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MILLIE THAYER

Ensaio

Fazendo diferenças: teori-


as sobre gênero, corpo e
comportamento1
Maria Teresa Citeli

Resumo
Resumo: Desde o final do século XIX, quan- a presença (ou a ausência) das mulhe-
do Darwin publicou suas obras sobre evolu- res nas atividades científicas; (2) as in-
ção, muitas cientistas têm reagido adotando
vestigações epistemológicas que le-
basicamente duas perspectivas: enquanto al-
gumas negam o potencial das ciências bio- vantam perguntas relativas às implica-
lógicas para explicar arranjos sociais, outras ções do que se entende por empreen-
reinterpretam estudos da Biologia sobre dife- dimento científico (incluindo aí a autori-
renças sexuais, admitindo que estes podem dade epistêmica e cognitiva atribuída
explicar comportamentos humanos e desi-
aos cientistas) para as clivagens de
gualdades sociais. Procurando entender de
que maneira as diferenças sociais são atribu- gênero vigentes, sugerindo dúvidas
ídas ao corpo humano, o presente trabalho quanto à possibilidade e às capacida-
discute vertentes teóricas da recente produ- des explicativas das ciências em rela-
ção das ciências biológicas e das sociais que ção à natureza; e (3) os estudos que
buscam afirmar ou negar a plausibilidade de
focalizam os contextos sociais em que
teorias que invocam diferenças sexuais presu-
midamente localizadas no corpo (cérebro, se estrutura o conhecimento científico,
genes e fisiologias masculina e feminina) para procurando identificar os vieses e as
explicar possíveis variações das habilidades, metáforas de gênero presentes no con-
capacidades, padrões cognitivos e sexuali- teúdo do conhecimento produzido por
dade humanos. Registra ainda a repercussão
diversas disciplinas, especialmente a
de perspectivas essencialistas na agenda da
mídia nacional e internacional. Biologia.2
Palavras chave
chave: ciência e gênero, deter- Após examinar as armadilhas
minismo biológico, mídia, sociologia do co- enfrentadas pela teoria feminista ao
nhecimento científico. procurar estabelecer distinções entre
sexo e gênero, o presente trabalho dis-
Os estudos sobre mulheres, gê- cute algumas das mais eloqüentes con-
nero e ciências desenvolvidos especi- tribuições feministas, principalmente as
almente nos países anglófonos nos últi- da terceira linha de estudos acima. Es-
mos trinta anos podem ser classifica- sas contribuições apontam vieses, pres-
dos, de maneira simplificada, em três supostos e metáforas de gênero encon-
grandes linhas: (1) os que se dedicam tradas no conteúdo do conhecimento
a dar visibilidade, interpretar e analisar
2
Essa tentativa classificatória resulta, como a maioria
desses esforços, numa simplificação; na prática, as
1
Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada no fronteiras entre essas três linhas de estudo nem sempre
GT 11, Pessoa, Corpo e Doença, Sessão 3. Doença, Gê- são precisas, e os três tipos de abordagem acabam se
nero e Diferença Social, em Petrópolis, outubro de 2000. entrecruzando nas interpretações e análises.

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FAZENDO DIFERENÇAS

produzido pelas ciências biológicas no homens no processo evolutivo, as mu-


passado e no presente; esses pressu- lheres haviam desenvolvido outras, com-
postos, por sua vez, permitem tanto plementares. Em outras palavras, se-
ampliar as diferenças entre os sexos gundo essa autora, Darwin atribuíra
quanto apresentar essa clivagem indevida proeminência à evolução
como sendo da natureza (e do corpo), masculina.
quando de fato são parte dos arranjos Duas décadas mais tarde, em
sociais vigentes em diferentes épocas. 1893, outra mulher, Elisa Gamble, publi-
Em seguida o artigo discute vertentes cou An Inquiry Into the Dogma of her
teóricas da recente produção das ci- Inferiority to Man, defendendo a supe-
ências biológicas e sociais que buscam rioridade feminina. Ao reinterpretar as
afirmar ou negar a plausibilidade de se observações de Darwin (que ela consi-
invocar diferenças sexuais, presumida- derava um excelente observador), ale-
mente localizadas no corpo, para ex- gava que a divisão sexual do trabalho
plicar variações nas habilidades, capa- conduziu (mulheres e homens) por linhas
cidades, padrões cognitivos e sexuali- evolutivas divergentes, que resultaram
dade humanos. Dada a influência atu- no desenvolvimento, por parte das
almente exercida pelas ciências bioló- mulheres, das mais altas qualidades
gicas articuladas com os meios de co- sobre as quais repousa o destino da
municação para a formação de nos- humanidade. Apenas os preconceitos
sas idéias acerca de masculino e femi- masculinos poderiam ter impedido o
nino — e sobre nosso corpo e seu fun- cientista de constatar essa superiorida-
cionamento —, este estudo recorre a de feminina, expressa na superioridade
exemplos da repercussão de perspec- moral e de inteligência.
tivas essencialistas na agenda da mídia Ambas as autoras aceitavam a
nacional e internacional. premissa da divisão do trabalho entre
Ainda na segunda metade do homens e mulheres. Blackwell, para afir-
século XIX, logo depois de Charles mar igualdade, reclamava que Darwin
Darwin publicar seus livros contendo os havia ignorado as mulheres, enquanto
principais conceitos sobre evolução Gamble moralizava a discussão para
animal e humana, algumas das pou- afirmar a superioridade feminina e de-
cas mulheres cientistas atuantes naque- nunciar preconceitos masculinos no
la época contestaram sua teoria a partir conteúdo da obra de Darwin.
de pontos de vista muito diferentes.3 Em Quase um século depois,
1875, Antoinette B. Blackwell publicou desnaturalizar hierarquias de poder ba-
The Sexes Troughout Nature, adotando seadas em diferenças de sexo tem sido
uma visão que afirmava a igualdade um dos eixos centrais dos estudos de
entre os sexos, refutando observações gênero. Estabelecer a distinção entre
de Darwin, argumentando que ele ha- os componentes — natural/biológico
via deixado de considerar que, para em relação a sexo e social/cultural em
cada característica desenvolvida pelos relação a gênero — foi, e continua sen-
do, um recurso utilizado pelos estudos
de gênero para destacar essencialismos
3
Os dois exemplos são apresentados por FAUSTO-
STERLING, 1997. Essa autora é expoente da linha femi-
de toda ordem que há séculos susten-
nista de estudos que explicitamente dedicam grande tam argumentos biologizantes para
atenção às características sociais dos conhecimentos desqualificar as mulheres, corporal, in-
científicos produzidos em diferentes épocas.
telectual e moralmente.

