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De modo geral, na tradição que se inicia na Grécia, a democracia passar por ser o regime dos
polloi, dos muitos. P. 13
A tirania não está limitada ao caso em que u domina, ou e m que uma minoria toma para si o
governo, mas pode caber em todas as eventualidades nas quais se deixa o plano do direito e da
lei para se entrar no da ganância. P. 13
Pouco educada – afirma-se – a massa dos polloi pode facilmente entusiasmar-se pela
expropriação dos ricos, e pensar que a política não é senão o modo de confiscar o excedente
que esses possuem. Vê-se que por aí segue parte essencial da política de esquerda, na medida
mesma em que esta é caracterizada por conferir à discussão política uma conexão social, e que
não pode pensar a questão política como referindo-se apenas aos poderes de Estado, mas sim
considerando os poderes como gerados a partir da sociedade. Contudo, o que argumentarei é
que essa política de esquerda se equivoca, e que ao deixar de lado a tópica republicana – até
porque essa última geralmente é vista como conservadora – perde de vista a questão do poder,
e se limita a um distributivismo que em derradeira análise não vai muito adiante do velho
populismo latino-americano. P. 14
Antes de prosseguir, é preciso discutir melhor o desejo. (...). Quanto mais se deseja, menos
razão se tem. Desejam-se bens, e por isso quer-se roubá-los: não há diferença significativa, aos
olhos de um certo conservadorismo, entre o desejo de furtar e o de expropriar, entre o crime
comum e o projeto político socialista. Contudo, se formos atentos, notaremos que o primeiro
ponto que apontei não implica necessariamente os seguintes. O desejo de bens não precisa ser
voraz nem indecente: pode ser simplesmente, o modo de adquirir a base material para a
própria existência digna. P. 14
Mais que isso, com nossa análise propomos duas coisas. Primeira, que desde os antigos um
caráter social tenha estado presente na caracterização da democracia. (...). Mas, se já os gregos
viam na democracia o despontar das lutas sociais, a novidade deixar de ser o momento, no
século XX, em que ela passa de regime apenas político para adquirir uma dimensão social. O
que é novo, o que precisa ser explicado, é por que a modernidade construiu a democracia
representativa como um regime do qual, ao menos de início, se excluía o forte conteúdo social
que os gregos nele depunham. (...). O que cabe é matizar muitíssimo a ideia de um sentido
incialmente político e só depois social do regime democrático. Mais que siso, tem cabimento
sugerir que a democracia, regime dos polloi, congregue a um tempo a temática do poder e a
das relações sociais. Separar os dois temas foi um complexo – e difícil – construto moderno. P.
15
Contudo, o que precisamos enfatizar é aquilo que virtudes, na Antiguidade, e interesses, nos
tempos modernos, reprimem. Porque virtude e interesse têm o condão de moralizar a política,
a virtude direta e obviamente, o interesse indireta e de maneira menos evidente. Não
apaguemos a diferença entre interesses e virtudes. P. 16
Porque voltemos aos perigos da democracia, isto é, ao risco, antevisto pelos conservadores
gregos, de que a massa dos polloi decida expropriar os poucos ricos e instituir sobre eles uma
tirania. Ora, tal perigo é denunciado também em tempos modernos: no século XIX, negar o
sufrágio universal é o recurso das direitos, receosas de que o populacho votante resolva
confiscar as propriedades dos abonados. P. 16
O homem que apenas deseja, sem o controle da razão, necessita ser protegido, tutelado. P. 17
O que até aqui procurei enfatizar, neste segundo tópico (o do caráter desejante das lutas
sociais), foi que não dá para reduzi-las ao enfoque racional e econômico dos interesses. (...). O
desejo negocia pouco; a virtude despreza a negociação; mas é do cerne do interesse negociar.
Daí que não fique mal uma passagem do desejo ao interesse, e que essa articulação seja até
mais feliz, pelo menos potencialmente, do que a oposição – mais radical, inegociável – entre
desejo e virtude. P. 17
Assim, para resumirmos, poderíamos dizer que enquanto a democracia tem no seu cerne o
anseio da massa por ter mais, o seu desejo de igualar-se aos que possuem mais bens do que
ela, e portanto é um regime do desejo, a república tem no seu âmago uma disposição ao
sacrifício, proclamando a supremacia do bem comum sobre qualquer desejo particular.
Evidentemente, é possível criticar a república dizendo-se que o suposto bem comum é, na
verdade, um bem de classe, e que os sacrifícios que se fazem em nome da Pátria são
desigualmente repartidos e, sobretudo, jamais põem em xeque a dominação de um pequeno
grupo sobre a maioria. Mas o que eu gostaria de enfatizar na temática republicana é a idéia de
dever que nela está saliente. P. 18
Porque talvez a grande dificuldade do pensamento democrático tenha estado, por muito
tempo, em articular a sua temática do desejo – no caso, o desejo das massas por ter mais –
com a necessidade de que elas não se limitem a tomar os bens, de que se sentem privadas e,
com isso, injustiçadas, mas também se proponham a conquistar o poder. A disputa pelos bens
se salda por um fracasso quando não se desdobra – e se fundamenta – na luta pelo poder. Isso
vemos claramente na epopeia dos irmaõs Gracos, que se batem, na Roma republicana e
socialmente desigual, por uma reforma agrária, porém terminam, um e depois o outro,
derrotados e assassinados pela classe senatorial a que pertenciam e que os viu como traidores.
