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i) Edmund Burke Reflexdes sobre a Revolucao em Franca eg a ae s CE See awh Oa oe Cees Pe] Editor Universidade de Brasilia Edmund Burke Reflex6es sobre a Revolucdo em Franca Pensamento Politico Traducao de Renato de Assumpcao Faria, Denis Fontes de Souza Pintoe Carmen Lidia Richter Ribeiro Moura Minka Impahpével Bibhoteca NEI Editora Universidade de Brasilia Com oapoo FUNDAGHO ROBERTO MARINHO Este livro ou parte dele nao pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorizagao escrita do Editor Impresso no Brasil Editora Universidade de Brasilia Campus Universitario - Asa Norte 70910 — Brasilia — Distrito Federal Titulo original: Reflections on the revolution in France de Edmund Burke Copyright © 1982 by Universidade de Brasilia Introduction and Notes copyright © Penguin Books, Ltd, 1969 Direitos exclusivos de edigao da Introdugao € das Notas em lingua portuguesa: Editora Universidade de Brasilia Capa: Arnaldo Machado Camargo Filho Equipe Técnica Editores: Licio Reiner, Manuel Montenegro da Cruz Maria Riza Baptista Dutra e Maria Rosa Magalhies Supervisor Grafico: Eimano Rodrigues Supervisor de Revisdo: José Reis Controladores de Texto: Antonio Carlos Aires Maranhio, Carla P. Frade Nogueira Lopes, Clarice Santos, Lafs Serra Bator, Maria del Puy Diez de Uré Helinger, Maria Helena Miranda, Monica Fernandes Guimaries, Patricia Maria Silva de Assis, Telma Rosane Pereira de Souza e Vilma G. Rosas Saltarelli. FICHA CATALOGRAFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA UNIVERSIDADE DE BRASILIA Burke, Edmund, 1729-1797. B95% Reflexes sobre a revolucdo em Franga. Trad. de Renato de Assumpgao Faria, Denis Fontes de Souza Pinto ¢ Carmen Lidia i Editora Universidade de Brasilia, p. 239 (Colegio Pensamento Politico, 51) Titulo original: Reflections on the revolution in France. 944.04 32(420) t série Sumario APRESENTACAO . INTRODUGAO Notas REFLEXOES SOBRE A REVOLUCAO EM FRANCA. Sociedade Constitucional . ~Sociedade da Revolugao . . DA MONARQUIA NA CONSTITUICAO INGLESA . Sermio do Dr. Price. Discussdo do Primeiro Principio do Dr. Price: O direito de escolhermos nossos governantes. Discusséo do Segundo Principio do Dr. Price: 0 direito de depor os go- vernantes por indignidade Discusséo do Terceiro Principio do Dr. Price: O direito de estabelecer uum governo para n6s mesmos....... 2.02200 ee eevee eee ees ASSEMBLEIA NACIONAL E A REPRESENTACAO. OS PRIMEIROS ATOS REVOLUCIONARIOS O que a Franga fez. O proveito que ela tirou de sua conduta . A Assembléia Nacional: sua composi¢ao. ‘0 Terceiro Estado. . . NOClet0. eee cee ee ‘A Nobreza Caracteristica principal da Revolugao na Franga: fe Sobre a igualdade dos homens e sua admissdo em todos os empregos . Sobie a representacdo de um Estado: o lugar que se deve conceder ao ta- lente; o lugar que se deve dar a propriedade. A representacdo na Franca. 7 73 74 75 78 79 80 81 82 Sobre um ponto do sermo do Dr. Price: se € possivel aplicar-se a Ingla- terra os principios da Franga . O que o Dr. Price pensa da representacdo inglesa . Conseqiéncias dessa opinido. Psicologia dos revolucionérios: € preciso que destruam alguma coisa Sobre os verdadeiros direitos do homem ... . De como a Ciéncia da filosofia ¢ experimental e exige mais experiéncia do que aquela que o homem pode adquirir em vid: De como os direitos do homem sao incompativeis com ciedade . Do perigo de se manter no esp/rito idéias revolucionérias . - Entusiasmo do Dr. Price diante dos atentados de 5 e 6 de outubro de De comoa ‘Assembiéia delibera : A atitude da Assembléia depois das jorada de outubro. As jornadas de outubro perante a histéria. . . Uma das causas do entusiasmo do Dr. Price . . CO espirito de cavalheirismo . . . . nee eee Seu desaparecimento, conseqiéncias.......... . Perigos de se suprimir os antigos costumes e regras de vida. Sobre os sentimentos que é natural experimentar a respeito das jornadas de outubro. O que se pensa na Inglaterra das caltinias levantadas contra De como os franceses fazem uma falsa idéia da Inglaterra. De como os preconceitos so venerados nesse pais... 01.6... eee bee ee eee De como € falso pretender que a Franga se tenha inspirado nos princi- pios ingleses. 6... 0... ce eee cee eee De como a Inglaterra est4 decidida a nao seguir o exemplo da Franga . A RELIGIAO E A SOCIEDADE CIVIL. 0 CONFISCO DOS BENS ECLESIAS- TICOS E A DESTRUICAO DAS ORDENS RELIGIOSAS. ............... De como a religifo é a base de toda a sociedade. A religido na Inglaterra e a consagrago do Estado De como essa consagragdo exige um culto piiblico por parte da Nagao... De como o culto publico exige uma instituigdo religiosa estatal. Como a educagao inglesa leva 4 crenga nessa instituigao . . Necessidade da existéncia de propriedades eclesias independéncia da Igreja e sua dignidade. . . De como os bens da Igreja sfo considerados inviolaveis pelos ingleses. . Sentimentos existentes na Inglaterra em relagdo ao confisco dos bens da Igreja na Franca SN Pretextos usados para se realizar 0 confisco . 103 106 109 109 Wd 17 118 119 122 122 124 ~ A causa real do confisco . . . 125 A inconsisténcia do pretexto inventado para outorgar 0 confisco - 128 Precaugées tomadas por outros tiranos para realizar confiscos andlogos . 129 Se a situago financeira da Franca justificava um confisco . 131 ~ Se a atitude do Clero justificava 0 confisco 131 O perigo da confisco.............. sees 132 O curso forgado da moeda...........-.-44- 133 O confisco aplicado as compensagées a serem concedidas aos detentores de cargos judicidrios.. 0.2.0... e cece e eee eer eee cece ee 133 Sobre a democracia e se ela convém a um grande pais. Seus efeitos so- bre a liberdade dos cidados .... 21... eee e cece eee eee eee 135 0 antigo governo da Franga e seus efeitos sobre a prosperidade do p: segundo a populacdo e a riqueza. en bees 136 \A Populagao. sees 137 \A Riqueza . . 138 A atual situagdo da Franca 141 As caliinias dos revoluciondrios contra a Nobreza e 0 Clero . 142 \A Nobreza. Aquilo que ela foi 142 \O Clero. Aquilo que ele foi seeeee 145 0 que a Revolugao fez do Clero ceeee 150 O que os protestantes ingleses pensam do confisco religioso 1 na a Fraga. 152 Perigos em que outras nagSes incorrem por causa do exemplo francés .. 153 Legitimidade das agdes defensivas de outras nagdes. A propaganda revo- luciondria. . cece eee eee 154 O injusto confisco na Franca fez desaparecer muitas corporagdes que poderiam ser utilizadas para o bem puiblico.............. 00.005 156 Sobre a venda dos bens eclesidsticos considerada como uma transferén- cia de propriedade seeeeeees 159 \Os bens dos bispos, monges e abades . » 161 A NOVA CONSTITUICAO FRANCESA 163 NA Assembléia ...........- 163 O seu modo de obter e conservar o poder 164 O desejo que os motivou: contornar a dificuldade . . As dificuldades que um reformador deve super: As precaugdes ¢ a lentidao que se fazem necessérias 166 Exame das instituigdes criadas pela Assembléia Nacional. 168 Constituigao do Poder Lepiatvo, . 169 A base territorial... ... : 169 A base populacional. 170 A base da contribuicao. . 7 Como o sistema eleitoral francés protege os ricos. 172 Se o sistema ¢ logico em si. 174 A Franga dividida como um pais conquistado......... 176 A necessidade da existéncia de diferentes classes sociais em uma nagdo . 177 Como a resolugdo de dividir 0 pais em repiblicas separadas levou os co istituintes 4 maioria de suas dificuldades e contradigdes ......... 179 Constituigao Francesa e Constituicdo Inglesa. Nao reelegibilidade dos deputados 180 Os meios adequados a manter unidas estas repiblicas separadas . 181 O confisco . pasenraagasiee 181 Supremacia de Paris... 185 ‘A Assembléia, Poder Soberano. A auséncia de Senado . 186 Poder Executivo. 187 Porque nés conservamos um Rei, 190 Os ministros . 191 0 poder Judiciério 192 Do Exército . 195 Ateceita Beg an oop ee 206 O crédito. Onus que gravam as propriedades confiscadas. 2u1 Se as medidas financeiras da Assembléia trouxeram algum alivio a ao, POVO. eee cece eee ee ene e tenes Se a Assembléia é capaz de dar a liberdade Se a Assembléia fez algo de bom. Conselhos aos ingleses .. . . a ceeaee Notas 2... ee eee Apresentacdo REFLEXOES SOBRE A REVOLUGAO EM FRANCA Edmund Burke nasceu em Dublin em 1729, filho de um advogado. Formou-se pelo “Trinity College”, Dublin, em 1748, indo depois para Londres, para ocupar a fun- do de leitor do Forum de Justica. Em 1756, publicou o seu primeiro trabalho literd- tio, A Vindication of Natural Society e On the Sublime and the Beautiful e na mesma época, também, se casou com Jane Nugent, Em 1765, Burke tornou-se secretario parti- cular de Rockingham, Primeiro Lorde do Tesouro, tendo sido eleito para o Parlamento pelo burgo de Wendover em 1766, acompanhado os Rockingham Whigs na oposi¢fo no ano seguinte. Em 1771, apés a publicagdo de dois panfletos, Observations on the Present State of the Nation e Thoughts on the Present Discontents, ele foi designado ‘Agente de Londres para o Estado de Nova Iorque e em 1773 visitou Paris. Um forte opositor da administrago de Lorde North, ele enfaticamente atacou a politica ameri- cana do Governo nos seus discursos On American Taxation (1774) e On Conciliaton With the Colonies (1775). Nas eleigdes de 1774 tornou-se deputado por Bristol, lugar por ele perdido seis anos depois em decorréncia de sua defesa dos direitos comerciais da Irlanda. Lorde Rockingham, entretanto, deu-lhe uma cadeira pelo seu burgo em Maltan. A popularidade de Burke em nada aumentou quando ele iniciou 0 processo de impeachment de Warren Hastings e em 1788 seu amigo Charles Fox, que deveria for- mar um Governo, nao 0 apoiou. A “Reflexdes sobre a Revolugdo em Franca” foi escri- ta na primeira metade de 1790 e publicada em novembro do mesmo ano. Durante 0 resto de sua vida, suas preocupagGes estiveram em torno dos problemas na Franga e na Inlanda. Ele morreu em Beachonsfield em 1797. Conor Cruise O’Brien membro do Parlamento irlandés pelo distrito nordeste de Dublin e Pré-Reitor da Universidade de Dublin desde 1973. Nascido em 1917, ele rece- beu os graus da B.A e Ph.D pelo “Trinity College” de Dublin e entrou para o Ministé- tio das Relagdes Exteriores da Irlanda em 1944, Em 1955 ele era Conselheiro em Paris e de 1956 até 1960, Chefe da Divisio das Nagdes Unidas e membro da Delegaco irlan- desa junto 4 ONU. Em 1961 representou o Secretério-Geral da ONU em Katanga, mas 2 Edmund Burke a0 fim daquele ano renunciou a seu cargo. Foi Vice-Reitor da Universidade de Gana de 1962 até 1965 ¢ Professor de Humanidades de Albert Schweitzer na Universidade de Nova lorque de 1965 até 1969. Entre seus livros est4o incluidos: Parnell an His Party (1957), To Katanga and Back (1962), Writers and Politics (1965), The United Nations: Sacred Drama (com desenhos de Feliks Topolski, 1968) e States of Ireland (1972). Introdugdo “O MANIFESTO DE UMA CONTRA-REVOLUCAO” 1 O espectro que perseguiu a Europa no Manifesto Comunista (1848) e que conti- nua a perseguir atualmente o mundo, aparece pela primeira vez nas paginas de Burke: “da sepultura da monarquia francesa assassinada brotou um espectro grande, tremendo e sem formas, numa roupagem muito mais assustadora de que qualquer ou- tra que j4 tenha tomado conta da imaginago do homem e vencido a felicidade huma- na: partindo diretamente para 0 seu objetivo, nao intimado pelo perigo, nao paralisado pelo remorso, desprezando todas as m4ximas comuns e todos os meios comuns, aquele odioso fantasma dominou a todos que ndo acreditavam ser possivel a sua exis- téncia. Convencidos mais pelo habito do que pela natureza, tais pessoas acreditavam em sua existéncia apenas baseada em principios necessdrios para o seu proprio bem- estar e para seus modos ordinérios de ago”. ‘A revolugdo que Burke tanto temeu nao € obviamente idéntica a revolucdo comunista de Marx, mas tem muito em comum com ela e, em alguns aspectos, muito mais em comum do que com a Revolugdo Francesa dos dias de Burke. Ele provavel- mente veria nos principios da revolu¢do comunista o surgimento de uma forma ainda mais pura daquilo que mais detestava na revolugdo contemporanea, cujo desenvolvi- mento na Franga ele via com horror e fascinago e que, na Inglaterra, ele procurou por em xeque com elogiiéncia ¢ inteligéncia, © espitito da renovacdo total e radical; a des* truigdo de todos os direitos consagrados pela tradico; 0 confisco da propriedade, a, destruigao da Igreja, da nobreza, da famflia, dos costumes, da venerago aos ances- trais, da nagdo — esse é 0 catélogo de tudo aquilo que Burke odiava nos seus momentos’ sombrios, ¢ todos esses elementos ele encontraria no marxismo. Na personalidade do proprio Marx ele veria encarnada aquela energia que, segundo ele, era malévola para a ordem social: a energia da habilidade sem propriedade? . Em Engels, ele veria um tipico Tepresentante de um grupo Cujas atividades via ndo somente como nocivas, mas tam- 4 Edmund Burke bém como incompreensiveis: 0 grupo de homens de bens que encorajava a difusdo de principios incompativeis com 0 direito de propriedade?. Da mesma forma que Burke, Marx e Engels, cuidadosa e apaixonadamente, investigaram a Revolugao Francesa, pro- curando no seu desenvolvimento o segredo do desenvolvimento futuro da politica européia e mundial*. Como a dele, a imaginago de Marx e Engels foi profundamente penetrada pelas energias que a Revolucdo descarregou, profundamente impressionada pelo constraste entre a dimensdo daqueles acontecimentos e a rotina da politica em um mundo que esperava que a Revolugio poderia ser ignorada, ou tratada como um evento excepcional e puramente local, isolada no tempo e no espago. Também como ele, esses tiltimos olharam por entre a fachada politica da Revolugdo, em busca da sua substancia econémica e social: Burke oferece, nas Reflexdes* e em outras obras, alguns dos melhores exemplos da critica aristocratica em relagdo 4 burguesia, da qual o Manifesto Comunista faz uma apreciagao sarcdstica. Burke e Marx procuraram compreender os princfpios revoluciondrios presentes na Franca ~ Burke com vista a impedir sua propagagao e a destruir 0 nticleo da infecgdo Marx para elogiar a vitoria de uma nova revolugdo, trazendo consigo o triunfo de tudo aquilo que Burke via de mais desprezivel — ¢ ndo daqueles aspectos mais benéficos — da velha ordem. As grandes revolugdes de nossa época, a russa e a chinesa, ocorreram, sob a lide- ranga comunista, em paises que nunca tiveram um equivalente da Revolugdo Francesa. A Franca e aqueles outros paises ocidentais mais expostos as idéias do Iluminismo e, como a Gr&-Bretanha e os Estados Unidos, menos resistentes aqueles principios de democracia politica que Burke renegava, ndo esto, hoje, entre aquelas nagdes mais revolucionérias do mundo. O pais que foi o centro da contra-revolugdo nos seus dias © pais cuja Imperatriz ele admirava®, se tornaria para a nossa época o nucleo da infec- ¢do revolucionaria que a Franca foi na época de Burke. Nés temos condigées de ver a Rissia, por meio de suas vit6rias revolucionarias, deixar de ser uma forga revolucion- ria para ser substituida por um poder que estava ligado, muito antes da Russia, as for- mas ancestrais, que forneceu o supremo exemplo no mundo, de grande adequagdo a0 contrato social na forma pela qual Burke o via ~“‘uma sociedade ndo somente entre os vivos mas também entre os vivos, os mortos € aqueles que haverdo de nascer.”"” Se, como Burke desejou e emocionadamente instigou, as monarquias européias tivessem sinceramente se unido para esmagar logo no inicio, e completamente, a Revolugao na Franga, enquanto suprimiam totalmente qualquer manifestagdo, mesmo incipiente, de potencial revoluciondrio nos sedis paises, poder-se-ia imaginar os sucessos que tal atitu- de poderia produzir a longo prazo. Nao seria possivel, entretanto, que as forcas revolu- cionarias, mais comprimidas do que suprimidas, tivessem explodido em um periodo posterior, com muito maior violéncia, sob uma lideranga mais disciplinada, consistente e determinada, e com efeitos muito mais radicais sobre a estrutura social? Perguntar é, penso eu, levantar dividas sobre o grau de esclarecimento dos interesses da alianca contra-revolucionaria internacional. Retornarei a esse ponto, ao considerar a importan- cia de Burke para o anticomunismo militante dos nossos dias. De inicio, entretanto, — na medida em que a atitude de Burke em relagdo 4 Revolugdo no foi, inicialmente, um comportamento de cruzada — é necessario discorrer sobre o desenvolvimento real Reflexées sobre a Revolugéo em Franga 5 das suas opinides, emogdes e apreensdes sobre a Revolugdo, pelo menos naqueles pontos que sao revelados por seus escrifos. Desde 0 inicio, logo apés a queda da Bastitha, os eventos, que para muitos signi- ficaram 0 advento de uma nova era de liberdade, provocaram um certo receio em Bur- ke, sem, entretanto, leva-lo a uma condenacao geral. “Para nés, aqui”, ele escreveu para Lord Charlemont em 9 de agosto de 1789°, “todas as reflexes sobre os nossos problemas internos ficaram suspensas pela nossa preocupagdo pelo maravilhoso espetaculo em um pais vizinho e rival — que especta- dores e que atores! A Inglaterra olhando com surpresa a luta, na Franga, por liberda- de e néo sabendo se deve recriminar ou aplaudir! Tudo isso, apesar de eu achar que algo parecido jé estava em curso hd muitos anos, tem algo de paradoxal e misterio- so. E impossivel ndo admirar o espirito, mas a velha ferocidade parisiense explodiu de uma forma assustadora. E verdade que isso pode ser meramente uma explosio subita... mas se isso tiver um cardter basico, ao invés de simples explosdo, entao esse povo ndo est preparado para a liberdade, devendo, assim, ser governado por uma mio forte como aquelas de seus antigos senhores. O homem deve ter uma certa dose de moderagdo para poder ter liberdade, para que ela ndo se tome nociva e prejudicial ao corpo so- cial”. = ‘A mesma atitude, a de um espectador apreensivo e desgostoso, aparece refletida em outros comentarios de Burke em 1789. A desaprovagao, entretanto, aumenta em 10 de outubro de 1789, depois da transferéncia revolucionaria do Rei de Versalhes para Paris, quando escreve para seu filho sobre “. . . O prodigioso Estado francés — onde os elementos que compdem a Sociedade Humana aparentam estar todos dis- , solvidos, foi substitufdo por um mundo de monstros — onde Mirabeau preside como © Grande Andrquico, e o antigo Grande Monarca se transforma em uma figura ridi- | cula e merecedora de pena. Espero vé-lo demitir o regimento que ele chamou para ajudé-lo, para beber a sua sade . . .e saber que ele escolheu um corpo de amazonas parisienses para a sua guarda pessoal (Corv. VI, pp. 29-30).” Em 4 de novembro, Chames Jean — Francois de Pont, “um jovem nobre de Paris” escreveu para Burke uma carta, para qual as Reflexdes so uma resposta. “Son Coeur”, ele disse, “battu pour la premiere fois au nom de Liberté en vous en entendant parler... Si vous daignez Vassurer que les francais sont dignes d’étre libres, qu’ils sauront distin- guer Ia liberté de la licence et un gouvernement légitime d'un pouvoir despotique; si vous daignez enfin Vassurer que la Révolution commencée réussira, fier de votre té- moignage il ne sera jamais abattu par le découragement qui suit souvent l’espérance.”" (Corv. VI, pp. 31-2). Desde 0 inicio da Revolugao até sua morte, Burke nunca pode dar a certeza pedida por seu jovem correspondente, mas a sua resposta original é muito mais branda do que a feroz polémica das Reflexdes. Ele enfatiza sua ignorancia sobre o estado atual da situagio e desconfia do seu préprio julgamento “Se eu parego” ...diz ele, “expressar-me em uma linguagem de desaprovacdo, seja gentil em olhé-la como uma 6 Edmund Burke mera expresso de duvida”. Ele explica qual a liberdade que ele admira: “a liberdade a qual me refiro € a liberdade social. E aquele estado de coisas no qual a liberdade é garantida pela igualdade na aplicagdo das sangGes, um estado de coisas no qual a liber- dade de nenhum homem, de nenhum grupo de homens e de nenhuma corporacdo de homens possa ter meios de se impor a liberdade de qualquer homem ou de qualquer grupo de homens na sociedade. Sem a existéncia disso, tornando-se inviavel o estabele- cimento de uma real liberdade pratica com um Governo capaz de proteger, incapaz de destrufla... teremos uma Monarquia subvertida, mas no uma liberdade recuperada... Passaremos a viver em um novo estado de coisas; sob um plano de Governo, no qual nenhum homem pode falar com base na experiéncia. Os franceses ainda passaréo por novas transformagGes”. Burke dé um conselho ao gosto dessa poca de luzes... ‘mas como o ultimo fruto maduro da experiéncia — Nunca separe idealmente os méritos de uma questo politica do homem que nela esté interessado... O poder de um homem mau néo é algo indiferente...” a carta termina com um elogio a prudéncia e 4 moderagdo: “Prudéncia (em todos os casos uma virtude, na politica a primeira das virtudes). Acredite-me, Senhor, em todas as modificagGes de Estado, a moderagdo é uma virtude, nao somente agradavel, como poderosa. E uma virtude despojada, conciliatéria, cons- trutiva... ousar ter duvidas quando tudo € to cheio de presungGes e audacias. Essas repreens6es inteligentes e memordveis nao so de forma alguma incompati- veis com as ReflexGes — que contém varias passagens no mesmo teor — mas a chama dessa grande época ainda nao foi acesa. Ainda ndo ha nenhuma nota de alarme. “Em relacdo 4 Franca”, como ele escreveu ao Conde Fitzwilliam na época em que ele devia estar escrevendo a réplica a de Pont, “‘se eu fosse dar asas as especulagdes que povoam a minha imaginagGo quanto ao presente estado de coisas e que agora comegam a ser desvendadas, eu acreditaria que fosse um pais desfeito... Eu certamente gostaria de ver a Franga cercada por lagos moderados. O interesse desse pais requer, talvez os interes- ses da humanidade também requeiram, que ela nao esteja em uma posicao despética capaz de impor leis 4 Europa: mas eu creio ver muitas inconveniéncias, néo somente para a Europa como um todo, mas para esse pais em particular, na total extingdo po- litica de uma grande Nagao civilizada situada no corago do nosso sistema ocidental”? . Antes de Burke e mesmo apés sua época, muitas pessoas foram surpreendidas por “inconveniéncias” de outras formas. Até o fim de 1789, entretanto, ele permanece desinteressado € pouco motivado. “Os problemas na Franga, na Inglaterra,” ele escreve para o seu amigo Philip Francis em dezembro, “nos so apresentados como uma ques- tao curiosa, com os quais 0 nosso sentimento de “dever” nio se interessa; ndo somos levados a nos intrometer com seus efeitos: e talvez as loucuras da Franca, pelas qu: ainda ndo fomos afetados, possam empregar a nossa curiosidade de uma forma mais agradavel, e mais util do que a corrupedo da Inglaterra, que é mais calculada para nos fazer sofrer”!”. Foi por volta de janeiro de 1790 que a atitude de contemplacao de Burke come- gou a desaparecer dando vez a um comportamento mais ativo. Uma carta escrita a um desconhecido, datada da segunda quinzena daquele més, demonstra essa transicao. Reflexdes sobre a Revolugdo em Franca 7 Nessa carta ele é mais filos6fico ou teleoldgico sobre a situa¢Zo na Franca do que em qualquer outro de seus posteriores pronunciamentos: “O homem é um animal gregario. Ele suprird gradativamente suas necessidades naturais e essa coisa estranha terd, algum dia, uma forma mais civilizada. O peixe ird finalmente construir uma concha que o ser- viré”. Assim ap6s alguns comentarios sarcésticos sobre Voltaire e Rousseau, ele expoe um argumento que demonstra sua preocupacdo: “Eu vejo que certas pessoas aqui que- rem que nos tornemos seus professores e reformemos nosso Estado segundo o modelo francés. Eles j4 comecaram, e jd € tempo daqueles que querem preservar 0 morem ma- jorum de estarem vigilantes”. A primeira fase das atividades contra-revolucionrias de Burke — aquela das Reflexdes — foi a da luta contra a influéncia revolucionaria na Inglaterra. Nessa pri- meira fase ele nao via, basicamente o perigo proveniente da Franca, mas na forma de pensamento que levou aos conhecimentos na Franga e naqueles homens que querian) levar esse pensamento a Inglaterra. O perigo aparecen para elé mais evidente ao ler os serm6es do Dr..Price € na correspondéncia da Sociedade Revolucionéria com a Assem- bléia Nacional! Logo apés, no Parlamento, Charles James Fox elogiou com grande énfase a Revolugdo Francesa, dizendo que ele “‘a elogiava por seus sentimentos e seus principios”, Pitt também esperava uma Franga livre e reconstrufda “como uma das poténcias mais brilhantes na Europa”. Foi entdo que, pela primeira vez, Burke, em 9 de fevereiro de 1790, tomou uma posigdo publica contra os princfpios da Revolugdo. O cémputo final de seus discursos faz ver que sua' principal preocupagdo declarada era © perigo de infecedo proveniente da Franca, na Inglaterra: ‘a casa deve perceber, pela sua antecipagdo em entender dois de seus melhores amigos, como ele estava ansioso em evitar a menor tolerancia na Inglaterra em relagao a loucura na Franga, pois estava cer- to que pessoas fracas na Inglaterra estariam propensas a recomendar que se imitasse © espirito de reforma francés. Ele estava t4o contrario 4 menor tendéncia de introdu- zir esse tipo de democracia, assim como os fins a que ela visava, que ndo hesitaria, por maior que fosse 0 sofrimento, em abandonar seus melhores amigos (apesar de ndo crer que eles pudessem tentar isso) e se juntar a seus piores inimigos para se oporem, ndo somente aos meios como aos fins desse tipo de democracia; e para resistir a todas as manifestag6es violentas desse espirito de inovacdo, tao distante de todos os principios da reforma segura e verdadeira, um espfrit calculado para derrubar governos, mas completamente incapaz para aperfeigod-lo®!?.) As Reflexdes sobre a Revolugao em Franga desenvolvem, defendem e ilustram esse argumento. 3 O sucesso posterior, porém nao imediato, das Reflexdes junto as classes pro- prietérias — devido ao crescente panico causado pelo. progresso da Revolugdo — e seu -eféito de restaurar Burke A condi¢&o de favorito real}? e 4 concessfo de uma pensfo apés_a_sua-aposentadoria naturalmente levaram 0s opositores de Burke a afirmar que ele — como dirfamos hoje — tinha se “vendido”, abandonando suas crengas em troca de dinheiro e posigao. Tom Paine no seu “Direitos do Homem” acusou-o de suborno: 8 Edmund Burke desenhos da época repetem esse tema; Marx, posteriormente, reafirmava em seus escri- tos essa visio do posicionamento contra-revoluciondrio de Burke!*. Como poderia ser explicada a transformagdo, a defecgdo da causa da liberdade, daquele que tinha, como era acreditado, liderado a causa da Revolugdo Americana? A acusa¢do se tomou plausivel em decorréncia da situagdo financeira complicada de Burke, sua vida cara em Beaconsfield — sobre a qual Dr. Johnson comentou: “Non equidem invideo; miror magis” — e da reputagdo que a familia Burke tinha, em virtude de transagées financei- ras passadas!. Por mais plausivel que possa ter parecido para seus opositores da época, e 0 debate sobre as Reflexdes continua tdo vivo que seus opositores sempre tiveram uma tendéncia de aparentar contemporaneidade, a acusago de que Burke se opés 4 Revolu- ¢do em troca de favores ndo pode ser aceita. No inicio de sua carreira — e como condi- do para ter uma carreira — Burke entrou em contato com uma grande quantidade de pessoas da nobreza e de propriedade. Ele mesmo era um dos melhores exemplos de uma conjuntura que ele achava temivel para uma sociedade madura: habilidade sem pro- priedade. Tivesse ele nascido em circunstancias sociais similares em Arras em 1750 ou em Dublin ou Belfast em 1760, ele provavelmente teria sido um revoluciondrio perigo- so, j4 que era inteligente. Mary Wollstonecraft pensou dessa forma: “Lendo as suas “Reflexdes” demoradamente, cheguei 4 conclusio de que, se vocé tivesse sido francés ¢ apesar de seu respeito pela hierarquia e autoridade, vocé teria sido um revolucionario violento. Sua imaginagdo teria se incendiado..."#6 Mas em decorréncia da vida que le- vou, nascido em Dublin em 1729, ele colocou sua habilidade, desde 0 inicio, a servico dos homens nobres e de posse. Ele permaneceu fiel, sem subserviéncia, ao lado que escolheu. Seus escritos sobre os problemas americanos ndo eram revolucionarios, eles eram longe disso, uma tentativa de impedir o desenvolvimento e a exarcerbacdo de uma situagdo revolucionéria. E verdade que ele nunca condenou a Revolugao america- na, como fez com a francesa, uma secess4o, entretanto , de um grupo de colonias ndo € um evento similar 4 derrubada de uma ordem estabelecida em uma grande poténcia, apesar de a palavra Revolugdo ter sido usada para ambas. As cartas de Burke da segunda metade de 1789 — referidas acima — mostram que sua atitude em relagdo 4 Revolugdo Francesa era de desaprovagdo desde o inicio, mesmo antes de ter que assumir um posi- cionamento publico. Mesmo acreditando nos influentes pendores de Burke para previ- sOes politicas, seu ataque 4 Revolugdo na Franca ndo parecia, na primeira metade de 1790, um caminho seguro para uma pensio futura. Em 1790, a Revolugdo na Franca nao parecia perigosa para a maioria dos ingleses. A Franga parecia até que estava se “acomodando”. Burke mesmo foi informado, por volta dos fins de 1789, que “o calor estava diminuindo”.!7 O perfodo desde a transferéncia do Rei para Paris (outubro de 1789) até a sua tentativa de fuga (junho de 1791) foi um dos mais calmos da Revolu- ¢do: “os primeiros tumultos” tinham terminado; a elaboragao da constituigao estava em curso, com muita especulacdo sobre o exemplo inglés; os principais eventos que passariam a ser conhecidos como os “horrores da Revolugao”, os massacres de setem- bro, a execugdo do Rei e da Rainha, 0 reino do Terror — séo todos acontecimentos futuros. Nesse contexto, a veeméncia dos ataques de Burke, apesar de, certamente, afastarem muitas das suas amizades politicas, nao atrairam muito apoio e, de fato, seu Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga 9 efeito imediatO\foi de aumentar sua impopularidade. Um escritor atual resumiu a situa- ¢40 logo aps a publicagdo das Reflexdes: “Burke ndo teve nenhum sucesso imedia- to nem com o Governo, nem com a Oposigao. A impressao geral nos circulos politicos foi de que Burke, apesar de eloquiente e genial, foi muito longe nas suas opini6es; muito longe na sua oposigdo sistemdtica e total 4 Revolucdo Francesa; muito longe nos seus ataques aos reformistas; muito longe nas suas preocupagdes com o perigo que sofria a Constituigao inglesa; muito longe ao chegar a fazer reunides ptiblicas e a quebrar ami- zades, em relagdo a um assunto que nunca deveria ter sido debatido”"*. O que salvou sua reputagdo foi o progresso da Revolugao em diregdo aquilo que ele previu. Em um debate que Burke participou — em fevereiro de 1790 —, Pitt falou sobre a Revolugo de uma forma conciliatéria. Mesmo depois, quando os acontecimen- tos comegaram a confirmar as previsdes de Burke e que ele e o Governo se aproxima- ram, Burke nunca seguiu a linha governamental, ao contrario, sempre recriminou 0 Governo por sua politica pragmatica e falta de ardor contra-revoluciondrio. 4 ~O que eu mais invejo em Burke”, disse Dr. Johnson “foi o fato de ele ter sido sempre o mesmo.”!° Johnson parece referir-se, principalmente, ao temperamento uniforme do escritor na sua maturidade, mas 0 leitor de Burke provavelmente achard o comentdrio mais aplicdvel a sua obra, incluindo as Reflexdes. Quanto mais a obra de Burke é lida, mais se fica impressionado, eu penso, com a profunda coeréncia interior, nao sempre com a linguagem ou a opinido, mas com o sentimento: uma coeréncia cujos principios basicos ¢ uma grande capacidade de afei¢do e um grande desprezo por todo raciocinio que nao seja inspirado pela afeigdo por aquilo que nos é proximo e caro “Eu ndo tenho uma boa opiniao por aquele sentimento de humanidade abstrato, me: fisico e contingente, que friamente sujeita o presente e aqueles que vemos e falamos as calamidades presentes em favor de um beneficio futuro e incerto de pessoas que sO gxistem idealmente.”? volume de énfase, incomum em Burke, é, penso eu, propor: cional a forga de seus sentimentos sobre o tema. (Vide ReflexGes, a passagem que termina por “‘t&o poucas pequenas imagens de um grande pais no qual o coragdo en- contra algo que pode ser preenchido”). A coeréncia ndo exclui de forma alguma a complexidade e as contradigdes; antes disso, é a coeréncia de uma personalidade com- plexa e poderosa, suportando com sucesso uma pressdo incomum. Os sentimentos familiares de Burke foram aos olhos de contempordneos ingleses — excessivos, na medida em que eles ndo visavam apenas a sua familia ~ sua mulher Jane, seu filho idolatrado Ricardo e seu irmAo Ricardo — mas também aquilo que um antropologista moderno chamaria de “familia extensa”."“Ele sempre andava”, disse o Professor Copeland, 4 frente de um cla”! Primos da Irlanda e parentes desafortuna- dos eram bem-vindos em Beaconsfield. Em sociedade, o séquito de Burke era to gran- de a ponto de impressionar até os seus admiradores.2? Se Burke tivesse sido aquele aventureiro com interesses puramente egoistas, como dizem alguns dos seus opositores, ele teria agido de forma diferente em relagdo a seus parentes. Esses seus sentimentos, 10 Edmund Burke também, se estendiam além — mas ndo indefinidamente além — de sua familia. Eles abrangiam a sua terra natal, os seguidores da religido de sua mae, ja que ele nunca deixou de lutar por maiores concessdes 4 Irlanda e maior liberdade para o catolicismo. Assim sendo, novas atitudes comprometedoras: um aventureiro irlandés ambicioso na Inglaterra do século XVII teria, se guiado tdo-somente pela razdo, ¢ evitado esses assuntos. Burke foi, em decorréncia desses sentimentos, caricaturado, vestido em um habito de jesuita ou, como disse Wilkis sobre ele, “seu oratorio fedia a Whiskey e batatas”. A afeicgo de Burke também se dirigia a seu velho professor Schackleton, da seita Quaker, a seu filho, a seu patrdo, 0 marqués de Rockingham, e, em geral. sob uma forma mais atenuada de lealdade, aquela classe social inglesa — a oligar- /quia Whig — a cujos interesses ele serviu e sob cuja protegdo ele e seu cld viveram. E na mesma proporcdo em que ele amava ou respeitava essa classe social e o meio em que ela vivia, ele odiava tudo aquilo que, de acordo com sua inteligéncia sensivel, pudesse ameagé-la,?? A distancia, entretanto, é grande: entre os catélicos irlandeses arruinados ¢ os detentores do poder e riqueza na Inglaterra existia um grande abismo a ser ultrapassado pelo sentimentalismo de Burke. Acredito, baseado nas alegacdes que serdo apresenta- das, que haja uma conexdo entre as tenses dessa dicotomia e a carga emocional. a compaixdo e a firia das Reflexdes. E evidentemente natural, dessa forma, que tenham sido as palavras do Dr. Pri- ce?*, que deslancharam a avalanche da eloqiiéncia de Burke contra a Revolugio. Os sentimentos de Burke em relagdo ao Dr. Price ¢ seus seguidores eram fortes e pouco claros, entretanto, durante algum tempo sua atitude hostil foi predominante. Na pri- mavera de 1789, muito antes dos problemas franceses passarem a preocupar os ingle- ses, Richard Bright escreveu a Burke para pedir-lhe ajuda para esses dissidentes. A sua resposta é reveladora: “Nao hé ninguém a que eu tenha estado tao ligado por estima e afeigdo do que a alguns desses dissidentes. Desde hd muito minhas conexées foram muito intimas. Eu me orgulho de ainda ter amigos entre eles. Eles j4 foram muito in- dulgentes para comigo ao pensar que (em decorréncia do meu pequeno poder de o- brigar) eles tivessem qualquer obrigacdo para comigo”. Em 1784, uma grande mudan- ga ocorreu*®, “todos eles, que pareciam agir como uma corporagdo, expuseram-me a0 6dio ptiblico, como se eu fizesse parte de um grupo de rebeldes e regicidas, que conspirava para subverter a monarquia, aniquilar, sem razdo, todos os privilégios do Reino e destruir a Constituigéo. Nao é culpa deles que eu esteja em uma posicao, cujo voto possa ser, por eles ou por outros pedido”?® , Pouco depois, Burke teve a oportunidade de acusar os seguidores da escola do Dr. Price de todas aquelas acusagdes que ele achava que essa corporagao tinha usado contra os Whigs — rebelido, regicidio, subversio e reptdio a Constituigdo. Em 13 de fevereiro de 1790, Bright novamente escreveu a Burke buscando apoio para sua resolu- 40.7 Nessa época, ele ja tinha lido os escritos de Price, e ao fazer um discurso sobre 0 orgamento do Exército demonstrou que as Reflexes estavam nascendo. Aparece, entdo. uma nova atitude hostil: Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga uN “Nos tltimos anos muitas coisas aconteceram ou chegaram ao meu conhecimen- to que néo ajudaram a modificar minha atitude passiva (i. e. em relagdo 4s petigdes dis- sidentes). Coisas extraordindrias se passaram na Franca; coisas extraordindrias tem sido ditas e tém ocorrido aqui e publicadas com grande ostentago, a fim de levar-nos a acei- tar os principios que nortearam os acontecimentos na Franga e a imité-los. Acredito que tais atitudes sejam muito perigosas 4 nossa Constituigdo e 4 nossa prosperidade. Tomei conhecimento recentemente de duas publicagdes**, que nado me deixaram divi- das de que um partido considerdvel foi formado e esté atuando sistematicamente para destruir a Constituig&éo nas suas partes essenciais. Fico surpreso em ver assembléias religiosas transformarem-se em lugares de exercicio de politica e crescimento de um partido que parece ter muito mais discérdia e poder do que piedade para com o seu objetivo”? Dessa forma, acredito que, se a influéncia desses dissidentes tivesse sido usada em favor dos Whigs, a0 invés de contra eles, a reago de Burke em 1784 a linguagem de Price, Palmer, Robenson e outros teria sido provavelmente mais moderada” Burke foi um homem emotivo, ardente nos seus ressentimentos e nas suas predilegdes e a ele agradava devolver aos dissidentes aquilo que ele considerava ter sido obra deles — 0 ataque e suas posigdes, seis anos antes. Os ressentimentos politicos de Burke em rela- Go aos dissidentes aliado a frustrago de seus Ultimos anos no Parlamento tiveram o efeito de liberar seus potenciais mais intimos. Se Rockingham estivesse vivo, se ele € seus amigos estivessem no poder, se tivesse obtido o apoio dos dissidentes, seria muito dificil que Burke tivesse escrito cont tanta elogiiéncia sobre a Revolugao na Franga. Frustrado, entretanto, ele estava livré?! } A importancia da discussdo de Burke com os dissidentes nos seus escritos sobre a Revoluco*? vai muito mais além do que um mero debate especifico sobre politica par- tidéria. Era natural que os dissidentes — ¢ em geral os protestantesvingleses — vissem os primeiros estdgios da Revolugao Francesa com bons olhos, na medida em que ela se apresentava corho uma forma de destruiggo do poder do Papado. A primeira vitoria revolucionéria que mais agradou ao Dr. Price foi a “difusio do conhecimento, que diminuiu 0 poder da superstigdo e do erro”. Para a maioria dos ingleses da época, dissidentes ou ndo, essas palavras soavam bem, na medida em que elas foram utilizadas em um contexto no qual “superstigao e erro” implicavam necessariamente nas suas ‘origens romanas. Mas Burke nao era inglés, apesar dele escrever e falar como um inglés. Ele era irlandés de uma velha familia tradicional, como bem afirmou um bidgrafo moderno: “Edmund Burke foi um puro irlandés”.™ Essa distingdo é, de uma certa for- ma, mais importante do que a baseada em uma mera crenga religiosa formal. As fami- lias mais recentes na Irlanda eram, em geral, militantes protestantes, cuja crenga eles associavam A sua posse da terrae sua posicdo dominante na sociedade. Sobre as familias mais antigas que tinham tornado-se protestantes recafa a suspeita de terem abjurado a religido meramente para escapar a lei penal — para manter suas terras, se as tivesse, para ter acesso a certas carreiras. Burke pessoalmente sofreu essa acusagdo, como vi- mos, € mesmo no inicio de sua carreira ele foi denunciado a Rockingham como um cripto-cat6lico.*5 Nao hé nenhuma razéo para descrer da sinceridade de sua negativa, a perspectiva geral de seus escritos torna claro que ele ndo era o tipo de pessoa que iria 12 Edmund Burke aparentar acreditar em certos dogmas ou abstrag6es, enquanto acreditava em outros. Seus sentimentos sao de outro tipo. A um correspondente desconhecido que — no auge da contravérsia revoluciondria — perguntou-lhe sobre suas crengas religiosas, ele respon- deu que tendo sido batizado e educado na Igreja da Inglaterra, ndo via nenhuma razdo para abandonar aquela comunhio. “Quando eu ajo, eu procuro agir segundo minhas convicgdes ou meus erros. Acredito que essa Igreja harmoniza-se com a nossa Consti- tuigdo civil... Eu estou ligado ao cristianismo como um toda, muito por convicgdo, mais por afeigio,"* fart)) 16 ‘As referéncias de Burke @ Igreja da Inglaterra slo frias, politicas, pragmaticas e contingenciais. Nao era & Igreja da Inglaterra — muito menos ao Protestantismo — que ele estava ligado, “muito por convicefio, mais por af isti um todo”. Isso é estranho. Nada é mais incompativel com o padrdo habitual de Burke pensar, escrever e sentir do que estar atraido por algo “de modo geral”, ao invés das subdivis6es que ele fazia disso. Na medida em que ele ndo demonstra um grande entu- siasmo pelo seu “pequeno pelotio”?” e aprova 0 exército como “um todo”, acredito ser correto inferir que ele ndo se sentia bem na posi¢do por ele ocupada, e isso nao é, de forma alguma, surpreendente. A mie de Burke era catdlica, assim como 0 seu sogro amigo, Dr. Nugent; seu pai, Richard Burke “parece”, segundo o Professor Thomas Copeland, “ter adotado a Igreja da Inglaterra em 13 de margo de 1722 na época em que comecou a advogar em Dublin”®*, pois para poder exercer a advocacia naquela época era preciso adotar a fé anglicana. A mulher de Edmund, Jane, como ele, era fruto de um “casamento misto. Nao se sabe onde eles se casaram, mas se cré que tenha sido um casamefito catélico realizado em Paris. O “cla” encabecado por Burke sempre foi acusado de catolicismo, em uma época e lugar nos quais deviase aparentar ser protestante, e que ser catdlico, além de econdmica e socialmente prejudicial, signi- ficava uma forte convigdo religiosa. Burke pode ndo ter visto “nenhuma razio para abandonar” a Igreja da Inglaterra, mas as suas tradigdes familiares eram to fortes — € seus sentimentos também — que ndo Ihe era possivel encarar os ataques feitos a Igreja de Roma com a tipica atitude inglesa, ou seja, com indiferenga, complacéncia e uma certa aprovacio.? Esses sentimentos religiosos explicam, de uma certa forma, 0 contetdo e a rapi- dez de suas respostas aos acontecimentos na Franga. = A origem itlandesa de Burke e suas conseqiiéncias influenciaram sua reago con- tra a Revolugao de outros modos além do religioso. A alta sociedade inglesa dos fins do século XVIII —.antes de 1793 ~ nfo poderia imaginar uma revolug%o social como uma realidade possivel. A familia Burke, proxima dos ressentimentos sociais e politicos da Irlanda, estava muito mais consciente da es- trutura social vigente e do perigo dela decorrente. Richard Burke Jr. que freqiente- mente expressava as opinides do pai com uma veeméncia por vezes indiscreta — escre- veu, na época da composigao das Reflexdes, uma adverténcia a Lord Fitzwilliam, seu patrio: Reflexdes sobre a Revolugdo em Franca 13 “Jmagine que ao andar pelas ruas de Peterboroughs, eles surjam de sob as pedras que ao se levantarem de sob os paralelepipedos sujos que o Senhor comprou do Sr. Parker, dominem o Governador daquelas ruas. O que acontecerd entdo com a elogién- cia persuasiva, as concessdes moderadas ¢ os expedientes contemporizadores do Sr. Fox?! Q tom tranqiiilo da resposta de Lord Fitzwilliam demonstra que o jovem Burke nao conseguiu transmitir as suas apreensdes. Como era comum naquela época, as preocupagées de Burke, angustiadas pelo fantasma da Revolugdo,“? ficaram esquecidas “por aqueles que ndo acreditavam ser possivel que ela pudesse existir...” Um irlandés nao podia ser tao discrente, tao tranqiilo. A revolta era iminente na Irlanda e efetivamente ocorreu em 1798, um ano apés a morte de Burke Ninguém na Inglaterra estava mais angustiado com seu espectro do que Burke. “Acreditamos que seja o grande deménio da nossa época”, ele escreveu ao Dr. Hassey em dezembro de 1796, “o crescimento do jacobinismo, e estamos certos de que, por uma série de ra z®es, que nenhuma regio é mais favordvel ao crescimento desse mal do que 0 nosso infeliz pafs."*° Ele abominava o movimento dos Irlandeses Unidos, que procurava reu- nit dissidentes e catélicos em um mesmo movimento nacional, democratico e revolu- cionério sob a inspiragao francesa e.com a ajuda francesa ~ “aquelesque, sem nenhuma preocupagdo para com a religifo, retinem toda sorte de dissidentes, buscando produzir toda forma de desordens”®*. Em telagdo, entretanto, aos catélicos irlandeses, ele faz uma tnica concessdo, se nfo por uma forma legitima de Jacobinismo, pelo menos por uma forma inerente a natureza humana. As duas formas, entretanto, estdo, na concep- g4o de Burke, muito proximas. “Esse jacobinismo”, disse ele ao escrever a Hussey, “que é especulativo nas suas origens, que provém da libertinagem deve ser controlado com firmeza e prudéncia... mas 0 jacobinismo que decorre da pentiria e da revolta, da lealdade escarnecida e da obediéncia recusada tem raizes muito mais profundas. O seu alimento vem do fundo da naturez: ana... e nfo do humor ou caprichos ou opinides sobre privilégios ou liberdades’” oy As referéncias de Burke sobre o perigo de uma revolugdo na Irlanda sdo natural- mente mais freqiientes nos tltimos anos de sua vida, em uma época mais proxima da eclosdo da revolta. A Irlanda, entretanto, nunca ficou distante de seus pensamentos. Como escreveu um moderno estudioso de Burke: “‘... como todos os irlandeses respon- sdveis e inteligentes, com forte carga emocional, Burke tinha sempre consigo a Irlanda como o seu “velho homem do mar”.** Burke afirmou em 1780, que quando pela primeira vez foi eleito para o Parlamento, catorze anos antes, o que estava “primordial- ‘Mente nas suas atengdes, era a esperanga de, sem prejudicar esse pais, ser de alguma forma util 4 minha terra natal onde fui educado”...*7 Conhecemos, em decorréncia de suas notas contra as leis sobre o Papado (Popery Laws), escritas logo antes de sua elei- ¢4o para o Parlamento, a extensdo de suas ilusdes, e a forma pela qual elas sdo apresen- tadas € perfeitamente consistente com aquilo que ele posteriormente escreveu sobre a condigao da Irlanda.*® Chega-se a concluso, dessa forma, que a opinido de Burke sobre a Irlanda — um pais oprimido e perigoso — fez parte integrante de seu ambiente intelectual. O seu rela- cionamento para com a Irlanda fez com que fosse impossivel para ele dar, como outros 14 Edmund Burke ingleses, uas respostas tipicas aos acontecimentos iniciais da Revolugad: a de aprova- 40 a algo que parecia uma feforma anticatélica e a de que “isso ndo pode Ocorrer aqui.” “Aqui”, para Burke significava ndo somente a Inglaterra, mas também a Irlanda, dessa forma, para ele, a revolucdo era algo totalmente possivel. Isso explica a rapidez da resposta de Burke, j4 que ele foi o primeiro homem de importancia na Inglaterra a denunciar 0 perigo que dentro de pouco tempo seria a grande preocupacao dos senho- tes proprietarios. Isso explica a sensibilidade de Burke, sua intuicdo para detectar o perigo; mas ndo explica, entretanto, a intensidade de sua paixdo contra-revolucipnéria, Ele nao foi, pelos padroes da época, um sénhor proprietério, apesar de ele ter procura- do manter um certo padrao. As acusagGes de que suas atitudes e escritos foram preme- ditados, buscando suborno e uma pensdo futura nZo podem ser aceitas.*? Seu relacio- mento com a oligarquia Whig era real, mas ndo emocional. Burke, na época da compo- sigdo das Reflexes, jé estava idoso, desapontado, sobrecarregado de trabalho e estafado com as enormes complexidades dos trabalhos com o impeachment de Warren Hastings. De um homem nessa situagdo, consciente do perigo na Franga, pode-se esperar ta0-so- mente, a prudéncia da adverténcia, nada mais. Apesar disso, de onde surge a tremenda forga emocional que animou néo somente aquela obra de nome enganoso ~ As Refle- x6es ~ mas também todos os seus escritos sobre a Revolugao, incluida a quarta “Carta sobre uma Paz Regicida”, deixada incompleta em virtude de sua morte? Uma pergunta dessa natureza, em relagdo tanto a um vivo como a um morto, nao pode ser respondida com certeza. Gostaria de oferecer, entretanto, uma resposta con- juntural que me parece estar de acordo com o que sabemos da vida e dos escritos de Burke. Nos seus escritos contra-revoluciondrios, o escritor estava liberando parcialmen- te, e de uma forma permissivel, a parte revolucionsria sublimada de sua propria perso- nalidade. Os seus escritos, que parecem ser superficialmente uma defesa total da ordem estabelecida, constituem em um de seus aspectos — e isso para Burke nfo era de peque- na importancia — um forte ataque contra a ordem estabelecida na sua terra natural e contra o sistema de idéias dominante na propria Inglaterra. A ordem estabelecida na Irlanda era a supremacia protestante, a supremacia lega- lizada da minoria protestante sobre a maioria catdlica. Essa supremacia continuou nas ordens revoluciondrias de 1688 ¢ dinda hoje € comemorada em Belfast como a origem gloriosa da subordinagia permanente dos catdlicos romanos: Burke, como-um Whig, necessasiamente-aderiu aos princ{pios da Revotuyao Gloriosa, tendo ou nio razoes de interesse particular levado esse aventureiro irlandés a aderir 4 causa Whig. E claro que lealdades pessoais, habitos e interesses intelectuais — assuntos que Burke nunca separou radicalmente — logo levaram-no a aderir aos Whigs como uma corpora¢éo. Mas se Burke como Whig admirava, pelo menos na teoria, a Revolucdo Gloriosa, o mesmo Burke, j4 como irlandés com lagos emocionais estreitos com 0 povo conquistado, de- testava aquela supremacia protestante, que aquela Revolucdo tinha imposto ao povo Jo seu pais. Esse 6dio aparece escondido, nos seus primeiros escritos, por uma “veia politica bem clara”, entretanto, ele se torna evidente, e mesmo violento, nos escritos nais livres dos seus tltimos anos. “Acredito que dificilmente pudesse exagerar o male- Reflexdes sobre a Revoluggo em Franca 15 ficio dos principios da supremacia protestante naquilo que ela se refere a Irlanda...”° “A_palavra protestante é 0 charme que aprisiona nos calabougos da servidao trés mi- Ihdes do nosso povo””.. A visdo de Burke em relacdo a historia irlandesa, e seus sentimentos para com ela, se tornam evidentes em uma memoravel carta, que ndo foi terminada, escrita a seu filho, Richard, em 1792. “Se as classes dominantes na Irlanda fossem mais inteligen- tes”, ele escreve, “no enfatizariam a origem de suas propriedades confiscadas”. “Elas no despertariam de um sono trangiiilo nenhum Samuel para perguntar-lhe por qual ato de um monarca arbitrério, por qual argiigdo de um tribunal corrupto € testemunhas torturadas, por qual meio ficticio foram destitusdas inteiras tribos despro- tegidas e seus chefes (sic). Elas ndo chamariam os fantasmas das ruinas dos castelos e igrejas para dizer-lhes que as propriedades da velha nobreza irlandesa seriam confisca- das se tentassem incentivar o estabelecimento de uma legislatura irlandesa, se ten- tassem formar um exército de voluntdrios sem permissdo especial da Coroa em fa- vor dessa independéncia. Eles ndo chamariam esses fantasmas para dizer-lhes qual © ato do Parlamento inglés que, imposto a dois reis relutantes, fez com que as terras de seu pais fossem postas 4 venda em qualquer loja de Londres de uma forma vergonhosa, divididas em pedagos para pagar os soldados mercendrios de um usurpador regicida. Eles no teriam tanto orgulho dos titulos adquiridos sob Cromwell, pessoa que, a0 mesmo tempo que massacrava uma rebelido irlandesa contra a autoridade soberana do Parla- mento inglés, tinha, ele proprio, se rebelado contra esse mesmo Parlamento, cuja sobe- rania ele, assim como a nacdo irlandesa, acreditavam plena. A nagao irlandesa poderia rebelar-se contra esse Parlamento ou poderia rebelar-se contra o Rei que foi vitima tanto do Parlamento como de Cromwell, enviado para sub- julgar e confiscar a nagdo irlandesa, a quem ambos serviam(S? Um irlandés, se realmente tivesse cometido o crime de rebeliao, teria ndo somen- te se arruinado como seus filhos e netos até a quinta e sexta geracdo.” _O contraste entre essa explosdo apaixonada e as referéncias anteriores, discursos pUblicos sobre a harmonia serena da relagdo entre a Irlanda e a Gra-Bretanha € prova da tensdo que sempre existiu entre o perfil publico de Burke — parte téo importante Nos seus sentimentos — e seu relacionamento em relagdo a seu povo e a seu pais.°* Essa tensdo foi relaxada pela Revolugdo Francesa e especificamente pela reagao do Dr. Price € seus amigos, que, a0 colocarem a Revolugdo Francesa na mesma linha da inglesa, relembravam a Burke qudo revolucionaria, qudo anticat6lica e, para elé, qua atienada tinha sido a Revolugao Inglesa.™ Essa visdo desconcertante tinha de ser exorcizadae a maioria dos argumentos — e a parte mais forcada da argumenta¢io — tanto das Re- flexdes como do “Appeal from the New to the old Whigs” consiste em uma tentativa de mostrar que a Revolugfo Inglesa, diferentemente da francesa, nao tinha sido realmente uma revolucdo — uma tentativa que podemos achar bem sucedida se esquecermos as contribuig6es dos contemporaneos de Henrique VIII e Oliver Cromwell. Mas o drama de Burke em relago 4 Revolugdo e ao seu poder advém da participagdo de duas perso- nagens. E como se as palavras e as agdes de Price e seus amigos tivessem acordado, naquele idoso e racional Whig, um jacobita escondido:*> — 16 Edmund Burke Em relagdo a Inglaterra e a Europa essa posi¢ao “Jacobita” é obviamente contra: revoluciondria. Mas, em relagdo a Irlanda, a aspiracdo jacobita € objetivamente revolu- ciondria, na medida em que é uma expresso da vontade do povo conquistado dé-que- brar a serviddo. Assim. no momento em que ele foi mais contra-revolucionario. em relacdo 4 Franga e a Europa, foi inconscientemente subversivo em relagdo a ordem esta- belecida no seu pais de origem. E seus argumentos, dirigidos 4 nobreza e 4 burguesia inglesas. procuraram persuadir essas classes. afirmando que seus interesses estavam liga- dos ao catolicismo na Europa, que o Catolicismo era o bastido da ordem, enquanto que o Protestantismo nas suas formas militantemente anticatdlicas — 0 Protestantismo dos dissidentes e seus simpatizantes — era a fonte do jacobinismo." Esse argumento. se aceito, era em ultima instancia, ruinoso para o sistema de castas vigente na Irlanda, para o qual a doutrina de que a lealdade necessitava um antipapismo latente era funda- mental. O argumento foi aceito. no seu aspecto pré-catdlico, apesar de bem mais tarde do que Burke desejava, E certo que as palavras de Burke tinham um peso especifico naquelas classes as quais elas se dirigiam e que tiveram uma parte importante na evolu- go da politica britinica na diregdo por ele desejada.*” A “Lei de abrandamento em relagdo aos catolicos” de 1793 — concedendo a franquia— e €m 1795 a fundacao de Maynooth — um semindrio catélico com apoio oficial — foram importantes etapas (nessa direcdo. $8 Em relagdo 4 Unido, a supremacia protestante foi progressivamente Wiminuida, exceto em uma regido. o Ulster Oriental. onde tinha uma forte base popu- lar. Do ponto de vista de um membro tipico da classe dominante na Irlanda dos dias de Burke, esses eram desenvolvimentos revolucionarios, inicialmente contrapostos & disseminagao de uma atitude ostensivamente contra-fevoluciondria. Ainda nesse mesmo ponto de vista. 0 espectro do jacobinismo foi inteligentemente usado para reabilitar 0 Papado e os papistas.? Nao ha divida de que a reabilitacao do catolicismo fazia parte das intengdes de Burke, ja que ele explicitamente argumenta nesse sentido, procurando disseminar a preferéncia da “supersti¢do” em detrimento do ateismo. E evidente que isso foi téo-somente parte de suas motivagdes, pois 0 seu ddio pelo jacobismo era real € mesmo obsessivo, no havendo hipétese de que ele teria sido produzido por uma razdo posterior. O seu antijacobinismo. entretanto, ndo pode ser separado do seu senti- mento de indentificagao com os catdlicos, ou seja com suas origens irlandesas. Em uma carta de 1795, ele afirma que o seu “centro politico € o antijacobinis- ino”; que o “primeiro, ultimo e dnico objetivo da Hostilidade jacobina ¢ a religido”; jue a pratica do catolicismo, “como ela se apresenta ¢ a barreira mais eficiente, se ndo a Unica, contra o jacobinismo”; e “que particularmente na Irlanda a religido catélica romana deveria ser olhada com muito respeito e veneragio”.® Aquele Burke que estava revoltado com a perseguigdo jacobina contra os padres e freiras “recalcitrantes” era 0 mesmo Burke que ficara revoltado pelo enforcamento ¢ esquartejamento do “re- belde” Irmao Shechy em 1766.*! Ele nao péde fazer um protesto piiblico, sua resposta foi explicar calmamente a seus amigos irlandeses 0 porqué dele ndo ter podido publi- camente defender um papista irlandés acusado.** Foi possivel, entretanto, para ele defender publicamente a causa dos catélicos franceses, entre 1790 — 1797 e ao apoid-los, indiretamente estava procurando presti- giar sua familia e seus conterraneos. Sera, por acaso, irreal acreditar que 0 extraordind- Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga 17 rio fluir de uma elogiiéncia controlada mas passional que comeca com as Reflexdes seja a liberacdo de uma indigna¢do intima longamente contida por uma atitude politica de prudéncia? ‘A importancia da nacionalidade de Burke-em. relago a seus escritos sobre a Revolugdo na Franga tem sido, acredito, freqientemente subestimado ou amente compreendido. Essa tendéncia foi incentivada pela necessidade de classificagao: “Burke falando sobre a Irlanda” é encarado de forma diferente do que “Burke falan- do sobre a Franga”, ou “Burke falando sobre a América”. Apesar de como Yeats mos- trou, ser sempre 0 mesmo Burke. Burke nao foi um homem que fizesse separagGes ri- gidas das coisas, e podemos estar certos de que os sentimentos e idéias — que também no foram compartimentos separados — do homem que escreveu para Sir Hercules Langrishe sobre a Irlanda so idénticos aos daquele que escreveu para M. de Pont sobre a Franga, A tendéncia ao esquecimento da importancia da nacionalidade de Burke é tam- bém encorajada por outros fatores. Entres eles se incluem a impressdo geral de que Burke é anglo-irlandés e que pertence a tradicdo protestante®. De fato, ndo hd, nada “inglés” naquilo que sabemos sobre ele ou seus lagos familiares — pelo menos nos seus iltimos escritos que sio aqueles que nos interessam — muito menos na designaco “protestante”. Finalmente, algumas pessoas que ficaram impressionadas com os escritos de Burke sobre a Revolucdo Francesa ignoraram o fator irlandés, provavelmente em de- corréncia da convicgdo de que, em compara¢ao com os importante temas tratados nas “Reflexdes”, suas preocupagdes com a Irlanda foram triviais e provincianas. Como uma argumentagdo genérica ela é defensavel, apesar de, em relacdo a Burke, ser incon- gruente. A situaco irlandesa é de pequena importancia se comparada com a grande Revolugdo, mas foi a situacdo irlandesa que gerou Edmund Burke e a Irlanda e 0 jaco- binismo constituiram-se em preocupagdes freqientes nos seus tiltimos sofridos anos. O autor das “Reflexdes sobre a Revolugdo em Franca” escreveu numa roupagem. de. inglés — 0 que provocou tanta confuso — mas a sua esséncia, a sua concepeo era a de um irlandés. 