes, era muito mais rude que o dele. O tradutor, homem de letras e de educagao refinada, conhecia decerto 0 alemao das casernas (presiara alguns meses de servigo militar), mas ignorava necessariamente 0 jargao degradado, muitas vezes satanicamen- te irdnico, dos campos de concentragio. Cada carta nossa conti- nha uma lista de propostas € contrapropostas, € a8 vezes sobre jum s6 termo se acendia uma discussio encamigada, camo, por exemplo, a que descrevi aqui na pagina 88. 0 esquema era geral: eu the indicava uma tese, sugerida pela memoria actistica que mencionei no lugar devido; ele me opunha a antitese, “isso nao € bom alemao, os leitores de hoje ndo 0 compreenderiar objetava que “li embaixo se dizia exatamente assim”; chegava-se enim a sintese, ou seja, a0 compromisso, Depois a experiéncia me ensinaria que tradugdo € compromisso sdo sindnimos, mas naquele tempo eu era impelido por um escrépulo de super-rea- lismo; queria que naquele livro, especialmente em sua versio alemd, no se perdesse nada da dureza, da violéncia imprimida 147 na linguagem, que, de resto, me esforgara ao maximo para repro- duzir no original italiano, De um certo modo, nao se tratava de uma tradugao, mas, antes, de uma restauragao: esta versio era, ou cu queria que fosse, uma restinutio in pristinum, uma retroversio para a lingua na qual as coisas tinham ocorrido € a qual se refe- Ham. Devia ser, mais do que um livro, um registro de gravador. © wadutor compreendeu tudo rapidamente, da surgindo uma tradug3o excelente sob qualquer aspecto: quanto 3 sua fidelidade eu proprio podia julgar, e seu nivel estilistico foi de- pois elogiado por todos os resenhadores. Sobreveio a questao do prelacio: o editor Fischer me pediu que escrevesse um; hesitei, € acabei recusando, Experimentava um embaraco confuso, uma repugnancia, um bloqueio emotivo que cortava o flux das idéias ¢ da escrita. Pediam-me, em suma, que acrescentasse a0 livro, ou seja, ao testemunho, um apelo direto ao povo alemao, ou seja, uma peroragio, um sermao. Deveria dar mais énfase, subir 4 tribuna; de testemunha tornar-me juiz, pregador; expor teorias ¢ interpretagdes da historia; separar os justos dos pecado- res; da terceira pessoa passar a segunda. Tudo isso constituia uma série de tarelas que me ultrapassavam, tarefas que de hom grado devolveria a outros, talvex aos leitores mesmos, alemaes ou nao, Escrevi ao editor que ndo me sentia em condigies de redigit um prefacio que nao desnaturasse o Livro, € Ihe propus uma solugao indireta: antepor ao texto, A guisa de introdugio, um. trecho da carta que em maio de 1960, ao fim de nossa laboriosa colaboracao, escrevera ao tradutor para agradecer seu trabalho. Reproduzo-o aqui ~ E assim terminamos: estou contente por isto, satisfeito com o resultado, agradecido ao senhor, e a0 mesmo tempo um pouco triste. Como compreendera, € 0 tinico livro que escrevi, € agora que acabamos de verté-lo para ¢ aleméo sinto-me como um pai cujo filho chegou a maioridade e vai embora, e dele nao se pode mais ocupar. ‘Mas nao € 6 isso. O senhor talvez tera percebido que para mim o Lager, ¢ o fato de ter escrito sobre 0 Lager, foi uma impor- 148 iante aventura que me modificou profundamente, me dew matu: ridade ¢ uma razdo de vida, Talvez seja presuncdo: mas hoje eu, © prisioneiro ntimero 174517, por seu intermédio, posso falar aos alemies, recordar-Ihes o que fizeram € dizer-Ihes: “Estou vivo, ¢ gostaria de compreendé-los para julgd-los” Nao creio que a vida do homem tenha necessariamente um objetivo definido; mas, se penso em minha vida € nos objetivos {que até aqui me propus, um s6 deles eu reconhego bem preciso © consciente, ¢ € justamente este, presiar testemunho, fazer 0 pov alemio ouvir minha voz, “responder” ao Kapo que limpow sua mio em meu ombro, a0 doutor Pannwite, aos que enforearam 0 Ultimo [orata-se de personagens de Se questa ® tom, € a seus herdeiros Estou certo de que 0 senhor néo me entendeu mal, Jamais iui dio em relagGo ao povo alemao, ¢, se tivesse muttido, teria me recuperado disto agora, depois de té-o conhecido. Nao ente! do, nao suporto que se julgue um homem nao por aquilo que é, mas pelo grupo ao qual Ihe acontece pertencer (.) Mas nao posso dizer que compreendo os alemaes: ora, algo aque nio se pode compreender constitut um vazin doloroso, um aguilhdo, um estimulo permanente quc exige ser satisleito, Fspe- ro que este livro obtenha alguma repercussio na Alemanha: nao 6 por ambigio, mas também porque a nacureza desta repercussa0 talver me permita compreender melhor os alemaes, responder Aquele estinulo. © editor aceitou minha proposta, @ qual o tadutor Unha aderido com entusiasmo; por isto, esse trecho figura na introdu- Jo de todas as edigdes alemas de Se questo é un wom: ou melhor, Elido como parte integrante do texto, Disto me dei conta justa- mente a partir da “natureza” da repercussio mencionada nas tiltimas linhas. Ela se materializa em cerca de quarenta cartas que me foram escritas por leitores alemaes entre 0s anos 1961 ¢ 1964: vale dizer, concomitantemente com a crise que conduziu & constru- Gio do Muro que ainda corta Berlim ao meio e que constitui um v9 dos pontos mais fortes de atrito no mundo de hoje: 0 tinico, junto com o Estreito de Behring, no qual americanos e russos se defrontam diretamente. Todas essas cartas refletem uma leitura atenta do livro, € todas respondem, ou tentam responder, ou negam existir uma resposta, pergunta implicita no Glimo periodo de minha carta, ou seja, se & possivel compreender os ale- miles, Outras cartas me chegaram pouco a pouco nos anos se- guintes, de acordo com as reedigées do livro, mas quanto mais Fecentes tanto mais anédinas: quem escreve ja sao os {illhos € os netos, 0 trauma jé ndo é mais deles, nao € vivido em primeira pessoa, Expressam uma vaga solidariedade, ignorancia c distan- ciamento, Para eles, aquele passado é verdadeiramente um pas- sado, um ouvir dizer, Nao so especilicamente alemaes: salvo excegdes, suas palavras se poderiam confundir com as que con- tinuo a receber de seus coeténeos italianos; por isto, nao as leva- rei em conta nesta resenha. As primeiras cartas, as que contam, sao quase todas de jo- vens (que se declaram tais, ou que se presume serem a partir do texto), com excegio de uma, que me foi mandada em 1962 pelo Douwtor T. H., de Hamburgo, € que menciono em primeiro lugar porque tenho pressa de me desembaragar dela, Traduzo seus tre- cchos relevantes, respeitando-Ihe a estultice: lustre Dr. Levi, Seu livro € o primeiro, entre as narrativas dos sobreviventes de Auschwitz, que chegou ao nosso conhecimento, Comoveu pro- fundamente a mim ¢ a minha mulher. Ora, uma vez que 0 senhor, depois de todos os horrores que viveu. se dirige mais uma vez a0 povo alemdo para “compreender*, “para suscitar repercussdes", eu uso tentar uma resposta. Mas seré to-somente um eco: “com- preender” coisas desse tipo ninguém pode! (..) Tudo deve temer-se de um homem que nao esté com Deus: cle nao tem freios, ndo tem pelas! F the assenta entao 0 outro juizo de Génesis, 8.21: *Porque os semtidos e os pensamentos do coragao do homem sao inclinados