P. 18
Adianto-me um pouco, dizendo que a democracia é popular, está do lado da sociedade, dos
que podem obedecer a maior parte do tempo, podem desobedecer menos vezes – mas
desejam o tempo todo; e que a república está do lado do poder, das instituições, expressando
a lógica de quem manda. Ficar na sede (com e aberto) do poder significa perder de vista a sede
(com e fechado) de algo que não é poder, que é apenas equacionado por esse, e sempre mal
equacionado. O desejo é esse inominado. P. 19-20
Mas indaguemos como se viabiliza, se consolida, se realiza a democracia. Desde que se coloca
o tema do poder, surge a seguinte questão. Pensando-se o poder, não há problemas, ou eles
são poucos, se e somente se quem manda é diferente de quem obedece. Nesse caso, as regras
que valem para todos não valem para aquele que governa. E isso é tão verdade que, mesmo
em regimes democráticos, uma exceção se estabelece em favor do chefe de Estado, ou mais
amplamente em proveitos dos parlamentares, imunes a procedimentos que valem para os
demais – o que é um resíduo significativo da antiga ideia de majestade, que se adensava no rei.
Desde, porém, que haja identificação entre quem manda e quem obedece, o poder suscita uma
série de problemas. P. 20
O único regime no qual, em tese pelo menos, há uma plena identificação entre quem manda e
quem obedece é o da soberania popular, ou seja, a democracia. (a democracia se tornou a
única forma de governo legítimo, especialmente no pós-II Guerra). Em outras palavras, a
democracia sobressai-se na legitimidade, e falha no funcionamento. Possivelmente um dos
eixos de seu difícil funcionamento, na prática, resida precisamente na faciclidade maior de se
agir quando se separa quase que no bisturi quem legisla, executa ou julga, e quem obedece.
(...). Em suma, a experiência política de milênios aponta para o desligamento do mando e da
obediência, ou seja, como bem o percebeu Hobbes, entre lei e direito, ou ainda, como
diríamos no contexto da presente discussão, entre a ordem do poder e a do desejo. P. 20-1
(...). Pensamos que todos estão sujeitos à lei, mas praticamos melhor a cisão entre lei e direito,
entre quem governa e quem obedece, sobretudo nos países em que a democracia é frágil ou
por se consolidar. Ora, o que aqui desejo assinalar é que pode haver um encontro entre as
temáticas republicana e democrática. Melhor até, é preciso haver esse encontro, se queremos
que a democracia se realize. Uma democracia sem república não é kratos, é simples populismo
distributivista, como tantos vimos nas décadas em que, primeiro na Europa e depois na
América Latina, as massas acederam à visibilidade do espaço social, manifestando-se
inicialmente pelo seu desejo. P. 22
A democracia, para existir, necessita da república. Isso, que parece evidente, não é nada óbvio!
Significa que para haver o acesso de todos aos bens, para se satisfazer o desejo de ter, é preciso
tomar o poder. (...). O problema da democracia, quando ela se efetiva – e ela só se pode
efetivar sendo republicana – é que ao mesmo tempo que ela nasce de um desejo que clama
por realizar-se, ela também só pode conservar-se e expandir-se contendo e educando os
desejos. (se deseja da democracia a distribuição de bens, e não a gestão do poder) p. 22-3
A saída teórica para o problema está colocada. Há que entender toda a problemática da
autonomia, ou seja, da autogestão dos poderes e de si que é característica da democracia, a
partir de uma extensão dos valores republicanos. É o que Roma propôs, porém conservando
um recorte essencial entre a minoria de patrícios que ao mesmo tempo mandava e obedecia, e
a maioria desprovida de direitos políticos. A solução republicana vigia para os membros do
Senado, mas somente era possível na medida em que persistia a velha divisão. Na verdade, era
exatamente porque aos senadores ainda se facultava mandar irrestritamente sobre aqueles
que deviam obedecer ilimitadamente, que eles podiam, no seio de seu corpo, praticar a difícil
moralidade republicana, de obedecer à lei que eles mesmo promulgavam. P. 23
Dois pontos a esclarecer: o primeiro é que o desejo é dito sobretudo dos que não têm, e a
abnegação dos que têm. A república é a virtude dos proprietários, ou dos patrícios: é uma
excelência, uma alta qualidade moral, uma dignidade, em suma, uma areté, que bem diz de
sua natureza aristocrática. Na Roma, o regime republicano nasceu do triunfo da aristocracia
sobre a monarquia e viveu – e morreu – da resistência dessa classe contra o povo. Assim,
podemos dizer que o desejo, que aparece como uma pulsão aquisitiva, se explica sobretudo a
partir dos que não possuem nada, ou somente pouco. Mas esgota-se o desejo no anseio por
adquirir coisas, bens? Certamente que não. Através da matéria e da mercadoria se mira outra
coisa – o reconhecimento como ser humano, ou até menos nomeável, cuja densidade apenas
podemos imaginar. (...). De todo modo, desejantes são os que não têm, moderados os que
têm. Ao insistir no caráter desejante da democracia, estou negando todo o propósito de
racionalizá-la às pressas. Ao apontar a virtude da república como regime da autocontenção,
estou afirmando a necessidade de que os desejos, para realizarem uma democracia ampliada,
aprendam a educar-se segundo hábitos que são inicialmente aristocráticos. P. 23-4
Mas, nesta encruzilhada de duas tradições a nós simpáticas, república e democracia, pode ser
que a república já tenha mais ou menos constituída a sua tecnologia, o seu modus faciendi; o
que devemos é desenvolver a democracia. Desse regime ainda sabemos pouco. Insisti em que
ele precisa da república – se não, fracassa. Mas a república deve ser o meio para ele expandir
duas possibilidades, reformando não apenas o Estado, porém as relações sociais e mesmo
micro-sociais. A novidade estará do lado da democracia – que tem, claro, de ser republicana. P.
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