7 A interpretagdo a tada tenta dar uma explicagdo para uma questo intrigante: a do estilo of estilos de Burky. Burke nos seus escritos sobre a Revolugao em Franga apresenta/tréspstilos basicos, que podem ser combinados em varias propor- ges. De inicio, aquele que se poderia chamar de estilo Whig: racional, perspicaz, comercial. Esse foi o estilo basico de seus discursos e escritos sobre a América e na primeira parte das Reflexdes, embora no seja aquele da maioria das passagens fre- quentemente citadas. Era um discurso perfeitamente adaptado as suas finalidades, ow seja, a de convencer pessoas que tinham muito a perder, que algumas politicas, nto outras, estavam de acordo com os seus interesses. Foi com essa énfase que ele advertiu os Lordes Whigs que © confisco das propriedades da Igreja na Franca — um desejo que muitos ndo escondiam em decorréncia de principios de “Reforma” ou “Iluminismo” constitufa uma ameaga clara a sobrevivéncia econémica da sua classe social: 18 Edmund Burke “A minha maior preocupagdo é que se chegue na Inglaterra a considerar 0 confisco como um direito do Estado em prover-se de recursos ou que certas categorias de cidadaos sejam levadas a tomar outras como objeto de pilhagem... As revolugGes sio favordveis ao confisco, e é impossfvel saber sob que nomes odiosos os préximos confis- cos serfo autorizados. Estou certo de que os princfpios vigentes na Franga sdo des- tinados aplicagZo em todo o pafs, a um grande namero de individuos e a clas- ses inteiras, que imaginam que sua calma indoléncia é a garantia de sua seguranga. Nada mais fécil que tomar a indoléncia dos proprietérios como inutilidade, e, depois disso, transformar tal inutilidade em incapacidade de possuir seus bens”. (Refle- x@es). E muito improvavel que, ao ler essa passagem, qualquer proprietério Whig nfo tenha diminufdo seu apoio as causas antipapistas. O seu Segundo estilo poderd ser chamado de, “jacobita’7: gongérico e politico. O mais notdvel exemplo-désse estilo nas Reflexdes é 0 famoso trecho sobre a Rainha, que muitos foram levados a acreditar como sendo um exemplo tfpico do estilo de Burke. Apesar de ser uma das suas formas de estilo, ele s6 a utiliza raramente.* Aqueles que lem essa passagem isoladamente, perdem grande parte de sua forca, que provém da mudanc¢a de tom, uma quebra emocional dentro de um quadro racional. Na medida em que se estd ciente dessa carga emocional subentendida, até a parte mais prosaica da argumentagdo adquire uma sonoridade formidavel. Qcterceiro estilo, de Burke é uma forma peculiar de feroz ironig. A Ironia é uma marca caracterfstica da literatura irlandesa, j4 esclareci em outro estudo® que o caré- ter irlandés, com seus contrastes marcantes entre ilusdo e realidade, é muito favordvel a0 desenvolvimento dessa forma de expresso. Para a nossa interpretagdo de Burke, é preciso tdo-somente ter em mente que 0 atrito entre o “outer ego Whi jacobita” era em si mesmo irdnico e fértil naquela agressividade que é a forga motriz da ironia. A ironia de Burke, nos seus escritos sobre a Revolug4o Francesa,é mais agres- siva do que evasiva, j4 que ele se encontrava em uma posigdo de ataque. A sua ironia, entretanto, é mais evasiva do que se poderia imaginar, na medida em que seu sarcasmo feroz, dirigido abertamente aos apologistas da Revolugdo Francesa, se apresenta como uma critica disfarcada contra a cultura protestante dominante na qual ele estava apa- rentemente assimilado. ——>o Nas Reflexdes, a ironia de Burke é subentendida, aprarecendo ocasionalmente em certas passagens: “‘aquele argumento servir4, como um porto para sustenté-lo...” “O Rei foi levado a declarar que o Delfim deveria ser educado de conformidade com a sua situagdo. Se ele deve se ajustar a sua condig4o, ele nfo deverd ter nenhuma educagao”. Nos seus escritos posteriores sobre a Revolugdo — escritos nfo resguardados, mas amar- gos, indignados, triunfantes ~ sua ironia aparece em explosdes conscientes. A sua fa- mosa Carta a um Lorde Nobre (1796) — contra o Duque de Bedford, que se ops a soncesséo de uma penso a Burke — é um exercicio em ironia que impressionou Karl Marx, com muita razo. A ironia de Burke nunca é discreta, as vezes chega a se aproxi- nar do humor da “Camara dos Comuns”, que, por sua vez, € parecido com o humor de am colegial\ inas a sua rudeza ¢ freqiientemente transfigurada em uma combinagdo Je prazer, fantasia e hipérboles irlandesas, bem ao gosto de Burke. Duas passagens Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga 9 sobre os gatos valem a pena serem citadas: a primeira é extraida da Carta a@ um Lorde Nobre e se refere a forma pela qual os revoluciondrios parisienses olham seus simpati- zantes aristocréticos ingleses, como o Duque de Bedford: “Pouco importa o que Sua Graga pensa de si mesmo, pois eles o olham ¢ a tudo aquilo que Ihe pertence com a mesma atengdo que tém para com os bigodes daquele pequeno animal de rabo com- prido que por muito tempo tem sido um jogo para filésofos sisudos, reservados, pér- fidos, narigudos, com patas macias e olhos vivos, que caminham com duas ou quatro A segunda passagem extraida da primeira das Cartas sobre uma Paz Regicida se refere a um argumento, utilizado pelos defensores de uma paz com a Franca ( em 1796), que um acordo tinha sido concluido com autoridades afamadas, os senhores ile- gais de Argel. “Sera que os Senhores, que defendem esse argumento, nao tém idéia do comportamento diverso que se deve ter face a um mesmo mal quando estd em situa- des diferentes? Eu posso ver, sem medo, um tigre nacional ou real em volta de Pegu. Posso olhd-lo, com uma leve curiosidade, como um prisioneiro na torre. Mas se, por meio de um habeas-corpus ou qualquer outro instrumento, ele aparecesse na entrada da Casa dos Comuns e se sua porta estivesse aberta, seria prudente que procurasse uma saida pela janela dos fundos. Eu certamente teria mais receio de um gato selvagem no meu quarto do que de todos os ledes que rosnam nos desertos da Argélia. Mas, no nosso caso, € 0 gato que estd a distincia, e os ledes e os tigres que esto na nossa ante-sala. Argel ndo esta perto; Argel ndo € poderosa; Argel ndo € nossa vizinha; Argel ndo esta doente. Argel, independentemente do que seja, é uma velha criagdo e temos muito bons dados para calcular todos os males que dela provém. Quando eu vir Argel trans- ferida para Calais, ai, entdo, eu direi o que penso sobre isso” $# Dos trés estilos que foram por nés distingiiidos — 0 Whig, 0 “jacobita” e o irénico — s6 0 primeiro é encontrado, com relativa freqiiéncia, no seu estado puro, que forma a matéria-prima das Reflexées. O estilo “‘jacobita” na sua forma pura aparece muito raramente: a passagem sobre a “Rainha” nas Reflexdes e, nas “Cartas sobre uma Paz Regicida”, a passagem sobre “‘o tumulo da monarquia assassinada” — citada no inicio dessa introdugao — sfo os dois exemplos tipicos desse estilo. Quando o tom jé ficou claro, entretanto, Burke pode evocé-lo de novo com a parciménia de uma ressal- va. “E uma pena que Cloots no tenha tido uma suspensfo temporaria de sua sen- tenga de ser guilhotinado até que ele pudesse completar sua obra! Mas aquela maquina funcionou antes da cortina se fechar sobre a dignidade da terra.” Na maioria dos mais importantes trechos das Reflexdes, Burke utiliza um esti- lo intermediério entre 0 Whig e 0 “jacobita” — mais elevado que o primeiro e menos teatral que o segundo — um estilo sério e grandioso, comum a um clérigo Tory. Esse © tom da famosa argumentagdo que faz a apologia do principio da heranca ao assimilé- lo & ordem natural, da defesa da desigualdade na propriedade, da teoria da continui- dade e da parceria — “uma parceria, uma sociedade néo somente entre vivos, mas tam- bém entre .0s vivos, os mortos ¢ aqueles que haverdo de nascer”. E nesse meio-campo que Burke esté mais seguro; essa 6 a forma que harmoniza o Whig e o “jacobita” 20 Edmund Burke dentro dele; esse é, também, o tom no qual, com a maior autoridade, ele alcanga a pla- téia por ele visada — a8 proprietérios fundidrios da Inglaterra, e a’classe abastada de um modo geral. Essas palavras dao uma grandiosidade, uma gravidade, uma mistica 4 defe- sa dos seus interesses. Elas preparam o animo ¢ 0 comportamento do conservadorismo e do liberal-conservadorismo ingleses para o século XIX. Na medida €m que a8 bases do “status quo” foram téo bem definidas e defendidas, a insinuagdo do defensor jacobita deve ter sido mais agradével do que odiosa. Ela escondia, de uma certa forma, o pathos € 0 encantamento de uma causa perdida, causa essa que era ardorosamente defendida por aqueles a quem Burke se dirigia. Ao mesmo tempo, a aceitagao desse pathos e en- cantamento de uma certa forma reabilitou a mais irremediavelmente perdida das causas britanicas. O catolicismo romano desenvolve o apelo do romantico, em uma época na qual essa forma de apelo est4 comegando a tornar-se socialmente relevante. Burke tem um outro estilo com caracteristicas situadas entre 0 irdnico ¢ 0 Whig, da mesma forma pela qual seu estilo sério e grandioso se situa entre o Whig e o “jacobita”. Essa segunda caracteristica é aquela dos seus aforismos e epigramas. O senhor do estilo retumbante também o é do conciso. Os escritos sobre a Revolugao sao ricos naquelas generalidades incisivas e memordveis com as quais o século XVIII enri- queceu nossa cultura. O epigrama de Burke, entretanto, tem uma caragteristica parti- cular, j4 que nas suas maos essa forma de raciocinio ¢ dirigida contra a presungao inte- lectual: “a sabedoria ndo € 0 corredor mais eficiente da loucura”, “nenhuma relagdo fria € um cidaddo ardoroso”, “. ..enquanto uma pessoa irrita a natureza contra si, ela estd imprudentemente confiando no dever”™. Essas nfo so epifanias isoladas, elas tém um significado social. A presungao intelectual — ou autoconfianga — é a moral do revolucionério, que o torna apto a por em questdo a ordem estabelecida na sociedade, no Estado, na Igreja, na Famflia. Essa é a forma pela qual a habilidade se aproxima da propriedade. Ao utilizar seu génio intelectual para por em questo os apelos do intelectual, Burke esté exercendo uma dupla funao-Ele serve aos interesses da classe proprietaria e adqui- Te, a sua gratidfo. E, a0 mesmo tempo, ele reabilita a religido e especificamente — “por meios indiretos e de uma forma discreta — aquele tipo de religifo que durante o século XVIII esteve mais exposto aos ataques diretos da Razdo. E a forma pela qual ele 0 faz, nos mostra que possui a qualidade que ele procura questionar. Um racionalista radical, procurando interpretar a opinigo de Edmund Burke sobre a importancia da inteligéncia j4 percebe de antem‘o, pelo tom do estilo de Burke, que sua interpretagdo sera por si s6 ridicula. E importante distinguir, na prosa de Burke, essas varias maneiras e combinagdes de estilo.”" Mas a sua graga-e forca esto melhor apresentadas na flutuagdo lirica na qual ele se move de uma forma a outra e de um nivel de intensidade a outro. Ele pode variar da injuria e da irdnia até ao mais alto grau da ternura romantica — como na pas- sagem sobre a Rainha. E por um outro lado ele mistura em uma mesma frase a ternura campestre com a ironia radical: “Todos aqueles riachos trangiiilos que irrigam uma campina silvestre, compacta, mas nfo infértil se perdem na amplidao sem limites, ocea- no improdutivo da filantropia homicida da Franga.””” Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga a Transigdes abruptas de estilo estéo entre as formas de recursos tradicionais da oratoria e da advocacia: Burke conhecia Cicero.”? Desse modo, ele utilizou a0 maximo os recursos da oratéria tradicional — um repertério de malicias apesar de seiis €féitos terem sido tnicos e sem precedentes. Nenhum outro orador ou escritor politico, antes ou depois dele, teve essa combinagao de qualidades: seu poder de articular as emogées, sua percepcdo instrutiva das forgas sociais, sua capacidade de argumentacdo analitica, sua ternura, fantasia, sabedoria e poder de combind-las, por meio de um controle total sobre os recursos da lingua, buscando atingir fins claramente escolhidos e apaixonada- mente desejados, A riqueza e a variedade de estilo das Reflexdes encantaram, logo de inicio, alguns e inquietaram outros. As Reflexdes so dificeis de serem classificadas e para alguns isso é um escandalo, O titulo do trabalho nao se harmoniza com o seu tom, que € apaixonado e, por vezes, brutal. O trabalho come¢a como uma carta, mas termina como uma mistura de tratado, panfleto e discurso. Muito antes de sua publicacdo, criticas ji tinham sido feitas 4 sua forma. Philip Francis, que trabalhou com Burke no processo de impeachment de Warren Hastings, achou a primeira parte das Reflexdes que Ihe tinha sido encaminhada, “muito sem coordenagao.”"* Na medida em que Burke buscava “corrigir, instruir outra NacZo” e apelava para “toda a Europa” ele deveria escrever “com especial ponderagdo”; “distante de pilhérias, zombarias e sarcas- mo, sobretudo sendo grave, direto e,sério””*. Burke ficou ferido — ao tomar conhecimento da carta de Francis, ele disse “eu nao dormi desde entdo” — mas nfo abalado. “O trabalho que vocé acha sem coordena- ¢80, eu acredito que também o seja. Eu nunca pretendi que fosse de outra forma...” ‘Ao receber a recém-editada Reflexdes, Francis foi ainda mais severo, de uma manei- ra ambigua que Burke deve ter achado ainda mais ofensiva do que uma condenagdo clara: “Eu gostaria que vocé me deixasse ensinarhe inglés. ...Por que vocé ndo deixa ser persuadido de que a polidez pode ser um instrumento da preservagao? Eu ainda nao consegui ler mais do que um tergo do seu livro. Eu devo apreciélo devagar, o seu saber é extremo, o vinho é muito rico, eu ndo consigo tomar um gole dele.””” Como muitos criticos estilisticos, Francis nao gostava da forma nem do con- tetido. Alguns outros, a quem, também, a substancia ndo era do agrado, tiveram maior percepgao. Um critico da época, Sir James Mackintosh viu imediatamente que aquela forma, desordenada na aparéncia, de fato multiplicava a forga do argumento de Burke. “Ble pode encobrir a mais infame retirada com uma brilhante alusdo. Ele pode apresentar seus argumentos com incrivel dominio quando necessério. Ele consegue escapar de uma posicdo insustentavel com uma declamagdo espléndida. Ele consegue impregnar a comunicagdo mais reticente com ternura e fazer desaparecer um grupo de silogismos com uma zombaria. Abstraido de todas as leis do método vulgar, ele conse- gue fazer com que um grupo de horrores magnificos fagam uma Tenida Hos nossos cora- 22 Edmund Burke s6es, através da qual a mais indisciplinada turba de argumentos pode entrar em tri- unfo,”” Francis com a sua “Certeza” ¢ ““Educagdo”, nfo conseguiu ver o lado apontado por Mackintosh, que, sendo o mais perspicaz critico de Burke, foi o primeiro a definir —~ logo em 1791 -- a real caracteristica das Reflexes. “E um manifesto da contra-revolugao...” / As observagées de Mackintosh sobre o método de Burke, e sua definigao sobre 0 caréter da obra, mostram Burke como sendo, antes de tudo, um propagandista. Apesar da ressalva “antes de tudo” — que comentaremos adiante — nfo ha duvida de que Burke tenha sido um propagandista consciente. Ele apresenta certas caracteristicas de ter sido, realmente, o primeiro propagandista moderno, ou seja, o primeiro a ter cons- ciéncia da necessidade de um esforgo organizado, adequadamente financiado e refor- ado pela “agdo estatal’*”* com vistas a moldar a opinido publica em questées ideolé- gicas e de politica internacional. Ele foi o primeiro, também, a procurar organizar um tal esforgo.” A sua originalidade, entretanto, ndo deve ser exagerada, pois desde a Reforma e a Contra-Reforma que a Europa Ocidental esteve inundada de propaganda, tendo sido o século XVIII o apogeu dos panfletérios. A originalidade de Burke nao foi a de se engajar na propaganda, mas em pensar seriamente sobre sua natureza, seu poder a melhor forma de utilizé-la. Ele estava bem consciente do papel desempenhado pelas propagandas, inclusive a anti-religiosa, de Voltaire e seus amigos na derrubada do ancien régime e sobre a necessidade de um contra-ataque organizado, O tratamento que Burke dispensa a esse assunto nas Reflexes: comecando com “junto com os inte- esses, desenvolve-se um novo tipo de homem...” “O homem politico das cartas”® tem um desenvolvimento maior na segunda “Carta sobre uma Paz Regicida”. “A cor- respondéncia do mundo mercantil, o interc4mbio literdrio entre as academias e, acima de tudo, a empresa controlada pelas classes médias se tornaram efervescentes por toda a parte.®? A imprensa tornou cada governo, na sua esséncia, democratico. Sem ela os primeiros momentos da Revolugdo nao teriam, talvez, existido”. Burke ficou aborrecido com a falta de interesse entre os aristocratas franceses refugiados em relagdo a propaganda, Em janeiro de 1791, ele escreveu para um dos refugiados, buscando algumas informagoes — detalhes sobre o sistema francés de pro- priedade fundidria que “poderiam ser uteis para o meu procedimento sistematico de convencimento ptiblico em seu favor, que gostaria que os nobres franceses colaboras- sem sob a diregdo de ingleses justos”.® Burke continuou a incentivar a idéia, mas foi desencorajado pela aparente inércia da nobreza francesa, comparando com a atividade de seus oponentes... “Os emissarios da usurpagdo esto aqui muito ativos em difundir histérias que levam a alienago publica desse pais em relagfo aos sofredores. Nenhum refugiado francés tem inteligéncia ou espirito suficiente para contradizé-las”.** Ele procura mostrar a necessidade dos refugiados franceses levantarem fundos para essa causa: “Se a avareza deles ou sua dissipagdo valem mais do que a honra e a seguranga deles, entdo sua causa é totalmente deplordvel.”® Dessa forma, Burke estava adiantado 4 época que defendia. Ficou, entretanto, t8o-somente na condugfo da propaganda efetiva da contra-revoluggo. Nos seus pré- Reflexdes sobre a Revolugdo em Franca 23 prios escritos ele foi, entre outras coisas, um propagandista consciente. Ele utilizou uma linguagem emotiva, como uma politica deliberada. Isso, entretanto, ndo representa- va para ele nada de novo, pois como politico ele tinha consciéncia do valor da violéncia verbal. Antes da ecloséo da Revolugo Francesa, quando seus interesses estavam volta- dos para outros assuntos, ele escreveu para um colega da oposi¢fo, sugerindo que se a oposi¢do realmente tinha a intencdo de defender seus principios “deveria mudar seu tom calmo de argumentagdo que efetivamente nao se coadunava com interesses tio grandes e importantes... estilo tao diferente daquele perseguido por Lord North.”87 Dois anos apés, enquanto do processo de impeachment de Warren Hastings, ele desenvolveu a sua teoria da violéncia verbal, ao rebater a sugestao do Ministro Thurlow de que “o método pacifico de inquérito” é a melhor forma de aproximagao: “o méto- do pacifico de inquérito é uma forma muito calma de perdermos 0 nosso objeto, € uma forma bem certa de encontrar muito pouca calma por parte de nossos adversérios. Sermos violentos é a unica forma deles serem razoaveis”. Ele se tornou incrivelmente “violento” quando “os grandes e importantes inte- resses” da reaco 4 Revolugfo Francesa apareceram: as Reflexdes comparadas com a tltima Carta sobre uma Paz Regicida aparenta ser um modelo da “forma pacifica de inquérito”. Em relagdo ao “Apelo dos Novos aos Velhos Whigs (1791)” ele se apresen- ta profundamente devotado aquele método tdtico de enfatizar a8 argumentagdes que distingue 0 verdadeiro propagandista do mero crente de uma causa. Ao escrever a seu filho Ricardo e ao mencionar que mesmo 10% do Partido Whig apoiava os princ{pios revoluciondrios franceses, ele comentou: “E de se perguntar por que eurepresento todo um partido como tolerante, e ao tolerar, aprovar esses procedimentos. Deve-se utilizar ao m4ximo sua inatividade e estimuld-los a fazer uma declaracdo piiblica...”** O fato de que Burke escreve como um propagandista consciente e politico prati- co, consciente das provaveis conseqiiéncias imediatas de suas palavras, nfo é freqiiente- mente considerado por seus admiradores, que gostam de olhé-lo como sendo essencial- mente um filésofo politico. A importancia do elemento — propaganda — também nao deve ser exagerada, Ndo ha razo para se descrer da sinceridade da indignagao de Burke, levantada pela descoberta da existéncia de uma certa simpatia inglesa para com a Revolugdo Francesa. Essa indignago aparece claramente, nfo s6 na sua correspon- déncia privada como nos seus escritos publicados. A opinifo, defendida por Marx e por outros, de que isso era tudo farsa, de que ele esfava-simptesmente “pasando por roméntico”® assim como ele ja tinha “passado por liberal”, ndo pode ser seriamente considerada. A premeditagdo aparece nfo ao se disfargar uma emogo que néo existe, mas ao se decidir até que ponto deve-se mostrar ao publico uma emogdo genuinamente sentida. Em certas circunstancias — se os Whigs estivessem no poder, por exemplo, e Burke com eles — dificilmente Burke “teria mostrado-se”. Mas ao decidir expor-se em piiblico, ele inevitavelmente libera forgas que nenhuma premeditacao poderia fazé-lo. Ele entrou na controvérsia como um Whig e termina como 0 {dolo dos Tories. Ele coloca seu amigo Charles James Fox em uma situagdo dificil, como anteriormente tinha feito com Lord North. E praticamente improvavel que esses resultados tenham sido preme- ditados. E mais provavel que Burke nunca tenha imaginado — até que os acontecimen- tos na Franga forneceram o teste critico — qudo profundamente ele estava em desacor- 24 Edmund Burke do com o que era fundamental na filosofia dos ingleses com quem ele tinha se aliado: ingleses, que acreditaram nos principios da Revolugdo Gloriosa e no Iluminismo, e que achavam que esses principios fossem essencialmente os mesmos ou que, pelo menos, tivessem uma origem comum™, uma rejeicdo racional 4 supersticao. ‘Nem mesmo os tories —apesar de admiré-los — pareciam melhores na sua opi- nifo. Eles eram frios e pragméticos, que defendiam uma guerra limitada com a Franca, nao empenhados com a defesa dos princfpios contra-revolucionarios. Os ultimos dias de Burke representam o fim daquele politico pratico: As Cartas sobre uma Paz Regici- da so certamente propaganda, mas uma forma estranha, pessoal e apaixonada de pro- paganda, o extravasamento profético, e até mesmo, da loucura — de um homem isola- do, inconsoladamente abandonado, fraco, mas ainda rejuvenecido pelo seu poder incomparavel de expressar sua fuiria em palavras cuja exuberdncia é até hoje impres- sionante. As Cartas sio uma propaganda viva de um homem 4 beira da morte em favor de uma “longa guerra”,>" uma guerra que, aliés, s6 terminou quase vinte anos depois de sua morte. 9 N&o é surpreendente que no nosso tempo a propaganda contra-revolucionéria contida nos ultimos escritos de Burke tenha sido usada para fins da Guerra Fria. O primeiro a perceber o potencial de Burke para o anticomunismoWo século XX parece ter sido A. V. Dicy, que, em um artigo publicado em 1918, tdo-somente substituiu “Franca” pela “Russia” em algumas das mais ardentes frases de Burke. Foi sé, entre- tanto, com o inicio da Guerra Fria na década de 40 que os trabalhos de Burke passa- ram a ser sistematicamente utilizados para fins anticomunistas e que ele passou a ser encarado e elogiado como um pensador politico. Esse processo teve inicio com a publicagfo em 1949 da “Politica de Burke”, uma antologia que continha uma introdu- ¢40 escrita por Ross Hoffman e Paul Levack. Um grupo de professores ¢ escritores americanos, incluindo um forte elemento catdlico, comegou a exaltar Burke como um grande filésofo polftico e expoente da Lei Nacional, assim como da Ordem estdvel, antevendo a Comunidade do Atlantico.” Os membros dessa escola passaram a desco- nhecer ou mesmo a minimizar o dado propagandista, polémico e pratico de Burke e supervalorizar a importancia e a consisténcia de sua “filosofia”. Eles passaram a atri- buir enorme importancia a duas frases de Hoffman e Levack: “A politica de Burke... estava baseada no reconhecimento da lei universal da razo e da justica provinda de Deus como o fundamento de uma boa sociedade. Ao fazer esse reconhecimento poe fim ao esquema maquiavélico de separagao entre Polftica e Moral...”°°. Peter J. Stan- lis, um dos mais férteis escritores desse grupo, vé o ano de 1949 como o ano da epifa- nia de Burke — como 0 infcio de uma “contra-revolucdo em bases tradicionais”, basea- da na obra de Burke. _ Um artigo de Peter J. Stanlis na Burke Newsletter — da qual Peter J. Stanlis era co-editor — afirmou que ele “nao poderia achar na teoria moderna uma frase que tivesse um efeito maior do que aquela frase de aspecto to simples escrita por Hoffman e Levack”™. Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga 25 Apresentar Burke como uma espécie de porta-voz semi-oficial da lei da natu- reza tem 0 efeito de dar a seus escritos uma-autoridade sobre-humana. Duvidar dos argumentos de Burke é um insulto 4 natureza, como Burke, em uma situagdo comple- tamente diferente, afirmou: “A natureza das coisas é, eu admito, um adversério resolu- to”.°5 Um aliado resoluto também. Burke assim como o “aliado resoluto” passaram a ser usados para fins politicos especificos. A Burke Newsletter, que passou a registrar 0 progresso da “contra-revo- lugdo baseada na escola de Burke”, foi, de inicio, publicada como parte da Moderna- ge, um periodo americano de direita.®) “Os escritos de Burke”, segundo o bidgrafo americano de Burke, Carl B. Cone, “é uma parte fundamental do renascimento conser- vador contemporaneo”®”. A utilidade especifica de Burke para os restauradores do conservadorismo ficou bem esclarecida por um dos seus lideres intelectuais, Russell Kirk: “A concepgao de Burke sobre a comunidade das nagdes e sobre a lei natural da necessidade de combinar esforgos contra o fanatismo revoluciondrio se aplica total- mente as circunstancias atuais desse pafs... Burke no esté ultrapassado...”” A América desempenha hoje o papel que a Inglaterra teve nos fins do século XVII, € como os ingleses na época, nds, os americanos, nos tornamos sem 0 querer, defensores da civilizagdo contra os inimigos da justica, da ordem, da liberdade e das tradigdes da civilizagdo. As nossas so obrigagSes imperiais que requerem grandes inte- lectos para sua execugao.* Os escritos de Burke, assim, se tornaram fontes para “grandes intelectos”, prepa- rando-os para as “obrigacdes imperiais”, a eles impostas pela necessidade de combater © “fanatismo revoluciondrio”. Eles fabricaram uma linguagem espléndida e anteceden- tes respeitaveis — nas sombras vulnerdveis da “lei natural” da “ordem, justiga e liberda- de” — para legitimar o imperialismo contra-revolucionério americano e para treinar pessoal para servir a essa politica,® Conservadores mais astutos do que Kirk logo perceberam que Burke nao é um aliado totalmente confidvel. Algumas dessas raz6es esto na Parte II dessa introdugao. E evidente, entretanto, que claramente expostos, os tltimos escritos de Burke, come- gando com as Reflexdes, podem fornecer um grande material para a pregac¢do con- tra-revolucionéria, adaptada aos fins imperiais, Ao fazermos a igualdade jacobino = co- munista — afirmagdo que pode ser feita sem nos afastarmos dos principios de hostilida- de de Burke ao jacobinismo —, poderemos deduzir dos ultimos escritos de Burke um repert6rio de méximas e apoio 4 politica externa — e também a outros setores — que ficou associada a John Foster Dulles e que até hoje exerce uma forte influéncia na acdo dos Estados Unidos. Para Burke, assim como para Dulles, a doutrina revoluciondria é a expresso do mal encarnado: “Aqueles que fizeram o 14 de julho so capazes de fazer qualquer mal. Eles no cometem crimes para obter seus fins, mas fabricam fins para cometerem cri- mes. Nao é a necessidade, mas a sua natureza que os leva a isso”.!°° Esse mal tem uma posi¢do central e estratégica que deve ser deslocada: “Esse mal no coragdo da Europa deve ser extirpado desse centro ou nenhum lugar em torno dele estar livre dos erros 26 Edmund Burke que se irradiam dele, e que se espalhardo de circulo em circulo, apesar das pequenas precaugSes defensivas que possam ser empregadas contra ele,”!°! E uma empresa for- midavel — a ser combatida com forcas armadas — para a subversdo de todos os valores: “Agora temos nossas armas em mdos; temos os meios de opor o sentido, a coragem, os recursos da Inglaterra ao mdximo, da forma mais astuta,na melhor combinagao e com a maior forga jé feita desde o comego do mundo, contra toda propriedade, toda ordem, toda religifo, toda leie toda a real liberdade”.!°? A doutrina malévola, as forgas armadas postas a disposigéo daqueles que professam. a doutrina e seus simpatizantes em outros paises, constituem uma ameca que deve ser encarada pela forga: “N6s estamos em guerra contra um sistema que, na sua esséncia, & inimigo de todos os Governos, que faz a paz ou a guerra, se essas contribuirem para a sua subversdo. E contra uma doutrina armada que estamos em guerra. Ela tem, por sua esséncia, apelo a opinido, ao interesse, ao entusiasmo, em todo pats. Para nds é um colosso que transpde nosso canal. Tem um pé em um solo estrangeiro e outro no brita- nico. Como essa vantagem, e se ela puder existir, prevalecerd”.!°> A luta contra uma doutrina armada é uma guerra religiosa, uma nova cruza- da.1 Ela deve ser enfrentada no somente pelas armas no estrangeiro como pela re- pressdo interna; os “‘juizes devem proibir a circulacdo de livros traigoeiros, de federa- gGes facciosas, de qualquer comunicagdo com povos fracos e desesperados em outros paises.,.!08 A teoria do dominé do Presidente Eisenhower ~ que ainda inspira a politica americana no Extremo Oriente.— teve um defensor em Burke: “Se a Espanha cai, Na- poles rapidamente a acompanhard. A Prussia é quase certo... A Itdlia esté dividida; a Suiga Jacobinizada, estou certo, completamente.”1 A guerra que ele defende contra a doutrina armada é total, violenta, ideol6gica. Ele prevé, desde logo, que uma guerra dessa espécie serd mais violenta do que qualquer guerra passada e aceita essa necessidade: “A guerra civilizada ndo pode ser praticada; nem os franceses que esto no poder podem esperd-la. Eles, cuja politica conhecida é de assassinar todo dao suspeito de ndo concordar com a tirania deles e de corrom- per as tropas dos inimigos, ndo devem esperar mudanga na nossa atitude hostil. Toda guerra, que ndo seja uma batalha, seré uma execugfo militar. Isso provocar4 uma reta- liagdo de nossa parte, e toda retaliag4o produzird uma revanche. As crueldades da guer- ta, de ambos 08 lados, serao claras. A nova escola da barbérie, instalada em Paris, tendo destrufdo todas as maneiras e princfpios que civilizaram a Europa, também destruird o modo de guerra civilizado, que mais do que qualquer coisa, distinguiu 0 mundo cristéo”.107 Do ponto de vista de Dulles e de Dean Rusk, a desvantagem da pregacdo contra- tevoluciondria de Burke é que ela vai além do que os prudentes contra-revolucionarios modemos julgam praticavel, na medida em que Burke sarcasticamente condena @ idéia daquilo que hoje chamamos “‘contengdo”. Ele nfo acredita que isso seja suficiente contra essa doutrina, é preciso destrui-la no seu centro: “ A Franga € o centro do dep6- sito e da circulagdo de todos aqueles principios perniciosos que se formam em varios Reflexdes sobre a Revoluggo em Franca 7] Estados. Seria uma loucura merecedora de piedade e de pouca valia se pensar em repri- mi-lo em um pais, quando eles sio predominantes 14”.!°8 Se os escritos contra-revoluciondrios de Burke fossem literalmente transpostos para linguagem moderna eles seriam apropriados nfo tanto para a direita moderada mas certamente para as tentativas mais agressivas da reacdo americana. Eles poderiam ser invocados em favor de uma guerra contra a Unido Soviética na década de quarenta. Eles poderiam atualmente também ser aplicados em favor de uma guerra contra a China. 10 Uma tal conclustio deve ser, por si s6, uma adverténcia contra transposigdes sim- plistas. O fato de Burke ter defendido uma guerra contra-revoluciondria contra a Fran- ga ndo permite que seus argumentos sejam legitimamente invocados em favor de uma guerra contra a Russia, China ou qualquer outro pais. Os principios comunistas sio, segundo o ponto de vista de Burke, to detestaveis quanto os principios jacobinos. AS circunstancias, entretanto, s40 completamente opostas e Burke varias vezes recusou recomendar ou apoiar agdes sem ter antes tomado conhecimento em detalhes das cir- cunstancias de cada caso: “As circunstancias (que para alguns ndo tém significado) dfo, na realidade, a cada principio politico seus aspectos diferenciadores e seus efeitos Liltimos. As circunstancias sfo os elementos que do a cada esquema politico ou civil © seu carter benéfico ou malévolo para a humanidade” e acrescenta: “Devo ver com 0s meus proprios olhos, devo, de uma certa forma, tocar com minhas proprias mfos, nfo somente as circunstancias permanentes mas também as momenténeas, antes de po- der propor qualquer tipo de projeto politico. Devo saber 0 poder e as circunstancias para aceitar, executar 0u apoiar. Devo conhecer os meios de corrigir 0 plano, para quan- do os corretivos forem necessdrios. Devo ver as coisas, devo ver os homens”.!°? Nés ndo podemos imaginar qual seria seu conselho se pudesse ver “as coisas” ¢ “os homens” de hoje. Ele certamente aprovaria qualquer a¢4o que lhe parecesse, den- tro das circunstancias, mais apropriada para evitar a difusdo dos principios e do poder comunistas. E inconcebivel, entretanto, que nas atuais circunstancias de uma balanca de terror termunuclear, ele fosse defender uma politica de guerra contra a Uniéo So- viética. E também, improvavel que, no estdgio atual das relagdes entre os varios grupos humanos, ele fosse defender uma guerra contra a China.""° Os seus escritos também nao se aplicam a polftica que aqueles que normalmente o citam com louvor esto aplican- do, ou seja, a conteng4o do comunismo por meio de uma série de intervengdes em pai- ses subdesenvolvidos. Néo é 0 fato de que Burke explicitamente condenou a politica de “contengdo” na sua época,'! que ela teria de ver rejeitada hoje também, pois circunstancias diferentes implicariam conseqiéncias diferentes. Hé algo mais funda- mental na argumentag4o de Burke que reprovaria a politica de contengdo como ela é/ aplicada. Burke distinguia entre movimentos revolucionérios provenientes da “‘devassi. do e da abundancia” e daqueles que surgem “do centro da condigao humana”. Os | 28 Edmund Burke movimentos asidticos que a politica de “contengfio” quer esmagar — como a Frente Nacional de Liberta¢do do Vietnd — dificilmente podem ser encarados como prove- nientes da “devassiddo e da abundancia”. Burke compreendia muito bem os sentimen- tos de um povo conquistado — sentimentos que ele préprio sentia e, apesar da relutan- cia, ele perdoava aquela forma de agGes revolucionérias que aparecem, de inicio, no cam- pesinato desesperado: o terrorismo agrario. Ele também compreendia a forga das leal- dades nacionais e mesmo tribais que s4o, pelo menos, tao importantes quanto os fato- tes ideolégicos para os movimentos revolucionérios de hoje. As implicagGes da politica de contengdo, ou seja, a ascendéncia mundial americana, ndo seriam muito atra para a sua visfo.1"2 Inevitavelmente haverd nessa politica um elemento de ufania, de vangl6ria, que desgostava Burke e sobre o qual ele advertiu os ingleses de sua época: “Ao se tomar precaugdes contra ambigGes, nfo seré de menos se tomar precaugfo con- tra nossa propria ambigdo. Tenho medo de sermos tao terriveis. E ridiculo dizer que no somos homens, e como homens, nés nunca deveriamos desejar a supervalorizagdo de uma forma ou de outra. Poderfamos dizer que nesse momento nfo estarfamos nos engrandecendo? Nés temos o controle de quase todo o comércio do mundo. O nosso Império na India € uma coisa tremenda. Se pudéssemos estar em uma situagdo na qual tivéssemos ndo somente ascendéncia sobre 0 comércio, mas que fossemos capa- zes de, sem o menor controle, assegurar, que 0 comércio de todas as nagGes fosse totalmente dependente do nosso humor, diria que nao estarfamos abusando desse poder impressionante. Mas todas as nagées pensardo que esto abusando desse contro- le. Nao € impossivel que proximamente esse estado de coisas provoque uma alianga contra nés que poderd terminar na nossa ruina.”""9 Essa passagem parece que passou despercebida a Russell Kirk quando ele invocou a autoridade de Burke e a Inglaterra de sua época para legitimar as “obrigagdes impe- riais” americanas de hoje. Burke foi um contra-revolucionério mas nao pode ser facil- mente taxado de imperialista, j4 que ele mostrou um profundo repidio as formas contemporaneas da psicologia imperialista, néo somente em relacdo 4 América, nos seus primeiros estudos — uma América, na época, objeto do imperialismo, e no a sua fonte — mas também em relacao a India e a Irlanda nos seus tiltimos escritos e as impli- cagdes de uma tal psicologia para o proprio poder imperial. Nao se pode legitimamente invocar a autoridade de Burke para apoiar qualquer politica a ser aplicada em circuns- tancias por ele desconhecidas. No caso especifico, ¢ ainda mais inadmissivel querer aplicar seus escritos para legitimar uma politica que contém elementos por ele total- mente repudiados, ou seja, a extensio das obrigagdes imperiais, a repressdo de movi mentos agrdrios espontaneos, a supremacia, a ufania.!* Talvez se pudesse argumentar que a pratica, atualmente, da contra-revolugdo requer aquilo que ele nfo aprovava: a expansao do imperialismo. A realidade moderna, segundo esse argumento, coloca o nticleo central da infecgao revolucionaria fora de controle. Tudo o que pode ser feito é evitar que a infecgdo atinja outras areas. Alguns paises — sobretudo os desenvolvidos, os paises industrializados, Europa Ocidental e Japdo — tém condigées de, por seus proprios meios, evitar o contdgio. Os paises que ndo esto nessa posig&o, as nagdes pobres, sobretudo, no tém condigéio de de- fesa, o que leva a necessidade de um “‘protetorado”, direto ou indireto, das poténcias Reflexes sobre a Revolugdo em Franga 29 contra-revolucionérias sobre eles. Essa presungdo de autoridade € provavelmente cha- mada de “ajuda” ao invés de imperialismo, mas ela contém a esséncia do dominio imperial: a Ultima palavra nao é a do nativo, mas a de um estrangeiro. / $e a contra-revolugdo requer, nas atuais circunstancias, o imperialismo, entdo o pensamento de Burke tal como ele chegou a nés nio seria aplicado hoje, jé que as cir- cunstdncias sfo diferentes daquelas vigentes quando da sua formulacdo. Podemos, entretanto, afirmar que um conservador que teme a expansio desmesurada dos poderes de seu pais — como o Senador Fulbright — pode invocar amparo em Burke com igual validade que os praticantes da conten¢Zo contra-revolucionéria. 1 O modo como um escritor é lido e seus estudos postos em pratica é um assunto de maior importancia do que a forma pela qual ele deveria ser lido ou até que ponto nossas ilagGes prdticas possam ser legitimamente creditadas a ele. Ndo hd diivida de que hoje Burke é lido e admirado basicamente como um conservadoye ym contra-revo- luciondrio, dispontvel para apoiar ¢ legiti comunismo, Nao foi sempre que o Burke encarado como contra-revoluciondrio apareceu como tendo funda- mental importancia. Durante século XIX; ndo s6 os liberais como 0. conservadores apoiaram-se nos seus conceitas."# Aquele etemento “subversivo” em Burke, que sali- entamos em felagdo a Irlanda, amedrontava alguns conservadores do século passado. Morley retrata em um de seus escritos que quando Gladstone estava ponderando sobre a aplicagdo da lei de autonomia local da Irlanda (Home Rule) ele leu Burke e fez algu- mas anotagdes. “Podemos imaginar”, escreve Morley, “como o calor daquela fornalha profunda e encandescente influenciou mais ainda os fins ¢ agilizou as decisées de Glad- stone”. O Duque de Argyll escreveu para dizer que estava muito triste com os escri- tos de Burke: “O seu perfervidum ingenium Scoti no precisa ser tocado com carvao em brasa daquele altar irlandés”."16 Se na relativa estabilidade politica da Inglaterra no século XIX, Burke aparecia como radical € quase revolucionério, em lugares onde as condigdes apresentam reais ameagas revolucionérias aumenta o interesse por Burke no seu aspecto contra-revo- luciondrio. Isso era verdade na Europa do século XIX. O tradutor alemao das Refle- x6es, Friedrich Von Gentz (1768 — 1832) era conselheiro particular de Metternich e principal secretério do Congresso de Viena, e os escritos contra-revolucionérios de Burke, junto com os de Maistre e Bonald — deram a inspiragdo aos Ifderes e propagan- distras da Santa Alianga. Nao € supreendente, dessa forma, que os defensores atuais de uma nova Santa Alianca — de uma policia internacional em uma escala nunca sonhada por Metternich — tentem levantar, nesse aspecto, o interesse pablico por Burke. Esse € 0 significado da famosa “contra-revolugdo na obra de Burke” que tenta liberar o campedo da contra-revolugo daquilo que Peter J. Stanlis chamou “do grande lamagal servo da escola positivista sobre Burke”. Isso significa que 0 complexo Burke que a Inglaterra do século XIX conheceu, o escritor que pode inspirar Gladstone e amedron- tar o Duque de Argyll, passou a ser repudiado em favor de Burke sem contradigdes ou 30 Edmund Burke paradoxos, a pura esséncia do pensamento conservador, para a inspiracdo dos herdeiros intelectuais de Metternich.""” E incontest4vel que aqueles que advogam ou aprovam a contra-revolugéo mo- derna se interessam enérmemente pelas Reflexdes. Mas por que aqueles que se op6em 4 contra-revolugao moderna ¢ ao novo conservadorismo que est entre as mais aceitas expressdes intelectuais devem ler o primeiro manifesto contra-revolucionério moder- no? O fato de que tal questo possa ser levantada evidencia uma fraqueza profunda e consolidada do pensamento esquerdista. O direitista inteligente nfo se pergunta as raz6es para ler Marx ou marxistas. Ele os lé porque as obras sfo importantes e ele esta no lado oposto. Ele aprende, e, por vezes, recebe conselhos; um burgués alemao, por exemplo, aprenderia ao ler Marx e Engels que nio seria inteligente proceder radical- mente a aboli¢So dos vestigios feudais no século XIX. O direitista inteligente faz uso das conclusées marxistas — como geragGes de historiadores burgueses fizeram — mas para 0 seu préprio proveito, como Guderian fez uso de De Gaulle. Ele aprende dos seus adversérios sobre as fraquezas e as forgas de sua posigdo — e também as do outro lado. O intelectual de esquerda, por outro lado, apesar de notaveis excegdes, tem uma grande tendéncia a negligenciar seus adversdrios e a evitar mesmo seus escritos mais influentes. Isso é associado, acredito, com uma outra caracterfstica marcante da es- querda, ou seja, ndo entender ou subestimar as forgas opostas. De fato, a esquerda deve- tia ler as Reflexdes tio atentamente quanto a direita tem lido o Manifesto Comunis- ta. O fato de o manifesto de Burke ter iniciado o primeiro movimento contra-revolu- ciondrio moderno e que ainda € mencionado como apoio para a contra-revolucZo mo- derna deveria ser uma 1azdo suficiente para se estudar esse manifesto com cuidado. O que aqueles que nfo concordam com sua linha de racioc{nio poderiam apren- der ao ler Burke? Nao é, certamente, um sistema de filosofia polftica. Burke, na sua obra, foi sistematicamente assistematico e os varios sistemas denominados “filosofia de Burke”, construfdos por formalistas pedantes, desprovidos dos componentes bombés- ticos de sua ret6rica e as generalidades de sua educacdo, sfo tristes, aborrecidos e sem valor. Nao procuramos, também, em Burke uma andlise da Revoluggo Francesa.Como decorréncia da leitura dos arquivos e dos trabalhos realizados por varios historiadores, sabemos, hoje, ou pelo menos, podemos saber, mais sobre a Revoluco Francesado que qualquer contempordneo da época poderia ter sabido. Mesmo que Burke tivesse sabido mais do que ele aparentou, ainda assim as Reflexdes nfo seriam interessantes como andlise hist6rica porque ndo foi para isso que elas foram escritas, Burke deliberadamen- te rejeitou “a forma pacifica de inquérito”, ele estava disposto a, quando necessério, praticar uma “economia de verdade”. Suas palavras nfo so as de uma anidlise, elas so tipicas de uma persuasfo premeditada. Nao é, entretanto, um esforgo comum de per- suasdo. E, como Burke afirmou, “o tiltimo fruto maduro da mera experiéncia”. A argu- mentagfo explicita de Burke é de menor importancia do que a experiéncia que provo- cou essa afirmagdo, ou seja, um conjunto de sentimentos adquiridos em relagdo as grandes forcas politicas e suas particularidades. A percepgdo das grandes forcas atinge 9 nivel do profético. Durante minhas aulas sobre Burke na Universidade, percebi que os alunos acreditavam que as Reflexdes tivessem sido escritas ao final da Revolugio Reflexdes sobre a Revolug#o em Franga 31 e no na época na qual efetivamente foram escritas, como se os massacres de setembro, a execugdo do Rei e da Rainha, o terror jé tivessem ocorrido, apesar de terem sido, como realmente foram nos escritos, tfo-somente previstos. Essa crenga, entretanto, é fruto nfo somente do desconhecimento do aspecto profético de Burke como também em decorréncia da sua retérica literdria. Ele exagerou o que jé tinha efetivamente ocorrido, mas o fez de uma forma como se eles ainda no tivessem ocorrido. O contras- te é extraordindrio entre os pressdgios sombrios de Burke, em 1790, e o tom dos seus contempordneos pr6-revoluciondrios, Paine e Cloots, que escrevem, nessa mesma épo- ca, para afirmar que o movimento estava findo e que a Revolugdo gloriosa e quase pacifica estava completada. As mudangas e “as varias situagdes novas” que foram previstas por Burke levaram A sentenga de morte de-Paine e Cloots ¢ a propria execugdo de Cloots na guilhotina. Burke nfo somente previu 0 aumento da violéncia e uma guerra, mais sangrenta que todas as outras, mas também previu o surgimento de um déspota militar, o que realmente ocorreu nove anos apés ter escrito, e dois anos apés a sua morte, no 18 de Brumério de 1799. A verdade é que — e esse aspecto é geralmente esquecido pelos admiradores de Burke — essas profecias foram, em grande parte, por si s6 cumpridas. A hostilidade contra a Revolugdo Francesa que Burke deliberadamente procurou incentivar, e a guerra contra a Franca revolucionéria, que Burke persistente- mente pregava, levaram a Revoluc&o a assumir formas mais violentas e criaram a neces- sidade de uma ditadura militar. Isso, entretanto, no diminui 0 cardter de previsio das afirmagdes de Burke. A reacdo estrangeira contra a Revolugdo Francesa e a resposta re- voluciondria a essa reagSo estavam entre os fatores por ele alegados, j4 que suas afirma- ges sobre a natureza da guerra contra-revolucionéria mostravam que ele estava cons- ciente do funcionamento da dialética da violéncia. Ele sabia que haveria dentro da Franga uma utilizagdo da forca patriética do pais contra a invasio programada. “A Franga esté fraca, dividida e convulsionada”, ele escreveu em janeiro de 1791 “mas Deus sabe que, quando se trata de um pais, os invasores poderao descobrir que sua campanha nfo era de dar apoio a um partido, mas de conquistar um Reino”. Ele previu uma “longa guerra”, ele sabia que sua civilizagfo “estava no inicio de uma era de revoltas”. Pois, com o poder de sua inteligéncia e a dimensfo de sua imagi- na¢fo, ele tomou conhecimento das dimensdes daquilo que teve inicio em 1789. Os seus contempordneos acreditavam que ele estava exagerando, e de uma certa forma, estava, mas na medida em que os eventos vieram a comprovar sua previsdo, ficou claro que “‘aqueles que ficaram impassiveis” é que ndo tinham compreendido. A sensibilidade de Burke para os detalhes e para a politica rotineira ndo é menos remarcdvel do que sua sensibilidade para as grandes causas. As duas, entretanto, sfo inter-relacionadas e formam uma intuigdo politica de sensibilidade inigualével. Uma simples observagdo de Burke é, as vezes, mais rica em conselhos polfticos do que todo um tratado de certos analistas abstratos. As Reflexdes so ricas naquilo que ele cha- mou de “os ultimos frutos maduros”. Algumas vezes, seus comentdrios se apresentam como uma investigago do cardter intimo de seus adversérios: “Vocé rird da coeréncia de alguns democratas que, quando esto descontra{dos, tratam as classes mais humil- 32 Edmund Burke des com grande desprezo, ao mesmo tempo em que querem fazé-las depositirias do poder”. Ja algumas vezes, essas investigagdes produzem aforismos como o que se segue sobre os homens de letra e sobre a esquerda: “Os homens de letra, desejosos de ficar em evidéncia, so raramente contrdrios 4 inovagdo”. Algumas vezes é uma generalizacdo, decorrente de uma clara compreensao da realidade politica, como a passagem que se segue. classica definigdo do cardter essenci- almente burgués da Revolugdo Francesa: “A totalidade do poder obtido por essa revo- lugdo ficard nas cidades com os burgueses ¢ com os donos do capital que os lideram™ Exemplos desse tipo poderiam ser multiplicados. mas é to errado transformar as “Reflexdes” em uma antologia como a tentativa de parafrased-las ou sistematizd-las. Elas devem ser lidas como um todo. um perfeito trabalho de arte politica. 12 “Nao hé politico s4bio, que ao ter de tomar uma importante deciso™, escreveu Harold Laski. “ndo procure aclarar suas iddias discutindo com as idéias de Burke”. “As varias posigdes “liberais” de Burke nda devem fazer-nos esquecer que Burke era efe- tivamente. de coracdo, um conservador extremo, que confortou mentes liberais muito mais por seu temperamento generoso e compreensivel que. nas horas importantes, 0 afastava daquele ponto no qual suas convicgdes se sentiam seguras. do que pela marca de sua compreensio”. Esse elogio é retumbante. principalmente porque provém de alguém que esté fora dos circulos conservadores ou liberal-conservadores. Nao acredito, entretanto, que o esforgo de Laski para explicar o porqué da aceitacdo de um “conservador extre- mo” pelas “mentes liberais” tenha sido satisfat6rio. A generosidade e a compaixdo de Burke ndo eram to grandes como procura demonstrar Laski, Ele certamente foi um homem generoso e décil nos seus assuntos particulares e mesmo civis — ele conseguiu muita impopularidade ao se opor a deciséo de por homossexuais no pelourinho — mas na politica ele chegou a ser cruel, j4 que ndo hé nada de compreensivel e generoso ao se pregar uma “longa guerra” — cujo cara- ter destruidor foi por ele constatado além de uma repressdo interna severa. Também ndo € muito claro que ele tenha sido um conservador extremado. E certo que nos seus liltimos dias de vida ele o foi, mas é dificil de se provar que essa seja a situagdo “na qual suas convicgdes se sentiam seguras”. Nao estou plenamente convencido de que ele se sentia bem consigo mesmo: seus contemporaneos ndo o viam dessa forma — eles freqiientemente o chamaram de histérico — e pessoas seguras de si mesma ndo so sempre to ativas como Burke foi. A cadéncia de sua prosa e a durea que envolve 0 século XVIII produziram uma ilusdo, ou seja, olhamos Burke de uma forma mais ama- wdurecida do que realmente ele foi. Seria surpreendente que Burke realmente tivesse sido um “conservador extremo”, jé que ele sempre foi um estrangeiro, originario de um pais cujo povo era oprimido e cujo governo dominante ele sempre procurou atacar, Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga 33 Nao so essas as melhores condigdes para o surgimento de um conservadorismo plena- mente aceitdvel. Mary Wollstonecraft estava com a razdo quando olhava Burke como um homem que “poderia ter sido um revolucionério violento”. Ele nunca se tornou um revoluciondrio, mas a condi¢do de rebelde frustrado o incomodava, sobretudo, em relag&o aos problemas irlandeses. Nao foi o caréter pecu- liar de seu temperamento, mas a peculiaridade de uma situagdo — que chamei de jaco- bita versus Whig — que formou seu conservadorismo. Pode-se também especular que as contradigées da situagdo de Burke enriqueceram sua eloqiiéncia, aumentaram seu alcance, aprofundaram sua sensibilidade, aumentaram sua fantasia e tornaram possivel aquela estranha atrag&o exercida sobre “‘os homens liberais”. Em decorréncia dessa interpretacdo, uma parte do segredo de seu poder de penetrar no desenvolvimento da tevolugdo deriva de uma recalcada simpatia pela revolugdo, combinada com uma per- cepeao intuitiva das possibilidades da propaganda contra-revolucionéria, na medida em que afeta a ordem vigente no seu pais de origem. Isso dé ao seu “conservadorismo extremo” um cardter particular, totalmente diferente de outros reaciondrios europeus, como Maistre e Bonald. Ao contrario desses, Burke tinha razGes para saber qual seriam ‘0s sentimentos de um revolucionério, pois as forcas da revolugdo como da contra-tevo- lugdo existiam nfo somente no mundo como também dentro dele proprio. Connor Cruise O'Brien Notas 1. A primeira das “Cartas sobre uma Paz Regicida (1796); trabalho V, p. 155; Marx devia co- nhecer essa passagem, pois conhecia alguns trabalhos de Burke. Ha uma passagem violenta sobre Burke no “Capital”: “O camaledo, pago pela oligarquia inglesa, se passou pelo roman- tico laudator temporis acti contra a Revolucao Francesa, assim como pago pelos rebeldes das Colénias americanas, se passou por liberal contra a oligarquia inglesa, foi um burgués vulgar € repulsivo” (Capital, I, Moscou 1954, p. 760, n° 2), Antes ele tinha descrito Burke como aquele a quem ambos os partidos na Inglaterra olhava como 0 modelo do estadista inglés (N. Y. Daily Tribune, dezembro de 1855). Do ponto de vista marxista ndo ha obviamente contradigdes entre essas duas descrigées. 2. “Mas como a habilidade é um principio ativo ¢ rigoroso, e a propriedade ¢ apatica, inerte € timida, essa dltima s6 poderd estar a salvo dos assaltos da habilidade na medida em que ela predomine, além de qualquer proporgao, na representagdo” (Reflexdes). 3. Vide a Carta a um Nobre Lorde (1796). Works V, pp. 110-154. 4. Marx, nos seus primeiros anos, aplicou as liges da Revolugao Francesa muito esquematica- mente, como demonstrou seus escritores para o Rheinische Zeitung e The Civil War in Fran- ce. No seu. The Brumaire of Louis Bonaparte, entretanto, de uma forma deliberada, ele mos- tra claramente como a grande Revolucdo influenciou a sua época. 5. Vide como exemplo a passage (Reflexdes) sobre a ascendéncia de especuladores financei- tos: “E aqui que terminam todos os sonhos decepcionantes, todas as quimeras da igualdade e dos direitos do homem. Eles desaparecem no “lamagal servo dessa vil oligarquia, af sio ab- sorvidos, afundados e perdidos para sempre". Vide também a discussio sobre a participacio do Terceiro Estado ¢ suas implicagdes: ‘Assim que tomei conhecimento de tal lista, vi distin- tamente € quase como de fato ocorreu, tudo aquilo que ocorreria”. 6. “Carta & Imperatriz da Rissia (1791)”, corr. VI, pp. 441-5, 448. Ele tinha certas reservas pessoais. 7. Reflexes, pp. 194-195. 0 longo trecho no qual essa passagem estd incluida ainda tem um grande apelo para todos aqueles que admiram as varias formas de sociedade tradicional. Um brilhante escritor africano. Ali al Amin Mazrui, afirmou que nessa passagem Burke se apre- senta como um africano, préximo néo daquele afticano educado nas universidades euro- 36 10, 13. 14, 15. Edmund Burke éias, mas do africano que ainda vive nos moldes tradicionais (Comparative Studies in Socie- ty and History, vol. 1, n® 2, jan. 1963). A argumentagdo de Mazrui sobre a compatibilidade da doutrina de Burke com o pensamento tradicional africano é seguramente forte, as suas tentativas, entretanto, de aplicar os principios de Burke no Congo foram prejudicadas pela inadequagao das informagées por ele obtidas, 0 Acordo de Tananarive de 1960 néo foi, co- mo ele pensou, um ajuste intertribal, mas uma tentativa de compromisso entre forcas inter- nacionais. Correspondence VI, pp. 9-12. Esse foi o primeiro comentario conhecido de Burke sobre a Revolugio. Os editores da Correspondence VI comentaram: “Em 1769, Burke, a0 descrever as dificulda- des financeiras da Franga, escreveu: “Nenhum homem, acredito, que tenha um pouco de atengdo com seus negécios, mas que deva procurar por alguma convulsio extraordindria no sistema como um todo, o efeito disso tudo na Franca e, mesmo, em toda a Europa, ¢ dificil de imaginar” (Corr. VI, eds, Cobban e Smith, p. 10, n9 2). Essa € a carta de “outubro de 1789" mencionada por Burke no seu prefécio. Cobban e Smith, entretanto, estabeleceram que cla foi escrita em novembro, mas provavelmente s6 enviando no fim daquele ano. (Corr. VI, pp. 39-50). s editores da Correspondence VI acreditam (p. 78) que “‘tenha escrito por volta da tiltima quinzena de janeiro de 1790. Eles também mostram que Burke s6 leu os discursos do Dr. Price e as correspondéncias da Socie tade Revoluciondria apés a sua chegada & Londres para as sessdes do Parlamento no dia 21”. Cert. VI, p. 81. A conclusio da carta parece mostrar a influéncia desta leitura. No més de margo do ano seguinté & aparigZo das Reflexes, a Sra. Burke orgulhosamente re- Petia para seu cunhado uma conversa com George III: “Vocé tem sido de grande valia para 1nés todos e isso é a opinido geral, nao é verdade Lorde Stair?... F, disse ele; ~ Se Vossa Ma- jestade a adotar, verdadeiramente geral — disse Ned, ela se tornard. Eu sei que essa é a opi- nido geral, e também sei que ndo hé ninguém que possa autodenominar-se Gentleman que no se sinta vinculado a vocé, pois foi vocé que defendeu a causa dos Gentleman. (Carr. VI, pp. 237-9, Jane Burke para W. Burke, 21 de marco 1791). Alguns meses antes, Burke afir- mou que tinha recebido “do Duque de Portland, Lord Fitzwilliam, do Duque de Devonshire, Lorde John Cavendish Montagu e de outros membros do partido Whig, uma aceitagao total dos prinespios daquele estudo (As Reflexdes) e uma indulgéncia para a sua execugéo" (Corr. VI, pp. 176-80, para Sir V. Eliot, 29 de novembro de 1790). (Uma pensio de funcionirio puiblico de cerca de £ 1.200 por ano, a partir de 1795, Em uma carta enderecada a Fitzwilliam, apés 0 desentendimento com Fox, Burke recrimina Fox por ter afirmado “que eu néo tinha nenhum motivo para explicar a minha luta, nos iltimos dois anos, contra a propagagdo dos principios franceses nesse Reino, a ndo ser a.suborno que re- cebi dos Ministros”, (Corr. VI, pp. 271-6, 5 de junho de 1791). Vide nota I, p. 1, Marx cita a obra de Burke Thoughts and Details on Scarcity (1795, leis do comércio, que so as leis da natureza sio, também, em conseqiléncia, leis de Deus”. “Nao é de se admirar”, completou Marx, “que obedecendo as leis naturais ¢ divinas ele te- nha se vendido ao melhor prego”. (Capital, I, p. 760 n° 2). Vide Dixon Wecter Edmund Burke and his Kinsmen: A Study of the Statesman’s Financial Integrity and Private Relationship (Boulder, 1939). “Sem fazer uma acusagdo séria contra 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24, 25. Reflexdes sobre a Revolugfio em Franca 37 esse impressionante ilandés, baseada em puro interesse egoista”, escreve Wecter, “pode-se relacionar sua defesa da Companhia das Indias Orientais, entre 1766 € 1772, com seus inte- resses familiares e, em parte, aos “Fundos da Companhia”. O seu dltimo ataque contra 0 or- ‘gulho e arrogincia dessa Companhia em incentivar 0 projeto de lei de Fox sobre as Indias Orientais e o subseqiiente impeachment de Hastings com o fato de que Will Burke (parente ¢ amigo de Edmund) deixou de ser um especulador londrino para tornar-se um “funciondrio Piiblico na India, Ao fazer um comentario sobre a investigagao de Wecter nas financas de Burke, 0 Professor Copeland afirmou “... é facil de perceber que na ocasifio, Ricardo (irmio de Edmund) e Will nao honravam os seus compromissos financeiros. Edmund, apesar de nunca ter-se provado que ele estivesse conscientemente envolvido, estava tio associado com 0s dois, que inevitavelmente levaria parte da culpa que cabia aos dois". (Edmund Burke: Six Essays. Londres, 1960). A Vindication of the Rights of Man (1790). O filho de Burke, Ricardo ~ apesar de aberta- mente apoiar a politica do pai achava que poderia obter vantagens em decorréncia de uma Tevolugdo: “Eu vejo com muito interesse e com bons olhos as mudangas que ocorreram na Franga... ou em qualquer outro lugar” (Sheffield Papers; R. Burke Jr. para Fitzwilliam, 20 de julho de 1780). Corr. VI, pp. 39-50; resposta a De Pont, novembro de 1789; vide acima pp. 14-15. Burke, de inicio, hesitou em enviar a carta porque “em épocas de inveja, a supeigao é fato notério”, mas acabou por envid-la aps tomar conhecimento da diminuicdo das tensdes. R. R. Fennessy, O. F. M.: Burke Paine and the Rights of Man, Haia, 1963, (pp. 193-4). 