para o mal desde a sua mocidade", juizo modemamente explicado e demonstrado pelas descobertas tre: mendas da psicandlise de Freud no campo do inconsciente, que 0 150 senhor cerlamente conhece, Em qualquer época sucedeu “que Diabo se manifestasse”, sem reserva, sem sentido: perseguigies de judeus ¢ de cristios, exterminio de povos inteiros na América do Sul, dos indios da América do Norte, dos godos na Ttélia sob Nar~ és, perseguigdes e massacres horrendos no curso das revolugdes francesa ¢ russa, Quem podera “entender” tudo isto? Mas 0 senhor espera decerto uma resposta especitica & per ‘gunta sobre por que Hitler chegou ao poder € por que nés, em seguida, nao derrubamos seu jugo. Ora, em 1933 (..., todos os par- idos moderados desapareceram, ¢ $6 restou a escolha entre Hitler € Stalin, nacional-socialistas © comunistas, de forgas aproximada: mente equivalentes. Os comunistas, n6s os conheciamos em razao das diferentes grandes revoltas ocorridas apés a Primeira Guerra. Hitler nos parecia suspeito, é verdade, mas surgia decididamente como 0 mal menor. No inicio nde nos demos conta de que todas as suas belas palavras fossem mentira ¢ traigdo. Na politica exterior, conseguia um sucesso apds 0 outro; todos os Estados com ele man- tinham relagSes diplométicas, o Papa em primeiro lugar celebrou uma concordata, Quem podia suspeitar que estévamos montados (sic) num criminoso € num traidor? Seja como for, culpa nenhuma se pode atribuir aos traidos: $6 0 traidor € culpado. F agora a questdo mais dificil, 0 invensato dio de Hitler con- tra os judeus, Ora, esse ddio jamais fot popular. A Alemanha con- lava-se acertadamente como 0 pais mais amistoso em relagao aos judeus no mundo todo, Nunca, pelo que sei € li, durante todo © periodo hitleriano até o seu fim, nunca se soube de um s6 caso de tultraje ou agressio espontanea contra um judeu, Sempre apenas {perigosissimas) tentativas de ajuda Passo agora & segunda quesido. Rebelar-se num Estado totali- tario nao é possivel. Todo 0 mundo, quando se deu a ocasiio, néo pide prestar ajuda aos hiingaros. (...) Muito menos pudemos nés resist, sozinhos, Nao se deve esquecer que, além de todas as lutas de resistencia, $6 no dia 20 de julho de 1944 milhares e milhares de oficiais foram executados, J4 nao se tratava de “um pequeno bando”, como depots disse Hitler. Caro Dr. Levi (assim me permito chamé-lo, porque quem leu seu livro s6 pode ter-the apreco}, nao tenho escusas, nao tenho 11 cexplicagies. A culpa recai pesadamente em meu pobre povo trai- do e desencaminhado. Regozije-se com a vida que Ihe foi restitu dda, com a paz ¢ com sua bela Pétria, que eu também conheco. ‘Também em minha estamte esto Dante € Boccaccio. Respeitosamente, T. H. A essa carta, provavelmente sem que 0 marido soubesse, Frau H. acrescentou as lacOnicas linhas seguintes, que traduzo igualmente de modo literal: Quando um povo reconhece demasiadamente tarde terse tornado um prisioneiro do diabo, dat se seguem algumas altera- ies psiquicas, 1) £ estimulado © que de mau existe nos hom ns. Do que resultam os Pannwitz e os Kapos que limpam a mao no ombro de prisioneiros inermes 2} Disso também resulta, ao contratio, a resisténcia ativa con wa a injustiga, que © levou © a sua familia (sie) ao martirio, mas sem sucesso vistvel 3) Resta a grande massa daqueles que, para salvar a propria vida, calam ou abandonam o irmao em perigo, Isto, nés 0 reconhecemos como culpa nossa diante de Deus € dos homens. Muitas vezes voltci a pensar nesse estranho casal. © marido me parece um exemplar tipico da grande massa da burguesia alema; um nazista nao tanatico, mas oportunista, que se arre- pende quando € oportuno arrepender-se, bastante estiipido para acreditar que me faz acteditar em sua verso simplificada da his- t6ria recente, bem como para ousar recorrer 4 represilia retroa- tiva de Narsés e dos godos. A mulher, um pot ta do que o marido, mas mais carola Respondi com uma longa carta, talvez a tinica raivosa que jamais escrevi. Respondi que nenhuma Igreja tem indulgéncia em relagao a quem segue o Diabo, nem admite como justifica- Gao atribuir ao Diabo as préprias culpas. Que se deve responder em primeira pessoa pelos crimes e pelos err0s, sendo, todo ves- ‘0 menos hipécri- 12 Ligio de civilizagao desapareceria da face da terra, como, de fato, havia desaparecido do Terceiro Reich. Que seus dados cleitorais $6 enganavam as crianas: nas eleigdes politicas de novembro de 1932, as tiltimas realizadas livremente, 05 nazistas por certo obti- veram 196 cadciras no Reichstag, mas junto com os comunistas, ‘com 100 cadeiras, 0s social-democratas, que naturalmente nao eram extremistas € que, a0 contrério, Stalin detestava, obtive- ram 121. Que, sobretudo, em ntinha estante, ao lado de Dante € de Boceaccio, tenho o Mein Kampf. a Minha Lia escrita por Adolf Hitler muitos anos antes de chegar ao poder, Aquele homem funesto no era um traidor, Era um fanético coerente, com idéias extremamente claras: nunca as trocou nem as ocultou. Quem votara nele certamente votara em suas idéias, Nada falta, naquele livro: o sangue € 0 solo, 0 espago vital, 0 judeu como 0 eterno inimigo, os alemaes que personificam “a mais alta huma- nidade na terra”, os outros paises considerados abertamente ‘como instrumentos para 6 dominio alemao. Nao sao “belas pala~ vras"; talver Hitler também tenha dito outras, mas estas ndo as desmentiu jamais, Quanto aos resistentes alemaes, honra a eles, mas eletiva- mente 0s conjurados de 20 de julho de 1944 se puseram em agdo demasiadamente tarde. Por fim, escrevi: Sua afirmagao mais audaciosa é a que se relere @ impopulari- dade do anti-semitismo na Alemanha. Era o fundamento do verbo nazista desde 0 comeco: tinha natureza mistica, os judeus nao podiam ser “o povo eleito de Deus", uma vez que o eram os ale~ mies, Nao ha pagina ou discurso de Hitler em que o ddio contra os judeus no seja reiterado até a obsessdo. Nao era marginal ao nazis ‘mo: era seu centro ideoldgico. E depois: como podia o pove “mais amistoso em relagio aos judeus" votar no partido € glorificar 0 homem que definia os judeus os inimigos primeiras da Alemanha, © cujo objetivo politico principal era *estrangular a hidra judia"? Quanto aos ultrajes € as agressdes espontaneas, sua propria frase € ultrajosa, Diante dos milhdes de mortos, parece-me ocinso © odioso discutir se se tratou ou nao de perseguigbes espontaneas: de resto, os alemaes 2m pouca inclinagio para a espontaneidade. 