Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
EM COMUNIDADE
Resumo
O presente trabalho discute o problema da formação filosófica das crianças através da criação
da experiência do pensar conceitos em uma comunidade de investigação. Tal problema foi
colocado pioneiramente por Matthew Lipman que criou um conjunto de conceitos próprios
para viabilizar a aproximação da filosofia ao universo educativo das crianças e que está
expresso na formulação Filosofia para Crianças. Nossa pesquisa aborda essa questão através
da análise bibliográfica dos conceitos desenvolvidos por Lipman. Esta pesquisa se faz
importante na medida em que nos leva a problematizar as relações entre filosofia e educação.
Entendemos que a contribuição relevante de Lipman resulta da compreensão do valor e
função da filosofia na educação que é a de pensar os problemas próprios da educação e de
oferecer instrumentos imprescindíveis para a educação do pensamento das crianças. Para isso,
Lipman desenvolveu a pedagogia da Comunidade de Investigação como ambiente para
promover a experiência de diálogo e questionamento sobre conceitos filosóficos. Tais
conceitos são definidos pelo autor como centrais, comuns e controversos na experiência
humana e tratados de maneira recorrente na história da filosofia. Lipman entende que a
criança, desde muito pequena, está imersa numa experiência de indagar, pensar e refletir sobre
conceitos filosóficos. Para significar sua experiência ela necessita e aprecia o pensar
filosófico. A sua experiência de pensamento é fonte da criação dos sentidos que constituem
cada pessoa e que orientam o pensar, o falar e o fazer na vida.
1
Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Prof. do Departamento de Educação da UEL. E-mail:
murarodnm@gmail.com
24305
educação. Kohan (2000, p. 14) afirma que Lipman é o “[...] o fundador do movimento por
levar sistematicamente a prática da filosofia à educação das crianças.” Ele criou a primeira
expressão sistemática que compreende fundamentos filosófico-educacionais, metodologia e
prática.
A problemática da possibilidade de uma educação filosófica da criança deste filósofo
está inserida numa discussão de caráter mais amplo, ou seja, a discussão das relações entre
filosofia e educação. Este é o primeiro aspecto que propomos trabalhar nesse artigo de forma
a conduzir a reflexão sobre a experiência de pensar conceitos em comunidade com crianças.
Filosofia para Crianças emerge das concepções de Filosofia da Educação
desenvolvidas por Matthew Lipman. A referência da qual parte Lipman é a teoria filosófico-
educacional de John Dewey, que já em 1916, havia alertado para a íntima associação entre
Filosofia e educação:
memorizar as idéias dos filósofos, mas para pensar reflexivamente a experiência. Isto se
consegue privilegiadamente pela educação.
A criança, desde muito pequena, está imersa numa experiência de pensar e refletir
sobre seu próprio pensar. Sua experiência contém multiplicidade de problemas. Seguidamente
ela se coloca perguntas sobre aspectos que envolvem conceitos como verdade, justiça,
bondade, autoridade, amizade, realidade, amor, conhecimento, felicidade, etc. Para significar
sua experiência ela necessita e aprecia o pensar filosófico. A sua experiência pode ser
conduzida de maneira reflexiva permitindo ampliar os sentidos com a dimensão da valoração,
da beleza, da justiça, da convivência, etc. Descobrir estes sentidos é motivo de grande alegria,
o que contribui para o desenvolvimento do senso de auto-estima. Esta experiência é fonte da
criação dos sentidos que constituem cada pessoa e que orientam o pensar, o falar e o fazer na
vida. Por isso, o conjunto de teorias ou sistemas de ideias desenvolvidos ao longo da história
da filosofia deveria ser reconstruído para que as crianças pudessem ter contato com as mais
variadas dimensões exploradas pelos filósofos e, gradativamente, poder se engajar na
experiência do filosofar.
Historicamente, as questões originárias no campo da filosofia deram origem à grande
diversidade de conhecimentos, dentre eles as ciências. Decorre daí a necessidade de repensar
o paradigma padrão da educação como transmissão de conhecimentos ensinados como não
ambíguos, não equívocos, exaustivamente dominados. Na educação tradicional, o professor é
a autoridade que detém o conhecimento e o transmite aos alunos que não o sabem. Os alunos
devem absorver e estocar os conhecimentos para seu uso futuro. Este modelo de educação
privilegia a memória e não as demais capacidades como o questionamento, a reflexão e
julgamento e o desenvolvimento de atitudes de um agir socialmente.
