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FILOSOFIA E CRIANÇA: A EXPERIÊNCIA DE PENSAR CONCEITOS

EM COMUNIDADE

MURARO, Darcísio Natal1

Grupo de Trabalho: Educação da Infância


Agência Financiadora: não contou com financiamento

Resumo

O presente trabalho discute o problema da formação filosófica das crianças através da criação
da experiência do pensar conceitos em uma comunidade de investigação. Tal problema foi
colocado pioneiramente por Matthew Lipman que criou um conjunto de conceitos próprios
para viabilizar a aproximação da filosofia ao universo educativo das crianças e que está
expresso na formulação Filosofia para Crianças. Nossa pesquisa aborda essa questão através
da análise bibliográfica dos conceitos desenvolvidos por Lipman. Esta pesquisa se faz
importante na medida em que nos leva a problematizar as relações entre filosofia e educação.
Entendemos que a contribuição relevante de Lipman resulta da compreensão do valor e
função da filosofia na educação que é a de pensar os problemas próprios da educação e de
oferecer instrumentos imprescindíveis para a educação do pensamento das crianças. Para isso,
Lipman desenvolveu a pedagogia da Comunidade de Investigação como ambiente para
promover a experiência de diálogo e questionamento sobre conceitos filosóficos. Tais
conceitos são definidos pelo autor como centrais, comuns e controversos na experiência
humana e tratados de maneira recorrente na história da filosofia. Lipman entende que a
criança, desde muito pequena, está imersa numa experiência de indagar, pensar e refletir sobre
conceitos filosóficos. Para significar sua experiência ela necessita e aprecia o pensar
filosófico. A sua experiência de pensamento é fonte da criação dos sentidos que constituem
cada pessoa e que orientam o pensar, o falar e o fazer na vida.

Palavras-chave: Filosofia. Lipman. Criança. Pensar. Experiência.

Relações entre criança, filosofia e educação

Este trabalho busca compreender as formulações de Matthew Lipman sobre a


educação filosófica das crianças como possibilidade de desenvolver a capacidade de pensar.
Este filósofo criou um novo campo de investigação dedicado a pensar a própria filosofia, ou
seja, a possibilidade fazer filosofia com as crianças e, desta forma, transformar o campo da

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Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Prof. do Departamento de Educação da UEL. E-mail:
murarodnm@gmail.com
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educação. Kohan (2000, p. 14) afirma que Lipman é o “[...] o fundador do movimento por
levar sistematicamente a prática da filosofia à educação das crianças.” Ele criou a primeira
expressão sistemática que compreende fundamentos filosófico-educacionais, metodologia e
prática.
A problemática da possibilidade de uma educação filosófica da criança deste filósofo
está inserida numa discussão de caráter mais amplo, ou seja, a discussão das relações entre
filosofia e educação. Este é o primeiro aspecto que propomos trabalhar nesse artigo de forma
a conduzir a reflexão sobre a experiência de pensar conceitos em comunidade com crianças.
Filosofia para Crianças emerge das concepções de Filosofia da Educação
desenvolvidas por Matthew Lipman. A referência da qual parte Lipman é a teoria filosófico-
educacional de John Dewey, que já em 1916, havia alertado para a íntima associação entre
Filosofia e educação:

A ´Filosofia da educação` não é a aplicação exterior de idéias já feitas a um sistema


de prática escolar que tivessem origem e meta radicalmente diversas: é apenas uma
formulação explicita dos problemas da formação de uma mentalidade reta e de bons
hábitos morais, tendo-se em vista as dificuldades da vida contemporânea. A mais
profunda definição de filosofia que se possa dar é a de ser a teoria da educação em
seus aspectos mais gerais. (Dewey, 1979, p. 364)