153 Mas posso recordar-Ihe que nada obrigava os industriais alemaes a ‘empregar escravos famintos sendo 0 Iucro; que ninguém obrigou a empresa Topf (hoje florescente em Wiesbaden) a consiruir os ‘normes fornos crematérios muliplos dos Lager; que talvez se or- denasse aos SS que matassem os judeus, mas a incorporagéo a essa tropa cra voluntétia; que eu proprio encontrei em Katowice, apés a libertagao, pacotes e mais pacotes de formulitios em que se au- torizavam os chefes de familia alemaes a retirar gratuitamente roupas e sapatos para adultos ¢ para criangas dos depdsitos de Aus- cchuvitz; ninguém se pergumtava de onde vinham tantos sapatos de crianga? Nem jamais ouviu falar de uma certa Noite de Cristais? (Ou pensa que cada delito cometido naquela noite tenha sido in posto por forga de lei? Sei que houve tentativas de ajuda ¢ sei que eram arriscadas; do mesmo modo, tendo vivido na Itdlia, sei que “rebelar-se num Estado totalitario as, muito menos artiscadas, de manifestar a propria solidariedade com o oprimido, que elas foram frequentes na Italia, mesmo 10 € possivel”; mas sei que existe mil manel- depois da ocupagio alema, e que na Alemanha de Hitler acontece= ram muitissimo raramenie As outras cartas so muito diferentes: delineiam um mundo melhor, Devo porém lembrar que, mesmo com a melhor vontade de perdoar, nao se podem considerar como “uma amostragem representativa” do povo alemao da outra época. Em primeiro lugar, esse meu livro foi publicado em algumas dezenas de milha- res de exemplares, € lide talvex por um cutie nil cidadaos da Repiblica Federal: poucos 0 terdo comprado por acaso, os outros porque de algum modo estavam predispostos ao encontro dos fatos, sensibilizados, permedveis. Entre esses leitores, somente uns quarenta, como mencionei, decidiram escrever-me. Em quarenta anos de pritica, jé estou familiarizado com esse personagem singular, o leitor que escreve ao autor. Pode pertencer a duas constelagdes bem distintas, uma agradavel, a outra molesta: os casos intermedidrios sao raros. Os primeiros dao alegria ¢ ensinam. Leram 0 livro com atengao, com freqiién- a mais de uma vez; amaram-no ¢ o compreenderam, as vezes 154 melhor do que o prdprio autor; declaram-se enriquecidos com 0 livro; expdem com nitidez seu juizo, as vezes suas eriticas; agra- decem ao escritor a obra; nao raro, dispensam-no explicitamen- te de uma resposta. Os segundos dao aborrecimento e fazem perder tempo. Exibem-se; ostentam méritos; com freqiiéncia, 1ém originais guardados na gaveta e deixam transparecer © in- tento de se apoiarem no livro € no autor como a hera nos muros; ou ainda sao criangas ou adolescentes que escrevem por brava- la, por aposta, para conquistar um autégrafo. Meus quarenta correspondentes alemaes, aos quais dedico com reconhecimen- to estas paginas, pertencem todos (salvo 0 senhor T. H. ja citado, que é um caso A parte) 8 primeira constelagéo. L. 1. € bibliotecdria na Vestlélia; confessa ter tido a temagao violenta de fechar o livro no meio da leitura, “para fugir das ima- gens que nele sio evocadas”, mas ter logo se envergonhado em razao desse impulso egoista ¢ covarde. Escreve No prefacio, 0 senhor expressa 0 desejo de nos compreender, nds alemaes. Deve acreditar quando Ihe dizemos que nés mesmos Somos no sabemos nos conceber nem conceber 0 que fizem' culpados. Eu nasci em 1922, cresci na Alta Silésia, no longe de Auschwitz, mas naquele tempo, em verdade, no soube nada (por favor, nio considere esta afirmacao como uma desculpa cémoda, mas como um dado de fato) das coisas atrazes que se cometiam a poucos quilémetros exatamente de nés No entanto, pelo menos até a edlosio da guerra, me sucedeu encontrar aqui ¢ ali pessoas eu nao as acolhi em casa, nao as recebi como, coma estrela ju teria feito com outros, no intervi em favor delas. Minha culpa € esta. $6 posso aceitar esta minha terrivel leviandade, covardia € egoismo contando com a remissao crista Além disso, ela diz participar da Aktion Siihnezeichen (Aga0 Expiatéria), uma associagao evangélica de jovens que passam as {érias no exterior, a reconstruir as cidades mais gravemente afe~ tadas pela guerra alema (ela esteve em Coventry). Nada diz de seus pais, ¢ € um sintoma: ou sabiam e ndo falaram com ela; ou 155 nao sabiam, ¢ entao com eles nao haviam falado aqueles que cer- tamente sabiam, os ferrovidrios dos comboios, os donos de ar- mazém, 0s milhares de trabathadores alemaes das fabricas ¢ das minas em que se cxtenuavam até morrer os operarios-escravos, qualquer um, em summa, que nao cobrisse os olhos com as maos. Repito-o: a culpa verdadeira, coletiva, geral, de quase todos os alemaes de entao foi ndo ter tido a coragem de falar. M. S., de Frankfurt, nada diz de si e busca cuidadosamente distingdes e justificagdes: isso também é um sintoma. © senhor escreve que nao compreende os alemdes (...) Como alemao, sensivel ao horror e a vergonha, ¢ que sera consciente até © fim de seus dias que o proprio horror aconteceu pela mao de homens de seu pais, me sinto tocado pelas palavras do livro e dese- jo responder. ‘Também nao entendo homens como aquele Kapo que limpow @ mao em suas costas, como Pannwitz, como Bichmann, e como todos os outros que executaram ordens desumanas sem se darem conta de que nio se pode fugir a propria responsabilidade escon- dendo-se por tris dos outros. O fato de que na Alemanha tenha havido tantos executores materiais de um sistema criminoso, € que tudo isso tenha podido acontecer justamente gracas ao gran de ntimero das pessoas dispostas a tanto, com tudo isto quem, como alemao, poderia deixar de se afligir? Mas sdo esses os “alem: ? E sera lieito, de qualquer modo, falar dos “alemaes” como uma entidade unitéria, ou dos “ingle ses", dos “italianos", ou ainda dos “judeus"? 0 senhor ci ges entre os alemaes que ndo compreende (...); agradego-he cesias suas palavras, mas pego-lhe lembrar que imimeros alemaes (..) sofreram ¢ morreram na Luta contra a iniqilidade (..) Gostaria de todo 0 coragao que muitos compatriotas meus les- » allemaes, nJo nos tomemos preguigo- sos indiferentes, mas, ao contrario, continue viva em nés a cons- mneia de quo baixo pode cair o homem que se faz torturador de seu semelhante, Se assim acontecer, seu livre poderd contribuir ara que tudo isso nao se repita sem seu livro, para que né AM. S, respondi com perplexidade: com a mesma perplexi dade, de resto, que experimentei ao responder a todos estes in- terlocutores corteses € civilizados, membros do povo que exter- minou o meu (€ muitos outros). Trata-se, substancialmente, do mesmo embaraco dos caes estudados pelos neurologistas, condi- Cionados a reagir de um modo ao cfrculo € do outro a0 quadra~ do, quando 0 quadrado se arredondava e comegava a asseme- Ihar-se a um circulo: os caes se bloqueavam ou davam sinais de neurose. Entre outras coisas, escrevi-the: Estou de acordo com o senhor: € perigoso, ¢ ilicto falar dos “alemaes", ou de qualquer outro povo, como uma entidade unit ria, nao diferenciada, ¢ reunir todos os individuos num juizo, Mas nao sou capaz de negar que exista um espirito de cada povo (senao, no seria um povo}; uma Deutsch, uma ttalianidade, wma hispa- nidade: sao somas de tradigbes, costumes, histéria, lingua, cultura. Quem nao sente em si esse espfrito, que € nacional no melhor sen- tido da palavra, ndo s6 no pertence por inteiro a seu povo como, também nem mesmo esti inserido na civilizagio humana. Por isto, embora eu considere insensato o silogismo “todos os italianos sao passionais: voc® ¢ italiano: logo, voce € passional”, acredito ser lic to, dentro de certos limites, esperar dos italianos em seu todo, ou dos alemaes etc., um determinado comportamento coletiva em vez de outro. Haverd certamente excegdes individuais, mas uma previ sto