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Capítulo 3 – O relato falado como forma de captar os rastros e vestígios de experiência

histórica da cidade

A fala, em nosso trabalho, é tomada como uma fonte rica em rastros e a partir deles,
como nos ensinam as leituras benjaminianas, podemos captar a realidade por sua perspectiva
fragmentária. A fala dos moradores e suas impressões podem nos expor como o todo se
constrói por um emaranhado de percepções, e cada forma de entender a realidade pode nos
apontar ricamente para uma melhor interpretação da cidade no tempo presente

A pesquisa, que tem como intenção desvelar a trajetória de atos, gestos e


palavras do homem comum, assume, no agora, um compromisso com o
futuro. Isso requer uma determinada postura do pesquisador, a qual se
expressa na tomada de consciência de que nenhum fato, por mais simples
que seja, pode ser considerado perdido para a história (GUSMÃO; SOUZA,
2010, p. 288).

Para o trabalho com o nosso recurso de fonte, Benjamin nos aponta que o historiador
se volta às primeiras formas de se registrar a história, ou seja, a de um cronista. Para isso
tomamos a construção da história a partir das percepções daqueles que vivem em determinado
momento (em sua heterogeneidade) e, a partir delas, podemos buscar o que o pensador
alemão discute como primordial em sua filosofia da história, a experiência, colocá-la como
forma de encarar interpretativamente a história, como ele deixa claro em suas Teses: “O
cronista que narra os acontecimentos sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em
conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a
história” (BENJAMIN, 1994, p. 223).
A partir dessas considerações, afirmamos que, a partir do relato dos moradores do
Condomínio Jardins Madrid e do Assentamento Real Conquista, podemos angariar
informações, colocando o sujeito como fonte de pesquisa e, por meio da fala, buscar primeiro
uma visão que os inventários de papel silenciam, adotando o saber do senso comum como
instrumento de pesquisa científica.
A priori, o sentido da pesquisa é buscar, na voz dos moradores, formas mais enfáticas
dos aspectos subjetivos e, como recomenda Benjamin, construir uma história mais viva, pois é
na experiência que os sentidos são verdadeiramente construídos; a vida se torna um épico que
o positivismo negou em nome de uma linearidade científica.
No ensaio sobre O Narrador, Walter Benjamin indica um método interpretativo para
tratar as entrevistas como fonte. A fala, comenta o autor, deve ser tomada como uma “forma
artesanal de comunicação” (BENJAMIN, 1994, p. 205). E como artesanal, a fala dos
moradores não tem em si a função de expor uma verdade pura ou real. No desenrolar das
entrevistas, aquele que nos relata atribui à história e à sua experiência urbana um caráter
autobiográfico. Sendo assim, os vestígios estão inerentes de várias maneiras nas coisas
narradas.
Esses vestígios ou rastros de linguagem deixados pelos indivíduos, acentua George
Otte (2012), apontarão como a relação dos sujeitos com seu espaço de moradia a partir de
seus relatos é construtora de sentido, como marcas dos dedos do artesão na argila.
A historiografia crítica de Benjamin sugere que o relato falado dos moradores por nós
pesquisados pode nos dar a possibilidade de outras interpretações, diferentes do que a
realidade urbana de Goiânia nos apresenta. Ao estudarmos cada espaço de vivência, podemos
entender as relações que ali se constroem. Nosso papel de pesquisador em relação ao que é
narrado em cada entrevista é o de entender o que estaria por trás do que é colocado
explicitamente por cada morador em sua fala.

Procuram por aquilo que escapa ao controle da versão dominante da história,


introduzindo na epicidade triunfante do relato dos vencedores em um
elemento de desordem e de interrogação. Esses rastros são geralmente pouco
visíveis num duplo sentido: não se destacam, não são os traços “dominantes
de uma época”, costumam dizer, e também são muito mais detalhes que
parecem aleatórios, restos insignificantes que, à primeira vista, poderiam e
deveriam ser jogados fora (GAGNEBIN apud SEDLMAYER; GINZBURG,
2012, p. 33).

Um dos pontos cruciais do nosso processo de captação de entrevistas foi o de sempre


procurar que elas fossem feitas na casa do indivíduo, com a intenção de que o processo fosse
extremamente confortável para eles e, com isso, a exposição de seu relato pudesse nos
fornecer o máximo de informações para que entendêssemos como a relação do morador e o
seu espaço de moradia são construtores das múltiplas formas com as quais o espaço urbano
pode ser interpretado.
Para tal pesquisa, o historiador materialista, no sentido benjaminiano, como já
afirmado, ganha o caráter de cronista, ao passar para a escrita as experiências daqueles que
falam. Nessa transferência do falado para o ouvido e assim para o escrito, fica estabelecido
que essa relação dialética, onde quem ouve (pesquisador) e quem fala (entrevistado) mantêm
uma troca. Isso deixa vestígios em toda a investigação, ou seja, a pretensão do distanciamento
e frieza da ciência moderna se torna impossível em um trabalho onde o relato falado é um
recurso de fonte. “Assim, seus vestígios estão presentes de muitas maneiras nas coisas
narradas, seja na qualidade de quem as viveu, seja na qualidade de quem as relata”
(BENJAMIN, 1994, p. 205),
A partir dessa constatação teórica, sabemos que nosso trabalho de transferir o que é
falado para o escrito precisa ser feito de maneira que o que é dito tenha o mínimo de prejuízos
possíveis. Esse trabalho “artesanal” (OTTE, 2012) tende a preservar na escrita o que é falado
sem nenhuma correção ou pretensão de intermediar o que cada morador queira dizer.
Para Benjamin (1994, p. 210), “não se percebeu devidamente até agora que a relação
ingênua entre o ouvinte e o narrador é dominada pelo interesse em conservar o que foi
narrado. Para o ouvinte imparcial, o importante é assegurar a possibilidade da reprodução”.
Como historiadores, acrescenta Benjamin, aproximamo-nos dos cronistas clássicos na
missão de salvar a história da indiferença das explicações totais e lineares universalizantes.
Outra missão é conservar do relato aquilo que é reminiscência. Assim, ao adaptar o que é
falado ao escrito, é preciso termos consciência de que há necessidade de receber o relato com
uma interpretação da realidade assim como ela é, atentando para o fato de que, por ser
interpretação, existe uma ligação entre o que está como particular e o que é expressado
universalmente. Em resumo, voltamos a uma observação monadológica da realidade.

Contrariamente às notícias de jornal, baseadas nas lógicas modernas de


mediação e da verificação empírica, a relação entre narrativa e experiência
não é da ordem da plausabilidade interna, mas reside na analogia
“monadológica” entre o particular e o universal: a narrativa, enquanto
mônada, reproduz o macrouniverso da experiência humana com todos os
seus mistérios (OTTE apud SEDLMAYER; GINZBURG, 2012, p. 64).

