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Boaventura de Sousa Santos Reconhecer para libertar Os caminhos do cosmopolitismo multicultural ‘COPYRIGHT © 2003 by Boaventura de Sousa Santos con BA, Ferrand, Bicker & Associados {t0-BRASIL. CATALOGACKONA FONTE SINDICATO NACIONAL DOSEDITORESDELIVROS, RJ aug Resobecr par hear: 0 amiahos do cosmeplisma inventar a Emancipagso Socials Para Novos Mani- 05 v3) ISBN 85-200.0617-5 4. Mudsnga sos Boaventurs de Sousa, 1940- I. Serie cop - 303.482 on2i9 DU ~ 316.42 Dircios desta edigao adguiridos pela EDITORA CIVILIZAGAO BRASILEIRA tum sclo da DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVICOS DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina 171 ~Rio de Janeio, RJ ~ 20921-380 ~ Tel: 2585-2000 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052, Rio de Janeiro, RJ - 20922:970 Impresso no Brasil 2003 Sumério PREFACIO. 13 Introdugio: para ampliar o canone do reconhecimento, da diferenga eda igualdade 2s Boaventra de Sousa Santos e Jodo Ariscado Nunes 1. APOSSIBUDADE DE MULTICULTURALSMOS EMANCIATORIOS. 26 1.1, MULTICULTURAUSMO: UM CONCEITO CONTESTAD 26 112. MULTICULTURAUSMO E EMANCIPAGEO. 34 2. OSESTUDOS DE CASO 44 3. CINCO TESES SOBRE MULTICULTURAUISMOS EMANCIFATORIOS EESCALAS DE LUTA CONTRA A Dommnacho 59 DIREITOS COLETIVOS E SOCIEDADES MULTICULTURAIS 69 coin Multiculturalismo e direitos coletivos 71 Cacos Frederico Marts de Soura Filho InTRODUGAO 73 1. FORMAGKO DOS ESTADOS NA AMERICA LATINA. 74 2. AFALACIOSA POLITICA IITEGRAGIONISTA. 77 3. 05 PovOs vives. 80 3.1, © POVO XETA: CRONOLOGIA DE UM GeNOCIOIO 80 32, © LONGO CAMINHO GUARAM NA BUSCA DA TERRA SEM MALES 82 133. © RENASCER DOS PATAXO MAMAWAE 84 “4.0 £QUIvOCDS DA POLITICA DE CONTATO NA AMAZONIA 87 4.1, CAPTULAGKO E VoUTA 00S INDIOS GiawwTES 88 42, ALDEIAS ViRANDO. LUMA NOVA AMEAGA 205 DIREITOS INDIGENAS 90 ‘5. 05 NOVOS DIReITOS NA AMERICA LATINA 92 6 AAPLCAGAO 00 DIREITO £ SUAS DIFICULDADES 96 7. ATERRITORAUDADE COMPARTILAADA. 101 ‘05 DIREITOS ECONOMICOS, SOCINS, CULTURAIS E AMBIENTAIS. 105 cviruio 2 Olhos magicos do Sul (do Sul): tutas contra-hegeménicas dos povos indigenas no Brasil 111 Uno Joe de Olvera Neves wTRODUGAO 113 1 Movimento NDicena 115 1A. ANOS 70: AS “ASSEMBLES INDIGENAS" 115 12, ANOS 80: DA “UNIAO” A“aToMIzaGho" 117 113. ANOS 90: COMSOUDAGAO DE PROIETOS ETNICOS. 121 2. REALIOADES INDIGENAS EMERGENTES 126 2.1. “MARCHE E “CONFERENGIA WDIGENAY 127 2.2, “auToDeMaRcaGior 130 32 TRUMAS SINUOSAS EM CAMINHOS CERTOS. 143 carro 3 A uta contra a exploragéo do petréleo no territério u'wa: estudo de caso de uma luta local que se globalizou 153 ats cas Arenas INTRODUCAO 155 1. AS LIAS SOCIAS ALEM DAS FRONTERAS NAGONAIS. 