prudente, probabilistica, a meu ver € possivel (..) Serei sincere com o senhor: na geragie que superou os 4% anos, quantos so os alemdes verdadeiramente conscientes de tudo 0 que ocorreu na Europa em nome da Alemanha? A julgar pelo resultado desconcertante de alguns processos, temo serem poucos: jumo com vores amarguradas e piedosas, ougo outras, dlivergentes, agudas, demasiado orgulliosas do poder ¢ da riqueza da Alemanha de hoje. LJ. de Stuttgart, € uma assistente social. Ela me diz: (© fato de que 0 senhor tenha feito com que de seus textos nao extravase um ddio irremissivel contra nés, alemaes, é verdadeira- 157 158 mente um milagre, ¢ nos deve causar vergonha. Gostaria de agra- decer-the isso. Infelizmente, entre nés ainda existem muitos que se recusam a crer que nés, alemaes, tenhamos realmente cometi- do tais horrores desumanos contra o povo judew. Naturalmente, essa recusa decorre de muitos motivos diferentes, ou também, Quem sabe, s6 do fato de que o intelecto do cldad3o médio nao accita como possivel uma perversidade to profunda entre nis, “cristdos ocidentais". £ bom que seu livro tenha sido publicado aqui, podendo assim luminar muitos jovens, Talvez possa também ser posto nas mos de alguns velhos; mas, para fazer isto, em nossa “Alemanha adormecida’, é preciso uma ceria coragem civil. Respondi-lhe assim: ++ 0 fato de nao experimentar édio em relagio aos alemées sur preende a muitos, e ndo deveria. Na realidade, eu entendo 0 6dio, as unicamente ad personam. Se fosse um juiz, mesmo reprimin- do 0 ddio que sentisse dentro de mim, nao hesitarla em infligit as penas mais graves, inclusive a morte, aos muitos culpados que ainda hoje vivem sem problemas na terra alema ou em outros pai- ses de hospitalidade suspeita; mas sentiria horror se um s6 inocen- te fosse punido por win crime nao cometido, W. A., médico, escreve de Wiirttemberg: Para ns, alemes, que carregamos 0 grave peso de nosso pas- sado e (sabe Deus!) de nosso futuro, sew livro € mais do que um telaio comovente: € um auxiio. E uma orientagdo, razio por que Ihe agradeco. Nao posso dizer nada como desculpa; € nao creio que 4 cl (tat) sexing facimente (Pr masque tente afastar. ne do espfrito mau do passado, continuo apesar de tudo a ser um membro deste povo, que eu amo e que no curso dos sécu los trouxe a luz em medida igual obras de pacifica nobreza e outeas heias de perigo demoniaco. Nesta convergéncia de todos os tem- pos de nossa histéria, estou consciente de me encontrar implicado ha grandeza ¢ na culpa de meu povo. Portanto, estou diante do senhor como tum cdimplice de quem violentou seu destino e 0 des- tino de seu povo. W. G. nasceu em Bremen, em 1935; € historiador e socidlo- g0, militante do Partido Social Democrata: no fim da guerra, cu ainda era uma crianga; ndo posso carregar nenhuma parte de culpa pelos delitos espantosos cometidos pelos alemaes; no entanto, sinto vergonha por eles. Odeio os criminosos que 0 fizeram softer ¢ a seus companheiros, € odeio os cimplices deles, muitos dos quais ainda vivem. O senhor esereve que néo sabe compreender os alemaes, Se quer aludir aos carniceiros ¢ a seus ajudantes, ento eu também ndo consigo compreendé-los: ‘mas espero ter forga para combaté-los, se se apresentarem de novo no palco da hist6ria, Falel de “vergonha": queria expressar 0 sen- timento de que tudo quanto naquela época foi perpetrado por mos alemas jamais deveria ter ocorrido, nem deveria ter sido aprovado por outros alemai Com H. L, bavara, estudante, as coisas se complicaram. Escreveu-me da primeira vez em 1962; sua carta era singular- mente viva, livre daquela escuriddo de chumbo que caracteriza quase todas as outras, inclusive as mais bem-intencionadas. Considerava que eu esperasse “um eco” sobretudo entre as pes~ soas importantes, oficiais, no numa moga, mas ela se sentia “envolvida, como herdeira € ctimplice”, Est satisfeita com a cducagao que reecbe na escola ¢ com o que Ihe foi ensinado sobre a hist6ria recente de seu pais, may nao esté segura de que “um dia a falta de medida que é prépria dos alemaes nao irrom- pa novamente, sob outra roupagem e dirigida a outros objeti- vos”. Deplora que seus coetaneos recusem a politica “como algo sujo”. Insurgira-se de modo “violento ¢ alterado” contra um padre que falava mal dos judeus © contra sua professora de russo, uma russa, que atribuia aos judeus a culpa pela Revolu- ao de Outubro ¢ considerava 0 massacre hitleriano como uma punigao justa. Nesses momentos sentira “uma vergonha indizi- vel de pertencer ao mais barbaro dos povos". “Mesmo fora de 159 qualquer misticismo ou superst “nds, alemaes, nao escaparemos da justa punicdo por tudo aqui- Jo que cometemos”. Sente-se de algum modo autorizada, ou melhor, obrigada a afirmar que “nés, filhos de uma geragio cheia de culpa, somos plenamente conscientes disso, ¢ tentare- mos mitigar os horrores e as dores passadas para evitar que se repitam no futuro”. Como me pareceut uma interlocutora inteligente, desenvolta © “nova’, escrevi-lhe pedindo noticias mais precisas sobre a situa- cao da Alemanha de entao (era a época de Adenauer); quanto a seu temor de uma “justa punigao” coletiva, tentei convencé-la de que uma punigio, se é coletiva, ndo pode ser justa, e vice-versa. Respondeu-me com um carido, no qual dizia que minhas per- guntas exigiam um certo trabalho de pesquisa; tivesse paciéncia, me responderia de modo exaustivo assim que possivel Vinte dias depois recebi sua carta de 23 laudas: uma pequ ha tese, em suma, construfda gragas a um trabalho frenético de entrevistas feitas pessoalmente, por telefone e por carta, Portan- to, também esta excelente jovem, ainda que com boas intencoes, cra propensa a Massiosigkeit, a falta de medida por cla propria denunciada, mas se desculpaya, com sinceridade cmica pouco tempo, por isto muitas coisas que poderia dizer mais sucintamente ficaram como estavam”, Nao sendo eu masslos, me limito a resumir ea citar os trechos que me parecem mais signi- ficativos. " esté convencida de que amo 6 pais em que cresci, adoro minha mac, mas néo consigo sentir simpatia pelo alemao enquanto tipo humane particular: tal- ver porque me parega ainda por demais marcado por aquelas qua- lidades que no passade recente se manifestaram com tanto vigor, mas talvez também porque deteste nel cendo-me semelhante a ele como esséncia € a mim mesma, reconhe- A.uma pergunta minha sobre a escola, respande (com docu- mentos) que todo o corpo docente fora a seu tempo submetido ao crivo da “desnazificagao”, exigida pelos aliados, mas conduz’ da de modo diletante e amplamente sabotada; € nao poderia ter 160 sido de outra maneira: ter-se-ia de proscrever toda uma geragao. Nas escolas a histéria recente € ensinada, mas se fala pouco de politica; o pasado nazista aflora aqui ¢ ali, em varios tons: pou- cos professores dele se vangloriam, poucos o escondem, pou- quissimos se declaram a ele imunes. Um jovem professor Ihe havia declarado: Os alunos se interessam muito por este periodo, mas logo se opdem quando se fala de uma culpa coletiva da Alemanha. Mui- tos até afirmam ja haver mea cpa demais por parte