Essa relação demonstra como os indivíduos, em sua subjetividade, abarcam a


objetividade do mundo que os cerca. Em termos da história oral, aqui proposta como
ferramenta de pesquisa, a história individual é tomada como interligada diretamente à história
coletiva. No interior de cada relato individual estão inseridos os aspectos do coletivo. Ao se
tornarem narradores da própria história, os indivíduos pesquisados vão revelando, por meio de
suas práticas, qual o seu papel dentro da realidade social que vivem.
Na sociedade moderna, na qual a experiência é empobrecida pelos aparelhos técnicos,
Benjamin aponta a possibilidade de, nos relatos falados, restabelecer de alguma forma um
contato com essa experiência que o desenvolvimento da sociedade moderna fragmentou. Os
indivíduos se tornaram destituídos, em sua subjetividade, da oportunidade de deixar vestígios
ou rastros na história. A massificação, em nome do discurso de progresso e da velocidade,
arranca do ser vivente a capacidade de refletir, ou seja, ele não consegue encaixar-se na
totalidade do discurso porque se enxerga como um estranho na realidade que o cerca. Ao
discutir essa questão, Otte (2012) traz a reflexão de Benjamin acerca da situação, alegorizando
sua explicação a partir da ideia do artesão e sua alienação com o advento da indústria e a
produção em massa.

Na passagem para o operariado industrial, o artesão, que tinha seu lugar e


que punha as coisas no seu lugar, passou a ser um “deslocado” e a sofrer
alienação do seu trabalho, do produto do seu trabalho, do seu ambiente de
trabalho e de si mesmo, conforme a análise Karl Marx. Lembremos que um
dos significados de alienus em latim (e ainda presente no alien inglês), é
“forasteiro” e se refere a alguém que está fora do seu lugar, do seu habitat,
da sua casa (OTTE apud SEDLMAYER; GINZBURG, 2012, p. 68).

Com o advento da modernidade, os indivíduos, muito mais que alienados, no que


tange à experiência, encontram-se em um estado de “desenraizamento transcendental”
(BENJAMIN, 1994, p. 212). O resultado desse estado é o isolamento, que se caracteriza pela
perda do sentido da vida, pois ele se rompe em uma dualidade, exterior e interior. Aí está a
barbárie benjaminiana: as técnicas modernas da informação, a rapidez com que elas nos
aparecem, acabam por levar a um cansaço subjetivo. Passa-se de produtor para apenas um
reprodutor do que é imposto como realidade. Em síntese, uma vida sem reflexão só pode nos
levar a catástrofe de apenas vivenciar a realidade, porque, ao não ser refletida, a vida deixa de
ter uma “moral da história” (BENJAMIN, 1994).

Pobreza de experiência: não se deve imaginar que os homens aspirem a


novas experiências. Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência,
aspiram a um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua
pobreza externa e interna, que algo de decente possa resultar disso. Nem
sempre eles são ignorantes ou inexperientes. Muitas vezes podemos afirmar
o oposto: eles “devoram” tudo, a “cultura” e os “homens”, e ficaram
saciados e exaustos. Vocês estão todos tão cansados – e tudo porque não
concentraram todos os seus pensamentos num plano totalmente simples, mas
absolutamente grandioso. Ao cansaço segue-se o sonho, e não é raro que o
sonho compense a tristeza e o desânimo do dia, realizando a existência
inteiramente simples e absolutamente grandiosa que não pode ser realizada
durante o dia, por falta de forças (BENJAMIN, 1994, p. 118).

Separado em interior e exterior, o habitante da cidade busca de alguma forma


resguardar-se o mínimo possível dessa barbárie em seu lar, no qual, como uma cápsula de
proteção, ele se sente seguro e pode ali fazer o que a cidade no exterior lhe nega: deixar
rastros e vestígios de vida. O nosso trabalho tenta buscar, no relato, reavivar ou de algum
modo recriar a possibilidade que a dualidade interioridade/exterioridade do indivíduo seja
ultrapassada para que ele possa reconhecer-se como um sujeito social, dotado de interioridade.

Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente


do seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o
passado é citável, em cada um dos seus momentos. Cada momento vivido
transforma-se numa citation à lórdre du jour – e esse dia é justamente o do
juízo final (BENJAMIN, 1994, p. 223).

A perspectiva monadológica de interpretação da história nos permite entender a


relação dialética entre interior (subjetivo) e exterior (objetivo). A partir disso admitimos a
função dada por Benjamin ao historiador: a de redimir a humanidade e com isso apropriar-se
verdadeiramente da história, ancorado na reflexão, e romper com a barbárie da narrativa
positivista, com a história pensada pelo continuum e com a violência discursiva do progresso.
Em nosso trabalho, o relato oral ganha então a função de expor, a partir dos rastros da
linguagem, as múltiplas formas de apropriação da urbe Goiânia no presente. Ressaltamos que
o que é transmitido pela fala é tão importante quanto o que não é dito — a exemplo dos vários
cancelamentos de entrevistas durante o percurso da pesquisa e as autorrestrições impostas
pelos indivíduos pesquisados a suas narrações. Se o relato oral pode nos dar rastros dos que
habitam a cidade, o silêncio e a restrição são tomados como formas de apagar algum vestígio.
Entretanto, ao se tentar apagar um vestígio ou até mesmo encobri-lo, o indivíduo deixa mais
rastros que são extremamente importantes para o entendimento do contexto por nós estudado.
Em artigo que debate o rastro benjaminiano, Gagnebin (2012) assevera que, como
pesquisadores, devemos nos comportar como detetives que, na investigação de um crime,
percebem as tentativas de apagar ou ocultar pistas deixadas pelo criminoso que,
intencionalmente ou não, abrem a possibilidade — no caso da nossa pesquisa — de ampliar o
entendimento de como a história da cidade de Goiânia vem sendo construída.

Exemplo do ladrão que quer apagar seus rastros, deixa outros que não quis e
eloquente enquanto signo no sentido clássico do termo, em particular o
linguístico, que tenta transmitir uma “mensagem”, como se diz relacionada
às intenções, às convicções, aos desejos do seu autor, o rastro pode se voltar
contra aquele que o deixou e até ameaçar sua segurança. Nesse sentido muito
preciso de signo não intencional, o rastro remete a algo que excede a vontade
consciente do sujeito; a algo que também pode ameaçá-lo (GAGNEBIN
apud SEDLMEYER; GINZBURG, 2012, p. 32).

A pergunta que deve ser feita acerca dos rastros deixados pelos moradores, além do
dito, é: O que pode estar sendo exposto sem uma intencionalidade explícita? Uma resposta
proposta por Benjamin é buscar, na linguagem, o que a modernidade nega. Sob esse ponto de
vista, o autor alemão propõe analisar aquilo que a historiografia globalizante esconde, ou o
que a história dos vencedores oprime, considerando que a partir dos rastros podemos criar
outras possibilidades de interpretação dos acontecimentos.
De algum modo, com o relato falado temos condições de restaurar, em certas
instâncias, o que um dia foi a experiência que, como já comentamos, foi-nos tirada pelo
progresso. Mas acreditamos que, com a entrevista, podemos resgatar, pelo menos, resíduos
das experiências que ainda restam, captar os detalhes que escapam do consenso interpretativo
sobre a cidade de Goiânia hoje, assumindo o papel não somente de detetive, como fala
Benjamin, mas também de psicanalista.