Partindo deste pressuposto, Lipman entende que é necessário estabelecer novos


fundamentos para a prática da filosofia e da educação, o que depende de um novo olhar para a
criança e para a história da filosofia. Comecemos pela questão da história da filosofia.
Lipman entende que ao longo da história os filósofos têm se ocupado de pensar
conceitos que são usados para estruturar a experiência diária. Além disso, para filosofar é
necessário cultivar a excelência do pensar. Ao explorar as dimensões filosóficas da
experiência é possível melhorar a capacidade de raciocinar, de julgar e de agir. Algumas
destas dimensões filosóficas da experiência são: a lógica, linguagem, ética, política, estética,
antropológica. Elas não esgotam a investigação filosófica, já que outras dimensões podem
surgir do questionamento filosófico. O problema é que a filosofia adquiriu um status
acadêmico, uma especialidade por vezes elitista, um deleite sentimental para poucos ou um
conjunto de dogmas arbitrários, distanciando-se do seu lugar e função que é o de contribuir
com o crescimento de sentidos da experiência humana. A filosofia tem uma história e o
conjunta da produção acumulada pela humanidade constitui um instrumental necessário na
vida das pessoas na luta cotidiana para dar sentidos à existência e conduzir melhor a
experiência. Por isso, é necessário aproximar a filosofia à vida das pessoas, não para
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memorizar as idéias dos filósofos, mas para pensar reflexivamente a experiência. Isto se
consegue privilegiadamente pela educação.
A criança, desde muito pequena, está imersa numa experiência de pensar e refletir
sobre seu próprio pensar. Sua experiência contém multiplicidade de problemas. Seguidamente
ela se coloca perguntas sobre aspectos que envolvem conceitos como verdade, justiça,
bondade, autoridade, amizade, realidade, amor, conhecimento, felicidade, etc. Para significar
sua experiência ela necessita e aprecia o pensar filosófico. A sua experiência pode ser
conduzida de maneira reflexiva permitindo ampliar os sentidos com a dimensão da valoração,
da beleza, da justiça, da convivência, etc. Descobrir estes sentidos é motivo de grande alegria,
o que contribui para o desenvolvimento do senso de auto-estima. Esta experiência é fonte da
criação dos sentidos que constituem cada pessoa e que orientam o pensar, o falar e o fazer na
vida. Por isso, o conjunto de teorias ou sistemas de ideias desenvolvidos ao longo da história
da filosofia deveria ser reconstruído para que as crianças pudessem ter contato com as mais
variadas dimensões exploradas pelos filósofos e, gradativamente, poder se engajar na
experiência do filosofar.
Historicamente, as questões originárias no campo da filosofia deram origem à grande
diversidade de conhecimentos, dentre eles as ciências. Decorre daí a necessidade de repensar
o paradigma padrão da educação como transmissão de conhecimentos ensinados como não
ambíguos, não equívocos, exaustivamente dominados. Na educação tradicional, o professor é
a autoridade que detém o conhecimento e o transmite aos alunos que não o sabem. Os alunos
devem absorver e estocar os conhecimentos para seu uso futuro. Este modelo de educação
privilegia a memória e não as demais capacidades como o questionamento, a reflexão e
julgamento e o desenvolvimento de atitudes de um agir socialmente.
Lipman considera que não é mais aceitável a educação ter como objetivo a
transmissão do saber diante da rapidez das mudanças tecnológicas, econômicas, sociais,
ecológicas, etc. As informações se tornam obsoletas em curto período de tempo, o contexto
social sofre mutações e se complexifica, o desenvolvimento dos meios de comunicação e o
processo de globalização expõem as crianças à pluralidade e fragmentação dos sistemas de
referências. Diante deste quadro de uma sociedade em profundas e rápidas transformações,
Lipman propõe um novo paradigma de educação que a compreende como investigação
(inquiry) em comunidade, portanto, uma educação orientada pelos valores da vida
democrática. Por isso, o aspecto principal do processo educacional é melhorar a capacidade de
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pensar, condição básica para a participação democrática, conforme depreendemos dessa sua
afirmação: “Quando a educação se transforma em educação como investigação e educação
para a investigação, o produto social desta mudança institucional será a democracia como
investigação e não meramente democracia.” (LIPMAN, 1995, p. 355) Para Lipman, a
filosofia é a disciplina que historicamente tem se ocupado de pensar sobre o pensar. Ela
aperfeiçoa o processo da investigação tanto na forma como no conteúdo. Assim, Lipman vê a
educação em toda sua complexidade como um modo de investigação. A Filosofia se insere
neste modo de investigação desempenhando papel fundamental na medida em que contribui
com questionamentos de ordem lógica, ética, política, epistemológica, etc. Somente desta
forma é possível ensinar a pensar por si mesmo e sobre o próprio pensar.
A educação deveria partir do que é problemático na experiência dos alunos e, num
ambiente de comunidade, desenvolver a investigação rigorosa, crítica, criativa e cuidadosa. O
processo investigativo, cooperativo e deliberativo, proporciona também o desenvolvimento de
habilidades de pensamento contribuindo para o aprender a pensar de forma autônoma e
autocorretiva, aprender a conviver em ambiente dialógico e democrático, aprender a agir de
acordo com valores éticos cujos significados foram processados pela reflexão, aprender a
participar do exercício da cidadania de forma responsável. Assim, a educação pode realizar
sua função cognitiva, social, política e ética.