da imprensa de seus professores HL, comenta: justamente em razao da resisténcia dos jovens ao mea culpa se pode reconhecer que, para eles, o problema do Terceiro Reich std ainda to em aberto, ainda é tao irritante e tipicamemte ale- mao, quam para todos aqueles que 0 viveram antes deles. $6 ‘quando este emocionalismo parar, seré possivel raciocinar de mo- do objetivo. Noutra parte, falando de sua prépria experiéncia, H. L. es- creve (de modo muito plausivel): 0 professores nao evitavam os problemas; a0 contrarin, de ‘monstravam, dacumentando-os com os jornais da época, 0 méto. dos de propaganda dos nazistas. Narravam como, ainda jovens, seguiram com entusiasmo e sem critica 0 novo movimento: as estudan assembléias Juvenis, as organizagdes esportivas etc. NOs tes, 0 atacévamos vivamente, mas sem razo, como hoje penso: como se pode acusé-los de terem compreendido a situacdo e pre- visto o futuro pior do que os adultos? E nds, em seu Iugar, terfa- mos desmascarado melhor do que eles os métodos satanicos com 6s quais Hitler conquistou a juventude para sua guerra? Observe-se: a justificagao € a mesma aduzida pelo doutor T. H,, de Hamburgo, e de resto nenhuma testemunha da época tel nega a Hitler uma virtude verdadeiramente demoniaca de per- suasor, a mesma que 0 beneficiava em seus contatos politicos. Pode-se aceitar tal justificagio na boca dos jovens, que com- preensivelmente tentam desculpar toda a geragao de seus pais; nao na dos mais velhos, comprometidos e falsos penitentes, que tentam circunscrever a culpa a. um homem s6 H. L. me mandou muitas outras cartas, suscitando em mim reagées contraditérias. Descreveu-me seu pai, um mtisico irre- quicto, timido e sensivel, morto quando ela era crianga: buscava em mim um pai? Oscilava entre a seriedade documenial ¢ a fan- tasia infantil. Proporcionou-me um caleidoseépio c, ao mesmo, tempo, me escreveu: Também do senhor eu construi uma imagem bem definida: é a de quem, escapando de um destino terrivel (perdoe-me a ousa- dia), vaga pelo nosso pais, ainda estrangeiro, como num pesadelo, E penso que deveria tecer-the um manto como aquele que vestem os herdis nas lendas, para prote -lo contra todos os perigos do mundo, Eu nao me via nesta imagem, mas nao Ihe escrevi isto. Res- pondi que tais mantos nao podem ser dados: cada qual deve tecé-los por conta propria, H. L. me expediu os dois romances de Heinrich Mann do ciclo de Henrique 1, que infelizmente jamais encontrei tempo de ler: fiz chegar a cla a tradugdo alema de La tregua, que nesse meio tempo fora editada. Em dezembro de 1964, mandou-me de Berlim, para onde se transterira, um par de abotoaduras de ouro, feitas por uma ourives amiga sua, Nao tive coragem de restitui-las; agradeci-Ihe, mas pedi que nao me desse nada mais. Espero sinceramente que nao tenha ofendido essa pessoa intimamente gentil; espero que ela tenha compreen- dido 0 motivo de minha atitude. Desde entao nao mais tive noti- cias dela Deixei por tiltimo a troca de cartas com a senhora Hety $. de Wiesbaden, minha coeténea, porque constitui um capitulo a Parte, seja como qualidade, seja como quantidade. Sozinha, 162 minha pasta “HS” € mais volumosa do que aquela em que con- servo todas as outras “cartas de alemaes". Nossa correspondén- cia se estende por dezesseis anos, desde outubro de 1966 até novembro de 1982. Contém, além de umas cingitenta cartas suas (muitas vezes de quatro paginas ou mais) com minhas res- pectivas respostas, as cépias de um ntimero pelo menos igual de cartas por ela escritas a seus fillhos, a amigos, a outros escritores, a editores, a organismos locais, a jornais ou a revistas, copias que considerou importante mandar-me; ainda por cima, recortes de jomais e resenhas de livros. Algumas de suas cartas sao “circula- res”: metade da pagina é fotocopiada, igual para varios corres- pondentes, ¢ a outra metade, em branco, € preenchida a mao com as noticias ou as perguntas mais pessoais. A senhora Hety me escrevia em alemao € nao conhecia 0 italiano; respondi-lhe inicialmente em francés, mas em seguida percebi que ela com- preendia com dificuldade €, por muito tempo, Ihe escrevi em inglés. Mais tarde, com sua divertida concordancia, escrevi-lhe em meu alemao incerto, com uma cépia, que ela me restitufa com suas correcdes “anotadas". Encontramo-nos apenas duas em sua casa, durante uma apressada viagem de negécios minha a Alemanha, e em Turim, durante umas férias dela igual- mente apressadas. Nao foram encontros importantes: as cartas contam muito mais ‘Também sua primeira carta partia da questao da “compreen- sao", mas possuia um aspecto enérgico € vivo que a distinguia de todas as outras. Meu livro Ihe fora dado tardiamente por um amigo comum, 0 historiador Hermann Langbein, quando j4 a primeira edigao havia se esgotado, Como assessora de Cultura ‘num governo regional, ela tentava reedité-lo logo, € me esctevia Seguramente o senhor jamais conseguira compreender oy “alemaes": ndo o conseguimos nem mesmo nés, uma vez que na- quela época sucederam coisas que jamais, fosse 0 prego qual fosse, deveriam suceder. Daf decorreu que para muitos de nés palavras como “Alemanha* e "Patria" perderam para sempre o significado ‘que antes possufam: 0 conceito de “patria” para nés se extinguiu (..) Esquecer € 0 que absolutamente nao nos é lito, Por isto, so 183 importantes para a nova geragao os livros como « seu, que descre- vem 0 desumano de um modo tao humano ...) Talvez 0 senhor nao se dé plenamente conta de quantas coisas um escritor pode implictamente expressar sobre si mesmo — e, portant, sobre 0 Homem em geral, Exatamente isto é que confere peso e valor a cada capitulo de seu livro. Acima de tudo, perturbaram-me suas paginas sobre o laboratério da Buna: era esse 0 modo, pol joneiros nos viam a nds, os ndo-prisioneiros! pelo. ‘qual os pri Mais adiante, narra sobre um prisioneiro russo que, no ou- tono, Ihe levava carvao até o depésito, Falar-lhe era proibido: ela Ihe punha nos bolsos comida ¢ cigarros, ¢ ele, para agradecer, gritava: "Heil Hitler!”. Ao contrdrio, nao Ihe era proibido (que labirimo de hicrarquias ¢ de proibigdes diferenciais devia ser a Alemanha de entao! Mesmo as “cartas de alemaes”, e as de Hety em especial, dizem mais do que parecem dizer) falar com uma jovem operaria “voluntaria” francesa: Hety a requisitava em seu campo, trazia-a para casa, levava-a inclusive a alguns concertos. A jovem, no campo, nao podia lavar-se bem ¢ tinha piolhos. Hety nao ousava dizer isso a ela, sentia um mal-estar e se enver- gonhava por esse mal-estar. A essa stia primeira carta respond que meu livro, certamen- te, havia suscitado ressondncia na Alemanha, mas justamente entre os alemaes que menos tinham necessidade de Ié-lo: me haviam escrito cartas de arrependimento os inocentes, nao os culpados. Estes, como & compreensivel, calavam. Em suas cartas subsequientes, pouco a pouco, em seu modo indireto, Hety (chamo-a assim para simplificat, embora nao nos tenhamos nunca tratado por “vocé”) me forneceu um retra- to de si mesma, Seu pai, pedagogo por profissao, era um ativis- {a social-democrata desde 1919; em 1933, 