O historiador materialista de Benjamin e o médico psicanalista de Freud são


ambos caracterizados por essa atenção ao detalhe, ao insignificante e ao
detrito; nos termos de Baudelaire ambos seriam especialistas no capharnaum
des rebuts (no carfanaum dos dejetos ou da escória) (GAGNEBIN apud
SEDLMEYER; GINZBURG, 2012, p. 32).

Em mais uma das suas alegorias, o historiador se aproxima da figura do trapeiro que
recolhe aquilo que a sociedade rejeita. Em nosso caso, a partir do relato falado podemos entrar
em contato com aquilo que nos é passado de maneira não intencional e com isso salvar,
mesmo que em migalhas, o que escapa da autoridade das interpretações globalizantes da
realidade espacial da capital de Goiás.
Ao optarmos pela fonte oral entendemos que a pobreza de experiência do mundo
moderno se reflete na linguagem. Com o discurso do progresso não há experiência a se
compartilhar, pois a cidade moderna, como representação das técnicas, impossibilita deixar
vestígios e rastros de existência. O que antes, por meio da narração, aproximava e se
transformava em sabedoria, hoje, pela fluidez dos meios de comunicação, transmuta-se em
informação fugidia, rápida, e numa quantidade tão grande que impede os indivíduos de
converterem informação em conhecimento, saber ou moral – diferentemente do que Benjamin
(1980) chama de “período épico da verdade”, quando

cultivava-se a sabedoria e, por isso, a narração apresentava uma função de


aconselhamento porque não era um simples relato, mas se consubstanciava
como uma proposta de continuidade de uma história que não cessava: “a arte
de narrar tende para o fim porque o lado épico da verdade, a sabedoria, está
agonizando (BENJAMIN, 1980, p. 59).
Entendemos que a narração em forma de entrevista nos trará rastros e vestígios da
experiência que se perde ou pelo menos sinalizará como, subjetivamente, os moradores de
Real Conquista e Jardins Madrid internalizam o mundo externo à sua realidade. No ato de
narrar, a linguagem funciona como um mecanismo que dá voz ao pensamento. Os indivíduos
que cotidianamente são desapossados de sua história podem, com o relato, trazer o que a
memória constrói sobre a realidade para deixá-la mais suportável ou no mínimo inteligível
para aquele que fala.
Mesmo não se propondo ser um cânone teórico (longe disto), a historiografia, a partir
da perspectiva benjaminiana, coloca-nos a possibilidade de o indivíduo, por meio de sua
narração, contar sua história, articulando-a à realidade de morar na cidade Goiânia, expor sua
percepção do ambiente que o cerca. E nós, pesquisadores, precisamos estar atentos a como
cada sujeito constrói essa leitura no que tange ao exposto conscientemente e ao que
inconscientemente fica como rastro. Essa situação dada à pesquisa abre a possibilidade de
múltiplas interpretações acerca de como as pessoas pesquisadas enxergam a realidade.

Essa compreensão do ato de leitura se articula com a polissemia na


linguagem. Trata-se de uma perspectiva favorável à valorização da
importância de um rastro. Um elemento fragmentário, residual, pode ser lido
como cifra de uma trajetória que o ultrapassa – a história de um indivíduo,
uma sociedade, um país. Para que um rastro tenha essa potencialidade, é
necessário um observador capaz de discernir entendimentos da linguagem
(GINZBURG, 2012, p. 108).

Nesse sentido, decidimos não criar um questionário, mas sim um roteiro para
direcionar as entrevistas, a fim de deixar o indivíduo livre e à vontade para colocar suas
percepções. Ao usarmos o relato como fonte, assumimos a linguagem como ferramenta de
exposição do pensamento, entendendo que ela “envolve pelo menos, dois horizontes diversos”,
como aponta Ginzburg (2012, p. 110): “a concepção de que a linguagem traz em si o objeto a
que se refere, sendo capaz de funcionar de modo imediato na produção de significado, e a
percepção de que na linguagem tudo é cifrado, nada é imediato, e é constante a exigência de
trabalho interpretativo”.
Isso implica, como nos ensina Benjamin, realizar análises com objetivo de uma
compreensão mais ampla, afastada de “miragens”, superar uma possível ilusão de ótica, ou
seja, só de uma maneira atenta e contemplativa o observador é capaz de perceber o que é de
imediato exposto e o que inconscientemente é deixado como rastro.
Para sermos capazes de analisar o que nos é relatado, da forma proposta por Benjamin,
precisamos ter como base de interpretação uma história que não esteja vinculada a uma
linearidade harmônica, na qual sua produção se paute numa massa de informações que são
colocadas organizadamente em uma linha sem vida. Em suas Teses sobre a história (1994), o
autor propõe uma análise historiográfica na perspectiva de escovar a história a contrapelo, de
uma maneira que revele o que ficou escondido sob a capa dos relatos oficiais. Isso significa
partir dos rastros de linguagem em direção a uma leitura da construção da história de Goiânia
que vai “contra a corrente da versão oficial da história” (LOWY, 2005, p. 74).
O pesquisador, nessa perspectiva, parte de uma percepção da história que se distancia
do viés da continuidade, com um comportamento aberto para as formas de como os indivíduos
narram suas vidas. Como autobiografias, elas são expostas de forma não contínua; sempre
algo é colocado, lembrado ou esquecido. Em nosso trabalho, estar aberto a essa
descontinuidade é estar atento a isso e, com perguntas que podem até ser repetitivas, buscar
trazer à tona aquilo que pode estar sendo deixado de lado ou “esquecido” pelo entrevistado.
As entrevistas, como ato de narrar, propicia percepções confiáveis da memória. As
histórias pessoais criam a possibilidade de encarar a história com algum sentido, ou seja, a
narração é colocada como atividade que torna significativo aquilo que, nas interpretações
totalizantes, é destituído de significado.
Pesavento (2003) acentua que o historiador italiano Carlo Ginzburg, com seu
paradigma indiciário, orienta sobre como a fonte oral pode trazer como rastros o que
exatamente na realidade se desenvolve, como, por exemplo, colocar a casa como uma
segurança de vida. Nesse caso, os moradores deixam claro, como verdade, que a conquista da
moradia própria torna seu vínculo com a cidade mais segura. Podemos, a partir dessa
afirmação, analisar os vários sentidos atribuídos à “segurança” pelos moradores, considerando
que alguns significados são expostos no decorrer das entrevistas.
O método de Ginzburg nos auxilia a entender como cada afirmação ou interpretação
do que é colocado pelo morador estabelece uma relação entre o que ele diz — isso como
expressão do pensamento — e a realidade que o cerca. Cabe ao pesquisador selecionar os
principais elementos para melhor compreender essa relação entre internalidade individual e
exterioridade social.
Nos dois grupos por nós pesquisados, o termo “segurança”, de uso recorrente, tem o
sentido literal de protegido, mas essa interpretação se amplia a partir dos rastros deixados
durante a narrativa, levando ao sentido de estar seguro em relação ao mundo de fora, sentir-se
seguro por ter onde morar; em resumo, estar fixado no mundo.
Para nós, esse método permite analisar o que pode ser fugidio ou disperso e percebê-lo
como pertencente a um todo, procurando um nexo que nos direcione para uma interpretação
mais coerente de como os grupos do Jardins Madrid e do Real Conquista interpretam o
mundo. Como diz Ginzburg (2012, p. 119), “para que eventos independentes façam sentido
em uma narrativa, é preciso que sejam considerados nexos entre eles. Definir um
acontecimento como causa de ocorrência seguinte, ou como efeito de um evento anterior, é
fundamental para atribuir valor a ele”.
O ato de narrar a própria vida traz, para aquele que narra, uma carga moral e cognitiva,
ou seja, ao nos contarem sobre sua experiência urbana, os moradores pesquisados fazem
escolhas para dar, ao que é exposto, certa “autoridade de verdade”, ou seja, “o que eu narro é
como vejo e julgo o mundo” e, a partir disso, esse mundo que me cerca faz sentido.
Ressaltamos que nosso objetivo com os relatos orais não é criar uma reflexão histórica
pautada na causalidade; pelo contrário, mesmo com a citação de Ginzburg como um
referencial teórico, temos a noção de que os relatos não trazem em si uma história fechada de
condicionamento do indivíduo pelo social, mas uma relação dialética. Entendemos, como
Benjamin, que a interpretação do humano envolve componentes de dissociação e rupturas nos
campos do social e coletivo.