ANO 9
1 3 22º SEMESTRE 2001
MARIA TERESA CITELI

Desde 1970 muitos estudos li- vestigação não deixaria marcas, en-
daram com o binômio sexo/gênero, quanto estudiosos de gênero e da so-
entendendo que sexo representaria a ciologia do conhecimento científico,
anatomia e a fisiologia (natureza), en- filiados a diferentes tradições teóricas
quanto gênero representaria as forças e disciplinares, perfilam-se contra os
sociais, políticas e institucionais que pressupostos de objetividade, neutrali-
moldam os comportamentos e as dade, transparência, verdade e univer-
constelações simbólicas sobre o femi- salidade que sustentam o método ci-
nino e o masculino. Assim, questiona- entífico. Contestam crenças arraigadas
vam os significados psicológicos e cul- como aquela segundo a qual esse
turais das diferenças, não o domínio do método permite controlar todas as va-
sexo físico. No entanto, novas aborda- riáveis de um experimento, produzindo
gens, hoje identificadas com as corren- um conhecimento progressivo e cumu-
tes pós-modernas, passaram cada vez lativo, através de uma pesquisa “objeti-
mais a desconfiar de oposições binári- va”, que elimina todos os vieses dos
as como natureza/cultura e sexo/gêne- pesquisadores; em suma, contestam a
ro. Muitos estudos foram progressiva- suposição de que o método científico
mente desmantelando a idéia que sus- seja neutro em relação ao social, ao
tentava o lado supostamente natural- cultural, ao político, ao econômico, ao
biológico do par sexo/gênero. ético e ao emocional. Ao contrário, Bru-
A idéia inicial de que sexo se no Latour sugere mesmo que produzir
referia a anatomia e fisiologia dos cor- literatura e fatos científicos (técnicos) é,
pos deixava o caminho aberto para in- entre os empreendimentos humanos,
terpretações de que as diferenças en- “mais social do que os vínculos sociais
tre mulheres e homens no domínio considerados normais”.4
cognitivo e comportamental, bem Esses estudiosos de gênero e
como as desigualdades sociais, pode- da sociologia do conhecimento cientí-
riam decorrer de diferenças sexuais lo- fico questionam assim as credenciais
calizadas no cérebro, nos genes ou de imunidade — nos três sentidos da
provocadas por hormônios etc. Para palavra; isenção de ônus, resistência à
fazer frente a esse problema, muitos infecção e desfrute de privilégios em
estudos feministas foram assinalando função do cargo exercido — conferidas
que as afirmações das ciências bioló- aos cientistas naturais por nossa socie-
gicas sobre os corpos femininos e mas- dade, extensivas às práticas que eles
culinos (tanto no passado quanto no empregam e ao conhecimento que
presente) não podem ser tomadas produzem. É exatamente aquele modo
como espelho da natureza porque as de conceber o conhecimento científi-
ciências, como qualquer outro empre- co que nos leva a conceder-lhes tais
endimento humano, estão impregna- credenciais. A imunidade adviria do
das pelos valores de seu tempo. mandato cumprido pelo cientista para
Na literatura sobre ciência e falar em nome da natureza, no sentido
gênero, um importante anátema recai que Bruno Latour atribui à prática cientí-
sobre o modo como se processa a pro- fica,5 depois da aparente separação
dução de conhecimento. Parte dos ci-
entistas naturais sustentam a idéia de 4
Ver, por exemplo, LATOUR, 2000, especialmente a parte
que as coisas podem ser conhecidas I, p.104.
5
LATOUR, 1994, p. 35.
em si mesmas, pois seu método de in-

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FAZENDO DIFERENÇAS

ocorrida no início da modernidade para Exemplos clássicos desse tipo


constituir, de um lado, o sujeito de direi- de redutivismo são os muitos estudos
to e, de outro, o objeto da ciência. sobre o tamanho do cérebro, realiza-
Assim, os políticos representam os ci- dos há mais de dois séculos, geralmente
dadãos e falam em nome deles, en- influenciados por, e ao mesmo tempo
quanto os cientistas vão representar e subsidiando, argumentos racistas,
ser porta-vozes da multidão muda e classistas e sexistas (segundo vários au-
material dos objetos. tores, intercambiáveis entre essas três
Utilizando-se desses instrumentos, categorias), buscando provar que quan-
muitos estudos de gênero dedicaram- to maior o cérebro, maior a inteligên-
se cuidadosamente a refutar as bases cia de uma pessoa. Tais estudos foram
do determinismo biológico verificado em contestados, em suas próprias discipli-
obras de cientistas proeminentes, tanto nas e em outras, em seu próprio tem-
dos séculos passados quanto do presen- po e atualmente.
te, para demonstrar que preconceitos
sociais baseados em gênero são toma- Produzindo uma “história
dos como imagens do corpo que se natural” das diferenças
pretendem objetivas e “científicas”. É difícil ver como nossas idéias científicas
No âmbito do presente traba- atuais são inspiradas por
lho, entende-se por determinismo bio- pressupostos culturais;
lógico o conjunto de teorias segundo é mais fácil ver como idéias
científicas do passado (...)
as quais a posição ocupada por dife- podem ter sido afetadas por idéias
rentes grupos nas sociedades — ou culturais mais antigas ainda.
comportamentos e variações das ha-
Emily Martin
bilidades, capacidades, padrões
cognitivos e sexualidade humanos —
No mesmo caminho sugerido
derivam de limites ou privilégios inscritos
por Emily Martin nessa epígrafe, inúme-
na constituição biológica. Muitos dos
ras pesquisas passaram a argumentar
cientistas sociais e dos biólogos que dis-
que o próprio corpo humano tem uma
cutem as limitações das diversas ver-
história. Thomas Laqueur fez sucessivas
tentes do determinismo biológico não
investigações para mostrar que, entre o
estão apenas preocupados com os
final do século XVIII e o começo do sé-
“deslizes” propriamente científicos do
culo XIX, as significativas mudanças só-
determinismo, mas com as conseqü-
cio-políticas ocorridas no Ocidente pro-
ências sociais e políticas que advêm
duziram um contexto favorável (senão
dessas afirmações. Stephen Jay Gould,
imperativo) à emergência de um novo
um biólogo evolutivo que dedicou mui-
modelo médico para interpretar as dife-
tos de seus estudos acadêmicos e en-
renças de sexo, modelo esse que não
saios a combater os abusos do deter-
pode ser considerado resultado apenas
minismo, afirma: “Poucas tragédias po-
dos avanços tecnológicos da época.
dem ser maiores que a atrofia da vida;
O autor está convencido de que, mes-
poucas injustiças podem ser mais pro-
mo portadora de contradições, essa
fundas do que o ser privado da oportu-
reinterpretação da biologia reprodutiva
nidade de competir, ou mesmo de ter
feminina foi convocada para resolver
esperança, devido à imposição de um
limite externo, que se tenta fazer pas-
sar por interno”.6
6
GOULD, 1999, p. 13.

