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MAINGUENEAU, D. Ethos, cenografia, incorporação. In: ______. AMOSSY, R. (Org.). Imagens de si no discurso.

1. ed. São Paulo: Contexto, 2008. p. 69-92.

Ethos, cenografia, incorporação


Dominique Maingueneau

 A noção de ethos pertence à tradição retórica. (p.69)

 Maingueneau foi levando a trabalhar a noção de ethos em direções que ultrapassam bastante o quadro da
argumentação. (p.69)

 Além da persuasão por argumentos, a noção de ethos permite, de fato, refletir sobre o processo mais geral da
adesão de sujeitos a uma certa posição discursiva. (p.69)

 É insuficiente ver a instância subjetiva que se manifesta por meio do discurso apenas como estatuto ou papel.
Ela se manifesta também como “voz” e, além disso, como “corpo enunciante”, historicamente especificado e
inscrito em uma situação, que sua enunciação ao mesmo tempo pressupõe e valida progressivamente. (p.70)

Ethos e Incorporação

 Se o ethos está crucialmente ligado ao ato de enunciação, não se pode ignorar, entretanto, que o público constrói
representações do ethos do enunciador antes mesmo que ele fale. Parece, pois, necessário estabelecer uma
primeira distinção entre ethos discursivo e ethos pré-discursivo (o que Ruth Amossy e galit Haddad chamam
aqui de ethos prévio). Só o primeiro corresponde à definição de Aristóteles e é para ele que a atenção de
Maingueneau atenção se volta aqui. (p.71)

 Maingueneau, em sua primeira deformação do ethos consistiu em reformulá-lo em um quadro da análise do


discurso que, longe de reservá-lo à eloquência judiciária ou mesmo à oralidade, propõe que qualquer discurso
escrito, mesmo que a negue, possui uma vocalidade específica, que permite relacioná-lo a uma fonte
enunciativa, por meio de um tom que indica quem o disse: o termo “tom” apresenta a vantagem de valer tanto
para o escrito quanto para o oral: pode-se falar do “tom” de um livro. (p.71-72)

 Essa determinação da vocalidade implica uma determinação do corpo do enunciador (e não, bem entendido, do
corpo do autor efetivo). Assim a leitura faz emergir uma origem enunciativa, uma instancia subjetiva encarnada
que exerce o papel de fiador. (p.72)

 O “fiador”, cuja figura o leitor deve construir com base em indícios textuais de diversas ordens, vê-se, assim,
investido de um caráter e de uma corporalidade, cujo grau de precisão varia conforme os textos. O caráter
corresponde a um feixe de traços psicológicos. Quanto à corporalidade, ela é associada a uma compleição
corporal, mas também a uma forma de vestir-se e de mover-se no espaço social. O ethos implica assim um
controle tácito do corpo, apreendido por meio de um comportamento global. (p.72)

 Falamos de incorporação para designar a maneira pela qual o co-enunciador se relaciona ao ethos de um
discurso. Traindo um pouco as regras da sadia etimologia, pode-se fazer essa “incorporação” atuar em três
registros indissociáveis: (p.72)
 A enunciação do texto confere uma corporalidade ao fiador, ela lhe dá um corpo.
 O co-enunciador incorpora, assimila um conjunto de esquemas que correspondem à maneira especifica
de relacionar-se com o mundo, habitando seu próprio corpo.
 Essas duas primeiras incorporações permitem a constituição de um corpo, da comunidade imaginária
dos que aderem a um mesmo discurso. (p.73)
 O universo de sentido que o discurso libera impõem-se tanto pelo ethos quanto pela “doutrina”: as “ideias”
apresentam-se por uma maneira de dizer que remete a uma maneira de ser, à participação imaginária em um
vivido. (p.73)

 O enunciador não é um ponto de origem estável que se “expressaria” dessa ou daquela maneira, mas é levado
em conta em um quadro profundamente interativo em uma instituição discursiva inscrita em uma certa
configuração cultural e que implica papéis, lugares e momentos de enunciação legítimos, um suporte material
e um modo de circulação do enunciado. (p.75)

 ...não podemos, pois, contentar-nos, como a retórica tradicional, em fazer do ethos um meio de persuasão: ele é
parte constitutiva da cena de enunciação, com o mesmo estatuto que o vocabulário ou os modos de difusão que
o enunciado implica por seu modo de existência. (p.75)

 A cena da enunciação integra de fato três cenas:


 A cena englobante: tipo de discurso
 Cena genérica: gênero do discurso/ “instituição discursiva”
 Cenografia: ela não é imposta pelo gênero, ela é construída pelo próprio texto. (p.75)
Em uma cenografia, como em qualquer situação de comunicação, a figura do enunciador, o fiador, e a figura correlativa
do co-enunciador são associadas a uma cronografia (um momento) e a uma topografia (um lugar) das quais supostamente
o discurso surge. (p.77)
... a fala supõe uma certa cena de enunciação que, de fato, se valida progressivamente por essa mesma enunciação. A
cenografia é, assim, ao mesmo tempo, aquela de onde o discurso vem e aquela que ele engendra; ela legitima um
enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la...(p.77)

Algumas ilustrações
O exemplo do discurso doce

 Na célebre Introduction à la avie devote, de São Franciso de Sales (1609), as conversas conservam numerosos
traços de uma conversação na qual o enunciador principal exprime-se em tom pacifico, afetuoso e paternal,
usando comparações familiares. (p.78)
Tal cenografia implica um ethos da “doçura”, que supõe uma definição implícita do que seja um corpo devoto
adequado. (p.78)

 De acordo com o processo de “enlaçamento paradoxal” já evocado, o leitor que o ethos “incorpora” de imediato
à cenografia adere progressivamente ao mundo que exige essa cenografia e nenhuma outra. Para legitimar-se,
o discurso desenvolve esse universo de sentido que, precisamente, torna necessário que se trate a devoção dessa
forma. (p.79)

 Meio século mais tarde, o movimento religioso do qual São Francisco de Sales participa, o humanismo devoto,
será violentamente atacado pelos jansenistas. Esse ataque é inseparável de uma rejeição do ethos doce. (p.79)
Dessa vez, os valores estão invertidos: é o ethos doce que é ridicularizado na boca de um fiador que o texto de
Pascal desqualifica. (p.80)

 Estes exemplos permitem distinguir ethos pré-discursivo e ethos discursivo. Estabelecem também uma distinção
entre ethos dito e ethos mostrado. O ethos dito vai além da referência direta do enunciador a sua própria maneira
de enunciar. (p.80)

 O ethos dito, além da figura do fiador e do antifiador, pode também incidir sobre o conjunto de uma cena de
fala, apresentada como um modelo ou antimodelo da cena do discurso. Tal cena de fala pode ser chamada de
cena validada, em que “validada” significa “já instalada na memória coletiva”, seja como antimodelo, seja como
modelo valorizado. A “cena validada” fixa-se facilmente em representações estereotipadas popularizadas pela
iconografia. (p.80-81)

 Aqui nos encontramos diante de um paradoxo: a cena validada é ao mesmo tempo exterior e interior ao discurso
que a evoca. É exterior no sentido de que lhe preexiste, em algum lugar no interdiscurso; mas é igualmente
interior, uma vez que é também o produto do discurso, que a configura segundo seu universo próprio: muitos
escritores religiosos situaram sua enunciação no rastro da de Cristo, mas, sempre de acordo com grande
quantidade das interpretações que se fazem dela, a exploração semântica dessas cenas de referência varia sua
virtude do posicionamento de quem as evoca. (p.82)
 O ethos efetivo (pré-discursivo e o discursivo), aquele que, pelo discurso, os co-enunciadores, em sua
diversidade, construirão, resulta assim da interação entre diversas instâncias, cujo peso varia segundo os
discursos. A distinção entre ethos dito e ethos mostrado inscreve-se nos extremos de uma linha contínua, já que
é impossível definir uma fronteira clara entre o “dito” sugerido e o “mostrado” não explícito. (p.82)

Ethos

Ethos pré-discursivo Ethos discursivo

Ethos dito Ethos mostrado


(Referências diretas ao
enunciador, cenas validadas...)

Estereótipos

Ethos e cena Genérica (ver texto p. 83)

Corpo Dito e Corpo Mostrado (ver texto p. 85 )

Observações sobre o discurso literário (ver texto p. 88)

Conclusão

 O enunciado se dá pelo tom de um fiador associado a uma dinâmica corporal, o leitor não decodifica seu
sentido, ele participa “fisicamente” do mesmo mundo do fiador. O co-enunciador captado pelo ethos, envolvente
e invisível, de um discurso, faz mais do que decifrar conteúdos. Ele é implicado em uma cenografia, participa
de uma esfera na qual pode reencontrar um enunciador que, pela vocalidade de sua fala, é construído como
fiador do mundo representado. (p 90)

 Como escreveu Meschonnic, “pela voz, a significação precede o sentido e o marca. As palavras estão na voz.
Como na relação, precede e marca os termos. É o que faz a entonação.

 ... recusamo-nos a reduzir a subjetividade enunciativa a uma consciência empírica, e, mais amplamente, a
qualquer avatar da oposição entre “fundo” e “forma”. Por sua própria maneira de se enunciar, o discurso mostra
uma regulação eufórica do sujeito que o sustenta e do leitor que ele pretende ter. (p.90 -91)

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