Lipman considera que não é mais aceitável a educação ter como objetivo a
transmissão do saber diante da rapidez das mudanças tecnológicas, econômicas, sociais,
ecológicas, etc. As informações se tornam obsoletas em curto período de tempo, o contexto
social sofre mutações e se complexifica, o desenvolvimento dos meios de comunicação e o
processo de globalização expõem as crianças à pluralidade e fragmentação dos sistemas de
referências. Diante deste quadro de uma sociedade em profundas e rápidas transformações,
Lipman propõe um novo paradigma de educação que a compreende como investigação
(inquiry) em comunidade, portanto, uma educação orientada pelos valores da vida
democrática. Por isso, o aspecto principal do processo educacional é melhorar a capacidade de
24307
pensar, condição básica para a participação democrática, conforme depreendemos dessa sua
afirmação: “Quando a educação se transforma em educação como investigação e educação
para a investigação, o produto social desta mudança institucional será a democracia como
investigação e não meramente democracia.” (LIPMAN, 1995, p. 355) Para Lipman, a
filosofia é a disciplina que historicamente tem se ocupado de pensar sobre o pensar. Ela
aperfeiçoa o processo da investigação tanto na forma como no conteúdo. Assim, Lipman vê a
educação em toda sua complexidade como um modo de investigação. A Filosofia se insere
neste modo de investigação desempenhando papel fundamental na medida em que contribui
com questionamentos de ordem lógica, ética, política, epistemológica, etc. Somente desta
forma é possível ensinar a pensar por si mesmo e sobre o próprio pensar.
A educação deveria partir do que é problemático na experiência dos alunos e, num
ambiente de comunidade, desenvolver a investigação rigorosa, crítica, criativa e cuidadosa. O
processo investigativo, cooperativo e deliberativo, proporciona também o desenvolvimento de
habilidades de pensamento contribuindo para o aprender a pensar de forma autônoma e
autocorretiva, aprender a conviver em ambiente dialógico e democrático, aprender a agir de
acordo com valores éticos cujos significados foram processados pela reflexão, aprender a
participar do exercício da cidadania de forma responsável. Assim, a educação pode realizar
sua função cognitiva, social, política e ética.
Criança e Filosofia
A Comunidade de Investigação
A importância do Professor
[...] cada criança é um indivíduo e, ao mesmo tempo, faz parte da comunidade. Esses
dois fatos são indissociáveis. Como indivíduo, a criança é única e pode desenvolver
suas capacidades específicas de acordo com o papel que desempenha no grupo. Sua
especialidade individual se revelará na diferença que faz no grupo, e cada diferença
deve fazer uma diferença. (LIPMAN, 1998, p. 210, itálicos do autor)
Por sua vez, a filosofia praticada na comunidade de adultos e crianças é uma atividade
altamente estimulante: “O fato de adultos e crianças, conjuntamente, explorarem as
possibilidades filosóficas, é uma das conseqüências mais agradáveis e estimulantes da
filosofia.” (LIPMAN, 1998, p. 49) Este sentimento é expresso na seguinte fala de um aluno ao
final da aula de Filosofia: “Depois de uma discussão eu me sinto mais gente”. Outra
afirmação registrada por uma criança que passou por esta experiência diz: “Pessoa gera
pessoa quando há respeito, boa comunicação, entendimento, compreensão, amor e verdade.”
(Dossiê da turma 4ª D, E. M. Ricardo Krieger, apresentado no II Encontro de Filosofia para
Crianças, 1998).
24313
A formação dos professores para desenvolver a filosofia em sala de aula é uma das
preocupações centrais de Lipman e colaboradores. Decorre daí a vasta produção teórica e
criação de organismos que se dedicam a esta prática. A formação na experiência Comunidade
de Investigação visa romper com o paradigma padrão da formação dos professores que é o de
transmissão de conteúdos, prática que é reproduzida em sala por esses professores formados
neste modelo.