Criança e Filosofia

Para Lipman há algo em comum entre a criança e o filósofo: a capacidade de se


maravilhar com o mundo. A criança e a filosofia são aliadas porque ambas se intrigam com
uso das palavras para falar do mundo. Os filósofos levam esta capacidade de maravilhamento
às últimas conseqüências, descobrindo e investigando os problemas da experiência humana.
Tais problemas giram em torno de conceitos centrais, comuns e controversos da nossa
experiência. O filosofar começa quando fazemos perguntas sobre esses conceitos. Por isso,
não ensinamos filosofia para as crianças. As crianças nos ensinam a filosofar pelas suas
perguntas.
Problemas que são sempre problematizados pela própria filosofia. Assim, os filósofos
conseguem criar e reconstruir conceitos e buscar formas de explicação mais abrangentes para
os problemas da vida. As crianças ficam intrigadas com os mesmos conceitos problemáticos
tratados no campo da filosofia ao longo dos séculos, ou seja, colocam-se questões sobre a
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verdade, as regras, a justiça, a realidade, a amizade, o poder, a morte, a beleza, o


conhecimento, a linguagem, etc. Para lidar com estas questões, elas necessitam aprender a
pensar filosoficamente. Diz Lipman: “A filosofia, portanto, é muito benéfica para as pessoas
que procuram formular conceitos que possam efetivamente representar aspectos de sua
experiência de vida.” (LIPMAN, 1994:52) A Comunidade de Investigação é pedagogia para
aprender a filosofar e a desenvolver um “pensar bem”, um pré-requisito da capacidade da
criança de aprender em todas as demais áreas de conhecimento. O maravilhamento da criança
é inquiridor e suas perguntas representam a possibilidade de um outro olhar sobre mundo.
“Essas perguntas representam a busca das crianças por globalidade e inteireza, seu saudável
desprezo por categorias artificiais e barreiras para a compreensão.” (LIPMAN, 1994, p. 52). A
curiosidade e a imaginação reflexiva associadas a uma adequada mediação podem criar novas
atitudes e conceitos para interpretar e transformar o mundo.
Lipman, ao visitar escolas brasileiras na periferia de São Paulo, declarou em uma das
suas conferências que o que mais lhe chamou a atenção foi o brilho nos olhos das crianças
brasileiras. Os olhos de uma criança que começa a filosofar se transforma radicalmente. A
surpresa, o maravilhamento, encanto e admiração próprios da criança significam um
recomeço que é também a possibilidade de renovar a filosofia, como um movimento de volta
às suas origens.
Para Lipman, existem três coisas com as quais a filosofia se preocupa mais
insistentemente: “1. devemos aprender a pensar de forma mais clara e lógica possível; 2.
Devemos mostrar a relevância desta forma de pensar, ao lidar com os problemas que nos
desafiam; 3) Devemos pensar em como encontrar novas alternativas e criar novas opções.”
(LIPMAN, 1998, p. IX)
A proposta filosófica e educacional desenvolvida por Lipman e colaboradores oferece
uma pedagogia específica que é a Comunidade de Investigação e um currículo de filosofia
desde a Educação Infantil até o Ensino Médio, organizado em livros que ele denominou de
Novelas Filosóficas. Esta é a forma que Lipman encontrou para apresentar a filosofia às
crianças, como uma possibilidade de fazer filosofia a partir da própria filosofia. As novelas
têm a preocupação de estimular a imaginação sobre questões filosóficas como forma de
incentivar as crianças a pensar por si mesmas ou a filosofar por si mesmas. Porém, a
ambiência adequada para o filosofar é a Comunidade de Investigação. Sem esta prática central
de Filosofia para Crianças, o mais estimulante material quer sejam as novelas, literatura,
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textos filosóficos, filmes, etc., podem ser ineficientes. A participação na Comunidade de


