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'Empreendedorismo' das

capitanias hereditárias não é


exemplo para país nenhum
Numa tentativa de 'rebranding' da escravidão, vice-presidente Hamilton Mourão
exaltou empreendedorismo das capitanias hereditárias, um fracasso econômico
do Brasil colônia

Sérgio Augusto, O Estado de S.Paulo


05 de outubro de 2019 | 16h00

O presidente sofre de dendrofobia crônica, mas só há dias conhecemos a extensão do


mal. Em público e diante das câmeras de TV, ele soltou um “porra de árvore” que nem
em seus mais intempestivos arroubos de rude franqueza o general João Figueiredo, o
ditador distensionista, soltaria. 

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Ignoro os motivos mais recônditos desse ódio às árvores do atual presidente militar e
seu desprezo pelos órgãos e pessoas que tentam protegê-las, mas creio que seus
assessores deveriam aconselhá-lo a conter o ódio e maneirar no desprezo, ao menos
em respeito ao pau-brasil, origem de nossa identidade definitiva e nosso primeiro
produto de exportação. 

Enquanto o presidente vociferava contra a preservação da floresta amazônica, o


cacique Raoni, e em prol de mineradoras e madeireiras, seu vice pontificava, na
internet, sobre o Brasil dos tempos coloniais. 

Millôr dizia, com razão, que “a ociosidade é a mãe de todos os vices”. O atual general
Mourão (o anterior, prenome Olímpio, vulgo “Vaca Fardada”, morreu no auge do
regime militar) não gosta de ficar desocupado, conversando com os botões de seu
pijama. Quando não tem o que fazer, nem sequer esquentar a cadeira presidencial e
sofrer bullying de Moe, Curly e Larry Bolsonaro, ele arruma um jeito de mostrar que
tem mais preparo que o seu superior hierárquico. 

Mourão 2.0 estava em seu Estado natal, Rio Grande do Sul, quando, em agosto do ano
passado, semanas antes de ser solenemente mimoseado com um simbólico relho pelo
prefeito de Bagé, Divaldo Lara, posteriormente afastado do cargo por corrupção,
apresentou seu intelecto à nação, divagando sobre o nosso “cadinho cultural”. Não
causou boa impressão. 
O general repetiu as mesmas bolorentas ideias a respeito da “indolência” dos índios e
a “malandragem” dos negros, recicladas das teses preconceituosas, algumas até
racistas, de Nina Rodrigues, Oliveira Vianna, Azevedo Amaral e outros intérpretes do
caráter nacional brasileiro, já devidamente repertoriadas e depreciadas por Dante
Moreira Leite, Carlos Guilherme Motta e outros estudiosos do assunto.

No último fim de semana, enquanto o presidente dava asas à sua dendrofobia, o vice


postava em rede social uma ode aos 487 anos das capitanias hereditárias, criadas em
1532 pelo rei de Portugal D. João 3º. Se o general não nos lembra da efeméride, ela
passaria em branco até pelo Peninha (a.k.a. Eduardo Bueno). 

Por que não esperou mais 13 anos para celebrar, como é de praxe, uma data redonda,
os 500 anos das capitanias? Talvez porque o governo se sinta assaz necessitado de
pintar como tradicionais certas iniquidades do presente.

Em meus tempos de estudante, o Tratado de Tordesilhas e as subsequentes Capitanias


Hereditárias compunham um dos pontos mais enfadonhos, se não o mais
desinteressante, da História do Brasil. Talvez porque mal ensinado ou só abordado em
tom ufanista, como a aurora de algo formidável para a formação e a riqueza do país.
Ou seja, à maneira como o general tratou as Capitanias em sua postagem, puro oba-
oba do expansionismo português, com uma visão acrítica do feudalismo tropical
implantado, ao longo de três anos, em 15 big sesmarias da costa brasileira. 

Gente rica e de confiança da Corte lusa presenteada com um latifúndio, para dele
tomar conta, consolidando o domínio lusitano em terras brasileiras, e desenvolvê-lo
economicamente, comercializando pau-brasil e açúcar –era esse o esquema das
capitanias. Seus donatários recebiam também amplos poderes de jurisdição, cobrança
de impostos e outros privilégios administrativos e fiscais. O sistema, mais arcaico que
moderno, já funcionava desde meados do século 14 nas ilhas atlânticas. 

Na visão do general Mourão, com a criação das capitanias, “o País nascia pelo
empreendedorismo, que o faria um dos maiores do mundo”. Que eu saiba, o que
concretamente nasceu com as capitanias, estabelecidas e mantidas com violência e
práticas escravocratas e etnocidas, foram as nossas oligarquias rurais. 

Historiadores contestaram Mourão nas redes sociais. Particularmente incomodado


com a justificativa final do general (“É hora de resgatar o melhor de nossas origens”),
Thiago Krause, professor de História Colonial do Brasil na Unirio (Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro), comentou, em sua página no Twitter, que as
capitanias, à exceção de São Vicente e Pernambuco, foram um fracasso em termos
econômicos, em parte por descaso e incompetência dos donatários, mas sobretudo
pela resistência indígena às tentativas iniciais de escravidão. 

Não pegou bem o general exaltar escravocratas, chamar bandeirantes assassinos de


“nossos colaboradores”, fazer “rebranding” de senhores de engenho, alçados à
categoria de “mestres do açúcar” e não dar uma palavra sobre negros e silvícolas
explorados na lavoura e outros afazeres. Empreendedorismo em lombo alheio –e de
graça – não deveria servir de exemplo a nenhum país. 

“Não deixa de ser coerente que esse governo ache isso bom, né?”, ironizou o professor
Krause. O mais irônico comentário sobre a aula de história do general saiu na coluna
de segunda-feira de Gregório Duvivier, na Folha de S.Paulo: “Platão escreveu sobre
militares que, escondidos num grotão, só têm acesso ao mundo através de uma fresta
de luz –o mito da caserna.” 

Duvido que o presidente entenda a boutade sem uma explicação do vice – que, aliás,
também deveria estar lá para isso.

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