Em Benjamin, para além de um papel transmissor, a linguagem se constitui


em um limiar: ela não é inteiramente capaz de se referir ao mundo de modo
imediato, nem pode ser entendida exclusivamente como mediação ou como
cifra. É nesse fundamento que se desfaz a expectativa de uma narrativa
capaz de ser uma totalização conclusiva (GINZBURG, 2012, p. 25).

Outro ponto importante a ser considerado é que estaremos trabalhando com o campo
da memória e “esta efectua antes uma tarefa de conservação/selecção da experiência,
protegendo o indivíduo da brutalidade das impressões sofridas” (COUTINHO, 2003).

É impossível revermos completamente algo já esquecido. E talvez seja bom


assim. O choque da requisição do passado seria de tal maneira arrasador que,
nesse momento, deixaríamos forçosamente de compreender a nossa saudade.
Deste modo, compreendêmo-la, e quanto mais profundamente jazer em nós
o esquecido, tanto melhor. Tal como a palavra esquecida, ainda há pouco
sobre os lábios, libertaria a língua para vôos demostécnicos, o esquecido
parece conter em si o peso de todo o vivido que nos é prometido. O que o
torna tão pesado e carregado, talvez não seja outra coisa senão os vestígios
de hábitos desaparecidos, nos quais já não nos saberíamos orientar.
Provavelmente o segredo que os faz sobreviver consista na sua mistura com
a poeira de nossas construções desmoronadas (BENJAMIN, 1992, p. 152).
Segundo Gagnebin (2006), o historiador, ao lidar com o relato falado, terá primeiro
que enfrentar o esquecimento — pois trabalha com a memória até seu limiar —, a mentira ou
o falseamento das percepções de quem narra.

Trata-se do problema da confiabilidade do narrador [...] É possível suspeitar


da transparência do relato, dos princípios éticos a partir dos quais o narrador
avalia personagens e da precisão [...] A relação entre esquecimento e
narrativa é uma questão fundamental. O ato de narrar não constitui apenas
um espaço de memória. Em suas fronteiras se apresentam os campos que a
memória não permite elaborar de modo linear ou causal. Toda narrativa pode
conter, como uma sombra que a constrange, indicadores de que um
movimento de recuperação de dados da memória envolve naturalmente
cortes que produzem esquecimentos (GINZBURG, 2012, p. 122 e 124).

Com relação à memória, Benjamin aponta que nela estão as formas como o
materialista dialético se desvia da barbárie da história linear. É no campo da subjetividade que
se cumpre uma reflexão que rompe com a causalidade e se propõe a perceber a história como
fragmentada ou descontínua, como a própria memória assim também é.

Walter Benjamin traça a sua concepção de memória tendo como ponto de


partida as suas críticas à linearidade temporal e ao progresso presente no
historicismo alemão e na social-democracia alemã. O pensamento
benjaminiano caminha em direção contrária às próprias filosofias da história,
porquanto não se trata tão somente de críticas à linearidade temporal, mas às
filosofias da história que pressupõem o progresso, soterrando os desvios e os
solavancos da história (JESUS, 2011, p.1).

Tomamos a memória a partir do prisma de atividade intelectual que, como tal, não está
desvinculada do social, pois a memória está condicionada ao meio em que se vive, porém, não
como imposição de uma memória coletiva, ou memória oficial, mas como um emaranhado de
memórias coletivas, ou seja, de uma variedade de interpretações de determinado fato.
Outra condição da memória é que, apesar de muitas vezes fazer referência ao passado,
ela está ligada ao presente, ou seja, ela é um mecanismo que leva ao passado, mas deve ser
entendida em relação ao presente daquele que lembra.
Em nosso caso, cada contexto espacial pode fazer com que as memórias sejam
acionadas de modo particular. Um exemplo é a situação de conforto que os moradores têm ao
serem entrevistados em casa, no aconchego do lar. Constatamos que assim as entrevistas
podem ser feitas de uma maneira mais tranquila do que se forem realizadas por outros meios,
de outras formas e em outros lugares1 — estas muitas vezes são mais resumidas, sem muita
reflexão ou até mesmo mais carregadas de trauma.
Nesse contexto, a memória se torna não só ligada à construção da história, mas
também vinculada à construção da identidade: quem é entrevistado, narra a si mesmo, e isso
tem relação com o tempo e com espaço, com as instâncias da internalidade e da exterioridade.
Considerando esses aspectos, optamos por variar na escolha dos entrevistados: jovens,
homens, mulheres e até mesmo famílias reunidas nos deram entrevistas, colocando suas
impressões sobre o que nós nos propomos a pesquisar.

Apresentar as idéias é estabelecer relações intensivas, é interpretar.


Interpretação ou apresentar idéias diz respeito a uma historicidade específica
onde, fora do encadeamento causal e dos procedimentos conceituais
abstratos, procura-se uma outra articulação entre o devir do sensível e a
permanência do inteligível, entre o particular e o universal (MURICY, 1998,
p. 41).

