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Corpo e Genero e Sexualidade PDF
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Ensaio
Resumo
Resumo: Desde o final do século XIX, quan- a presença (ou a ausência) das mulhe-
do Darwin publicou suas obras sobre evolu- res nas atividades científicas; (2) as in-
ção, muitas cientistas têm reagido adotando
vestigações epistemológicas que le-
basicamente duas perspectivas: enquanto al-
gumas negam o potencial das ciências bio- vantam perguntas relativas às implica-
lógicas para explicar arranjos sociais, outras ções do que se entende por empreen-
reinterpretam estudos da Biologia sobre dife- dimento científico (incluindo aí a autori-
renças sexuais, admitindo que estes podem dade epistêmica e cognitiva atribuída
explicar comportamentos humanos e desi-
aos cientistas) para as clivagens de
gualdades sociais. Procurando entender de
que maneira as diferenças sociais são atribu- gênero vigentes, sugerindo dúvidas
ídas ao corpo humano, o presente trabalho quanto à possibilidade e às capacida-
discute vertentes teóricas da recente produ- des explicativas das ciências em rela-
ção das ciências biológicas e das sociais que ção à natureza; e (3) os estudos que
buscam afirmar ou negar a plausibilidade de
focalizam os contextos sociais em que
teorias que invocam diferenças sexuais presu-
midamente localizadas no corpo (cérebro, se estrutura o conhecimento científico,
genes e fisiologias masculina e feminina) para procurando identificar os vieses e as
explicar possíveis variações das habilidades, metáforas de gênero presentes no con-
capacidades, padrões cognitivos e sexuali- teúdo do conhecimento produzido por
dade humanos. Registra ainda a repercussão
diversas disciplinas, especialmente a
de perspectivas essencialistas na agenda da
mídia nacional e internacional. Biologia.2
Palavras chave
chave: ciência e gênero, deter- Após examinar as armadilhas
minismo biológico, mídia, sociologia do co- enfrentadas pela teoria feminista ao
nhecimento científico. procurar estabelecer distinções entre
sexo e gênero, o presente trabalho dis-
Os estudos sobre mulheres, gê- cute algumas das mais eloqüentes con-
nero e ciências desenvolvidos especi- tribuições feministas, principalmente as
almente nos países anglófonos nos últi- da terceira linha de estudos acima. Es-
mos trinta anos podem ser classifica- sas contribuições apontam vieses, pres-
dos, de maneira simplificada, em três supostos e metáforas de gênero encon-
grandes linhas: (1) os que se dedicam tradas no conteúdo do conhecimento
a dar visibilidade, interpretar e analisar
2
Essa tentativa classificatória resulta, como a maioria
desses esforços, numa simplificação; na prática, as
1
Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada no fronteiras entre essas três linhas de estudo nem sempre
GT 11, Pessoa, Corpo e Doença, Sessão 3. Doença, Gê- são precisas, e os três tipos de abordagem acabam se
nero e Diferença Social, em Petrópolis, outubro de 2000. entrecruzando nas interpretações e análises.
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Desde 1970 muitos estudos li- vestigação não deixaria marcas, en-
daram com o binômio sexo/gênero, quanto estudiosos de gênero e da so-
entendendo que sexo representaria a ciologia do conhecimento científico,
anatomia e a fisiologia (natureza), en- filiados a diferentes tradições teóricas
quanto gênero representaria as forças e disciplinares, perfilam-se contra os
sociais, políticas e institucionais que pressupostos de objetividade, neutrali-
moldam os comportamentos e as dade, transparência, verdade e univer-
constelações simbólicas sobre o femi- salidade que sustentam o método ci-
nino e o masculino. Assim, questiona- entífico. Contestam crenças arraigadas
vam os significados psicológicos e cul- como aquela segundo a qual esse
turais das diferenças, não o domínio do método permite controlar todas as va-
sexo físico. No entanto, novas aborda- riáveis de um experimento, produzindo
gens, hoje identificadas com as corren- um conhecimento progressivo e cumu-
tes pós-modernas, passaram cada vez lativo, através de uma pesquisa “objeti-
mais a desconfiar de oposições binári- va”, que elimina todos os vieses dos
as como natureza/cultura e sexo/gêne- pesquisadores; em suma, contestam a
ro. Muitos estudos foram progressiva- suposição de que o método científico
mente desmantelando a idéia que sus- seja neutro em relação ao social, ao
tentava o lado supostamente natural- cultural, ao político, ao econômico, ao
biológico do par sexo/gênero. ético e ao emocional. Ao contrário, Bru-
A idéia inicial de que sexo se no Latour sugere mesmo que produzir
referia a anatomia e fisiologia dos cor- literatura e fatos científicos (técnicos) é,
pos deixava o caminho aberto para in- entre os empreendimentos humanos,
terpretações de que as diferenças en- “mais social do que os vínculos sociais
tre mulheres e homens no domínio considerados normais”.4
cognitivo e comportamental, bem Esses estudiosos de gênero e
como as desigualdades sociais, pode- da sociologia do conhecimento cientí-
riam decorrer de diferenças sexuais lo- fico questionam assim as credenciais
calizadas no cérebro, nos genes ou de imunidade — nos três sentidos da
provocadas por hormônios etc. Para palavra; isenção de ônus, resistência à
fazer frente a esse problema, muitos infecção e desfrute de privilégios em
estudos feministas foram assinalando função do cargo exercido — conferidas
que as afirmações das ciências bioló- aos cientistas naturais por nossa socie-
gicas sobre os corpos femininos e mas- dade, extensivas às práticas que eles
culinos (tanto no passado quanto no empregam e ao conhecimento que
presente) não podem ser tomadas produzem. É exatamente aquele modo
como espelho da natureza porque as de conceber o conhecimento científi-
ciências, como qualquer outro empre- co que nos leva a conceder-lhes tais
endimento humano, estão impregna- credenciais. A imunidade adviria do
das pelos valores de seu tempo. mandato cumprido pelo cientista para
Na literatura sobre ciência e falar em nome da natureza, no sentido
gênero, um importante anátema recai que Bruno Latour atribui à prática cientí-
sobre o modo como se processa a pro- fica,5 depois da aparente separação
dução de conhecimento. Parte dos ci-
entistas naturais sustentam a idéia de 4
Ver, por exemplo, LATOUR, 2000, especialmente a parte
que as coisas podem ser conhecidas I, p.104.