0 ano no qual Hitler subi: ao poder, logo perdeu o emprego, sucederam-se inquéri- tos € dificuldades econdmicas, a familia teve de wansferir-se para uma habitag3o menor. Em 1935, Hety [oi expulsa do colégio por- que se recusara a entrar para a organizagao juvenil hitleriana. Casou-se em 1938 com um engenheiro da IG Farben (dai seu interesse pelo “laboratério da Buna’!), de quem logo teve dois 164 filhos. Depois do atentado contra Hitler, de 20 de julho de 1944, seu pai foi deportado para Dachau, ¢ 0 matriménio entrou em crise porque 0 marido, mesmo néo sendo inserito no partido, no tolerava que Hety pusesse em risco a si mesma, a ele € aos filhos, para “fazer aquilo que devia ser feito”, isto é para levar cada semana um pouco de comida até os portdes do campo no qual o pai era prisioneiro: pparecia-Ihe que nossos esforgos fossem absolutamente insensa~ tos, Uma ver fizemos uma reunido de familia para ver se havia possibilidade de dar uma ajuda a meu pai, ¢, caso houvesse, qual mas ele apenas disse: “Nao se perturbem inutilmente: voce: No entanto, com o fim da guerra 0 pai voltou, mas estava reduzido a um espectro (morreu poucos anos depois). Hety, bas- tante ligada a ele, se sentiu na obrigagao de prosseguir militan- cia no Partido Social Democrata renovado; 0 marido nao estava de acordo, aconteceram contlitos, ele pediu ¢ obteve o divérc Sua segunda mulher era uma refugiada da Prussia Oriental, que, em razao dos dois filhos, manteve discretas relagdes com Hety. Ihe disse certa vez, a propdsito do pai, de Dachau ¢ dos Lager: {do leve a mal se ndo suporto ler ou escutar essas suas coisas. Quando tivemos de escapar, foi terrivel; ¢ a coisa pior foi que tomamos a estrada pela qual antes tinham sido evacuados 0s pri sioneiros de Auschwitz. O caminho ficava entre duas sebes de mortos. Gostaria de esquecer aquelas imagens e nao posso: conti uo a sonhar com elas pai acabara de voltar quando Thomas Mann, no radio, fa- lou de Auschwitz, do gas e dos fornos crematorios: Escutamos todos com perturhagao e calamos por longo tem- po. Papai andava de um lado para 0 outro, tacituro, agastado, até ‘que Ihe perguntei: “Mas voce acha possivel que se envenenem pessoas com gas, se queimem, se utilizem seus cabelos, a pele, os 165 dentes?”. E ele, apesar de vir de Dachau, respondeu: “Nao, nao é possivel. Um Thomas Mann ndo deveria dar crédito a esses horro- res", No entanto, era tudo verdade: poucas semanas depois, visnos as provas e ficamos convencidos, Numa outra longa carta, ela me descrevera sua vida na “emigracao interna’ Minha mde tinha uma queridissima amiga judia, Era vitiva e vivia 56, os filhos tinham emigrado, mas ela nao se resolvia a dei- xara Alemanha. Também nds éramos perseguidos, mas “polit: para n6s era diferente, ¢ tivemos sorte apesar dos muitos perigos. Nao esqueceret a noite na qual a no escuro, para dizer: “Por favor, ndo me procurem mais ¢ me des- jela mulher nos visitou, culpem se néo voltar a procurd-los. Compreendam, eu os poria em perigo..." Portada para Theresienstadt, Nao a vimos mais e por ela nao “fize- mos” nada: 0 que poderfamos fazer? No entanto, a idéia de que no se pudesse fazer nada ainda nos atormenta: peco-lIhe que pto- cure entender. Naturalmente continuamos a visité-la, até que foi de- Contou-me ter assistido em 1967 ao processo da Eutandsia. Um dos acusados, um médico, havia declarado em juizo que Ihe fora ordenado injetar pessoalmente veneno nos doentes men- tais, ¢ que ele recusara por consciéncia profissional; ao contra- rio, abrir ¢ fechar a valvula do gas lhe parecera pouco agradavel, tas, em suma, tolerdvel. Vollando para casa, Hety encontra a faxineira, uma vitiva de guerra, a executar seu trabalho, € 0 filho, que cozinha. Todos os trés sentam-se mesa, ¢ ela narra ao filho tudo 0 que viu € ouviu no proceso. Subitamente, @ mulher largou o garfo ¢ interveio agressivamente: “Para que servem todos esses processos que arrumaram agora? © que pode- Ham fazer, os nossos pobres soldados, se Ihes davam aquelas or- dens? Quando meu marido vei da Polénia, de licenga, ele me contou: ‘Quase ndo fizemos nada a nao ser fuzilar judeus: sempre furilar judeus. De tanto disparar, meu braco doia’. Mas o que podia 166 cle fazer, se the haviam dado aquelas ordens?*(..) Eu a despedi, reprimindo a tentagao de me congratular com ela por seu pobre marido morto na guerra... Pois veja, aqui na Alemanha ainda hoje vivemos em meio a pessoas desse género. Hety trabalhou muitos anos na Secretaria de Cultura do Land Hesse: era uma funciondria diligente mas impetuosa, auto- ra de resenhas polémicas, organizadora “apaixonada” de simpé- sios € encontros com os jovens, igualmente apaixonada com as vit6rias ¢ as derrotas de seu partido. Apds a aposentadoria, ocor- rida em 1978, sua vida cultural se enriqueceu ainda mais: escre- veu-me acerca de viagens, de leituras, de stages lingiifsticos. Sobretudo, ¢ durante toda sua vida, foi Avida, até obcecada, por encontros humanos: 0 encontro comigo, duradouro e fecun- do, foi sé um entre muitos. “Meu destino me impele na diregio de homens com um destino”, escreveu-me certa vez: mas nio era o destino que a impelia, e sim uma vocagdo. Buscava-os, n= contrava-os, punha-os cm contato entre si, curiosfssima de seus encontros ou atritos, Foi ela quem me deu o enderego de Jean Améry, € 0 meu a ele, mas sob uma condigdo: que ambos lhe mandassemos copias das cartas que trocariamos (0 que fizemos). Também teve um papel importante para me por no encalco daquele dr. Miiller, quimico em Auschwitz e, depois, meu forne- cedor de produtos quimicos, além de ser um arrependido, do qual falei no capitulo *Vanadio” do livro Sistema periddico: fora colega de seu ex-marido. Com toda a razdo, também pediu cs pias do “dossié Milller*: em seguida, escreveu cartas inteligentes a ele sobre mim, ea mim sobre ele, dando-nos devidamente as c6pias para “conhecimento" Numa s6 ocasiao percebemos (pelo menos, percebi) uma divergéncia, Em 1966 fora solto Albert Speer do cércere intera- liado de Spandau. Como se sabe, tinha sido 0 “arquiteto da corte” de Hitler, mas em 1943 fora nomeado ministro da indiis- tria bélica; nesta condigéo, era em boa parte responsavel pela organizacao das fabricas em que nés morriamos de cansago ¢ de fome. Em Nuremberg fora o tinico entre os acusados a se decla rar culpado, inclusive pelas coisas de que nao sabia; ou justamente por nao ter querido sabé-las. Foi condenado a vinte anos de reclusio, que usou para escrever suas memérias do cér- cere, publicadas na Alemanha em 1975. Hety inicialmente hesi- tou, depois as leu ¢ ficou profundamente perturbada com a lei tura, Pediu a Speer uma entrevista, que durou duas horas: deixou-Ihe o livro de Laixgbein sobre Auschwitz e um exemplar de Se questo & wn womo, dizendo-lhe que devia lé-los. Ele deu a Hety um exemplar de seu Diari di Spandau (Milao, Mondadori, 1976) para que o enviasse a mim. Recebi ¢ li esse didrio, que traz a marca de uma inteligéncia cultivada e liicida, bem como de uma regeneragao que parece sincera (mas um homem inteligente sabe simular). Speer surge deste didrio como um personagem shakespeariano, com ambi- es ilimitadas a ponto de cegé-lo e contaminé-lo, mas nao como um barbaro, um covarde ou um lacaio, De bom grado prescin- diria dessa leitura, porque para mim julgar € doloroso: particu- larmente, um Speer, um homem complexo, um culpado que fora punido. Escrevi a Hety, com uma ponta de irritagao: “O que a impeliu até Speer? A curiosidade? Um sentimento de dever? Uma ‘missio’?”