Essa variação atende a uma proposta de entender a memória como enunciada por um
ser temporalizado — aquele que relata continua o mesmo, mas, ao resgatar a memória, faz
isso a partir de referências temporais. Isso fica mais claro entre os mais jovens e os mais
velhos, principalmente entre os moradores do condomínio fechado, que vivem num quase
isolamento em relação ao ambiente fora espaço cercado. Para os mais jovens, os muros
dificultam a sociabilidade, que é intensa nos bairros mais centrais. Para os mais velhos, a paz e
o distanciamento representam o lado positivo; vale a pena estar longe do “caos” urbano.
Quando confrontamos esses discursos, notamos o choque, um choque de gerações.
Por isso, neste trabalho, referenciados pelas teorias benjaminianas, negamos qualquer
forma de memória coletiva, mas admitimos a existência dela por considerarmos que ela pode
nos oferecer importantes sentidos da história; com ela podemos nos afastar de análises
deterministas sobre a construção de Goiânia e suas relações internas.
Para captar essas relações, partimos da premissa de que somos seres sociais. Sendo
assim, ao elegermos a memória individual, reconhecemos que ela está impregnada do social.
Para termos contato com essas construções, tomamos o ato de lembrar dialeticamente ao de

1
Em nosso trabalho, não impusemos como deveria ser a entrevista. Muitas delas foram feitas por meio
eletrônico (e-mail, redes sociais), no local de trabalho do entrevistado, em estabelecimentos comerciais e até
mesmo na residência do pesquisador, mas sempre tentamos fazê-las dentro da casa daqueles que se dispuseram a
falar sobre suas vidas.
esquecer. Esse processo leva em conta a memória em suas instâncias consciente e
inconsciente. Trabalharemos a priori com a memória consciente, aquela que é lembrada
porque se quer, mas estaremos abertos àquilo que é esquecido por questões naturais
(envelhecimento) ou propositadamente. Afinal, “quem pretende se aproximar do próprio
passado soterrado deve agir como um homem que escava” (BENAJMIN, 2000, p. 239).
Benjamin retoma Freud e Proust para tentar entender a memória como uma proposta
de construir uma história por uma perspectiva que faça frente às narrativas totalizantes. O
autor aponta, filosoficamente, os caminhos abertos pela memória consciente para chegar ao
inconsciente, que se apresenta como rastros na fala daquele que é entrevistado. Esse processo
instiga um trabalho arqueológico da memória, inspirado na ideia de Gagbenin (apud
SEDLMEYER; GINZBURG, 2012, p. 32) de que “o arqueólogo não pode temer remover a
terra presente, isto é, colocar talvez em perigo edificações que ali se erguem”.
Retomamos aqui a orientação benjaminiana para que o historiador fique à espreita,
atento aos detalhes, aos rastros de linguagem, por meio dos quais podemos captar, na
exposição do presente, vestígios do passado que se alojam na narrativa.
Precisamos ficar alertas durante as entrevistas na tentativa de entender como certos
pontos de vista são colocados. Mesmo sendo uma “conversa”, sem um questionário
preestabelecido, temos em mente que a prática de “escavação” da memória deve levar em
conta não apenas as respostas dadas a determinadas perguntas, mas o processo de construção
de cada fala. Gagbenin adverte que se deve

proceder com cuidado, espalhar muita terra, voltar aos mesmos pontos,
retomar as buscas, ir segundo um mapeamento preciso, mas também confiar
no acaso. Sobretudo, com “num bom relatório arqueológico”, não se deve só
indicar o que foi achado, mas também anotar com precisão todas as camadas
que tiveram que ser atravessadas [...] (GAGBENIN apud SEDLMEYER;
GINZBURG, 2012, p. 35).

O nosso relatório arqueológico se importa mais em destacar o que cada morador tem a
falar. Damos a ele a possibilidade de narrativa contínua, sem as nossas intervenções, com a
intenção de criar outra perspectiva de entender Goiânia e a relação espacial dos indivíduos
com ela, buscando, na narrativa dos moradores, rastros de um passado que possam mudar
nossa visão do presente sobre a cidade. Entendemos que aqui está a missão redentora do
historiador, dada por Benjamin: salvar a história, dar a ela outra possibilidade de interpretação
sem a preocupação de estabelecer uma nova verdade sobre ela.
Pautados nessas considerações, decidimos ouvir dois grupos que, mesmo distintos
socialmente, expressam como espacialmente a cidade vem sendo consumida como espaço. Os
relatos de indivíduos que vivem e convivem no Real Conquista e no Jardins Madrid nos
oportunizam interpretar a realidade urbana por dentro, e a partir dela, focando também a
dimensão política da história — neste aspecto, seguindo a trilha do pensamento benjaminiano.
Nossas leituras de Benjamin mostram que a dimensão política da memória, ao ser
apropriada pela história, traz à tona questões que podem estar sendo esquecidas, sufocadas ou
colocadas de lado em favor de outras. Apresentar uma história narrada pelos indivíduos que
vivem a cidade nos oferece ferramentas para fazermos frente aos discursos da cidade moderna
que foram e são inerentes à construção de Goiânia.
Outro aspecto a ser colocado se refere à relação com a modernidade, tratada como algo
que oprime por causa do aumento da violência, do caos da cidade, dos transtornos gerados
pelo fato de morar na região pesquisada, o que implica isolamento e dificuldades como gastos
com transporte. Todos se colocam como vítima “impotente perante a catástrofe da história
humana” (CANTINHO, 2003), a exemplo do morador do Jardins Madrid que assevera: “[...]
eu nunca moraria em casa fora de condomínio [...] principalmente depois que tive filhos [...]”

Ter uma casa é tudo [...] você tem mais respeito, dignidade, então uma casa
ela significa tudo, até pros seus filhos, você criar um filho debaixo de um
teto, saber que aquilo lá é seu, não vai chegar a qualquer hora uma pessoa na
sua porta “olha venceu o aluguel, se não pagar você vai ter que sair”
(Moradora do Real Conquista).

Os dois depoimentos, em tom de vitimização, traduzem a relação com Goiânia, vista


por esses moradores como cidade que, de maneira diversa, oprime. Entra aqui o elemento
político da historiografia benjaminiana para colocar questões como esta na superfície da
análise, rediscutir os problemas urbanos e entender como a cidade, hoje, expulsa para a
periferia membros de classes distintas e como isso reflete em suas vidas.
Como vimos nos dois relatos, ambos os moradores se colocam como vítimas de uma
cidade que, ao crescer e se propor moderna, cria internamente uma situação de extrema
opressão. E cada uma racionaliza a situação de modo diferente. Para nós, são essas diferenças,
apresentadas consciente ou inconscientemente, que nos ajudarão a propor uma interpretação
histórica sobre Goiânia, onde, em épocas anteriores, “se podia depositar dinheiro no banco
indo de bicicleta”, como narra um jovem do condomínio, falando do que o seu pai contava
sobre a juventude dele.
Esse mesmo jovem diz sentir-se isolado, distante dos locais nos quais ele pode se
divertir, encontrar-se com os amigos, e também do campus da universidade que fica “do outro
lado da cidade”. Nesse caso, novamente a vitimização se evidencia. Diante disso,
perguntamos: Como podemos discutir a cidade de Goiânia e seu desenvolvimento histórico
sem trazer à tona questões como essa, muitas vezes minimamente discutidas ou deixadas de
lado por um esquecimento proposital? As formulações de Benjamin sobre a história, em sua
Tese VII, encaixa-se muito bem em nossa argumentação:

A presa, como sempre de costume, é conduzida no cortejo triunfante.