5
LATOUR, 1994, p. 35.
em si mesmas, pois seu método de in-
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7
SCHIEBINGER, 1987.
8
SCHIEBINGER, 1993. 9
FAUSTO-STERLING, 1995, p. 40-41.
10
FAUSTO-STERLING, 1995, p. 41.
11
FAUSTO-STERLING, 1992, p. 269.
12
Schatten & Schatten apud MARTIN, 1996, p. 106.
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rém, ele se mantém como forte influ- minante tem parecido cada vez mais
ência em certas tendências do moder- inadequada por diversas razões: (1) o
no pensamento político e social. conhecimento científico popularizado
Esses dados, oferecidos pelas realimenta o processo de pesquisa ci-
mais autorizadas vozes dos cientistas, entífica; (2) o conhecimento é consti-
além de confirmar o grande apreço tuído através de transformações coleti-
que as ciências naturais consagram à vas, e portanto a popularização deve
mídia — a qual, acreditam, virá a ter ser vista mais como extensão do pro-
um poder ainda maior no futuro — per- cesso do que como outro processo in-
mitem esboçar a imagem que os ci- teiramente diferente; e (3) a simplifica-
entistas naturais lhe atribuem: exagera- ção é parte integrante do trabalho ci-
da, apelativa, sensacionalista (o “mais entífico. O grau de simplificação depen-
novo” tratamento, a “mais excitante” de do contexto em que o conhecimen-
descoberta, o milagre, a “mais nova” to é comunicado em seminários aca-
cura), promovendo interesses comerci- dêmicos ou laboratórios, para estudan-
ais, atraindo o controle governamental, tes, fontes de financiamento ou espe-
assustando a opinião pública, decep- cialistas em campos adjacentes. Há
cionando os leitores e, o que é mais muitas evidências de que especialistas
grave, colocando em risco a credibili- freqüentemente simplificam a fim de
dade científica. persuadir seu público e obter apoio para
De grande importância para seus programas de pesquisa, motivar as
entender a animosidade contida nas pessoas a seguir recomendações mé-
relações entre cientistas e mídia são os dicas, convencer investidores e princi-
estudos que não concedem precedên- palmente defender sua posição numa
cia aos processos de produção do controvérsia científica.19
conhecimento e de divulgação desses Considerando essa flexibilida-
processos pela mídia. de, segundo Hilgartner, as acusações
Stephen Hilgartner, um sociólo- mais freqüentes voltam-se contra ato-
go interessado em sociologia do co- res de fora do âmbito científico (jorna-
nhecimento científico, afirma que a vi- listas, sociólogos, estudiosos das ciên-
são culturalmente dominante de cias, policy-makers, ou mesmo o pú-
popularização da ciência repousa num blico leitor) porque esses ataques são
modelo simplificado que separa o pro- fáceis de montar, conduzem à solidari-
cesso em dois estágios: há primeiro a edade entre os cientistas e deixam os
produção do conhecimento pelos ci- não-especialistas em posição vulnerá-
entistas (idealizado como puro, genuí- vel. Ao mesmo tempo, os cientistas
no) e depois a disseminação em ver- garantem o direito de demarcar as fron-
sões simplificadas, de acordo com as teiras apropriadas entre simplificação e
limitações do público. A popularização, distorção, assegurando-lhes o “equiva-
segundo essa visão, seria, na melhor lente epistêmico ao direito de imprimir
das hipóteses, simplificação adequada dinheiro. Conhecimento genuíno é sua
e, na pior, distorção ou degradação da exclusividade”.20
verdade original, por outsiders da ciên- Apesar de todas as tensões
cia.18 Segundo esse autor, tal visão do- enfrentadas, os jornais diários e as revis-
19
HILGARTNER, 1990, p. 590-631.
18
HILGARTNER, 1990, p. 519-20. 20
HILGARTNER, 1990, p. 534.
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MARIA TERESA CITELI
and behaviour”
“Making difference: theories on gender, body,
Abstract
Abstract: Since the end of the nineteenth
century, when Darwin published his work on
evolution, several female scientists have
reacted by adopting basically two points of
view: while some deny the potential of the
biological sciences to explain social
arrangements, others reinterpret biology studies
on sex differences, admitting that these may
explain human behavior and social inequality.
In an attempt to appraise how social
differences are assigned to the human body,
this article discusses theoretical trends in recent
works of biological sciences, which try to either
reaffirm or deny the plausibility of theories that
resort to sex differences presumably located in
the body (brains, genes, male and female
physiology) to explain variations in human beings’
skills, abilities, cognitive patterns, and sexuality.
And, given the influence of the media on our
views on male and female, it also discusses the
repercussion of such essentialist views on national
and international print media.
Keywords
Keywords: science and gender, biological
determinism, media, sociology of scientific
knowledge.