156 12 UMA ABORDAGEM AO POVO UWA 160 2.1. © PROCESO MODERNO DE ORGANIZAGKO SOCIAL ENTRE OS UWA 161 22. ALUTADOS Uw PLA TERRA 162 RECONMECER PARA LIBERTAR A pxe10nag4o 0 PETROLEO: © CENARIO NACIONAL 163, CCONTATOS DA OCCIDENTAL 3, AOPOSICKO DOs 2.4, OconTRATO PLORAGAO E 05 PRM osuwa 163 13.2. © CONFLITO RELATIVO AO PROCESSO DE CONSULTA PREVIA NAS INSTANCIAS ADMINIS: amas 165 11.3. 0 CONFLTO RELATIVO AO PROCESSO DE CONSULIA PREVIA NAS INSTANGIS LEGALS: A PRIMEIRA RODADA (AGOSTO DE 1995 A MARCO {4.0 CONFUTO U'WA.OXY CHEGA AO CENARIO INTERNACIONAL “4.1 AS PRIMERAS VIAGENS DOS UWA AOS ESTADOS UNIDOS 171 442. GOVERN COLOMBIANO BUSCA A MEDIAGAO DA OFA: © PROJETO AD HOC OEAUNIVERSI- DADE 0€ HARVARD 173 ‘5. ANOVA DINAMICA DOS CENARIOS NACIONA! YONA 175 5.4. AESTRATEGIA DO GOVERNO COLOMBLANO. 176 5.1.1, AAMPUAGAO DO RESGUAROO U'WA 176 5.12. ANOVALICENGA AMBIENTAL PARA A OCODENTAL PETROLEUM 178 52, O CRESCENTE APOIO AOS U'WA EM NIVEL LOCALE GLOBAL 180 IDARIEDADE DAS ORGANZAGOES SOCIAIS DO DISTRITO DE ARAUCA. 180 MOBIIZAGAO DO MOVIMENTO INDIGERA COLOMBIANO EM SOLIDARIEDADE AOS wa 181 15.2.3. AS REDES DE PROMOGAO DA CAUSA UWA NOS 15.2.4. AS REDES DE PROMOGAO DA CAUSA U'WA NA EUROPA NA AMERICA LATINA, 184 aa 53. AS NOVAS DINAMICAS DA WUTAUWA 186 '53.1. 0 NOVO DEBATE COM 0 MINISTRO DO MEID AMBIENTE SOBREA CONSULTA PREVA 186 15.32. 0 NOVO CONFLTO SOBRE © PROCESSO DE CONSULTA PREVA EM INSTANGAS LEGAS. 188 15.33, 05 ULTIMOS ACONTECIMENTOS NA AREADE EXRORAGEO DE PETROLEO 189 92 6. conctws MOVIMENTOS SOCIAIS EJUSTICA(S) 199 avis ‘Uma localidade da Beira em protesto: meméria, populismo e democracia 201 InTRODUGAO 203, 1. ALGUMAS CONSIDERAGOES TEORICAS 205 2. CONTEXTUALAGKO EAS RAZOES DE UMA LUTA 208 cain s Pactos paradoxais 249 Francisco Gutter Sonn Ana Maria arama 1. OCAOSE A TRADIGAO PACTITA. 251 2. IOEOLOGIAS € DISCURSOS DA CONTESTAGAO ARMADA. 259 3. ASMILICIAS URBANAS EM MEDELUN 266 4 Aexrentnca Do ociDENTE DE BOvACA. 272 5. concwwsbes 282 DIFERENGAS E CONSTRUGOES IDENTITARIAS. 259 costo 6 Que trabalhadores, que mulheres, que interesses? Raga, classe e género na Africa do Sul do pés-apartheid 291 Shamion Meee InTRODUGAO 293 1. ACRE DA POBREZA E DA DESIGUALDADE 2. COMPREENDENDO A TRANSIGAO — PACTOS SGANIZAGOES.MOVIMENTO. 299° 3. O PROGRAMA DE RECONSTRUGAO DE DESENVOLUIENTO (PRO). 303 4 ADOTANDO © GEAR 303 5. AS ORGANIZAGOES-MOVIMENTO DURANTE © APARTHEID. 305 {6 AORGANIZAGKO DAS MULHERES SOB 0 APARTHEID. 307 7. 05 MOVIMENTOS £0 ESTADO NA TRANSIGAO E NANOVA DEMOCRACA 311 8 ACOUGACAO NACIONAL DE MULHERES. 