Chamam-na bens culturais. Eles terão que contar, no materialismo histórico,
com um observador distanciado, pois o que ele, com seu olhar, abarca como
bens culturais atesta, sem exceção, uma proveniência que ele não pode
considerar sem horror. Sua existência não se deve somente ao esforço dos
grandes gênios, seus criadores, mas também à corvéia sem nome de seus
contemporâneos. Nunca há um documento da cultura que não seja, ao
mesmo tempo, um documento da barbárie (BENJAMIN, 1994, p. 225).

Como podemos propor uma discussão sobre a cidade em um sentido amplo, ou pensá-
la de maneira mais democrática, se aquilo que ninguém vê ou ouve é colocado para debaixo
do tapete nos debates acerca de Goiânia? A nossa pretensão interpretativa, influenciada pela
literatura de Benjamin, consiste em criar possibilidades de reflexão sobre a capital de Goiás.
Ao propormos isso, voltamos ao político, lembrando que, para o sociólogo alemão, a tarefa do
historiador tem este composto ético: a pesquisa tem que, no mínimo, pretender uma
interpretação que possa rever as estruturas dos discursos já existentes sobre Goiânia.
Acreditamos que a proposta benjaminiana nos ajudará a entender Goiânia por um viés
que nos leve a compreender as contradições intrínsecas à cidade por um ponto de vista mais
amplo, ou nos propor a uma “história aberta” (GAGNEBIN, 1994, p. 7). Esse exercício de
reflexão sobre a história de Goiânia implica fazer emergir, a partir dos relatos dos moradores,
aquilo que está mergulhado no esquecimento. É nesse contexto que o nosso trabalho, ancorado
no referencial teórico de Benjamin, coloca-nos eticamente como historiadores em uma missão
política.
Pretendemos compreender como a cidade de Goiânia vem sendo vivida, e o sentido de
vivido, aqui, corresponde à proposta benjaminiana de uma relação com a cidade que não
produz experiência, pois a cada dia que passa os indivíduos se isolam e se distanciam, não em
um sentido material, mas transcendental. Importa salientar que “a ‘Erlebnis’, experiência
vivida, característica do indivíduo solitário, esboça, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre a
necessidade de sua reconstrução para garantir uma memória e uma palavra comuns, malgrado
a desagregação e o esfacelamento social” (GAGNEBIN apud BENJAMIN, 1994, p. 9).
Esse esfacelamento vai além do econômico (não negado neste trabalho), inserindo-se
no campo do humano, ou seja, a mesma degradação inerente às relações econômicas e sociais
no interior do modo de produção capitalista se expressa na relação do indivíduo com a
sociedade. Gagbnebin aponta que, na proposta benjaminiana de filosofia da história, o
historiador deve constituir uma experiência. Acreditamos que, a partir dos cacos de
experiência captados na narrativa dos moradores, podemos de alguma uma forma contribuir
para essa tarefa deixada a nós pelo filósofo alemão, no que diz respeito à construção da
história.
Ao nos comprometermos com essa pesquisa a partir das reflexões propostas por
Benjamin e de seus leitores, conseguimos, na relação com os entrevistados, momentos em que
relampejos de reflexão sobre sua condição de indivíduos inseridos em um todo e sua
incapacidade de entender o que os cerca se apresentaram. Um exemplo dessa constatação se
mostra em uma das expressões mais ouvidas (tanto no assentamento quanto no condomínio):
“eu nunca tinha parado para pensar nisso”. Percebemos que os moradores, na pobreza de
experiência e em uma vivência mecânica da cidade, perdem a capacidade de refletir sobre sua
situação individual e esta em relação ao coletivo. Um dos jovens entrevistados do condomínio
fechado nos relatou que nunca tinha parado para pensar que o lugar onde mora se localiza em
um das áreas mais violentas da cidade. Nessa relação de proximidade, observamos a reação de
um “indivíduo isolado, desorientado e desaconselhado” (GAGNEBIN, 1994, p. 11).
Admitimos que as conversas com os moradores serviram para, como indivíduos
pesquisadores e habitantes de Goiânia, também refletirmos sobre essa situação. “O historiador
é obrigado a explicar, de uma forma ou de outra, os acontecimentos a que se refere; não se
pode limitar, de modo algum, a apresentá-los como modelos do devir do mundo. Essa tarefa é
do cronista” (BENJAMIN, 1994, p. 209).
Como narradores que ouvem o que é relatado e o transportam para a escrita de
maneira explicativa, não negamos que a proximidade com os relatos nos leva a uma reflexão
acerca de nós mesmos e de nossa relação com a cidade. Como moradores de Goiânia,
deixamo-nos apenas viver a cidade ou reproduzi-la em escritos sem pensar mais
profundamente sobre ela. Nesse sentido, Benjamin acerta em cheio ao nos impor a missão de
preencher esse tempo vazio que o historicismo nos deixou como herança para construir uma
história viva.
Nesse exercício dialético, percebemos empiricamente como as reflexões de Benjamin
e as dos autores que se debruçam sobre suas obras se estabelecem no cotidiano dos relatos. A
relação de desolamento diante da barbárie do mundo moderno foi verificada por nós,
principalmente nas expressões dos moradores ao verbalizarem suas histórias. Vale lembrar o
caso do jovem entrevistado que nunca tinha pensado sobre a realidade urbana que o cerca. A
situação de impotência é evidente em cada afirmação. É como se a cidade desse somente uma
opção, pois, principalmente para os mais velhos, não se pode mais viver aquela cidade de
vinte anos atrás, então, resta viver nesta.
Enfatizamos que não pretendemos dar uma resposta final à questão urbana goianiense
ou uma interpretação histórica definitiva da cidade, mas sim propor uma reflexão que se abra
a outras. Ao buscar, nos relatos, fontes de pesquisa, concordamos que a construção da história
não pode ser reduzida a explicações categóricas; pelo contrário, queremos que o trabalho
desenvolvido por essa perspectiva admita outras reflexões acerca do estudado, realizar o que
Benjamin nos ensinou com a figura de Heródoto e suas histórias no texto O narrador:

Heródoto não explica nada. Seu relato é dos mais secos. Por isso, essa
história do antigo Egito ainda é capaz, depois de milênios, de suscitar
espanto e reflexão. Ela se assemelha a essas sementes de trigo que durante
milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente nas câmaras das
pirâmides e que conservam até hoje suas forças germinativas (BENJAMIN,
1994, p. 204).