0 “Journal of a Tour to the Hebridis”, de Boswell, de 15 de agosto de 1773. Coleridge pensava da mesma forma: “nenhum homem foi mais coerente consigo mesmo do que Burke” (Essay on the Grounds of Government, 1809). Tom Moore, por outro lado via-0 como uma pessoa que, nos seus estudos ¢ na sua vida, procurava uma identidade mo- ral. (“Memories of Sheridan”, 1825). Moore, diferentemente de Machintosh que era mais politico, via nas atitudes de Burke em relago @ Revolugdo Francesa uma completa ruptura com sua posicao anterior. Edmund Burke: “Six Essays” Burke sofria vérias pressdes por parte de sua familia: 0 seu filho, “enojado” de toda a huma- nidade, seu irmao, muito parecido com seu filho, e seu primo Will Burke... um ataque a qual- quer pretensio de poder que Burke pudesse ter tido. A Sra, Burke tinha a seus cuidados a Srta. French que era a mais “perfeita” das irlandesas. (St. G. Elliot, 2 de maio de 1793 - Life and Letters of Sir G. Eliot, ed. Condessa de Minto, Londres, 1874. Il, 136). Life and Letters of Sir. G. Elliot, op. cit. Il, 140. “Sheffield Papers.” Corr. V, pp. 470-74; 8 € 9 de maio de 1789. A referéncia é para a vitéria eleitoral de Pitt naquele ano, para a qual a influéncia dos dissi- dentes contribuiu enormemente para a derrota dos Whigs € conseqiientemente para o isola- mento de Burke nos seus iltimos dias. “Sheffield Papers.” 38 21. 28. 29. 30. 31. 32. 33. 34, 35. 36. 37. 38. 39. 40. Edmund Burke Carta a um membro da Assembiéia Nacional (1791). Works II, p. 549. Cort. VI, pp. 67-75, 109-15; Paine para Burke, 17 de janeiro de 1790... Cloots para Burke, 12 de maio de 1790... “Deixe a sua Ilha, meu caro Burke, venha para a Franca”. Cort. VI, pp. 82-5 para R. Bright de 18 de fevereiro de 1790. A violéncia de seus ressentimentos pessoais apareceu no fim da segunda Carta para Bright. / Para Burke, 0 apoio a petigdo dos dissidentes seria “um mau exemplo, e uma tendéncia imo- ral ao se mostrar aos homens que algumas pessoas podem perseguir ¢ caluniar seus amigos verdadeiros... ¢ mesmo assim fazer uso de suas virtudes para servir aos seus interesses. Esse, ‘meu caro Senhor, é um péssimo exemplo”. Um contemporneo via essa frustracdo e essa vaidade ferida como as causas das “Reflexdes”. “*Vocé foi o Cicero de um dos lados da Casa por muitos anos”, escreveu Mary Woustonecraft, “o fato de ter ficado no esquecimento e ver suas honrarias desaparecerem foram capazes de fazer surgir, ¢ levarem voos a produzir as “Reflexdes...” (A Vindication of the Rights of Man). Disraeli, em Lybil, adotou uma interpretagdo parecida. “Burke jogou todas as forcas de sua vinganga contra o centro agitado do cristianismo”, etc. Vinganga contra Fox por ter tomado a tideranga Whig de Burke, afirmava ele. A discusso no terminou com a publicagdo das Reflexdes Em 1791, ele escreveu que “aquilo que eu vejo com seriedade é a estrutura de partido que existe no grupo de dissiden- tes” e estima que 90% do grupo preg os principios da Revolugdo francesa. (Corr. VI, pp. 481-22; para Dundas em 30 de setembro ae 1791). Reflexées, p. 157. © nome Burke é de origem normanda, tendo sofrido influéncia gaulesa. “O pai de Burke”, afirma Sir Philip Magnus, “provém de uma familia com grandes inter-relagdes com a popula- 40 celta do pais" (Edmund Burke: A Life, London, 1939, pp. 1-5). Em 1765 08 inimigos de Burke informaram ao Duque de Newcastter, que, por sua vez, infor- mou Rochingham, que Burke era um papista educado pelos jesuftas. Burke, ao negar esse fa- to, ofereceu sua rentincia a Rochingham que a recusou. (Carl B. Cone, Burke and the nature of Politics: The Age of the American Revolution). Corr. VI, pp. 214-16; escrita a um desconhecido em 26 de janeiro de 1791. Reflexdes, p. 135, “amor ao pequeno pelotio ao qual nés pertencemos na sociedade que ¢ 0 primeiro principio (o germe pot assim dizer) de nossas afeigdes publicas”. Basil O'Connel. “The Rt. Hon. Edmund Burke... a gasis for a pedigree”, “Journal of the Cork Historical and Archeological Society,” vol. LX, pp. 257-74, janeiro-junho 1956. W. B. Yeats nos seus dltimos anos achava que Burke assim como Swift, Berkeley, Goldsmith, Grattan e Parnel — ‘eram Glorias da tradigdo anglo-irlandesa protestante. (Vide “The Senate Speeches of. W. B. Yeats”, ed. Donald R. Purce, London 1961). O Burke real no pode ser enquadrado nessa categoria. W. B. Yeats op. 41. 42, 43. 45, 47. 49. 50. 51. ReflexSes sobre a Revolu¢fo em Franca 39 Ricardo procurava influenciar o presidente do partido Whig para que ele repreendesse Fox € Sheridan, lideres Whigs na Cimara dos Comuns, que tinham enaltecido a Revolugio. Ele es- creveu sem o consentimento do seu pai, mas como afirmou “eu sei que exprimo néo s6 os meus sentimentos, mas também os dele”. Fitzwilliam afirmou, entretanto, que cabia a ele a determinaco da hora e da conveniéncia de qualquer reprimenda (julho e agosto de 1790). A expressio nio é, de todo, retérica. E, entretanto, surpreendente a freqiéncia das argumentagSes de Burke em relacéo & Re- volugio que sio baseadas em termos sobrenaturais ou peculiares. Os lideres revolucionérios foram “arrancados como por encanto das posigdes mais inferiores da hierarquia” (Refle- x6es); “eles sfo daqueles que esquartejam seus parentes e os poem em uma fornalha” (ibid). Em cartas particulares ele chama a Revolucdo “dessa coisa estranha, inomindvel, selvagem ¢ entusiéstica”” Ganeiro de 1791) e de “vil quimera, sonhos sujos de um Governo” (setembro de 1791); os amigos da Revolugfo na Inglaterra slo a “facco infernal” (setembro de 1792); sua imprensa de “Jornais do inferno” (outubro de 1792). Nos seus diltimos anos, como era de se esperar, essa imaginacdo se torna mais obsessiva — vide a passagem que comega por “A Revohugéo. odienta na Franga provém das trevas ¢ do inferno”, em “uma Carta a um Nobre * (1796); a passagem sobre o “espectro”, na primeira “Carta sobre uma Paz Regicida” ‘0 alcance questiondvel” (“Segunda Carta”, 1796). E da ditima “Carta” ndo termi- : “Na minha época, eu sempre caminhei em um terreno maravilhoso. Tudo é novo e de acordo com a palavra da moda, revolucionéria”. Burke também usa palavras assustadoras so- bre a Irlanda. “Sheffield Papers”; C. 6 de dezembro de 1796. “Sheffield Papers”; para Hussey, 18 de maio de 1795. Para Hussey, C, 6 de dezembro de 1796. Ndo hd dividas de que Burke pensava nos catdlicos irlandeses quando escreveu essa passagem: ele via os dissidentes Irlandeses como um gripo privilegiado. T.H. D. Mahoney, Edmund Burke and Irland, Londres, 1960, p. IX. “Sheffield Papers”, para Thomas Burgh, Ano Novo, 1780. Ele afirmou que quando notou que sua esperanca tinha desaparecido “todo o brilho de minha imaginagio se escureceu, € me senti espoliado”. “Letter to the Rt. Hon. Edmund Parry (1778); Letter to a Pur of Irland” (1782); Letter to sit Hercules Langrishe (1792); Letter to William Smith (janeiro de 1799); “Second Letter to sir Hercules Langrishe (1795); Letter to Richard Burke (1792). “Works V', pp. 486, 491, 510, 282; III, p. 298; VI, pp. 49, 56,61. E duvidoso que uma eloqdéncia do nivel apresentado nas Reflexdes possa ser mercenéria. ‘Um-Embaixador de um pequeno pais, mas diplomaticamente significativo, discutiu como ‘autor a sua posigo. Ao chegar a conclusfo que seus argumentos eram inaceitiveis, ele afir- mou: “Eles me pagam para dizer certas coisas, mas porque insistir? Eles ndo me pagam tan- to”. Works V1, pp. 61-80; datada pelo Dr. J. A. Woods como tendo sido de antes de 19 de feve- reiro de 1792. Compare a concepgfo altamente ideal da histéria irlandesa no famoso “Discurso sobre a Conciliagfio com as Colénias" (1775); Works I, p. 450: “Nio foram as armas inglesas, mas a 52. 53. 54. 5S. 56. $7. 58. 59. 60. 61. 62. Edmund Burke Constituigio inglesa, que conquistou a Irlanda. No mesmo discurso Burke utiliza o puritanis- mo do protestantismo em algumas colénias como argumento em seu favor. Esses pontos de vista esto em contraste com 0 tom dos seus tiltimos escritos. ‘A preocupagio e a ambigiiidade de Burke, em relacdo ao impacto da Revolugio Gloriosa na Irlanda aparecem claras em uma passage de uma carta, jé citada, escrita a Richard Burke. Burke néo “tenta defender” os irlandeses pela sua rebeligo contra o Parlamento inglés, mas acredita que “‘a moderagdo” deverd ser admitida, que os irlandeses resistiram ao Frei Gui- Iherme “baseados nas mesmas razGes que os “ingleses ¢ escoceses resistiram ao Rei Jaime”, ¢ finalmente que os “irlandeses catdlicos teriam sido os piores e mais antinaturais dos rebeldes se ndo tivessem apoiado o Rei Jaime”. “O mais perfeito protestante é certamente aquele que protesta contra toda a religido cristd.” (“Letter to Sir Hercules, Langrishe,” 1792: Works III, p. 313). Vide também as referéncias sarcasticas em “Letter on the Affairs of Inland” (1797) em relagdo ao “‘Diretério Protestante de Paris... e a0 her6i protestante, Bonaparte...” (Works VI, p. 87). Em um contexto inglés, entretanto, Burke nas Reflexdes escreve como um protestante, mas que ndo condena violen- tamente o sistema romano de religigo. (pp. 257-70). Burke procurou — sem sucesso — utilizar a Revolugdo americana da mesma forma. A perse- Buigio de uma “nagdo” — como ele descrevia os catélicos irlandeses — talvez tenha jé sido conduzida com seguranca: “Mas hé4 uma revolugdo nos nossos assuntos que a faz justa.” (Speech at Bristol, 1780; Works II, p. 155). Obviamente que no é dito que Burke fosse politicamente um jacobita, jé que ele era um homem muito pratico para assumir uma posicdo dessa. O ponto a ser salientado é que, emo- cionalmente, ele era simpatico a causa dos catélicos irlandeses, cuja lealdade jacobita estava na base das penalidades ainda impostas na época de Burke. Vide Carl B. Cone, “Burke and the Nature of Politics: the Age of the French Revolution”, pp. 487-8. Burke passou a ser olhado “como o chefe e talvez como o-tinico defensor das me- didas favorsveis aos catdlicos irlandeses”, “E abominavel; mas hoje é certo que a defesa catélica é 0 tinico obstaculo a ascendéncia pro- testante”, “Sheffield Papers”, Burke para Hussey, 18 de janeiro de 1796. “Defesa” era o ter- mo utilizado para a forma de terrorismo agrério praticado na Irlanda. Trinta anos antes, pa- rentes de Burke tinham sido acusados de participagdo em um movimento similar a0 do “White Boys”. Corr. I, p. 1478. Carl B. Cone, op. cit. pp 512-16. Primeira des Cartas sobre uma Paz Regicida. Works V, p. 157. Para Willian Smith, Esq., 26 de maio de 1795. Works VI, p. 53. Ibid., pp. 215-16. Ele pede a seu tio — cujo filho tinha raptado uma herdeira protestante, cuja pena era a morte, para refletir sobre “‘como distante eu estava desse povo”* — na Ingla- terrae que muitas “maquinagSes engenhosas” foram feitas para arruindo (para Patrick Nagle; 14 de outubro de 1765). Burke para John Trevor, Cort. V, pp. 216-19. 63. 65. 66. 67. 68. 69. 70. n. 72. 73. Reflexes sobre a Revolugtio em Franca 41 Joseph Hone na sua excelente biografia W. B. Yeats (1865-1939) - Londres, 1942 — afir- mou que Yeats foi “tomado pela pergunta: Como coadunar a tradigdo aristocratica e protes- tante de Swift, Berkeley e Burke com o moderno nacionalismo Gaulés” (p. 359). De fato, Burke foi to Gaulés quanto qualquer nacionalista moderno. Burke aparenta ser mais aristo- cxético em uma retrospectiva literdria do que para seus contemporancos, que 0 viam mais como“um novorrico frlandés do submundo catélico do outro lado do Canal de Bristol” (Sir Philip Magnus, Edmund Burke, p. 216). (A relagao de Burke com o protestantismo é discuti- da no texto). ‘Como Hazlitt corretamente observou: “Burke estava tdo distante de ser aquele escritor sim- pitico a todos e de linguagem delicada que acabou sendo o escritor severo que nés tivemos”. (Essay on the Character of Burke, 1807). Vide 0 trabalho “‘Our wits about us” in “Writers and Politics”. Hazlitt achava que seus discursos chegavam em certas horas “‘a atingir 0 cimulo do ridicu- 1o”, Dr. Johnson tinha uma péssima opinifo sobre ele: “Esses conceitos... Burke nunca con- seguiu fazer uma boa piada”’. Vide a colegdo de opinides criticas sobre Burke na publicagdo ‘"Earnund- Burke: Selections, editada por A. M. D. Hughes ¢ publicada pela Claredon Press em 1921. Letter to. a Noble Lord (1796): Works V. p. 142. Primeira Carta sobre uma Paz Regicida (1796): Works V. p. 225. A critica dcida das “Car- tas” muitas vezes produz efeitos que se aproximam mais da ironia de um caricaturista do que aquela de um escritor. Essa é sua descrigdo, na mesma carta, das relagdes diplomiticas entre 0 Governo revoluciondrio em Paris e as Cortes da Europa: “No momento em que aque- las portas forem abertas, que visio se terd do recebimento dos plenipotencirios da impotén- cia real, na ordem de precedéncia obtida pelas suas intrigas e que seré dada segundo a anti- gilidade de suas degradagSes, na presenga dos regicidas, ainda com aquele sorriso de subser- viéncia nos lébios, apresentando ainda os resquicios apagados das galanterias da corte ¢ a0 se encontrarem com a figura sidica, feroz e desprezivel de um rufido assassino, que, enquanto recebe a homenagem, mede, com os olhos o tamanho do pescogo dos enunciados com vistas a ajustar sua guilhotina” (ibid, p. 171). A quarta das “Cartas sobre uma Paz Regicida”: publicada posteriormente; Works V. p. 388. Essas citagdes so extraidas das Reflexdes. Muitas outras combinagdes poderiam ser apresentadas. Ha, por exemplo, um estilo mediano entre o “formal” ¢ 0 “irdnico” que Burke gostava de utilizar contra o Dr. Price e que Mary Woustonecraft descreveu muito bem: “uma afabilidade gotica é o estilo que vocé quer ado- tar, a condescendéncia de um Bardo, no a civilidade de um homem liberal”. (A Vindica- tion of the Rights of Men.). A terceira das “Cartas sobre uma Paz Regicida” (1797). Works V. p. 268. Taine acreditava que “‘nio havia sentido de Burke estudar Cicero, porque ele continuava “meio bérbaro”. “As finas culturas grega e francesa nunca encontraram lugar nas nagdes ger- minicas”, Ele, entdo passa a elogiar Burke em uma linguagem extravagante ¢ inapropriada, As citagdes foram retiradas do vol. Ill da edigdo de 1965 do History of English Literature, New York, H. Taine. Hazlitt, como normalmente, foi mais direto: “Burke néo tinha a ele- 42 14. 15. 16. 7. 78. 19. 80. 81. 82. 83. 85. 87. Edmund Burke gancia polida, a flexibilidade, a regularidade genial e a modulagio artistica de Cicero. Ele, entretanto, foi muitas vezes mais rico e original, mais forte e mais enfético do que Cicero”. (Essay on the Character of Burke, 1807). Told. Esse no foi o primeiro nem o tltimo comentirio desse tipo feito por um critico inglés a um escritor irlandés. Francis também critica a énfase de Burke na passagem sobre a Rainha; Vide pp. 169-70 ¢ notas. Corr. VI, pp. 150-55; Francis para Burke, 3 ou 4 de novembro de 1790. Burke achou que a resposta de Francis foi mais um “método de controvérsia” do que uma “‘animosidade de um amigo” (Burke para Francis, 9 de novembro de 1790). Corr. VI, 17 de dezembro de 1789. Cort. I, pp. 248-49. “Vindicial Gallicae” (1791) Mackintosh procurou ardentemente se retratar do seu ataque contra Burke e modificar sua anterior critica, Burke, segundo Mackintosh em 1799, “foi no somente o mais severo e astuto escritor, j4 que era um homem eloqilente, mas também a for- 2 € © vigor permanentes dos seus argumentos que se afastavam da observagio vulgar pelas gloria pelas quais elas eram enriquecidas”. (R. F. Mackintosh. “Memories of... Sir James Mackintosh, Londres, 1935, p.91). A principal fungéo do Estado nesse campo era de suprimir a propaganda do lado contrério. Vide p. 61. Um escritor francés modemo da contra-revolugio escreveu: Parmi tous les theoricitns de la contre-revolution, le premier, dont les oeuvres aient eu un reténtissement international, a é1é Langlais Edmund Burke. Jacques Godechort (“La Contre-Révolution”, 1789-1804, Paris, 1961). Reflexdes, p. 90. Works V, p. 259. Burke parece antecipat Marshall McLuhan. Corr. VI, pp. 206-8; Burke para o Visconde de Cicé, 24 de janeiro de 1791. Corr. VI, pp. 241-3; Burke para o Chevalier de la Bintinaye, margo de 1791. Cor. V, pp. 436-45; Burke para Windham, C. 24, janeiro de 1789. Ele recomendou a publi- cago de “manifestos severos”. Cort. VI, pp. 197-9; Burke para W. Adam, 4 de janeiro de 1791. Outra afirmagfo: “A falsidade e a desilusio nio sfo nunca permitidas; mas como no exerci- cio de todas as virtudes, hd uma economia de verdade. E uma espécie de meio-termo, quan- do o homem diz a verdade com moderagdo ele a dird por mais tempo e mais freqUentemen- te”. (Primetra das Cartas sobre uma Paz Regicida, 1796; Works V, p. 230). Cort. VI, pp. 315-20; Edmund Burke para Edmund Burke Jr. 5 de agosto de 1791. Foi um ataque calculado. “Néo hé nenhum homem na oposico que nifo esteja, no entender de Burke, fazendo oposicio a constituig#o desse pais, pois quem methor os conhece do que o Sr, Burke? Portland para Lawrence, 23 de agosto de 1791. (Sheffield Papers). 89. 90. 91. 92. 93. 94, 95. 97. 98. 99. 100. Reflex6es sobre a Revolugfo em Franca 43 Nenhum estudante sério poderia ter feito um tal erro, mas os estudantes sérios slo to raros quanto homens econémicos. A afirmagéo de Hazlitt se aplica; “o Unico espécime de Burke ¢ tudo aquilo que ele escre- ‘veu", (Essay on the Character of Burke, 1807). “Eu o digo enfaticamente e com um desejo de que isso seja afirmado em uma longa Porque sem essa guerra, a experiéncia nos mostra que uma poténcia perigosa ndo poderé ser reduzida ou posta no seu devido lugar”. Primeira Carta sobre uma Paz Regicida, 1796; Works V, p. 195. “Burke on Bolshevism", em “Nineteenth Century and After” julho-dezembro de 1918. Vide também A. A. Baumann: “Burke, the Founder of Conservatism”, Londres, 1929. “Ele viu... © que nés americanos estamos tentando ao organizar uma ordem internacional es- tivel... (Burke's Politics, New York, 1949, p. 36). Essa iniciativa necessitava uma “restau- rago”, que ainda nfo foi definida, talvez, o “recuo da cortina de ferro” esteja af inclu/do. Burke's Politics, 1949, p. XV. Terceira das Cartas sobre uma Paz Regicida (1791); Works V, p. 281. Esse acordo funcionou bem de 1959 até o comeco de 1961, quando, em decorréncia de uma mudanga editorial, a “Modern Age” deixou de publicar “Burke Newsletter”. Havia também alguns neoconservadores que discordavam da énfase dada a Burke. Como um estudioso do movimento” neovoriservador afirmou, havia “muitos problemas ao se procurar enquadrar Burke para consumo no mercado americano”. (E. Cain, They Would Rather be Right, New York, 1963). “Burke Newsletter”, primavera de 1962. Mr. Cone discordava da tentativa de se equiparar a retérica de Burke a uma filosofia: “Acredito que haja razdes para se duvidar de algumas de suas afirmagGes, quando sabemos que Burke estava defendendo uma causa...” Certo, mas nfo podemos esquecer o “renascimento neo-conservador esté também defendendo uma causa”. “Burke Newsletter", inverno 1962-3. O Sr. Kirk esté revendo o estudo “Conservatism in America” de Clinton J. Rossiter, que “‘tinha restrigdes a Burke como guia da agiio conserva- dora na nossa época”. Hi uma edigdo das Reflexdes com uma introdugfo do Sr. Russell Kirk em uma série intitulada “Classics of Conservatism” (Nova Rochelle, N. Y; sem data). ‘Nessa introdugio, ele descreve as Reflexdes como “um trabalho que é atualmente a base (do conservadorismo moderno na Gra-Bretanha, Estados Unidos e outros paises ocidentais”. “Burke”, escreve o professor Alfred Cobban, “‘escapou das loucuras da esquerda inglesa para se tornar vitima da adulagdo sistemética da diréita americana... Essas tentativas de exaltagio ‘ou condenagdo de idéias ou de utilizagéo do nome € da reputagso de Burke, assim como de qualquer tentativa de exploragdo do passado em proveito de interesses polfticos passageiros, no se constituem em Histéria”. “Edmund Burke and the Revolt Against the Eightnth Cen- trury”. Prefécio a 28 edigo, Londres, 1960. Carta a um membro da Assembiéia Nacional (1791). Works Il, p. 534. 101. 102. 103. 104. 105. 106. 107. 108. 109. 110. 1. 112. 113. 114, 115. 116. Edmund Burke Heads for Consideration on the Present State of Affairs (escrito em novembro de 1792). Works Ill, p. 409. Prefécio a livro de M. Brissot Address to His Constituents (1794). Works III, pp. 525-6. Primeira Carta sobre uma Paz Regicida (1796). Works V, pp. 164-5. Remarks on the Policies of the Allies (iniciada em outubro de 1793); énfase como no texto. Works III, p. 442. Edmund Burke para Richard Burke Sr, 24 de julho de 1791;Corr. V1, p. 307. “Remarks on the Policy of the Allies” (iniciada em outubro de 1793). Works Ill, p. 441. Carta a um membro da Assembléia Nacional (1791), Works IL, pp. $42-3. Segunda das Cartas sobre uma Paz Regicida (1796). Works V, p. 232. Reflexées, p. 90. Nem todos aqueles que exaltaram Burke como um filésofo politico conservador endossaram ou aceitaram a utilizago neoconservadora de seus escritos. Peter J. Standis repudiou a alega- do do conservadorismo moderno de que “Burke fosse 0 porta-voz de suas priticas politi- cas”. (Burke Newsletter, vol. III, primavera de 1962). Nido que as técnicas da contengio fossem sempre despreziveis para ele. Ele repudiava aquilo que denominava uma “nagdo estranha” — “que um Estado nio tem o direito de interferir de forma discricionéria, nos assuntos internos de outra nagio”. (Sheffield Papers; Burke para Grenville, agosto de 1792). O que esti em questo agora é, entretanto, a forma discricionéria pela qual o direito ¢ exercido. “Remarks on the Policy of the Allies” (iniciado em outubro de 1793). Works Ill, p. 448. ‘A argumentagSo baseada no prestigio, razdo pela qual se procura justificar a guerra america- na no Vietnd é a que ele mais criticou: “Eles Ihe dizem, Senhor, que a sua dignidade esta vin- culada a algo. Sei como isso se passa, mas essa sua dignidade € uma terrivel incumbén pois ela tem estado em guerra com os seus interesses, sua eqiiidade e com suas idéias pol cas, Faga com que o objetivo de sua luta seja razoavel, mostre que faca sentido, mostre que ele € o meio de se atingir um fim dtil ¢ eu estarei disposto a envolvé-o com a dignidade que vot busca. Mas qual é a dignidade que se tem, na perseveranga ¢ no erro? Isso esta além do meu discernimento”. (Discurso sobre a Taxagdo na América, 1774). Works I, p. 393. Mesmo para conservadores vitorianos era dificil aceitar a idéia de que Burke pudesse ser usa- do, mais uma vez, com fins contra-revolucionérios. Ninguém, atualmente, escreveu Edward Dowclen, “pode desejar converter Edmund Burke em um tambor, onde se possa tocar um hino contrarevolucionério, o tempo desses criticisnos polémicos jé passou...” (The French Revolution and English Literature), Londres, 1897. Néo, obviamente, das Reflexes. Era em relag&o i Irlanda e & América e no a Franga — que Gladstone achava que Burke fosse “um livro de sabedoria’ Morley, “Gladstone”, III, p. 280. Reflexdes sobre a RevolucSo em Franca 45 117. Em um discurso proferido no Trinity College, Dublin, pela ocasiéo do bicentenétio de fun- dagio do Burke's Club, 14 de marco de 1947. Laski confirma o teste de Hazlitt: “Sempre fiz tum teste de bom-senso e humor com todos aqueles que pertencem a um partido de oposi- do, se eles aceitavam Burke como um grande homem’. (On the Characters of Burke, 1807). Reflexdes sobre a Revolugao em Franca Talvez ndo seja indtil informar o leitor de que as Reflexes que se-seguem tive- ram sua origem-na-correspondéncia entre o autor e um jovem fidalgo de Paris, que lhe concedeu a honra de desejar conhecer sua opiniao “sobre os acontecimentos que entZo ocupavam, e ainda ocupam, a atengdo de todos. Uma resposta foi escrita no més de outubro de 1789, mas consideragées de prudéncia impediram que ela fosse enviada. Faz-se alusio a esta carta nas paginas que se seguem. Desde entdo, ela se encontra com a pessoa a quem foi dirigida. As razGes pelas quais sua remessa foi retardada en- contram-se expostas em uma pequena carta dirigida a0 mesmo fidalgo. Esta resposta fez com que ele se interessasse ainda mais em conhecer os sentimentos do autor. O autor comecou uma segunda discussdo mais aprofundada do assunto. Primeiro ele pensou em publicéta no comego da Ultima primavera, mas, entusiasmado pelo te- ma, percebeu que 9 trabalho iniciado no s6 ultrapassava bastante a éxtensdo de uma carta, como também, pela sua importancia, exigia um exame mais detalhado, que nesta ocasiao ele ndo tinha tempo de fazer. Entretanto, tendo organizado seus pensa- mentos em forma de carta e, quando comegou a escrever, estando com a intencao de escrever uma carta particular, achou que‘ seria dificil mudar a forma, depois de ter exposto seus sentimentos com mais desenvolvimento e de lhes ter dado uma outra di- recao. Nao the escapou também que um outro plano podera ter sido mais favordvel a uma melhor divisdo e distribuigdo do assunto. Londres, 19 de novembro de 1790. Caro Senhor, O senhor quer conhecer novamente, e com algum interesse, as reflexdes que os iltimos acontecimentos na Franga me inspiram. Nao quero dar-Ihe raz6es para crer que eu atribua a meus sentimentos o valor suficiente para desejar que eles sejam pro- curados. Eles sdo de muito pouca conseqiiéncia para que eu me inquiete em comuni- cé-los ou em guardé-los para mim, e foi em consideracao pelo senhor, e s6 pelo senhor, 48 Edmund Burke que eu hesitei no momento em que, pela primeira vez, 0 senhor desejou conhecé-los. Na primeira carta que eu tive a honra de lhe escrever e que, afinal, decidi Ihe enviar, ngo me considerei porta-voz ou representante de nenhum partido: esta ainda é a posi- 0 na qual me mantenho hoje. Meus erros, se os cometer, serfo de minha inteira res- ponsabilidade; somente minha reputagdo deverd responder por eles." -— A longa carta que Ihe enviei ter-lhe-a mostrado, senhor, que desejo de toda 0 co- ra¢do ver a Franga animada de um espirito de liberdade racional, e, em minha opinio, deveria ser criado um corpo permanente onde este espirito possa residir, e um Orgdo pelo qual ele possa agir eficazmente, No éntanto, tenho a infelicidade de manter gran- des dividas sobre varios pontos importantes de suas iiltimas operagdes. Sua Ultima carta me mostra que a aprovacdo pablica solenemente dada por dois clubes londrinos, a Sociedade Constitucional e a Sociedade da Revolugdo”, a certos atos praticados na Franga, fez com que o senhor imaginasse que eu poderia me encon- trar entre os que aprovam estes atos. E verdade que tenho a honra de pertencer a mais de um clube onde se venera grandemente a Constituigdo deste Reino e os principios de sua gloriosa Revolugdo, e eu mesmo me encontro entre os que mais ardorosamen- te procuram manter em sua pureza e vigor estes principios e esta Constituigdo. Mas é justamente esta a razdo pela qual desejo que ndo haja nenhum equivoco a meu respei- to. Todos os que veneram a memoria de nossa Revolugdo e que respeitam nossa Cons- tituigdo, ter¥o grande cuidado em nao se deixarem confundir com homens que, sob a aparéncia de zelo pela Revolugdo e pela Constituicao, se distanciam freqientemente de seus verdadeiros principios, e estdo sempre prontos a abandonar o espirito firme, cir- cunspecto e avisado que produziu a primeira e continua a presidir a segunda, Antes pois, que eu comece a responder aos pontos mais importantes de sua carta, permita que the envie as informagdes que pude recolher sobre os dois clubes que julgaram de bom alvitre interferir, como um todo, nos assuntos da Franga, e receba a certeza de que eu nao fago, nem jamais fiz, parte de nenhuma dessas Sociedades. SOCIEDADE CONSTITUCIONAL A primeira, que se chama Sociedade Constitucional, Sociedade de Informagao Constitucional ou algo semelhante, tem, creio eu, sete ou oito anos de existéncia. Ela deve sua existéncia a um fim de aparente caridade: foi criada para fazer circular, as expensas de seus membros, um grande nimero de livros que pcucas pessoas, sem isso, teriam podido comprar, e que, assim, corriam o risco de permanecer exclusivamente nas mos dos livreiros, em prejuizo de qualquer agremiacao util. Nao saberia dizer- Ihe se a caridade empregada em fazer circular tais livros foi empregada com a mesma intensidade na sua leitura. E possivel que bom numero destas obras tenha sido expor- tado para seu pais, € que, pouco procuradas na Inglaterra, tenham encontrado merca- do na Franga. Ouvi falar muito das luzes que se pode tirar de tais livros. Nao sei se — como se diz de certos licores — eles teriam ganho algo em atravessar 0 mar; mas 0 que ha de certo é que nunca encontrei nenhum homem de bom-senso, ou com um cer- to grau de informacao, que dissesse uma palavra em favor da maioria deles; como, alids, Reflexdes sobre a Revolugiio em Franga 49 nunca vi serem levados a sério os atos da Sociedade que os fez circular, a ndo ser por alguns de seus membros. A Assembléia Nacional da Franca parece ter adotado a mesma opinifo que eu a respeito deste pobre clube de caridade. Seus representantes guardaram toda a eloqiiéncia de seus agradecimentos para a Sociedade da Revolugao, ainda que, a bem da justiga, seus companheiros da Sociedade Constitucional também tivessem alguns direitos a estes agradecimentos. SOCIEDADE DA REVOLUCAO Uma vez que os franceses escolheram a Sociedade da Revolugo como o grande ‘objeto de seu reconhecimento e de seus elogios piblicos, o senhor hd de me perdoar se eu tomar o recente comportamento desta Sociedade como objeto de minhas observages. A Assembléia Nacional da Franga deu importancia aos membros de tal Sociedade, ado- tando suas posigSes; e estes retribuframa gentileza, comportando-se como um comité destinado a propagar, na Inglaterra, os principios da Assembléia Nacional. E preciso pois, doravante, consideré-los como. um tipo de pessoas privilegiadas, como membros nfio despreziveis do corpo diplomatico. Esta € uma das revolugGes que deu esplendor 4 obscuridade\e distinguiu méritos insuspeitdveis! Com efeito, até recentemente, eu nunca tinha ouvido falar deste clube que em momento algum ocupou os meus pen- samentos e nem, creio, os de qualquer outra pessoa além de seus membros. Depois de me informar, soube que um clube de dissidentes, cujo nome ignoro, conserva h4 muito tempo o hdbito de se reunir em um de seus templos para comemo- rar 0 aniversario da Revolugdo de 1688, ocasifo em que ouvem um sermio e, em se- guida, vao passar alegremente o dia em uma taberna, como, alids, fazem os membros de outros clubes. Mas eu nunca soube de nenhuma medida publica ou de algum sis- tema politico que tenha sido objeto de uma deliberagdo formal nestas solenidades, € menos ainda que se tenha discutido os méritos de uma Constituigdo estrangeira. Qual nfo foi pois minha surpresa ao ver estes senhores, revestidos de uma espécie de capacidade piblica, enviar 4 Assembléia Nacional uma mensagem de felicitag6es, por meio da qual os atos da segunda recebiam o apoio da autoridade dos primeiros. Nao vejo nada a ser reparado no que concerne aos antigos principios ou anti- ga orientaco deste clube — ou ao menos naquilo que era declarado. Mas, em minha opinifo, é provavel que novos membros tenham entrado no clube com finalidades se- cretas, e que alguns destes politicos realmente cristdos, que gostam de distribuir ben- feitorias, escondendo a mao que as executa, devem ter feito. deste clube um instru- mento de seus piedosos projetos. Entretanto, ainda que eu tenha raz6es para descon- fiar de suas finalidades secretas, eu s6 terei por certo aquilo que é ptblico. Primeiramente, aborrecer-me-ia muito em que me vissem direta ou indiretamente envolvido com suas maneiras de agir. Sem duvida, como todo o mundo, me permito es- pecular, sob minha propria responsabilidade, a respeito dos fatos que aconteceram ou acontecem na cena do mundo, tenham eles se dado num pais antigo ou num pais mo- derno, na repiblica de Roma ou na de Paris. No entanto, como no estou investido de nenhuma missdo de apostolado universal, como sou cidad4o de um Estado peculiar 50 Edmund Burke cuja vontade pablica me limita em proporgdes considerdveis, penso que cometeria um ato no minimo inconveniente e incorreto, iniciando publicamente uma correspondén- cia_formal com um governo estrangeiro, sem ter sido expressamente autorizado pelo governo sob o qual eu vivo. Estaria ainda menos disposto a iniciar tal espécie de correspondéncia, integrado a algo que se assemelha a uma associagdo equivoca, correndo o risco de fazer crer a todos que nfo estivessem a par dos costumes de meu pais, que a associaco na qual eu teria entrado, seria composta de pessoas revestidas de uma espécie de cardter piblico, autorizadas pelas leis deste Reino a se manifestarem sobre o significado destas leis. As sociedades de nomes genéricos, que ndo so autorizadas, esto envoltas em tanta ambigilidade e incerteza, podendo praticar tantos abusos de confianga, que néo € por puro formalismo que a Camara dos Comuns rejeitaria, por mais obsequiosos que fossem os termos ou mais insignificantes os objetos, qualquer peticao que Ihe fosse apresentada sob esta forma de assinatura. E, no entanto, foi um documento desta es- pécie que os franceses receberam de bragos abertos, tendo sido introduzido na As- sembléia Nacional com a mesma ceriménia e a mesma pompa, sob os mesmos aplau- sos que teriam recebido a majestade representante de toda a nagdo inglesa. Se o que esta Sociedade julgou de bom alvitre enviar aos franceses, fosse uma pega de peso e importancia, nfo seria essencial conhecer sua procedéncia, pois os argumentos nfo seriam, por isso, nem mais nem menos convincentes. Mas, aqui, trata-se apenas de um voto, de uma resolugdo, que repousa unicamente sobre a autoridade dos que a emi- tiram, ou seja, no caso presente, sobre a autoridade de individuos dos quais s6 se conhece um pequeno nimero. Em minha opinifo, a assinatura de todos os membros do clube deveria ter sido anexada ao documento. Isto teria permitido ao mundo todo saber quantos so, quem so, que valor suas opiniGes tiram de seus talentos, de seus conhecimentos, de sua experiéncia, de sua influéncia e de sua autoridade no Estado’. A mim, que sou um homem sem artiffcios, tal atitude me parece por demais refinada e engenhosa. Ela se assemelha muito a um estratagema politico destinado a dar, gracas a um nome pomposo, as declaragGes publics deste clube, uma importancia que elas nao tém quando se olham as coisas de perto. Tal politica tem muito aspectos de fraude.! Eu me orgulho de ser, tanto quanto qualquer dos membros deste clube, amigo de uma liberdade méscula, moral, e bem regrada, e, talvez, eu tenha podido dar, no curso de minha vida pablica, melhores provas deste sentimento que qualquer um des- tes senhores. Como eles, creio, nao invejo a liberdade de outras nagSes. Mas so poderia me adiantar e distribuir criticas ou elogios concernentes a ages ou interesses humanos, considerando a coisa no seu absoluto, na nudez e isolamento de uma abstragdo metafi- sica, So as circunstancias — circunstdncias que alguns julgam despreziveis — que, na tealidade, do a todo principio politico sua cor propria e seu efeito particular. Sdo as circunstancias que fazem os sistemas politicos bons ou nocivos 4 humanidade. Falan- do-se em abstrato, 0 governo, assim como a liberdade, € bom; no entanto, hé dez anos, teria eu podido, em s& consciéncia, felicitar a Franga por possuir um governo (pois ela tinha um) sem ter, de antemfo, inquirido o que era este governo e de que maneira ele funcionava? Posso hoje felicitar esta nago pela sua liberdade? A liberdade é, sem duvi- Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga Sl da, em principio, um dos grandes bens da humanidade; no entanto, poderia eu seria- mente felicitar um louco que fugiu de seu retiro protetor e da saudavel obscuridade de sua cela, por poder gozar novamente da luz e da liberdade? Iria eu cumprimentar um assaltante ou um assassino que tenha fugido da prisdo, por terem readquirido seus di- reitos naturais? Seria recomegar a histria do Cavaleiro da Triste Figura*, que empre- gava todo o seu heroismo em libertar criminosos condenados as galés. Quando vejo.o principio de liberdade em aco, vejo agit um principio vigoroso, ¢ isto, de inicio, é tudo o que sei. E 0 mesmo caso de um Iiquido que entra emeferves. céncia; os gazes que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, € necessario que 0 primeiro movimento se acalme, que 0 liquido se torne mais claro, e que nossa observac4o possa ir um pouco além da superficie agitada. Antes que me aventure a felicitar alguém sobre um bem que lhe advenha, é necessirio que eu esteja- relativamente seguro de que a pessoa tenha de fato recebido tal bem. A bajulago cor- rompe ndo s6 0 que a faz, como também o que a recebe; adular nio é util aos povos, nem aos reis. Por tal razdo, eu deveria me abster de felicitar a Franca por sua nova li- berdade até que tivesse conhecimento de como esta liberdade se harmoniza com 0 governo, com o poder piblico, com a disciplina e a obediéncia dos exércitos, com 0 recolhimento e a boa distribuigdo dos impostos, com a moralidade ¢ a religigo, com a solidez da propriedade, com a paz e a ordem, com os costumes piblicos e privados. A sua maneira, todas estas coisas so bens, e se elas vierem a faltar, a liberdade-deixa de ser um beneficio e perde a chance de durar muito tempo. O efeito da.liberdade eve pemitir aos homens fazer aquilo que Ihes agrada: vejamos, pois, 0 que lhes serd-agra- os carMos-acumprimentos que muito cedo, talvez, devam davel fazer antes de nos ai ser convertidos em pésames. A prudéncia nos ditaria tal conduta se se tratasse de in- dividuos separados e isolados; mas quarido-os-homens-agem-em-corpo,a-liberdade chama-se poder. Antes de se pronunciareém, pessoas esclarecidas gostarfo de conhecer © uso que é feito do Poder, sobretudo ando se trata de algo tao delicado quanto um novo poder confiado a novos depositarioS\que conhecem pouco ou nada dos prin- cipios, das caracteristicas e das disposigGes do poder, e em circunstancias nas quais 0s individuos que mais se agitaniitalvez ndo sejam os mais capazes de agao. Entretanto, a Sociedade da Revolucdo julgou que descer a estas considerages estava abaixo de sua dignidade transcendente. Enquanto estive no campo, de onde tive a honra de lhe escrever, tive apenas uma imperfeita idéia daquilo que ela tramava. Quando voltei para a cidade, consegui um relatério dos atos, por ela publicado, con- tendo um sermao do Dr. Price com as cartas do Duque de la Rochefoucauld e-do Arcebispo de Aix®” e outros documentos anexos. O conjunto desta publicagao, com © claro objetivo de ligar os negécios da Franca aos da Inglaterra, levando-nos a imitar a conduta da Assembléia Nacional, deixou-me em considerdvel inquietacdo. Os efeitos desta conduta sobre o poder, o crédito, a prosperidade e a tranqililidade da Franga tor- nam-se a cada dia mais evidentes. A forma futura de sua nova Constituicao torna-se mais clara. Hoje, podemos, com mais exatidfo, vislumbrar a verdadeira natureza do modelo que nos era dado imitar. Em algumas circunstancias a sabedoria, filha da dis- cregdo e da dignidade, prescreve o siléncio; em outra, a sabedoria de uma ordem mais elevada pode nos autorizar a dizer nosso pensamento. Sem diivida, a confusfo é ainda 52 Edmund Burke bastante pequena na Inglaterra, mas, nfo vimos na Franga uma confusfo inicialmente bem menor chegar em pouco tempo a uma forga capaz de destruir montanhas e de lutar contra o proprio céu? Quando a casa de nosso vizinho pega fogo, ¢ recomendé- vel que-tomemos precaugGes para proteger a nossa, pois é melhor aumentar_as dis- cussdes por excesso de precaucdo, que se deixar arruinar por excesso de confienca. Se bem que a Situagdo de seu pais ndo me deixe insensivel, é a paz de minha p& tria que est no centro de minhas preocupagGes. Gostaria de assegurar um pouco mais de publicidade Aqu¢lo que inicialmente foi escrito para sua satisfac pessoal. Contu- do, nfo deixarei de considerar os negécios franceses e continuarei a me dirigir a0 Se- nhor. Perdoe-me se, usando o estilo epistolar, deixar meus pensamentos e sentimentos se exprimirem na ordem em que se apresentarem ao meu espfrito, sem preocupar-me um plano regular. Comego me ocupando da Sociedade da Revolucdo, mas nfo me li- mitarei a ela. Como poderia fazé-lo? Parece que me encontro diante de uma grande cri- se, nfo apenas francesa, mas européia, e, talvez, mais que européia. Considerando-se bem as circunstancias, 4 Revolucfo Francesa é a mais extraordindria que 0. mundo ja viu, Os resultados mais surpreendentes se deram e, em mais de um caso, produzidos pelos méios mais ridiculos e absurdos, da maneira mais ridicula, e, aparentemente, pelos mais vis instrumentos. Tudo parece fora do normal neste estranho caos de leviandade e ferocidade, onde todos os crimes aparecem ao lado de todas as loucuras. Diante do espetaculo desta monstruosa tragicomédia, 0s mais opostos sentimentos se suce- dem em nés e, algumas vezes, se confundem. Nés passamos do desprezo a indignacao, do riso as légrimas, da arrogancia ao horror. Da Monarquia na Constituicao Inglesa I Nao se pode, contudo, negar que este estranho espetdculo tenha sido considera- do por alguns de um ponto de vista bem diferente. S6 tiveram entusiasmo e exaltagdo. Em tudo o que se passou na Franga, eles viram o emprego firme e equilibrado da liber- dade, compativel com a moral e a piedade ao ponto de nao s6 merecer o elogio secular de audaciosos e ma \s politicos, mas de se tornar um excelente tema para to- das as expansset@ee Bourtatba foquéncia sacra. SERMAO DO DR. PRICE Na manhi do dia 4 de novembro, o Dr. Richard Price, eminente ministro ndo- -conformista, fez para os membros de seu clube, reunidos na sala de Old Jewry, um sermfo bi bizarramente confuso, onde alguns bons sentimentos religiosos e morais, muito bem. expostos, : SE :mistoram e: em _uma espécie de caldo, composto de diferentes opinides e reflexes polfticas: mas a|Revolugao Francesa¢é 0 grande ingrediente da receita. Con- sidero que_o documento transmitido por Lorde Stanhope® , em nome da Sociedade da Reyolugao, nasceu dos princfpios expostos neste sermao, sendo um corolirio deles. Com efeito, a mogdo foi feita pelo préprio pregador e foram os ouvintes, ainda entusi- asmados pelas suas palavras, que a votaram sem criticas nem restrig6es explicitas ou implicitas. Se, entretanto, algum destes senhores desejasse separar 0 sermao da resolu- go, ele teria meios de reconhecer um e de negar a outra. Estes senhores podem fazé- Jo, eu nao posso. Para mim, este sermfo parece ser a declarago piblica de um homem muito li- gado a conspiradores literdrios, filésofos intrigantes, ; tedlogos e politicos tedlogos da Inglaterra e do continente. Sei que estes 0 apresentam como uma espécié ‘de ordculo porque com as melhores intengdes do mundo, ele filipisa naturalmente, e canta seus hinos proféticos em total acordo com seus objetivos’. ©. \\ 54 Edmund Burke Este sermdo tem um estilo que, creio, ndo é ouvido em nenhum dos piilpitos to- lerados ou encorajados neste reino, desde 1648, quando um predecessor do Dr. Price, © Reverendo Hugh Peters®, fez ressoar na propria capela do rei em Saint James, um sermffo sobre a honra e o privilégio dos Santos, que “com louvores a Deus em suas bocas, e uma espada com duas laminas em suas maos, deveriam executar 0 julgamento dos pagios € 0 castigo do povo, aprisionar os reis e colocar seus nobres sob ferros.” * Poucos discursos sacros, salvo no tempo da Liga na Franca e no tempo de nosso pacto solene, respiraram t4o pouca moderacdo quanto este de Old Jewry. Mesmo consideran- do-se que houvesse algo de moderado em tal discurso, ainda assim deverfamos ter em. mente que a polftica e 0 pulpito pouco se harmonizam. As igrejas s6 deveriam ouvir a doce voz da caridade cristd, e tal confusio de fungSes ndo serve nem a causa da li- berdade e do governo civil, nem a da religiio. Aqueles que deixam seu proprio caré- ter para assumir um outro que ndo lhes pertence, em geral, ignoram tanto o cardter que deixam como 0 que assumem. Ignorando o mundo no qual se movimentam, sem experiéncia nos negdécios sobre os quais se pronunciam com tanta seguranga, eles sé tém em comum com a politica as paixGes que excitam. A Igreja € certamente um lu- gar onde uma trégua de um dia deveria ser permitida as discuss6es e as céleras dos homens. Esta_espécie de eloqiiéncia sacra, revivida depois de t4o longo intervalo, tem para mim ares de novidade; mas de uma novidade que nfo est4 inteiramente livre de perigo. Ndo que eu veja perigo em todas as partes do sermdo. A regra de conduta su- gerida a um nobre e responsdvel tedlogo-leigo (lay-divine), tido como membro impor- tante de uma de nossas universidades**, como alids os conselhos dados a outros te- 6logos leigos ‘da nobreza e da literatura”®, podem ser proprios.e apreciados, mesmo que contenham algumas novidades. Se estes nobres Seekers nao podem satisfazer suas piedosas fantasias nem no velho depésito da Igreja nacional, nem nos ricos sor- timentos das lojas das congregag6es dissidentes, o Dr. Price aconselha-os a improvisa- rem sobre 0 nfo-conformismo, devendo cada um fundar uma Igreja baseada em seus proprios principios* ** E extraordindrio como este respeitdvel reverendo ¢, ao mes- mo tempo, tdo ardente em promover seitas novas, e tao indiferente as doutrinas que elas possam ensinar. E um homem cujo zelo tem um curioso cardter: nao € pela propa- gacdo de suas proprias opiniSes, mas pela propagacdo de quaisquer opini6es; no € pela difusio da verdade, mas pela difusdo da contradi¢&o. Que os nobres doutores come- cem a se separar — de quem ou de que, pouco importa — e, uma vez obtido este gran- * Salmo 149. ** Discurso sobre o Amor da Patria, 4 de novembro de 1789, pelo Dr. Richard Price, 3%edl, pp. 17 18, ‘**#"Qs que ndo amam 0 culto prescrito pela autoridade piblica, deveriam, se lhes for imposstvel achar um fora da igreja que eles aprovam, criar para si seu prOprio culto; e, assim agindo, dando este exemplo de uma adoragfo racional e viril, os homens que tém importancia pela sua postedo ou pelo seu talento literdrio, prestariam os maiores servicos a sociedade e a0 mundo.” Serm&o do Dr. Price p. 18. Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga 55 de feito, estaremos certos de que sua religido sera racional e digna dos homens. Eu du- vido que esta “grande companhia de grandes pregadores” traria a religifo todos os beneficios atribuidos por este pastor calculista. Certamente, isto acrescentaria um no- mero importante de espécies ndo classificadas 4 ampla colegdo de classes, géneros espécies. conhecidas, que enriquecem o hortus siccus" da dissidéncia. O sermao de um nobre duque, de um nobre marqués, de um nobre conde, ou de um audacioso barao, seria uma nova e preciosa distragdo para esta cidade cansada da uniformidade de seus tediosos divertimentos. Pediria, simplesmente, que estes novos Mess-Johns" de capae coroa, guardassem na exposicdo dos princfpios democraticos e niveladores, a medida que se deve esperar de sua elogiiéncia titulada. Os novos evangelistas desapontaro, ouso dizer, as esperancas que neles foram depositadas. Eles nao se tornaro, em sentido proprio ou figurado, polemistas em teo- logia; ndo estado dispostos a organizar suas congregagSes ao ponto de poder, como nos bons velhos tempos, pregar suas doutrinas a regimentos de dragdes ou a corpos de infantaria e artilharia. Tais condutas, ainda que favordveis 4 causa da liberdade civil e religiosa obrigatoria, podem n4o produzir, em semelhante grau, a tranglilidade nacio- nal, Espero que nao se veja nestas restrigdes grandes tracos de intolerancia, nem vio- lentas manifestagdes de despotismo. 45: Entretanto, posso dizer que nosso pregador, “utinam nugis tota illa dedisset tempora soz vitie’”? . Nem tudo em seu fulminante discurso é t4o inocente assim. Suas doutrinas afetam partes vitais de nossa Constituigao. No seu sermifo politico, ele diz’ Sociedade da Revolugdo que o Rei da Inglaterra “é talvez 0 tinico soberano legitimo que existe no mundo, porque ele € 0 tinico que deve sua coroa a escotha de seu povo” Este “ arquipontifice” dos Direitos do Homem expée reis do mundo ao desprezq pu- blico, e os excomunga, com um poder igual em plenitude, e superior em audacia, a0 poder de deposigéo reconhecido ao Papa pelo fervor do século XII; no que concerne estes reis que usurparam, diz ele, 0 poder que eles exercem sobre 0 mundo inteiro, cabe a eles considerar como acolherdo em seus paises missionarios que pretendem en- sinar a seus povos que eles ndo sfo reis legitimos. Mas cabe a n6s, num importante interesse doméstico, examinar seriamente a solidez do tnico princfpio segundo o qual estes senhores reconhecem ao rei da Gra-Bretanha direitos a fidelidade. Na medida em que ela se aplique ao principe atualmente reinante, esta doutri- na € um absurdo — e, portanto, nao 6 verdadeira nem falsa — ou a afirmagao da opi- nigo mais mal fundada, mais perigosa, mais ilegal e mais inconstitucional que existe. De acordo com este espiritual doutor em politica, se 0 rei ndo deve sua coroa.a esco- Iha de seus siditos, reina injustamente. Ora, nada mais falso que se imaginar que a coroa deste reino seja assim mantida por sua majestade. Eis porque, segundo o mesmo princicio destes senhores, o rei da Gra-Bretanha que ndo recebeu suas fungdes de ne- nhuma forma de eleicfo popular, ndo vale mais que todo este bando de usurpadores que reinam, ou melhor, que se imp6em a todo o universo, sem ter nenhum direito ou titulo a obediéncia de seus siditos. Vé-se, agora, 0 objetivo que norteia esta doutrina geral. Os propagadores deste evangelho politico esperam que seu principio abstrato (principio segundo o qual a escolha popular é necesséria 4 existéncia legal da sobera- 56 Edmund Burke na magistratura) seja tolerado a partir do momento em que o rei da Grd-Bretanha nao seja por ele atingido. Entretanto, aos poucos, eles acostumardo seus clubes a conside- rarem tal princfpio como um axioma indiscutivel. De inicio, seré apenas uma teoria, preservada na eloqiiéncia sacra, e guardada para posterior uso. Condo et compono qua mox depromere possim™. Assim, enquanto nosso governo se asseguraria gracas 4 uma excegdo a qual ele ndo tem direito, suprimir-se-ia a seguranga que ele tem em comum com todos os governos, — se é que existe seguranga na opiniao. E assim que estes politicos trabalham, enquanto ndo se presta atencGo a suas doutrinas; mas, se se chega a examinar 0 verdadeiro sentido de suas palavras e a fina- lidade direta de seus princfpios, entdo, eles recorrem aos equivocos, ¢ se jogam nas escapatorias. Quando dizem que o rei tem a coroa pela escolha de seus siiditos, e que, assim, ele € 0 tnico soberano legitimo no mundo, talvez, queiram nos dizer que al- guns dos predecessores do rei tenham sido chamados ao trono por alguma espécie de eleigdo, assim sendo, ele também detém a coroa por causa da escolha de seus stiditos. Desta forma, gracas a um miserdvel subterfagio, esperam tornar sua proposi¢do acei- tével, despojando-a de todo o seu sentido. Que sejam bem-vindos ao asilo que mere- cem por seus crimes, j4 que eles se refugiam na loucura. Pois, se admitimos tal inter- pretacdo, em que sua idéia de eleigdo difere de nossa concepgdo de hereditariedade? E como a fixagdo da Coroa na linhagem de Brunswick, descendente de Jaime I, pode legitimar nossa monarquia mais que a de nagGes vizinhas? Certamente, em um ou ou- tro momento, todos os fundadores de dinastia foram escolhidos pelos que os chama- ram a governar, e pode-se sustentar a opinifo de que todos os reinos da Europa foram, no passado, eletivos, com mais ou menos limitagdes nos objetos de escolha; mas, qual- quer que tenha sido a natureza do poder real, h4 mil anos, ou qualquer que tenha si- do a maneira pela qual as dinastias reinantes da Inglaterra ou da Franga tenham se ini- ciado, o rei da Grd-Bretanha € rei, hoje, por uma ordem de sucessdo fixay de acordo com as leis de seu pais; e enquanto as condig6es legais do pacto dé-Soberania forem preenchidas (como elas s4o hoje), ele possuira sua coroa sem ter de se preocupar com a escolha da Sociedade da Revolugao, cujos membros, alias, nao tém, individual ou co- letivamente, nenhum diteito a eleger um rei; fato que, acredito, nfo os impediria de se erigirem em colégio eleitoral se as coisas chegassem ao ponto em que suas pretensdes pudessem se realizar . Os herdeiros e sucessores de Sua Majestade, cada um a seu tem- po e ordem, possuirdo a coroa, sem que se preocupem com a escolha da Sociedade da Revolugio. E um grosseiro erro de fato, suport que Sua Majestade (ainda que toda a nagdo a acompanhe com seus melhores votos) deva a sua coroa a eleic&o de seus siditos. Qual- quer que seja 0 sucesso que a Sociedade da Revolugdo encontre ao se equivocar com este erro, é certo, ao menos, que ela ndo pode eludir sua declaraco bem explicita so- bre o principio de que o povo possui um direito de escolha, principio que ela man- tém formalmente e ao qual ela se atém com tenacidade. Todas as insinuagées maldo- sas sobre a eleicdo se baseiam nesta proposigdo, ¢ se relacionam a ela. Alias, com medo de que justificando exclusivamente a legitimidade do poder real na Inglaterra, fosse apenas visto como alguém que tentasse conciliar em suas declamagdes 0 amor a liber- Reflexdes sobre a Revolugo em Franga 57 dade com o amor & adulag0, nosso pastor politico afirma dogmaticamente* que o povo deste pais adquiriu, gragas aos principios da Revolugdo, trés direitos fundamen- tais que, diz ele) s4o insepardveis um do outro, e podem ser expressos em uma curta frase. Sdo: 1. Escolher nossos préprios governantes. 2. Depé-los por indignidade (misconduct). 3. Estabelecer um governo para nés mesmos. Esta nova declarago de direitos, desconhecida até agora, e ainda que feita em nome de todo o povo, pertence apenas aos senhores da Sociedade da Revolugao, e somente 4 sua faccfo. O conjunto do povo inglés ndo a partilha e desaprovava-a com- pletamente. Ele combaterd sua colocagdo em pritica, decidido, se preciso for, a sa- crificar, para impedi-la, sua fortuna e sua Vida. As leis de seu pais o obrigam a isso, estas leis que foram feitas por ocasifo desta mesma Revolugdo, cuja sociedade que abusa de seu nome, queria cobrir suas pretens6es a direitos ficticios. DISCUSSAO DO PRIMEIRO PRINCIPIO DO DR. PRICE, “(0 direito de escolhermos nossos governantes) Estes senhores de Old Jewry, em todos os seus raciocinios sobre a Revolugdo de 1688, tém de tal forma diante de seus olhos e no seu coragdo a revolucdo que se deu na Inglaterra quarenta anos mais cedo, e a que se produz na Franca atualmente, que, cons- tantemente, confundem as trés. E necessirio que separemos o que eles confundem. Lembremos as suas desgarradas imaginagGes, os atos da Revolugdo que veneramos, a fim de pedermos descobrir seus verdadeiros princtpios. Se os principios.da Revolugio de-1688 esto inscritosem algum lugar, certamente, este lugar serd o estatuto chamado Declaragdo de Direitos."® Nesta declatacdo cheia de sabedoria, moderagao e prudéncia, elaborada por grandes juristas e grandes estadistas, e ndo por mornos e inexperientes entusiastas, no h4 nenhuma palavra, nenhuma alusdo que se relacione a um direito geral “‘de escolher nossos proprios governantes, de depé-los por indignidade, e de esta- belecer um governo para nds mesmos.”” Esta Declaragdo de Direitos (ato do 1° ano de Guilherme e de Maria, Sess. 2, Cap. 2) € a pedra angular de nossa Constituigao, reforgada, explicada, melhorada, e para sempre definida nos seus principios fundamentais. Ela se intitula/“Ato declaran- do 05 direitos ¢ as liberdades do stidito e fixando a ordem de sucesso di Cota.” Sr. poder4 observar que a exposigao destes direitos e o regulamento desta sucessao se en- contram no corpo de uma mesma lei, e que esto indissoluvelmente ligados um ao outro. Alguns anos mais tarde, uma ségunda oportunidade surgiu de se afirmar o direito dos siiditos Para€legerem seu soberano. A perspectiva de se ver-o Rei Guilherme e a Princesa, mais-tarde Rainha Ana.sem posteridade, suscitou no Parlamento a questo de se saber onde fixar a Coroa e como garantir no futuro as liberdades do povo. O Par- lamento ocupou-se, desta vez, em legitimar a soberania, apoiando-se nos principios que * Discurso sobre o Amor da Pitria, Dr. Price, p. 34. 