ANO 9
1 3 42º SEMESTRE 2001
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também problemas ideológicos. Cons- Fausto-Sterling em Gender, Race and


tatando que não se tratava apenas de Nation: the Comparative Anatomy of
utilizar a biologia para subestimar as mu- “Hottentot” Women in Europe, 1815-
lheres, o autor conclui que partes do 1817. Esse estudo, retomando as con-
corpo e das fisiologias masculina e fe- tribuições de Schiebinger, relata como
minina passaram a ser desenhadas e vis- o cientista Georges Curvier (1769-1832),
tas através da lente ideológica que lhes um dos “pais” da anatomia compara-
dava a forma. Assim, apesar da crença da, construiu a útil imagem de mulher
que leva alguns cientistas naturais a acre- — africana, selvagem e primitiva —
ditar que suas proposições são um “es- adequada ao momento histórico em
pelho da natureza”, elas na verdade re- que o capitalismo europeu em expan-
fletem, e muito, sua cultura; não são são, além de conquistar e fazer negó-
produzidas num vácuo. cios, coletava espécimes que enchiam
Outra historiadora, Londa museus, e passava a demandar proje-
Schiebinger, no artigo “Esqueletos no tos classificatórios que simultaneamen-
armário: as primeiras representações do te estabeleciam as bases para diver-
esqueleto feminino na anatomia do sas disciplinas científicas e se prestavam
século XVIII”, desvenda quão profunda- à justificação do colonialismo e da es-
mente a perspectiva de desigualdade cravidão.9
entre os sexos atingiu os estudos de Segundo Fausto-Sterling, ao
anatomia (chegando ao desenho dos descrever o que considerava ser defor-
ossos femininos), no sentido de desme- mações anatômicas de uma mulher
recer mulheres em relação ao homem negra do povo hotentote (Sarah
(branco e europeu).7 Em sua análise, ela Bartmann), Curvier teria procurado
faz emergir a imagem clara dos con- representá-la como uma macaca para
teúdos culturais nos quais a “verdade” distingui-la das brancas européias, utili-
científica está embebida. zando os paradigmas sociais e científi-
Em outro livro, Nature’s Body: cos disponíveis em seu tempo:
Gender in the Making of Modern
Science, Schiebinger rastreia outras his- As diferenças corporais de
tórias, às vezes risíveis e quase sempre Sarah Bartmann foram construídas
vergonhosas para nossas sensibilidades utilizando os paradigmas sociais e
atuais.8 Talvez a mais chocante delas científicos disponíveis naquele tem-
esteja no capítulo desse livro dedicado po. (...) Só podemos saber como os
às teorias sobre raça e gênero: a auto- europeus a representaram e enqua-
ra refere-se especialmente à mais fa- draram. Se ela magicamente esti-
vesse viva hoje, os antropólogos e
mosa integrante do povo hotentote (que
biólogos contemporâneos poderi-
habitava o sul da África, perto do Cabo
am representá-la e enquadrá-la di-
da Boa Esperança), uma mulher que,
ferentemente, mas isso seria, mes-
depois de trazida para a Europa por
mo assim, apenas representação e
volta de 1800, veio a se chamar Sarah enquadramento. Uma diferença é
Bartmann. que, na atualidade, talvez, um dos
Sobre o mesmo assunto versa inúmeros movimentos de liberação
a contundente argumentação de Anne poderia oferecer a ela um contexto