313 casita? Orientagéo sexual em Portugal: para uma emancipagio 335 ‘Ana Cito Sontos InTRODUSAO 337 1. CONSTRUINDO A IGUALDADE EA DIERENGA 339 1.1, (DESNGUALDADES NO QUADRO CAPITAUSTA 341 ESPECFICIOADES JURIDICAS, SOCAN EREUIGIOSAS DO Pals. 347 2, ocaTOUCISMo porTUGUES 350 2. AEMERGENCIA DO MOVIMENTO LGBT EM PORTUGAL 353 21. CONSTRUINDO REDES COM OUTROS GRUPOS DSCRIMINADOS. 358 4, EMANCPAGOES ALTERNATIVAS OU GLOBALZADAS? 363 5. concwsko 373 ovtruoe Fantasmas que assombram ntaoDUGAo 383 1. CONTEXTOS DE CRAGKO DOS COMITES DA MULHERTRABALNADORA NOS SINDICATOS 387 2. DIscURSOS EPRATCAS EM RELAGAO AOS COMITES DA MULNER TRABALNAOORA, 391 3. AS REPRESENTAGDES DAS SINDICALSTAS SOBRE OS “COMITES DA MULHER TRABALHADORAT. 402 44 Tats MULMERES, Tas PencuRSOS. 409 5 concuustes 417 SOAVENTURA DE SOUSA SANTOS RECONMECER PARA LIDERTAR SOBERANIA, CIDADANIA E INTERNACIONALISMO SOLIDARIO. 425 63. wa rumaoaoeo ea 6. AS ONG COMO MEDIGORA CRADORAS DELS 503 nme 6.5, FRAGMENTACAO DO DIREITO ESTATAL £ SOBERANIA FRATURADA S04 6. unas WACO EA ERENCA DO CADEDARDLOSO? 506 67. coutmsoabes os.coows? 507 f1cOS SUPRAYACIONAIS NCOMPATivEIS 502 Por uma concepcio multicultural de direitos humanos 427 ‘BORVENTURA DE SOUSA SANTOS INTRODUGAO: AS TENSOES DA MODERNIDADE OCDENTAL 429 1 SoMRe AS GLosauZAgoes. 433 2. 05 DIREITOS HUMANOS COMO ROTEIRO EMANCIPATORO. 438 2.1, AMERMENEUTICA DIATOPICA 443 Joxd Manuel Patera 12.2. AS DIFICULDADES 00 MULTCULTURAUSMO PROGRESSISTA. 451 22.1. CONDIGOES PARA UM MULTICULTURAUSMO PROGRESSISTA 454 iTRODUGAO S15 3. CONCUSAO 458 1 WESTFAUA E POSWESTRAUA 516 2, posmvstto € Pés-posimimsMo 519 1. TIMOR LESTE: UMA LUTA POs-posimvistA, $20 23.1. EFETIVIOADE VERSUS LEGmIMIDADE 52 32. GEOPOUIICA VERSUS LEGALIDADE. 526 cariru.o 10 Pluralismo juric 0, soberania fraturada e direitos de cidadania diferenciais: instituig6es internacionais, movimentos sociais ¢ Estado pés-col nafndia 463 Shatin Randeria 3.3, ERIOENGA VERSUS MULTILATERALUSMO 528 4. TIMOR LESTE: UNWA LUTA POS-WESTEAUIANA, 532 , ‘i emmeon cova ech $32 ee 4.2. PORTUGAL: UM ESTADO MILITANTE? 537° 5 wince quotrorsive aa $46 1. PLURALISMO JURIDICO E ESTADOS SUBALTERNOS 467 2. bom: ICAGAO DA DISCIPUNA NEQUBERAL: & DANGA DOS DOADORES COM OS ESTADOS DePeDenTes 473, COMENTARIO GERAL 553 3 ALIANGAS CIMICAS, IRETO DE PROIETO (PROJECT LAW E DIREITO ESTATAL: OS DIREITOS DAS ‘COMUNIDADES PASTORIS VERSUS OS DIRETOS DOS LEOES 479 cviruo 12 44 ALUTA DE NARMADA REFORMA 0 BANCO MUNDIAL MAS FERDE A BATALHA JURIDICA NA Globalizagdo, multiculturalismo € Direito 555 ino 486 ash Ghat ‘5. GOVERNO NO ESTADO E ALEM DELE: © PANEL DE INSPEGAO DO BANCO MUNDIAL E 0 SUPREMO TRIBUNAL OAINDA 488 IntropuGAo 557 4. oiReiTos HuMANoS 561 1.1. REFORCANDO O REGIME DE IREITOS HUMANS. S65 114. AUTODETERMINAGAO 568 4.12, povos molcenas 570 {© AARVORE NEEM INDIANA EM JULGAMENTOEM MUNIQUE 495° 6.1, GLOBALZAGAO HEGEMONICA VERSUS GLOBALIZAGAO CONTRALHEGEMONICA. 