58 Edmund Burke os senhores de Old Jewry atribuem falsamente 4 Revolucdo? Nao. Ele se ateve aos prin- cipios da Declaragdo de Direitos, limitando-se a indicar com mais precisio quem, na linha protestante, deveria herdar a coroa. Este ato também incorporou, pela mesma po- Iftica, nossas liberdades e 0 regulamento da sucessdo real pela via hereditdria. Em vez de um direito de escolher nossos governantes, o Parlamento declarou que o-estabeleci- mento da sucessdo na linhagem protestante, descendente de Jaime I, era condig&o ne- cesséria “da paz, da tranqiilidade e da seguranca do Reino”, e que também era indis- pensével “manter, no que concerne a sucessdo, uma regra fixa;\ qual os siditos pos- sam recorrer _para.sua-propria protegdo.” Estes dois atos que contém os principios cla- ros-e certos da Revolugdo, longe de justificarem pretensdes decepcionantes ¢ enigmati- cas a um “direito de escolher nossos governantes”, mostram, ao contrério, quanto a sabedoria da nagdo se ops a que se erigisse em regra de conduta aquilo que foi necessi- dade de um dia. Houve, inegavelmente, quando da Revolugao, na pessoa do Rei Guilherme, um pequeno e tempordrio desvio na estrita ordem de uma sucessSo.hereditéria regular; mas é absolutamente contrario a todos os principios elementares da jurisprudéncia, derivar um principio de uma lei feita em um caso especial, e concernente a uma pessoa isolada. Privilegium non transit in exemplum. Se houve um tempo favordvel ao estabeleci- mento do principio segundo o qual a legitimidade do rei advém de sua eleicdo pelo po- vo, este tempo foi, sem divida, o momento da Revolucdo. O fato de ele nao ter sido estabelecido nesta época, é a prova cabal de que a nagao inglesa era de opinifo que ele nunca deveria ser estabelecido. Nao hd ninguém tao ignorante de nossa historia a ponto de nfo saber que a maioria dos dois partidos no Parlamento estava tZo pouco disposta a estabelecer algo de semelhante a este principio, que, de inicio, ela decidiu colocar a coroa vacante, nfo sobre a cabega do Principe de Orange, mas sobre a de sua mulher, Maria, filha do Rei Jaime, a primogénita de seus filhos, reconhecida, indubitavelmente, como sua filha.” Seria recomecar uma hist6ria bem triste, lembrar todas as circunstan- cias que demonstram que, aceitando o Rei Guilherme, o Parlamento nao fazia propria- mente uma escolha. A verdade é que para aqueles.que-ndo queriam chamar de volta © Rei Jaime, nem ensangiientar sua patria, e precipitar de novo sua religifo, suaseis e suas liberdades nos perigos dos quais eles acabavam de sai, o recorihecittiento do Rei Guilherme foi um ato ditado pela necessidade — no mais estrito sentido moral que esta palavra possa ter. ~ ue uma vez, € num tinjco caso, o Parlemento abandonou a estrita ordem de hereditariedade a favor de-um principe. que, alids, sé hdo-era-o-primeiro na linha de sucesso, estava perto de sé-lo, Mas é curioso observar, no proprio ato que san- ciona tal abandono, como Lorde Somers'®? que redigiu a Declaragao de Direitos, condu- ziu-se nesta ocasido delicada. E.curioso observar quanta habilidade este grande homem eo Parlamento.que o seguia usaram para Cissimular €s{a passageira solugo de conti- nuidade, a0 mesmo tempo em que eles se esforcavam em reforcar e exaltar tudo aquilo que, neste ato imposto pelas circunstancias, pudesse justificar a idéia de uma sucesso hereditaria. Abandonando o estilo seco € imperativo habitual nos atos do Parlamento, Lorde Somers levou os Lordes ¢ os Comuns a declararem numa espécie de hino legisla- tivo “que Deus foi, para nés, de uma maravilhosa providéncia e de uma misericordiosa Reflexdes sobre a Revolugfo em Franga 59 bondade, conservando as ditas Majestades Reais a fim de fazé-las, muito felizmente, reinar sobre nds do alto do trono de seus antepassados, e quejeles Lhe dirigem do mais profundo de seus coragdes seus louvores e suas mais humildes agGes de gracas.” Nao hé divida que o Parlemento tinha em vista o ato de reconhecimento do pri- /meiro ano do reinado de Elizabeth I (Cap. 3) ¢ o do primeiro ano do reinado de Jaime I, documentos onde a natureza hereditéria da Coroa_est4 fortemente_afirmada; pois, mais de uma vez ele seguiu, com uma preciso quase literal, os termos e a propria for- ma das ag6es de gracas que se encontram nestes antigos estatutos declaratérios. As duas Casas, no ato do Rei Guilherme, ndo agradeceram a Deus 0 fato de Ele Ihes haver propiciado uma boa ocasido para afirmarem o direito do povo de eleger seus governantes, e, ainda menos, de Ihes haver colocado em posigao de fazer da elei¢g0 0 unico titulo de ascensdo legitima 4 Coroa. Muito pelo contrério, elas consideraram uma ocasido providencial o fato de estarem em condi¢do de evitar até mesmo a aparén- cia de uma justificativa de elei¢Go. Elas jogaram um espesso véu politico sobre as cir- cunstancias capazes de enfraquecer os direitos que elas queriam perpetuar na ordem de sucessio .melhorada, e dissimularam tudo aquilo que fosse suscetivel de fornecer um precedente a qualquer abandono ulterior da regra que queriam estabelecer para sempre. A fim de nao arranhar a autoridade da Monarquia e de se conformarem estrei- tamente A pratica de seus ancestrais, tal como elas apareciam nos estatutos declarat6- tios das rainhas Maria e Elizabeth, os membros do Parlamento reconheceram a Suas Majestades, pelo artigo segundo, todas as prerrogativas legais da Coroa, declarando “que estas prerrogativas lhes eram muito integralmente, muito legitimamente e muito completamente adquiridas, incorporadas, unidas e anexadas.” No artigo terceiro, a fim de suprimir as dificuldades que poderiam nascer da produgio de pretensos titulos i Co- roa, o Parlamento declarou (ainda aqui, conforme a tradi¢do nacional e servindo-se da linguagem tradicional a ponto de reproduzir como uma rubrica os termos dos atos pre- cedentes de Elizabeth e de Jaime) que “‘a unidade, a paz, e a tranquilidade deste reino dependem inteiramente, sob Deus, de uma regra fixa na sucessdo de seus soberanos.” O Parlamento sabia que um titulo duvidoso de sucesso seria muito semelhante a (em eleigao, € que a eleigao destruiria completamente “a unidade, a paz e a tranqiiili- ‘e de desta nagdo”, bens que julgavam dignos de alguma con: consideracao. A A fim de salva- ‘YWardar estes bens, e, pois, de repudiar a doutrina de Old Jewry a respeito de “um di- reito a escolher nossos governantes”, os membros do Parlamento introduziram no arti- go quarto um compromisso solene, tirado do ato de Elizabeth; compromisso 0 mais so- Tene possivel de respeitar a hereditariedade da sucessdo, a mais formal rentncia que se possa imaginar aos principios que a Sociedade da Revolugdo lhes queria imputar: “Os Lords e: e temporais, bem como os Comuns, agindo em nome de todo 0 dito povo/4e submetem.com toda a humildade e fidelidade, eles, seus herdeiros e sua poste- rae btm on sinceramente que eles empregardo todas as suas forgas para manter e defender as ditas Majestades, assim como a limitagdo da Coroa tal qual ela se encontra especificada e contida no presente ato.” A Revolugdo nfo nos dou o-dista de eles Nossos reis, € fearo au 3 8 nha que0-TErTETos possuido antes a nagfo ingles, por ocssfo da KevoliGag/renun- 60 Edmund Burke ciou solenemente a ele, por ela ¢ por todos os seus descendentes. Deixemos estes se- nhores de Old Jewry se orgulharem de seus principios whigs, tanto quanto queiram. Para mim, nao desejarei jamais passar por melhor whig que Lord Somers, entender os princfpios da Revoluggo melhor que os que a realizaram, nem encontrar na Declaragéo de Direitos mistérios desconhecidos daqueles cujo estilo penetrante fez entrar em nos- sas leis e gravou em nossos coragdes os termos € 0 espirito desta lei imortal. E bem verdade que neste momento, investida que estava de poderes nascidos da forga das circunstancias, a nago se encontrava, num certo sentido, livre para colocar no trono quem ela quisesse; mas livre somente com a liberdade que ela também tinha de abolir completamente sua monarquia ou qualquer outra parte de sua Constituiggo. No entanto, seus representantes ndo imaginaram ter 0 direito de poder realizar mudan- gas tdo audaciosas. E dificil, talvez impossivel, estabelecer-se limites 4 competéncia pu- ramente abstrata do poder supremo, tal qual o exercido pelo Parlamento nesta época; nfo é menos verdade que os limites da competéncia moral — que mesmo num poder mais indiscutivelmente soberano, subordinam as vontades de um dia a uma razdo per- manente, as méximas fixas da boa fé, da justica e das regras fundamentais da politica — que estes limites, dizia eu, so perfeitamente discenidos e observados pelos que, sob qualquer nome ou a qualquer titulo, exercam uma autoridade no Estado, E assim que, por exemplo, a Camara dos Lordes néo tem moralmente o direito de dissolver a Cama- ta dos Comuns, nem o de dissolver a si propria, nem o de abdicar, se ela desejasse, a porgdo do poder legislativo que ela possui entre o reino. Um rei pode abdicar por ele mesmo, ele ndo tem 0 direito de abdicar pela Monarquia. RazGes t4o fortes, talvez mais fortes ainda, impedem a Camara dos Comuns de renunciar a sua autoridade. 0 compro- misso, 0 pacto social que se chama geralmente de Constitui¢ao, proibe tais abusos ¢ tais abandonos de poder. As partes constituintes de um Estado devem respeitar as obri- ‘gages ptiblicas que elas tém umas em relagdo as outras ¢ em relaggo a todos os que de- rivam algum interesse sério de seus compromissos, da mesma forma que um Estado, co- mo um todo, é obrigado a manter sua palavra face a comunidades separadas. De outra forma, competéncia e poder seriam logo confundidos, e as leis nada mais seriam que injung6es da forga vitoriosa. Segundo este principio, a ordem de sucesso a Coroa sem- pre foi o que ela ¢ hoje: uma ordem de sucessdo hereditéria fixada pela lei. Era, na anti- ga linha, 0 direito costumeiro; hoje, é uma lei de garantia, mas que opera a partir dos principios do direito costumeiro, sem ter modificado sua substdncia, regulamentando apenas 0 modo de seu exercicio e determinando as pessoas 4s quais ele deva se aplicar. Estas duas espécies de leis tém forga equivalente e derivam de uma mesma autoridade que emana do acordo comum e do pacto original do Estado: communi sponsione repu- blicae.° Como tal, elas obrigam igualmente o rei e 0 povo enquanto suas condigées forem observadas; e elas servem para perpetuar 0 mesmo corpo politico. N&o é impossivel — se recusamos nos deixar enredar nos labirintos de um sofisma metafisico — conciliar o emprego de uma regra fixa com o fato de um desvio acidental; © carter sagrado do princ{pio hereditdrio na sucesso de nossos reis com o poder de mudar sua aplicago em caso de extrema necessidade. Mas mesmo neste extremo — se medimos a extensfo de nossos direitos pelo exercicio que deles fizemos na Revolucéo — 6 necessdrio se limitar 4 mudanga da parte deteriorada, daquela que tornou o desvio Reflexdes sobre a Revolucdo em Franga 61 necessdrio; e levar a cabo tal mudanga sem a pretensdo de decompor todo o corpo civil € politico, com a finalidade de se criar uma nova ordem civil a partir dos elementos ori- ginais da sociedade. Um Estado onde no se pode mudar nada, nao tem meios de se conservar. Sem meios de mudanga, ele arrisca perder as partes de sua Constituiggo que com mais ardor desejaria conservar. Os dois principios da conservag4o e da correg4o agiram fortemente nos dois periodos criticos da Restauragdo e da Revolucdo, quando a Inglaterra se en- controu sem rei. Em cada um destes dois perfodos, o fator de unio do velho ediffcio nacional foi rompido: nem por isto a nago destruiu todo o edificio. Ao contrario, em- pregou-se as partes da antiga Constitui¢fo que nada tinham sofrido na regeneracdo da- quela que faltava. Conservou-se as antigas partes exatamente como eram, a fim de que aquela que se reconstituia pudesse ser adaptada a elas, Agiu-se por meio das antigas ins- tituigdes organizadas na forma tradicional de sua organizago, e nfo por meio de mole- culae € dissociadas de um povo desagregado. Talvez em momento algum, o Parlamento soberano manifestou mais solicitude para com a Coroa, este princ{pio fundamental da Constituigo briténica, que no momento em que ela deixou a linha direta de sucessio hereditaria. A Coroa saiu da linha na qual ela vinha sendo transmitida até entao, pas- sando para a nova linha que se originava do mesmo tronco. Ela continuou sendo uma linha de sucessdo hereditdéria no mesmo sangue, mas especificou-se que a coroa sO seria transmitida aos membros protestantes da famflia. Quando o Parlamento mudou a linha de sucesso mantendo o principio da hereditariedade, demonstrou que considerava tal princfpio inviolével. Alids, antigamente, bem antes da revolugdo, a lei de sucesso admitia que este princfpio fosse emendado. Algum tempo depois da conquista, grandes debates surgi- ram sobre os princfpios legais da transmissdo hereditaria. Houve davidas a respeito de quem seria.o titular de direito 4 sucessdo, se o herdeiro per capita ou se o herdeiro per stirpes.® Mas que o primeiro tenha cedido ao segundo, ou que 0 herdeiro catélico tenha sido preterido em favor do protestante, ainda assim, o principio da hereditariedade foi conservado como uma espécie de imortalidade através das mudangas — multosque per annos stat fortuna domus et avi numerantur avorum.”' Tal € 0 espirito de nossa Cons- tituigdo, nfo nos perfodos de normalidade, mas em todas as suas revolugdes. Qualquer que tenha sido o primeiro rei, de onde quer que tenha vindo, que ele tenha obtido a coroa pela lei ou pela forga, a sucesso hereditdria continuou ou foi adotada. Estes senhores da sociedade de propaganda revoluciondria véem na Revolugdo de 1688 apenas o nfo cumprimento da Constituigfo, eles tomam o desvio do principio pelo proprio principio. Eles pouco consideram as Obvias conseqiiéncias de sua doutri- na. No entanto, devem ver que ela deixa uma autoridade positiva a bem poucas insti- tuigdes deste pais. Uma vez que se aceita um princfpio t4o injustificavel quanto o que s6 reconhece como legitimos os tronos eletivos, é certo que nenhum dos atos pratica- dos pelos princfpes reinantes antes desta suposta elei¢go podem ser considerados vali- dos. Serd que estes teéricos pretendem imitar alguns de seus predecessores que tiraram 08 corpos de nossos antigos reis da tranqiiilidade de seus tamulos? Ser4 que querem atingir e depor retrospectivamente todos os reis que reinaram antes da Revolucio, e, assim, sujar o trono da Inglaterra com o oprobio de uma usurpagdo ininterrupta? Tém 62 Edmund Burke a pretensao de invalidar, anular ou questionar os titulos de toda a linhagem de nossos teis, e este grande corpo de nossas leis constitucionais que foi estabelecido nos reinados daqueles que eles chamam usurpadores? Anulando leis inestimavelmente preciosas para nossas liberdades e que certamente valem todas as que foram votadas durante ou de- pois da Revolucao? Se reis que ndo devem sua coroa 4 eleigéo nfo tém titulo para fazer leis, 0 que ser4, ento, do estatuto de tallagio non concedendo? — e da petigdo de direi- tos? — e do habeas corpus?” Ser4 que estes novos doutores dos direitos do homem vo sustentar que o Rei Jaime II, que subiu ao trono em virtude de um direito heredi- tério ainda nfo limitado ao ramo protestante, nao era para todos os fins o legitimo Rei da Inglaterra, antes que ele tivesse praticado os atos que foram justamente conside- rados como uma abdicagfo a sua coroa? Se ele ndo fosse rei, o Parlamento poderia ter evitado muitas das dificuldades da época que estes senhores celebram. Mas no , o Rei Jaime era um mau rei investido de um justo titulo: ndo era absolutamente um usurpa- dor. Os principes que se sucederam em virtude do ato do Parlamento que colocou a coroa sobre a cabega da eleitora Sofia e sobre as de seus descendentes protestantes, reinaram, tal qual o Rei Jaime, em virtude de um titulo hereditario. O Rei Jaime rei- nou em virtude da lei que existia no momento em que ele subiu ao trono; e os princi- pes da Casa de Brunswick herdaram a coroa, ndo por meio de uma eleig#o, mas em vir- tude da lei que existia no momento em que respectivamente a receberam, e que fixava a coroa no ramo protestante, como acredito ter suficientemente demonstrado. A lei pela qual esta familia especificamente destinada ao trono é 0 ato do 12° e 13° anos do reinado do Rei Guilherme. Os termos deste ato nos ligam, até o fim dos tempos, “‘nds, nossos herdeiros e nossa posteridade, a eles, seus herdeiros e sua posteri- dade”, protestantes, nos mesmos termos que a Declaragdo de Direitos nos tinha ligado aos herdeiros do Rei Guilherme e da Rainha Maria. Este ato garante, pois, a um s6 tem- po, uma coroa hereditéria e uma fidelidade hereditdria, Que razdo tinha o Parlamento em rejeitar a bela e abundante escolha de principes que nossa patria lhe. apresentava, para ir procurar em pafses longinquos uma princesa estrangeira donde pudesse derivar, para a série de nossos futuros reis, seu titulo para governar milhes de homens ao lon- go dos séculos — sim, que razdo, sendo a tirada do objetivo constitucional de estruturar um sistema que garantisse, para o futuro, uma ordem de sucessfo capaz de descartar qualquer elei¢go popular? A Princesa Sofia foi nomeada, no ato do 12° e 13° anos do reinado do Rei Gui- Iherme, apenas como tronco e como raiz do direito hereditario de nossos reis; e ndo por seus méritos possiveis de detentora temporaria de um poder que ela poderia nunca vir a exercer,... e que de fato ela jamais exerceu. Eis a raz&o, a Gnica razio que 0 ato da para sua escolha: “a mui alta Princesa Sofia, Eleitora e Duquesa Viva de Hanover, € filha da falecida mui alta Princesa Elizabeth, Rainha da Boémia, filha do falecido nosso Soberano e Senhor o Rei Jaime I, de feliz meméria, e aqui ¢ declarada a primeira na linha da sucesso protestante,... € a coroa transmitir-se-4 a seus herdeiros protestantes.”” O Parlamento elaborou este ato nfo s6 para que no futuro a coroa da Inglaterra se transmitisse aos herdeiros da Princesa Sofia, como também (e julgou isto muito impor- tante) a fim de que esta princesa servisse de ligagdo entre o novo ramo ¢ o velho tronco de Jaime I. Desta forma, a Monarquia preservaria sua unidade intacta através dos tem- Reflexdes sobre a Revolugo em Franga 63 pos, conservando-se (com seguranga para nossa religifo) 0 seu antigo modo de sucessao hereditaria que, se um dia ameagou nossas liberdades, no mais das vezes, defendeu-as em meio a todas as tempestades e todos os conflitos de privilégios e prerrogativas. O Parlamento agiu bem. Nenhuma experiéncia nos ensinou que, sob qualquer outra forma de governo que nfo uma monarquia hereditdria, nossas liberdades poderiam se perpe- tuar € se conservar no respeito como nosso direito hereditdrio. Um mal-estar violento e inesperado pode exigir uma medicagao enérgica e excepcional; mas a sucesso heredi- téria do poder real caracteriza 0 estado de satide da Constituigao briténica. Pode-se dizer que quando o Parlamento fixou a coroa na descendéncia feminina de Jaime I, representada pela Casa de Hanover, no viu os perigos que podia representar a chegada ao trono da Inglaterra de dois, trés ou talvez quatro estrangeiros? Nao, tais perigos nfo Ihe escaparam, teve deles o sentido correto. Justamente, 0 fato de haver o Parlamento perseverado em fixar a sucesso no ramo protestante da velha linhagem, nao se esque- cendo dos perigos e dos inconvenientes advindos de que era ele estrangeiro, prova de maneira decisiva que a nagdo inglesa tinha a firme convicgdo de ndo estar autorizada, pelos principios da Revolucdo, a eleger seus reis a seu bel prazer, e sem levar em conta 0s antigos principios sobre os quais se fundamenta nosso governo. Hé alguns anos, todos estes argumentos nio teriam sido necessérios, ¢ eu teria me envergonhado em sugerir um assunto to bem defendido pela sua propria evidéncia. Mas hoje, esta doutrina inconstitucional e sediciosa & aceita, ensinada, publicada. De- testo as revolugdes, sei que freqiientemente é do pilpito que se dé o sinal para o seu desencadeamento. Vejo reinar na Franca um desprezo absoluto por todas as institui- gOes antigas quando se lhes apresenta como opositoras 4 maneira atual de conceber as coisas, ou 4 direcdo das inclinagGes de hoje. Temo que este desprezo se estabeleca entre nos. Todas estas considerag6es me fazem pensar que no & intitil conduzir nossa aten- go para os verdadeiros princfpios de nossas leis domésticas, a fim de que o Senhor, meu amigo francés, comece a conhecé-los, ¢ que nds continuemos a respeité-los. Nao devemos, de nenhum dos lados do canal, nos deixar impor as falsificagdes que al- gumas pessoas, usando uma dupla fraude, exportam para a Franca no fundo de malas proibidas, e que so apresentadas aos franceses, ainda que estes as desconhecam por completo, como verdadeiros produtos ingleses, para em seguida contrabanded-los para a Inglaterra, depois que Paris as adaptou ao mais novo gosto de uma liberdade aperfei- goada. _ + O povo da Inglaterra nfo imitaré métodos cuja experiéncia nunca tenha realiza- do, nem retomard métodos que a experiéncia mostrou ser nocivos. A lei de transmis- sdo hereditaria da coroa aparece-lhe como um de seus direitos, nfo como um dos seus deveres; como uma vantagem, ndo como um abuso; como uma garantia de suas liber- dades, ndo como o selo de sua escravidao. Ele olha a estrutura da coisa publica, na for- ma em que ela existe atualmente, como um bem de valor inestimavel; e a transmissi0 pacifica da coroa aparecethe como a garantia da estabilidade e da perpetuidade de to- das as outras partes de nossa Constituiggo. Antes de ir adiante, permita-me, senhor,\assinalar-lhe alguns dos despreziveis ar- tificios por meio dos quais certos senhores, apresentando a eleig§0 como 0 tinico titulo legitimo a soberania, sfo capazes de tornar quase odiosa a defesa dos verdadeiros prin- 64 Edmund Burke cipios de nossa Constituigdo. Quando se fala a favor da hereditariedade da coroa, estes sofistas ndo hesitam em apresentar-se como defensores de uma causa e de personagens que nunca se pensou em apoiar. Eles discutem, entZo, como se tivessem diante de si um destes antiquados fandticos da escraviddo, que outrora sustentavam opinifo, hoje, creio, abandonada por todos, de que “‘a coroa é possufda por direito divino, heredité- rio e imprescritivel.” Estes antigos fandticos da tirania arbitréria falavam como se a monarquia hereditéria fosse, no mundo, o inico modo legitimo de governo; da mesma forma que nossos novos fandticos do poder popular arbitrério sustentam que a eleigZ0, a tinica fonte legitima do poder. E bem verdade que ha algo de loucura e talvez de blasfémia nas especulagdes dos primeiros que discutiam como se a monarquia tivesse recebido mais particularmente que qualquer outra espécie de governo, a sango divina, ¢ como se um direito de governar estritamente imprescritivel se encontrasse sempre em todos os membros da sucessfo real: nfo existe nenhum direito civil ou polftico de tal forma absoluto. Mas uma opinifo absurda sobre o direito hereditdrio do rei 4 coroa no pode atentar contra a opiniso que € razodvel e baseada nos sblidos princfpios da le- gislagdo e da politica. Se todas as teorias absurdas dos juristas e dos tedlogos desacre- ditassem os objetos aos quais elas se aplicam, nao haveria mais no mundo nem lei, nem religifo. Jamais uma teoria absurda, apresentada pelos adeptos de um sistema, sera uma justificativa para que os adeptos do sistema oposto apresentem fatos erréneos e propa- guem méximas maléficas. DISCUSSAO DO SEGUNDO PRINCIPIO DO DR. PRICE: O direito de depor os governantes por indignidade. Em segundo lugar, a Sociedade da Revolugdo reclama 0 “direito de depor os go- vernantes por indignidade (misconduct).” Talvez, as apreensSes que nossos antepas- sados tivessem em criar um precedente tdo grave quanto o de “‘depor por indignidade” sejam a causa que explique que a declaragao do ato, que implica na abdicago do Rei Jaime, tenha sido concebida em termos muito reservados e de circunstancia * . Mas to- das estas reservas e toda esta acumulagdo de circunstdncias tendem a mostrar o grande espfrito de prudéncia que predominou nos conselhos nacionais, numa situagdo em que homens irritados pela opressfo e euforicos por té4a vencido, so suscetiveis de se aban- donarem a procedimentos violentos e extremos. Tal fato demonstra 0 vivo desejo dos grandes homens cuja influéncia se fez sentir sobre a condugdo dos negécios por ocasifo deste grande acontecimento, de fazer sair da Revolugdo a solugdo das dificuldades, e nao os germes de novas revolucdes. Nao h4 nenhum governo que possa subsistir, ainda que por um instante, se fosse possivel derrubé-lo por algo to eléstico e to mal definido quanto a opinifio que se possa ter a respeito de sua indignidade. Os homens que chefiaram a Revoluggo nfo fi- * “Considerando que o Rei Jaime It se esforgou em subverter a Constituipéo do reino, rasgando 0 contrato original entre 0 povo € 0 tei, € tendo, a conselho dos jesuitas e de outras pessoas mal- feitoras, violado as leis Fundamentais e deixado 0 reino, ele abdicou a0 governo, ¢ que, assim, 0 trono tornou-se vacante. Reflexdes sobre a Revolugfo em Franga 65 zeram com que a virtual abdicago do Rei Jaime repousasse sobre algo to fraco e in- certo. Eles o acusaram de nada menos que de ter tido o firme propésito, confirmado por uma série de atos de flagrante ilegalidade, de subverter a /greja ¢ o Estado protes- tantes, bem como as indiscutiveis leis e liberdades que constituem o seu fundamento; eles 0 acusaram de ter rompido 0 contrato original estabelecido entre 0 rei € 0 povo. Isto é bem mais que indignidade. Uma grave e irresistivel necessidade obrigou-os a tomar a decisdo que tomaram, e tomaram-na com infinita relutancia, como sob a pres- sdo da mais vigorosa das leis. Nao foi em futuras revolugdes que depositaram sua con- fianga na protegfo futura da Constituiggo. A grande idéia polftica de todas as suas re- gras foi de impedir, ou tentar, qualquer futuro soberano de levar os estados do reino a0 ponto de novamente necessitarem destes violentos remédios. Deixaram a Coroa na mesma situagfo em que ela sempre esteve aos olhos da lei: perfeitamente irresponsdvel. A fim de deixar ainda mais leves os encargos da Coroa, eles impuseram mais responsabi- lidade aos ministros de Estado. Pelo ato do primeiro ano do reinado do Rei Guilherme (sess. 2), chamado “ato relativo a declaragdo das liberdades e dos direitos do sitdito, e @ regulamentagdo da sucesséo & Coroa”, declarou-se que os ministros deveriam servir 4 Coroa nos termos desta declaragdo. Pouco depois, obtiveram as reunides freqiientes do Parlamento, a fim de que todo 0 governo fosse submetido a inspecdo constante € a0 controle ativo dos representantes da nagao e dos grandes do reino. No grande ato constitucional seguinte, o do 122e 13° anos do reinado do Rei Guilherme, para limitar ainda mais o poder real e melhor garantir as leis e as liberdades do stidito, foi prescrito “que nenhuma graga, sob o grande selo da Inglaterra, poderia se opor a uma acusa¢fo contra ministros (impeachment) realizada pelos Comuns reuni- dos em Parlamento.” Nossos antepassados julgaram que a regra de governo estabelecida pela Declaragdo de Direitos, que a inspecdo constante do Parlamento, que 0 direito pratico de impeachment, valiam infinitamente mais, no s6 para garantir a liberdade constitucional, como também para se opor aos vicios da administraga0, do que o esta- belecimento de um direito tao diffcil na pratica, tA incerto nos resultados, e freqiien- temente to prejudicial em suas conseqiiéncias quanto o de “depor os governantes”. Em seu serm{o * , o Dr. Price condena, e com muita razdo, o costume de se diri- gir ao rei mensagens concebidas em termos grosseiramente adulatérios. Ao invés de se empregar este estilo repugnante, ele propde que se diga a Sua Majestade, por ocasifo de congratulagdes, que “‘o rei deve se considerar mais exatamente o servidor que 0 so- berano de seu povo”. Para um cumprimento, esta nova forma de expresso nfo parece muito delicada. Os que so servidores, nominais ou de fato, nfo gostam que se Ihes lembre sua situago, seus deveres e suas obrigacdes. O escravo, na antiga peca, diz a seu senhor “Haec commemoratio est quasi exprobio”.*® Se for um cumprimento, nao é agrad4vel; se for uma licdo, nao deixa de ter inconvenientes. Afinal, se o rei consentis- se em aceitar esta nova forma de expresséo, em adoté-la nestes termos, e mesmo em to- mar a denominacdo de Servidor do Povo, o que é que ele ou nés ganhariamos com is- to? N&o consigo nem imaginar. Vi cartas cheias de arrogincia assinadas: “vosso muito humilde e muito obediente servidor”. O poder mais orgulhosamente despético que jé se * P22, 23, 24, 66 Edmund Burke viu sobre a terra revestiu-se de um titulo ainda mais humilde que o proposto para os soberanos pelo Apéstolo da Liberdade. Reis e nagGes foram calcados aos pés de alguém que se denominava 0 “Servidor dos Servidores”, e viu-se ordens que depunham sobe- ranos, lacradas com o sinete do “Pescador”.* Eu teria considerado tudo isto apenas palavras vas e frivolas, insipidos vapores com os quais alguns tentam sufocar o espitito de liberdade, se tais discursos nao se pro- pusessem a sustentar a idéia e uma parte do sistema “do direito de depor os reis por in- dignidade”. E, neste ponto de vista, o assunto merece algumas observagoes. Em certo sentido, é evidente que os reis s0 servidores do povo, pois 0 seu poder néo tem outro fim racional além do bem geral; mas no é verdade afirmar-se (ao menos de acordo com nossa Constituigdo) que eles tenham alguma coisa em comum com ser- vidores, na acepgdo ordindria que se dé a esta palavra. Com efeito, o essencial da situa- ‘Gdo dos servidores é que eles devem obedecer as ordens que lhes so dadas, e que eles podem ser substitufdos 4 vontade. Mas o Rei da Gra-Bretanha nao obedece a ninguém, ao contrario, sfo todas as outras pessoas que, individual ou coletivamente, lhe sdo sub- metidas e devem legalmente obedecé-lo. A lei, estranha adulacao e ao insulto, nfo o chama nosso servidor, como o faz este humilde pastor, mas o nomeia “Nosso Soberano Senhor,o Rei”, e, de nossa parte, nés sempre aprendemos a falar apenas a linguagem primitiva da lei, e no o jargdo confuso que estes senhores empregam em seus pulpi- tos babilonicos. \ Como nfo é 0 rei que deve nos obedecer, mas nés que devemos nos submeter & lei representada por ele, nossa Constituig#o nunca previu nada que pudesse, em qual- quer que seja o grau, torné-lo responsdvel, como é sempre um servidor. Nossa Consti- tuigdo no conhece nenhum magistrado andlogo aos Justicia de Aragio *, nenhum tribunal legalmente constituido, nenhum procedimento legalmente estabelecido para submeter 0 rei a responsabilidade que cabe a todos os servidores. Quanto a isto, Sua Majestade no se diferencia dos Comuns, nem dos Lordes (que, em suas diferentes atri- buigdes ptiblicas, néo tém nunca que prestar contas de seus atos), ainda que a Socie- dade da Revolugfo prefira sustentar, em direta oposi¢fo com uma das partes mais s4- bias e mais belas de nossa ConstituigZo, “ que um rei nfo é nada mais que o primeiro servidor piblico, criado por ele, e responsdvel perarite ele”. Nossos ancestrais, que fizeram a Revolugdo, ndo teriam merecido sua reputacdo de sabedoria se ndo tivessem sabido garantir sua liberdade com algo mais consistente que um governo fraco e fundado em titulo precério, e se eles nfo tivessem sabido achar melhor remédio ao poder arbitrério que a confusio civil. Além disso, que estes senho- res facam conhecer qual € 0 piblico representativo perante 0 qual eles se comprazem em afirmar que o rei é responsdvel como um servidor; entdo, ser tempo para que eu thes mostre a lei positiva que afirma que ele ndo 0 €. ‘A deposicfo de reis, sobre a qual estes senhores discorrem com tanta naturalida- de, é uma ceriménia que s6 raramente pode acontecer sem o emprego da forca. Trata- se, entdo, de um caso de guerra, e ndo mais de uma questdo de Direito Constitucional. As leis ndo podem se fazer escutar por entre o barulho das armas, e os tribunais caem por terra com a paz que eles nfo sfo capazes de manter. A Revolugfo de 1688 se deu por meio de uma guerra justa, realizada no nico caso em que uma guerra, e sobretudo Reflexes sobre a Revolugo em Franca 67 uma guerra civil, pode ser justa:“Justa bella quibus necessaria’®® . A questo de destro- nar ou, se estes senhores preferirem, de depor os reis serd sempre, como ela sempre foi, uma questo de Estado absolutamente extraordinéria, e que as leis nunca poderao pre- ver. Sera sempre (como alids as outras quest6es de Estado) uma questo de circunstan- cias, de meios a empregar e de conseqiiéncias provaveis, muito mais que uma questo de direitos positives. Como a deposigio nao deve decorrer de abusos comuns, nfo de- ve também caber a espiritos ordinérios 0 tratamento da questdo. A linha teérica de demarcago que indica o ponto em que a obediéncia deve cessar e a resisténcia come- gar é vaga, obscura e dificil de ser definida. Ndo é um ato isolado ou um acontecimen- to tnico que pode determiné-la. E necessério, nos governos, grandes abusos e uma grande anarquia antes que se pense em derrubé-los; é necessdrio ainda que o futuro nfo deixe esperar nada de melhor do que aquilo que jé passou. Quando as coisas ti- verem chegado a esta lamentdvel condigao, é o proprio cardter do mal que indica o re- médio aos que a natureza qualificou para aplicar, em casos extremos, este medicamen- to delicado, cheio de perigos e de amargor, aos Estados desamparados. As circunstan- cias, as ocasi6es, as provocagdes darfo suas proprias indicagdes. Os sibios determinar-se-4o pela gravidade do caso; os irritdveis pela sua sensibilidade a opressio; 0s espiritos elevados pelo desprezo e indignacdo que sentem ao verem um poder abusi- vo em mios indignas; os bravos e audaciosos pelo amor da honra que se encontra em correr perigos para defender-se uma causa generosa; mas, certa ou errada, uma revolu- Go serd sempre o Gltimo recurso dos homens inteligentes e virtuosos. DISC! LSSKO.DO-FERCEIROPR RICE: freito de estabelecer um governo para nds mesmo. sa O terceiro ponto de direito propalado no ptilpito de Old Jewry € 0 “‘direito de estabelecer um governo para nés mesmos”.Da mesma forma que as duas primeiras pre- tenses destes senhores, este direito nao pode encontrar, naquilo que foi feito duran- te a Revolugdo, nenhum precedente ou principio que o apéie. / A Revolugao foi feita para conservar nossas leis e liberdades tradicionais e indis- cutiveis, esta antiga constituigdo do governo que é sua tnica salvaguarda. Se o senhor desejar conhecer o espirito de nossa Constituigao, e a politica que vigorou ao longo deste grande periodo que a conservou até os nossos dias, procure-o nas nossas hist6rias, NOS nossos arquivos, nos nossos atos do Parlamento, nos anais de nossas sessGes par- lamentares; mas ndo nos sermdes de Old Jewry, ou nas sobremesas dos jantares da So- ciedade da Revolugdo: af, o senhor encontrar4 outras idéias e outro estilo. Tais preten- sOes nfo se coadunam ao nosso cardter nem aos nossos desejos, e estdo despidas de qualquer aparéncia de autoridade. (+ A simples idéia de fabricar um novo governo € suficiente para nos encher de re- pulsa e horror. Desejavamos, quando da Revolugdo, e desejamos ainda derivar do pas- {ado tudo 0 que possuimos, como uma heranca legada pelos nossos antepassados. So- bre o velho tronco de nossa heranga, tivemos cuidado em no enxertar nenhuma muda estranha & natureza da arvore primitiva. Todas as reformas que fizemos até hoje foram realizadas a partir de referéncias ao passado; e espero, ou melhor, estou convencido de 68 Edmund Burke que todas as reformas que possamos realizar no futuro esto cuidadosamente construi- das sobre precedentes andlogos, sobre a autoridade, sobre a experiéncia. Nossa mais antiga reforma Le cla Magna Carta O senhor poderd constatar quan. ta engenhosidade Sir Edward Coke,7” esta luz de nossa jurisprudéncia, e os grandes ho- mens que 0 seguiram, até Blackstone *, utilizaram para estabelecer a genealogia de hhossas liberdades. Eles se esforgaram em provar que a antiga carta, a Magna Carta do ‘Rei Jodo, estava relacionada com uma outra carta positiva de Henrique 1, e que umae ‘outra eram apenas uma promulgagdo nova de leis que existiam no reino em épocas ain- da mais distantes. Com efeito, estes autores parecem estar com a razdo na maior parte de suas afirmagGes. Talvez eles se enganem algumas vezes; mas seus erros de detalhe, quando existem, provam com mais forga a justeza daquilo que afirmo, pois eles de- monstram a poderosa prevengfo a favor da tradi¢o, que sempre norteou 0 espitito de nossos jurisconsultos, de nossos legisladores e do povo que eles desejavam influen- ciar — ¢ eles evidenciam a politica permanente que sempre levou os habitantes deste reino a considerarem seus direitos e franquias mais sagtados como uma heranga. Na famosa lei do terceiro ano de reinado de Carlos I}, chamada “Peti¢ao de Di- reitos”, 0 Parlamento diz ao Rei: “Vossos siditos herdaram esta liberdade,” recfarrran- do, assim, suas franquias ndo em virtude de principios abstratos, como “os direitos dos homens”, mas como os direitos dos homens da Inglaterra, e como um patriménio le- gado pelos seus antepassados. Selden * e os homens profundamente instrufdos que redigiram esta “Petigdo de Direitos” conheciam as teorias gerais concernentes aos “Di- teitos do Homem”, ao menos téo bem quanto qualquer um dos oradores que discur- sam em nossos pilpitos ou nas tribuinas francesas: do Dr. Price ao Abbé Sieyés ® . Mas, por raz6es advindas desta sabedoria prdtica que se sobrepunha ao seu saber tedrico, eles preferiram este titulo positivo, auténtico, hereditério, que pode ser caro ao homem e ao cidadao, a este direito vago e especulativo que exporia sua heranca segura a ser atacada e espedacada pelas querelas do primeiro insensato que se apresentasse. A mesma idéia polftica esté subjacente a todas as leis elaboradas, desde entdo, para a preservagdo de nossas liberdades. Na famosa lei do primeiro anodo reinado de Guilherme e. Maria, chamada fDeclaragdo de Direitos”, as duas Camaras_ndo_dizem uma s6 palavra a respeito do “aireito de estabelecer um governo para nds mesmos”. O senhor poder4 observar que, ao contrério, elas tomaram todas as precaug6es a fim de garantir a religido, as leis e¢ as liberdades que, hi muito tempo, possuiamos e que ti- nham sido colocadas em perigo. “Tomando, diz 0 ato, na mais séria consideragdo os melhores meios para formar um tal sistema que sua religifo, leis ¢ liberdades nao corram mais o perigo de serem subvertidas”, elas comegam afirmando que um destes melhores meios é “primeiramen- te agir como seus antepassados estavam acostumados a fazer em caso semelhante, para defender seus antigos direitos ¢ liberdades; declarar...” ¢ aqui, elas rogam ao rei e a rainha “que seja declarado e decretado que os direitos e liberdades afirmados e declara- dos no ato so, todos e cada um deles, os verdadeiros e indubitaveis direitos e liberda- des antigos do povo deste reino.” * Vide a Magna Carta de Blackstone, impressa em Oxford em 1759. Reflexdes sobre a Revolugfo em Franga 69 O senhor poder notar que da Carta Magna A Declaragdo-de Direitos ) politica de, nossa Constituigao foi sempre a de reclamar e reivindicar nossas liberdadés como uma heranga, um legado que n6s recebernos de nossos antepassados e que deveremos trans} mitir a nossa posteridade; como um bem que especificamente pertenga ao povo deste reino, sem nenhuma espécie de mengdo a qualquer outro direito. mais.geral ou mais antigo. Desta forma, nossa Constituigdo-conserva uma certa unidade na_tfo grande diversidade de suas partes. Nés temos uma coroa hereditéria, um pariato heredité fio, uma Camara dos Comuns e um povo que detém, de uma longa linha de ancestrais, seus privilégios, suas franquias e suas liberdades. Esta politica me parece ser o resultado de uma profunda teflexdo, ou melhor, © efeito feliz de uma conduta quefimtrotr'4 natureza>~s, que, assim, adquiriu uma sa- bedoria que a reflexdo sozinha ndo-erisina, pois-efa est4 acima de seu alcanice. O es- pfrito de inovagdo é, em gerat, resultado-de um cardter egoista e de perspectivas res- tritas.>° Tais indivfduos se preocupam muito pouco com sua posteridade, que nfo le- varfio em nenhuma conta as ligdes de seus antepassados. Alids, o povo da Inglaterra sabe muito bem que a idéia de heranga fornece meios seguros de conservar e transmi- tir, sem excluir os meios de melhorar. Ela deixa a liberdade de adquirir; mas fixa aqui- Jo que se adquire. Um Estado que se inspira nestas m4ximas incorpora, como em uma espécie de bem de familia, todas as vantagens que ele se proporciona; ele cria uma es-, pécie de usufruto eterno. Gracas a uma politica constitucional calcada sobre a nature- za, nés recebemos, possuimos e transmitimos nosso governo e nossos privilégios, da mesma forma que nés possuimos e transmitimos nossas propriedades e vidas. Recebe- mos ¢ legamos a outros as instituigdes politicas, da mesma maneira que transmitimos os bens da fortuna e os dons da Providéncia. Nosso sistema politico est4 colocado nu- ma correspondéncia e numa simetria exatas com a ordem do mundo e com o modo de existéncia estabelecido para os corpos permanentes formados de partes transit6rias, nos quais, gragas as disposigdes de uma prodigiosa sabedoria que preside & misteriosa coesio das sociedades humanas, 0 conjunto, em dado momento, ndo é nem velho, nem jovem, nem entre as duas idades, mas se perpetua, constantemente imutavel, em meio as decadéncias, quedas, renovacdes e progressos."Assim, pelo emprego de métodos da natureza na conduta do Estado, aquilo que melhoramos néo € nunca completamente novo, é aquilo que conservamos nfo é nunca completamente velho. Permanecendo li- gados a nossos ancestrais, no € pela superstigdo da antigitidade que nos deixamos con- duzir; mas pelo sentimento da analogia filosfica. Adotando este princfpio da heranga, demos a nossa construgdo politica a imagem de um parentesco pelo sangue; ligamos a nossa Constituig#o a nossos mais caros vinculos domésticos, dando a nossas leis funda- mentais um lugar no seio de nossas afeigGes de familia; enfim, unimos em nossos cora- g6es, para queré-los com o calor de todos os nossos sentimentos combinados, nosso Es- tado, lares, tamulos ¢ altares. O mesmo plano que nos fez conformar nossas instituigGes artificiais a natureza,e chamar seus seguros e poderosos instintos em socorro das frageis e faliveis invengdes de nossa razdo, nos fez derivar outras vantagens, e ndo menores, do fato de que consi- deramos _nogsas liberdades como uma heranga. Agindo sempre como em presenga de ancestrais sagrados, o{ espirito de liberdade Que, por si s6, conduz as desordens e aos 70 Edmund Burke excessos, é temperado por uma respeitosa gravidade. Esta idéia de uma transmissao he- reditdria de nossas liberdades nos inspira um sentimento de dignidade natural que nos preserva da insoléncia de parvenus tao aviltante e tao comum naqueles que pela primei- ra vez adquirem qualquer tipo de distingdo. Desta forma, nossa liberdade torna-se uma nobre independéncia; ela traz consigo um aspecto imponente e majestoso; tem sua ge- nealogia e ancestrais ilustres; tem seus sustentaculos e brasdo de armas; tem sua galeria de retratos, suas inscrigdes comemorativas, seus arquivos, suas provas e seus titulos. Fazemos respeitar nossas instituig6es civis, da mesma forma que a natureza nos ensina a reverenciarmos os individuos: de acordo com sua idade e ilustragdo de seus antepas- sados. Nem todos os sofistas de seu pais poderdo produzir nada melhor para garantir uma fiberdade razovel'y generosa que 0 método que nés adotamos; nds que procura- mos seguir a natureza ao invés de nossas especulagdes e que preferimos confiar a con- servacao de nossos direitos ¢ privilégios aos sentimentos de nossos corages ao-invés de entregé-la a sutileza de nossas invengdes. Assembléia Nacional e a Representagdo. Os Primeiros Atos Revolucionarios iz Qs franceses poderiam, se tivessem querido, ter aproveitado nosso exemplo e ter dado a sua liberdade iberdade recuperada uma dignidade andloga: Seus privilégios, ainda que in- ferrompidos, ndo se tinham apagado de suas memrias. E bem verdade que a Cons- tituiggo francesa se tinha degradado e esfacelado desde que os franceses deixaram de | usuftuisla. Entretanto, ainda possufam as fundag6es e algumas paredes de um antigo | e venerdvel edificio. Teriam podido reparar estas paredes ¢ construir sobre estas anti- \ gas fundagées. A Constituig&o tinha sido suspensa antes de ter sido aperfeigoada, mas os franceses possufam os elementos de uma constitui¢do quase tio boa quanto se poderia desejar?’. Possufam nos seus antigos Estados esta variedade de partes cor- respondentes as diferentes classes que felizmente compunham a nagfo; tinham as combinagdes e oposigSes de interesses, a a¢do e a reacdo que, no mundo natural e no mundo politico, d&o a harmonia do conjunto das lutas recfprocas de poderes discor- dantes. Tais oposic6es e conflitos, que os franceses consideram uma tao grande imper- feigéo na sua antiga Constituigéo e na nossa, impSem, no entanto, um freio salutar a todas as resolugSes precipitadas. Eles tornam a deliberagdo uma necessidade, e no uma.questdo de escolha; fazem de toda a mudanga uma matéria de compromisso; criam temperamentos que evitam males terr{veis produzidos por reformas brutais, repentinas ¢ absolutas, e tomam impraticdveis as ages inconsideradas do poder arbitrario. —~ Em fungdo desta diversidade de membros e de interesses, a liberdade geral teria tido, na Franga, tantas garantias quantas eram as distintas_perspectivas nas diferentes ordens; enquanto submetendo o todo a uma verdadeira monarquia, os diferentes gru- “pos toriam-sido impedidos de se separarem e se distanciarem das das posigoes que Ihes eram determinadas. Os franceses possufam todas estas vantagens em seus antigos Estados, mas prefe- tiram agir como se nunca tivessem sido moldados em uma sociedade civil, como se pudessem tudo refazer a partir do nada. Comegaram mal porque comegaram por des- 2 Edmund Burke prezar tudo aquilo que lhes pertencia. Quiseram estabelecer comércio sem capital. Se as Gltimas geragdes de seu pais pareciam sem brilho aos franceses, estes poderiam té- las negligenciado para derivar suas pretens6es de antepassados anteriores. Uma piedosa venerag&o destes ancestrais os teria elevado acima da vulgaridade de hoje, para fazé- los achar em tais antepassados os modelos da virtude e da sabedoria: ter-se-iam elevado ao exempio daqueles que aspirariam imitar. Respeitando seus ancestrais, teriam apren- dido a respeitar a si mesmos, Nao teriam querido considerar os franceses como um povo de ontem, como uma vil nagdo de infelizes escravos até a emancipagao de 1789. Nao teriam querido, para permitir aos seus apologistas ingleses de invocar, as expensas de sua honra, uma desculpa a muitas de suas atrocidades, passar por um bando de es- cravos negros®? subitamente livres de seus grilhdes, e a quem é preciso perdoar os abu- sos que fazem de uma liberdade A qual nfo esto nem habituados, nem preparados. Nio teria sido mais sébio, meu caro amigo, deixar crer que os franceses fossem — 0 que quanto a mim, sempre acreditei — uma nag4o generosa e corajosa, infelizmente ludi- briada por muito tempo por seus sentimentos elevados e cavalheirescos de fidelidade, honra e lealdade? Que os acontecimentos Ihes tivessem sido desfavordveis, mas que eles no tivessem sido reduzidos 4 escravidio em decorréncia de uma situag4o servil e humilde? Que na sua mais absoluta submiss4o, fossem ainda conduzidos pelo amor do bem piblico, e que era sua patria que veneravam na pessoa de seu rei? Se, ao menos, tivessem deixado transparecer que enganados por esta nobre ilusdo, tivessem ido mais longe que seus sdbios ancestrais; que tivessem resolvido retomar 0 exercicio de seus antigos privilégios, conservando seus antigos e novos sentimentos de honra e lealdade; ‘ou, a0 menos, se, desconfiando de si mesmos, e nao distinguindo mais com muita clare- za a Constituic¢do mais ou menos aniquilada de seus antepassados, teriam podido olhar para seus vizinhos que, na Inglaterra, conservaram os princfpios e os modelos do anti- 0 direito publico europeu, melhorando-os e adaptando-os ao estado presente da socie- dade; entdo, seguindo sébios exemplos, teriam dado ao mundo novos exemplos de sabedoria. Teriam feita a causa da liberdade venerdvel aos olhos dos sabios de todos os paises, e desonrado o despotismo aos olhos do mundo inteiro, mostrando que nfo so- mente a liberdade pode se conciliar com a observancia das leis, mas ainda que, quando ela € bem disciplinada, pode ajudar a fazer respeitar a lei. Teriam tido impostos produ- tivos que nfo oprimiriam ninguém e que um comércio florescente teria permitido ali- mentar. Teriam, assim, uma Constituicdo livre, uma monarquia poderosa, um exército disciplinado, um clero reformado e venerado, uma nobreza menos orgulhosa mas mais digna, capaz de lhes ensinar a virtude e nfo de abafé-la, uma burguesia liberal imitando esta nobreza e oferecendo-lhes recrutas, um povo, enfim, protegido, satisfeito, laborio- so e obediente, habituado a procurar ea apreciar a felicidade que a virtude proporcio- na em todas as condigdes. E esta felicidade que constitui a tnica verdadeira igualdade moral entre os homens, e nfo esta monstruosa ficedo que, inspirando idéias falsas e vas esperancas a homens destinados a caminhar na obscuridade de uma vida laboriosa, s6 serve para agravar e para tornar mais amarga a desigualdade de fato que ela ndo pode suprimir, e que a ordem da sociedade estabelece beneffcios aos que devem permanecer em uma posigZo obscura e aos que se elevam a uma condigS0 mais brilhante sem davi- da, mas no mais feliz, A felicidade e a gloria abriam para os franceses caminhos suaves Reflexdes sobre a Revolugéo em Franga 73 féceis nunca anteriormente registrados pela historia do mundo, mas eles mostraram que a dificuldade é salutar ao homem. O QUE A FRANCA FEZ. 0 PROVEITO QUE ELA TIROU DE SUA CONDUTA Compute-se os ganhos dos franceses: veja-se 0 que lhes renderam estas extrava- gantes e presungosas especulagdes que ensinaram a seus lideres a desprezarem seus predecessores € seus contemporaneos, a desprezarem a si mesmos até o ponto de se tornarem realmente despreziveis. Seguindo estas falsas luzes, a Franga pagou com evi- dentes calamidadese muito mais caro que qualquer outra nagdo tenha pago indiscut/- veis bens./A Franca comprou miséria com crime! A Franga nfo sacrificou sua virtu- de pelo seu interessé, ela abandonou séu intetessé para prostituir sua virtude!/Todas as outras nagdes iniciaram a construgdo de um novo governo ou a reforma de um an- tigo governo, pelo estabelecimento ou pela escrupulosa execugdo de alguns dos ri- tos da religido. Todos os outros povos estabeleceram a liberdade civil sobre costu- mes mais severos, sobre uma moralidade mais austera e mais viril; a Franca, a0 con- trério, quando destruiv os impositivos da autoridade real, redobrou ‘é licenga de cos- tumes totalmente~dissollitos, dé opinides e de praticas insolentemente irreligiosas, ¢ Gétendeu a todas as classes da sociedade, como sé ela Ihes comunicasse algum privilé- gi0 or ties permitisse 0 acesso a algum beneficio secreto, todas as funestas corrupgSes que geralmente eram taras apenas de ricos e poderosos. Este ¢ um dos novos princf- pios da igualdade na Franga. ‘A Franga, pela perfidia de seus Iideres, desacreditou por completo nos gabine- tes dos principes, 0 tom dos conselhos indulgentes; ela tirou de tais conselhos seus mais poderosos argumentos. Ela santificou as sombrias e suspeitas maximas da descon- fianga tirdnica, e ensinou os reis a tremerem diante daquilo que o futuro chamard de en- ganosos prognésticos de polfticos morais. Os soberanos considerardo agora aqueles que os aconselham a colocar em seus povos uma confianga ilimitada, como inimigos de seus tronos, como traidores que visam & sua destruigZo, levando, sob capciosos pretextos, sud bondade natural/a admitir a participagdo de insolentes e pérfidos conspiradores no poder. Apenas isto, nao se tocando em outros pontos, é para os franceses e para tox do o género humano uma irrepardvel calamidade. Lembre-se, senhor, que o Parlamento de Paris disse ao rei que reunindo os Estados Gerais, ele deveria temer apenas 0 excesso de zelo com que trabalhariam para sustentar o trono. E justo que hoje estes homens temam por suas cabegas. E justo que eles tenham a sua parte na infelicidade que seu conselho fez desencadear sobre seu soberano e sua patria. Declarag6es t4o cheias de con- fianga tendem a entorpecer a autoridade, a fazé-la se engajar temerariamente em peri- gosas aventuras de uma politica desconhecida, a fazé-la negligenciar as medidas, prepa- rativos € precaugSes que distinguem a benevoléncia da fraqueza, e sem as quais nin- guém pode responder aos efeitos salutares de nenhum plano abstrato de governo ou de liberdade. Por falta destas precaug6es, tais homens viram aquilo que deveria salvar 0 Estado transformar-se em elemento de sua ruina. Viram rebeldes tratarem um monarca moderado e legitimo com mais furor, insultos e ultrajes nunca antes levantados por ne- nhum povo contra o usurpador mais ilegitimo e contra o tirano mais sanguindrio. Os 74 Edmund Burke franceses resistiram a quem s6 lhes queria fazer concess6es, revoltaram-se contra quem lhes queria proteger, dirigiram seus golpes contra um homem cuja mio s6 hes estendia gracas, favores e franquias. Isto é que ndo foi natural, tudo o mais que se seguiu est4 em ordem. Eles encontraram seu castigo no seu proprio sucesso: leis no cumpridas e tribunais destituidos; a industria aniquilada e o comércio se extinguindo; impostos ndo pagos, € no entanto, o povo empobrecido; a Igreja pilhada sem que o Estado se-benefi- cie com isto; a anarquia civil e militar transformada em constituigao do reino; todas as coisas divinas e humanas sacrificadas ao idolo do crédito ptiblico, cuja conseqiiéncia é a bancarrota nacional; e para coroar tudo isto, o papel-moeda emitido por um poder novo, precério ¢ titubeante, os desacreditados papéis de uma fraude empobrecida e de uma rapina reduzida 4 mendicaicia, tais notas apresentadas como a moeda legal que pode sustentar um império, ao invés das duas grandes espécies reconhecidas que sem- pre representaram o crédito convencional da humanidade e que desapareceram para se esconderem na terra de onde elas vieram, quando o principio da propriedade, do qual elas s4o as criaturas e os representantes, foi sistematicamente destruido. Todos estes horrores eram necessdrios? Foram o inevitavel resultado da luta desesperada que determinados patriotas engajaram, j4 que ndo puderam atingir as tran- qililas regides de uma liberdade prospera, sem ter de passar pelo sangue e pela desor- dem? Nao, nada disso. As ruinas recentemente acumuladas na Franga, e que nos cau- sam horror por onde quer que lancemos o olhar, nfo sfo resultado de devastag6es pro- duzidas pela guerra civil; elas sfo os tristes mas instrutivos testemunhos daquilo que, em tempo de paz profunda, um conselho ignorante e temerdrio produz. Elas so 0 re- sultado do exercicio de uma autoridade presuncosa e inconsiderada porque nada a pode resistir e nada pode fazé-lo. Os homens cujos crimes dispersaram tantos tesouros preciosos, os que abusaram dos males publicos (a tltima reserva de onde o Estado pode tirar o resgate final) com tanta prodigalidade e barbdrie, encontraram, em seu caminho, pouca ou quase nenhuma oposi¢go. Sua caminhada sempre se pareceu mais com uma procissio triunfante que com as etapas de um exército em campanha. Foram precedi- dos por pioneiros que demoliram e abaixaram tudo ao nivel de seus pés. Nao derrama- ram uma-s6, gota de seu sangue para o pais que arruinaram. O maior sacrificio que fi- zeram a seus projetos foram as fivelas de seus sapatos, enquanto aprisionavam seu rei, assassinavam seus concidaddos, mergulhando em lagrimas, no desespero e na miséria milhares de homens e de famflias virtuosas/ Sua crueldade nao foi nem_mesmo a mi- serdvel reagdo do medo;)ela foi o efeito da perfeita seguranca em que se achavam qui do autorizaram traigGes, roubos, rapinas, assassinatos, massacres e incéndios sobre to- da a extensio do pafs esgotado. Mas, desde o principio, a causa de tudo o que aconte- ceu foi bem evidente. A ASSEMBLEIA NACIONAL: sua composigao Esta livre escolha, esta prazeirosa eleigéo do mal nos pareceria absolutamente in- compreensivel se ndo considerdssemo’ a composigao da Assembiéia Nacional. Nao falo aqui de sua constituigdo formal, que, em seu estado presente, se encontra razoavelmen- te bem; mas de elementos que, em grande parte, a comp6e, fato que é dez mil vezes Reflexdes sobre a Revolugo em Franga 75 mais importante que todas as formalidades do mundo. $e conhecéssemos desta As- sembléia apenas o titulo e as fungOes, nfo poderiamos imaginar nada mais veneravel que ela: o espirito de um investigador, subjugado por uma imagem tdo imponente quanto a da sabedoria e da virtude de todo um povo reunidas em uma tnica sala, hesi- taria em condené-la, mesmo tendo constatado sintomas bastante alarmantes. Os acon- tecimentos, ao invés de Ihe parecerem lamentaveis, lhe pareceriam apenas misteriosos. Mas ndo hé nome, poder, fungdo, instituigao artificial que possa fazer homens, que com- poem um sistema de autoridade, diferentes daquilo que Deus, a natureza, a educa¢do e seus habitos de vida the fizeram. O povo nfo pode dara estes homens outras capacidades que aquelas que eles j4 possuem. A sabedoria e a virtude podem ser objetos de sua es- colha; mas sua escolha ndo confere nenhuma nem outra aqueles sobre os quais ele es- tende suas mos constrangedoras. Nem Deus, nem a natureza lhes deram tais poderes. O TERCEIRO ESTADO Quando soube os nomes ¢ as profiss6es dos deputados do Terceiro Estado, nada Jo que fizeram posteriormente me pareceu surpreendente. Sem duvida, entre eles, no- tei alguns de posi¢do distinta; vi alguns que brilhavam pelo talento; mas ndo pude en- contrar um sé homem que tivesse alguma experiéncia pratica dos neg6cios publicos. distintos neste Estado, € a propria substancia e a massa de um corpo que constituem seu cardter, e devem finalmente assegurar sua dire¢Zo. Em qualquer assembléia, os que lideram, devem também, em grau considerdvel, seguir. E preciso que eles adaptem suas propostas ao gosto, ao talento, as disposig6es dos que eles pretendem conduzir: de forma que se uma Assembléia é viciosa ou fracamente composta, na maior parte de seus membros, so h4 um supremo grau de virtude — que raramente se encontra no mundo, e com o qual, portanto, ndo se deve contar — que pode impedir os homens de talento que ai esto disseminados de se tornarem algo mais que instrumentos habeis de vabsurdos projetos. Se, como acontece freqiientemente, estes homens de talento, ao invés de possufrem este raro grau de virtude, séo movidos por uma sinistra ambigao ¢ pelo desejo de uma falsa gloria, entdo, a parte fraca da assembléia, 4 qual no inicio eles se tinham adaptado, torna-se, por sua vez, a presa ¢ 0 instrumento de seus des{gnios. Neste tréfico de politicos, os lideres so obrigados a se inclinar diante da ignorancia de seus seguidores, e os seguidores tornam-se os instrumentos dos piores designios de seus Iideres. Para garantir um pouco de comedimento nas propostas feitas pelos lideres de uma assembléia piblica, seria necessério que estes respeitassem, e talvez temessem um pouco os individuos que eles conduzem; seria necessério que seus seguidores — para nao segui-los cegamente — fossem homens que, mesmo que nao pudessem ter qualquer influéncia pessoal, pudessem julgar com peso ¢ autoridade reais a influéncia que se pretende exercer sobre eles. A tinica maneira de garantir a estas assembléias uma con- duta sébia e moderada é que elas sejam compostas por homens res is pela sua