. Respondeu-me: Espero que tenha considerado a oferta daquele livro em seu sentido justo, Também ¢ justa sta inquietagio. Queria ver Speer cara a cara: ver do que é feito um homem que se deixou subjugar Por Hitler ¢ que se tornou criatura sua. Speer diz, ¢ eu acredito, que para cle a chacina de Auschwitz é um trauma. Bst4 obcecado pela questo de como pdde “nde querer ver nem saber", em suma, cancelar tudo. Nae me parece buscar justificativas; também cle gostaria de compreender tudo 0 que, até para ele, € impossivel compreender. Pareceu-me um homem que nao falsifica, que lta lealmente e se atormenta em razo de seu passado, Para mim, tor- nou-se uma “chave": € um personagem simbélico, o simbolo da perversio alema. Leu com afligdo extrema o livro de Langbein e me prometeu ler também o seu. Vou manté-lo informado sobre as reagdes de Speer. 168 Estas reagdes, para meu alivio, jamais vieram: se devesse (como ¢ habito entre pessoas civilizadas) responder a uma carta de Albert Speer, teria tido alguns problemas. Em 1978, descul- pando-se comigo devido a desaprovagdo que havia percebido em minhas cartas, Hety visitou Speer uma segunda vez, mas vol- tou decepcionada. Encontrou-o senil, egocéntrico, arrogante & estupidamente orgulhoso de seu passado de arquiteto faradnico. Desde entdo, a substincia de nossas cartas se deslocou para temas mais alarmantes porque mais atuais: 0 caso Moro, a fuga de Kappler, a morte simultanea dos terrorists do bando Baader Meinhof no supereércere de Stammheim, Ela tendia a crer na tese oficial do suicidio; eu duvidava. Speer morreu em 1981, € Hety subitamente, em 1983. Nossa amizade, quase exclusivamente epistolar, foi longa ¢ fecunda, muitas vezes alegre; bizarra, se penso na enorme dife- renga entre nossos itinerdrios humanos ¢ na distancia geograti- ca € lingiifstica; menos bizarra, se reconhego que foi ela, entre todos os meus leitores alemaes, a tinica “com os papéis em or dem’ ¢, portanto, nao amarrada por sentimentos de culpa; e que sua curiosidade foi e é a minha, atormentando-se com os mes- mos temas que discuti neste livro. _ CONCLUSAO A experiéncia de que somos portadores nés, sobreviventes dos Lager nazistas, € estranha as novas geragoes do Ocidente, ¢ cada vez mais se faz estranha 4 medida que passam os anos, Para 08 jovens dos anos 1950 € 1960, eram coisas de seus pais: fala- va-se delas em familia, as recordagdes ainda conservavam 0 fres~ cor das coisas vistas. Para os jovens dos anos 1980, so coisas de seus avés: longinquas, esfumadas, “histéricas”. Bles esto asse- diados pelos problemas de hoje, diferentes, urgentes: a ameaca nuclear, o desemprego, a exaustao dos recursos, a exploséo de- mografica, as tecnologias que renovam freneticamente € as quais € preciso adaptar-se. A contiguragao do mundo mudou profun- damente, a Europa nao é mais o centro do planeta. Os imperios coloniais cederam diante da presso dos povos da Asia e da Africa sequiosos de independéncia, ¢ se dissolveram, nao sem tragédias ¢ lutas entre as novas nagdes. A Alemanha, dividida em duas por um futuro indefinido, se tornou “respeitavel” e, de fato, detém os destinos da Europa. Permanece a diarquia Esta- dos Unidos/Uniao Soviética, nascida da Segunda Guerra Mun- dial: mas as ideologias em que se sustentam os governos dos dois {inicos vitoriosos do iiltimo conflito perderam muito de sua cre- dibilidade e de seu esplendor. Desponta para a idade adulta uma geracao cética, privada nao de ideais mas de certezas, ou melhor, im desconfiada das grandes verdades reveladas; disposta, a0 con- trario, a aceitar as pequenas verdades varidveis a cada estacao segundo a onda convulsa das modas culturais, manipuladas ou selvagens. Para nés, falar com os jovens é cada vez mais dificil. Perce- bemos que falar com eles é, simultaneamente, um dever e um co: 0 Fisco de parecer anacronico, de nao ser escutado. Deve- mos ser escutados: acima de nossas experiéncias individuais, fo- mos colctivamente testemunhas de um evento fundamental e inesperado, fundamental justamente porque inesperado, nao previsto por ninguém. Aconteceu contra toda previsio; aconte- ceu na Europa; incrivelmente, aconteceu que todo um povo civilizado, recém-saido do intenso florescimento cultural de Weimar, seguisse um histrido cuja figura, hoje, leva ao riso; no entanto, Adolf Hitler foi obedecido e incensado até a catdstrote. Aconteceu, logo pode acontecer de novo: este é 0 ponto princi- pal de tudo quanto temos a dizer. Pode acontecer, em qualquer parte. Nao quero nem posso dizer que acontecera; como mencionei mais acima, é pouco pro- vavel que se verifiquem de novo, simultancamente, todos os fatores que desencadearam a loucura nazista, mas sc delineiam alguns sinais precursores. A violéncia, “Util” ou “intitil”, esta sob nossos olhos: propaga-se, em epis6dios intermitentes e privados, ‘ou como ilegalidade de Estado, em ambos os mundos que se convencionou chamar de Primeiro © Segundo, vale dizer, nas democracias parlamentares € nos paises da area comunista. No ‘Terceiro Mundo € endémica ou epidémica. $6 espera o novo his- triao (ndo faltam os candidatos) que a organize, a legalize, a declare necessaria ¢ devida, ¢ que contamine o mundo. Poucos paises podem dizer-se imunes em relagdo a uma futura onda de violéncia, gerada pela intolerincia, pela vontade de poder, por razdes econdmicas, por fanatismos religiosos ou. politicos, por atritos raciais. E preciso, pois, despertar nossos sentidos, descon: iar dos profetas, dos ilusionistas, daqueles que dizem e escre- vem “belas palavras” ndo apoiadas por boas razaes, De um modo obsceno se disse que ha necessidade de um o: que o género humano dele nao pode prescindir, Tam- pe bém se disse que 0s conflitos locais, a violencia nas ruas, nas [abricas, nos estadios, sao um equivalente da guerra gencraliza~ dae que dela nos preservam como o “pequeno mal”, o equiva- lente epilético, preserva do grande mal. Observou-se que jamais, ha Buropa, haviam transcorrido quarenta anos sem guerras: uma paz européia to longa seria uma anomalia histérica ‘Trata-se de argumentos capciosos € suspeitos. © Diabo nao € necessario: nao se precisa de guerras ¢ de violéncias, em ne- nhum caso, Nao existem problemas que nao possam ser resol- vidos em torno de uma mesa, desde que haja boa vontade reciproca confianga: ou até medo reciproco, como parece de- monstrar a atual e intermindvel situagao de impasse, na qual as poténcias maximas se defrontam com uma face cordial ou tru- culenta, mas nao tém reservas em desencadear (ou deixar que se desencadeiem) guerras sangrentas entre seus “protegidos”, enviando armas sofisticadas, espides, mercendrios € conselhei- ros militares, em vez de drbitros da paz Endo ¢ accitével a teoria da violéncia preventiva: da violén- cia nasce to-somente a violéncia, num movimento pendular que se exacerba com 0 tempo, ao invés de se aplacar. Com efei- 10, muitos sinais fazem pensar numa genealogia da violéncia atual que langa raizes justamente naquela dominante na Alema- nha de Hitler. Decerto, nao estava ausente antes, no passado remoto e recente: todavia, inclusive em meio ao massacre insen- sato da Primeira Guerra Mundial, sobreviviam os tragos de um respeito reciproco entre os contendores, um vestigio de humani dade para com os prisioneiros € os cidadaos inermes, um resp to tendencial aos acordos: um religioso diria — “um certo temor a Deus”. 