Com os relatos e as memórias dos moradores, intencionamos restituir a experiência e,


a partir desse mote de reflexão, contribuir para a discussão sobre a cidade de Goiânia. E que
esta possa não só se ampliar, no sentido de que este trabalho seja mais uma forma de
abordagem histórica de Goiânia, mas também em um sentido que mais se vincula ao
filosófico, de tentar aprofundar a reflexão sobre a capital de Goiás.

A TÉCNICA DE RECOLHA DE ENTREVISTAS: A METODOLOGIA

O trabalho de doutorado aqui proposto tem como característica principal em sua


feitura a utilização do relato oral como recurso de fonte. Quando propomos a fala como
recurso de pesquisa, estamos defendendo a utilização da entrevista como método de
recolhimento de informações. Então, nosso referencial metodológico tem como base as
proposições da pesquisa da história oral; suas diretrizes serão nosso norte para que tornemos
viável a pesquisa por nós idealizada.
Propor uma metodologia para um trabalho que tem como base a história oral é ter em
mente que seu processo é construído no decorrer da feitura da pesquisa. Para o
desenvolvimento de nosso estudo, com utilização de depoimentos orais como fonte de
pesquisa, expomos um estudo de caso não encontrado por “acaso”, mas sim, dentro de
diretrizes de uma ordem na qual a ideologia, os referenciais teóricos e o envolvimento com o
pesquisado contam muito.
“O material obtido será o fato ou acontecimento em sua apresentação subjetiva, os
eventos vistos sob o prisma e o crivo perceptivo do narrador” (LANG, 1996, p. 37), e, assim
definitivamente vinculados a ele — indivíduo e sujeito social. Nesse percurso, buscamos
“versões dos fatos, pressupondo a existência de lacunas espaciais e temporais e aceitando a
subjetividade implícita no relato, tanto parte do narrador, quanto do pesquisador que procede a
sua coleta” (LANG apud MEIHY, 1996, p. 37). Outra característica é a interdisciplinaridade
como base da metodologia por excelência, em dois níveis, seja em seu aparato de referências
teóricas, na qual bebemos em fontes como sociologia, antropologia, história e psicologia, ou
em sua aplicabilidade em áreas como economia, administração, serviço social, música e, em
nosso caso, a geografia, que utilizam as bases metodológicas da história oral para ampliar o
leque de possibilidades de pesquisas dos objetos de estudo. Nossa proposição metodológica de
pesquisa com utilização de entrevistas como fonte parte da necessidade de aproximação do
pesquisador com seu objeto de estudo, uma ruptura com as estruturas de construção da ciência
positivista, baseada em perspectivas mecanicistas, de imparcialidade e distanciamento entre
pesquisador e objeto pesquisado.

A ENTREVISTA COMO RECURSO DE CAPTAÇÃO DE FONTES

Temos como apontamento metodológico que o trabalho com fontes orais exige tempo
e recursos financeiros (ALBERTI, 2006) e entendemos que a fonte oral é um caminho para a
pesquisa, mas não o centro do processo de investigação. Então, no percurso de feitura, temos
em mente duas perguntas: Quais possibilidades as fontes orais nos apresentam na área de
pesquisa? Quais os problemas que elas poderão ajudar a solucionar? (ALBERTI, 2006).
Para nós, que trabalharemos com o espaço a partir de sua representação social, a fonte
oral nos dá possibilidade de estudar as formas com que as pessoas constroem suas
“realidades”. Com isso, podemos colocar em xeque as interpretações generalizantes sobre o
assunto por nós trabalhado. “A capacidade de a entrevista contradizer as generalizações”
(ALBERTI, 2006, p. 155) faz com que ampliemos nossa percepção sobre o estudo do espaço,
considerando, como aponta a autora, que a entrevista permite “mudança de perspectiva”.
Ao adotarmos a entrevista como recurso de coleta de material nos utilizamos de dois
tipos de documento: a fita de áudio gravada e os relatos transcritos, ambos com a mesma base
essencial: a memória, sendo ela a mola propulsora dos depoimentos dados em pesquisa.
“Qualquer que seja a forma assumida pela fonte oral, baseia-se ela na memória e a
memória é sempre uma reconstrução, evocando um passado visto pela perspectiva presente e
marcado pelo social, presente a questão da memória individual e da memória coletiva”
(MEIHY apud LANG, 1996, p. 35).
Trabalhar com entrevista é construir um trabalho científico alicerçado na memória,
logo, em subjetividades, o que para alguns — em nossa opinião, conservadores — é um ponto
problemático ou uma “distorção”. Para nós é um ponto crucial para entendermos como o
indivíduo e os grupos se enxergam dentro do espaço social da casa. “A memória é essencial a
um grupo porque está atrelada à construção de sua identidade. Ela [a memória] é resultado de
um trabalho de organização e de seleção do que é importante para o sentimento e a unidade,
de continuidade e de coerência – isto é de identidade” (ALBERTI, 2006, p. 167).
Assumimos que nosso trabalho lida com uma construção da memória e que, portanto,
devemos, como recomenda Alberti (2006, p. 39), “evitar a polarização simplificadora entre
‘memória oficial’ ou ‘dominante’, de um lado, e ‘memória genuína ou “dominada’, de outro”.
Trabalhamos com depoimentos dos moradores, sabendo que cada relato (de cada grupo, de
cada indivíduo) é parte de um constructo fragmentário, não identificando o tipo da memória.
Acreditamos que a pesquisa fica mais rica e caminha junto com nossa proposta de estudo das
representações.
A primeira observação teórica metodológica, apontada por Alberti (2006, p. 168)
sobre a entrevista é de “considerar as condições de sua produção”. Nessa perspectiva, a
entrevista é uma forma de produzir fonte com intenções preestabelecidas e com objetivos
definidos de acordo com o projeto de pesquisa. Com isso, o pesquisador, em seu método de
trabalho, precisa ter em mente que a reflexão e a análise fazem parte de todo o procedimento
de pesquisa e que esse método é uma construção progressiva feita no decorrer da pesquisa,
sendo mais importante que recursos tidos como técnicos.
A análise se realiza ao longo da pesquisa, consistindo em construir progressivamente
uma “representação”. É na escolha dos informantes, na transformação do questionamento de
um informante em outro (ao contrário de um questionário padrão), no hábito de descobrir
indícios de processos até então não percebidos e de organizar os elementos de informação em
uma representação coerente, que se mostra a qualidade da análise.
Com esse método aplicado ao nosso estudo, poderemos dar respostas aos nossos
objetivos/hipóteses, uma vez que teremos acesso direto ao modo como os moradores tornam
inteligível sua realidade e, em nosso caso, como constroem todo processo vivido. Resumindo,
o processo, em específico o espaço, para nosso estudo, não está em um mapa, nem se tem a
pretensão de evidenciar se um evento tem veracidade ou não. O método por nós empregado
consiste em conhecer o vivido a partir das versões colocadas por meio do relato oral.
Ainda sobre o método de trabalho embasado em entrevistas, admitimos que a
entrevista é um “resíduo de ação” (ALBERTI, 2006, p. 169), ou seja, ela é uma possibilidade
de construção e organização do assunto através da memória, é uma construção baseada na
interação entre pesquisador e os entrevistados.