posig#o, propriedade, educagao, e todos os hdbitos de vida que possibilitam uma visio mais ampla e liberal. A 76 Edmund Burke Na convocagdo dos Estados Gerais, a primeira coisa que me chocou. foi o abando- ‘no dos antigos habitos. Constatei que a representago do Terceiro Estado compreendia seiscentos membros, igualando, assim, em nimero, a representagdo das duas outras Or- dens reunidas. Se as ordens fossem agir separadamente, o nimero de representantes que elas tinham respectivamente delegado, teria sido, além do problema dos gastos, de pouca importéncia. Mas quando se tornou claro que as trés Ordens se fundiriam em uma Ginica, a finalidade politica e 0 efeito necessdrio desta numerosa representagdo do Terceiro Estado apareceram imediatamente: apenas uma pequena defecgao nas outras duas Ordens bastaria para colocar o poder nas méos da terceira. De fato, foi o Tercei- ro Estado que bem depressa deteve todo o poder do Estado. Sua exata composi¢o tornou-se, desde entdo, de importancia infinitamente maior. Julgue, senhor, minha surpresa, quando me dei conta de que uma grande parte da Assembléia — a maioria, creio, dos membros que efetivamente ocuparam suas ca- deiras — era composta de homens de lei. Ndo de magistrados notaveis, que tivessem da- do a seu pais os frutos de sua ciéncia, prudéncia ¢ integridade; também ndo eram bri- Thantes advogados, gloria de tribunais, nem professores de renome em universidades; — no, cram em sua maioria, como é alids fatal em tais reuni6es de homens, os pro- fissionais inferiores, ignorantes, mecdnicos, meros membros instrumentais da profis- so. Sem duvida havia honrosas exceg6es, mas 0 conjunto se compunha de obscuros advogados de provincia, de oficiais de pequenas jurisdigdes locais, de procuradores do campo, de tabeli6es e todo o bando de chicaneiros municipais, fomentadores e lide- re da pequena guerra de insultos de. vila. Assim que vi a lista, vi distintamente, e qua- se como Se passou, tudo aquilo que se seguiria. O grau de estima que se atribui a uma profissdo torna-se, geralmente, a medida a estima que os homens que a exercem tém de si mesmos. Qualquer qué tenha sido ‘© mérito pessoal de muitos homens de lei, tomados individualmente, e em muitos ca- sos este mérito era considerdvel, num reino militar como a Franga, nenhum magistra- do era muito considerado, além daqueles que se achavam investidos das mais.altas magistraturas. Alias, estes ultimos aliavam, freqiientemente, a seus tftulos pessoais um alto nascimento, estando investidos de grande poder e autoridade. Sem diivida, eram muito respeitados, sendo mesmo considerados com certo temor. Mas os ma- gistrados inferiores néo eram muito estimados; praticos de offcio, eram tidos em pouca conta. Quando a autoridade-suprema é colocada em um corpo composto desta for- ma, nfo é de se estranhar-as conseqiiéncias advindas da colocagdo de tal autoridade na mfo de homens que o respeito publico nfo habituou a respeitar a si mesmos, que nfo correm 0 risco de perder nenhuma reputagad, e dos quais nfo se pode, por conse- guinte, esperar nem moderag4o, nem discrig¢do no exercicio de um poder que eles, mais que ninguém, devem se surpreender de achar em suas mfos, Quem poderia se iludir que tais homens, arrancados como por encanto das mais humildes posigdes da hierarquia, ndo seriam inebriados por uma grandeza a qual ndo estavam preparados? Quem poderia supor que estes homens geralmente insinuantes, empreendedores, su- tis, ativos, de disposig6es litigiosas e espiritos inquietos, voltariam facilmente, uma vez findo seu mandato, a seus trabalhos obscuros, a ocupag6es laboriosas e sem bri- Reflexdes sobre a Revolug&o em Franga 77 Iho de lides improdutivas? Quem poderia duvidar que, qualquer que fosse o prego para o Estado, do qual eles néo entendiam nada, eles perseguiriam a satisfagdo de seus interesses particulares que conheciam muito bem? Nada disto era duvidoso, era necessario e inevitdvel, decorria da natureza das coisas. Eles deveriam fatalmen- te apoiar (se seu talento nao lhes permitia apresentar) todos os projetos visando a instaurar_na Franga uma constiruigfoprocessiva, pois isto lhes permitiria realizar negociatas lucrativas que acompanham sempre as revolugGes no Estado, e sobretudo as grandes e violentas transferéncias dé propriedade. Podia-se esperar que eles se pre- ocupassem com a estabilidade da propriedade, quando eles viviam somente daquilo que a torna duvidosa, ambigua e precéria? Nao, apenas suas perspectivas poderiam se alargar pela sua elevaco, mas suas disposigGes, seus habitos, a maneira de realizar seus objetivos, deveriam necessariamente permanecer as mesmas de antes. Que seja, se poderia dizer, mas havia, sem divida,\para moderar ¢ conter estes homens, outros grupos compostos de espiritos mais assentados e de inteligéncias mais abrangentes.,Como poderiam eles se deixar arrastar pela majestade de um punhado de &altimbancostle vila, alguns-das quais, diz-se, ndo sabem ler e escrever? Ou entao inclinar-se-iam a estes-negociantes um pouco mais numerosos, e que, ainda que ins- trufdos e honrados, ndo tonhécem nada além de seu escritério? Nao, uns e outros, rsticos € negociantes, estavam mais predispostos a serem envolvidos e dominados pe- las intrigas dos homens de lei, que para contrabalangar sua influéncia: com uma des- Propor¢do tdo perigosa, estes tiltimos deveriam necessariamente governar tudo. Na Faculdade de Direito se encontrava em proporgao considerdvel a Faculdade de Medicina, Nenhuma das duas tinha na Franga o grau de estima que seria justo te- rem. Seus doutores tinham adquirido habitos de homens pouco acostumados a senti- mentos de dignidade. Mas mesmo que tivessem gozado a estima que sua profissfo re- cebe na Inglaterra, no seria menos verdadeiro o fato de que a cabeceira de doentes nGo so academias proprias a formar homens de estado e legisladores. Havia ainda homens de negécios ¢ especuladores desejosos.de trocar, a qualquer prego, seu papel ideal pelas mais sdlidas propriedades Enfim, uniam-se a estes diferentes grupos homens vindos de todos os lados, dos quais no se poderia esperar mais inteligéncia ou mais cuidado nos interesses de'um grande Estado, nem consideragées pela estabilidade de nenhuma instituiggo — homens feitos para serem instrumentas endo para exercer um controley Tal era, na Assembléia Nacional) a composigdo geral do Terceiro Estado; no qual se encontrava apenas uma infima representacdo daquilo que chamamos 0 interesse fundidrio do pais. = Sabemos que a Camara dos Comuns inglesa, sem fechar suas portas a nenhum mérito donde quer que ele venha, contém, pela operagdo segura de causas apropriadas, tudo 0 que o pais pode apresentar de ilustre pela posigdo, nascimento, riqueza here- ditdria ou recentemente adquirida, talento e cultura, distingdes polfticas, civis e mili- tares. Mas, supondo-se que a Camara dos Comuns viesse a ser composta como o Ter- ceiro Estado na Franga, suportarfamos com paciéncia este império da chicana, ou po- derfamos conceber tal idéia sem horror? Deus me livre de querer insinuar algo de aten- tatOrio A dignidade da profisso judicidria, que é como qualquer outro sacerdécio, pre- 8 Edmund Burke sidindo os ritos da sagrada justi¢a. Mas para reverenciar homens no exercicio de suas fung6es, e para estar pronto a fazer tudo no mundo a fim de que eles ndo sejam despo- jados de suas fungdes, ndo posso, para agradé-los, negar a natureza. £ bom e util que ‘os homens de lei tenham uma posi¢go no pais, por outro lado, ¢ nocivo que eles te- nham tanta preponderancia a ponto de formarem virtualmente 0 todo do pais. A pro- pria exceléncia que empregam no desempenho de suas fungSes pode estar longe de qualificé-los a0 desempenho de outras fungGes. Nao se pode deixar de observar que, quando homens se acham confinados nos habitos profissionais do trabalho judiciério, e por assim dizer enraizados nas fungGes sempre idénticas deste circulo estreito, eles perdem, mais do que ganham, as aptides necessdrias para se ocuparem dos assuntos que supdem o conhecimento dos homens, a experiéncia dos negécios complexos, pers- pectivas amplas e coesas a respeito de interesses diferentes e delicados, tanto internos quanto externos, deste organismo complicado que é um Estado. Mas, mesmo se a Camara dos Comuns fosse inteiramente composta por homens de lei, o que é seu poder, circunscrito limitado que se acha pelas imitdveis barreiras de leis, costumes, regras positivas nascidas da doutrina e da experiéncia, contrabalan- gado pela autoridade da Camara dos Lordes, e sempre a discrigfo da Coroa que nos pode manter, prorrogar ou dissolver? O poder da Camara dos Comuns é, direta ou in- diretamente, muito grande. Possa ela conservé-lo por muito tempo, e, com ele, 0 ca- réter que convém & verdadeira grandeza. A condigo para que isso aconteca, é im- pedir que aqueles que violam a lei na India, venham fazer as leis para a Inglate Mas o poder da Camara dos Comuns, mesmo na sua maior extensdo, ¢ uma gota d’4gua no oceafio, se comparado ao poder que reside em uma maioria bem estabele- cida da Assembléia Nacional francesa. Esta Assembléia,{desde a aboligado das Ordens, nao tem nada que a_possa frearj nem a lei fundamental, nem convengao estrita, nem costume respeitado. Ao invés de ser obrigada a respeitar uma Constituigdo esta- belecida, ela tem 0 poder de elaborar uma que seja conforme a seus objetivos. Ndo hé nada, nem no céu nem na terra, que possa controlé-la. Que cabegas ado seriam precisas, que coragdes, que disposigdes, para poder, ou mesmo para ousar, no so- mente fazer leis sob determinada Constituig4o, mas também fazer nascer, com um Unico gesto, uma Constituigdo inteiramente nova, que se aplique a um grande rei- no e a cada uma de suas partes, do monarca em seu trono ao conselho da altima das vilas! Mas “os insensatos se precipitam onde os anjos temem colocar o pe” Em tal situagdo, neste caso de um poder-sem limites posto a servico de projetos que ndo so, nem podem ser definidos, uma inaptidao moral e quase fisica de homens no desempenho de suas fungSes, é a maior infelicidade que possamos imaginar na con- dugéo-des negocios humanos, - OCLERO Tendo examinado a composigao do Terceiro Estado em sua condi¢ao primitiva, lancei os olhos sobre a representacdd do Clero. Pude, entdo, constatar que seus eleito- res, como os do Terceiro Estado, descuidaram-se da seguranga geral da propriedade, ou da aptiddo dos deputados no desempenho de suas fungdes. Com efeito, entre os que Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga 79 eles enviaram a Paris para se ocupar do trabalho imenso e drduo da reestruturagao do Estado em bases novas, figurava um grande numero de vigarios de vila, Eram homens que ndo tinham a menor idéia do que fosse um Estado; que nao sabiam nada do mun- do, passado os limites de uma obscura vila; que, mergulhados em uma miséria sem esperangas, s6 podiam considerar com inveja qualquer propriedade, eclesidstica ou secular; homens, enfim, entre os quais havia muitos que a menor esperanga de se apro- veitar de uma pilhagem deveria levar a se unirem a todas as tentativas dirigidas contra um conjunto de bens dos quais eles no poderiam esperar tirar nada, a nao ser por fora de uma revolugao geral. Em lugar de contrabalancar o poder dos ativs chica- neiros que conduziam o Terceiro Estado, estes eclesidsticos deveriam infalivelmente se tornar ativos colaboradores, ou precisando melhor as coisas, os instrumentos-pas- sivos daqueles a quem ja tinham o habito de recorrer para a resolugdo de todos os seus pequenos negdcios de vila. Alids, no poderiam ser 0s membros mais concencid- sos do clero francés, tais homens cuja incompeténcia néo tinha impedido de disputar um mandato que, suspendendo seu ministério habitual e tirando-os de sua esfera de agdo natural, Ihes dava por miss4o empreender a regeneracdo dos reinos. Este peso preponderante somado a forca dos numerosos corpos de chicaneiros que tinham as- sento nas fileiras do Terceiro Estado, resultou neste monumento de ignordncia, teme- ridade, presungdo e sede de pilhagem, ao qual nada foi capaz de resistir. ANOBREZA Desde 0 inicio, todos os observadores convenceram-se de que a maioria do Ter- ceiro Estado, juntamente com a deputacfo do Clero que acabo de descrever, devia inevitavelmente, perseguindo a destruigéo da Nobreza, tornar-se o instrumento dos piores designios de certos membros desta Ordem. Tais membros indignos encontra- riam- nos despojos e na humilhagdo de sua propria classe, com o que pagar seus no- vos correligiondrios. Aliés, no faziam nenhum sacrificio ao dissiparem os bens que tinham feito a felicidade de seus iguais. Os homens de qualidade, quando turbulen- tos e descontentes, geralmente desprezam a “classe a qual pertencem, na propor¢do direta de sua arfogaricia e vaidade”pessoal.Um dos primeiros sintomas que podem dar —de uma ambicdo egoista é doentia é este depravado desprezo de uma dignitade que _dividem_com_outros. £ o amor a classe, a0 pequeno nucleo ao qual pertence- mos na sociedade, que é o primeiro principio — 0 germe por assim dizer — de nos- sas afeigdes piblicas. Este é 0 primeiro elo da corrente que nos liga a nossa pitria e a humanidade. Os interesses da classe social s4o confiados aos que a compéem; da mes- ma forma que apenas os maus cidadaos justificariam os abusos de sua classe, apenas os traidores sacrificariam os interesses de sua classe, em favor de vantagens pessoais. Conhecemos, no tempo de nossos distirbios civis, homens (ndo sei se existem se- melhantes na Assembléia francesa) que, como o Conde de Holland,** tinham feito com que se odiasse a coroa por causa da prodigalidade dos favores que dela tinham recebido, nao hesitaram em aderir as rebeliGes cuja causa eram eles mesmos; homens que ajuda- ram a derrubar o trono ao qual deviam sua propria existéncia, e outros que deviam a0 trono o poder que empregaram para arruiné-lo. Tal tipo de gente, se se impde algum 80 Edmund Burke limite em seus Avidos pedidos, ou se se permite a outros de ter alguma parte nos bens que eles querem s6 para si, a inveja e 0 desejo de vinganga logo se instalam no espaco yazio que se encontra em sua avareza. Na agitagdo que nasce de suas paixdes desenfre- adas, sua razdo se perde, suas vistas se alargam e se tornam confusas, inexplicdveis aos outros e incertas até para eles. Em toda a ordem de coisas bem estabelecida, sua am- bigdo desordenada encontra sempre limites, mas no meio dos vapores e das brumas-da confusfo civil, tudo se torna mais amplo e parece sem nenhum limite, ~~ i. mh “SPAN a<~ CARACTERISTICA PRINCIPAL DA REVOLUGAO NA FRANCA: 4 pater, Quando homens de alta classe sacrificam todas as idéias de dignidgde a uma am- bigdo sem objeto definido, e trabalham para objetivos vis com instrumentos indignos, todos os espiritos se tornam baixos e despreziveis. Nao vemos algo semelhante apare- cendo na Franca neste momento? E seu resultado nfo é igndbil e inglério? Uma espé- cie de baixeza em toda a politica dominante? Uma tendéncia persistente em aviltar nfo apenas os individuos como também toda a dignidade e importancia do Estado? Outras revoluges houveram conduzidas por homens que, enquanto tentavam ou con- seguiam-désestabilizar o bem-estar social, Consagravam toda x sua ambigZo.em dar mais dignidade ao povo cuja paz perturbavam. Viam longe. Pretendiam criar leis € no des- truir o pais. Eram homens de grandes talentos civis e militares e, se se constitufam no terror de sua época, eram-Ihe também o ornamento. Nao se assemelhavam aos inter- medidrios judeus, os quais disputam entre si pela colocagao daquele que melhor con- seguiré desencadear, pela circulacdo fraudulenta de um papel depreciado, a miséria e a ruina de seu povo através de conselhos depravados. O elogio feito a Cromwell, um dos grandes malfeitores da antiga fibra, por um de seus parentes — um poeta conside- tado em sua época — demonstra o que tentava e o que realmente conseguiu em gran- de parte realizar ao satisfazer sua ambigfo: “Enquanto v6s subis, o Estado, também exaltado, se conturba enquanto vés o transformais. No entra em tumulto ao ser transformado por vés; Transformado que € como a grande cena do mundo, quando, silentes, as luzes vulgares da noite sfo destrufdas pelo sol que se levanta.”* Tais agitadores ndo eram mais semelhantes aos usurpadores do que aqueles que reivindicam seu lugar natural na sociedade. Sua ascensio deveria iluminar e embele- zar 0 mundo. Venciam seus competidores ao eclipsé-los. A mfo que, como um anjo exterminador, golpeava o pais, comunicava-lhe ao mesmo tempo a forga e a energia com asquaisele tudo suportava. Nao digo (Deus me perdoe!) que as virtudes desses homens devam compensar seus ctimes; todavia, corrigiam ao menos_um pouco seus defeitos. = ax Assim era, como disse, nosso Cromwell®.Assim foi sua grande raga dos Guise, dos Condé e dos Coligny”. Assim seus Richelieu que, em tempos menos tumultua- dos, se deixavam guiar pelo espfrito da guerra civil. Assim ainda foram seus Henri- que IV e seus Sully* — estes melhores que os precedentes ¢ engajados em causas me- Reflexdes sobre a Revolugfo em Franga 81 nos duvidosas, embora nutridos por desordens civis ¢ nao inteiramente destituidos de miéculas. E admirdvel ver como a Franga, assim que tem um momento para tespirar, rapidamente se recupera e emerge da guerra civil mais longa e horrorosa, jamais so- frida anteriormente por outra nagdo. Por que? Porque, com todos esses massacres, a mente em seu pais ndo foi assassinada. Uma dignidade consciente, um nobre orgulho € um generoso sentido de gloria e emulagao nao foram extintos. Ao contrario, foram estimulados ¢ inflamados. Todos os prémios de honra e virtude, todas as recompen- sas, todas as distingSes permaneceram, Sua presente confusdo, contudo, atacou, como uma paralisia, a propria fonte da vida. Quem quer que seja em meu pais, capaz de agir motivado por principio de honra, € aviltado e humilhado, e ndo pode entreter sentimento algum e: atormentada indignagao. Essa geragdo, porém, terminaré logo. A proxima geragao de ‘sua nobreza assémelhar-se-4 a dos charlatdes e 4 dos palhagos, a desses homens de negocios, desses usurdrios e desses judeus®® que serio sempre seus companheiros e, algumas vezes, seus mestres. Acredite-me, senhor, aqueles que tentam nivelar nunca igualam. Em todas as sociedades compostas de diferentes classes de cidadaos.é neces- s4rio que algumas delas se sobreponham as outras. Os niveladores, portanto, apenas mu- dam @ peryertem a ordem natural das coisas; sbrecatfegando o edificio social ao colocar no ar o que a solidez do edificio exige seja posto no chao. ‘As corporagées de alfaiates e carpinteiros, por exemplo, que compéem a Re- publica de Paris, ndo podem ser elevadas 4 situacdo a qual, pela pior das usurpagdes — a das prerrogativas da natureza, o senhor as quer forgar a se adaptarem, SOBRE MIGUALDADE DOS HOMENS E SUA ADMISSAO EM TODOS OS EMPREGOS. O Chanceler da Franca,” durante a abertura dos Estados Gerais, disse, em tom de ret6rica orat6ria, que todas as ocupag6es eram nobres. Se queria dizer simplesmente que nenhum emprego € desonroso, ndo teria ido além da verdade. Mas, quando se diz que algo € nobre, implica-se afirmar também que é digno de uma distingo qualquer. A ocupagdo de um cabelereiro ou de um operdrio fabricante de velas — para nao falar de mUitas outras ocupagdes mais servis — ndo pode ser motivo de honra para pessoa algu- ma. Quem exerce profissSes como essas nao deve, sem duvida, sofrer a opressfo do Estado; o Estado, contudo, sera oprimido se se permitir que aqueles de sua classe, indi- lual ou coletivamente, cheguem a governé-lo. Ao chamé-los ao poder, o senhor ima- gina estar combatendo a discriminagao, mas esté, na verdade, colocando-se em guerra civil contra a natureza.* * Eclesidstico, cap. XXXVIII, vers. 24, 25. “A sabedoria do escriba Ihe vem no tempo do lazer: aquele que pouco se agita adquiriré sabedor “Que sabedoria poderia ter o homem que con- duz a charrua, que faz ponto de honra aguilhoar os bois, que participa de seu labor, e s6 sabe fa- lar das crias dos touros?” Vers. 27. “‘Igualmente acontece com todo carpinteiro, todo arquiteto, que:passa no trabalho os dias e as noites. Assim sucede aquele que grava as marcas dos sinetes, variando as figuras por um 82 Edmund Burke Nao 0 concebo, meu caro senhor, possuidor do mesmo espitito de sofista cap- cioso ou da mesma estupidez fingida daqueles que exigem, para cada sentimento ou observagdo geral, o detalhamento explicito dos corretivos e excegdes que a razo supde devam estar inclu{dos em todas as proposig6es provenientes de homens razodveis. No imagine que eu queira restringir 0 poder, a autoridade e a distincdo a sangue, nomes titulos. Nao, senhor. Apenas a virtude e a sabedoria, reais ou presumidas, qualificam para 0 exercicio do Governo. Onde quer que se encontrem, em qualquer estado, con- digdo, profisso ou comércio, elas tém o direito a receber do Alto o passaporte que as conduzird ao lugar e & honra humanas. Desditoso o pais que loucae impiedosamente re- jeitar os servicos dos talentos ¢ das virtudes, civis, militares ou religiosos, que existem para honré-lo e servi-lo, e que condenar & obscuridade tudo o que se formou para 0 esplendor e a gloria de um Estado. Desditoso 0 pais que, passando ao extremo oposto, considerar uma educacdo inferior, uma visao estreita das coisas ou uma sérdida ocupa- ¢4o como um dos titulos preferidos para o exercicio do mando. Tados os postos de- ~vem estar abertos, porém n4o indiferentemente, a todos os homens, N&o ha rotagio, forteiojou kistema eleitorall que, baseando-se num ou noutro desses principios, possa, em geral, ser bom para um Governo que se ocupe de vastos designios. Porque tais mé- todos ndo tendem, direta ou indiretamente, a selecionar os homens com vistas ao.dever a ser cumprido, nem a acomodar os deveres aos homens escolhidos. Nao hesito em afir- mar que caminho da condigSo obscura para a eminéncia e o poder nfo deve ser per- corrido com facilidade demasiada, nem tampouco deve ter uma meta a qual se chegue naturalmente. Se um raro mérito é-a mais rara de todas as coisas, torna-se necessério, para atingi-lo, passar por alguma espécie de provagao. O templo de honta deve estar assentado sobre uma eminéncia. Se estd aberto para a virtude, é preciso lembrar que a virtude nfo é provada seno através de alguma dificuldade ou de algum esforco. SOBRE AA REPRESENTAGAO EM UM ESTADO) o lugar que se deve conceder ao talento; o Tugar que se deve dar a propriedade. A representagdo na Franca. Nenhuma representacdo de um Estado é valida e adequada se ndo compreende, ao mesmo tempo, sua aptidao e sua propriedade. Contudo, como a aptidao é um pri cipio vigoroso e ativo ao passo que a propriedade é apitica, inerte e t{mida,*? esta ulti- ma nunca se verd livre das investidas da aptiddo a menos que seja desproporcionalmen- te dominante na representagdo. E preciso também que se apresente na forma de gran- des massas de bens acumulados, em cujo tnico caso estard corretamente protegida. A trabalho assiduo; que aplica todo 0 seu coraggo na pintura, e pée todo o cuidado no acabamento de seu trabalho.” Vers. 33. “Mas eles mesmos no terdo parte na assembléia, nfo se assentardo nas cadeiras dos jui- zes, ndo entenderdo as disposigdes judiciérias, nfo apregoargo nem a instrucdo nem o direito, nem serdo encontrados a estudar as maximas. Vers, 34. “Entretanto, sustentam as coisas deste mundo.” ‘Nao pretendo determinar que esse livro séja candnico, como a Igreja da Franga (até recentemente) © considerou, ou apécrifo, como é tomado aqui. Estou certo que contém uma grande quantidade de bom-senso, e de verdade’ Reflexes sobre a Revolugiio em Franga 83 ¢aracteristica essencial da propriedade, que é formada por principios combinados de aquisi¢aéo e de conservagao, ¢ a desigualdade. Torna-se necessario colocé-las fora do alcance de qualquer possibilidadé dé perigo, de vez que estimulam a inveja e a cobiga. Assim, formam uma espécie de protego natural em volta das propriedades de menor importancia, em todas as gradag6es possiveis. Ndo se obtém o mesmo efeito dividindo- se, pelo curso natural das coisas, uma propriedade do mesmo tamanho entre muitos, haja vista seu poder defensivo se enfraquece enquanto se difunde. Nesta difusfo, a por¢do que cabe a cada homem € menor que aquela que, na impetuosidade dé seus desejos, ele espera obter através da dissipacdo das acumulag6es dos outros. A pilhagem dos bens de uris poucos resultaria em uma parte inconcebivelmente pequena a ser distribufda entre os muitos. Os muitos, porém, ndo sao capazes de fazer esse célculo; e aqueles que os conduzem a pilhagem ‘nunca pretenderam realizar a distribuiggo. O poder de perpetuar nossa propriedade em nossas familia é um de seus elemen- tos mais valiosos ¢ interessantes, que tende, sobretudo, a perpetuacdo da propria socie- dade. Torna nossas fraquezas subservientes as nossas virtudes; recobre de benevoléncia até mesmo a avareza. Os possuidores de riqueza de familia e da distinggo que acompa- nha a possesso hereditaria (na qualidade de principais interessados) naturalmente ga- rantem essa transmissdo. Aqui, a Camara dos Lordesé formada a partir deste principio. Compée-se inteiramente de bens e de distingdes hereditarios; e compreende, por isso, um tergo do Parlamento; sendo, em Giltima instancia, o Gnico juiz de toda a proprieda- de, em todas as suas subdivisdes. A Camara dos Comuns também, embora ndo necessa- riamente, — e contudo de fato — é sempre composta da mesma maneira em sua maio- tia. Deixe os grandes proprietérios serem 0 que quiserem — e a chance é de que estarao entre os melhores — que sero, no pior dos casos, 0 lastro do navio da comunidade. Porque embora a riqueza hereditéria e a posigdo que acompanha sejam demasiadamen- te idolatradas por bajuladores rastejantes ¢ por cegos e abjetos admiradores do poder, elas so, por outro lado, menosprezadas muito irrefletidamente nas especulagGes super- ficiais de janotas da filosofia, petulantes, presungosos e miopes. Nao é ilogico, nem in- justo, nem impolitico conceder uma certa preeminéncia decente e bem regulamentada e alguma preferéncia (ndo digo um privilégio exclusivo) ao nascimento. _ Diz-se que vinte-e-quatro milhes devem prevalecer sobre duzentos mil, De acor- do, se a consti 5 de urn reino for questdo de aritmética. Esse tipo de discurso, po- rém, s6 faz sentido com a ajuda de uma outra luz:jpara os homens que podem raciaci- nar, ele é ridiculo\ A vontade dos muitos e seus interesses diferem bastante freqiente- mente; € a diferénca seré enorme quando fizerem uma mé escolha. Um Governo de quinhentos procuradores de cidade do interior e de vigdrios obscuros nao é bom para vinte € quatro milhdes, mesmo que tenha sido escolhido por quarenta e oito milhSes; nem é melior por ter sido dirigido por uma duzia de pessoas de qualidade, que trafram sua confianga para obter o poder. No momento presente, a Franca. parece tet sido, to- talmente desviada da grande rota da natureza.A Propriedade ndo a governa. Logo, a propriedade @ destrufda e-a liberdade racional deixa de existir. Tudo 0 que se obteve até agora foi a circulagdo de um papel e uma constituigao de agiotagem: e quanto ad futuro, o senhor seriamente acredita que 0 territério da Franga, dividido conforme o sistema republicano em oitenta ¢ trés municipalidades independentes (para no falar 84 Edmund Burke das partes que as compdem) possa, algum dia, ser governado como um corpo unico ou posto em movimento pelo impulso de uma s6 mente? Quando a Assembléia Nacional tiver realizado seu trabalho, ela teré completado sua ruina. As comunidades ndo supor- taro por muito tempo esse estado de sujeigao 4 Republica de Paris. Néo suportarao que esse tinico corpo monopolize a captatividade de um reie 0 direito de supremacia so- bre a Assembléia que é denominada Nacional. Cada comunidade conservar para si mesma sua por¢do do espOlio da Igreja; e ndo aceitaré que este espdlio, nem que os fru- tos mais justos de sua indtistria ou produto natural de seu solo, sejam utilizados para insuflar a insoléncia ou para empanturrar a luxiiria dos mecanicos de Paris. Nao enxer- gardo coisa alguma da igualdade, sob cuja pretensdo foram instigados a deitar fora a fi- delidade a seus soberanos bem como a antiga Constituigdo de seu reino. Uma Consti- tuigo como a que foi elaborada ultimamente na Franca ndo admite a fungdo de uma cidade-capital. Esqueceram-se os homens que a fizeram, ao tentar criar governos demo- crdticos, de que seu pais foi virtualmente desmembrado. Nao permitiram que restasse ao individuo a quem preservaram em chamar de rei a centésima parte do poder necessd- rio para manter unida essa cole¢go de repiblicas. A Repiblica de Paris certamente esforgar-se-4 para completar a corrupedo do exército e perpetuar ilegalmente a Assem- biéia sem consuitar seus eleitores com vistas 4 continuagdo de seu despotismo. Multi- plicara seus esforcos, tornando-se 0 centro da circulagdo ilimitada de papel-moeda, no sentido de tudo atrair para si mesma, mas em vao. Toda essa politica, no final, mostrar- sexi tdo débil como é agora violenta. SOBRE UM PONTO DO SERMAO DO DOUTOR PRICE: ‘e & possivel aplicar-se Inglaterra os principios da Franga. Se essa é a situacdo real, comparada com aquela a qual os franceses foram chama- dos, como se fosse pela voz de Deus ou dos homens, nfo consigo trazer-me a congratu- ldlos de dentro de meu cora¢do pela escolha que fizeram, nem pelo sucesso que res- ponderé aos seus esforcos. Tampouco posso recomendar a qualquer outra nago uma conduta baseada em tais princfpios ou produtora de tais efeitos. Preciso deixar que 0 facam aqueles que podem ver, mais longe que eu, seus assuntos e que saibam, aindame- lhor, que tais agdes favorecem a seus designios. Os cavalheiros da Sociedade da Revolu- 40, to apressados em suas congratulagdes, parecem ser fortemente da opinifo de que ha algum esquema politico relativo a este pafs, para o qual tais procedimentos possam demonstrar-se de alguma forma tteis. De fato, o seu Doutor Price, que aparentemente se dedicou com nfo pequena dose de fervor a especulago desse assunto, dirige-se a sua platéia nos seguintes termos deveras notdveis: “No posso concluir sem particularmen- te rogar a atengfo dos Senhores a uma consideracdo a qual aludi mais de uma vez, e que provavelmente seus pensamentos hé muito adivinharam; e que est impressa em minha mente bem mais do que posso exprimir. Estou falando da consideragdo sobre 0 quanto o tempo presente é favoravel a todos os esforcos para a causa da liberdade.” Obviamente o espfrito desse pregador politico estava naquele momento engran- decido por algum designio extraordirtério; e muito provavelmente, os pensamentos da audiéncia que o entendia melhor que eu precediam-no em sua reflexo bem como em toda a série de conseqiléncias as quais pretendia chegar. Reflexdes sobre a Revolugflo em Franca 85 Antes de ler esse sermao, eu realmente acreditava viver em um pais livre; erro esse que nutria carinhosamente porque me fazia amar ainda mais o pais em que vivia. Sabia, sem davida, que uma vigilancia ciumenta-e eternamente alerta, a qual guardava © tesouro de nossa liberdade nao apenas contra a invaso mas também contra a deca- déncia a corrupgao, era nossa melhor sabedoria e nosso primeiro dever. Considerava esse tesouro, contudo, antes como uma possessfo a ser guardada do que um prémio a ser disputado. Nao discernia como o tempo presente se encontrava to favordvel a to- dos os esforgos para a causa da liberdade. O tempo presente, alids, diferia dos outros apenas pelo que estava ocorrendo na Franga. Se o exemplo dessa nagao deve influen- ciar a nossa, posso bem conceber porque alguns de seus procedimentos — que tém aspecto desagradével, e que ndo se conciliam facilmente com os ideais de humanidade, generosidade, boa-fé e justica, — possam ser desculpados com tamanha indulgéncia cé- moda por seus autores e tolerados com tamanha impassividade herdica por suas viti- mas. Nao é certamente prudente desacreditar a autoridade de um exemplo que preten- demos seguir. Mas, nesse caso, somos levados a uma questo bastante natural qual é essa causa da liberdade, e quais so 0s esforgos em sua direco dos quais o exemplo da Franga € tdo singularmente auspicios0?/ Deve ser nossa monarquia aniquilada com todas as leis, todos os tribunais e todas as antigas corporagdes do reino? Devem ser to- dos os marcos do pais eliminados em favor de uma constituicao geométrica e aritmé- tica? A Camara dos Lordes declarada instil mediante votac40? Abolido o episcopado? As terras da Igreja vendidas a judeus e vis traficantes, ou doadas, em suborno, a repi- blicas municipais recentemente inventadas a fim de assegurar sua participagdo no sacri- légio? Deve-se proclamar por lei que todos os impostos so vexat6rios e reduzir a renda publica a uma contribuigéo ou a presentes patridticos? Substituir impostos sobre a terra ou sobre o malte por fivelas de sapato de prata com vistas ao sustento do poderio naval deste reino? Confundir todas as ordens, classes e distingdes, de modo a transfor- mar, através da anarquia universal aliada & faléncia nacional, trés ou quatro mil demo- cracias em oitenta e trés, e organizé-las todas em uma tinica por meio de um poder de abstragdo desconhecido? Para essa finalidade sublime, deve-se desencaminhar o exérci- to de sua disciplina e de sua fidelidade, em primeiro lugar, através de todo o tipo de libertinagem, e, em segundo, pelo terrivel precedente de um donativo sob a forma de aumento de soldo? Deve-se provocar os padres contra os bispos, seduzindo-os com a ilusOria esperanga de um quinhdo do espélio de sua propria Ordem? Deve-se convencer os cidaddos de Londres a desistir de sua lealdade, alimentando-os as custas dos outros siditos? Fazer substituir por um papel compulsbrio a moeda legal deste reino? Empre- gar 0 que restar do estoque pilhado da renda publica no insensato projeto de manter dois exércitos, um para vigiar e combater 0 outro? — Se estes se tratam dos fins e dos meios da Sociedade da Revolugdo, admito sao bem variados. Mesmo assim, a Franga pode supri-la, em ambos os pontos de vista, com precedentes perfeitamente adaptaveis. O QUE O DOUTOR PRICE PENSA DA REPRESENTACAO INGLESA. Vejo que o exemplo da Franga nos é mostrado para que nos envergonhemos. Sei que nos supde uma raca lenta e macante, tornada passiva por encontrar-se em uma si- 86 Edmund Burke tuagGo tolerdvel; e impedida, por uma liberdade mediocre, de obté-la perfeita algum dia, Seus Ifderes na Franca comecaram fingindo admirar, quase adorar, a Constituiggo Britanica; A medida, porém, em que avancavam, passaram a nos olhar com soberano desprezo. Aqui na Inglaterra, os amigos de sua Assembléia Nacional tém agora uma triste opiniéo do que antes era considerado a gloria do pais. A Sociedade da Revolugao descobriu que a nagdo inglesa no é livre. Convenceram-se-de que a desigualdade de nossa representagdo é um “defeito na Constituigdo tio flagrante e tao impalpdvel, que a torna excelente apenas em forma e teoria”.* De que a representacdo na legislatura de um reino ndo é somente a base de toda liberdade constitucional nele existente, mas também de “todo governo legitimo; de que sem essa representac@o 0 governo nada é, sendo uma usurpagdo”- de que “quando a representacdo é parcial, o reino possui liber- dade apenas parcialmente; e quando extremamente parcial, s6 existe uma aparéncia de liberdade; e quando nfo apenas extremamente parcial, mas ainda escolhida de forma corrupta, torna-se um estorvo”. O Dr. Price considera esta imperfeigdo da representa- g4o como nosso mal fundamental; e embora nZo acredite que a corrup¢do desta apa- réncia de representagdo tenha atingido sua completa perfeigdo, ele teme que “nada sera tentado para a conquista dessa bénedo essencial até que algum grande abuso de poder nos cause novo ressentimento, ou até que alguma grande calamidade acorde de novo nossos medos, ou, talvez, até que a aquisigdo de uma representatividade pura e igual por outros paises — enquanto, na sombra, continuamos a ser objeto de escdrnio — exa- cerba nossa vergonha.” A tudo isso ele acrescenta a seguinte nota: ‘‘Uma representagdo escolhida principalmente pelo Ministério e por uns poucos milhares pertencentes a es- céria do povo, que geralmente so pagds pelos seus votos.”” Aqui, o senhor achard graca da consisténcia desses democratas que, quando des- previnidos, tratam a parte mais humilde da comunidade com o maior desprezo, e, a0 mesmo tempo, fingem querer transformé-la no receptéculo de todo o poder. Um longo discurso far-se-ia necessdrio para apontar-lhe as muitas falécias que se escondem na ge- neralidade e na natureza equivoca da expressdo “‘representatividade inadequada”. Direi apenas, para fazer justiga aquela Constituigdo antiquada, sob cujas leis vimos h4 muito prosperando, que nossa representagdo se encontrou sempre perfeitamente adequada a todos os propésitos para os quais a representacdo de um povo pode ser desejada ou inventada. Desafio os inimigos de nossa Constituigéo a demonstrar-lhe 0 contrario. Pa- ra detalhar-lhe as particularidades pelas quais ela serve tfo bem para a consecucdo de seus fins, faz-se necessério um tratado sobre a praticidade da constituigéo. Exponho aqui a doutrina dos revolucionérios, apenas para que o Senhor e os outros possam ver qual a opinifo desses cavalheiros sobre a Constituigdo de seu pais, e porque eles pare- cem pensar que seus sentimentos estariam aliviados com algum grande abuso de poder, ‘ou com alguma imensa calamidade, que possibilitassem a béngdo de uma constituigao de acordo com suas idéias. Agora o senhor,percebe porque eles demonstram tanto amor por sua representagdo igual e justa: se n6s a obtivermos, ela poderé produzir na Inglaterra os mesmos efeitos que na Franca. Veja que eles consideram a Camara dos ‘* Discourse on the Love of our country, 31d. edition, p. 39. Reflexdes sobre a Revolugfo em Franca 87 Comuns como “uma aparéncia”, “uma forma”, “uma teoria”, “uma sombra”, “uma piada”, talvez “um estorvo”. CONSEQUENCIAS DESSA OPINIAO. PSICOLOGIA DOS REVOLUCIONARIOS: “B preciso que destruam alguma coisa.” Esses cavalheiros vangloriam-se de serem sistematicos; e nao sem raz4o. Precisam, por isso mesmo, considerar esse flagrante e palpdvel defeito da representacdo, esse mal fundamental (dizem eles) como algo ndo apenas vicioso em si mesmo, mas também capaz de suprimir toda a legitimidade do governo, tornando-o em nada superior a uma categorica usurpagdo. Segue-se que, uma outra revolug4o, para livrar-nos deste Governo ilegitimo e usurpador, seria perfeitamente justificdvel, sendo absolutamente necesséria, De fato, esse principio, se o Senhor observar com alguma atenco, vai muito além de uma simples alteragdo na Camara dos Comuns; pois, se a representa¢40 popular ou elei- Go € necessdria para a legitimidade de todo governo, a Camara dos Lordes se encontra, de uma s6 vez, abastardada e corrompida em sua propria fonte. Essa Camara, na verda- de, nao representa parte alguma do povo, nem mesmo em “aparéncia ou em forma”. Ocaso da Coroa nao se apresenta melhor. A Coroa esforgar-se-ia em vao para proteger- se contra esses cavalheiros com a autoridade que lhe ficou estabelecida durante a Revo- lugdo. A Revolugdo, porém, & qual se recorre como titulo, carece, no sistema desses cavalheiros, de um titulo para si mesma. Sua teoria ndo lhe reconhece uma base mais sOlida que a de nossas formalidades presentes, pois a Revolucdo foi efetivada por uma Camara dos Lordes que nfo representava quem quer que fosse além dos proprios lordes, e por uma Camara dos Comuns exatamente igual 4 de hoje, ou seja, como di- zem, uma simples “‘sombra”, ou mera “‘caricatura” de representagdo. Precisam destruir algo, sem 0 que nao parecem viver para propésito algum. Alguns deles pretendem destruir 0 poder civil, destruindo primeiramente 0 eclesidstico; outros favorecem a aboligéo do poder eclesidtico a ser iniciado pela abolig#o do poder civil. Tém consciéncia de que a efetivacdo da dupla rufna da Igreja e do Estado podera acarretar as piores conseqiiéncias para 0 povo, mas estdo téo empolgados com suas teorias que nfo se preocupam em esconder que tal ruina — com todos os prejufzos dela decorrentes, de cuja ocorréncia nfo duvidam — nao lhes seria inaceitdvel, e talvez nem estivesse muito distante de seus desejos. Um homem, dentre eles, de grande auto- ridade e certamente de numerosos talentos,* ao falar de uma suposta alianga entre a Igreja e o Estado, disse: “talvez precisemos esperar pela queda dos poderes civis para que se rompa esta alianga contréria 4 natureza. Esse tempo seria sem diivida calamito- so. Mas qual convulsfo do mundo politico deve ser objeto de lamentagdo, se chegar a produzir um efeito tio desejavel?” Veja, senhor, com que serenidade esses cavalheiros se preparam para assistir 4s piores calamidades que podem vir a ocorrer em seu pais! Nao_causa surpresa, portanto, que, reputando cada coisa da Constituic¢éo e do Governo de seu pafs, seja a Igreja, seja o Estado, como ileg{timo e usurpador, ou, na melhor das hipéteses, camo-v4- zombaria, eles admirem o estrangeiro com um entusias- mo ardente e apaixonado. Enquanto sio possufdos por essas nog6es,-€ inatil tentar falar-lhes de seus ancestrais, das leis fundamentais de seu pais, das formas fixas de uma 88 Edmund Burke Constituigdo, cujos méritos foram confirmados pelo slido testemunho da longa expe- rigncia e por crescentes forga popular e prosperidade nacional. Desprezam a experién- cia, como se fosse sabedoria de iletrados; quanto ao resto, estfo a explorar uma mina que explodiré de uma sO vez com todos os exemplos da antigiiidade, todos os prece- dentes, todas as cartas ¢ todos os atos parlamentares. Eles tém “os direitos do homem”. Contra esses nfo h4 remédio; acordo algum se Ihes prevalecer4; qualquer restrig0 a0 seu mandato ser proveniente da fraude e da injustica. Os direitos do homem nfo per- miter que Governo algum invoque contra eles a durago de seu império, ou a justiga “e a indulgéncia de sua administragao. As objegdes desses especuladores aos Governos cujas formas nfo se enquadram as suas teorias valem tanto contra uma autoridade anti- ga e benfazeja quanto contra a mais violenta tirania ou a mais recente usurpacdo. Estdo sempre questionando os Governos, nfo quanto 4 questo de abuso, mas sim quanto a questdes de competéncia e de titulo, Nada tenho a dizer contra a grosseira sutileza de sua metaffsica politica. Deixe-os divertirem-se em suas escolas: “Tila se jactet in aula Aeolus, et clauso ventorum carcere regnet."“ Nao os deixe, porém, arrombar sua prisdo para se precipitar, com a faria do ven- to do Levante,** para devastar a terra com seu furacdo e revoltar o mar que os submer- gird. — { SOBRE OS VERDADEIROS DIREITOS DO HOMEM Longe estou de negar em teoria a existéncia dos verdadeiros direitos do homem, da mesma forma que meu coracSo estd distante de recusé-la na pratica (se, no caso, me fosse facultado o poder de dar ou negar). Ao reprovar suas falsas pretenses ao.direito, nao tenciono prejudicar os direitos reais, justamente aqueles que eles destruiram com- pletamente tendo em vista os seus pretensos direitos. Se a sociedade civil foi criada para o beneficio do homem, todas as vantagens para a qual ela foi criada tornam-se di- Teitos. Trata-se de uma institui¢do beneficente; e a propria lei é a beneficéncia regula- mentada*Os homens tém o direito a justica de seus irm4os, qcupem estas fungdés po- Hiticas ou ordindrias. Tém _o direito aos frutos de sua indistria; e aos meios de tornar sua industria frutifera. Tém o direito as aquisig6es de seus pats; nutricdo e ao progres- so de seus filhos; a instrugo em vida, e ao consolo na hora da morte. Tudo o que cada homem individualmente pode fazer, sem lesar os outros, ele. tem o direito de realizar; €éle tem também dirgito a uma fasta porgda de tudo o que a sociedade, mediante-as combinagdes de sr sua a tos em seu favor. Nessa associagao, todos os homens tém dirkitos iguais, mas ndo as mesmas coisaé Aquele que subscrever cinco shillings em uma sociedade tem direito a 2 \da-dos cinco shillings, da mesma forma que aquele que empregar quinhentas libras esterlinas tem direito proporcional a quantia aplicada. Contudo, ele nao tem direito ao dividendo igual do produto do capi- tal conjunto; e no que concerne a participagdo no poder, autoridade e diregdo que cada individuo deve t dade tat entre os direi- sdo nna sociedade — pois me ocupo do homem social e de ja-se de algo a ser regitamentado pela convencio. Reflexées sobre a Revolugio em Franga 89 Se a sociedade civil € 0 produto da convengfo, essa convengdo deve ser sua lei; deve ter a capacidade de limitar e de modificar todas as Constituig6es por ela forma- das, Todas as espécies de poder legislativo, judicidrio e executivo sfo suas criaturas. Nao tém existéncia em outro estado de coisas; e como pode o homem reivindicar, em nome das convengdes da sociedade civil, direitos cuja existéncia é questionavel? Direi- tos que so absolutamente incompativeis com a propria sociedade civil? Uma das pri- meiras razGes de ser da sociedade civil, e que se tornou uma de suas regras principals, € a de que nenluim nomen pode ser juiz de sua propria causa. Pot isso, cada_um dos membros da sociedade tenunciou eq primeiro direito fundamental do individuo isola- do, isto é, 0 de julgar por si mesmo e o de defender sua propria causa. Abdicou do di- reito de governar-se-a si proprio, Abandonou, inclusive, em grande medida, o direito a autodefesa, a primeira lei da natureza. O homem nfo pode gozar ao mesmo tempo dos direitos da sociedade civil e dos que teria se vivesse isolado. A fim de obter justica, de- siste do direito de determinar quais de seus pontos se Ihe configuram os mais essen. ciaid{ A fim de assegurar alguma liberdade, entrege-a inteira em confianga a sociedad 4 © Governo nao foi criado em virtude dos direitos naturais, que podem existir e em verdade existem independentemente dele; e que com bem clareza e em grau infini- tamente superior de perfeic¢do abstrata — perfeigdo esta que precisamente se torna seu defeito pratico. Tendo-se direito a tudo, quer-se tudo. 0 Governo é uma invengao da sabedoria humana para atender as necessidades humanas. Os homens tém o direito a que essas necessidades lhes sejam satisfeitas por meio daquela sabedoria. Conta-se, en- tre elas, na sociedade civil, a necessidade de que se exerca suficiente constrangimento sobre as paix6es. A sociedade exige ndo apenas que as paixGes dos individuos sejam do- minadas, mas também que, mesmo na masbr€ no vonjunto bem Como Hos individuos, jagdes dos homens sejam freqiientemente contrariadas, sua yontade controlada. suas “paix6es réprimidas. Isso apenas pode ser obtido através de um/poder indepen- dente doi individuos; e, no exercicio de suas fungdes, nao sujeitos 4 vontade e as pai- xGes, a8 quais, pelo contrario, eles tm o dever de restringir e subjugar. Nesse sentido, 0s direitos dos homens compreendem tanto suas liberdades quanto as restrigdes que Ihes sfo impostas. Contudo, como as/liberdades ¢ jes variam_conforme os tempode as circunsténcias ¢ admitem infititas” modificagSes, elas:ndo poder ser fixa- dag ‘mediante o estabelecimento de algum principio abstrato; e torna-se absolutamente leviano discuti-las tendo por base tal princfpio. A partir do momento em que se tira algo dos plenos direitos do homem de go- vernar-se a si proprio e se admite uma limitagao artificial e positiva sobre esses direitos, toda a organizagdo governamental se torna uma questdo de conveniéncia. E isso que faz da Constituiggo de um Estado e da devida distribuigdo de seus poderes uma tarefa das mais delicadas e complexas. Requer um profundo conhecimento da natureza e das necessidades humanas, bem como das coisas que podem facilitar ou obstruir a conse- cugdo dos varios objetivos a serem perseguidos através do mecanismo das instituigdes civis, O Estado deve possuir reservas para sua forga e remédios para seus males, De que adianta discutir 0 direito abstrato do homem a alimentagdo ou aos medicamentos? A questo coloca-se em encontrar 0 método pelo qual se deve fornecé-1a ou ministré-los, 90 Edmund Burke Nessa deliberagio, aconselharei sempre a que busquem a ajuda de um agricultor ou de um médico, e ndo a de um professor de metaffsica. DE COMO A CIENCIA DA FILOSOFIA E EXPERIMENTAL E EXIGE MAIS EXPERIENCIA DO QUE AQUELA QUE O HOMEM PODE ADQUIRIR EM VIDA. A ciéncia de construir o bem-estar da nacdo, ou de renové-lo, ou de reformé-lo, nJo se aprende como qualquer outra ciéncia experimental, a priori. Nem tampouco uma curta experiéncia poderé instruir-nos sobre essa ciéncia pritica; porque os efeitos reais das causas morais nem sempre sdo imediatos. Acontece freqiientemente que algo, que a principio nos parece prejudicial, produz, a longo praz0, eXcetentes resultados; sua exceléncia pode resultar precisamente dos maus efeitos ocasionados no inicio. A reciproca também-é-verdadeira: ésquemas plausiveis, com comegos satisfat6rios, che- gam, muitas vezes, a resultados vergonhosos e lamentaveis. Hi usualmente, nos Esta- dos, causas obscuras € quase latentes, coisas que a principio parecem de pouca impor- tancia ou momentaneas, das quais dependem, entretanto, uma parte muito grande de sua prosperidade ou adversidade, Sendo, portanto, a ciéncia do governo, tao pratica em si mesma e dirigida para a solugdo de quest6es igualmente praticas, uma ciéncia que re- quer experiéncia, — ainda mais experiéncia do que aquela que um individuo pode adquirir durante a vida, ndo importa sua sagacidade ou capacidade de observacdo,— é com infinita precaugfo que se deve aventurar a derrubar um edificio que vem, hd sé- culos, respondendo toleravelmente bem aos propésitos da sociedade, ou a construi-lo novamente sem ter a vista modelos e moldes cuja utilidade tenha sido comprovada. DE COMO OS DIREITOS DOS HOMENS SAO INCOMPATIVEIS COM A IDEIA DE SOCIEDADE. Esses direitos metafisicos, ao penetrarem na vida pratica como raios de luz atra- vessando um meio denso, so desviados, pelas leis da natureza, de sua linha reta, Sem davida, na imensa e complicada massa de paix6es e preocupagSes humanas, os direitos primitivos do homem experimentam tal variedade de refragdes e reflexos, que se torna absurdo discuti-los como se continuassem na simplicidade de sua dire¢do original. A natureza do homem € complicada; os objetivos da sociedade s4o da maior complexida- de possivel; logo, quaisquer disposi¢ao e direcdo simples de poder no podem adequar- se nem & natureza do homem, nem a qualidade dos neg6cios que trata. Quando perce- bo a simplicidade das invengSes que criam, para o orgulho de seus idealizadores, novas constituigdes politicas, no consigo decidir-me quanto a considerar seus autores gros- seiramente ignorantes do neg6cio ou totalmente negligentes em seu dever. Os governos simples encontram-se fundamentalmente defeituosos. Se se tivesse de contemplar a so- ciedade por um Gnico ponto de vista, todas essas formas simples de constitui¢do de um Estado pareceriam infinitamente cativantes. De fato, cada uma delas responderia a sua finalidade especifica de uma maneira bem mais perfeita do que um sistema mais com- plicado seria capaz de atender a seus propésitos complexos. E preferfvel, todavia, pro- ver imperfeita e anormalmente ao conjunto do que regulamentar algumas partes com a Reflexes sobre a Revolug&o em Franga 2 completa exatiddo e totalmente negligenciar outras ou comprometé-las talvez grave- mente pelo excesso de cuidado concedido a uma questo privilegiada. Os direitos que esses tedricos da Constituigdo pretendem obter sao todos absolu- tos: em que pese sua verdade metafisica, sio moral e politicamente falsos. Os direitos do homem encontram-se em uma espécie de meio-caminho, imposs{vel de ser definido, mas que se pode, contudo, discernir. Os direitos dos homens nos diferentes governos compreendem suas vantagens, as quais sfo contrabalangadas pelo eqiiilibrio entre as diversas formas de bem, algumas vezes entre o bem e o mal; e, vezes ainda, entre o mal eo mal. A razdo politica € computadora: ela moral, e néo metafisica ou matematica- mente, soma, subtrai, multiplica e divide as verdadeiras quantidades morais. Os te6ricos de que falo confundem quase sempre sofisticadamente 0 direito do povo com seu poder. Sempre que motivado a agir, o corpo de uma comunidade nao encontra resisténcia efetiva alguma; mas até que seu poder e seu direito se igualem, comunidade nao possui direitos incompattveis com as virtudes, a primeira das quais é a prudéncia. Os homens néo tém direito ao irracional, ou ao que nao os beneficia, muito embora um escritor jocoso tenha dito: Liceat perire poetis. Quando ougo contar que um poeta atirou-se a sangue frio dentro das chamas de um vulcdo, Ardentem frigidus Aetnam insiluit,© considero tal gracejo mais como uma licenga poética injustificdvel do que como uma das franquias do Parnaso. Nao importa fosse ele um poeta, um pa- dre ou um politico que escolhesse exercer tal direito: pensamentos mais s4bios, porque mais caridosos, levar-me-iam antes a tentar salv4-lo do que a conservar suas sandalias de bronze como monumento a sua loucura. DO PERIGO DE SE MANTER NO ESPIRITO IDEIAS REVOLUCIONARIAS Ao discursar sobre 0 aniversério da RevolugSo (se é que os homens ndo se enver- gonham de seu curso atual), esse tipo de sermao ao qual me refiro inameras vezes nestas reflexGes trai muitos de seus princfpios e priva os homens dos beneficios da Revolucdo que comemoram. Confesso-lhe, senhor, nunca gostei desse modo continuado de falar em oposigao e revolugo, nem da pratica de fazer do remédio extremo da Constituigao seu pfo diério. Tal pratica confere a sociedade habitos perigosamente enfermos: € como tomar doses periédicas de mercirio sublimado, ou engolir continuamente esséncia de cantéridas a fim de estimular nosso amor 4 liberdade.*” A intemperanga no uso de remédios, uma vez tornada habitual, relaxa e esgota, pelo uso vulgar e prostitufdo, a fonte do espirito de liberdade que deveria ser exercida apenas nas grandes ocasides, Foi durante a época da mais paciente servidao romana que os temas de tiranicfdio se tornaram os exercfcios ordindrios dos escolares — cum perimit saevos classis numerosa tyrannos,“* No estado natural das coisas, essa intempe- ranga produz, num pafs como 0 nosso, os piores efeitos, mesmo que seja pela causa da- quela liberdade que ¢ abusada pela licenciosidade das especulagGes extravagantes. Qua- se todos os republicanos bem-educados de minha época tornaram-se, em pouco tempo, 0s mais decididos e safados cidadfos e deixaram a oposig4o mondtona, moderada, po- rém pratica para aqueles dentre nds que, no orgulho e na intoxicagdo de suas teorias, anteriormente eles desprezavam e ndo consideravam muito melhores do que meros Tories. A hipocrisia, sem divida, deleita-se nas mais sublimes especulag&es; pois, sem 92 Edmund Burke ter intengdes de transformar a teoria em pratica, ndo lhe custa torné-las magnificentes. Mas, mesmo nos casos em que se suspeita nessas especulagdes bombasticas mais levian- dade que fraude, obtém-se os mesmos resultados finais. Esses professores, ndo tendo como aplicar seus princfpios extremos a casos que carecem apenas de uma oposic¢ao qualificada, ou pode-se dizer, civil e legal, nfo lhes opSem oposicao alguma. Trata-se, com eles, de uma guerra ou de uma revolugdo, ou entdo de nada. Ao encontrar seus esquemas politicos ndo adaptaveis ao estado do mundo em que vivem, chegam, com freqiéncia, a considerar levianamente todos os princfpios publicos; e esto prontos a sacrificar por um interesse deveras vulgar o que julgam ser de um valor trivial. Existemn, contudo, alguns de natureza mais constante e perseverante; mas estes s4o polfticos am- biciosos fora do Parlamento, pouco dispostos a abandonar seus projetos favoritos. Tém constantemente em vista alguma mudanga na Igreja ou no Estado, ou em ambos. Nesse sentido, séo sempre maus cidadaos e péssimas conexdes, em que néo se pode absolu- tamente confiar. Pois, dando um valor infinito aos seus designios e considerando com- pletamente insignificante a composigao real de um Estado, eles the so, na melhor das hipéteses, indiferentes. Incapazes de ver mérito na boa administragdo dos assuntos pti- blicos, ou falta na viciosa, regozijam-se antes com a ultima, por aché-la mais propicia & revolugdo. Inaptos a perceber mérito ou demérito em qualquer homem, em qualquer ago, ou em qualquer princfpio politico que ndo estejam relacionados com a consecu- ¢4o ou com o adiantamento de seu desejo de mudanga, sustentam, num dia, os privilé- gios mais violentos e abusivos e, no seguinte, as mais insensatas idéias democraticas de liberdade, passando de um extremo av outro sem a menor consideragdo a causas, pes- soas ou partidos. A Franga est passando agora pela crise da revolugdo e pela mudanga da forma de governo — 0 Senhor nfo pode, portanto, ver 0 caréter dos homens exata- mente da forma que o vemos neste pafs. Aqui é militante; af triunfante; e o se- nhor bem sabe como ele pode agir quando sua forca corresponde a seus desejos. Nao pretendo limitar estas observagSes a qualquer categoria de homens em par- ticular — Nao! Longe disso. Recuso-me tanto a cometer essa injustiga quanto a pri- var com aqueles que professam principios extremosos; os quais, sob 0 nome de reli- gifo, nada ensinam além de politica insensata e perigosa. O pior desses discursos revo- luciondrios é que eles endurecem e insensibilizam os coragdes, de modo a prepard-los para os golpes desesperados que sdo usados apenas nas ocasides extremas. Mas, como tais oportunidades podem nunca ocorrer, a mente recebe uma n6doa gratuita; e os sentimentos morais ndo se abalam quando a depravagdo ndo serve a propésito politi- co algum. Essa espécie de gente est4 t4o enlevada por suas teorias sobre os direitos do homem, que se esqueceu completamente de sua natureza. Sem abrir um novo cami- nho a compreensfo, conseguiram bloquear todos aqueles que conduzem ao coragdo. Perverteram em si mesmos, ¢ naqueles que os seguem, todos os sentimentos nobres do coragao. ENTUSIAMO DO DOUTOR PRICE DIANTE DOS ATENTADOS DE 5 e 6 DE OUTUBRO DE 1789 Esse famoso sermfo de “Old Jewry” exalta tal espirito em toda a sua parte pols- Reflexdes sobre a Revolug&o em Franga 93 tica. Para algumas pessoas, complos, massacres ¢ assassinatos tornam-se um prego pe- queno para a consecucdo de uma revolugao. Parecem-Ihes insfpidas e vulgares uma re- forma barata e sem sangue e uma liberdade sem culpa. Tornam-se necessérios uma grande mudanga de cena, um magnificente efeito teatral e um grande espetaculo que excite a imaginagdo, entorpecida pelo gozo preguigoso de sessenta anos de seguranga ¢ pelo repouso desestimulante da prosperidade publica. Nosso Pregador encontrou-os to- dos na Revoluco Francesa. E tomado por um calor juvenil. Seu entusiasmo agita-o pouco a pouco e fulgura quando chega a peroragao. Entdo, considerando do alto de seu pulpito, como uma paisagem da terra prometida vista do de cima, 0 glorioso esta- do da Franga, livre, virtuoso, feliz, florescente, ele irrompe, extasiado: “Que perfodo fecundo é este! Como sou grato por ter vivido até agora; quase po- deria dizer: “Senhor, deixai partir agora em paz este vosso servidor, pois meus olhos vi- ram a nossa Salvagdo! — Vivi para ver a difuso do conhecimento minar a superstiga0 eo erro! Vivi para ver 0s direitos do homem melhor compreendidos que nunca, e as nag6es retratando uma liberdade da qual pareciam ter perdido até a idéia! Vivi para ver trinta milhdes de pessoas, indignadas e resolutas, rejeitando a escravidéo e deman- dando a liberdade numa voz irresistivel! Vi seu Rei conduzido em triunfo, e um mo- narca arbitrdrio rendendo-se a seus sitditos!”