0 adversério nao era nem um deménio nem um ver me. Depois do Got mit uns* nazista, tudo mudou. Aos bombar- deios aéreos terroristas de Géring responderam os bombardeios “de saturagao” aliados. A destruigao de um povo e de uma civ lizacao se revelou possivel e desejavel, tanto em si mesma quanto como instrumento de dominacao. A exploragéo maciga da mio 1, "Deus esta conosco”, de-obra escrava fora aprendida por Hitler na escola de Stalin, mas na Unido Soviética voltou multiplicada no fim da guerra. O éxodo de cérebros da Alemanha ¢ da Itélia, junto com © medo de uma ultrapassagem por parte dos cientistas nazistas, deu a luz as bombas nucleares. Os sobreviventes judcus desesperados, em fuga da Europa ap6s o grande naufrégio, criaram no seio do mundo drabe uma ilha de civilizagdo ocidental, um portentoso renascimento do hebraismo € 0 pretexto para um édio renova~ do. Depois da derrota, a silenciosa diaspora nazista ensinou as artes da perseguigao ¢ da tortura aos militares ¢ aos politicos de uma diizia de paises, debrugados sobre o Mediterraneo, o Atlan- tico 0 Pacifico, Muitos noves tiranos guardam nas gavetas o Mein Kampf de Adolf Hitler: talvez com algumas retificag substituigGes de nomes, pode ainda ser oportuno. “sou certas © exemplo hitleriano demonstrou em que medida é deva tadora uma guerra travada na era industrial, mesmo sem que se Fecorra 4s armas nucleates; nos tiltimos vinte anos, a desgraga- da aventura vietnamita, o conflito das Falkland, a guerra Ira-Ira~ que € 0s fatos do Camboja e do Afeganistao si uma confirma- sao disso. No entanto, aquele exemplo também demonstrou (nao no sentido rigoroso dos matemsticos, infelizmente) que, pelo menos algumas vezes, pelo menos em parte, as culpas his- tGricas sdo punidas; os poderosos do Terceiro Reich terminaram na forca ou no suicidio; a nagao alema soireu um biblico “mas- sacre de primogénitos”, que dizimou uma geragéo, ¢ uma divi so que pds fim ao orgulho germanico secular. Nao é absurdo supor que, se 0 nazismo nao se revelasse desde 0 inicio tio desa- piedado, a alianga entre seus adversdrios nao se teria constitui- do ou se teria rompido antes do fim do conflito. A guerra mun- dial buscada pelos nazistas e pelos japoneses foi uma guerra suicida: todas as guerras deveriam ser temidas como tais. Aos esterestipos que descrevi no sétimo capitulo, gostaria, enfim, de acrescentar mais um. Os jovens nos perguntam, com uma freqiiéncia © uma insisténcia tanto maiores quanto mais, aquele tempo se afasta, quem eram, de que cepa eram feitos os hossos “verdugos”. 0 termo alude a nossos ex-guardides, os $8, 174 €.a meu ver ¢ impréprio: faz pensar em individuos degenerados, malnascidos, sddicos, afetados por um vicio de origem. Ao con trario, cram feitos de nossa mesma matéria, eram seres huma- nos médios, medianamente inteligentes, medianamente maus: salvo excegdes, ndo eram monstros, tinham nossa face, mas fo- ram mal educados. Tratava-se, em sua maioria, de sequazes ¢ funcionarios grosseiros ¢ diligentes: alguns fanaticamente con- vyencidos do verbo nazista, muitos indiferentes, ou temerosos de Punigdes, ou desejosos de fazer carreira, ou demasiado obedien- tes. Todos tinham sofrido a aterradora deseducagio fornecida e imposta pela escola tal qual fora querida por Hitler € por seus co- laboradores, ¢ completada depois pelo Drill dos SS. A esta milf cia muitos aderiram pelo prestigio que conferia, por sua onipo- 1éncia ou mesmo s6 por fuga de dificuldades familiares. Alguns, na verdade pouquissimos, fizeram alguma revisao, pediram transfe réncia para as frentes, deram cautelosa ajuda aos prisioneiros ou escolheram 0 suicidio. Esteja claro que responséveis, em maior ou menor grau, todos eram, mas deve ficar igualmente dlaro que por tras dessa responsabilidade, esté a da grande maioria dos ale aes, que aceitaram no inicio, por preguiga mental, por cileulo miope, por estupidez, por orgulho nacional, as “belas palavras” do cabo Hitler, seguiram-no enquanto a sorte € a falta de eserti pulos 0 favoreceram, foram atingidos por sua ruina, enlutados com a morte, a miséria, os remorsos, € reabilitados poucos anos depois em razao de um leviano jogo politico, 5 Fscrevendo sobre 0 dia-a-dia de ‘Auschwitz, sobre a disciplina cega dos SS, sobre 0s prisioneiros moralmente debilitados que aceitavam 0 colabo- racionismo como Gnico modo de escapar d "Solucao Final", mas princi- palmente sobre os milhdes que tive- ram seu futuro negado pelo simples fato de nascerem judeus, Primo Levi faz uma obra embebida em memdria Faz histéria oral. € cada paiavra, cada recordacao, cada ponto de vista seu aqui relatado objetiva esclarecer as novas geracoes, sulicientemente afas- tadas do horror que foi a guerra. O Holocausto, as deportacdes, os trens, as cimaras de gds € seis mi- thoes de judeus realmente existiram. Logo, podem acontecer novamente, Este € 0 ponto principal de tudo quan- to este livro tem a dizer. Primo Levi nasceu em Turim, onde | formou-se em Quimica antes que 0 acesso 3s universidades fosse proibido | 0s judeus. Em 194 foi deportado para Auschwitz, de onde saiu ao final da guerra, De volta 3 Italia retomou 3 sua profissao, mas em 1947 publica € isto tum homem? (ed. Rocco, 1989), livro que ‘em um primeiro momento ficou quase despercebido, mas que em 1958, com sua segunda edic3o, rodou o mundo. ‘Autor de dez livros de ensaios, recor- ages, ficgdo € poesia — destacam-se sobretudo A trégua (1963) e Lilit (1981) — Primo levi faleceu em sua casa no ano de 1987. YANGRAR, = Muito jd se escreveu continua a ser escrito sobre © horror perpetrado contra os judeus na Segunda Guerra, como O Didrio de Anne Frank, os relatos do Nobel de Literatura Elie Wiesel, Shoah, de Claude Lanzmann e A Meméria Va, de Alain Finkielkraut. Mas quem foi 0 primeiro? Quem, apenas dois anos apés 0 armisticio, j4 publicava seu relato pungente sobre o cotidiano de Auschwitz? Quem senao Primo Levi? Neste libelo contra 0 Holocausto, 0 autor italiano mundialmente famoso procura responder aquelas perguntas que tanto cobraram as posigdes ¢ a cons- ciéncia dos sobreviventes das cdmaras de gas: Por que vocés nao fugiram? Por que nao se rebelaram? Sua meta esclarecer as novas geragdes — para quem a guerra tornou-se um passado remoto — que tudo aquilo realmente aconteceu, e que, portanto, pode acontecer novamente. Pedro de Luna ISHN §5-219-0502-5 VA o!rgxsailouso2s

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