7
SCHIEBINGER, 1987.
8
SCHIEBINGER, 1993. 9
FAUSTO-STERLING, 1995, p. 40-41.

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FAZENDO DIFERENÇAS

para rechaçar as construções da Para debater esse assunto, a


ciência euro-americana. Na verda- autora procedeu a uma impressionan-
de, vemos regularmente tal contes- te revisão de pesquisas científicas an-
tação em debates sobre tamanho teriores que promoveram diversas regi-
do cérebro, raça, QI (...), forma do ões do cérebro como indicadoras de
cérebro e gênero, ou sobre genéti- diferenças entre os sexos, mostrando a
ca e homossexualidade.10 inconsistência de muitas delas e os vie-
ses sexistas e homofóbicos aí presen-
Novas tecnologias, novas tes. Mostrou ainda que a discussão pú-
metáforas blica não se limitava à homossexuali-
Se as sensibilidades de nossa dade, mas abrangia também diferen-
época trazem um certo desconforto ças de sexo e gênero no tocante a
diante dos pressupostos sexistas e ra- cognição, competências e eqüidade.
cistas presentes na obra de cientistas Segundo ela, “há muito poucas diferen-
de dois séculos atrás, não podemos ças sexuais absolutas e, sem uma ple-
nos deixar levar pela idéia de que, nos na eqüidade social, jamais poderemos
anos recentes, o “avanço inevitável da saber quais são”. Ela sugere que enfren-
ciência” tenha banido de seus conteú- temos dois desafios, um científico, ou-
dos os pressupostos que levam à exa- tro social, profundamente interconec-
gerada e seletiva atenção dedicada a tados. 11
identificar diferenças sexuais, que são Outro bom exemplo de metá-
projetadas como naturais e servem de fora determinista é apresentado por
base a metáforas poderosas. Em Myths Martin, que examinando textos utiliza-
of Gender, Fausto-Sterling conta que dos em cursos de medicina, aponta o
em 1991 um relatório de pesquisa (de contraste presente na linguagem cien-
apenas três páginas, sem apresentar tífica para descrever a relação entre o
qualquer confirmação confiável), argu- espermatozóide — invariavelmente ati-
mentando que homens homossexuais vo, ágil, com caudas rápidas e fortes
e heterossexuais tinham estruturas ce- — e o óvulo — passivo, à espera do
rebrais diferentes, publicado pela revis- espermatozóide, e depois de fecunda-
ta Science em 1991, teve imediata re- do transportado, varrido, arrebatado,
percussão sobre a mídia, desencade- seguindo à deriva pela trompa de
ando manchetes como: Falópio, quase uma bela adormecida,
“uma noiva dormente acordada pelo
Uma biologia do que signi- beijo mágico do companheiro, que lhe
fica ser gay (New York Times); insufla o espírito que a traz para a vida”.12
Zona do cérebro é ligada Essa imagem literária baseava-se em
à orientação sexual dos homens pesquisas segundo as quais parte do
(New York Times); revestimento interno do óvulo, chama-
O que torna as pessoas da “zona”, formaria uma barreira quase
homossexuais? Um estudo aponta di- impenetrável, levando o espermatozói-
ferença no cérebro (Newsweek); de a utilizar meios mecânicos (a força
Os gays nascem gays? propulsora da cauda) e químicos (uma
(Time). enzima) para superá-la.

10
FAUSTO-STERLING, 1995, p. 41.
11
FAUSTO-STERLING, 1992, p. 269.
12
Schatten & Schatten apud MARTIN, 1996, p. 106.

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1 3 62º SEMESTRE 2001
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Em três estudos dos anos 80, to em 1975 de Sociobiology: The New


Martin localizou novos achados de pes- Synthesis, de E. O. Wilson, biólogo da
quisas que à primeira vista permitiriam Universidade de Harvard. Seu ambicio-
inverter o imaginário sexista sobre o óvu- so esquema argumentativo, sempre
lo; no entanto, a tenacidade dos este- baseado na bologia e na teoria da evo-
reótipos de gênero e o poder de suas lução, pretende explicar desde os atu-
metáforas parecem não ter consenti- ais sistemas legais, econômicos e de
do a inversão. Pesquisas para o desen- parentesco até supostas bases biológi-
volvimento de anticoncepcionais de- cas da discriminação sexual. Ampla-
monstraram que a propulsão da cau- mente criticados por notórias autorida-
da do espermatozóide é muito fraca e des em seu próprio campo (como é o
que a superfície do óvulo é preparada caso de Gould), Wilson e seus seguido-
para pegá-lo antes que escape. Os res inspiraram e continuam a promover
mesmos pesquisadores concluíram explicações para violência e abuso se-
também que ambos contêm molécu- xual, agressividade e promiscuidade
las adesivas que facilitam o encontro. masculina.
No entanto, a única diferença relata- Tantas são as objeções apre-
da nos respectivos papers é que a fun- sentadas pelos estudos feministas de
ção de atacar e penetrar, atribuída ao ciência à sociobiologia que esses po-
esperma, aparece sendo desempe- dem compor até uma bibliografia es-
nhada mais fracamente — provavel- pecífica.13 Mas a saraivada de críticas
mente pelo fato de essa nova versão não impede o reconhecimento de que
contrariar as expectativas culturais. Pos- a sociobiologia, desde os anos 70, ins-
teriormente, os mesmos cientistas pirou estudos cuidadosos e úteis. E tam-
reconceituaram o papel do óvulo, que bém não impede a ira feminista ante o
então passou a ser visto como mais sucesso de mídia que esse ramo das
ativo: a “zona” é apresentada como ciências naturais alcançou ao inspirar
uma agressiva e implacável caçadora manchetes sensacionalistas como as
de espermatozóides, com detalhes selecionadas por Nelkin:14
que associam o óvulo agora a uma
aranha viúva negra. Machismo tem bases bio-
A autora usa esse exemplo lógicas e diz: “Eu tenho bons genes,
para mostrar como novos dados de deixe-me reproduzir” (Time);
pesquisa nem sempre levam os cientis- Se pegarem você dando
tas a superar os estereótipos de gêne- suas voltinhas, não diga que é culpa
ro que espreitam suas descrições da do diabo. É seu DNA (Playboy);
natureza. Ao contrário, permitem levar Estupro: geneticamente
programado no comportamento
os estereótipos para o nível das célu-
masculino (Science Digest);
las, o que os faz parecer ainda mais
Os homens são genetica-
naturais, além de qualquer possibilida-
mente mais agressivos porque são
de de mudança.
mais indispensáveis (Newsweek).
De efeito igualmente naturali-
zador foram algumas descrições pro-
movidas pela sociobiologia (que se 13
Por exemplo, FAUSTO-STERLING, 1992 e 2000; HARAWAY,
define como o estudo sistemático das 1976 e1989; HUBBARD, 1989 e 1994; KELLER, 1996;
bases biológicas de todos os compor- LONGINO, 1996; e NELKIN, 1995.
tamentos sociais), desde o lançamen- 14
NELKIN, 1995, p. 22.