* > Antes de prosseguir, cabe lembrar que 0 Doutor Price me parece supervalorizar as grandes aquisigGes de luz que tem obtido e difundido em nossa época. Creio que 0 século passado nfo foi menos iluminado que o atual. Apresentou, embora em diferen- te lugar, um triunfo tao memoravel quanto o do Doutor Price; e alguns dos grandes oradores daquele perfodo compartilharam-no to ardorosamente como esses cavalhei- ros compartilham hoje o triunfo da Franca. No julgamento do Reverendo Hugh Peters por alta traigao consta o depoimento de que quando Rei Carlos foi trazido a Londres para ser julgado, o apéstolo da Liberdade de ento conduziu o triunfo. “Eu vi”, disse a testemunha, “Sua Majestade numa carruagem de seis cavalos e Peters galopando triunfante antes do Rei.” O Doutor Price, quando fala como se tivesse feito uma des- coberta, segue apenas um precedente; pois, logo no comego do julgamento do Rei, seu precursor, 0 proprio Doutor Peters, disse, a0 concluir uma longa prece na capela real de Whitehall (lugar que havia triunfantemente escolhido):“Tenho rogado e pregado ha vinte anos; e agora posso dizer como o velho Simo: Senhor, deixai partir em paz este vosso servo, pois meus olhos viram a vossa Salvagdo!’*° Peters nao colheu os frutos de sua prece: nfo partiu t~o cedo como queria, nem em paz. Tomou-se (e es- pero que © mesmo ndo acontega aos seus imitadores que podem ainda estar neste pais) uma vitima do proprio triunfo que liderou como Pontifice. Talvez a Restaura- do tenha tratado mal demais esse pobre homem. Devemos & sua meméria e & de seus sentimentos declarar que tirha tanta iluminago e tanto zelo, e havia minado * Outro desses reverend{ssimos cavalheiros”, que testemunhou alguns dos espetaculos exibidos recentemente em Paris, expressou-se da seguinte forma: "Um Rei deixando-se levar docilmente em triunfo por seus eiditos vitoriosos & um desses acontecimentos de magnitude que raramente ocor- rem no ambito dos assuntos humanos. Hei de recordé-lo durante o resto de minha vida com admira- do € reconhecimento!” Esses cavalheiros concordam maravilhosamente em sentimentos. 94 Edmund Burke t4o efetivamente toda a superstigdo e todo o erro capazes de levar o grande assunto a0 qual se dedicava a0 malogro, quanto qualquer pessoa de hoje que o siga e que repita como ele que se deve atribuir exclusivamente 4 nossa época o conhecimento dos Direi- tos do homem bem como todas as conseqiiéncias gloriosas deste conhecimento. Depois desse discurso do pregador de Old Jewry, que se diferencia apenas em lugar e tempo, mas que concorda perfeitamente com o espirito e a carta do éxta- se de 1648, os fabricantes de governos, o bando herdico dos que depdem monarcas, os eleitores de soberanos, os lideres triunfantes de um rei, em uma palavra, a Sociedade da Revolugo, com o orgulho proveniente da difusdo do conhecimento e da cons- ciéncia de que cada um de seus membros dele obteve um donativo to grande, apres- sou-se a propagar generosamente a ciéncia que gratuitamente recebeu. Para tal, trans- portase do templo de Old Jewry para a Taverna de Londres, onde 0 nosso Doutor Price, em quem as fumagas dos ordculos ainda no se dissiparam totalmente, apresen- tou e fez votar a resolugdo ou mensagem de congratulag6es, transmitida por Lorde Stanhope a Assembiéia Nacional da Franca. Dessa forma, vejo um pregador do Evangelho profanando o hino sublime e pro- fético que marca a primeira apresentacéo de Nosso Senhor no templo, comumente denominado “nunc dimittis”, ¢ aplicando-o, com um arrebatamento desumano e ina- tural, ao espetéculo mais horrivel, atroz'e aflito que jé foi alguma vez exibido a pieda- de ou a indignaggo humanas. Essa “conduta triunfante”, na melhor das hip6teses igno- miniosa e impia, que lanca nosso pregador a transportes profanatorios, deve chocar, creio eu, 0 gosto moral dos espiritos bem nascidos. Muitos ingleses foram espectadores estupefatos e indignantes deste triunfo. Foi(a menos que tenhamos sido estranhamen- te iludidos) um espetdculo mais semelhante a uma procisso de selvagens americanos penetrando em Onondaga™, apés alguns assassinatos denominados vitérias, e condu- zindo para dentro de suas cabanas ornamentadas de escalpos, seus cativos, subjugados pe- los escémios e pancadas de mulheres to ferozes quanto eles mesmos, do que & pompa triunfal de uma nagfo civilizada e guerreira; — como se uma nagdo civilizada, ou qual- quer homem dotado de alguma generosidade, fosse capaz de triunfar sobre os decaidos e aflitos. Nao est4 nisso, meu caro senhor, o triunfo da Franga. Preciso crer que, como uma nac4o, inundou-os antes vergonha e horror. Preciso crer que a Assembléia Nacio- nal se encontra em um estado da maior humilhagdo, por no ser capaz de punir os autores do triunfo, ou pelo menos aqueles que dele participaram, e que ela esté numa situag4o em que qualquer inquérito sobre o assunto deve ser feito com uma aparéncia de liberdade e de imparcialidade. A apologia da Assembléia Nacional resulta de sua propria situagGo; todavia, quando nés aprovamos o que foi obrigada a suportar, partiu de nds a escolha corrompida de um espirito degenerado. DE COMO A ASSEMBLEIA DELIBERA Compelida a aparentar a deliberar a Assembléia vota sob 0 dominio de uma austera necessidade. Senta-se, pode-se dizer, no centro de uma republica estrangeira. Reside numa cidade cuja constituic¢ao no emanou de uma carta real, nem de um poder Reflexdes sobre a Revolugio em Franga 95 legislativo, Cerca-se de um exército que nao foi recrutado pela autoridade da Coroa, nem a comando da propria Assembléia; e que, se esta ordenasse fosse dissolvido, ele dissolvé-la-ia instantaneamente. Senta-se, apds um bandode assassinos haver feito desapa- recer algumas centenas de seus membros”, enquanto aqueles que defendem os mesmos Princfpios moderados, com mais paciéncia e esperanga, continuam cada vez mais ex- postos a insultos ultrajantes e a ameacas de morte. Ali uma maioria, as vezes real, as ve- zes presumida, prisioneira em si mesma, constrange um rei igualmente cativo a promul- gar, em terceira mao, os polufdos despropésitos elaborados na licenciosidade e embria. guez das casas de café. E_notrio que todas as medidas nela adotadas foram decididas antes do debate. Sem divida, sob a ameaga da baioneta, da lanterna e da tocha em suas casas, seus membros sio obrigados a apoiar todas as medidas precipitadas e desespera- das propostas pelos clubes onde se misturam, em monstruoso caos, todas as condig6es, todas as linguas, todas as nagdes. Nesses clubes encontram-se pessoas, com cuja compa- racdo Catilina seria considerado escrupuloso e Cethegus® um homem dotado de so- briedade € moderagdo. Sao neles que as medidas pUblicas tomam sua forma monstruo- sa, apés terem sido debatidas e distorcidas nas academias, semindrios preparatorios a esses clubes e que se veer em todos os lugares publicos. Nessas reuniGes de todaa espé- cie, a auddcia, a violéncia e a perfidia sdo tomadas como medida de genialidade. A hu- manidade e a compaix4o sfo ridicularizadas como frutos de supersti¢o e de ignoran- cia. A brandura para com os individuos é considerada traigdo ao povo. A liberdade sempre deve ser estimada perfeita, da mesma forma que a propriedade insegura. En- quanto se perpetram ou meditam assassinatos, massacres € confiscos, os planos para a boa ordem da sociedade futura esto sendo elaborados. Abragando as carcagas dos mais baixos criminosos e promovendo seus parentes na mesma propor¢4o em que as ofensas so cometidas, centenas de pessoas virtuosas sentem-se impelidas na mesma di- reco, ao serem forcadas a subsistir através da mendicdncia e da pilhagem. A Assembléia, 6rgdo desses clubes, atua diante deles a farsa da-deliberagio com tdo pouca decéncia quanto liberdade. Seus membros agem como comediantes de feira perante uma platéia amotinada, apresenta-se entre os gritos tumultuados de uma mul- tidfio de homens ferozes e mulheres perdidas que, conforme suas fantasias insolentes, os dirigem, controlam, aplaudem ou explodem®; e, as vezes, sentam-se a seu lado, do- minando-os com uma mistura de petulncia servil e de autoridade presungosa e ar- rogante. Como a Assembléia inverteu a ordem das coisas, os espectadores tomam os lu- gares dos deputados. Essa Assembléia, que derruba reis e reinos, ndo tem nem mesmo a fisionomtia ou o grave aspecto de um corpo legislativo — nec color imperii, nec frons erat ulla senatus® . Foi-lhe concedido o poder, semelhante ao princfpio do mal, de sub- verter e destruir, mas foi-lhe negada a faculdade de construir algo diferente das maqui- nas que fabricam maiores subversGes e destruicées. A ATITUDE DA ASSEMBLEIA DEPOIS DAS JORNADAS DE OUTUBRO. Quem & que, admirando ¢ amando as assembléias nacionais representativas, no se volta com horror e desgosto contra tal perverso profana, burlesca e abomindvel desta instituigao sagrada? Os membros de sua Assembléia devem gemer sob a tirania, 96 Edmund Burke da qual todos se envergonham, da qual ndo recebem qualquer orientagao e muito pou- co do lucro. Estou certo de que os membros que compéem mesmo a maioria daquele corpo devem sentir-se como eu, em que pesem os aplausos da Sociedade da Revolu- gdo — Rei miserdvel! Assembléia miserdvel! Que escdndalo ela no sofre em siléncio ao ouvir alguns de seus membros denominarem un beau jour o dia em que o sol é apagado dos céus!"Como deve se sentir intimamente indignada ao ouvir outros decla- rarem que “o navio do Estado perseguird seu curso em diregdo a regeneracdo mais ra- pidamente que nunca”, favorecido, sem davida, pela brisa das traigdes e dos assassina- tos que precederam o triunfo de nosso Pregador. O que ndo sofreu, com quieta indig- nado e dissimulada paciéncia, ao saber que dos inocentes cavalheiros massacrados em suas casas “nem todo o sangue desperdigado era puro”? *’ Como ndo deve ter se sen- tido quando seus membros afligidos pelas reclamagGes de desordens que sacudiram 0 pais em suas bases, eram compelidos a responder friamente aos queixosos que estes se encontravam sob a protegdo da lei e que deveriam solicitar ao rei (0 rei cativo) mais forca as medidas destinadas a protegé-los; ad mesmo tempo em que eram notificados pelos subjugados ministros desse rei cativo de que ndo restava lei, nem autoridade, nem poder para proteger quem quer que fosse? Enfim, 0 que nfo sentiram seus membros a0 serem obrigados a solicitar ao rei cativo, durante os cumprimentos pelo dia de Ano Novo, que esquecesse 0 perfodo tempestuoso do ano que passara tendo em vista os grandes beneficios que ele provavelmente traria ao povo no vindouro; acrescentando a isso demonstragGes de lealdade e assegurando-Ihe obediéncia, quando o rei nfo mais possufa qualquer autoridade para comandar? Esse discurso pela passagem de ano foi certamente composto com bons senti- mentos e afeicdo. Contudo, entre as mudangas ocorridas na Franga ultimamente, deve- se ressaltar a de uma consideravel revolu¢4o no que concerne As idéias de polidez. Diz- se que nds, na Inglaterra, aprendemos boas maneiras dos senhores do outro lado do Canal e que nos comportamos conforme os padrées franceses, Se assim for, ainda esta- mos na moda antiga, e n@o conseguimos nos conformar com 0 novo estilo da boa edu- cago parisiense, de modo a poder considerar como um dos mais refinados cumprimen- tos (seja de condoléncias, seja de contragulagdes) o dizer, a0 mais humilhado dos ho- mens, que os grandes beneficios pablicos resultam do assassinato de seus siditos, de ameacas de morte feitas a ele e a sua mulher, bem como da alta mortificagdo, desgra- ga e degradagdo que ele pessoalmente sofreu. Nossos carcereiros de Newgate seriam humanos demais para usar tal tipo de consolo mesmo a um criminoso ao pé do patibu- lo. Acredito mesmo que o carrasco de Paris, agora reabilitado pelo voto da Assembléia Nacional e confirmado em classe e brasdo pelo armorial dos direitos do homem seria por demais generoso, galante e cheio de dignidade para empregar esse tipo de conforto a qualquer dos condenados que esse crime de /ése-nation pudesse submeter a seus poderes executivos. Um homem estd em decadéncia, sem diivida, quando o lisonjeiam dessa forma. A pflula do esquecimento que lhe dao foi bem calculada para preservar-lhe a insnia ir- Titadiga e alimentar-lhe a Glcera corrosiva da meméria. Administrar-lhe, assim, 0 pio * 6 de outubro de 1789. Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga 97 da anistia, misturado aos ingredientes do desprezo e do desdém, é como levar-lhe aos labios, em lugar do “balsamo para os corag6es doloridos”, 0 copo da miséria humana cheio até a borda e fazé-lo dele beber até a ultima gota. AS JORNADAS DE OUTUBRO PERANTE A HISTORIA Ao ceder a 1azGes tao fortes pelo menos quanto aquelas que Ihe foram apresen- tadas tdo delicadamente durante o cumprimento pela passagem do ano, o rei prova- velmente se esforcar4 para esquecer ndo apenas os eventos mas também o cumpri- mento. A Historia, contudo, que conserva uma lembranga duradoura de todos os nos- sos atos e exerce uma terrivel censura sobre os procedimentos de todos os soberanos, ndo esqueceré nem esses eventos nem essa época de refinamento liberal da humani- dade. A Historia lembrar-se-4 sempre de que, na manhd de 6 de outubro de 1789, 0 Rei e a Rainha da Franca, ap6s um dia de desordens, de alarmes, de terrores e de mas- sacres, deitaram-se, confiantes na fé de seu povo, a fim de dar 4 natureza algumas ho- ras de repouso melancélico e atormentado. Desse sono, a Rainha foi acordada pela voz de um sentinela a sua porta sugerindo-lhe que se salvasse pela fuga — que esta se- ria a sua tiltima prova de fidelidade — e sendo, em seguida, de fato assassinado. Mor- reu instantaneamente. Um bando de rufides e assassinos, ainda com o cheiro de seu sangue, precipitou-se na cimara da Rainha e perfurou, a golpes de baioneta e punhal, © leito de onde a perseguida apenas tivera tempo de fugir, semi-nua, por corredores desconhecidos dos bandidos, para buscar refigio junto a seu Rei e marido, cuja pro- pria vida estava em risco no momento. Esse Rei (para nao dizer mais de sua pessoa no momento), essa Rainha e seus fi- Ihos ainda criangas (que antes teriam sido o orgulho e a esperanca de um grande e ge- neroso povo) foram entdo forcados a abandonar o santuério do mais espléndido palé- cio do mundo, que ficou banhado em sangue, poludo pelo massacre, e recoberto de membros espalhados e cadaveres mutilados. De 14 foram conduzidos para a capital de seu reino. Dentre os cavalheiros que compunham a Guarda Real e que foram indis- tintamente massacrados sem que tivessem oposto qualquer provocagdo ou resistén- cia, dois homens foram escolhidos, os quais, com toda a pompa de uma execucdo judicial, foram cruel e publicamente levados a um cepo e decapitados no grande pé- tio do paldcio. Suas cabecas foram fincadas em lancas que tomaram a frente do cortejo, enquanto os prisioneiros reais as seguiam lentamente, no meio de gritos horrorosos, urros assustadores, dangas frenéticas, injarias infames e todas as indizi- veis abominagGes das farias do inferno na forma abusada da mais vil das mulheres. ‘Apos ter provado, na lenta tortura de uma jornada de doze milhas que se prolongou por seis horas, gota por gota, mais do que a amargura da morte, a familia real ficou alojada, sob a guarda dos mesmos soldados que a conduziu ao triunfo, num dos ve- Ihos palécios de Paris, agora convertido em uma Bastilha para reis. E esse um triunfo a ser consagrado nos altares? A ser comemorado em a¢do de gracas? A ser oferecido a divina humanidade com preces fervorosas ¢ hinos entu- sidsticos? Asseguro-Ihe, senhor, que as orgias dianas de tebanos e tracios ocorridas na Franga e aplaudidas apenas em Old Jewry getam entusiasmo profético nos espi- 98 Edmund Burke titos de pouqufssimas pessoas deste reino; muito embora um santo ou apéstolo, que pode ter sido esclarecido por revelagdes pessoais, e que conseguiu tao completamen- te aniquilar todas as reles supersti¢Ges de uma mente, possa inclinar-se a considerar pio e decoroso compard-las 4 vinda ao mundo do Principe da Paz, a qual foi procla- mada num templo sagrado por um venerdvel sibio e anunciada, nfo muito antes, pela voz dos anjos a quieta inocéncia dos pastores.** UMA DAS CAUSAS DO ENTUSIASMO DO DOUTOR PRICE Inicialmente eu no conseguia entender esse acesso de entusiasmo fervoroso. Sabia, sem divida, que os sofrimentos dos monarcas formam um repasto delicioso para algumas espécies de paladares. Havia, porém, consideragdes que deveriam ser- vir para conservar tal apetite dentro de alguns limites de temperanga. No entanto, quando me pus a refletir sobre uma certa circunstancia deste triunfo, fui obrigado a confessar que deveria conceder alguma desculpa 4 Sociedade da Revolugdo, de vez que a tentagdo era forte demais para o resguardo da discri¢So comum. Tratava- se da circunstancia do Jo Paean® do triunfo, o grito excitado que conclamava a ida de “todos os bispos & lanterna'* a qual deve ter gerado um acesso de entusiasmo pelas conseqiiéncias ndo previstas desse dia feliz. A tanto entusiasmo, sou capaz de descontar um pouco de todo o desvio da prudéncia verificado. Deve-se permitir que esse profeta irrompa em hinos de gozo e de gratidéo por um evento que lhe parece o precursor do reinado milenar e da quinta monarquia® que destruird todos os estabelecimentos religiosos. Havia, contudo, no meio desse gozo (como em todos 0s assuntos humanos) razGes para que to dignos cavalheiros exercitassem a virtude da paciéncia e colocassem 4 prova a solidez de sua fé. O efetivo assassinato do Rei e da Rainha, e de seus filhos, carece das outras auspiciosas circunstancias desse “belo dia”. Também as carecem 0 assassinato efetivo dos bispos, em que pese ter sido aclamado por tantos hinos sagrados. Esbogou-se, sem divida, com audécia, uma sé- rie de regicfdios e de sacrilegos atentados, mas foi apenas esbocada. Infelizmente, restou inacabado, no grande quadro da histéria, o massacre dos inocentes. Veremos mais tarde qual lapis endurecido de um grande mestre da escola dos direitos do ho- mem o terminar4. A nossa época ainda ndo recebeu o beneficio daquela difusio do conhecimento que minou a superstig#o e 0 erro; e o Rei da Franca ainda carece de um fato ou dois para langar ao esquecimento, em consideragdo a todo o bem que sur- gird de seus proprios sofrimentos e dos crimes patridticos de um século esclarecido** * Tous les Evéques @ la lanterne!"®° ** Vale fazer referéncia aqui a uma carta escrita sobre este assunto por uma testemunha ocular, que era um dos mais honestos, inteligentes e elogilentes membros da Assembléia Nacional, um dos mais ativos ¢ zelosos reformadores do Estado: Foi obrigado a retirar-se da Assembléia e tornou-se, mais tarde, um exilado voluntério, tendo,em vista os horrores desse pio triunfo bem como a dispo- sigdo dos homens que, lucrando com esses crimes, se no 0s provocavam, tomavam a lideranga dos assuntos piblicos. Trecho da Segunda Carta de M. de Lally-Tolendal a um Amigo. Reflexdes sobre a Revolugfio em Franca 99 Ainda que esse trabalho de nosso novo esclarecimento e conhecimento nao tenha atingido a amplitude a que, com toda a probabilidade, se destinava; quero crer que tal tratamento a uma criatura humana deve estarrecer qualquer pessoa que nao esteja entre os realizadores da RevolugSo. Mas nfo posso parar aqui. Influenciado pelos sentimentos inatos de minha natureza, e nfo sendo iluminado por raio algum dessa modema luz recém-surgida, confesso-lhe, senhor, antes entristecer-me do que exaltar- me com o alto nivel das pessoas sofredoras, e em particular com 0 sexo, a beleza,e as admirdveis qualidades dessa descendente de tantos reis e imperadores, ¢ ainda com a tenra idade das criangas reais, insensiveis apenas pela infancia e inocéncia aos ultrajes a que seus pais foram submetidos. OREI Soube que a augusta personagem, principal objeto do triunfo de nosso Pregador, embora demonstre suportar bem a situacdo, ficou muito afetada pelas vergonhosas *Parlons du parti que j'ai pris; il est bien justifié dans ma conscience. ~ Ni cette ville coupa- ble, ni cette assemblée plus coupable encore, ne meritoient que je me justifie; mais j'ai a coeur que vous, et les personnes qui pensent comme vous, ne me condamnent pas. — Ma santé, je vous jure, me rendoit mes fonctions impossibles; mais méme en les mettant de coté il a eté ausiessus de mes forces de supporter plus long-temps Phorreur que me causoit ce sang, — ces tétes, - cette reine pres- que egorgée, — ce 101, — amené esclave, — entrant a Paris, au milieu de ses assassins, et precedé des tetes de ses mal heurex gardes. — Ces perfides janissaires, ces assassins, ces femmes cannibales, ce cri de, Tous les Evéques a La Lanterne, dans le moment ou le roi entre sa capitale avec deux évéques de'son conseil dans savoiture. Un coup de fusil, que jai vu tirer dans une des carosses de la reine. M. Bailey appellant cela un beau jour. L’assemblée ayant declaré froidement le matin, qu'il n’étoit pas de sa dignité d’aller toute entiere environner le roi, M. Mirabeau disant impunément dans cette as- semblée, que le vaisseau de I’état, loins d'etre arrété dans sa course, s'élanceroit avec plus de rapidi- 16 que jamais vers sa régénération. M. Barnave, riant avec lui, quand des flots de sang couloeint au- tour de nous. Le vertueux Mounier* echappant par miracle & vingt assassins, qui avoient voulu faire de sa téte un trophée de plus. “Voila ce qui me fit jurer de ne plus mettre le pied dans cette caverne d’Antropophages (A Assembléia Nacional) ot je n’awois plus de force d’élever la voix, ou depuis six semainess je I'avois ele- vée en vain. Moi, Mounier, et tous les honnétes gens, ont le dernier effort a faire pour le vien étoit d’en sortir. Aucune idée de crainte ne s'est approchée de moi. Je rougirois de m’en defendre. J°a- vois encore rec sur la route de la part de ce peuple, moins coupable que ceux qui I'ont enivré de fureur, de acclamations, et des applaudissements, dont dautres auroint été flattés, et qui mont fait fremix. C'est & indignation, c’est a ’horreur, c'est aux convulsions, physiques, que ce seul aspect du sang me fait eprouver que j'ai cedé. On brave une seule mort; on la brave plusieurs fois, quand elle peut étre utile. Mais aucune puissance sous le Ciel, mais aucune opinion publique ou privée n'ont le droit de me condamner 4 souffrir inutilement mille supplices par minute, et a perir de désespoir, de rage, au milieu des triomphes, du crime que je n'ai pu artéter. Ils me proscriront, ils confisqueront mes biens. Je labourerai la terre, et je ne les verrai plus — Voila ma justification. Vous pourrez la lire, la montrer, la laisser copier; tant pis pour ceux qui ne la comprendront pas; ce ne sera alors moi qui auroit eu tort de la leur donner.’ Esse militar no possufa os nervos de nosso pacifico cavalheiro de Old Jewry — Veja igual- mente a narrativa desses eventos pelo Senhor Mounier; um homem também de honra, virtude e ta- Ientos e, portanto, um fugitivo. (*) _N.B. - O Senhor Mounier era na época o portavoz da Assembiéia Nacional. Desde enti foi obrigado a viver no exflio, em que pese ter sido um dos mais firmes defensores da liberda- de. 100 Edmund Burke circunstancias. Como homem, coube-lhe sofrer por sua esposa e seus filhos e pelos guardas fiéis de sua pessoa que foram massacrados a sangue frio em sua frente. Como principe, coube-lhe comover-se ante a estranha e assustadora transformagao de seus civilizados siditos, e lamentar antes por eles do que por si proprio. Se seus sentimen- tos desacreditam um pouco sua coragem, acrescentam infinitamente A honra de seu humanismo, Lamento dizé-lo, lamento muito, mas creio que esta personagem est4 numa situacdo em que no nos fica mal elogiarmos suas grandes virtudes. ARAINHA Soube, e fiquei feliz por sabé-lo (pois alegra-nos ter conhecimento de que as pes- soas destinadas ao sofrimento s4o capazes de suporté-lo), que a grande ‘dama, 0 outro objeto do triunfo, suportou aquele dia e os dias que se seguiram, a detencdo de seu ma- rido, seu proprio cativeiro, 0 exilio de seus amigos, a insultante adulacdo dos discursos e todo o peso por seus erros acumulados, com serena paciéncia, de uma forma adequa- da A sua classe e raca, como convém 4 filha de uma soberana que se distinguiu pela pie- dade e coragem; e que, como sua mae, demonstrou sentimentos elevados; que ainda re- vela a dignidade de uma matrona romana; que, até wltimo momento, salvar-se-4 da iltima desgraca e que, se tiver de cair, nfo o faré pela mfo de um infame. Faz dezesseis ou dezessete anos que vi a Rainha da Franga, ent4o Delfina, em Versalhes; e certamente, jamais desceu 4 terra, que ela parecia nem tocar, alguma visto mais deliciosa®? Vi-a logo acima do horizonte, decorando e alegrando a esfera elevada fa qual comegava a se mover — cintilante como uma estrela da manhi, cheia de vida, de esplendor e de alegria. Ah! Que revolugao! E que corag4o precisaria ter para con- templar sem ficar comovido tanta elevagdo e tanta queda! Quando poderia imaginar que, enquanto acumulava protestos de veneragdo e de amor entusidstico, distante e res- peitoso, ela seria obrigada a esconder em seu seio 0 antfdoto agudo contra a desonra! Quando poderia imaginar que veria tais desgracas ocorrerem-lhe numa nacdo de homens galantes, numa nacfo de homens de honra e de cavalheiros! Julgava que dez mil espadas pulariam de suas bainhas para vingar até mesmo um olhar que ameacasse insulté-la. — Mas a idade do cavalheirismo jd passou. — Sucedeu-a aquela dos sofistas, dos economistas, dos calculadores; e a gloria da Europa estd extinta para sempre. Nao veremos nunca mais as manifestaces de generosa lealdade A classe dos indivfduos e a0 sexo, de submissio orgulhosa, de obediéncia digna, de subordinagao do coragao, que, até na serviddo, conservava vivo o elevado espirito da liberdade. Foram-se a graca natu- ral da existéncia, a defesa desinteressada da nagfo, o berco dos sentimentos viris e de empreendimentos herdicos! Foram-se a delicadeza dos principios e a castidade da honra, que faziam sentir como ferida a mécula, que inspiravam coragem ao mitigar crueldade, que enobreciam tudo quanto tocavam, e sob cujo dominio e vicio perdia toda a forca de seu mal, ao destituir-se, ao mesmo tempo, de toda a vulgaridade. O ESPIRITO DE CAVALHEIRISMO Esse sistema misto de opinido e de sentimento teve sua origem na antiga nobreza; € © principio, embora variasse em aparéncia nos diversos estados dos assuntos huma- Reflexdes sobre a Revolugao em Franga 101 nos, subsistia e influenciava durante uma longa sucessdo de geragdes, chegando até mesmo a época em que estamos. Se deve ser totalmente extinto, temo que a perda sera demasiadamente grande. Foi este espirito, com efeito, que deu a Europa moderna seu caréter; que a distingue com vantagem, em qualquer forma de Governo, dos Estados da Asia e possivelmente daqueles Estados que floresceram nos mais brilhantes perfodos da antigiidade. Foi ele que, sem confundir as classes, produziu uma nobre igualdade e a distribuiu pelas diversas gradagdes da vida social; e que estabeleceu entre os reise seus vassalos aquela espéice de camaradagem que os tornou companheiros. Sem recorrer forga e sem encontrar oposiggo, subjugou a arrogancia do orgulho e do poder; obrigou soberanos a submeterem-se a macia corrente da estima social; compeliu a autoridade rigida a sujeitar-se a elegancia, ¢ levou um tirano que se colocava acima das leis a ceder as boas maneiras. SEU DESAPARECIMENTO, CONSEQUENCIAS. ‘Agora, porém, tudo ird mudar. Todas as agrad4veis ilus6es, que tornaram o poder gentil e a obediéncia liberal, que harmonizaram os diferentes tons da vida e que, por branda assimilacdo, incorporaram na politica os sentimentos que embelezam e suavi- zam as relagSes particulares, deverdo ser dissolvidas pela conquista recente da luz e da razo. Toda a roupagem decente da vida dever ser rudemente rasgada. Todas as idéias decorrentes disso, guarnecidas pelo guarda-roupa da imaginagao moral, que vém do co- Tago e que o entendimento ratifica como necessérias para dissimular os defeitos de Nossa natureza nua e elev4-la a dignidade de nossa estima, deverdo ser encostadas como moda ridfcula, absurda e antiquada. Nesse novo esquema de coisas, um rei. é. apenas um homem; uma rainha, uma mu- ther; uma mulher, um animal, e ndo um animal de ordem muito elévada. Toda a home- nagem prestada a0 sexo sem distincdo, simplesmente porque ¢ feminino, devem ser consideradas romance ou loucura. Regicidio, parricidio e sacrilégio so apenas ficg6es da superstig&o, que corrompem a jurisprudéncia ao destruir sua simplicidade. O assassi- nato de um rei, de uma rainha, de um bispo ou de um pai so apenas homicfdios co- muns; ¢ se 0 povo, por acaso, ganha com eles, tornam-se uma espécie de homicidio per- doavel, sobre o qual nao se torna necessdrio realizar um escrutinio severo demais. + De acordo com o esquema dessd filosofia barbara, fruto de corag6es frios ¢ de inteligéncias turvas — filosofia tao destitufda de sabedoria s6lida quanto de bom gosto e de elegancia —, as leis nado devem ser sustentadas sendo pelos seus horrores, e pela im- portancia que as suas proprias especulagGes ou os seus interesses privados permitem a cada cidadao atribuir-lhes. Em todos os bosques dos seus jardins, nas extremidades de todas as suas perspectivas, 0 senhor nfo verd nada além do cadafalso. Nada restou que atraisse as afeig6es da comunidade. Dos principios dessa filosofia mecdnica, nossas ins tituigdes nunca poderdo ser encarnadas, se posso usar tal expressdo, em pessoas de mo- do a fazer nascer em n6s amor, veneracdo, admiraggo ou afeto. Mas esta espécie de ra- 240 que bane as afeigdes é incapaz de substitui-las, Essas afeigdes piblicas, aliadas as boas maneiras, sdo indispens4veis algumas vezes como complemento, outras como cor- retivo, mas sempre ajudam as leis. O preceito que um homem sdbio, bem como sua cri- 102 Edmund Burke tica, deu para a construgdo de um poema, é igualmente verdadeiro em relaco ao Esta- do: Non satis est pulchra esse pemata, duicia sunto. Deve haver um sistema de costu- mes em toda nagdo que um espirito bem nascido esteja disposto a apreciar: para que amemos nosso pafs, é preciso que ele seja capaz de ser amado. O poder, contudo, de uma forma ou de outra, sobreviverd 4 ruina dos costumes ¢ das opinides, e encontraré outros e piores meios para se sustentar. A usurpago que, a fim de subverter as antigas instituigdes, destruiu os velhos principios, conservar-se-4. no poder por meios semelhantes Aqueles pelos quais o obteve.° Quando estiver extinto das mentes dos homens o velho espfrito feudal da Lealdade, que, ao liberar os reis do medo, liberou, a0 mesmo tempo, os reis € seus siiditos das precaugSes contra a tirania, ‘os complds e os assassinatos serfo evitados pela morte preventiva e pela confiscagao preventiva, e pela aplicacdo daquela longa lista de mAximas sinistras e sangilindrias que formam 0 cédigo politico do poder, o qual no repousa em sua prdpria honra, nem na honra daqueles que devem obedecé-lo. Os reis serfo tiranos pela politica quando os sdditos se tornarem rebeldes por princfpio. PERIGOS DE SUPRIMIR OS ANTIGOS COSTUMES E REGRAS DE VIDA ) E imposstvel estimar a perda que resulta da supressao dos antigos costumes e re- gras de vida. A partir desse momento nao ha bussola que nos guie, nem temos meios de saber a qual porto nos dirigimos. A Europa, considerada em seu conjunto, estava sem davida em uma situacdo florescente quando a Revolugdo Francesa foi consumada. Quanto daquela prosperidade no se deveu ao espirito de nossos costumes e opiniGes antigas ndo é facil dizer; mas como tais causas néo podem ter sido indiferentes a seus efeitos, deve-se presumir que, no todo, tiveram uma aco benfazeja. Estamos por demais aptos a considerar as coisas no estado em que as encontra- mos, sem ponderar suficientemente sobre as causas que as produziram e que devem possivelmente sustenté-las. Nada € mais certo do que o fato de que nossos costumes € nossa civilizaco, ¢.todas as boas coisas que deles decorrem, dependem hd séculos, na sua Europa, de dois princfpiog; e resultaram, sem davida, da combinagao de ambos: quero dizer, 0 espirito do cavalheirismo’ ¢ 0 espirito da religifo.A nobreza e o clero, este por profiss4o ¢ o primeiro por patronato, vém hé indmeras existéncias aprenden- do, mesmo no meio de armas e confusGes, e mesmo quando os governos estavam ainda sendo formados. A aprendizagem devolveu 4 nobreza e ao clero o que deles havia rece- bido, e pagou-o com usura, alargando suas idéias e alimentando suas mentes. Felizes te- riam sido se tivessem todos continuado a.conhecer sua unido indissolavel e seus respec- tivos lugares! Felizes teriam sido se a ciéncia, ainda ndo desviada pela ambigdo, se se satisfizesse em continuar como instrutor e nfo aspirasse ao poder! Pois, agora, ela en- contraré, como os seus protetores e guardides, atirada ao lodo e langada aos pés de uma igndbil multidao.** * Veja o destino de Bailly e de Condorcet, a que supostamente se alude neste trecho. Compare as circunstncias do julgamento e da execugao de Bailly com esta predigdo. (1803f 7 Reflexdes sobre a Revolugio em Franga 103 Se, como suspeito, a cultura moderna deve mais do que gostaria aos velhos costu- mes, da mesma forma Ihes sao devedores todos os outros interesses que estimamos pelo quanto valem. Mesmo o comércio e a indtistria, os deuses de nossos politicos econdmi- cos, sfo talvez apenas suas criaturas; so apenas os efeitos que escolhemos adorar como causas primeiras. Prosperaram na mesma sombra sob a qual a ciéncia floresceu. E po; dem também decair juntamente com seus princ{pios protetores naturais. Com os seus compatriotas, no presente momento pelo menos, todos eles ameacam desaparecer a0 mesmo tempo. Quando falta a um povo 0 comércio e a indtistria, mas restalhe o espi- Tito da nobreza ¢ da religifio, o sentimento provém as suas necessidades, e nem sempr¢ com fornecimentos inadequados; mas se o comércio e as artes se perdem numa expe- rigncia testada para se descobrir como um Estado conseguir4 se manter sem os velhos principios fundamentais, como se deverd denominar uma nagfo de barbaros tfo gros- seiros, tfo estapidos e to ferozes quanto pobrese sordidos, uma nagdo destitufda de re- ligido, de honra, de orgulho viril, nada possuindo no momento e a nada aspirando no futuro? Gostaria que os seus compatriotas nfo estivessem se precipitando pelo caminho mais curto em diregdo a esta situagdo horrivel e repugnante. Uma pobreza de concep- 80, uma rudeza e uma vulgaridade j4 se manifestam em todos os procedimentos da Assembléia e dos homens que a inspiram, Sua liberdade nfo é liberal. Sua ciéncia é ignorancia presungosa. Seu humanismo é selvagem e brutal. = Nao é evidente que nés, na Inglaterra, tenhamos aprendido com os franceses os principios nobres e decorosos, esses costumes dos quais muitos tragos permanecem, nem que, a0 contrério, n6s 0s tenhamos ensinado aos senhores. Mas para o senhor,creio eu, nds os seguimos melhor. Parece-me que os franceses sfo gentis incunabula nostrae.* A Franga sempre influenciou, ora mais, ora menos, os costumes na Inglaterra; ¢ quan- do a sua fonte se esgotar e se poluir 0 rio, ou ndo seguird seu curso por muito tempo, ou chegaré polufdo até nés e, talvez, a todas as outras na¢des. Daf o interesse de toda a Europa, de vez que est4 t4o préxima, pelos filtimos acontecimentos na Franca. Perdoe- me, portanto, se me estendi muito longamente sobre 0 espeticulo atroz de 6 de outu- bro de 1789, ou se desenvolvi demasiadamente as reflexSes que me ocorreram por oca- siio da mais importante das revolugdes; isto é: a revolugo dos sentimentos, dos costu- mes e das opiniGes morais. No estado atual das coisas, com tudo o que é respeitavel destrufdo em nosso redor, e com a ameaca de destruigfo também de todos os nossos princfpios de respeito, ¢-se quase obrigado a pedir desculpas por experimentar 08 senti- mentos ordinérios dos homens. [ SOBRE OS SENTIMENTOS QUE E NATURAL EXPERIMENTAR A RESPEITO “DAS JORNADAS DE OU IO QUE SE PENSA NA INGLATERRA DAS CALUNIAS LEVANTADAS CONTRA 0 REI Porque me sinto t&o diferentemente do Reverend{ssimo Doutor Price e daqueles ave e Fregientam suas conferéncias, os quais escolherdo adotar as opinides de seu discur- — Pela simples razdo de que € natural que eu me sinta desta forma) porque nés fo- mos criados de modo a termos, diante de tais espetaculos, pensamcatos melanc6licos 104 Edmund Burke sobre a instavel condi¢go da prosperidade e sobre a tremenda incerteza da grandeza humanas; porque, nesses sentimentos naturais, aprendemos grandes ligdes; porque] nes- ses eventos, nossas paixGes instruem nossa razof porque, quando os reis so arremessa- dos de seus tronos pelo Supremo Diretor desse drama e se transformam em objetos de insulto para os despreziveis e de pena para os bons, consideramos tais desastres da ordem moral da mesma forma como poderfamos considerar um milagre da ordem ffsi- ca. Nossos alarmes fazem-nos refletir; nossas mentes (como jé foi ha muito observado) purificam-se pelo terror e pela pena; nosso orgulho, fraco ¢ vaidoso, € humilhado sob os golpes de uma sabedoria misteriosa. — Algumas lagrimas ser-me-iam arrancadas, caso tal espetaculo fosse exibido em um palco. Sentir-me-ia verdadeiramente envergonhado de perceber em mim mesmo aquele senso teatral e superficial de desespero fingido, caso eu pudesse exultar-me sobre 0 mesmo fato na vida real. Com tal mente pervertida, nunca aventurar-me-ia a mostrar minha face 4 tragédia. Julgariam que as lagrimas que me foram arrebatadas inicialmente por Garrick, e hé muito tempo por Siddons, eram as lagrimas de um hipécrita; e eu as saberia de um louco. O teatro , sem davida, melhor escola de sentimentos morais que as igrejas, onde os sentimentos de humanismo so ultrajados dessa forma. Os poetas, que tém de tratar com uma audiéncia ainda no graduada na escola dos direitos do homem, ¢ que devem aplicar-se 4 constituigo moral do coragGo, ndo ousariam produzir tal triunfo como uma matéria para exaltagdo/ Nesse campo, onde os homens seguem seus impulsos natu- rais, eles nfo suportariam as maximas odiosas de uma politica maquiavélica, estejam elas aplicadas ao/fegime monérquidd, estejam submetidas & tirania democratica) Rejei- télas-iam no palco-modeitio, como de fato a rejeitaram no antigo, onde nao se permi- tia nem mesmo a proposi¢ao hipotética de semelhantes crimes na boca de um tirano, embora fosse adequada ao cardter interpretado. Jamais os atenienses suportariam em seus palcos a real tragédia desse dia triunfal: 0 ator principal pesando, como se fosse em balangas suspensas numa loja de horrores, tanto de crime efetivo contra tanto de vantagens inesperadas, e declarando, apés ter adicionado e retirado os pesos, que a ba- Tanga se encontrava do lado das vantagens| Nao agiientariam ver-inscritos, como_num registro, os crimes da democracia contra os crimes do velho despotismo, e os guarda- livros da politica anotando a democracia ainda em débito, apesar de incapaz de pagar pelo balango, ou ainda nao disposta a fazé-lo.No teatro, o primeiro othat intuitivo mos- trar-nos-ia, sem qualquer necessidade de um processo elaborado de raciocinio, que esse método de computacdo politica serve para justificar todos os crimes, ndo importa sua extenso, Notar-se-ia que, mesmo onde os piores atentados no foram ainda perpetua- dos, o resultado deveu-se antes 4 boa fortuna dos conspiradores do que a sua parcimé- nia nos gastos com trai¢do € sangue.! Verificar-se-ia que os meios criminosos, uma vez tolerados, tornam-se logo preferidos, pois conduzem ao objetivo por um caminho mais curto que a estrada das virtudes morais. Ao justificar a perfidia e o assassinato em no- me do beneficio piblico, este ultimo” fornar-se-ia logo um pretexto e a perfidia e 0 assassinato fins; até que a gandncia, a malicia, a vinganga e o medo ainda mais terrivel pudessem satisfazer seus apetites insacidveis. Tais so as necessérias conseqiiéncias da perda, no esplendor desses triunfos dos Direitos do Homem, de todo o julgamento na- tural do que é certo ou errado. Reflex6es sobre a Revolugfo em Franca 105 O Reverendissimo Pastor, contudo, exalta-se nessa “condugdo em triunfo” por- que Luis XVI foi verdadeiramente “um monarca arbitrério”; ou seja, em outras pala- vras, nem mais nem menos porque ele era Lufs XVI e'teve o infortinio de ter nascido Rei da Franga, com as prerrogativas que recebeu, sem nada fazer para tal, de uma longa linha de ancestrais e de uma longa aquiescéncia do povo.Tornou-se-Ihe, na-verdade, um infortinio ter nascido Rei da Franga.\Mas infortinio ndo é crime, da mesma forma que a indiscrigdo no é a maior das culpas. Nunca julgaria que um principe, de cujo reinado todos os atos compreenderam uma série de concess6es a seus siditos, e que se dispu- nha a relaxar sua autoridade, a diminuir suas prerrogativas e a conclamar seu povo a uma parte da liberdade nao desfrutada e talvez nem desejada pelos seus ancestrais; que esse principe, embora sujeito 4s fraquezas habituais dos homens e dos principes, embo- ra tivesse uma vez considerado necessdrio proteger-se, pela forga, dos designios deses- perados manifestadamente tramados contra sua pessoa e contra o que lhe restava de sua autoridade; e levando, como se deve, tudo isso em consideragao; nunca chegaria a pensar que esse principe merece o cruel e insultante triunfo de Paris, e do Doutor Price. Temo pela causa da liberdade ao ver tal exemplo contra os reis. Temo pela causa do humanismo, ao ver impunes os mais perversos ultrajes da espécie humana. Hé, contu- do, algumas pessoas, de mentes tH baixas e degeneradas, que chegam a erguer os olhos, com uma espécie de admirac&o e de medo respeitoso a reis que sabem manter-se firmes em seus tronos, governar os sGditos com mao rigida, assegurar suas prerrogativas e, pela vigilancia sempre acordada de um despotismo severo, guardar-se das primeiras aproximag6es da liberdade. Contra tais reis, tais pessoas nunca levantam a voz. Deserta- dos de princfpios, ndo- guardanecidos com fortuna, jamais a virtude sofredora lhe pare- cerer4 boa ou a préspera usurpacao criminosa. Se pudessem me convencer de que o Reie a Rainha da Franca (tal como se apre- sentavam antes do triunfo) eram tiranos inexordveis e cruéis, ou que haviam planejado um esquema para massacrar a Assembléia Nacional (tenho a impressao de haver visto insinuarem algo semelhante em certas publicag6es), julgaria seu cativeiro justo. Se isso fosse verdadeiro muito mais deveria ser feito, mas feito, na minha opiniio, de outra maneira. A puni¢do de reais tiranos é um ato de justiga nobre e grandioso, do qual j4 se disse, com verdade, ser consolatéria 4 mente humana. Contudo, devesse eu punir um tei perverso, consideraria em primeiro lugar, a dignidade do castigo a ser dado a um crime. A justiga é grave e decorosa e parece, em suas punigdes, submeter-se antes a ne- cessidade do que a uma escolha. Tivessem Nero, Agripina, Luis XI, ou Carlos IX, ou mesmo Carlos XII da Suécia, ap6s a morte de Patkul,” ou sua predecessora Cristina, ap6s 0 assassinto de Monaldeschi,” caido em suas mos, senhor, ou em minhas, estou certo de que nossa conduta teria sido diferente. Se o Rei francés, ou o Rei dos franceses (nfo importa como é denominado de acordo com o novo vocabulério de sua Constituigdo), verdadeiramente mereceu ver sua pessoa, e a de sua Rainha, ameacadas por tentativas de assassinato no confessadas po- rém impunes, e submetidas a subseqiientes indignidades mais cruéis que assassinatos, ele mal tem o direito de exercer o poder executivo, que entendo deverd ser-lhe atribui- do pela sua nova Constitui¢go; nem é digno de ser chamado Chefe de uma nago que ultrajou e oprimiu. Pior escolha nfo poderia ser feita para o exercicio desse offcio em 106 Edmund Burke uma nova repiblica do que a de um tirano deposto. Mas degradar e insultar um homem como 0 pior dos criminosas e, em seguida, confiar-lhe 0 cuidado de seus mais altos interesses, como se ele fosse um servidor fiel, honesto e zeloso nao é consistente com a razdo, nem politicamente prudente, nem tampouco seguro na pratica. Tal designagdo seré, da parte de quem a fizer, a wiaior traigZo jamais cometida.contra um povo. Con- tudo, como este é 0 tinico crime em que seus lideres politicos demonstraram inconsis- téncia, concluo que nao hé base para as horriveis insinuagdes contra o Rei. Nao penso melhor das outras caltinias. Na Inglaterra nao Ihes damos créditos. Somos inimigos generosos e somos amigos figis, Refutamos, com desprezo e indignagdo, as difamagGes daqueles que nos contam suas anedotas com uma flor-de-lis sobre 0 ombro. Temos aqui Lorde George Gordon” bem preso em Newgate, e nemo fato de ele ser um proselitista do judaismo, nem o de ter incitado, em seu zelo contra os padres catolicos e toda a espécie de eclesidsticos, a ralé (desculpe-me 0 termo, ainda esta em uso por aqui) a demolir todas as prisdes, pre- servaram-lhe a liberdade, da qual no se mostrou digno por ndo saber usé-la virtuosa- mente. Reconstruimos Newgate e a ela reconduzimos seus pensionistas. Temos prises to fortes como a Bastilha para aqueles que ousarem caluniar a Rainha da Franga. Que esse difamador permanega em retiros espirituais deste tipo! Deixe-o meditar sobre 0 seu Talmud, até que aprenda a ter uma conduta mais apropriada ao seu bergo e aos seus meios, e ndo to vergonhosa para a antiga religido que ele professa; ou até que algumas pessoas de seu lado do Canal, para satisfazer a seus novos irmaos judeus, paguem pelo seu resgate. Poderd, ento, comprar com os velhos tesouros da sinago- ga, € com uma pequenina comissao sobre o longo interesse composto sobre trinta pecas de prata(*), as terras que, segundo descobertas recentes, foram usurpadas pela Igreja da Franca. Enviem-nos seu Arcebispo cat6lico de Paris que nds lhes mandaremos nosso Rabino protestante. Nés 0 trataremos como um cavalheiro e como um homem honesto — 0 que é realmente; mas, por favor, deixem-no trazer consigo o capital de sua hospitalidade, generosidade e caridade e acreditem-nos, nunca confiscaremos um shil- ling de seu capital honrado e piedoso, nem pensaremos em nos enriquecer 0 tesouro nacional com os depésitos efetuados nas caixas de esmola de suas igrejas. DE COMO OS FRANCESES FAZEM UMA FALSA IDEIA DA INGLATERRA. DE COMO OS PRECONCEITOS SAO VENERADOS NESSE PAIS Para dizer-lhe a verdade, meu caro senhor, penso qua a honra de meu pais esté de certa forma relacionada com a desaprovacdo dos procedimentos da Sociedade da Revo- lugdo em Qld Jewry ¢ na Taverna de Londres. Nao tenho procurago de quem quer que seja(Falo por mim mesmo, yuando repudio, como 0 fago com a maior sincerida- de, toda cOmunhdo espiritual com os autores daquele triunfo ou com seus admirado- res. Quando Ihe assevero qualquer coisa sobre o povo da Inglaterra, baseio-me na obser- vagdo € ndo na autoridade. Mas falo em nome daquela experiéncia que adquiri através da comunicagdo extensiva e variada com os habitantes de todas as categorias e de todos *0 Doutor Price jé nos mostrou quantos milagres o interesse composto realizaré na década de 1790, Reflexdes sobre a Revolugdo em Franca 107 0s nfveis deste reino, bem como pelas observagées atentas, das quais comecei a me ocupar em tenra idade e que tenho continuado a fazer por quase quarenta anos. Consi- derando que estamos separados apenas por um fino braco de mar de cerca de vinte e quatro milhas e que as relagdes miituas entre nossos dois paises tém sido bastante considerdveis ultimamente; ‘sempre me surpreendi ao constatar qudéo pouco vocés pa- recem conhecer-nos, Suspeit” que isso-se-deve & forga de-um julgimento sobre esta nagdo a partir de cerias publicagdes que representam muito erroneamente — se é que chegam a representar — as opinidés e disposigoes prevalecentes na Inglaterra. A vaida- de, a agitagdo, a petulancia e o espfrito-de intriga de alguns insignificantes grupos de conspiradores, que buscam dissimular sua falta de importancia pela algazarra e pelo barulho, pelos elogios exacerbados e pela citagdo matua, f4-los imaginar que a negli- géncia desdenhosa que demonstramos por suas habilidades é sinal de aquiescéncia a suas opinides. Nada disso, senhor, asseguro-lhe. Porque meia-dizia de gafanhotos sob uma samambaia faz 0 campo tinir com seu inoportuno zumbido, ao passo que milha- res de cabecas de gado repousando a sombra do carvalho inglés ruminam em siléncio, por favor, nfo v4 imaginar que aqueles que fazem barulho sfo os tnicos habitantes do campo; ou que logicamente so maiores em nimero; ou, ainda, que signifiquem mais do que um pequeno grupo de insetos efémeros, secos, magros, saltitantes, espa- thafatosos e inoportunos. Chego quase a afirmar que no hé entre n6s mais de um homem em cada cem que participe do “triunfo” da Sociedade da Revolugao. Se, em caso de guerra em meio As mais arduas hostilidades, o rei e a rainha da Franca, com seus filhos, viessem a cair em nossas mos, seriam tratados com outra espécie de entrada triunfal em Lon- dres. J4 tivemos um rei da Franca nesta situaco; o senhor tem conhecimento do modo pelo qual os vitoriososo trataram no campo de batalha e da mantira como foi recebido, depois, em Londres. Quatrocentos anos se passaram, mas no creio que tenhamos es- sencialmente mudado desde ent&o. Gragas 4 nossa obstinada resisténcia a inova¢do, gracas & lentidfo fria de nosso cardter nacional, ainda carregamos a marca de nossos antepassados. Creio ndo termos perdido a generosidade e a dignidade do modo de pen- sar do século XIV, e, até o presente, ainda ndo nos transformamos em selvagens. Nao fomos convertidos por Rousseau; nfo somos discfpulos de Voltaire” ;Helvetius™ nao teve sucesso entre nds. Nossos pregadores nfo sfo ateus; nem nossos legisladores lou- cos. Sabemos que nés nao fizemos descoberta alguma; e julgamos que nao ha descober- tas a serem feitas no campo da moral, nem tampouco no campo dos grandes princfpios de governo e das idéias de liberdade; que eram compreendidos bem antes de nascermos que continuarfo a ser até muito depois que a terra tiver se acumulado sobre a sepul- tura de nossa presungdo e 0 siléncio do timulo tiver se imposto sobre a nossa imperti- nente loquacidade. Na Inglaterra, ainda ndo fomos completamente esvaziados de nos- sas entranhas naturais; ainda temos entre nés, e os estimamos e cultivamos, os senti- mentos inatos que so os guardides fiéis e os ativos conselheiros do dever, bem como os verdadeiros suportes de todos os costumes viris ¢ liberais. Nao fomos preparados e fixados de modo a que sejamos recheados, como passaros embalsamados de museus, com farelos e trapos e pedacos miseraveis de papel sujo sobre os direitos do homem. Preservamos 0 conjunto de nossos sentimentos em sua integridade, intocados pela so- 108 Edmund Burke fisticago do pedantismo e da infidelidade. Temos verdadeiros corag6es de carne sangue batendo em nosso peito. Tememos a Deus. Erguemos os olhos com veneracio aos reis, com afeic¢do aos parlamentos, com submissao aos magistrados, com reveréncia aos padres e com respeito A nobreza . Por que? Porque quando pensamos sobre essas coisas ¢ natural experimentar tais sentimentos; porque todos os outros so falsos e es pirios, e tendem a corromper nossas mentes, a viciar as bases de nossa moral, a tor- nar-nos incapazes de gozar a liberdade racional; ¢ ao ensinar-nos que a insoléncia servil, licenciosa e desregrada deve ser nosso vulgar divertimento durante alguns dias de fes- ta, os sentimentos nfo naturais nos tornam, para o resto de nossas vidas, perfeitamente aptos a experimentar a escravido que, com justica, merecemos. Veja bem, senhor, que nesta idade iluminada, tenho suficiente audécia para con- fessar que experimentamos sentimentos naturais; que, em vez de rejeitar todos os nos- sos antigos preconceitos, nds os estimamos consideravelmente; que, para nossa maior vergonha, nés os estimamos porque s4o preconceitos; e que, quanto mais duram no tempo, quanto mais sua influéncia se generaliza, tanto mais os estimamod, Tememos colocar os homens para viverem e comerciarem cada um com o/seu proprio estoque de razfo, porque suspeitamos que o fundo de cada homem pequeno e que os individuos fariam melhor se utilizassem o banco geral e o capital das nagdes e dos sécillos. Muitos de nossos filésofos, em vez de desacreditarem os preconceitos gerais, empregam sua sagacidade em descobrir a sabedoria oculta que eles encerram. Se encontram o que pro- curam — e raramente falham — consideram mais s4bio perpetuar o preconceito com a razGo que ele envolve do que tirar 0 invdlucro do preconceito, deixando a razdo nua; porque 0 preconceito torna a razdo ativa, e pela afeigdo que inspira, dé-lhe permanén- cia. O preconceito ¢ de pronta aplicagéo em casos de emergéncia; tendo anteriormen- te envoivido a mente num’ curso seguro de sabedoria e virtude, nfo permitindo que o homem, no momento da decisio, hesite cética, embaragada ou irresolutamente. Gra- gas ao preconceito-a virtude se torna hébito — e nao uma série de atos desconexos — ¢ o dever, uma parte de nossa natureza. Os homens de letras e os politicos franceses diferem muito nestes pontos de todo © nosso cl de esclarecidos. Os primeiros nao tém respeito pela sabedoria de outrem, mas tém, em contrapartida, a maior confianga em sua propria sabedoria. Para eles, basta que uma ordem de coisas seja antiga e jd se tem uma razo suficiente para des- truj-la, Quanto ao que é novo, ndo se preocupam absolutamente que o edificio que constroem as pressas seja durdvel, pois a durabilidade nao é objeto de quem pensa pou- co, ou quase nada, naquilo que foi feito antes de sua época e vive apenas em fungdo de novas descobertas. Todas as coisas que proporcionam perpetuidade, eles as combatem; muito sistematicamente, como perniciosas; raz4o pela qual combatem, sem pena, to- das as estruturas. Estimam que a forma de governo pode mudar como a moda, e t4o impunemente quanto ela; que nao é necessdério nenhum principio de solidariedade 4 Constituigdo de um Estado além do sentimento da comodidade presente. Falam sem- pte como se fossem da opinigo de que existe, entre eles e seus magistrados, uma espé- cie de contrato unilateral que obriga os magistrados, mas que no contém nada de reci- proco a nfo ser um direito, para a majestade do povo, de dissolver 0 contrato em razéo unicamente de sua vontade. Sua dedicago a seu pafs vai até onde ela se acomoda a Reflexdes sobre a Revolugfo em Franca 109 seus projetos efémeros; 0 amor que sentem por sua patria comeca e acaba com o amor ao sistema politico que se adapta a sua opinifio do momento. Tais doutrinas, ou melhor, tais sentimentos, parecem predominar entre os novos homens piblicos da Franga. Sao, todavia, inteitamente diversos daqueles que sempre seguimos na Inglaterra. DE COMO E FALSO PRETENDER QUE A FRANCA SE TENHA INSPIRADO NOS PRINCIPIOS INGLESES Tenho ouvido os franceses dizerem algumas vezes que os dltimos acontecimentos em seu pais se inspiram no exemplo da Inglaterra. Peco permisso para afirmar que quase nada daquilo que é feito entre os senhores foi inspirado, nem em espirito, nem na pratica, nos costumes ou nas opini6es gerais do povo inglés. DE COMO A INGLATERRA ESTA DECIDIDA A NAO SEGUIR O EXEMPLO DA FRANCA Permita-me acrescentar que estamos to decididos a nfo seguir as ligGes da Fran- ¢a quanto certos de que nunca demos a ela as li¢des que atualmente poe em pratica. Os conspiradores que aqui compartilham suas idéias so, até agora, muitos poucos. Se, infe- lizmente, por suas intrigas, discursos, publicagées, e por uma confianga baseada na esperanga de uma unigo com os conselhos e as forgas da nagdo francesa, eles consegui- rem atrair um grande nimero de pessoas A sua faccdo, e, conseqilentemente, tentarem seriamente imitar aqui o que foi feito entre os senhores, 0 resultado seré, ouso predi- zer-lhe, que logo apés causarem algum tumulto no pais eles conseguirdo realizar sua propria destruic&o. O povo da Inglaterra recusou, em séculos passados, mudar sua lei para adapté-la a infalibilidade dos Papas; ele no a transformar agora em favor de uma f€ cega nos dogmas dos filésofos — resistiu aos primeiros ainda que eles estivessem ar- mados do andtema e da cruzada, resistir4 aos ultimos mesmo que eles ajam com a ajuda de libelos e da guilhotina. Antigamente os assuntos franceses concerniam apenas aos franceses. Tinhamos interesse por eles como homem que somos, mas nos mantinhamos distantes pois ndo éramos cidaddos franceses. Mas, agora, quando percebemos que nos so propostos co- mo modelos, devemos ter sentimentos ingleses e, portanto, agir como ingleses. A des- peito de nés mesmos, somos forgados a nos interessar pelos negécios franceses, pelo menos no que diz respeito a nos conservarmos distantes de sua panacéia e de sua praga. Se for uma panacéia, ndo precisamos dela. Se for peste, € de natureza tal que exige as precaug6es da mais severa quarentena. A Religiado e a Sociedade Civil. O Confisco dos Bens Eclesiasticos e a Destruigado das Ordens Religiosas Ouco dizer, por toda a parte, que um grupo de conspiradores, que se denomina filos6fico, colhe a gloria de grande parte dos Ultimos acontecimentos; e que suas opi-~ nides € sistemas deram origens ao estado de espirito que os tornou possiveis. Jamais ouvi dizer que tivesse existido na Inglaterra partido politico ou literdrio deste nome. Entre os senhores, esse partido ndo se compe de homens que o vulgo, em sua lingua- gem simples e rude, chama de ateus e infiéis? Se assim for, admito que néds também ti- vemos tais escritores, os quais fizeram algum barulho em sua época. Agora, repousam em eterno esquecimento. Quem, nascido nos tltimos quarenta anos, chegou a ler uma palavra de Colins, Toland, Chubb, Morgan, ou toda aquela raga que se denominava livres-pensadores? Quem, hoje em dia, 16 Bolingbroke75? Quem, alguma vez, leu toda a sua obra? Pergunte aos livreiros de Londres 0 que aconteceu com todas essas luzes do mundo. Dentro de poucos anos, seus raros sucessores a eles se reunirao na cripta fami- liar de “todos os Capuletos”. Todavia, o que quer que tenham sido, ou sejam, entre nés, foram ou sao individuos totalmente isolados: conservaram a caracter{stica habi- tual de sua espécie, e nunca constituiram sociedade. Nunca agiram em corpo, nunca formaram um partido no Estado, nunca procuraram exercer influéncia sobre nenhum de nossos negécios pablicos. Se deveriam possuir tal existéncia e se deveriam ter per- missGo para agir assim, é uma outra questo. ~ Como tais grupos de conspiradores nunca existiram na Inglaterra, seu espirito no teve nenhuma influéncia sobre a formagao original de nossa Constituigdo, nem em qualquer das emendas e melhoramentos que ela recebeu. O todo de nossa Constituigo foi efetivado e confirmado sob os auspicios da religifo e da piedade. O todo emanou da simplicidade de nosso cardter nacional e de