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A primeira vontade que toma conta de mim, ao começar a redigir essa palestra-
artigo, é de renúncia. Renúncia, justamente, ao papel de palestrante-articulista, posto que meu
desejo, agora, quando escrevo, quer reler o lido. Em outras palavras, qual um borgeano
Menard, penso reescrever (reler) aqui todo o conto de Clarice, “O búfalo”, publicado em
Laços de família1, em 1960. Na reescritura, a diferença, uma outra verdade, cuja mãe é a
história, êmulo do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do
presente, advertência do futuro. Logo, na reescritura encenada, a atualização do texto, da
história, da leitura.
Porque ter lido o conto faz parte do que se lerá aqui. Componho este artigo,
rendendo-me à evidência da força histórica, como impressões, ao som de Satie. Impressões
mesmo, menos por efeito de estilo do que pela literalidade da palavra: impressão como
opinião mais ou menos vaga, sem maior fundamento; impressão como influência que um ser,
um acontecimento ou uma situação exerce em alguém, repercutindo-lhe no ânimo, no moral,
no humor; e impressão, na primeira acepção, como ato de imprimir e imprimir-se. Daí o
título: “Olho, falo e búfalo: impressões sobre um conto de Clarice”. O ‘um conto de Clarice’,
como dito, “O búfalo”; as ‘impressões’, minhas; ‘olho, falo e búfalo’, veremos por quê.
*
SALGUEIRO, Wilberth. Olho, falo e búfalo: impressões sobre um conto de Clarice. MORAES, Alexandre
(org.). Clarice Lispector – em muitos olhares. Vitória: Edufes, 2000, p. 219-232.
1
LISPECTOR, Clarice. Laços de família. 29 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1997.
2
2
NIETZSCHE, Frederico. Ecce Homo (Como se chega a ser o que ser é). 5 ed. Tradução e prefácio de José
Marinho. Lisboa: Guimarães Editores, 1984, p. 78.
3
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Ed. crítica / Benedito Nunes, coordenador. – Paris: Association
Archives de la littérature latino-américaine, des Caraïbes et africaine du Xxe. siècle; Brasília, DF: CNPq, 1988,
p. 13. (Coleção Arquivos; v. 13)
3
Temendo que algumas dessas promessas teóricas sejam puro exercício onanista,
sem compromisso com a paciência conceitual voltada para o outro (que me lê, vê, ouve), mas
interessado apenas (e seria bastante) no prazer solitário autocentrado, agencio, desde já, a
perspectiva pluralizante, detectada por Roberto Corrêa, presente em Laços de Família. Diz o
escritor na abertura do livro intitulada “Artes de fiandeira”:
Eis que começa o conto: “Mas era primavera”. O “mas”, conjunção adversativa,
no contexto, causa estranheza, visto que deveria se opor, sintaticamente, a alguma idéia
anterior. No entanto, o que é anterior é o próprio estado de espírito da mulher que chega ao
zoológico: é um espírito adversativo, ressentido, que logo se esclarece: mas era... primavera,
época de viço, vigor, vida. Exatamente o que a mulher que chega ao zoológico não quer. E
esta mulher que seguimos guarda em seu vestuário e em seus gestos – em suma, em seu corpo
– marcas de tensão, dureza, ódio: traz “os punhos apertados nos bolsos” de um casaco
marrom, cor contrastante com o aspecto verdejante da primavera, além de ter apertado os
dentes “até o maxilar doer”. Sabemos, diz-nos o narrador, que está à procura de algo,
4
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Tradução: Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Rio de
Janeiro: Rio, 1976, p. 33.
5
In: LISPECTOR, Clarice. Laços de família. 29 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1997, p. 5. (As citações do
conto seguirão esta edição.)
4
“tentando encontrar-se com o próprio ódio”, porém o que encontra, desde sempre, é amor. Já
o primeiro parágrafo traz a tensão crucial do conto, resumida, por uma estratégia
metodológica6, nos pares simultaneamente opositivos e complementares: ódio / amor,
destruição / criação, imobilidade / movimento, fechado / aberto, escuro / claro, morte / vida,
tanatos / eros.