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FAZENDO DIFERENÇAS

A leitura dos principais jor- português, que se aplica à mídia signifi-


nais brasileiros nos últimos anos tam- cando “tentativa de atrair muita aten-
bém permite identificar manchetes ção pública, especialmente mais que
similares: a merecida, para coisas ou pessoas,
Química cerebral estimula alegando e reiterando que são muito
monogamia (Folha de São Paulo, 25 boas ou melhores do que realmente
de fevereiro de 1998); são”15), Dorothy Nelkin ajuda a refletir
A monogamia entre ani- sobre a atribuição de evidência aos
mais (Folha de São Paulo, 27 de ju-
achados científicos pelos jornalistas:
nho de 1999);
enquanto o repórter, antes de publicar,
Gene favorece monoga-
deve conferir cuidadosamente afirma-
mia entre roedores (O Estado de São
ções do político ou outro informante, o
Paulo, 19 de agosto de 1999);
Gene pode explicar dife-
repórter de ciência tende a basear-se
renças entre os sexos (O Globo, 1°
na autoridade de pesquisadores, con-
de outubro de 1999); ferências ou revistas especializadas.
Além de atraentes, homens Assim, enquanto política e economia
altos produzem mais filhos (Folha de são objeto de notícia, crítica e investi-
São Paulo, 13 de janeiro de 2000); gação, os jornalistas de ciência buscam
A violência nos genes (Fo- muito mais elucidar para os leigos o que
lha de São Paulo, 12 de março de encontraram no Olimpo.16
2000). Justamente por envolverem
tantos interesses, as relações entre ci-
A própria atração que o assun- entistas e mídia são, de um modo ge-
to das diferenças sexuais abordado ral, tensas. Para comprovar os atritos
pelas ciências biológicas (apresentado, entre ambas as partes, basta percorrer
geralmente, com ênfase exagerada os editoriais e artigos publicados sobre
nas diferenças, promovendo uma o assunto ao longo de cada ano nas
clivagem entre os dois sexos) exerce páginas das mais reconhecidas vozes
sobre a mídia vem atraindo por sua vez das ciências no mundo contemporâ-
a atenção de muitos pesquisadores. neo: as revistas Science e Nature.
Enquanto cientistas ainda não É precisamente num editorial da
se interessam por descobrir a parte do revista inglesa Nature que se encontra
cérebro ou o gene que determina essa um dos melhores exemplos envolven-
obsessão jornalística, a literatura que do, em 1997, editores da revista cientí-
aborda as estreitas, tensas e conturba- fica e jornais diários numa controvérsia
das relações entre ciência e mídia tem que abrange ao mesmo tempo três
documentado eloqüentes exemplos da questões que atravessam as que se dis-
imunidade que protege as declarações cutem aqui: (1) pressupostos de gêne-
de cientistas — o que os diferenciaria ro presentes no determinismo biológi-
dos políticos. Essa imunidade garante co-genético divulgado por publicações
a autoridade dos cientistas perante os científicas de grande credibilidade; (2)
jornalistas e concorre para manter nos- decorrências funestas das pesquisas
sas crenças sobre verdade, objetivida- que atribuem à genética explicação
de, neutralidade e rigor científicos. Ao para comportamentos femininos e
discutir o alto preço da prática
jornalística denominada hype (palavra 15
Longman, 1992.
inglesa ainda sem tradução para o 16
NELKIN, 1995, p. 164-66.

ANO 9
1 3 82º SEMESTRE 2001
MARIA TERESA CITELI

masculinos; e (3) o papel da mídia (no Na mesma semana, alguns jor-


caso da inglesa) ao “promover” a divul- nais ingleses trouxeram manchetes
gação de trabalhos científicos.17 como “Por que meninos serão meni-
Em um mesmo número a nos?” ou “Meninas podem herdar gene
Nature publicou dois artigos que susten- da intuição do pai”. No número seguin-
tavam a discussão sobre a predominân- te, os editores da revista não hesitaram
cia de fatores biológicos ou sociais na em atribuir culpa aos jornalistas. No edi-
base de comportamentos femininos e torial “Not Everything is in the Genes”
masculinos. O primeiro era um relatório (“Nem tudo está nos genes”) — relegan-
de pesquisa intitulado “Evidence from do o fato de que os próprios autores
Turner ’s Syndrome of an Imprinted X- do comentário publicado em sua revis-
Linked Locus Affecting Cognitive ta, na semana anterior, haviam afirma-
Function,” seguido de um comentário do haver “evidências da localização do
sobre essa pesquisa, justamente na se- gene que atua sobre parte do
ção “News and Views” (que segundo a dimorfismo comportamental sexual,
Nature destina-se a informar leitores desafiando a crença prevalecente de
não-especialistas sobre os novos avan- que as diferenças sexuais são ampla-
ços científicos), intitulado “A Father ’s mente determinadas culturalmente” —
Imprint on His Daughter ’s Thinking” (“A os editores censuram duramente os jor-
marca do pai no pensamento da filha”), nalistas, apontando que aquelas man-
no qual os autores apontam, para o chetes e os respectivos textos poderi-
público leigo, importantes questões am sugerir que a pesquisa produziu cla-
controversas encontradas no estudo, ro exemplo de que a genética moder-
entre as quais as “diferenças humanas na pode fornecer instrumentos úteis
de gênero”. Consideram ainda que tais para entender o comportamento soci-
diferenças podem ser adquiridas e re- al. Alertam ainda que, embora os resul-
fletir papéis sociais diferenciados entre tados sejam cientificamente estimulan-
homens e mulheres, mas podem tam- tes, deve-se estar prevenido contra exa-
bém ser parte do dimorfismo biológico geros: há uma inevitável tentação de
embutido que resulta da diferença ge- usá-los para justificar uma forma de
nética entre machos e fêmeas. Ainda determinismo genético que — apesar
segundo esses autores, devido à ênfa- de nossa consciência dos movimentos
se na igualdade sexual tem havido uma eugênicos e outros abusos da genéti-
crescente tendência de relegar o pos- ca no passado — permanece com
sível papel da biologia na consideração força poderosa na sociedade moder-
de diferenças psicológicas entre mulhe- na. Segundo os editores, narrar a bus-
res e homens. Agora, pela primeira vez ca por ou a descoberta de “um gene”
os autores do referido relatório teriam da homossexualidade, da violência, do
encontrado evidências da localização alcoolismo, da doença mental tem se
do gene que atua sobre parte do tornado uma característica comum nos
dimorfismo comportamental sexual, jornais. O grande êxito da pesquisa ge-
desafiando a crença prevalecente de nética pode, mesmo sem desejar, con-
que as diferenças sexuais são ampla- tribuir para fortalecer esse tipo de argu-
mente determinadas culturalmente. mento determinista. Os editores conclu-
em que poucos ainda acreditam no
17
Maiores detalhes sobre esse caso exemplar podem mito do determinismo biológico gros-
ser encontrados em CITELI (no prelo). seiro; de formas mais sofisticadas, po-