Investigação envolve empática e vitalmente os membros num movimento cognitivo
importante que exige ações como: fazer perguntas, criar e averiguar hipóteses, pedir e dar
razões, exemplos e contra-exemplos, questionar os pressupostos, fazer inferências e seguir a
investigação por onde ela caminha. Como empreendimento social e cooperativo, ela requer
dos estudantes a partilha de suas perspectivas que são submetidas à reflexão do grupo, o olhar
e a escuta atenta do outro, colocar-se no lugar do outro, perceber perspectivas novas,
reconstruir as próprias idéias. As habilidades cognitivas e sociais são adquiridas naturalmente
neste contexto e não de forma isolada como num treino técnico.

A Comunidade de Investigação

A Comunidade de Investigação (inquiry) é um dispositivo pedagógico que permite


integrar os aspectos razão ou inteligência, das emoções e das relações sociais. Nela, a
conversação é orientada pelo diálogo e a problematização desenvolve as operações mentais do
pensamento e da linguagem para a produção de significados (atitudes, disposições habilidades
e competências de pensamento). Este dispositivo é regulado pela razoabilidade como
característica pessoal e pela democracia como característica social, resultando num exercício
sociopolítico da ética e da cidadania. Lipman combina, assim, aspectos fundamentais da
filosofia e da psicologia para o aprendizado reflexivo na infância: interesse, emoções, valores,
comunidade, disposições e habilidades de pensar, além de três dimensões de pensamento: a
crítica, a criatividade e o cuidado.
A Comunidade de Investigação é uma forma de operacionalizar o aprender a aprender
a pensar. Lipman entende o pensar de forma multidimensional, ou seja, o pensar bem é
crítico, criativo e cuidadoso. Não é algo que se consegue de forma imediata, exige um
trabalho sistemático e bem planejado.
A Comunidade de investigação não é um método para memorizar conteúdos ou
valores como já mencionamos. É uma forma de vida cidadã e democrática em permanente
reconstrução dos significados que servem como referências, através do processo dialógico e
cooperativo. Mas para desenvolver este trabalho é necessário repensar a relação entre adulto e
criança. Lipman explicita sua crítica diante da incompreensão do adulto em relação à criança,
especialmente da falta de percepção e da má interpretação da infância:
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[...] vendo-a como extravagante e caprichosa, em vez de experimental, como


precipitada em vez de aventureira, como indecisa e vacilante, em vez de
prudentemente hesitante, como ilógica em vez de sensível aos conflitos e
ambigüidades, como irracional em vez de resoluta em proteger sua própria
integridade. (LIPMAN, 1998, p. 25)

Para ele a curiosidade infantil, o interesse pelas descobertas, a capacidade de imaginar


e criar ainda livre de tantos preconceitos são fatores que contribuem para o filosofar.
Lipman vê o filosofar praticado numa comunidade de investigação como uma forma
de satisfazer a necessidade de continuidade no processo de aprendizagem: “Se a principal
contribuição da criança ao processo educacional é seu caráter questionador, e se a filosofia é
caracteristicamente uma disciplina que levanta questões, então a filosofia e a crianças
parecem ser aliadas naturais.” (LIPMAN, 1998, p. 50) A rica e inesgotável fonte de
significados da tradição filosófica pode auxiliar as crianças na exploração de seus próprios
pensamentos e experiências. Filosofia, comunidade, diálogo e educação, neste paradigma, são
criações humanas voltadas para tornar a experiência significativa. “Assim como todo mundo,
as crianças anseiam por uma vida repleta de experiências ricas e significativas.” (LIPMAN,
1998, p. 25) E esta forma de vida que promove o aprender a pensar, interpretar, conceituar,
raciocinar, julgar, escolher em todos os âmbitos da vida em que as situações problemáticas
requerem investigação. Nas palavras de Lipman:

Filosofia para Crianças incentiva as crianças a pensar por si mesmas e as ajudará a


descobrirem os rudimentos de sua própria filosofia de vida. Fazendo isso, estará
ajudando a desenvolverem um senso mais concreto de suas próprias vidas.
(LIPMAN, 1998, p. 114)