6
Deleuze, invertendo a proposição etimológica de método, diz: “O método em geral é um meio para nos impedir
de ir a tal lugar ou para garantir a possibilidade de sairmos dele (o fio do labirinto). ‘E nós suplicamo-lhes com
insistência, enforquem-se nesse fio!’” (DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Tradução: Edmundo
Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Rio de Janeiro: Rio, 1976, p. 90.)
5
No seu périplo de ódio, a mulher sente o peso do elefante, sua carne herdada, sua
potência; a seguir, “a mulher então experimentou o camelo”. Aparece, nessa altura, uma
imagem-elemento forte no conto, que permanecerá até o seu final: imagens ligadas a líquido
(retomarei adiante essa hipótese).
7
In: LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Ed. crítica / Benedito Nunes, coordenador. – Paris:
Association Archives de la littérature latino-américaine, des Caraïbes et africaine du Xxe. siècle; Brasília, DF:
CNPq, 1988, p. 294. (Coleção Arquivos; v. 13)
6
Durante o vôo, a mulher de casaco marrom tem como uma boneca a saia
levantada. Na transformação da personagem esse fato significa: saída da montanha-russa, ela
ajeitou as saias com recato e, mais à frente, embora ninguém prestasse atenção, alisou de
novo a saia. Recompor o pudor faz parte da resistência das forças reativas. O processo de
transformação é doloroso. A mulher de casaco marrom, ao entrar na montanha russa,
separada de todos no seu banco parecia estar sentada numa igreja; após a breve e aérea
experiência da desarticulação e da transfiguração, ela volta à terra e ao silêncio, arrumando a
saia e sentindo-se pálida, jogada fora de uma igreja. A mulher de casaco marrom
experimenta, sim, um recomeço, ela tenta – ou, talvez, melhor: é tentada – a se transmutar:
8
Tal seqüência, no conto, faz vir à tona citação de Deleuze, lendo Nietzsche: “Referidos a Zaratustra, o riso, o
jogo, a dança são os poderes afirmativos de transmutação: a dança transmuda o pesado em leve, o riso baixo em
alto. Mas referidos a Dionísio, a dança, o riso, o jogo são poderes afirmativos de reflexão e de desenvolvimento.
A dança afirma o devir e o ser do devir; o riso, as gargalhadas, afirmam o múltiplo e o um do múltiplo; o jogo
afirma o acaso e a necessidade do acaso.” (DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Tradução: Edmundo
Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Rio de Janeiro: Rio, 1976, p. 161.)
7
Mesmo se unindo, as forças reativas não compõem uma força maior que
seria ativa. Procedem de modo totalmente diferente, elas decompõem; elas
separam a força ativa do que ela pode; subtraem da força ativa uma parte
ou quase todo seu poder; e por esse meio não se tornam ativas, mas, ao
contrário, fazem com que a força ativa se junte a elas, torne-se, ela própria,
reativa num novo sentido.10
Sua via-crúcis toma novo rumo e o narrador cola a sua voz à da protagonista: Mas
onde, onde encontrar o animal que lhe ensinasse a ler o seu próprio ódio? Aqui um momento
de destaque do conto, pois a mulher de casaco marrom como que abandona o campo da
similaridade (do paradigma, da metáfora) em que se colocara em relação aos animais e
adentra o campo da contigüidade, fixando-se num patamar agora sintagmático e metonímico.
9
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Tradução: Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Rio de
Janeiro: Rio, 1976, p. 58.
10
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Tradução: Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Rio de
Janeiro: Rio, 1976, p. 47.
8
tanatos: agora apequenada, dura, os punhos de novo fortificados nos bolsos, a assassina
incógnita, e tudo estava preso no seu peito.
Sem saber, a mulher de casaco marrom anda e corre até parar diante das barras
de um cercado, onde encosta o rosto quente no enferrujado frio do ferro. Esta relação de
choque (mulher / quente, ferro / frio) ganha dimensão significativa pela redundância das
informações: a dureza das grades e um ferro gelado.