ESTUDOS FEMINISTAS 1 3 9 1/2001


FAZENDO DIFERENÇAS

rém, ele se mantém como forte influ- minante tem parecido cada vez mais
ência em certas tendências do moder- inadequada por diversas razões: (1) o
no pensamento político e social. conhecimento científico popularizado
Esses dados, oferecidos pelas realimenta o processo de pesquisa ci-
mais autorizadas vozes dos cientistas, entífica; (2) o conhecimento é consti-
além de confirmar o grande apreço tuído através de transformações coleti-
que as ciências naturais consagram à vas, e portanto a popularização deve
mídia — a qual, acreditam, virá a ter ser vista mais como extensão do pro-
um poder ainda maior no futuro — per- cesso do que como outro processo in-
mitem esboçar a imagem que os ci- teiramente diferente; e (3) a simplifica-
entistas naturais lhe atribuem: exagera- ção é parte integrante do trabalho ci-
da, apelativa, sensacionalista (o “mais entífico. O grau de simplificação depen-
novo” tratamento, a “mais excitante” de do contexto em que o conhecimen-
descoberta, o milagre, a “mais nova” to é comunicado em seminários aca-
cura), promovendo interesses comerci- dêmicos ou laboratórios, para estudan-
ais, atraindo o controle governamental, tes, fontes de financiamento ou espe-
assustando a opinião pública, decep- cialistas em campos adjacentes. Há
cionando os leitores e, o que é mais muitas evidências de que especialistas
grave, colocando em risco a credibili- freqüentemente simplificam a fim de
dade científica. persuadir seu público e obter apoio para
De grande importância para seus programas de pesquisa, motivar as
entender a animosidade contida nas pessoas a seguir recomendações mé-
relações entre cientistas e mídia são os dicas, convencer investidores e princi-
estudos que não concedem precedên- palmente defender sua posição numa
cia aos processos de produção do controvérsia científica.19
conhecimento e de divulgação desses Considerando essa flexibilida-
processos pela mídia. de, segundo Hilgartner, as acusações
Stephen Hilgartner, um sociólo- mais freqüentes voltam-se contra ato-
go interessado em sociologia do co- res de fora do âmbito científico (jorna-
nhecimento científico, afirma que a vi- listas, sociólogos, estudiosos das ciên-
são culturalmente dominante de cias, policy-makers, ou mesmo o pú-
popularização da ciência repousa num blico leitor) porque esses ataques são
modelo simplificado que separa o pro- fáceis de montar, conduzem à solidari-
cesso em dois estágios: há primeiro a edade entre os cientistas e deixam os
produção do conhecimento pelos ci- não-especialistas em posição vulnerá-
entistas (idealizado como puro, genuí- vel. Ao mesmo tempo, os cientistas
no) e depois a disseminação em ver- garantem o direito de demarcar as fron-
sões simplificadas, de acordo com as teiras apropriadas entre simplificação e
limitações do público. A popularização, distorção, assegurando-lhes o “equiva-
segundo essa visão, seria, na melhor lente epistêmico ao direito de imprimir
das hipóteses, simplificação adequada dinheiro. Conhecimento genuíno é sua
e, na pior, distorção ou degradação da exclusividade”.20
verdade original, por outsiders da ciên- Apesar de todas as tensões
cia.18 Segundo esse autor, tal visão do- enfrentadas, os jornais diários e as revis-