Na comunidade de investigação o professor não pode negligenciar o compromisso da


filosofia com a vida, portanto, com as perguntas e com a reflexão sobre questões de interesse
do grupo. Exige um profundo respeito do professor pelos questionamentos dos alunos. Este
respeito se traduz na acolhida às perguntas que intrigam as crianças e envolver-se na
investigação. A atitude do professor de empatia pelos questionamentos dos alunos, seus
questionamentos e esforços didáticos para ver os alunos envolvidos no diálogo reflexivo, sua
curiosidade para descobrir novos significados constituem uma energia vital para a
comunidade de Investigação. Diz Lipman: “Isto coloca o professor na situação de alguém que
questiona ou investiga tanto quanto a criança.” e sua preocupação é a de “olhar o assunto
através de perspectivas mais ricas e variadas.”
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O filosofar em comunidade de investigação recupera a origem e destino social da


filosofia. Pelo procedimento dialógico é possível fortalecer as condições subjetivas e objetivas
da convivência democrática, praticando valores como a liberdade, a solidariedade, o respeito,
a empatia, a confiança, a argumentação, etc. e conquistar a autonomia individual e coletiva.
A vida da criança nesta prática comunitária através da intensa comunicação auxilia no
desenvolvimento da sensibilidade social, cultural, política, ética, estética e cognitiva. Desta
forma, amplia-se a capacidade de crescer da criança.
O dispositivo essencialmente aberto da comunidade de investigação filosófica visa
criar um novo ambiente para a relação ensino-aprendizagem: ambiente comunicativo –
dialógico que facilita o crescimento pessoal e interpessoal; - ambiente da problematização, as
questões/perguntas de interesse e necessidades dos alunos e professor(a) a partir de seu
contexto e cultura; ambiente da investigação coletiva, cooperativa e solidária em que se
desenvolvem habilidades de pensamento auto-corretivo – razoabilidade; ambiente para
vivenciar valores: ouvir e falar, respeito, confiança, cuidado com a participação de todos,
combinar regras, relacionar o pessoal e coletivo, trabalhar e conviver com as diferenças
(tolerância e pluralismo), compromisso e responsabilidade, amizade; ambiente para pensar:
criticar, imaginar, criar e cuidar da transformação do mundo; ambiente para exploração aberta
de conceitos buscando os sentidos que orientam a vida das pessoas e da humanidade;
ambiente para discussões orientadas pelas considerações lógicas, epistemológicas,
metafísicas, éticas, sociais, políticas e estéticas; ambiente de deliberação e julgamento como
exercício de cidadania (participação democrática); ambiente para desenvolver a capacidade de
ousar, correr riscos, enfrentar conflitos; ambiente que promove a autonomia e auto-estima,
através de ricas experiências intelectuais que unem o cognitivo e o afetivo; ambiente para a
prática inter e transdisciplinar permitindo integrar as diversas áreas: filosofia, literatura, artes,
ciências; ambiente de uma nova estética na escola: apreciar a beleza e a alegria da cooperação
e da multiplicidade de pensamento; ambiente de internalização dos procedimentos da
investigação e das atitudes comunitárias ampliando a possibilidade de construir o estilo
próprio de pensar; ambiente para a ação docente de mediação das relações e dos
procedimentos da investigação que podem ser apropriados pelos alunos imersos nessa
experiência.
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A importância do Professor

Lipman destaca o papel de mediação do professor neste processo: “Qualquer criatura


viva passa por um processo de crescimento, mas a ampliação da capacidade de crescer é algo
só pode ocorrer sob a influência de um professor cuidadoso, interessado e que sabe o que
faz.” (LIPMAN, 1998, p. 96) O papel do professor é de lidar com o crescimento das
capacidades e estilos de pensar de seus alunos, incentivando tanto a criatividade quanto o
rigor intelectual: “ao ensinar filosofia, o professor deve estar preparado para alimentar uma
profusão de estilos de pensar e ao mesmo tempo insistir em que o pensamento de cada um
seja tão claro, coerente e compreensivo quanto possível, desde que o conteúdo do pensamento
não fique comprometido. (LIPMAN, 1998, p. 127). A contribuição do professor é ajudar a
expressar a individualidade de sua experiência e a originalidade de seu ponto de vista. (cf.
LIPMAN, 1998, p. 29) É neste intenso processo de conviver com formas de pensar e se
comunicar diferentes que as crianças aprendem umas com as outras. Trata-se de um processo
de internalização do comportamento cognitivo aberto da comunidade cuja característica é a
autocorreção. Esta é a forma como Lipman entende a expressão vygotskiana “reprodução
intrapsíquico do interpsíquico.”
Lipman insiste na percepção das duas dimensões que se deve cuidar em relação à
criança no trabalho com filosofia:

[...] cada criança é um indivíduo e, ao mesmo tempo, faz parte da comunidade. Esses
dois fatos são indissociáveis. Como indivíduo, a criança é única e pode desenvolver
suas capacidades específicas de acordo com o papel que desempenha no grupo. Sua
especialidade individual se revelará na diferença que faz no grupo, e cada diferença
deve fazer uma diferença. (LIPMAN, 1998, p. 210, itálicos do autor)

Por sua vez, a filosofia praticada na comunidade de adultos e crianças é uma atividade
altamente estimulante: “O fato de adultos e crianças, conjuntamente, explorarem as
possibilidades filosóficas, é uma das conseqüências mais agradáveis e estimulantes da
filosofia.” (LIPMAN, 1998, p. 49) Este sentimento é expresso na seguinte fala de um aluno ao
final da aula de Filosofia: “Depois de uma discussão eu me sinto mais gente”. Outra
afirmação registrada por uma criança que passou por esta experiência diz: “Pessoa gera
pessoa quando há respeito, boa comunicação, entendimento, compreensão, amor e verdade.”
(Dossiê da turma 4ª D, E. M. Ricardo Krieger, apresentado no II Encontro de Filosofia para
Crianças, 1998).
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A Comunidade de Investigação pode ser ampliada no âmbito escolar transformando-se


numa prática para todas as áreas de conhecimento. Nesta prática pode ser desenvolvido o
pensar matemático, pensar artístico, pensar histórico, pensar científico, pensar religioso, etc.
Além disso, estas formas de pensar se entrecruzam proporcionando um intenso processo inter
e multidisciplinar. Por que não tentar?

A formação dos professores para desenvolver a filosofia em sala de aula é uma das
preocupações centrais de Lipman e colaboradores. Decorre daí a vasta produção teórica e
criação de organismos que se dedicam a esta prática. A formação na experiência Comunidade
de Investigação visa romper com o paradigma padrão da formação dos professores que é o de
transmissão de conteúdos, prática que é reproduzida em sala por esses professores formados
neste modelo.
A formação do professor que quer trabalhar com Filosofia para Crianças consiste
numa experiência de filosofar em uma Comunidade de Investigação, mediada por um
professor mais experiente nesta prática e com profundo conhecimento dos pressupostos,
alguns mencionados anteriormente. Esta experiência não é possível de ser transmitida por
livros ou explicada como acontece numa aula tradicional, embora explicação faça parte do
processo de aprendizado em comunidade. Assim, a compreensão pelo professor das
concepções de Filosofia para Crianças necessita de três processos que se complementam:
explicação, modelagem e experiência. Diz Lipman: “Esses três componentes – explicação,
modelagem e experiência – são indispensáveis na preparação dos professores para ensinar
filosofia para os alunos de 1º grau.” (LIPMAN, 1994, p. 173) Portanto, a formação do
professor em filosofia para crianças exige o seu envolvimento no processo de filosofar. O que
se busca é um professor filósofo. Para Lipman, o bom professor é aquele que faz da aula uma
prática do filosofar: “Um bom professor de filosofia nunca atinge um ponto onde parece não
haver mais necessidade de questionamento. O mundo é inesgotavelmente desconcertante.”
Assim a aula é uma prática de investigação filosófica que exige a participação forte e
perspicaz do professor: “Os filósofos são experientes em planejar perguntas encadeadas que
provocam os alunos a buscarem explicações cada vez mais amplas para suas experiências. (...)
Dessa maneira, a área de inteligibilidade do tópico em discussão é continuamente ampliada,
mas nunca com a sensação de que todos os mistérios desta área foram desvendados.”
(LIPMAN, 1994, p. 173) Alerta Lipman, portanto sobre a dificuldade de formação do
professor filósofo:
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É esse comportamento de maravilhamento que é tão difícil de ser explicar ou


transmitir por meio de técnicas, estratégias ou receitas. O maravilhamento não pode
ser fingido; tem que crescer a partir da própria experiência. Mas a melhor maneira
de produzir esta experiência é o professor modelá-la e a adquirimos por contágio.
Uma vez que se tenha contraído essa doença e experimentado a libertação dos
dogmas que ela produz, não se pode descansar até ter contagiado os estudantes com
a mesma experiência. (LIPMAN, 1994, p. 174)