uma espécie de clareza e retiddo inatas de entendimento, que, por longo tempo, caracterizaram os homens que sucessivamente obtiveram autoridade entre nds. Essa disposicdo ainda existe, pelo menos entre a gran- de massa do povo. o 112 Edmund Burke DE COMO A RELIGIAO E A BASE DE TODA SOCIEDADE Nés sabemos e, o que ¢ melhor, sentimos interiormente que-a religio ¢ a base da sociedade civil ¢ a fonte de todo o bem e de toda a felicidade.” * Na Inglaterra, esta- mos tao convencidos disso que ndo h4 nenhuma supersti¢o com a qual o absurdo acumulado da mente humana poderia ter degenerado a religido no curso dos séculos, que noventa e nove ingleses em cem nfo a prefeririam a impiedade. No seremos nunca to tolos a ponto de chamar um inimigo para o 4mago de qualquer sistema para remo- ver suas corrupges, suprir seus defeitos ou para aperfeigoar sua construgao. Se nossas doutrinas religiosas tiverem necessidade de elucidages mais profundas, no devemos pedir 20 atefsmo que as faca. Nao iluminaremos nosso templo com esse fogo {mpio, mas sim com outras luzes. Perfumé-lo-emos com outro incenso que ndo a matéria infec- ta, importada pelos contrabandistas de uma metaffsica falsificada. Se a propriedade de nossa Igreja tivesse necessidade de ser revista, ndo seria a ganancia ou a avareza, publica e privada, que empregarfamos para verificar, receber ou aplicar esses bens sagrados. Sem condenar violentamente nem a crenga grega, nem a crenca arménia, nem, desde que os rancores ndo mais existem, a crenga romana, preferimos a crenga protestante, nao por pensarmos que ela tenha menos do Cristianismo em si, mas sim porque, segun- do nosso julgamento, ela tem mais. Somos protestantes nao por indiferenga, mas por zelo”” Sabemos, e é nosso orgulho, que o homem é, pela sua natureza, um animal reli- gioso; que o\atefsmo é ndo somente contra nossa raz4o mas também contra nossos ins- tintos, e que n@o pode prevalecer muito tempo. Contudo, se na orgia e no delirio de uma bebedeira produzida pelo dlcool flamejante do alambique infernal que, hoje, ferve furiosamente na Franga, deverfamos descobrir nossa nudez rejeitando esta religiao cris- t@ que até agora tem sido nossa gléria e nosso orgulho, assim como grande fonte de civilizago entre nds e entre muitas outras nagGes, tememas (sabedores de que nosso espirito ndo saberia suportar o vazio) que alguma superstig40 grosseira, perniciosa e de- gradante venha tomar seu lugar. Por essa razo, antes de tirarmos de nosso estabelecimento religioso os meios na- turais que tém os homens de se fazer estimar, e de abandoné-lo ao desprezo, como os franceses o fizeram — incorrendo, assim, em castigos bem merecidos — desejamos que algum outro possa ser mostrado no lugar dele. Formularemos, ento, nosso julgamento. Todas essas idéias, em vez de contraporem-se com estabelecimentos (como algu- mas que tenham criado uma filosofia ¢ uma religido de sua hostilidade em relagdo a tais instituig6es) fazem com que nos liguemos estreitamente a elas. Resolvemos conservar uma Igreja estabelecida, uma aristocracia estabelecida, e um democracia estabelecida, cada uma no grau em que existe e ndo em um maior. Mostrarei agora 0 que possu{mos de cada uma delas. * “Sit igitur hoc ab initio persuasum civibus, dominos esse omnium rerum ac moderatores, deos; eaque, quae gerantur, eorum geri vi, ditione, ac numine; eosdemque optime de genere hominum mereri; et qualis quisque sit, quid agat, quid in se admittat, qua mente, qua pietate colat religio- nes intueri: piorum et impiorum habere rationem. His enim rebus imbutae mentes haud sane abhorrebunt ab utili et a vera sententia. Cic. de Legibus, 1.27 Reflexes sobre a Revolugfio em Franca 113 E uma infelicidade — e nfo uma gloria, como pensam esses senhores — desta épo- ca que tudo tenha de ser discutido, como se a Constitui¢do de nosso pais devesse sem- pre ser mais objeto de litigio que de prazer. Por esse motivo, assim como pela satisfa- 40 dos franceses (se é que entre os franceses ha homens assim) que possam desejar ti- Tar proveito dos exemplos, arrisco-me a importund-los com alguns pensamentos sobre cada um desses estabelecimentos. Nao creio que carecessem de sabedoria os antigos ro- manos que, quando desejosos de refazer suas leis sobre novos modelos, enviaram co- missérios para examinar as mais bem constitudas replicas que pudessem alcangar. A RELIGIAO NA INGLATERRA E A CONSAGRACAO DO ESTADO Permitam-me, primeiramente, falar-lhes do estabelecimento eclesidstico inglés, que é 6 primeiro» de nossos preconceitos; no um preconceito privado de razo, mas envolvendo profunda e extensa sabedoria. Inicialmente, falarei sobre esse preconceito. Ele apresenta-se, no espfrito dos ingleses, como comego, fim e meio. Isso porque fun- damo-nos sobre esse sistema religioso, ao qual, agora, pertencemos, e continuamos a conformar nossos atos de acordo com o sentimento primitivo e uniformemente conti- nuado da Humanidade. Esse sentimento nao s6 construiu, como um sdbio arquiteto, o augusto edificio do Estado, mas também, como um propriet4rio providencial, preservou essa estrutura da profanagao e da ruina. Como um templo sagrado, afastado de todas as impurezas da fraude, da violéncia, da injustica e ¢a tirania, consagrou, solenemente e para sempre, a tepdblica a todos os que nela exercem fungées. Essa consagracao foi feita para que to- dos aqueles que ocupam um cargo no governo dos homens, no qual agem como 0 pré- prio Deus, deveriam ter altas e valiosas nogGes de suas fungdes e objetivos; sua esperan- ga deveria ser repleta de imortalidade; no deveriam procurar as riquezas despreziveis) do momento, nem os elogios efémeros ¢ transit6rios do vulgar, mas sim uma existéncia solida e durdvel para a parte permanente de sua natureza, assim como a gloria e 0 reno- me eternos, no exemplo que eles deixarfo, como uma rica/heranga ao universo. Esses princ{pios sublimes deveriam ser incutidos naqueles que se encontram nes- sas situag6es elevadas, e estabelecimentos religiosos deveriam ser providos para que pu- dessem continuamente alimenté-los e dar-lhes mais forga. Todas as instituigdes morais, civis e polfticas, auxiliando as ligagdes racionais e naturais que aproximam a razAo € 0 espirito humanos 4 divindade, sao necessdrias 4 constru¢ao desse maravilhoso edificio que € o Homem, cuja prerrogativa é ser, em alto grau, resultado de sua propria cria- go”; e que, quando alcancado © nivel almejado, destina-se a ndo ter uma pequena fungdo na ordem da criagéo. Contudo, todas as vezes que um homem eleva-se acima dos outros, como a melhor natureza deveria sempre sobrepor-se, nesse caso mais parti- cularmente, ele deveria aproximar-se de sua perfeic¢&o to perto quanto possivel. Essa consagrag&o do Estado por um estabelecimento religioso do Estado é neces- séria também para agir, por meio de crenga sauddvel, sobre cidadéos livres; porque esses, para garantir sua liberdade, devem gozar de uma certa porgdo do poder. Para eles, por essa raz4o, uma feligifo ligada ao Estado, e com deveres em relacdo ao Estado, torna-se ainda mais necessitia do que nessas sociedades em que o povo, pela forma de 114 Edmund Burke sua sujeigdo, ¢ restrito a seus sentimentos particulares e 4 administragdo de seus assun- tos familiares. E necessdrio que todos aqueles que detenham uma porgdo qualquer do poder sejam fortemente imbufdos dessa terrivel idéia de que eles agem como mandaté- tios, e deverdo prestar contas do modo pelo qual terdo cumprido seu mandato Aquele que € 0 Unico grande mestre, autor e fundador da Sociedade. Esse princfpio deveria ser mesmo mais fortemente imbuido no espirito daqueles que compéem a soberania coletiva do que nos principes, que detém sozinhos toda essa soberania. Sem instrumentos, de fato, esses principes nada podem realizar. Indepen- dendo de quem utilize, instrumentos, obstdculos e facilidades sero encontrados ao mesmo tempo, E isso que faz com que o poder dos principes no seja nunca absoluta- mente inteiro, tampouco seguro, caso haja abuso extremo. Tais principes, embora ele- vados pela lisonja, arrogancia e opinido que tém sobre si mesmos, devem ter o senti- mento de que, acobertados ou nao por uma lei positiva, sf0, de um modo ou de outro, imputaveis, mesmo aqui, pelo que realizam em seus mandatos. Se eles nao s4o depostos pelos seus stditos revoltosos, podem ser estrangulados pelos mesmos Janizaros que mantém para se garantir de outra rebeligo. Foi assim que vimos o Rei da Franga vendi- do por seus soldados, por um aumento de soldo. No entanto, quando a autoridade po- pular é absoluta e sem freios, o povo tem uma confianga infinitamente maior, visto ser muito mais bem fundamentada, no seu proprio poder: 0 povo encontra em si mesmo seus prOprios instrumentos, é mais proximo de seu objetivo. Além disso, reveste-se de menos responsabilidade em relacdo a um dos maiores poderes moderadores do mun- do: 0 sentimento da reputagdo e da estimia publica. A parte infamante que recai sobre cada individuo quando trata de atos piblicos é menor realmente; a observagdo da opi- nigo publica est4 na razdo inversa do ntmero daqueles que abusam do poder. A obser- vagdo de seus proprios atos tem para eles a aparéncia de um julgamento ptblico favo- ravel. Uma perfeita democracia é, portanto, a coisa mais vergonhosa do mundo. Por ser a mais vergonhosa é também a mais temivel. Ninguém teme poder vir a ser, em sua pes- soa, objeto de um castigo. E evidente que o povo em massa jamais pode experimentar esse temor pois, como todos os castigos tem por objeto dar exemplos para a seguran- ga do povo, este ndo pode jamais vir a ser sujeito de puni¢do infligidas por alguma mo humana.*Por isso que é de importancia infinita que se possa permitir a0 povo de imagi- nar que sua vontade seja, ndo mais que aquela dos reis, a medida do bem e do mal. Dever-se-ia persuadi-lo que ele no tem absolutamente, para sua propria seguranga, a titularidade real de exercer qualquer poder arbitrdrio; e que ele nao deve, entéo, sob uma falsa aparéncia de liberdade, cuja existéncia verdadeira é por ele dissimulada, exer- cer, de baixo para cima, uma dominagdo contra a natureza, a fim de arrastar pela tira- nia aqueles que exercem os cargos estatais, nfo por uma dedicagdo inteira a seus inte- resses — 0 que é seu direito — mas por uma submissdo abjeta a seu capricho de momen- to; extinguindo, desse modo, em todos aqueles que servem ao povo todo, principio mo- ral, todo sentimento de dignidade, todo uso da razo e toda consisténcia de cardter en- quanto, pelo mesmo proceso, ele se dé como presa facil e desprezivel 4 ambicdo servil dos caluniadores populares ¢ dos cortesos aduladores, “Quicquid multis peccatur inultum."” Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga 1s Quando © povo se vir livre de toda ambig&o egoista, estégio em que ser-lhe-4 im- possivel chegar sem religifio; quando tiver consciéncia de que exerce — ¢ talvez em grau mais alto na ordem da delegagdo — um poder que, por ser legitimo, tem de estar de acordo com essa lei eterna e imutavel, na qual a vontade se confunde com a razfo, ele tomard mais cuidado ao colocar esse poder em mifos vis e incapazes. Quando no~ mear aos cargos piblicos, no confundird o exercfcio da autoridade com atividades de- sonrosas, mas sim como fungdes sagradas, No tomard decisGes segundo sugestdes de um sordido egofsmo, de um cego capricho, ou de uma vontade arbitréria, mas conferi- 14 esse poder (que todo homem treme em dar ou em receber) aqueles somente em que ele podera discernir essa proporgao predominante de virtude ativa e de sabedoria, fun- dadas conjuntamente e apropriadas 4 fungdo, tal como deve ser encontrada, na grande e inevitavelmente misturada massa de imperfeigGes e enfermidades humanas®! . Quando o povo estiver convencido de que nenhum mal, seja em desejo, seja em acdo, podera ser agradavel Aquele cuja esséncia é boa, ele poderd extirpar da mente de todos os magistrados civis, eclesidsticos ou militares, qualquer coisa que possa ter a me- nor semelhanca com o orgulho e 0 arbitrio. XN Contudo, um dos primeiros principios mais norteadores sobre o qual consagram- se as coisas piiblicas ¢ as leis é 0 temor que aqueles que tém seu gozo temporério e so seus usufrutudrios, sem se importar com 0 que tenham recebido de seus ancestrais ou com 0 que é devido 4 posteridade, devem agir como se fossem mestres absolutos; eles | nGo acreditam que esse principio encontra-se entre as leis de denunciar sua substituigdo. ou de desperdigar sua heranga destruindo, segundo sua vontade, todo 0 edificio da so- ciedade, arriscando, desse modo, ndo deixar aqueles que virdo depois deles nada além de ruina no lugar de uma habitagao — e ensinando a esses descendentes a ndo mais res- peitar seu trabalho, uma vez que eles mesmos nio respeitaram as instituigdes de seus ancestrais. Essa facilidade desordenada de mudar de regime tanto e tao freqiientemente de tantas maneiras quanto os caprichos ou modismos passam, chegaria a romper a continuidade e o segmento da comunidade. Nenhuma geracdo poderia ligar-se a outra; os homens valeriam pouco mais que moscas do verao. E a primeira de toda ciéneia da jurisprudéncia, o orgulho do intelecto humano que, com todos os seus defeitos, redundancias e erros, é a razo acumulada dos séculos, combinando os principios da justiga original com a infinita variedade de interesses humanos, como um monte de velhos erros explodidos, nao seria mais estudada. A sufi- ciéncia e a arrogancia (atributos assegurados a todos que jamais conheceram sabedoria Superior a sua) usurpariam os tribunais. Naturalmente, ndo haveria mais certas leis, estabelecidas segundo invaridveis fundamentos de esperanga e de temor, para conservar uma diregdo segura as agdes humanas, ou para dirigi-las a certos objetivos. Nada de estavel em matéria de conservar a propriedade ou exercer uma fungdo poderia constituir terreno s6lido sobre o qual os pais pudessem contar para educar seus filhos ou para escolher para eles uma posi¢éo no mundo. N&o seria mais pos- stvel fazer entrar rapidamente os principios nos hdbitos. Assim que o mais capaz dos preceptores tivesse terminado a obra laboriosa de uma educago, em vez de por no mundo um aluno que formou-se segundo uma disciplina virtuosa, calcada em conseguir atengdo e respeito no seu lugar na sociedade, ele perceberia que tudo foi alterado, € 116 Edmund Burke que ele deixou ao desprezo e ao escérnio do mundo uma pobre criatura ignorante dos verdadeiros fundamentos da opinido publica. Quem iria querer assegurar num cora¢do jovem os sentimentos tenros e delicados da hora e fixé-los, por assim dizer, com suas primeiras batidas, quando ninguém sabe qual a regra da honra numa nagio em que se faz continuamente variar a medida de seus valores? Nenhuma idade da vida poderia gozar as conquistas das épocas precedentes. A barbarie na ciéncia e na literatura, a falta de habilidade nas artes e nas fungGes sucederiam infalivelmente a necessidade de uma educagdo continua e de principios estabelecidos; e, assim, a propria coisa publica, em algumas geracGes, esmigalhar-se-ia, fracionar-se-ia na poeira do individualismo, e dis persar-se-ia, enfim, em todos os ventos do céu. Para evitar, portanto, os males da inconstancia e da versatilidade, mil vezes pio- res que os da obstinagdo e do preconceito cego, os ingleses consagraram 0 Estado para que ninguém ouse examinar-lhe as insuficiéncias e os vicios sem a circunspecgdo neces- séria; para que nunca se imagine comegar sua reforma pela sua subversdo; enfim, para que se aproxime das faltas do Estado como se aproxima das feridas de um pai, com um temor respeitoso e uma solicitude inibida. Esse s4bio preconceito ensina os ingleses a olhar com hotror esses filhos de um pais que esto prontos a estragalhar seu velho pai e po-lo no caldeirdo dos migicos, na esperanga que esses, por meio de suas ervas enve- nenadas e encantamentos selvagens, chegardo a regenerar sua constituicao e infundir- The uma nova vida. A sociedade é certamente um cortrata Contratos de_natureza inferior, tendo como contetido objetos de simples interesses temporarios, podem ser desfeitos segundo a vontade das partes, No entanto, deve-se por o Estado em pé de igualdade com uma associagfo para 0 comércio da pimenta, do café, do algodfo, do fumo ou de qualquer outra mercadoria tao pouco relevante? Uma sociedade que persegue um interesse tran- sitorio, podendo ser dissolvida de acordo com o desejo das partes? Certamente nao; & com outro respeito que se deve considerd-lo, porque ele ndo é realmente uma associa- Ho com vistas a assegurar a grosseira existéncia animal de uma natureza efémera e pe- tecivel. O Estado é uma associa¢do que leva em conta toda ciéncia, toda arte, toda vir- tude e toda perfeigdo; e como os fins de tal associagao nao s4o obtidos em muitas gera- g6es, o Estado torna-se uma associacdo nfo s6 entre os vivos, mas também entre os que estZo mortos e os que iro nascer. Os contratos que regem cada Estado em particular sdo clausulas do grande contrato primitivo da sociedade eterna, que liga as naturezas mais baixas as mais elevadas, liga o mundo visivel ao mundo invisfvel, conforme a in- violdvel lei que mantém todas as naturezas morais e fisicas, cada uma em seu lugar de- terminado. Essa lei nfo estd sujeita 4 vontade daqueles que, por uma obrigago que os ultrapassa e que Ihes é infinitamente superior, sfo obrigados a submeter-the sua vonté- de. As corporagGes municipais desse reino universal no sdo moralmente livres, segun- do sua vontade, e sobre suas especulagdes a respeito de uma melhoria possivel, de des- membrar e de rasgar em pedagos os lagos de sua comunidade subordinada, e de dissol- vé-la em um caos anti-social e anticivil de principios elementares sem conex4o. Somen- te uma necessidade primordial e superior, que nao se escolhe mas que se impde, supe- rior a deliberagdo, acima da discussdo, e que nao pede provas, pode justificar um recur- so & anarquia. Essa necessidade no € uma excegfo a regra, j4 que ela faz parte também Reflex6es sobre a Revolugdo em Franga 7 dessa ordem moral ¢ fisica das coisas, & qual o homem deve obedecer, por bem ou por mal. Contudo, se, daquilo que s6 deve ser submetido a necessidade, faz-se objeto de uma escolha, viola-se a lei, desobedece-se 4 natureza, € proscrevem-se os rebeldes, os cassados e os exilados do mundo da raz4o, da ordem, da paz, da virtude e da expiagdo fecunda, num mundo oposto a folia, a discérdia, ao vicio, 4 confusao e 4 dor ineficaz. DE COMO ESSA CONSAGRAGAO EXIGE UM CULTO PUBLICO POR PARTE DA NACGAO Esses so, caro senhor, esses foram e também serfo por muito tempo ainda, creio eu, os sentimentos dos homens desse Reino, homens esses, afirmo, que nZo so os menos instruidos ou educados. Esses homens formam suas opinides pela educacao, 08 que no podem estudar, recebem-na de uma autoridade que nao deve envergonhar aqueles \cia destinou a viver de esperanca. ~~~ Essas duas categorias de homens camirihani na mesma diregdo, apesar de se diri- girem para lugares diferentes. Ambas seguem a ordem do universo. Ambas conhecem ou sentem aquela grande verdade da antigiidade: “Quod illi principi et praepotenti Deo qui omnem hunc mundum regit, nihil corum que quidem fiant in terris acceptuis quam concilia et coctus hominum jure sociati quae cireitatos appellatur® . Ambas ade- rem de espfrito e de corago a essa maxima, nfio tanto em decorréncia do nome impor- tante do seu autor ou da importancia ainda maior daquele que a dé origem, mas sobre- tudo em razo daquilo que, por si s6, dé a uma opinio s4bia, um respaldo e uma auto- ridade verdadeiras: a natureza comum e as relagdes comuns entre os homens. Convictas de que tudo deve estar ligado 4 Divindade e ao fazé-lo,de fato, eles se acreditam obri- gados nfo somente a se lembrarem de sua origem e de seu nascimento divinos, enquan- to individuos no santudrio de seus coragdes ou enquanto membros de uma Igreja, nos seus templos; mas, também, a prestar uma homenagem, enquanto na¢io, ao Professor, Autor e Protetor da sociedade civil, sem o qual o homem jamais poderia atingir a perfeigfio de que sua natureza é capaz, nem mesmo se aproximar dela. Eles compreen- dem que Aquele que quis que a natureza pudesse ser aperfeigoada pelos nossos esfor- gos também desejou os meios necess4rios ao seu aperfeigoamento — e, por essa 1az30/ ele quis o Estado e que esse estivesse ligado a fonte e ao arquétipo primitivo de toda perfeigdo. Aqueles que esto convencidos dessa vontade Daquele que é a Lei das leis o Soberano dos soberanos, nfo podem achar repreensfveis a fé e a homenagem que nés lhe prestamos na vida; que o reconhecimento que fazemos de um comando supremo; eu diria mesmo que essa oferenda ao Estado no altar erguido pela adoracdo universal, se traduz como todos os atos publicos solenes, nas construgées, na musica, nos oma- mentos, nos discursos, na dignidade das pessoas — conforme os costumes da humani- dade, ensinados pela propria natureza humana; ou seja, pela conciliagdo da modéstia com o esplendor, da conveniéncia com o escdndalo; da modéstia com a majestade, da moderagZo com a pompa. Eles acreditam que uma parte da riqueza do pats serd, tam- bém, bem empregada na consecugao dessa finalidade, sem servir ao luxo de particula- res. Ela serd, de fato, um omamento piblico e a consolag4o publica. Ela alimentaré a esperanca do povo. O mais pobre dos homens adquirird, gracas a ela, uma nogo de 118 Edmund Burke sua propria importncia e de sua propria dignidade, contrariamente ao que ocorre com @ riqueza e o luxo dos particulares que aumenta a inferioridade das pessoas de condi- do humilde, degrada e avilta sua condigao. E com vistas ao homem humilde, para elevar a sua condigdo pessoal, para lembrar-lhe de uma existéncia onde os privilégios da opuléncia cessarao, onde ele serd igual a todos em decorréncia de sua natureza, e talvez até superior pela sua virtude, que parte da riqueza total de seu pais é utilizada e san- tificada. Eu lhe asseguro que ndo viso-a-singularidade. Exponho opinises que reesberap, desde muito tempo, 11ma-aprovacda_gora} e continiia e que, na verdade, estdo de tal forma incorporadas a minha personalidade que mal posso distinguir aquilo que apren- di dos outros, daquilo que é resultado das minhas meditagGes. DE COMO 0 CULTO PUBLICO EXIGE UMA INSTITUICAO RELIGIOSA ESTATAL. COMO A EDUCACAO INGLESA LEVA A CRENCA NESSA INSTITUIGAO E em decorréncia desses principios que a maioria do povo inglés longe de pensar que uma instituigdo religiosa nacional seja ilegitima, acha, ao contrério, dificil nao en- caré-la como legitima. Os franceses se enganam totalmente ao acreditar que nds nao es- tejamos completamente vinculados a essa institui¢do, muito mais do que em qualquer outra nagdo ao crer (€ isso nfo podemos duvidar) que o povo inglés cometeu, ao favorecer essa instituiga0, atos injustificdveis e pouco sdbios. Esses erros, entretanto, so para os franceses a prova do nosso zelo, ja que esse principio é inerente a0 nosso sistema politico. O povo inglés ndo considera a sua instituigdo religiosa como algo aces- sorio ao Estado, mas sim, e antes de tudo, como parte essencial da estrutura estatal. Ele nao a vé como algo heterogéneo ou descartdvel, que foi agregado ao Estado por mera quest4o de comodidade e que se possa ter 0 direito de preserva-la ou recusé-la em consonancia com as idéias do momento. O povo inglés a considera como o funda- mento da Constituigdo do pais, a qual ela est4 indissoluvelmente ligada. Na sua concep- glo, a Igreja ¢ 0 Estado sia idéias insepardveis e ¢ dificil que se possa falar.de uma, sem se fazer mengao 4 outr: + = ‘A nossa educagdo é conduzida de forma a confirmar essa impresso, j4 que ela se encontra inteiramente sob o controle dos eclesiasticos em toda a sua extensio. Mes- mo quando os nossos jovens deixam a universidade e entram no perfodo mais impor- tante da vida, ao unir a experiéncia ao estudo e quando, nesse campo, visitam paises estrangeiros, ao invés de levarem consigo velhos empregados domésticos como vemos alguns visitantes estrangeiros fazé-lo, quando em visita 4 Inglaterra, a grande maioria dos jovens membros da nossa nobreza se fazem acompanhar ao exterior de eclesidsti- cos, Esses nfo os acompanham como mestres austeros ou como simples acompanhan- tes, mas, antes de tudo, como amigos e companheiros e ndo é raro que eles proprios se- jam oriundos de familias tio nobres quanto as de seus alunos. Fica, assim, entre eles festabelecido um relacionamento familiar que é de extrema importdncia. Visamos, dessa forma, a vincular nossa nobreza 4 Igreja e a estabelecer um vinculo forte com 6s dirigentes do pats. ® Reflexdes sobre a RevolugSo em Franca ng Acreditamos tio firmemente na certeza dos métodos eclesidsticos de educa- gf0™ que poucas mudangas foram introduzidas depois dos séculos XIV ou XV, bem de acordo com a nossa velha m4xima de nunca destruir totalmente, ou de uma vez s6, aquilo que é antigo. Chegamos a conclusto de que esses métodos antigos de educago so favordveis 4 moralidade e a disciplina e estamos certos de que podemos aperfei- goé-los sem destrui-los. Acreditamos que esses metédos so capazes de guardar, aperfeigoar e sobretudo de conservar o patrimOnio da ciéncia e da literatura, como ten- do evolu{do segundo os ditames da vontade divina. E antes de tudo, em decorréncia dessa educagdo gotica e mondstica (ela realmente o é nos seus fundamentos), podemos fazer valer os nossos direitos, muito mais do que qualquer outra nago européia, a uma parte consideravel dos progressos da ciéncia, da arte e da literatura que iluminou omamentou o mundo modemo. Acreditamos que uma das causas principais desse progresso tenha sido o fato de que nunca menosprezamos o patriménio de conheci- mentos que a nés foi legado por nossos antepassados. NECESSIDADE DA EXISTENCIA DE PROPRIEDADES ECLESIASTICAS PARA ASSEGURAR A INDEPENDENCIA DA IGREJA E SUA DIGNIDADE F em decorréncia de sua vinculagao a um estabelecimento religioso que a nago inglesa no aceitou, visando ao proprio interesse fundamental do Estado, que qualquer parte dos servigos publicos, civis ou militares, fique na dependéncia de contribuigdes irregulares e inconstantes de particulares. E vai mais longe. Ela também nfo permite, nem permitird jamais, que a renda da Igreja seja transformada em uma pensfio que de- penda do Estado e que assim sendo possa ser diminu{da ou suspensa em virtude de problemas fiscais. Poderfamos talvez afirmar que essas dificuldades respondem a ne- cessidades politicas; na realidade, entretanto, elas sfo freqiientemente decorrentes da extravagancia, da negligéncia e da avidez dos politicos. O povo inglés acredita ter ra- z5es nfo s6 de ordem constitucional como religiosa para se opor a todo projeto que tente transformar os membros independentes do seu clero em funcionérios publicos. Pela sua liberdade, ele teme a influéncia de um clero dependente da Coroa; pela tran- qiiilidade publica ele teme as desordens de um clero faccioso se esse estivesse depen- dtnte t4o-somente da Coroa, essa ¢ a raz4o pela qual o povo inglés tanto quis que a sua Igreja, assim com o seu Rei ¢ a sua Nobreza, fossem independentes. Essas considera. Bes de base religiosa e politica, o dever socialmente reconhecido de amparar os pobres e instruir 08 iletrados fizeram com que os bens da Igreja fossem incorporados & massa da propriedade privada, sobre a qual o Estado nao possui nem o direito de uso nemo dominio, sendo tdo-somente seu guardifo e regulador. Medidas foram tomadas, dessa forma, para que esses bens fossem to estdveis quanto a propriedade fundidria, sem so- frer as flutuagdes do Euripus®® dos fundos piiblicos e das agdes humanas. Os ingleses, ou melhor, os homens esclarecidos e importantes da Inglaterra, de inteligéncia aberta e fértil, teriam vergonha, como de uma fraude grosseira, de profes- sar uma religiZo que, pelos seus atos, parecessem menosprezar. Eles temeriam que sua conduta (a tinica linguagem que quase nunca mente) pudesse aparentar que eles consi- deravam o grande principio diretor do mundo moral e do mundo natural como uma 120 Edmund Burke simples invengdo destinada a manter o vulgar na obediéncia e que um tal modo de agir nio destrufsse um desejo politico por eles almejado. Seria, assim, dificil para eles con- vencer terceiros da credibilidade de um sistema ao que eles proprios nfo davam nenhum crédito. Os homens de Estado, cristdos desse pais, desejam certamente satisfa- zer as necessidades da maioria, enquanto maioria, e, em conseqiiéncia, o primeiro obje- tivo da instituigo eclesidstica e de todas as instituigdes. Eles acreditam que um dos fatores fundamentais em favor da verdade da missdo eclesidstica é a verificacdo de que ela € dirigida para os pobres. Essa € a razo pela qual eles pensam que aqueles que no créem no Evangelho, nfo se importam que ele seja pregado aos pobres. A caridade, entretanto, nao é privilégio de uma certa categoria de homens, jd que deve ser dirigida a todos aqueles que a necessitam. Eles sabem-no e é por isso que sentem, diante dos males ¢ das angustias dos grandes, uma compaix4o inquieta ¢ legitima. Os desgostos que os arrogantes e presungosos causam nfo os afastam da aten¢do que sentem pelos seus tumores morais e feridas profundas. Eles compreendem que a instrugdo religiosa Ihes é de extrema importancia, em decorréncia da grande intensidade de tentagdes as quais estfo expostos, das conseqiiéncias de suas faltas, do contdgio dos seus maus exemplos, da necessidade de abrandar a dureza de suas vaidades e ambiges, por meio da moderagdo e da virtude, da enorme tolice, enfim, e da ignordncia grosseira que Teinam, naquilo que é importante que os homens saibam, nas Cortes, nas altas hierar- quias dos exércitos, nos Senados, assim como nas oficinas e nos campos. O povo inglés est4 convencido. de que,-para os grandes, 0. consolo da religido é t&o necessério quanto os seus ditames. Eles também estdo entre os infelizes, j4 que co- nhecem a dor pessoal e as migoas domésticas. Neste dominio eles no possuem ne- nhum privilégio, mas esto sujeitos a pagar sua parte pelas contribuig6es impostas a humanidade. Também necessitam do balsamo soberano da religio para acalmar as in- quietudes e os desassossegos aterradores, que, tendo poucas relagdes com as necessida- des limitadas da vida animal, se desenvolvem sem limite e se diversificam em infinitas combinagdes nas regides virgens e ilimitadas da imaginagdo. Eles precisam — esses grandes que de qualquer forma sfo os nossos irmios infelizes — de algo para preencher o vazio horrendo que reina nos espiritos que nfo tém, na terra, nada a espe- rar ou crer, algo que possa aliviar a mortal lentiddo estafante daqueles que nada tém a fazer, algo que possa excitar 0 apetite de vida na sociedade insensfvel que acompanha todos os prazeres que podemos comprar, quando nfo se permite que a natureza siga 0 seu proprio curso, quando o proprio desejo é, de antemo, previsto, quando o prazer é destruido pelos meios que sto utilizados para obté1o e quando nfo hé mais, entre a promessa e sua realizacfo, nenhum interval e nenhum obstdculo. O povo inglés sabe da pouca influéncia que os pregadores religiosos podem exer- cer sobre aqueles que so ricos e poderosos de longa data e da ainda menor influéncia sobre os novosrricos, se ndo se apresentarem de uma forma semelhante aquela daqueles com quem eles ito se associar,e sobre quem eles devem exercer, em certos casos, uma forma de autoridade. Que poderiam pensar esses ricos desse grupo de religiosos, se no os vissem em uma situagdo superior 4 de seus empregos domésticos? Se a sua pobreza fosse voluntria, seria totalmente diferente. Grandes exemplos de remincia exercem forte influéncia sobre os nossos espiritos e um homem que nfo sofre necessidades Reflexdes sobre a Revolugdo em Franca 121 adquire, por isso, muita liberdade, firmeza e mesmo dignidade; mas como um conjun- to qualquer de homens é sempre formado de homens simples cuja pobreza nfo é volun- téria, a falta de considerag%io que é sempre relacionada a toda pobreza leiga ficaria tam- bém vinculada a pobreza eclesidstica. Essa é a razdo pela qual a nossa sdbia Constitui- g80 se preocupou em que aqueles que devem instruir a ignorancia presuncosa e censurar a insoléncia do vicio nao fiquem expostos ao desprezo ou a viver de esmolas, de forma que os ricos nao sejam tentados a menosprezar os médicos de seus espiritos. Esses fatos nos levaram a nfo relegar a religifio (como uma coisa vergonhosa) as munici- palidades obscuras das vilas perdidas, sem nos esquecermos de sua miss&o que é prote- ger e assistir com uma solicitude patemal as necessidades dos pobres. Nao! Nés quere- mos que ela tenha sua linha de frente nas Cortes e nos Parlamentos. Quéremos que ela envolva a fagSo inteira, se misture com todas as classes da sociedade. O povo inglés mostrard aos potentados arrogantes do mundo e aos seus sofistas que uma nagdo livre, generosa e instruida honra os altos magistrados de sua Igreja; que jamais permitird que a insoléncia da riqueza e dos titulos ou qualquer outra espécie de pretensio orgulhosa olhe com desprezo aqueles que ela venera, nem oprima essa nobreza pessoal que ela sempre quis que fosse, e que é freqilentemente, o resultado, ndo a recompensa, pois 0 que poderia ser a recompensa? — Saber, piedade e virtude. O povo inglés ndo sentenem preocupaco nem inveja ao ver um Arcebispo preceder um Duque. Nao se espanta a0 saber que o Bispo de Durkam ou o Bispo de Winchester recebem 10,000 libras esterli- nas de renda anual, ele no compreende porque essa renda estaria pior nas maos desses preladosdo que nas de algum Conde ou fidalgo — apesar de ser verdadeiro que os pri- meiros nfo mantém um grande numero de cavalos e de ces com os alimentos que de- veriam nutrir os filhos do povo. £ também verdadeiro que a renda total da Igreja nfo € toda empregada, até o ultimo centavo, em obras de caridade, e talvez no devesse sé- lo; mas uma parte, pelo menos, tem esse destino. Vale mais prezar a virtude e a/huma- nidade, deixando a vontade muita liberdade, com riscos mesmo de nfo preencher com- pletamente seu objetivo, do que reduzir os homens a meros instrumentos ou mdquinas a servigo de uma beneficiéncia polftica. O mundo adquirir4, assim, uma liberdade sem a qual a virtude nfo poderia existir. A partir do momento em que o Govemo estabeleceu que os bens da Igreja sfo uma propriedade, nfo cabe mais, logicamente, se preocupar com a sua extensdo. A idéia de pouco ou muito é incompatfvel com 0 conceito de propriedade. Qual o mal que poderia surgir de sua acumulagdo em algumas maos na medida em que a autori- dade suprema tem sobre ela, como sobre qualquer propriedade, plenos poderes para impedir todo abuso ¢ para dar-lhe, quando ela se afasta consideravelmente de seu ru- mo, uma nova dire¢do conforme a forma pela qual ela foi estabelecida? A grande maioria do povo inglés acredita que é por inveja e maldade em relacao a homens que foram os construtores de suas proprias fortunas e ndo por amor a renuincia e a mortificacdo da Igreja primitiva, que alguns se irritam com essas distingdes, estas honrarias e essas rendas que, sem causarem mal a ninguém, sfo postas a parte em favor da virtude. © povo inglés tem bons cuvidos: as declarag6es desses homens os traem. Eles falam o dialeto da fraude, a giria e 0 jargio da hipocrisia. O povo inglés nfio pode- ria pensar de-forma diferente quando eles ouvem esses faladores quererem empurrar 0 122 Edmund Burke clero aquela pobreza evangélica que ele sempre deveria possuir no espirito (e nés tam- bém, por menos que isso possa nos agradar) mas que, na pratica, deve softer modifica- gSes, ao mudar as relagSes do clero e do Estado, quando os costumes, os modos de vida, ou melhor, a ordem global dos assuntos humanos sofreram uma revolugdo completa. Acreditarfamos que esses reformadores sdo entusiastas honestos, e ndo gatu- nos ou patifes como hoje os vemos, quando seus préprios bens se tornassem piblicos ¢ fossem eles préprios submetidos a disciplina austera da Igreja primitiva. DE COMO OS BENS DA IGREJA SAO CONSIDERADOS INVIOLAVEIS PELOS INGLESES Essas idéias esto bem enraigadas, e as comunas da Grd-Bretanha jamais pro- curardo, nas horas de necessidade da méquina estatal, buscar recursos por meio de con- fiscos dos bens da Igreja e dos pobres. O sacrilégio e a proscrigfo ndo fazem parte dos meios utilizados pela nossa Comissio do Orcamento. Os judeus de Change-Alley ainda nao ousaram fazer alusdo a suas esperancas de uma hipoteca sobre o feudo de Canter- bury. Eu nao me contradigo ao afirmar que ndo hé um sé homem em qualquer partido ou grupo que nao condene o confisco cruel, pérfido e desonesto que a Assembléia Na- cional foi forgada a fazer daquela propriedade que tinha como primeira obrigaco pro- teger. , Eu me orgulho em poder informarthe que aqueles que quiseram imitar aqui as ‘ages abomindveis da sociedade de Paris cairam em desgraca. A pilhagem da sua Igreja funcionou como uma garantia para as propriedades da nossa. O povo foi motivado a protegé4a. A imprudéncia e a enormidade dessa proscrigo encheram de horror e de medo 0 nosso povo. Seus olhos foram abertos e eles se abrirdo ainda mais pelo egoismo e pela vilania dos sentimentos desses homens incidiosos que, tendo comecado suas ag6es pela hipocrisia e pelo erro, terminaram pela violéncia e pela rapina. Vemos, aqui, agGes iguais e desconfiamos de fins andlogos. SENTIMENTOS EXISTENTES NA INGLATERRA EM RELACAO AO CONFISCO DOS BENS DA IGREJA NA FRANCA Espero que nés nunca percamos o sentimento dos deveres que nos sfo impostos pela lei da unio social ao ponto de confiscar, dando como motivo o bem piiblico, os bens de um s6 cidadao inofensivo. Que homem, sendo um tirano (e esse nome bem exprime tudo o que pode degra- dar e corromper a natureza humana) poderia pensar em confiscar a propriedade de ho- mens que nao foram nem acusados, nem ouvidos, nem julgados, centenas deles, milha- res, classes inteiras? ‘Nao teriam esses homens que ter perdido todo trago de humanidade ao destituf- rem pessoas de tdo alto nivel e de fungdo sagrados, alguns deles de idade que deveria fazer brotar em nés deferéncia e compaixfo, da mais alta posigdo publica decorrente de seus bens fundidrios para jogé-los na indigéncia, na baixeza, no desprezo? Reflexées sobre a Revolugdo em Franca 123 Os confiscadores, é certo, deram a suas vitimas alguma coisa dos restos de suas proprias mesas, das quais foram to rudemente arrancados e sobre as quais foi servido, com muita liberalidade, um festim para a voracidade dos usuarios. Mas como é cruel destituir homens de sua independéncia para deixé-los viver de caridade! O que poderia ser uma situagdo tolerdvel para homens que tém um certo nivel de vida e nfo estfo habituados a nada além disso pode ser para outros uma modificacdo insuportdvel, & qual uma alma que nao condenaria ninguém teré que enfrentar a morte por um crime que no cometeu. Para muitos essa pena de degradagdo e infémia é pior que a morte. E sem divida um agravamento infinito desse sofrimento cruel para homens, que tém a favor da religifo o duplo preconceito de sua educagao e sua fung&o, receber, como es- mola, os restos de suas propriedades, das mos profanas e impuras que os pilharam de todos os bens e de dever (se alguma vez lhes foi dado) os meios de subsisténcia da reli- gifo, ndo das contribuigdes caridosas dos fiéis, mas da solicitude insolente de ateus reconhecidos e confessos, que os avaliarao pelo desprezo que sentem por essa reli- gido e com a finalidade de aviltar e de desonrar os ministros aos olhos de toda a huma- nidade. Parece, entretanto, que esse ato de penhora ¢ a conseqiiéncia de um julgamento legal e ndo de um confisco. Parece que foi descoberto nas academias do “Palais Royale dos ‘“Jacobins”®* que alguns homens nao tém nenhum direito de conservar o que eles possufam sob a garantia da lei, do uso, das decisdes judiciais e da prescrigfo consagrada por milhares de anos. Diz-se, nessas academias, que os eclesidsticos so pes- soas ficticias, criagdes do Estado que podem ser suprimidas 4 vontade e que podem ter, naturalmente, todos os direitos limitados ou modificados, que os bens que porventura eles detém nfo so propriamente seus, mas pertencem ao Estado que criou a ficgo e que, por conseqiéncia, ndo ha porque se preocupar com aquilo que possam softer fisi- camente ou em seus sentimentos em decorréncia daquilo que se pode fazer a suas pes- soas ideais. Pouco importa, entretanto, o nome utilizado para se denominar os males que lhes foram causados, e os confiscos das justas vantagens de uma profissdo que o Estado no somente autorizou como também incentivou, vantagens que os levaram a certeza de poderem prever um certo ritmo de vida, contrair dividas e dar sustento a uma mul- tiddo de pessoas! Nao imagine, senhor, que eu possa fazer dessa distingdo de pessoas uma base para uma longa discussio. Os argumentos da tirania so t4o despreziveis quanto sua forga é terrivel. Se os confiscadores franceses nao tivessem, pelos seus crimes, conquis- tado o poder que garantisse impunidade aos crimes presentes e futuros, ndo seriam os silogismos de alguns, mas 0 chicote do carrasco que iria refutar os sofismas através dos quais eles procuram justificar seus roubos e assassinatos. Os tiranos que reinam em Paris acusam em alta voz a antiga tirania dos reis, que durante longos séculos, perturbou a paz mundial. Eles sfio tZo audaciosos porque esto protegidos pelas fortalezas e celas dos seus antigos senhores. Deveremos ter mais indulgéncia com 0s tiranos da nossa época, quando os vemos fazer, diante dos nossos olhos as mais terriveis tragédias? Nao usarfamos a mesma liber- 124 Edmund Burke dade que eles usaram, tdo logo tivéssemos a mesma seguranga? Pois, certamente, sd serd necessério que menosprezemos as opinides daqueles cujos atos abomindvamos! PRETEXTOS USADOS PARA SE REALIZAR O CONFISCO Esse ultraje a propriedade se reveste, de inicio, do mais surpreendente pretexto, se se levar em consideragdo 0 modo de conduta daqueles que o cometeram: 0 cuidado com 0s compromissos nacionais. Os inimigos da propriedade simularam a mais ténue, a mais delicada e escrupulosa solicitude para concretizar os compromissos assumidos pelo Rei com os credores piiblicos. Esses professores de direitos humanos se ocupam tanto em ensinar terceiros, que se esquecem de aprender qualquer coisa, pois de outra forma eles saberiam que a propriedade dos cidad4os, e nfo as reclamagdes dos credores do Estado € a primeira devogdo de qualquer sociedade. Os direitos dos cidadaos sfo anteriores a qualquer outra coisa. As fortunas dos particulares, adquiridas por aquisigo, heranga ou participago nos bens de uma comunidade, no fazem parte das garantias que im- plicita ou explicitamente foram dadas aos credores publicos: esses nem mesmo pode- riam pensar nisso quando do contrato. Eles sabiam bem que o publico, seja ele repre- sentado por um monarca ou um senado, sé pode dispor das receitas puiblicas e s6 po- de haver receita pablica quando proveniente de um imposto justo e proporcional cobra- do do conjunto dos cidadaos. Isso € 0 que estava pactuado com os credores ptiblicos e nada além poderia ter sido assegurado: ninguém pode fazer de sua injustica o penhor de sua fidelidade. E impossivel ndo fazer algumas observagdes sobre as contradigdes que advieram da inconsisténcia e do rigor extremos da nova fé puiblica que influenciou essa operagfo € que 2 influenciou nfo s6 segundo a natureza da obrigago que ela assumiu, mas se- gundo o cardter das pessoas a quem ela estava submetida. Nenhum outro ato do antigo governo dos reis franceses, a nfo ser as obrigagdes financeiras, foi convalidado pela Assembléia Nacional, esse que, entre todos os outros atos, tem a mais duvidosa legiti- midade. Os outros atos do govemno real so hoje considerados to odiosos que se tor- nou quase um crime ter um direito por eles garantido. Uma pensdo concedida como re- compensa a servigos prestados ao Estado é certamente uma alegacSo de propriedade to sdlida quanto a garantia dada ao empréstimo concedido ao Estado. £ até melhor, pois o Estado paga e paga bem para que possa ter servicos prestados. Vimos, entre- tanto, na Franga uma multiddo de pessoas, que os ministros mais arbitrérios jamais teriam, em época mais arbitrdrias, privadas de seus saldrios, serem roubadas sem cle- méncia por essa Assembléia dos direitos do homem. . Quando reclamaram o pao que tinham pago com seu sangue, a elas foi respondido que seus servicos nfo foram prestados ao pais que existe atualmente! Esse relaxamento da fé publica nao era reservado a essas pessoas desafortuna- das. A Assembléia, com muita légica, deve-se reconhecer, passou a debater até que ponto ela estaria ligada a tratados realizados entre outras nag6es e 0 antigo governo e uma de suas comissSes deveria determinar quais tratados deveriam ser ratificados quais os que deveriam ser denunciados. Por esse meio, a fé publica do novo Estado francés no seu aspecto interior foi posta de acordo com sua ago externa. Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga 125 E dificil compreender a razo pela qual o governo monérquico nifo tenha tido 0 poder de pagar por servicos prestados e de celebrar tratados, e, no entanto, tenha po- dido comprometer aos credores do Estado sua receita atual e possivel. O Rei da Fran- ga, assim como os outros reis europeus, sempre teve em relagHo ao tesouro nacional poucos direitos de prerrogativa. Nada demonstra mais a autoridade soberana do que exercer sobre 0 tesouro nacional o direito de hipotecar a receita publica. E muito maior do que o mero direito de cobrar impostos transitérios e acidentais. Sio, dessa forma, os atos desse poder perigoso a marca clara de um despotismo que foram consi- derados como sagrados. De onde pode provir, entdo, essa decisfo de uma Assembléia democrética, que deriva seu direito da mais criticdvel e injusta das manifestagdes da autoridade mondrquica? A razo nfo pode explicar a falta de légica, assim como a jus- tiga no explica o favoritismo e a parcialidade. A contradigo ¢ a parcialidade, entretanto, que no admitem justificativas, tem uma causa que as explica, e eu acredito que no seja dificil descobrir sua causa. A CAUSA REAL DO CONFISCO A enorme divida da Franca fez aparecer, sem que fosse percebido, um grande interesse pelo dinheiro, e com ele, um grande poder. Os antigos usos e costumes desse reino sempre tomaram diffceis a circulagdo da propriedade e a conversibilidade da terra em capital e de capital em-propriedade. As propriedades familiares na Franca sio mais extensas do que na Inglaterra e muito mais severamente regulamentadas — o “jus retractus”®” a grande massa de propriedades fundidrias que pertencem a Coroa e que um principio do direito francés tornou inaliendvel, as vastas propriedades das comuni- dades religiosas — tudo isso fez com que na Franca, os interesses fundidrios e os inte- resses monetarios ficassem separados e opostos, os detentores desses dois tipos de riquezas muito menos dispostos a se unirem, contrariamente ao que se dé aqui na Inglaterra. O povo olhou durante muito tempo a posse do dinheiro com maus olhos. ‘Achava que essa forma de propriedade estava relacionada com sua miséria e que ela se agravava, Ela também no era menos detestada pelos representantes dos antigos inte- resses fundidrios, em parte pelas mesmas razdes do povo, mas bem mais -porque as suas propriedades estavam em decadéncia, em decorréncia do luxo ostentatério, as genealo- gias sem fortuna e os titulos vazios de muitos membros da nobreza. Mesmo quando esses representantes da classe fundidria se uniam 4 outra classe (como freqiientemente ocorreu) por lagos de casamento, a riqueza que salvava a familia da ruina passou a manchéda e a fazé-la perder o seu brilho. Dessa forma, as inimizades e os rancores dessas duas classes aumentaram pelas mesmas raz6es pelas quais normalmente as discérdias se dissolvem e os conflitos se transformam em amizades. A arrogincia, en- tretanto, dos ricos sem nobreza ou dos nobres de pouca data aumentava com a causa que a produzia. Suportavam com impaciéncia uma inferioridade cujos fundamentos nao reconheciam. Logo ndo houve mais nada que no fizessem para se vingarem do des- prezo dado pelos seus rivais orgulhosos e para elevar sua riqueza ao nivel e ao prestigio que eles consideravam natural que cla tivesse. Procuraram atingir a nobreza pela Coroa 126 Edmund Burke e pela Igreja. Atacaram-na pelo lado que eles achavam mais vulnerdvel, ou seja, nos bens da Igreja cuja protego era dada pela Coroa. Os bispos e os grandes abades comen- datdrios eram, de fato, salvo raras excegSes, mantidos por essa ordem. Esse estado de guerra, apesar de ndo declarado, era evidente entre os antigos inte- resses fundidrios representados pela nobreza e os novos interesses do capital, a maior forga, j4 que era a mais facilmente mobiliz4vel, achando-se nas mios desses wltimos. O capital, pela sua propria natureza, estd sempre mais disposto ds aventuras e aqueles que © detém esto mais disponiveis que outros a se langarem em certas aventuras. O capi- tal, mais recentemente adquirido, se coaduna melhor com a inovagGes, e é, assim, a ele que recorrem aqueles que desejam a mudanga. Em consondncia com os interesses do capital, uma nova classe surgiu, cujos inte- resses se uniram aos dos primeiros de forma clara e estreita: os escritores politicos. Os letrados, desejosos de distingo, raramente so adversérios da inovagdo. Apés o decli- nio da vida e da grandeza de Luis XIV, eles deixaram de ser procurados, seja pelo Re- gente, seja pelos sucessores da Coroa, e de serem atraidos 4 Corte com os mesmos favo- res e benesses que a eles foram dados, com tanta prodigalidade durante o perfodo espléndido desse reino de fausto. Aquilo que eles perderam com a protego da Corte, procuraram compensar ao se reunirem em uma espécie de corporagdo propria, a qual as duas Academias de Franca e mais tarde, a grande obra da Enciclopédia®® muito contribuiram, Oconluio literario elaborou, dentro de poucos anos, uma espécie de plano regu- lar para a destruigSo da religifo cristd. Perseguiram esse objetivo com tal zelo que, até hoje, ndo foi encontrado um desempenho parecido, a ndo ser entre os apéstolos de al- guns sistemas religiosos. Os seus membros estavam possuidos de um espirito de proseli- tismo fandtico de onde surgiu, como conseqiééncia natural, o desejo de praticar ‘uma perseguicfio bem de acordo com os seus meios* Aquilo que eles no podiam atingir de uma forma direta e imediata, procuraram tramar, e de forma mais lenta, por meio da opinigo publica. Com vistas a dirigir essa opinido, o primeiro passo foi estabelecer um dominio sobre aqueles que a dirigiam. Conseguiram, com muito método e perseveran- a, controlar todos os caminhos que levavam a gléria literdria. Muitos deles, alids, eram nomes de alto prestigio na literatura e na ciéncia. O mundo Ihes fazia justica e, em favor dos seus grandes talentos, perdoava as tendéncias malévolas de seus préprios puincipios. Isso era o verdadeiro liberalismo. A isso eles respondiam, procurando deter em seu préprio beneficio, ou no de seus discipulos, toda reputagao de bom senso, saber e gosto. Ouso dizer que esse espirito estreito e exclusivista nao foi menos prejudicial 4 literatura e ao gosto do que a moral e a verdadeira filosofia. Esses pais do atesmo sao falsos beatos: utilizaram a linguagem dos monges para falar contra os monges. Mas em certos aspectos eles bem pertencem ao nosso século: utilizam toda sorte de intriga para complementar a falta de argumento e espirito. A esse sistema de monopélio literd- rio, foi agregada uma industria infatigdvel de caldnias e descrédito, utilizando todos os * Esse trecho (até o inicio da primeira frase do préximo pardgrafo) e algumas outras partes foram introduzidas por meu filho morto (1803) ao ler 0 manuscrito, Reflexes sobre a Revolugdo em Franca 127 meios, contra todos aqueles que nao pertencem aquela facefio. Fica claro para os que observam o cardter da conduta desse grupo que s6 o poder Ihes falta para transformar a intolerancia de suas palavras e escritos em uma perseguig¢40 que atingiria a proprie- dade, a liberdade e a vida. As medidas timidas e incoerentes que foram tomadas contra eles, muito mais for- mais e por mera conveniéncia, do que como decorréncia de uma irritago séria, nfo en- fraqueceram muito suas forgas, pois nJo amorteceram seus esforgos. O resultado de tudo isso foi que, excitando a oposi¢ao, ou atingindo o sucesso, um zelo violento e ma- Iévolo, de uma espécie nunca vista no mundo, tomou conta completamente de seus es- pfritos e tornou totalmente repulsivas®® suas ocupagdes que, sem isso, teriam sido agradaveis ¢ instrutivas. Um espirito de facgo, de intriga e proselitismo se espalhou por todos os seus pensamentos, palavras e agdes. E como todo o ardor da controvérsia aproxima seus pensamentos da forga bruta, eles cedo comecaram a se corresponder com principes estrangeiros, esperando que, gracas a sua autoridade, que desde o inicio bajularam, pudessem chegar as mudangas que tinham em vista. De inicio, estavam indi- ferentes quanto ao fato dessas mudangas serem introduzidas pelo terror do despotis- mo ou pelo terremoto da revolucdo popular. A correspondéncia entre os membros dessa fac¢%o € 0 ultimo Rei da Prassia® bem esclarece o espitito que 0s animava* O mesmo designio que os fez aproximarem-se de principes, fez com que eles cultivassem o poder do capital na Franca e enfim, gracas, em parte, as facilidades que concediam aqueles cujas fungSes lhes propiciavam os meios de publicidade mais exten- sos, passaram a ocupar cuidadosamente todos os campos da opiniao publica. Os escritores, sobretudo quando atuam conjuntamente e no mesmo sentido, exercem uma grande influéncia sobre 0 espirito publico, isso explica como a alianca entre esses ultimos € os representantes do capital** contribuiu para fazer diminuir 0 6dio e a inveja que 0 powo tinha de tal tipo de riqueza. Esses escritores, como todos aqueles que propagam mudangas, mostravam nos seus escritos uma grande preocupa- 40 pelos pobres e por todas as classes mais humildes da sociedade, enquanto que, nas suas sitiras, procuravam tomar, sempre exagerando, detestaveis os erros da corte, da nobreza e do clero. Eles se tornaram demagogos e desempenharam a fungao de elo entre as disposigdes hostis dos detentores do capital e a agitagfo desesperada dos miseraveis. Como foram, de fato, essas duas classes que parecem ter tido a maior parte da influéncia nos tltimos acontecimentos, sua unifo e sua politica servem para que tome- mos consciéncia, nfo segundo os princfpios legais ou politicos, mas enquanto causas, da furia descomunal pela qual as propriedades das corporagGes eclesiésticas foram ata- cadas e do grande cuidado que, contrariamente aos princfpios desses homens, foi dedi- cado A salvaguarda dos interesses do capital que teve origem na autoridade da Coroa. Todo 0 ddio contra a riqueza e o poder foi artificialmente dirigido, pelos detentores do * Nao desejo chocar os sentimentos morais do leitor ao ter que citar sua linguagem profana, baixa vulgar. ‘** Seus contatos com Turgot™ ¢ com quase todos os homens de finanga. (1803) 128 Edmund Burke capital, contra outros tipos de riqueza. Que outra explicagao poderia ser dada ao fato de que as propriedades eclesidsticas, que estavam sob a guarda da justica e da tradig#0, que resistiram a uma grande sucesso de guerras civis através dos séculos, servissem de pagamento para dividas odiosas, relativamente recentes e contraidas por um governo desacreditado e deposto? A INCONSISTENCIA DO PRETEXTO INVENTADO PARA AUTORIZAR 0 CONFISCO A receita publica seria suficiente para garantir a divida publica? Admitamos que nao fosse suficiente e que uma perda devesse ocorrer em algum lugar. Na medida em que a Ginica garantia que as partes contratantes poderiam ter vislumbrado na €poca do contrato deixa de existir, quem deveria, segundo os princfpios da eqiiidade natural e le- gal, arcar com as conseqiiéncias? Certamente aquele que obteve o crédito ou aquele que cedeu a quantia, mas nunca um terceiro que ndo participou do ato contratual. Eram esses que deveriam sofrer a insolvibilidade por terem sido descuidados ao fazer empréstimos a pessoas inadimplentes ou por terem apresentado fraudulentamente ga- rantias sem validade. As leis no conhecem outra regra de decisio. Segundo, entretan- to, os novos principios dos direitos do homem, as tnicas pessoas que, em boa causa, deverdo pagar so exatamente aquelas que nfo tém nada a desembolsar, tendo que res- ponder pela divida sem terem sido tomadores ou credores, fiador ou hipotecério. Qual a vinculagdo do clero com essas transag6es? O que tinha em comum com qualquer contrato ptiblico além daqueles por ele pactuados? A essas dividas, sim, seu patriménio deveria responder; mas deveria ele responder por algo mais? Nada melhor para perceber os reais sentimentos dessa Assembléia, que sé funciona para promover confiscos, com sua nova justica e sua nova moral, do que um estudo pormenorizado da sua conduta em relacdo a essa divida do clero. Os confisca- dores, fiéis aos interesses do capital pelos quais todos os outros interesses foram traf- dos, declararam o clero competente para legitimamente contrair uma divida. Isso signi- fica declarar que ele era legitimo proprietario dos bens, donde decorria 0 direito de contrair dividas e dar em hipoteca. Dessa forma, os direitos desses cidad&os perse- guidos foram reconhecidos pelo mesmo ato que os violou tao grosseiramente! Se, como afirmei, deverd haver pessoas que, além do publico em geral, devem ga- rantir o déficit govermamental face aos credores do Estado, tais pessoas deverdo ser as que assinaram 0 contrato. Por que, entdo, nfo se confisca os bens dos fiscais do Esta- do*? Por que ndo os bens daquela longa lista de ministros, de financistas, e de banquei- ros que se enriqueciam enquanto a naco se empobrecia em decorréncia de suas opera- gGes e de seus conselhos? Por que ndo os bens do Sr. Laborde” ao invés dos do Arce- bispo de Paris °° que nada teve com a criagZo ou a negociagao dos fundos publicos? Se ¢ entdo para confiscar antigas propriedades fundidrias em beneficio dos detentores atuais do capital, por que se restringir a uma s6 classe social? Desconhego se as despesas do Duque de Choiseue™ deixaram que sobrasse alguma coisa das grandes somas a ele * Tudo foi confiscado a seu tempo. (1803) Reflexdes sobre a Revolugéo em Franga 129 concedidas pela bondade de seu senhor, durante um reinado que muito contribuiu, por todo tipo de prodigalidades, na guerra e na paz, para criar a divida atual da Franca. Se sobrou alguma coisa dessa fortuna, por que nfo confiscé-la? Recordo-me de ter estado em Paris na época do antigo governo. Foi logo depois que (como se acreditava na época) o Duque D’Arguillon® tinha sido tirado das maos do carrasco pelas mios pro- tetoras do despotismo. Ele foi ministro, e também esteve envolvido nos neg6cios daque- la época tao cheia de prodigalidades. Por que ndo vejo seus bens distribu{dos entre os municfpios onde os bens estavam situados? A nobre familia de Noailles®* por longo tempo serviu (honrosamente, sem divida) 4 Coroa da Franga e naturalmente foi alvo de suas prodigalidades, Por que no ouvi falar que seus bens foram utilizados para dimi- nuir a divida piblica? Por que os bens do Duque de la Rochefoucauld®” so mais sagra- dos que os do Cardeal de la Rochefoucauld?