19
HILGARTNER, 1990, p. 590-631.
18
HILGARTNER, 1990, p. 519-20. 20
HILGARTNER, 1990, p. 534.

ANO 9
1 4 02º SEMESTRE 2001
MARIA TERESA CITELI

tas — atores privilegiados não apenas çadores, agressivos e sexualmente mais


da divulgação, mas da própria consti- ativos do que as mulheres.
tuição da atividade científica, além de De grande impacto no interior
veículos de nosso entendimento do que da biologia evolutiva e da antropologia
é ciência e de para que ela serve — física foram os estudos que permitiram
ganham legitimidade ao recorrer à au- contrapor a versão “mulher coletora” à
toridade das ciências para atrair seu idéia de “homem caçador”, consagra-
público, usuários finais (neste caso) dos da por essas disciplinas para explicar a
fatos produzidos pelos cientistas. evolução dos primatas. Fedigan assina-
Pensando nesse momento la que os modelos da vida social hu-
como cientista social, não me lembro mana primitiva não são apenas inferên-
de ter ouvido falar de um único progra- cias plausíveis de evidências materiais,
ma no âmbito das ciências humanas mas funcionam como afirmações da
voltado para a formação de sociólo- natureza humana, baseando-se em
gos, cientistas políticos ou antropólogos especulações culturalmente informa-
especializados em divulgar humanida- das — o que permite duvidar de seu
des para a mídia. Tampouco se tem valor explicativo.24
notícia de formação específica, para Segundo Fausto-Sterling, num
graduandos em jornalismo, voltada para período em que as mulheres não eram
a relação com os cientistas sociais. reconhecidas como capazes de pro-
duzir conhecimento científico, feminis-
Invertendo metáforas tas e biólogos evolutivos só podiam ser
É especialmente no âmbito da antagonistas. Nos últimos anos, a situa-
primatologia, uma disciplina que nume- ção tornou-se mais complexa: ao pra-
ricamente é cada vez mais dominada ticar biologia evolutiva ou antropologia
por mulheres,21 que a contestação das física, feministas tornaram o campo
metáforas científicas de gênero encon- mais justo e menos androcêntrico,
tra seu ponto mais alto — embora al- mesmo adotando diferentes posições
guns estudos da primatologia tenham em relação ao poder explicativo da
sido paradoxalmente debatidos no pró- biologia. Fausto-Sterling revisa e se pro-
prio âmbito feminista, justamente por põe classificar as recentes variantes in-
causa de sua filiação teórica à telectuais encontradas entre feministas
sociobiologia.22 e biólogas/os evolutivas/os da seguinte
Algumas autoras,23 usando su- forma:25
Grupo I: A biologia não
porte sociobiológico, alteraram os ins-
pode explicar arranjos sociais huma-
trumentos de observação e o conteú-
nos
do dos estudos sobre primatas, trazen-
Tipo 1. A biologia evolutiva
do uma sonora resposta à idéia de que
pode ser cuidadosamente aplica-
as fêmeas foram meras espectadoras da aos estudos do comportamento
da evolução, idéia supostamente pro- animal, com especial atenção para
movida pelos atributos de machos ca- evitar aplicações androcêntricas, e
corrigir concepções errôneas
21
FEDIGAN (1994) tenta explicar esse fenômeno. provocadas pelo androcentrismo.
22
HARAWAY (1976 e 1989) é a autora que apresenta as
mais contundentes críticas a diversas dessas autoras.
23
Como FEDIGAN, 1986 e 1994; HARDY, 1986; ZIHLMAN, 24
FEDIGAN, 1986.
1987 e 1997; STRUM, 1999; entre muitas outras. 25
FAUSTO-STERLING, 1997, p. 57-58.

ESTUDOS FEMINISTAS 1 4 1 1/2001


FAZENDO DIFERENÇAS

Tipo 3. As afirmações bio- bre a natureza essencial do que são o


lógicas sobre diferenças sociais são masculino e o feminino.
cientificamente inválidas (Hubbard, Ativistas homossexuais também
Fausto-Sterling e outras); o conheci- têm acolhido e divulgado pesquisas que
mento científico é socialmente cons- sugerem a existência de bases biológi-
truído, portanto será sempre parte cas/genéticas para a homossexualida-
de uma luta de poder que é funda- de, por considerar que estas podem
mentalmente social e não biológi- contribuir para superar preconceitos, ao
ca (Fox-Keller, Fausto-Sterling,
retirar do indivíduo a “culpa” ou a res-
Hubbard, Harding, entre outras).
ponsabilidade por sua conduta, quan-
Grupo II: A biologia pode
do esta não é aceita, por exemplo,
explicar os arranjos sociais humanos
entre familiares.
Tipo 2. Biólogos evolutivos/
comportamentais ignoraram o com-
Nos últimos cinco anos, estudos
portamento feminino. Adicionar con-
produzidos no âmbito da biologia física
siderações sobre as fêmeas ajuda a e da antropologia visando inverter as
legitimar reivindicações por igualda- metáforas de gênero que desvaloriza-
de social (Blackwell e algumas vam as mulheres passaram progressiva-
primatologistas). E ainda, biólogos mente a alcançar sucesso na mídia.
evolutivos ou comportamentais inter- Um bom exemplo disso aconteceu em
pretaram mal suas observações: so- março de 1999: a matéria de capa da
mente os preconceitos masculinos Time, “A verdade sobre o corpo da
podem tornar alguém cego à supe- mulher ” 27 trazia uma chamada
rioridade feminina (algumas eco-fe- enfatizando que, segundo novas pes-
ministas contemporâneas). quisas, as mulheres são mais fortes, mais
resistentes e mais ativas sexualmente do
Ainda segundo Fausto-Sterling, que se imaginava. Logo de início, a
“críticas apresentadas pelas feministas matéria apregoava o livro Woman: An
do tipo 3 aplicam-se àquelas dos tipos Intimate Geography, de Natalie Angier,
1 e 2, pelas quais nunca tiveram muita como a bíblia da nova revolução femi-
simpatia. As do tipo 3 vão continuar ela- nina contra os cânones sagrados da
borando novas teorias sobre o conhe- biologia e da psicologia evolutiva que,
cimento científico, esperando assim por muito tempo, desvalorizaram siste-
poder contribuir para que a prática ci-
entífica seja mais ideologicamente
autoconsciente e mais objetiva”.26
27
Essa matéria, publicada na Time de 8 de março de
1999, teve duas repercussões imediatas na mídia brasi-
Essa tipologia esconde uma leira, mesmo que nenhuma delas fizesse qualquer refe-
grande diversidade de abordagens te- rência à fonte de inspiração: foi reproduzida quase inte-
óricas e disciplinares, mas é útil para gralmente, sem crédito ou citação da fonte, pela revista
Veja de 10 de março de 1999 sob a rubrica “Ciência”.
levantar inquietações atuais diante do
No domingo seguinte, 14 de março de 1999, o físico
sucesso obtido por explicações femi- Marcelo Gleiser pela primeira vez incluiu esse tema em
nistas do comportamento humano de- sua coluna semanal no caderno Mais! da Folha de
rivadas de matrizes deterministas, com S.Paulo, intitulada “O comportamento sexual humano
segundo a ciência”. Outro artigo, de autoria do mais
ampla repercussão na mídia e, por reconhecido jornalista científico brasileiro, José Reis, pu-
decorrência, em nosso imaginário so- blicado em sua coluna “Periscópio” em 18 de abril de
1999, também do caderno Mais! da Folha, embora
com outra abordagem, pode ter sido provocado pela
26
FAUSTO-STERLING, 1997, p. 58. matéria da Time.