A formação do professor que quer trabalhar com Filosofia para Crianças consiste
numa experiência de filosofar em uma Comunidade de Investigação, mediada por um
professor mais experiente nesta prática e com profundo conhecimento dos pressupostos,
alguns mencionados anteriormente. Esta experiência não é possível de ser transmitida por
livros ou explicada como acontece numa aula tradicional, embora explicação faça parte do
processo de aprendizado em comunidade. Assim, a compreensão pelo professor das
concepções de Filosofia para Crianças necessita de três processos que se complementam:
explicação, modelagem e experiência. Diz Lipman: “Esses três componentes – explicação,
modelagem e experiência – são indispensáveis na preparação dos professores para ensinar
filosofia para os alunos de 1º grau.” (LIPMAN, 1994, p. 173) Portanto, a formação do
professor em filosofia para crianças exige o seu envolvimento no processo de filosofar. O que
se busca é um professor filósofo. Para Lipman, o bom professor é aquele que faz da aula uma
prática do filosofar: “Um bom professor de filosofia nunca atinge um ponto onde parece não
haver mais necessidade de questionamento. O mundo é inesgotavelmente desconcertante.”
Assim a aula é uma prática de investigação filosófica que exige a participação forte e
perspicaz do professor: “Os filósofos são experientes em planejar perguntas encadeadas que
provocam os alunos a buscarem explicações cada vez mais amplas para suas experiências. (...)
Dessa maneira, a área de inteligibilidade do tópico em discussão é continuamente ampliada,
mas nunca com a sensação de que todos os mistérios desta área foram desvendados.”
(LIPMAN, 1994, p. 173) Alerta Lipman, portanto sobre a dificuldade de formação do
professor filósofo:
24314
A modelagem como formação de que fala Lipman é aquela que se processa na prática
da Comunidade e Investigação. Esta prática formativa não se esgota num curso ou numa
disciplina acadêmica. Exige cultivo e continuidade desta prática pelo professor com seus
alunos e seus colegas de trabalho (experiência), sempre acompanhada do aprofundamento da
experiência pelo estudo e pela troca de experiência. Assim, Lipman pretende articular uma
continuidade entre filosofia, educação e vida.
Considerações finais
interesse dos alunos por questões que os afetam radicalmente, bem como, buscar os
significados relevantes na multiplicidade cultural.
A Comunidade de Diálogo e Investigação é o ambiente de aprendizagem em que
crianças e jovens podem desenvolver as diversas dimensões da subjetividade no diálogo entre
razão e emoções na relação interpessoal. A liberdade para expressar idéias, a autonomia do
pensar a descoberta das potencialidades, a participação, o respeito, o compromisso e seriedade
com o grupo e com o investigar, a construção reflexivas dos significados e crenças, a
deliberação / julgamento, a comunicação autêntica são elementos desta práxis filosófica da
Comunidade de Diálogo e Investigação.
A Comunidade de investigação não é um método para memorizar conteúdos, nem se
presta para a mera conversa. Consiste numa experiência reflexiva pautada pela
dúvida/questionamento-investigação-reelaboração das crenças. É uma experiência de vida
ética, cidadã e democrática. Nesta experiência, as crianças têm melhores condições de discutir
os conceitos básico e, dessa forma, desenvolver a capacidade de produzir bons argumentos,
fazer julgamentos e deliberar cooperativamente. Mais do que isso, a comunidade de
investigação deve ser um ambiente de confiança, respeito, cooperação, diálogo, sensibilidade
para com os aspectos problemáticos da vida. É uma experiência de liberdade e
responsabilidade na qual a criança pode pensar por si mesma os valores que orientam sua
conduta. A criança participa como um sujeito ativo, protagonista do processo. O
desenvolvimento da comunidade de investigação em sala de aula depende de um trabalho
exigente e sistemático, preocupado com o desenvolvimento humanístico e integral da pessoa.
REFERÊNCIAS:
KENNEDY, David, KOHAN, Walter O. Filosofia para crianças Vol. III - Possibilidades
de um encontro. Petrópolis: Vozes, 1999.
KOHAN, Walter Omar. Filosofia para crianças. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
LIPMAN, Mathew. A filosofia vai à escola. 2ª ed., São Paulo: Summus, 1990.
______. Thinking in education. United Kingdom: Cambridge University Press, Second Edition,
2003.
______. OSCANYAN, F.; SHARP, A. M. Filosofia na sala de aula. São Paulo: Nova Alexandria,
1998.
SHARP, Ann M., SPLITTER, Laurance J. Uma nova educação. São Paulo: Nova Alexandria, 1999.