(Eu via friamente, tudo de seu rosto, de seu corpo: seus cílios, a unha do
dedão do pé, a finura das sobrancelhas, dos lábios, o brilho dos olhos, certo
grão de beleza, uma maneira de esticar os dedos ao fumar; eu estava
fascinado – a fascinação não é outra coisa senão a extremidade do
distanciamento – por essa espécie de figurinha colorida, esmaltada,
vitrificada onde eu podia ler, sem nada entender, a causa do meu desejo.)11
Decerto, e desde já, podemos concordar com Gilda Salem ao afirmar que o
“búfalo guarda a impressão (!) de ser uma alegoria, alguma divindade que ilumina aspectos
da natureza humana, especialmente da sua relação com a morte, em confronto com a vida,
com o desejo da felicidade”12. A tensão que se apossa da consciência (interiorizada,
11
BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução: Hortênsia dos Santos. 13 ed. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1994, p. 62-3. [1977]
12
SZKLO, Gilda Salem. “O Búfalo”. Clarice Lispector e a herança da mística judaica. In: Remate de Males,
Campinas, (9): 107-113, 1989, p. 112. Praticamente, termina aí a semelhança de propósitos entre a minha análise
e a da eminente professora que, como antecipa o título do artigo, volta seu interesse para a interpretação do conto
à luz das concepções da cabala luriânica, incorporando também reflexões do insigne professor Benedito Nunes,
no tocante às questões filosóficas existencialistas, como linguagem, silêncio, náusea, angústia etc. Nessa esteira,
Gilda escreve que “O Búfalo” fala do aprofundamento da náusea como revelação do ser. Ele narra uma
9
Tem início então toda uma gestualística erótica efetivada através da “superfície
dos sinais”, para tomar emprestada a expressão de Roberto Corrêa em texto referenciado. Este
jogo da sedução passa a imperar até o desfecho da narrativa, como bem apontou Nádia Gotlib
em outra tentativa de sinopse do conto:
Pela primeira vez na narrativa, a mulher vê, verbo sabidamente caro a Clarice, de
hierarquia distinta em relação a olhar. Em geral, “olhar” está para o cotidiano, para as
máscaras sociais, para a repetição; “ver”, assim, estaria para o espanto, para as crises, para a
15
BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução: Hortênsia dos Santos. 13 ed. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1994, p. 29. [1977]
11
diferença. Olhar seria corriqueiro, normal; ver, revelador, epifânico (“epi” = posição
superior; sobre; movimento para; fan(o) [var. fen(o)] = brilhar, aparecer). Diversamente da
maioria dos contos da autora de Legião estrangeira, em “O búfalo” não há retorno a qualquer
situação anterior nem sequer a história prossegue (– o livro acaba). Clímax e desfecho são um
só, como num orgasmo (o corpo baqueando, a vertigem) em que se descortina a imagem
(visão, viu) de um misto difuso de abstração e intangibilidade (céu) e de concretude corpórea
(búfalo, na perspectiva alegorizante de representação daquele que se ama/odeia).
A força ativa na obra de Clarice é o amor, nas suas mais diversas manifestações,
que, como neste conto, pode incluir até o ódio. Talvez seja isso – esse algo tão simples para o
qual nascemos – que aqui se esclarece:
Nasci para amar os outros, nasci para escrever e nasci para criar meus
filhos. O amar os outros é tão vasto que inclui até perdão para mim mesma,
com o que sobra. Amar os outros é a única salvação individual que
conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em
troca.17
16
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Tradução: Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Rio de
Janeiro: Rio, 1976, p. 54.
17
Carta a Olga Borelli. In: LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Ed. crítica / Benedito Nunes,
coordenador. – Paris: Association Archives de la littérature latino-américaine, des Caraïbes et africaine du Xxe.
siècle; Brasília, DF: CNPq, 1988, p. XXII. (Coleção Arquivos; v. 13)