ANO 9
1 4 22º SEMESTRE 2001
MARIA TERESA CITELI

maticamente o corpo, as atividades e social, poderiam ser alterados. Será que


o comportamento femininos. Dois me- os novos tempos estão mostrando que
ses depois, em maio de 1999, o livro de seria mais fácil mudar as traduções da
Angier, jornalista especializada em biolo- natureza apresentadas pela voz autori-
gia, entrou para a lista de best sellers zada de cientistas, para assim superar
publicada semanalmente pelo suple- os preconceitos vigentes?
mento New York Times Book Review. As elaborações feministas (a
O sucesso de vendas alcança- ordem do conhecimento é a ordem
do pelo mais novo livro da renomada da sociedade) são corroboradas a partir
jornalista, ganhadora de um prêmio da demonstração de que as novas vo-
Pulitzer, não deveria surpreender quem zes e atrizes sociais em nossa cultura
acompanha o crescente sucesso en- têm influência sobre parte da produção
contrado nos Estados Unidos por essa científica e jornalística recente. Ao mes-
literatura de auto-ajuda que recorre si- mo tempo, porém, apontam para um
multaneamente aos estudos de gêne- problema com o qual teremos de nos
ro e às ciências biológicas para exaltar defrontar: Como será possível lidar com
a superioridade da “natureza” feminina, os diferentes determinismos em voga
constatada pelos “incríveis avanços pro- atualmente?
gressivos da ciência”, para encontrar a Há, sem dúvida, um contexto
“nova”, “poderosa” e “superior” natureza que permite, em diversos âmbitos, du-
feminina inscrita também no corpo da vidar da utilidade científica de teorias
mulher, portanto cientifica e naturalmen- que pretendem explicar o comporta-
te dada. Também não é a primeira vez mento humano a partir de fatores ex-
que elaborações acadêmicas feminis- clusivamente biológicos. No entanto,
tas alcançam sucesso de venda depois argumentos deterministas de base bio-
de retraduzidas e transformadas em lite- lógica, resultados de seus respectivos
ratura de auto-ajuda: todos nos lembra- contextos históricos e políticos, identifi-
mos do Complexo de Cinderela. cados por muitos estudos, têm de-
Em menos de um ano o livro monstrado vigorosa tenacidade nos dois
de Angier foi lançado no Brasil28 e logo sentidos que essa palavra carrega, obs-
encontrou o entusiasmo do jornalista Elio tinação e constância.
Gaspari, em sua coluna publicada na A natureza dos argumentos ex-
UOL, em 1° de agosto de 2000. Segun- pressos por alguns cientistas e feminis-
do ele, “uma cantata para o corpo da tas permite identificar ainda a obstina-
mulher... que associou conhecimentos ção do apego ao mito empirista ainda
científicos (tudo indica que o homem operante. Mito, sim, pois os estudos da
deriva da mulher e não o contrário) e ciência (feministas ou não) insistem em
gosto pela vida (...) é um livro para as demonstrar como a ciência projeta o
mulheres se orgulharem de seu corpo”. universo cultural, moral e político de seu
A ascensão de novos essenci- tempo como natural e, por isso mes-
alismos apregoando agora a superiori- mo, ajuda a legitimá-lo.
dade feminina instiga perguntas. Os A palavra tenacidade, porém,
estudos de gênero perseguiram obsti- admite também o sentido de constân-
nadamente a idéia de que os padrões cia ao longo do tempo, quase como
de gênero, por serem uma construção perseverança. E nesse outro sentido não
se pode deixar de perceber que os es-
28
ANGIER, 2000. tereótipos constituídos com base em

ESTUDOS FEMINISTAS 1 4 3 1/2001


FAZENDO DIFERENÇAS

metáforas de ordem biológica têm York: Chapman & Hall, 1997.


____. Sexing the Body: Gender Politics and the
demonstrado uma grande capacida-
Construction of Sexuality. New York: Basic
de de se manter, apesar das inconsis- Books, 2000.
tências que vão acumulando perante FEDIGAN, Linda. “The Changing Role of Women
mudanças culturais, tecnológicas e po- in Models of Human Evolution”. Annual
Review of Anthropology, n. 15, 1986, p. 25-
líticas. Isso acontece até mesmo com 66.
aquelas vertentes que insistem, como ____. “Science and the Successful Female: Why
vimos, no recurso de exagerar diferen- There are so Many Women Primatologists”.
ças para encontrar, nos corpos, argu- American Anthropologist, v. 96, n. 3, setem-
bro de 1994, p. 529-39.
mentos que garantam a continuidade ____. “Is Primatology a Feminist Science?” In:
de interpretações deterministas para HAGER, Lori (ed.). Women in Human
comportamentos humanos e para a Evolution. New York: Routledge, 1997.
GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do ho-
superioridade feminina ou masculina. mem. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
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ANO 9
1 4 42º SEMESTRE 2001
MARIA TERESA CITELI

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Human Evolution”. In: HAGER, Lori (ed.).
Women in Human Evolution. New York:
Routledge, 1997.

[Recebido para publicação em novembro de


2000]

and behaviour”
“Making difference: theories on gender, body,
Abstract
Abstract: Since the end of the nineteenth
century, when Darwin published his work on
evolution, several female scientists have
reacted by adopting basically two points of
view: while some deny the potential of the
biological sciences to explain social
arrangements, others reinterpret biology studies
on sex differences, admitting that these may
explain human behavior and social inequality.
In an attempt to appraise how social
differences are assigned to the human body,
this article discusses theoretical trends in recent
works of biological sciences, which try to either
reaffirm or deny the plausibility of theories that
resort to sex differences presumably located in
the body (brains, genes, male and female
physiology) to explain variations in human beings’
skills, abilities, cognitive patterns, and sexuality.
And, given the influence of the media on our
views on male and female, it also discusses the
repercussion of such essentialist views on national
and international print media.
Keywords
Keywords: science and gender, biological
determinism, media, sociology of scientific
knowledge.

ESTUDOS FEMINISTAS 1 4 5 1/2001

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