® O primeiro é, sem diivida, um homem de virtudes (se nfo existe algo de indigno ao se falar da forma como se utiliza uma pro- priedade), e faz bom uso de suas rendas. Mas nfo lhe falto ao respeito quando digo — e © sei de boas fontes — que 0 uso feito pelo seu irmfo* o Cardeal — Arcebispo de Rouen, de propriedades cujos titulos sfo tio validos como os dele é muito mais adequa- do aos ditames do bem piiblico. Podemos entdo ouvir falar da proscrigfo de tais pessoas e do confisco de seus bens sem sentir horror e indigana¢40? Nao pode ser con- siderado homem alguém que, diante de tais espetéculos, nfo se sente invadido por tais sentimentos e nfo merece o nome de homem livre aquele que se recusa a expri- mios. Poucos conquistadores bérbaros fizeram uma revolugdo to terrivel na proprie- dade. Nenhum chefe das facgdes romanas, ao se apossar dos frutos®® de suas rapinas, colocou no mercado um tal numero de bens dos vencidos. Deve-se dizer, entretanto, na defesa desses tiranos da antigiiidade, que aquilo que eles faziam raramente pode ser considerado como tendo sido feito a sangue frio. O desejo de vinganga, os assassinatos, 0s roubos cotidianos e milltiplos sob a forma de represdlias reciprocas inflamavam suas paixdes, embruteciam seus caracteres, obscureciam suas compreensdes. O medo de ver © poder voltar, com a propriedade, as familias que eles ofenderam de forma a tomar impossivel o perdo, levou-os a se distanciarem de todos os limites da moderagao. PRECAUCOES TOMADAS POR OUTROS TIRANOS PARA REALIZAR CONFISCOS ANALOGOS Os confiscadores romanos, que s6 conheciam a tirania e que desconheciam os direitos do homem, com todos os refinamentos da crueldade, acreditavam pelo menos que se fazia necessdrio colorir as injustigas praticadas com alguma forma de pretexto. Consideravam 0 partido vencido como composto de traidores ou, pelo menos, como tendo agido hostilmente contra a Republica. Encararam esses homens como tendo desonrado suas propriedades, pelos seus crimes. Na Franca, no atual estagio de desen- volvimento do espirito humano, ne hd mais necessidade dessas formalidades. Vocés * Nao era seu irmdo, nem parente, mas esse erro no afeta o argumento. (1803) 130 Edmund Burke penhoram uma renda anual de 5 milhées de libras esterlinas e expulsam de suas casas 40 ‘ou 50 mil pessoas, porque isso é ‘‘tdo-somente sua vontade”. O tirano Henrique VII da Inglaterra era tao esclarecido quanto os romanos Marius e Sila e, nfo tendo estudado nas novas escolas, no sabia que eficaz ins- trumento de despotismo se encontra nesse imenso arsenal de armas ofensivas: os direi- tos do homem. Quando ele resolveu roubar os abades, como a facg%io dos jacobinos roubou os eclesidsticos, comegou por instituir uma comiss4o para examinar os crimes € os abusos dessas comunidades. Como era de se esperar, os relatérios dessa comissio continham verdades, exageros e falsidades. Mas, certo ou errado, continham os abusos € 08 escndalos. Como os abusos, entretanto, podiam ser corrigidos, como os crimes particulares de alguns membros de uma ordem no deveriam levar necessariamente 4 destruicdo dessa prépria ordem e como nesse século de obscurantismo, no se havia descoberto que a propriedade era fruto de um preconceito, todos esses abusos (e havia muito deles) foram t4o-somente considerados com um fundamento suficiente para se propor um confisco como era do interesse geral. Isso explicava a busca de uma renin- cia formal a todos esses bens. Um dos tiranos mais decididos que a Histéria registra se curvava a essas necessidades (corrompia os membros das duas casas servis com a espe- ranga de dividir os despojos e pela promessa de isengdo perpétua de impostos), antes de tentar 0 confisco, por um ato do Parlamento. Se o destino o tivesse reservado a0 nosso tempo a possibilidade de empregar quatro termos técnicos para justificar sua conduta, nada mais simples do que declamar: Filosofia, Luz, Liberdade, Direito do Homem! E para mim impossivel elogiar esses atos de tirania que, malgrado suas cores fal- sas, nunca foram até hoje defendidos por ninguém; entretanto, nfo foram essas cores falsas uma homenagem prestada pelo despotismo 4 justiga? O poder que estava acima de todo medo e de todo remorso nfo se elevava acima de toda vergonha? Na medida em que a vergonha continua a existir, a virtude e a moderacdo nao estardo totalmente desaparecidas do espirito e do coraga0 dos tiranos. Estou certo de que todos os homens honestos se sentirdo concemidos nas refle- xGes que esses acontecimentos provocam e rezardo, todas as vezes que esses atos de despotismo vierem a sua mente, para que essas situacOes se afastem do mundo: May no such storm Fall on our times, where ruin must reform. Tell me (my muse) what monstrous, dine offense, what crimes could any Christian King incense To such a rage? was’t luxury, or lust? Was he so temperate, so chast, so just? . Were these treir crimes? They were his own much more; But wealth is crim enough to him that’s poor.’ E essa mesma riqueza, sempre considerada pelos déspotas indigentes ¢ vidos, como uma trai¢do e um crime de lesa-majestade, que levou os franceses a tentar violar a propriedade, a lei e a religiio, reunidas em um mesmo objeto. Mas estaria a Franca em uma tal situagdo de miséria e de ruina, que ndo haveria, para salvaguardar sua exis- téncia, outro recurso a no ser a rapina? Gostaria de ser esclarecido sobre esse ponto. Quando os Estados-Gerais se reuniram, estariam as finangas francesas em tal situa¢fo ReflexGes sobre a Revolug&o em Franga 131 que ndo se poderia realizar um saneamento justo em todos os departamentos, possi- bilitando, assim, uma restaurago de uma reparticfo equitativa dos encargos entre todas as Ordens? Se uma tal imposi¢do fosse possivel, seria bem provvel que esse equi- Iibrio fosse atingido. O Sr. Necker'™ no orgamento proposto perante as Trés Ordens reunidas em Versailles, descreveu em detalhes o estado financeiro da Franca*. SE A SITUAGAO FINANCEIRA DA FRANCA JUSTIFICAVA O CONFISCO Nao é extremamente dificil acreditar que ndo era necessdrio recorrer a uma nova imposigdo para por as despesas do pais em equilibrio com as suas receitas. O orgamen- to do Sr. Necker éstabeleceu que as despesas permanentes de toda natureza, compreen- didos os juros decorrentes de um novo empréstimo de 400 milhées,eramde ....... 531.444,000 libras, que a receita fixa era de 475.294.000 libras o que dava um déficit de $6.150,000 libras, ou seja 2.200.000 libras esterlinas. Para cobrir esse déficit, ele mencionou a necessidade de se fazer certas economias e aumentos na receita (conside- rados como absolutamente certos) como uma soma bem superior a esse déficit e concluiu sua apresentaco com muita énfase: “Que pais, senhores, sem impostos e com to-somente objetos invisiveis conseguiu fazer desaparecer um déficit que causou tanto alarme na Europa!” (p. 39). Em relagdo ao reembolso, 4 amortizagao da divida, a0s outros objetivos de interesse do crédito puiblico e, ainda, aos outros arranjos poli- ticos apresentados no discurso do Sr. Necker, era possivel acreditar que um imposto modesto cobrado proporcionalmente entre todos os cidaddos sem distingdo nao pu- desse cobrir todas as exigéncias. Se essa andlise foi incorreta, a Assembléia cometeu o mais grave erro ao forgar 0 Rei a aceitar como ministro e, apés a deposigdo do Rei, ao empregéo como seu minis- tro, um homem que foi capaz de abusar to claramente da confianga de seu senhor e da Assembléia, em uma gestdo da mais alta importancia e de sua algada. Mas se essa andlise estava correta (e o grau de respeito que tenho pelo Sr. Necker me impede de duvidar), o que se poderia dizer de pessoas que, ao invés de utilizar uma contribuiggo moderada, razodvel e geral, langaram mfos do sangue frio e sem nenhuma necessidade de um cruel confisco de bens particulares? SE A ATITUDE DO CLERO JUSTIFICAVA O CONFISCO O Clero ¢ a Nobreza, baseando-se nos seus privilégios, tentaram uma recusa a tal contribuigdo? Nao, certamente. O proprio clero tinha previsto as inteng6es do Terceiro Estado. Antes da reuniZo dos Estados, ele tinha, nas suas instrugdes, expressamente indicado a todos os seus deputados a renunciarem a toda imunidade que o pudesse por em uma posigao privilegiada. O Clero foi, nessa rentincia a seus privilégios, mais expli- cito que a Nobreza. Imaginemos que o déficit estivesse em torno de 56 milhdes (ou 2.200.000 libras esterlinas) assim como Necker estimava. Imaginemos também que * Relatério do Senhor Diretor-Geral das Finangas, feito por ordem do Rei em Versalhes a $ de maio de 1789. 132 Edmund Burke todos os recursos por ele opostos a esse déficit fossem ficgo sem furtdamentose que a Assembléia ou seu comité preparatério* de jacobinos tivesse, por si s6, 0 direito de im- por todo o onus desse déficit sobre o Clero, mesmo admitindo tudo isso, um déficit de 2.200.000 libras esterlinas nao justifica um confisco de 5 milhdes. Uma cobranga de 2.200.000 libras sobre 0 Clero seria por si s6 opressiva ¢ injusta, mas ndo arruinaria aqueles que teriam de pagé-la e isso foi que fez com que ela ndo respondesse aos desfg- nios de seus criadores. E provavel que haja pessoas que, nfo tendo conhecimento da situagao francesa e ouvindo falar que a Nobreza e o Clero tinham privilégios fiscais, fossem levadas a acre- ditar que antes da Revolugo essas Ordens em nada .contribuiam para as despesas do Estado, algo que é totalmente incorreto. E certo que nao contribufam em partes iguais entre si, nem em relago ao Terceiro Estado. Ambas, entretanto, muito contribuiam. Nem a Nobreza, nem o Clero estavam isentos dos impostos de consumo, dos impostos alfandegarios, nem de nenhum dos impostos indireros que na Franga como na Inglater- ra compunham a maior parte da receita pablica. A Nobreza pagava a captacdo. Pagava também um imposto territorial que chegava a trés ou quatro shillings por libra, ou seja — dois impostos diretos que nfo eram leves. O Clero das provincias anexadas pela Franga por direito de conquista — que perfazia quase 1/8 do total em extensdo mas que em relago a receita contribufa muito mais pagava, como a Nobreza, a captago e a vintendria. O Clero das antigas provincias no pagava a captago que jé tinha resgatado com uma soma de quase 24 milhGes, pouco mas de 1 milhdo de libras esterlinas. Ele estava isento das vintendrias, mas fazia doag6es, contraia dividas pelo Estado e estava submetido a outras imposig6es, perfazendo cerca da terca parte da sua receita liquida. Deveria pagar anualmente mais 40.000 libras para igualar a contribuig&o de Nobreza. Quando o terror dessa abominavel prescrigdo foi imposta ao Clero, esse fez, por inter- médio do Arcebispo de Aix'”, uma oferta de contribuigdo que pelo seu tamanho de- veria ser recusada. Ela era, entretanto, mais vantajosa para os credores piblicos do que as implicagdes do confisco. Por que, ento, ndo foi aceita? A razdo é simples. Nao se queria que a Igreja servisse ao Estado, pois se pretendia a destruiggo da Igreja. Ndo se deveria ter escripulos de, para destruir a Igreja, ter que destruir o pais. Seria diffcil atingir um dos principais objetivos visados, se 0 sistema da extorsdo fosse adotado em vez do confisco. A criago de uma nova propriedade fundidria, soliddria 4 nova Repé- blica e devendo-lhe sua existéncia, teria se tornado impossivel. Essa foi a razo pela qual esse extraordindrio resgate nao foi aceito. O PERIGO DO CONFISCO Cedo foi percebida a loucura desse projeto de confisco da forma como foi feito. Por no mercado, de uma s6 vez, uma tal quantidade de bens iméveis, aumentada ainda pelos imensos dom{nios da Coroa, significou a destruigfo dos lucros visados com 0 confiscg ao depreciar as terras e com elas toda a propriedade fundiéria na Franga. Des- * Na Constituiggo escocesa, na época dos Stuarts, havia um comité que preparava as.leis; nenhuma lei poderia ser aprovada, sem ter passado antes por esse comité que era chamado lords of articles. Reflexées sobre a Revolugdo em Franga 133 viar subitamente dd comércio todo 0 dinheiro que circulava na Franga para a compra de terras foi um outro mal que se juntou ao precedente. Que partido devemos tomar? A Assembléia ao perceber os efeitos nefastos e inevitéveis da venda projetada, reveria a oferta do Clero? Nada poderia forgé-la a seguir um caminho que, segundo sua visio, desonraria qualquer aparéncia de justica. Renunciando a toda esperanga de venda total imediata, procurou se ater a um novo projeto: o de aceitar uma troca dos fundos publi- cos pelos bens da Igreja. Esse projeto, entretanto, apresentava uma grande dificuldade quanto & equiparagio dos objetos de troca. Outros obstdculos também surgiram que levaram a Assembléia a novos projetos de venda. Os municfpios passaram a ficar de alerta, j4 que rejeitavam totalmente o projeto de reunir em Paris, nas maos dos proprie- tarios dos fundos, o produto da pilhagem de todo o reino. Muitos desses munic{pios foram reduzidos, sistematicamente, 4 mais deplordvel indigéncia. Nao havia dinheiro em parte alguma. Foi esse 0 procedimento que os conduziu ao ponto onde gostariam de vé-los. Suspiravam por qualquer moeda que pudesse socorrer suas industrias falidas. Resolveu-se ento, admitir que tivessem acesso a uma parte dos despojos, o que torna- va o primeiro projeto (se é que alguma vez ele foi seriamente encarado) completamente impraticdvel. As presses politicas vinham de toda parte. O Ministro das Finangas reite- tava, veementemente, a necessidade de fundos. Dessa forma, pressionada por todos os lados, a Assembléia, renunciando a seu projeto de converter os banqueiros de Paris em abades e bispos, contratou, ao invés de pagar a antiga divida, um novo empréstimo a 3%, criando um novo meio-circulante baseado na venda eventual dos bens da Igreja'® Ela emitiu esse papel-moeda para satisfazer, em primeiro lugar e principalmente, as pressdes feitas pelo Banque d'Escompete'™, esse grande produtor, essa grande fabri- ca de papel de sua riqueza ficticia. O CURSO FORCADO DA MOEDA Os despojos da Igreja se tornaram dessa forma, para a Assembléia, a unica fonte de todas as suas operag6es financeiras, o princfpio vital de toda a sua politica, a unica garantia da existéncia de seu poder. Tornou-se necessdrio, ent4o, por todos os franceses € por quaisquer meios, mesmo os mais violentos, na mesma condigdo e de envolver a nacdo inteira em um mesmo interesse capaz de sustentar esse ato € a autoridade daque- les que © praticaram. A fim de forgar aqueles que se opuseram a participar da pilha- gem, a Assembléia tornou obrigat6ria a aceitacdo do papel-moeda em todos os paga- mentos. Aqueles que consideram que essa medida era o centro para onde convergiam todos os seus projetos — e de onde deveriam decorrer todas as suas decisSes — nfo pen- sarfio que eu tenha me estendido demais sobre os atos da Assembléia Nacional. OCONFISCO APLICADO AS COMPENSACOES A SEREM CONCEDIDAS AOS DETENTORES DE CARGOS JUDICIARIOS A fim de suprimir todos os lagos entre a Coroa e a Justiga Pablica e a levar todo © pais a obedecer passivamente aos ditadores de Paris, foram abolidas aquelas antigas camaras judiciais tio cheias de independéncias: os Parlamentos,'°S Na medida em que 134 Edmund Burke os Parlamentos existiam, era evidente que 0 povo podia, a qualquer momento, apelar € se colocar sob a protegfo de suas antigas leis. Deve-se levar em consideragdo, entretan- to, o fato de que os magistrados e os dignatariosdas cortes suprimidas pagaram um pre- ¢0 muito alto por seus cargos e pelos servigos que prestavam, j4 que recebiam uma res- tituigdo bem baixa. O confisco puro e simples foi bom tdo-somente para 0 Clero pois, para os homens da lei deve ser observada uma aparéncia de eqilidade e as compensa- gdes que devem ser aplicadas perfazem uma soma imensa. Essas compensagdes passa- tam a formar parte da divida nacional e seria liquidada com a ajuda do mesmo fundo inesgotavel. Os jurisconsultos 0 sentirfo sob a forma desse novo papel da Igreja, que deve se coadunar com os novos princfpios da jurisprudéncia e da legislagdo. E necess4- rio que esses magistrados destitufdos associem-se ao martirio dos eclesidsticos ou que se deixem reembolsar com um fundo ou de uma maneira que deve ser encarada com horror por todos aqueles habituados aos antigos princfpios da Jurisprudéncia e que ti- nham sido os guardiGes jurados da propriedade. Os proprios membros do Clero devem morrer de fome ou ter de receber sua pensdo miserdvel na forma de um papel deprecia- do que porta o caréter indelével do sacrilégio e constitui o simbolo da sua propria ruf- na. A titania aliada & bancarrota nunca ofereceu, em qualquer pafs ou em qualquer épo- ca, um exemplo de ofensa mais violenta ao crédito publico, 4 propriedade, a liberdade do que © que ocorreu na Franca pela obrigatoriedade do curso forgado de seu papel- moeda. ‘Ao fimal de todas essas operagbes se descobre o grande segredo (se € que se pode induzir algo das manobras da Assembiéia), ou seja — que os bens da Igreja nfo deviam ser, no sentido préprio da palavra, vendidos. Segundo uma recente resolugao da Assem- bléia Nacional, eles deveriam ser.cedidos 4 maior oferta, mas deve ser observado que tdo-somente uma certa parte do prego de compra deveria ser depositado. Um periodo de doze anos poderia ser concedido para o pagamento do resto. Dessa forma, 0s com- pradores potenciais entrariam imediatamente na posse dos bens mediante o depésito de um adiantamento. Isso se tornou, de certa forma, uma espécie de doagdo que lhes foi feita, uma propriedade feudal que eles cuidariam para o novo governo. Esse projeto foi obviamente para dar oportunidade a muitos compradores desprovidos de di- nheiro. A conseqiiéncia disso seré que os compradores, ou mais especificamente os concessionfrios, pagarfo no somente sobre as rendas auferidas, e que poderiam muito bem ser recebidas pelo Estado, mas também sobre a venda a prego vil dos materiais de construcdo, sobre o produto da devastacdo das matas e sobre todo o dinheiro que, suas mos j4 habituadas as extorsGes da usura, poderdo arrancar dos camponeses mise- raveis. Esses camponeses serfo abandonados 4 atitude discriciondria, mercendria e arbi- tréria de alguns homens, que serdo estimulados a pressioné-los de todas as formas pelo desejo insacivel de ver aumentar seus lucros auferidos de uma propriedade que eles de- tém da autoridade precdria do novo governo. Quando a fraude, a impostura, a violéncia, a rapina, os incéndios, os assassinatos, 08 confiscos, as prisSes e todas as tiranias e crueldades empregadas para fazer e susten- tar essa revolugdo produzem seu efeito natural que é o de chocar os sentimentos mo- rais de todos os espiritos virtuosos e moderados, os sustentdculos desse sistema filos6- fico forgam de sibito as vozes a fazer uma declamagdo contra o antigo governo monér- Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga 135 quico da Franga. Apés terem denegrido o poder deposto, passaram a considerar que to- dos aqueles que desaprovavam os novos abusos, deviam ser necessariamente partidarios dos antigos, de forma a que todos os que reprovavam os seus sistemas violentos de li- berdade, sejam considerados como advogados da servidéo. Nao nos devemos surpreen- der ao vé-los empregar esse embuste vil ¢ miserdvel, pois eles so obrigados a isso. Nada poderia melhor conciliar os ideais dos homens a seus atos e projetos do que a persuasio de que nfo existe um terceiro partido entre eles ea tirania mais odiosa que as narrati- vas da Histéria e as inveng6es dos poetas permitem imaginar. Tudo isso merece o nome de um sofisma: nada além do que a insoléncia. Esses senhores, ap6s terem percorrido todo o mundo teérico e pratico, nJo teriam ouvido dizer que nada existe entre o des- potismo de um monarca e o despotismo da multidao? Nunca ouviram falar de uma mo- narquia governada por leis, controlada por uma grande riqueza e pelos altos dignatérios herdeiros da nagdo, e elas proprias submetidas ao controle regular da razdo e dos senti- mentos do povo, que age por meio de um Orgdo apropriado e permanente? Ser4 impos- sivel, entfo, sem crimes e sem loucuras, preferir um tal governo assim composto a qual- quer outro de base extremista, ou acreditar que uma nagfo perdeu totalmente a sabe- doria ¢ a virtude, ao achar conveniente cometer milhares de crimes e se submeter a tan- tos males para evitar obter um governo naquelas bases acima descritas ou mesmo, jd 0 possuindo, deixar de aprimori-lo? Sera que é to Sbvio que a democracia é a tnica for- ma de governo suportdvel, que ndo seja permitido duvidar de seus méritos, sem ser con- siderado amigo da tirania, ou seja, inimigo do género humano? SOBRE A DEMOCRACIA E SE ELA CONVEM A UM GRANDE PAIS. SEUS EFEITOS SOBRE A LIBERDADE DOS CIDADAOS Eu nfo saberia qualificar a autoridade que atualmente governa a Franca. Ela se cré uma democracia pura, apesar de eu crer que ela em breve se tornard uma igndbil e malévola oligarquia. Procuraremos, entretanto, analis4-la segundo os principios que ela diz seguir. Nao reprovo nenhuma forma de governo por simples princfpios abstratos. Pode haver casos em que uma democracia pura seja um governo necessério, Pode haver casos também (poucos e em circunstdncias bem particulares) em que ela seja claramen- te desejavel. Nao creio, entretanto, que esse seja 0 caso da Franga ou de qualquer outro grande pais. Até o presente, nunca tivemos exemplos de democracias dignas de nota. Os antigos a conheceram bem melhor do que nés. Nao sendo eu totalmente ignorante sobre 0s autores que jd analisaram essas constituigdes e que melhor as compreenderam, no posso deixar de me colocar ao lado deles e afirmar que assim como a democracia absoluta, a monarquia absoluta também ndo pode ser posta entre as formas legitimas de governo. Longe de considerar a democracia absoluta como uma forma sadia de re- publica, eles a encaram como uma forma de degenerescéncia e de corrupgdo. Se bem me recordo, Arist6teles observava que a democracia apresenta, em muitos aspectos, uma grande semelhanga com a tirania* Estou certo, entretanto, que em uma democra- cia, a maioria dos cidad4os ¢ capaz de exercer, sobre a minoria, a mais cruel das opres- sOes, todas as vezes que ocorram, 0 que pode ocorrer freqiientemente, grandes divisSes. Acredito, também, que essa dominag4o exercida sobre a minoria, se estendera sobre 136 Edmund Burke um namero maior de individuos e seré conduzida com muito mais severidade do que, de modo geral, poderia ser esperado da dominago de uma s6 coroa. Os individuos que sofrem uma perseguicdo popular dessa ordem merecem muito mais piedade do que as. vitimas de outra espécie de perseguigdo. Pois aqueles que sofrem a perseguigdo de um principe véem o fogo de suas feridas serem aplacadas pelo balsamo que ¢ a compaixffo da humanidade — 0 aplauso do povo reanima suas forgas — enquanto aqueles que so maltratados pela multidao so privados de toda consolagdo externa, Eles parecem estar abandonados pela humanidade, esmagados por uma conjuntura criada pelos de sua espécie. Admitamos, entretanto, que a democracia nfo possua essa tendéncia inevitdvel que a leva a uma tirania de partido; admitamos que ela possua, na sua forma pura, as- pectos tdo benéficos quanto ela possuiria ao entrar em composi¢ao com outras formas de governo; serd, entdo, que a monarquia nao tem, por seu lado, algo que a possa reco- mendar? Eu ndo cito muito freqiientemente Boligbroke, j4 que suas obras nao deixa- ram nenhuma impresséo maior em mim'®*. Ele é um escritor superficial e pretensioso, mas fez, entretanto, uma observacdo que € profunda e sblida. Ele afirmou que prefere a monarquia a outras formas de governo, porque é mais facil imprimir aspectos republi- canos em uma monarquia do que qualquer coisa mondrquica em formas republicanas. Eu creio que ele tem toda raz4o, pois a historia ratifica esse fato, que se coaduna muito bem com a teoria. O ANTIGO GOVERNO DA FRANCA E SEUS EFEITOS SOBRE A PROSPERIDADE DO PAIS SEGUNDO A POPULAGAO E A RIQUEZA Sei como ¢ fécil se falar sobre os erros de um governo deposto. Ao ocorrer' uma tevolugdo, os bajuladores vis de ontem se tornam os criticos austeros de amanha. Aque- les espiritos mais calmos e independentes, quando tém que analisar algo to importan- te para a humanidade como é um governo, desdenham o papel dos humoristas e satiri- cos. Julgam as instituigdes humanas da mesma forma como avalisam o cardter humano, levando em consideragdo que o bem e o mal estdo presentes e misturados em tudo que € mortal: nas instituigdes e nos homens. O governo da Franga, ainda que o consideremos e creio que justamente, como a melhor das monarquias absolutas, estava entretanto, cheia de abusos. Esses abusos fo- ram-se aciunulendo por muito tempo, aliés, como deve acontecer em toda monarquia que ndo se encontra submetida a uma inspe¢do constante de uma representagdo popu- lar. Nao ignoro nem os erros, nem os defeitos do governo que foi deposto na Franca e * Quando escrevi este trecho, citei de meméria a passagem que, hd muito tempo, havia lido. Um dos meus amigos achou-me o trecho de Arist6teles que é 0 seguinte: “Seu cardter moral é 0 mesmo; as duas exercem o despotismo sobre a melhor classe dos cidadaos, e 0 decretos so em uma aquilo que os éditos e as decisées sfo na outra. Também nao é raro que 0 demagogo e 0 cortesio sejam identicamente semelhantes; em todo 0 caso, ha sempre entre eles uma estreita analogia. Sao eles que detém o principal do poder, 0s favoritos com um monarca absoluto, € 08 demagogos com um povo como o que descrevi.” Aristételes, Pol, livro IV, cap. 4. Reflexdes sobre a Revolugdo em Franca 137 nem a minha natureza nem a politica me levam a fazer um inventério daquilo que é um objeto natural e justo de censura. Mas nao € hora de se falar dos vicios dessa monar- quia, mas de sua existéncia. Seré verdadeiro, entretanto, que o governo da Franca esta- va em uma situag4o que nfo era poss{vel fazer-se nenhuma reforma, a tal ponto que se tornou necessdrio destruir imediatamente todo 0 edificio e fazer tébua rasa do passa- do, pondo no seu lugar uma construg4o te6rica nunca antes experimentada? A Franga tinha, no infcio de 1789, uma opinido diferente. As instrugSes enviadas aos deputados aos Estados-Gerais pelos diversos distritos do reino, estavam cheias de projetos de re- forma para 0 governo, mas nada que pudesse prever a sua destrui¢ao. A menor insinua- go de destruir a monarquia seria, na época, recusada com uma expressdo de horror e desprezo. Os franceses, entretanto, foram levados aos poucos, por estdgios ¢ situagdes que se eles pudessem ver no conjunto, jamais teriam aceito. Quando aquelas instrugdes foram dadas, estava fora de divida que realmente havia abusos e era necessério algumas reformas — nfo se pode duvidar disso hoje. Mas no lapso de tempo ocorrido entre a época do envio das instruges e a da revolugdo, as coisas mudaram, e dessa forma, a questo basica se torna a de saber quem tem razdo, aqueles que propuseram reformas, ou aqueles que tudo destrufram. ‘Ao ouvir a fala daqueles que descrevem a monarquia que um dia existiu na Fran- ¢a, facilmente se imagina que eles esto falando da Pérsia ensangiientada pelo sabre feroz de Kouli-khan,!°7 ou, pelo menos, que eles descrevem 0 despotismo andrquico da Turquia onde as mais belas regiGes da terra, com o clima mais ameno, so devasta- das pela paz muito mais do que qualquer pais pode sé-lo pela guerra; onde as artes ndo existem, as inddstrias estdo paradas, onde a ciéncia néo existia e a agricultura estava em decadéncia; onde a raga humana se dissolveu sob os olhos de um observador. Ser4 que essa era a situagfo da Franca? O tinico meio que tenho é de me reportar aos fatos; e eles ndo esto de acordo com a verdade desse quadro. Entre coisas malévolas, hé algo de bom na propria monarquia e a monarquia francesa haveria de descobrir corretivos, na religifo, nas leis, nos costumes, na opinido, para os males que nela havia; j4 que, se ngo tinha uma constituigéo livre e portanto uma boa constituigso, ela tinha, do despo- tismo, mais aparéncia do que realidade. APOPULAGAO Entre os critérios de avaliagao da influéncia de um governo em um pais, 0 estado de sua populagdo nfo me parece de menor importancia. O governo de um pais, cuja populagdo é grande e que aumenta progressivamente, nao pode ser muito mau. Hé ses- senta anos, os Intendentes da Franga fizeram, entre outras coisas, uma estat{stica da populacao de seus respectivos distritos'™. Nao tenho os relatérios em mos, pois fo- ram muito volumosos, devo entfo recorret 4 memoria, e, em conseqiiéncia, com uma certa margem de erro, mas creio que a populagdo da Franga, naquela época, foi avalia- da em 24 milhGes de habitantes. No final do dltimo século, ela foi calculada generica- mente em 18 milhOes, Baseado nessas estatfsticas nfo se pode afirmar que a Franca seja despovoada. O Sr. Necker que tem uma autoridade to respeitavel quanto a dos Intendentes calcula, em bases que parecem justas, que a populacdo da Franca era em 138 Edmund Burke 1780 de 24.670.000 de habitantes. Era esse, entretanto, o nivel mais alto de populacao que atingiu a Franca ainda durante o antigo regime? O Dr. Price € de opinifo que 0 aumento da populacfo nfo atingiu seu nivel mdximo naquele ano, e concordo como Dr. Price, que tem muito mais autoridade nessas especulagdes, do que em politica ge- ral. Baseando-se nos dados do Sr. Necker, esse pastor est4 absolutamente convencido de que, depois da época em que o ministro fez seu célculo, a populaco francesa au- mentou rapidamente, e de uma tal forma que nfo se poderia avaliar que em 1789 ela fosse menor do que 30 milhSes de habitantes. Procurando-se nfo exagerar — ¢ creio que isso seja necessdria em relagdo aos cdlculos entusidsticos do Dr. Price, nfo divido que a populacfo tenha aumentado consideravelmente nesse Ultimo perfodo, mas acre- dito que ela s6 tenha aumentado entre 24.660.000 e 25.000.000, o que d4 uma popu- lago de 25 milhes de habitantes, em estado de progresso crescente, repartida sobre uma superficie de cerca de 27.000 Iéguas quadradas, algo que ¢ realmente imenso. E, por exemplo, proporcionalmente muito mais do que a populagdo dessa ilha, ou mesmo que a da Inglaterra que ¢ a parte mais povoada do Reino Unido. Nao é verdadeiro, entretanto, que a Franga tenha em toda a sua extensfo uma terra fértil. Vastas areas sido estéreis e sofrem de algumas desvantagens naturais. Nas partes mais férteis desse territ6rio, a densidade da populaggo corresponde, ao que pare- ce, & facilidade da natureza* A municipalidade de Lille (admito que esse seja o exem- plo mais marcante) tinha, h4 dez anos, por volta de 734.600 habitantes em um territ6- rio de 404 léguas ¢ meia, o que d4 uma média de 1.772 habitantes por légua quadrada, Para o resto da Franca, a média 6 de 900 habitantes por légua quadrada. Nao atribuo essa cifra populacional ao governo deposto, porque nao gosto de pres- tar homenagem aos homens naquilo que é devido, em grande parte, 4 bondade da Provi- déncia. E impossivel que esse governo deposto tenha posto obstéculo ao desempenho das causas (quaisquer que sejam, natureza no solo ou hdbitos industriosos do povo) que produziram um to alto grau de desenvolvimento do espaco por todo 0 reino produziram, em certas regides, um aumento t4o grande da populacdo, é mais do que provavel, portanto, que esse governo as tenha favorecido. Jamais acreditaria que um governo seja a pior das instituigSes politicas, na medida em que, por experiéncia, é sa- bido que ele contém um princfpio favordvel ao crescimento da populagdo — por mais difuso que seja esse princfpio. ARIQUEZA Um outro critério, que no se deve menosprezar para se caracterizar um governo como benéfico ou nfo, é a riqueza do pafs. A Franga ultrapassa de muito a Inglaterra no que se refere a populagfo, € creio que sua riqueza ndo seja comparativamente tio inferior @ nossa, tao pior distribufda e muito menos ficil de ser posta em circulagao. Creio que a diferenca entre os governos seja uma das causas que d4 vantagens, nesse ca- 80, a Inglaterra. Refiro-me a Inglaterra e nfo ao conjunto das possesses britanicas que, se comparadas com as da Franca, diminuiriam um pouco, em favor da Gltima, essa Administragdo das Finangas da Franca”, pelo Sr. Necker, Vol. I, p. 288. Reflexdes sobre a RevolugSo em Franca 139 diferenga de riquezas. Mas essa fortuna, que nfo pode ser comparada a da Inglaterra, pode constituir-se ainda em um nivel de opuléncia realmente notavel. O livro que o Sr. Necker publicou em 1785* contém uma colegao cuidadosa e interessante de fatos rela- tivos & economia e matemética polfticas, sobre os quais ele tece consideragdes sdbias e descompromissadas. Nessa obra, a idéia que se apresenta da Franga nao é a de um pafs cujo governo esteja cheio de vicios e abusos, que nfo se possa pensar em suprimi- Jos a nfo ser pelo remédio incerto e violento de uma revolucao geral. Ele afirma que entre os anos de 1726 e 1784, foi aplicado no meio circulante francés uma quantia de ouro e prata que se elevou a 100 milhdes de libras esterlinas** E imposs{vel que o Sr. Necker tenha-se enganado quanto & quantidade de metal aplicado, j4 que isso ¢ baseado em relatérios dos escritorios competentes. As argumen- tages desse financista de talento sobre a quantidade de ouro e de prata que havia em circula¢do quando ele escreveu em 1785, ou seja por volta de quatro anos antes da de- posigdo e prisfo do Rei da Franga, no apresentam uma certeza absoluta, mas elas se baseiam em fundamentos que aparentam ser to sdlidos que no & fécil de deixar de dar a eles um grau considerdvel de credibilidade. O Sr. Necker estimou em torno de 88 milhes de libras esterlinas 0 numerdrio, ou o que chamamos espécies, que entao real- mente existiam na Franga. Uma grande acumulagdo de riquezas em um s6 pais, por mais extenso que seja! Ele nfo podia imaginar o refluxo da afluéncia de numerério, que ele contava no futuro como sendo da ordem de 2% anualmente sobre o total das espécies introduzidas na Franca depois da época de seu célculo. Deve ser afirmado que, no infcio, algo benéfico e adequado conduziu & introdu- g40, nesse reino, de todo o metal que circulava nas suas moedas € que logo apés, algo to eficaz tenha conservado 0 enorme fluxo de riquezas que, no cAlculo do Sr. Necker, circulava no pais. Mesmo que ponhamos certas redugdes razodveis aos calculos do Sr. Necker, o resultado ainda seria uma soma imensa. Tal estado de coisas no pode ser explicado tendo o pafs uma inddstria desencorajada, uma propriedade sem seguranga, um governo verdadeiramente destrutivo. Na verdade, quando levo em consideracdo 0 aparato do Estado francés, a variedade e a opuléncia de suas cidades, a grandeza de suas estradas e pontes, as vias de navegacdo que abrem o pafs ao comércio, um territé- rio compacto de tdo grande extensfo; quando vejo os trabalhos empreendidos nos seus portos € toda a sua frota, de guerra ou comercial; quando considero o nimero de suas fortificagdes, construfdas com tanta audacia e habilidade, conservadas com tanto sacri- ficio e apresentadas a seus inimigos como algo inexpugndvel; quando me recordo que todas as terras desse pafs sfo cultivadas a tal ponto que todas as boas culturas tém seu lugar na Franga; quando penso sobre a alta qualidade de suas manufaturas que ndo estdo em desvantagens com as nossas e que, em alguns ramos, sdo as melhores; quando contemplo as grandes fundagGes de caridade publica ou privada; quando considero o grau em que se encontram as artes que embelezam e adocam a vida; quando enumero os homens ilustres que ela produziu, seja pela gloria das armas, seja pela grandeza de * Da Administragdo das Finangas da Franca, pelo Sr. Necker. ** Vol. Ill, cap. 8e cap. 9. 140 Edmund Burke seus conselhos, o grande némero de jurisconsultos e de tedlogos famosos, seus filéso- fos, seus poetas, seus oradores sacros ¢ profanos, — algo subjuga minha imaginagdo que & atingida por um temor respeitoso, impede meu espfrito de pronunciar de sébito uma condenagio inconsiderada e me obriga a fazer uma pesquisa séria sobre os vicios que poderiam ser tZo grandes a ponto de permitir, de uma sé vez, a destrui¢go de um edifi- cio tdo considerdvel. Nada nesse quadro francés me faz lembrar o despotismo da Tur- quia. Nao vejo nada que possa nos levar a crer que esse regime seja t4o opressivo, to corrompido e desprez{vel a ponto de nfo poder ser submetido a nenhuma reforma. ‘Nao! Sou obrigado a crer que um governo que produziu tais resultados mereceria uma constituigao do tipo inglés para que pudesse revelar ainda mais o que tinha de excelen- te, corrigir seus erros e aumentar seus meios. Todos aqueles que analisaram a conduta do governo deposto nfo puderam deixar de observar, apesar das inconstancias e flutuacdes naturais a um tal empreendimento, um esforgo sério em busca de uma prosperidade e aprimoramento nacionais. Nao se pode deixar, também, de afirmar que esse governo tentou corrigir durante muito tem- Po as préticas e usos abusivos que foram introduzidos na mquina estatale que, tam- bém, 0 poder ilimitado que 0 soberano possuia sobre os seus stiditos — algo inconcilia- vel, sem duvida, com a lei e a liberdade — foi pouco a pouco amenizado durante o seu exercicio. Muito longe de recursar as reformas, esse governo esteve disposto, com uma facilidade reprovavel, a dar ouvidos a todos aqueles que propunham projetos e planos. O seu espirito de inovag4o sempre recebeu encorajamentos, mas logo ele se virou con- tra aqueles que o protegiam e causou finalmente a sua morte. E t¥o-somente justo afir- mar que a monarquia deposta, e nisso ndo hd nada de exaltago, pecou mais por agili- dade e falta de discernimento, do que por um defeito de diligéncia e amor pelo bem piiblico. E também justo e certo comparar o governo da Franga nos ultimos quinze ou dezesseis anos com todos os outros governos inteligentemente constitufdos em outros paises, na mesma época ou em qualquer outra época. Se compararmos esse reino a to- dos os precedentes, segundo o ponto de vista da prodigalidade nas despesas, do rigor no exercicio do poder, ndo creio que juizes imparciais dessem crédito as boas inten- ges daqueles que insistem sempre sobre as doagdes aos favoritos, as despesas da corte os horrores da Bastilha durante o reinado de Luis XVI* E uma questdo muito duvidosa a de saber-se se 0 sistema de governo — ser4 que merece esse nome? — construfdo sobre as ruinas da antiga monarquia, seré capaz de administrar a populagdo e a riqueza do pafs que tomou sob sua guarda. Ao invés de ter ganho qualquer coisa com essa mudanga, eu creio que ndo tardar4 muito para que a Franga retorne a seu antigo caminho, apés ter-se recuperado dos efeitos dessa revolu- 0 filos6fica. Se o Dr. Price achar conveniente fazer, dentro de alguns anos, uma ava- liagdo da populac#o francesa, seré muito dificil aferir aquela estimagao fantasiosa de 30 milhSes de habitantes em 1789, a de 26 milhdes feita pela Assembléia para o mes- mo ano ou mesmo os 25 milhdes em 1780 feita pelo Sr. Necker. Ougo dizer que hd na * Essas palavras sGo dirigidas ao Sr. de Calonne pelas dificuldades que teve em refutar os exageros escandalosos em relagdo as despesas reais as contas falaciosas em relagdo @ pensZo que buscavam levantar a ira do povo.!” Reflexdes sobre a Revolugdo em Franga 141 Franga grandes emigragdes ¢ que muitos abandonam esse clima maravilhoso e essa li- berdade circense para se refugiar sob 0 abrigo do despotismo briténico em regiGes gela- das do Canada. A ATUAL SITUACAO DA FRANCA Ninguém poderia crer, em decorréncia da falta atual de dinheiro, que a Franca é aquele mesmo pais no qual o atual ministro das Finangas pode encontrar 80 milhdes de libras esterlinas em numerério. Tendo em vista 0 aspecto geral do pafs, somos leva- dos a acreditar que o mesmo esteja sob a conduta dos sdbios da academia de Laputa e Balnibardi* A populacdo de Paris diminuiu a tal ponto que o Sr. Necker declarou na Assembléia Nacional que o montante de provisdes necessdrio a sua subsisténcia poderia ser diminufdo cinco vezes*® Diz-se (e nfo ouvi declaragdes em contrario) que hd nessa cidade cem mil pessoas desempregadas, apesar de Paris ter-se transformado na prisio da corte e sede da Assembléia Nacional. Nada pode ser mais chocante e repugnante do que o espetéculo da mendicancia que se instaurou nessa capital. A votagdo na Assem- bléia Nacional mostra que nfo podemos duvidar desse fato, jé que recentemente foi criado um comité permanente para a mendicancia. Foi estabelecida uma estrita lei de polfcia sobre esse assunto e pela primeira vez, foi criado um imposto dos pobres e um fundo para o seu amparo*** A este tempo, os condutores dos clubes legislativos, e dos cafés, se embriagam de admiragao diante de sua propria sabedoria e talentos. Falam do resto do mundo com grande desprezo. Dizem ao povo, para que esse possa se conten- tar com os farrapos que veste, que a Franga ¢ uma nacdo de fildsofos e, seja pelos arti- ficios do alarde de charlates, pelos gritos, pelo tumulto e pela agitagao, seja pelo me- do, por eles provocado, dos complés e das invasGes, procuram aplacar as lamirias dos indigentes e desviar os olhares dos observadores da rufna e da miséria do Estado. E certo que um povo bravo sempre preferirda liberdade acompanhada de uma po- breza virtuosa, 4 opuléncia de uma serviddo igndbil. Antes, entretanto, de se abandonar © conforto e a riqueza, deverfamos pelo menos estar certos de que é para a verda- deira liberdade que estamos pagando o prego e que ela é impossivel de ser alcancada de outra forma. Para mim, entretanto, serd sempre ambigua e equivoca uma liberdade que néo tenha como auxiliares a sabedoria ¢ a justica e como conseqiéncia a abundan- cia e a prosperidade. ‘ * Vide as Viagens de Gulliver para se ter uma idéia de pafses governados por fildsofos. ** O Sr. de Calonne prova a diminuicdo da populago de Paris como tendo sido muito maior, e isso deve ser verdadeiro desde a época do célculo de Necker. *** Travaux de charité pour subve- nir au manque de travail 4 Paris et Liv. £ s. dans les provinces 3.866.920 Stg 161.121 34 Destruction de vagabondage et de la mendicité 1.671.417 69.642 7 6 Primes pour "Importation de grains 5.671.907 236.329 9 2 AS CALUNIAS DOS REVOLUCIONARIOS CONTRA A NOBREZA E 0 CLERO Os advogados da Revolucdo, nfo contentes de exagerar os vicios do antigo gover- no, atacam a honra de seu pafs, ao macular tudo aquilo que pudesse atrair as atengSes dos estrangeiros, ou seja sua Nobreza e seu Clero. Se tudo isso fossem libelos, no ha- veria importancia, mas muitas sio as conseqiiéncias praticas disso tudo. Se os seus no- bres que constitufam a grande parte dos proprietdrios fundiérios, e a totalidade dos ofi- ciais militares, se parecessem aos da Alemanha na época em que as cidades hansedticas foram obrigadas a se confederar, contra eles, para defenderem suas propriedades ou aos Orsini e aos Vitelli que, na Itdlia, pilhavam os comerciantes e viajantes ou ainda os Mameluks do Egito ou aos Nayrs da Costa de Malabar, af sim, acredito que nfo deve- rfamos criticar os métodos empregados para livrar o mundo desses_malfeitores!"°. Po- deramos violar por algum tempo as estdtuas da Eqilidade e da Misericérdia. Os espiri- tos mais sensiveis, feridos por essas terrfveis exigéncias que obrigam a moral a se sub- meter, por um tempo, a suspensfo de suas regras em favor da conservagdo de seus prin- cipios, poderiam ter-se desviado das astcias e das violéncias necessérias a destrui¢go de uma pretensa nobreza que desonrava e perseguia a humanidade. Os homens que mais sentiam horror pelo sangue, pela traig4o e pelos confiscos arbitrérios teriam podido ficar como espectadores silenciosos dessa guerra civil de vicios. A NOBREZA. AQUILO QUE ELA FOI A nobreza privilegiada que se reuniu em Versalhes em 1789, em virtude das or- dens do Rei, ou os seus delegados, mereceria ser considerada como os Nayrs ou os Mamelucks de sua época, ou como os Osrini e os Vitelli do passado? Se fizesse essa pergunta em 1789, seria considerado louco. Que fizeram, desde entfo, esses homens para serem forcados ao exilio, serem perseguidos e torturados, verem suas famflias dis- persas, suas casas reduzidas a cinzas, sua Ordem abolida e sua meméria extinta, se fosse possivel, pela obrigagdo de mudar o nome pelo qual eles eram conhecidos? Deve-se ler Dépenses relatives aux subsistances, deduction fait des récouvremens qui ont eu lieu 39.871.790 1.661.324 8 Total — Liv. $1.082.034 —Stg 2.128.418 1.8 Quando enviei este livro a grafica tive algumas dividas quanto & natureza e a extensio do tiltimo t6- pico dessas contas, que esté sob um nico subtitulo, sem maiores explicagées. Depois disso tive contato com 0 trabalho do Sr. de Calonne. Devo reconhecer que ele me fez uma grande falta na & poca da elaboracéo do trabalho. Calone no consegue compreender como pode ter havido uma di- ferenca tdo grande como a de £ 1.661.000 resultante tdo-somente da diferenga entre 0 prego e a venda de gros. Ele acredita que essa soma possa ser atribuida a despesas secretas da revolucao. Na- da posso dizer, entretanto, sobre esse assunto. 0 leitor serd capaz de julgar, pelo conjunto dessas imensas somas, no estado e condicdes atuais da Franca, e pelo sistema de economia do naquele pais. Esses {tens das contas no produziram nenhuma discusso na Assembléia Nacional. Reflexdes sobre a Revolug&o em Franga 143 as instrugdes que foram dadas a seus representantes. Como todas as outras Ordens, elas transpareciam © amor pela liberdade e exigiam enfaticamente reformas. Os nobres re- nunciaram voluntariamente os privilégios que tinham em relagdo 4 taxagdo, assim como o Rei, desde 0 inicio, tinha abandonado seu direto de impor tributos. Havia um consenso na Franga de que a monarquia absoluta tinha chegado ao fim. Ela tinha dado © seu filtimo suspiro, sem um gemido, sem uma agitagdo. Todas as dificuldades, todas as dissens6es ocorreram mais tarde em decorréncia da preferéncia por um governo des- pdtico em detrimento de um baseado no controle rec{proco. O triunfo do partido vito- rioso se fez sobre os princfpios da constituigao britanica. Percebi a afetagiio verdadeiramente pueril com que nos tiltimos anos, os parisien- ses passaram a idolatrar a memoria de Henrique IV. Se algo pudesse indispor contra esse principe que foi a honra de realeza, seria o estilo arrebatado desses elogios pérfi- dos. Aqueles que mais falaram foram exatamente aqueles que destronaram o seu suces- sor descendente, principe tfo bom quanto Henrique IV, que amava seu povo tanto quanto esse, e que procurou corrigir os antigos vicios do Estado, muito mais do que aquele grande monarca tentou ou, estamos certos, teve a inten¢do de fazé-lo. Henrique de Navarra foi um principe ativo, resoluto e politico, mas sem nunca deixar de sé-lo com bondade e humanidade, apesar de sempre procurar ver seus interes- ses com clareza. Ele nunca procurou ser amado antes de ser temido, suas palavras eram macias mas a sua conduta determinada. Reivindicava e mantinha sua autoridade como um todo, s6 fazendo concess6es nos detalhes. Gastava nobremente a renda de suas prerrogativas, mas cuidava para nfo enfraquecer o capital, nunca desprezando as pre- tensGes por ele reclamadas com base nas leis fundamentais, e nunca era indulgente seja nos campos de batalhas, seja algumas vezes no cadafalso, com o sangue dos seus inimi- gos. Ele sempre soube fazer com que os ingratos respeitassem suas virtudes e mereceu os elogios daqueles que, se tivessem vivido na sua época, teriam sido trancafiados na Bastilha ou punidos juntos com os outros regicidas que foram enforcados apés o cer- co pela fome que levou Paris a se render. Se esses panegeristas estivessem de boa fé ao. elogiar Henrique IV, deveriam se lembrar de que nao poderiam té-lo em t4o alta esti- ma, pois a nobreza da Franca sempre foi por ele elogiada pela virtude, honra, coragem, patriotismo e lealdade. Dirdo, entretanto, que a nobreza da Franca degenerou desde a época de Henri- que IV. E possivel. Mas que ela tenha se degenerado em t¥o grandes proporg6es, isso eu nfo posso crer. Nao pretendo conhecer melhor a Franga do que outros possam fazé- lo, mas sempre me esforcei durante toda a minha vida para compreender a natureza humana: em outras palavras, por mais humildes que sejam, os servigos que eu presto A humanidade estariam ainda bem acima de minhas forgas. Nesse estudo nfo posso dei- xar de prestar atengdo as modificagbes sofridas por uma grande quantidade de pessoas em um pafs que esté separado desta ilha por um estreito brago de mar de 24 milhas. ‘As minhas observacées e minhas pesquisas comprovam que a sua nobreza era, em gran- de parte, composta de homens de cardter elevado e que possufam um alto sentimento de honra, naquilo que dizia respeito a cada um deles, & corporagdo a que pertenciam, sobre a qual exerciam uma fiscalizago mais rigorosa do que a exercida em qualquer outro pais. Eles eram muito educados, polidos'!” ¢ hospitaleiros, francos e abertos nas 144 Edmund Burke conversas, com grande devogfo para com as artes militares, e razoavelmente versados em literatura, especialmente nos autores de sua propria lingua. Havia outros que pode- tiam justificar pretensdes bem superiores, mas falo aqui t40-somente da generalidade. Em relagdo as classes inferiores, parece-me que eles sempre se comportaram com cavalheirismo e muito mais familiaridade do que geralmente aqui na Inglaterra. Maltra- tar um homem, mesmo que esteja na condi¢do mais abjeta, era algo praticamente des- conhecido e muito mal visto''?; nada era mais raro do que se ouvir falar sobre maus- tratos exercidos sobre pessoas do povo e quanto a ataques contra suas propriedades e liberdade, nunca ouvi dizer que um nobre o tenha feito, na época da vigéncia das leis do antigo governo, tais atos jamais seriam tolerados. Enquanto grandes proprietdrios de terra, nunca tomei conhecimento da necessi- dade de repreendé-los, apesar de muito ter de ser modificado em um grande namero de antigos sistemas de posse de terra. Nas 4reas em que o sistema de ocupagio era o alu- guel, ndo pude perceber que os acordos com os proprietdrios fossem opressivos para os camponeses, nem quando eles estavam em parceria com os proprietérios, como freqiientemente era 0 caso, nunca, também, ouvi dizer que esses tiltimos tivessem fica- do com a parte do ledo. As proporg6es dos acordos nunca me pareceram injustas. Pode ter havido excegdes, mas como sempre, meras exceg6es. Nao tenho raz6es para crer que, nesses aspectos, a nobreza latifundidria da Franga fosse pior do que a inglesa; e, em todo 0 caso, seus membros ndo eram mais opressores que os proprietdrios plebeus. Nas cidades, a nobreza ndo possuia nenhum poder, e nos campos muito pouca influéncia. O senhor bem sabe que uma grande parte do governo civil e da policia nfo estava nas mios dessa nobreza que esté agora em consideracdo. Os impostos, seu re- colhimento e¢ sua aplicagdo constitufam o aspecto mais defeituoso e injusto do sistema francés e ndo eram administrados pela nobreza, que nao tinha nada a responder pelos seus vicios de origem ou o mau uso na sua aplicagao. Ap6s ter negado, como as minhas pesquisas me d4o 0 direito, que a nobreza ti- vesse tido uma parte considerdvel na opresso do povo, no caso de ter havido verdadei- ramente opressdo, estou pronto a reconhecer que seus membros cometeram varios er- ros e tinham defeitos considerdveis, Uma imitagdo insana daquilo que havia de pior no comportamento inglés alterou sua maneira natural de ser, sem adotar aquilo que eles tinham a intengdo de copiar, tornando-os, assim mais desagradaveis do que no passado. Uma dissolugao habitual dos costumes, prolongada além do perfodo da vida que ela poderia ser desculpada, era mais freqiente entre eles do que entre nés, com muito me- nos possibilidade de ser curada, apesar de ser menos malévola, pois ela se encobria com uma grande decéncia. Muitos encorajaram essa filosofia licenciosa que contribuiu para a sua ruina. Havia, entre eles, um outro erro, e esse, fatal. Os burgueses que se aproximaram da nobreza ou que a superaram em riquezas ndo foram plenamente aceitos na conside- ragdo no status social, que racionalmente e segundo a boa politica, a riqueza deveria propiciar. Acredito que ndo acho que essas duas classes devam ser iguais ou mesmo estarem no mesmo plano, mas na Franga esses dois tipos de aristocracia estavam muito separadas e opostas uma a outra, apesar de muito menos do que na Alemanha e em outros paises. Reflexes sobre a Revolugdo em Franca 145 Creio, ¢ jé tive a oportunidade de Ihe mostrar, que essa separago foi uma das causas principais da destruigdo da antiga nobreza. As altas patentes militares eram pra- ticamente exclusivas dos bem-nascidos. Isso, entretanto, foi um erro de opinido, que uma Assembléia permanente poderia retificar. Uma Assembléia na qual os burgueses ti- vessem um poder efetivo poderia aboliar aquelas distingdes que fossem mais irritantes e & provavel que os proprios erros da nobreza em relagdo aos costumes poderiam ser cortigidos por uma maior variedade de ocupag6es que surgiria de uma Constituigao ba- seada em Ordens. Encaro essas criticas 4 nobreza como algo totalmente artificial. Receber as hon- ras e mesmo os privilégios, da lei, da opiniao, dos usos consagrados no pais, nascidos de costumes seculares no é algo que deva provocar o horror e a indignagao de nin- guém. Nao é também um crime a defesa ardorosa de seus privilégios. A combatividade que se encontra em cada um de nds para defender a posse dos bens ¢ as distingdes que possufmos é uma das garantias humanas contra o despotismo e a injustiga. E um instin- to do qual depende a estabilidade das propriedades e a paz das nagGes. O que ha de chocante nisso? A nobreza é um ornamento gracioso da ordem civil, ela é o capital corintio de uma sociedade polida. Omne boni nobilitati semper favemus '"? era o pro- vérbio de um homem sdbio e virtuoso. E, em verdade, um sinal de um espirito liberal e dedicado sentir por ela uma certa afeic&o. E preciso ndo ter nenhum sentimento no- bre para se desejar nivelar todas essas instituigdes artificiais que foram criadas para dar um corpo a opinifio e permanéncia & estima arredia. Sao invejososo, maus, homens sem virtudes, aqueles que ndo amam essas imagens e representacdes, aqueles que sentem prazer ao ver a destruicdo injusta de uma instituigdo que por tanto tempo prosperou no esplendor ¢ na honra. Eu, pessoalmente, ndo gosto de ver as coisas destrutdas, va- zios serem impostos 4 sociedade, ruinas sobre um pais. Foi por isso que ndo senti contrariedade e descontentamento gtando minhas pesquisas e observagdes nao me fi- zeram ver na nobreza da Franga, nem vicios incorrigiveis, nem abusos que ndo pudes- sem ser suprimidos por uma reforma bem diferente da aboli¢do. A sua nobreza nfo me- recia ser punida, mas foi punida ao ser destituida de sua posigao. O CLERO. AQUILO QUE ELE FOI Senti a mesma satisfa¢o ao constatar que minhas pesquisas sobre o clero leva- ram-me a mesma concluso que cheguei sobre a nobreza. Nao so noticias boas aquelas que afirmam a corrupcdo irremediavel das grandes corporagées. Nao vejo com bons olhos as pessoas que falam mal daqueles que procuram pilhar e estou certo de que eles aumentam e exageram os vicios e erros daqueles de quem procuram tirar proveito. Um inimigo € uma mé testemunha, um ladrdo é uma pior. Havia, certamente, na Ordem do Clero, vicios e abusos, e era impossivel que no os houvesse. Era uma insti- tuicdo antiga, sem muitas mudangas. Nunca constatei, entretanto que seus membros fossem culpados de crimes que merecessem 0 confisco de seus bens, ou os insultos ou 08 ultrajes crugis e essa persegui¢do que substituiu as reformas que haveriam de melho- réda"4 146 Edmund Burke Se essa nova perseguigdo religiosa estivesse baseada em qualquer causa justa, os libelistas ateus que agem como corneteiros ao animar a plebe a pilhagem, nfo teriam mostrado complascéncia para com os erros do clero atual. Isso eles nfo tiveram. Foram obrigados a procurar nas paginas da historia (que procuraram com um ardor criminoso) todos os exemplos de opressdo e de persegui¢do que essa corporacdo foi autora ou beneficiéria para justificar as represélias, indcuas enquanto il6gicas, as perseguig6es ¢ as, crueldades por eles praticadas. Assim, apés ter destruido todas as genealogias e todas as distingSes de famflia, eis que inventaram uma espécie de filiagZo do crime! Nao justo punir alguém pelos erros de seu ancestrais, mas fazer da filiacdo ficticia que existe em uma corporacdo, 0 fundamento do castigo de homens que tém com esses atos cul- paveis tfo-somente relagdes provenientes do nome que detém e do grupo ao qual per- tencem, é uma sofisticago da injustiga que ndo pode estar presente na filosofia desse século esclarecido, A Assembléia puniu homens cuja maioria, sendo a totalidade, abo- minavam as violéncias dos eclesidsticos do passado tanto quanto os seus perseguidores de hoje e que nfo demonstravam tal sentimento forte ¢ publicamente porque sabiam a finalidade de todas essas acusag6es. £ para o bem dos individuos que a compSem e nfo para o seu castigo, que as corporagées sfo imortais. As nag6es sfo elas proprias corporagées. Dessa forma, nos poderfamos na Inglaterra sonhar com uma guerra a todos os franceses para vingarmos dos males que nos fizeram sofrer nos diferentes momentos de nossas hostilidades mé- tuas. Os franceses também poderiam pensar que tinham o direito de destruir todos os ingleses para se vingarem de calamidades parecidas que as injustas invases que os nos- sos Henriques e os nossos Eduardos praticaram contra 0 povo da Franga. Em verdade, nés temos as mesmas razOes para nos exterminarmos mutuamente, que os franceses tém de perseguir, sem provocag0es, cidadfos em razfo das condutas que no passado tiveram homens que tinham o mesmo nome deles. NOs nfo tiramos da histria todas as ligdes morais que poderfamos tirar. Ao con- trério, por um hébito desconhecido, nossos espfritos so corrompidos e nossa bondade destrufda. A historia € um grande livro aberto para 0 nosso aprendizado, pois os erros do passado, os males que fizeram sofrer o ser humano sdo grandes fontes de ligSes de sabedoria para o futuro. Os partidos e facg6es, entretanto, que se formam na Igrejae no Estado podem igualmente descobrir na Histéria armas ofensivas e defensivas, os meios de perpetuar ou aplacar os ddios e as dissengdes, o segredo de prolongar ainda mais as disc6rdias civis. A historia ¢, com efeito, composta do relatério das misérias im- postas ao mundo pelo orgulho, ambi¢do, avareza, vinganga, paix6es, sedugdes, hipo- crisia, zelo extremo e por todo o conjunto dos apetites desordenados que sacodem a sociedade. “. . . Com as mesmas tempestades violentas perturbam a vida privada e retiram toda a dogura da existéncia.”"" So essas misérias que sfo as causas dessas tempestades. A religifio, a moral, as leis, as prerrogativas, os privilégios, os direitos do homem so tf0-somente pretextos — pretextos aos quais se d4 uma aparéncia especial de um verdadeiro bem a ser atingido. Nao se quer, nfo é verdade, colocar os homens ao abrigo da tirania e da sedigdo, reti-

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