Tanto um quanto o outro têm determinadas ideias sobre seu interlocutor e


tentam desencadear determinadas ações: seja fazer com que o outro fale
sobre sua experiência (o caso do entrevistador), seja fazer com que o outro
entenda o relato de tal forma que modifique suas próprias convicções
enquanto pesquisador (o caso do entrevistado) (ALBERTI, 2006, p. 169).

A última característica para o estudo do espaço como uma representação social, uma
das mais importantes, está vinculada à ideia de que a entrevista é um “documento de cunho
biográfico” (ALBERTI, 2006) e, como tal, está dentro das perspectivas paradigmáticas
contemporâneas nas quais temos como ideia o indivíduo como valor, o indivíduo psicológico
que dá sentido à sua vida. Com isso, temos na entrevista o nosso principal receptor de fontes
de nossa pesquisa. Não que outras fontes, como mapas, plantas e até mesmo entrevistas
escritas pela imprensa, não serão utilizadas, mas a fonte oral terá um aspecto primário, pois só
ela pode nos dar noção (real) de como os moradores constroem sua realidade espacial.

PREPARANDO AS ENTREVISTAS

Para desenvolvermos uma investigação baseada em fonte de cunho oral, temos que
nos aportar em um projeto de pesquisa que nos dê uma densidade justificadora para tal
incursão de estudo. Mas temos isso elaborado, pois, como já foram definidos os objetivos,
discutidas as hipóteses, temos na entrevista a possibilidade principal de estudo das
representações sociais.
Estabelecemos que a primeira entrevista será de cunho qualitativo e a preocupação
estará centrada na complexidade dos indivíduos em sua vivência, sendo o eixo do trabalho o
que está no relato de suas experiências, como foram vividas e definidas pelos indivíduos
inseridos no evento.
Nessa fase, temos como delimitação a entrevista com moradores já assentados no
Residencial Real Conquista e moradores que vivam há mais de um ano no condomínio Jardins
Madrid. Mas a listagem de participantes estará de acordo com o critério de participação do
entrevistado no evento. A princípio temos como objetivo entrevistar dez envolvidos, com a
possibilidade de ampliar esse número, pois a revisão da lista de entrevistados será feita ao
longo da pesquisa. Serão realizadas entrevistas com heterogeneidade de idades e gênero para
captarmos as várias formas de ver espaços urbanos distintos.
A revisão da listagem de entrevistados se faz necessária (mesmo que um número exato
seja impossível) porque algumas mudanças circunstanciais podem acontecer, como, por
exemplo, encontrarmos pessoas que podem nos dar mais artifícios argumentativos ou
indivíduos que não fizeram parte da captação de entrevistas em um primeiro momento.
É também possível que os escolhidos não queiram participar do projeto de pesquisa ou
que pessoas que tenhamos selecionado a partir da pesquisa prévia deem declarações que
fiquem aquém do esperado, não correspondendo aos objetivos da pesquisa. Cabe aqui o
método de reflexão e análise, já exposto anteriormente, para que haja uma depuração das
informações e que estas fiquem de acordo com os objetivos do estudo.
A pesquisa nos coloca a opção das entrevistas de cunho temático, construídas na
participação do indivíduo escolhido no evento, o que ele presenciou ou que dele teve
conhecimento; logo, abarcaremos também a biografia do entrevistado — outra característica
da entrevista já explicitada.
Resolvidas as formas de entrevista e suas especificidades, passemos para os caminhos,
digamos, mais técnicos. O projeto de pesquisa estará pautado em um exaustivo estudo sobre o
assunto. Além das entrevistas, outras informações serão reunidas. Então, o próximo passo será
organizar como as entrevistas serão feitas. Primeiro, há necessidade de uma base, um “roteiro
geral” para demarcar nossas entrevistas (ALBERTI, 2006).

Ele deve reunir uma cronologia minuciosa do tema tratado, análises sobre o
assunto e dados sobre os documentos considerados centrais, como leis, atas,
manifestos, etc. Ao longo da pesquisa, o roteiro geral sofrerá alterações,
incorporando-se-lhe informações e interpretações obtidas nas entrevistas e
outras fontes (ALBERTI, 2006, p. 176).
Com o roteiro em mãos, o contato com o entrevistado terá o intuito de saber da
possibilidade de sua participação no trabalho, demonstrando para ele a importância da
pesquisa e os métodos a serem utilizados, bem como documentar a permissão para que suas
declarações se tornem fonte para outras pesquisas futuras.
A partir desse contato e definido o “roteiro individual” (ALBERTI, 2006),
trabalharemos de forma dialética com os roteiros gerais para que possamos dotar a entrevista
de sentido e sanar algumas lacunas que, possivelmente, durante a pesquisa, possam existir. O
roteiro não é um questionário e sim uma orientação aberta e flexível (ALBERTI, 2006), mas,
claro, necessita de uma organização para que possa ficar inteligível na hora da entrevista.
Preparando os roteiros dessa forma, teremos consistência para os momentos de
realização das entrevistas, pois saberemos “bem o que e como perguntar, e [poderemos]
reconhecer respostas insatisfatórias e identificar ‘ganchos’ relevantes para a formulação de
novas perguntas” (ALBERTI, 2006, p. 177).
Concluindo a justificativa metodológica, alicerçamo-nos nas teorias da sociologia
reflexiva de Bourdieu, que defende o trabalho científico como sendo fruto das dificuldades
encontradas pelo caminho da pesquisa. Logo, está em nossas mãos construir o objeto, tendo
como pressuposto que o método utilizado nunca é o perfeito para construção do trabalho
científico, mas sim um caminho a ser seguido, podendo ser mudado ou ter novas perspectivas
de acordo com o encaminhamento do objeto e da pesquisa.
A nossa proposição de doutorado tem essa perspectiva para estudar o espaço por meio
da representação social e de recursos de fonte na fala. Estamos cientes das dificuldades e
lacunas que podem estar presentes, mas, novamente alicerçados em Bourdieu, afirmamos que
não queremos dar por acabado o objeto com nossa pesquisa, mas sim queremos ser um
caminho que possa ser seguido por outros que tenham interesse em nossa área de pesquisa.
Aqui não procuramos a verdade, mas apenas um aspecto das inúmeras formas de o ser
humano interagir com sua realidade.

CANTINHO, Maria João. Modernidade e alegoria em Walter Benjamin. Espéculo – Revista


de estudios literarios. Universidad Complutense de Madrid, 2003. Disponível em:
<https://pendientedemigracion.ucm.es/info/especulo/numero24/benjamin.html>. Acesso em:
12 ago. 2014.

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