A modelagem como formação de que fala Lipman é aquela que se processa na prática
da Comunidade e Investigação. Esta prática formativa não se esgota num curso ou numa
disciplina acadêmica. Exige cultivo e continuidade desta prática pelo professor com seus
alunos e seus colegas de trabalho (experiência), sempre acompanhada do aprofundamento da
experiência pelo estudo e pela troca de experiência. Assim, Lipman pretende articular uma
continuidade entre filosofia, educação e vida.

Considerações finais

Essa pesquiso percorreu os principais conceitos de Matthew Lipman acerta da relação


entre a filosofia e a educação. A defesa do autor é que a filosofia não pode ser separada no
processo de pensar os problemas da educação e, especialmente da formação do pensar
reflexivo da criança. Este processo não se faz pelo paradigma padrão da educação tradicional
que transmite conhecimentos para os educandos acreditando que num passe de mágica, no
final do processo, eles teriam aprendido a pensar.
O objetivo que perseguimos é o de mostrar o paradigma de uma educação reflexiva a
construído a partir da história da tradição do pensamento filosófico. Para isso Lipman
desenvolveu um ethos da experiência de pensar os conceitos filosóficos que é a pedagogia da
Comunidade de Diálogo e Investigação, coração e essência da educação reflexiva.
Exploramos a dupla meta da Comunidade que é a busca cooperativa pela verdade
(dimensão epistemológica), que demanda desenvolver um ethos de investigador, e pela justiça
(dimensão ética e política), o ethos da comunidade de diálogo, da convivência e sociabilidade,
aspectos inseparáveis do processo de aprender. Trata-se não somente de trabalhar com regras
lógicas necessárias para um pensar argumentativo, crítico e criativo, mas também de regras
éticas, do pensar cuidadoso. A transformação de uma sala de aula em uma Comunidade de
Diálogo e Investigação implica na mediação do professor. Esta mediação deve-se dar através
do diálogo e da pergunta, de forma que se possa criar a experiência de pensamento a partir do
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interesse dos alunos por questões que os afetam radicalmente, bem como, buscar os
significados relevantes na multiplicidade cultural.
A Comunidade de Diálogo e Investigação é o ambiente de aprendizagem em que
crianças e jovens podem desenvolver as diversas dimensões da subjetividade no diálogo entre
razão e emoções na relação interpessoal. A liberdade para expressar idéias, a autonomia do
pensar a descoberta das potencialidades, a participação, o respeito, o compromisso e seriedade
com o grupo e com o investigar, a construção reflexivas dos significados e crenças, a
deliberação / julgamento, a comunicação autêntica são elementos desta práxis filosófica da
Comunidade de Diálogo e Investigação.
A Comunidade de investigação não é um método para memorizar conteúdos, nem se
presta para a mera conversa. Consiste numa experiência reflexiva pautada pela
dúvida/questionamento-investigação-reelaboração das crenças. É uma experiência de vida
ética, cidadã e democrática. Nesta experiência, as crianças têm melhores condições de discutir
os conceitos básico e, dessa forma, desenvolver a capacidade de produzir bons argumentos,
fazer julgamentos e deliberar cooperativamente. Mais do que isso, a comunidade de
investigação deve ser um ambiente de confiança, respeito, cooperação, diálogo, sensibilidade
para com os aspectos problemáticos da vida. É uma experiência de liberdade e
responsabilidade na qual a criança pode pensar por si mesma os valores que orientam sua
conduta. A criança participa como um sujeito ativo, protagonista do processo. O
desenvolvimento da comunidade de investigação em sala de aula depende de um trabalho
exigente e sistemático, preocupado com o desenvolvimento humanístico e integral da pessoa.

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