497 {62. ESTADOS AROILOSOS EM VEZ DE ESTADOS FRACOS? DEBATENDO OS UMITES A AUTONOMI po estan0 499 BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS 413, pierros cueTuRs. $71 1.4.4. OIREITO A OFSENVOLWIMENTO. 574 112. 0 PLURALISMO DOS DIREITOS HUMANOS 576 12.1, DIRETOS Dos ABORIGINESHNDIGENAS 580 122. MuumeucruRAusMo 582 1123. CLAUSULA DE NAO-CUMPRIMENTO POR RAZKO SUPERIOR [NOTWITHSTANDING cause, 584 2. MODELOS DE ESTADOS. 593 2.1, AUTONOMIA CULTURAL 600 3. concwsko 606 2 Prefacio Extelivro €0 terceiro de um conjunto de sete livros em que sio apresentados 605 resultados principais de um projeto de pesquisa internacional que eu diri- gi nos itulado Reinventar a emancipacdo social: Para nos trés anos, novos manifestos. A idéia central deste projeto € que a acio ¢ pensamento ‘que sustentaram e deram credibilidade aos ideais modernos de emancipagio social estio sendo profundamente questioaados por um fendmeno que, nao sendo novo, adquiriu nas duas ikimas décadas uma intensidade tal que tem De faro, 0 que chamamos globalizagio é apenas uma das formas de globali- yeral, sem duivida a forma dominante ¢ hegeménica pressuposto de que toda atividade social se organiza melhor quando se orga- niza sob a forma de mercado. A conseqtiéncia principal desta dupla transfor- macio € a distribuigao extremamente desigual dos custos ¢ das oportunidades roduzidos pela globalizacio neoliberal no interior do sistema mundial, re- sidindo af a razo do aumento exponencial das desigualdades soc paises ricos e paises pobres e entre ricos ¢ pobres no interior do mesmo pafs. A idéia deste projeto é que esta forma de globalizagio, apesar de hege- monica, no é a Gnica e de fato tem sido crescentemente confrontada por uma outra forma de globalizacio, uma globalizagio hegeménica, constituida pelo conjunto de iniciativas, movimentos e organi- cernativa, contra~ 1 Esta globalizagao € apenas emergente € teve no Férum Social Mu Porto Alegre em janeiro de 2001 e em janeiro de 2002 a sua manifestagio mais dramatica até hoj , € nesta globalizacio alternativa e no seu embate com a globalizacio neoliberal que esto sendo criados os novos caminhos da ‘emancipagio social. Este embate, que metaforicamente pode ser caracteri do como um embate entre o Norte ¢ o Sul, tende a ser particularmen ‘tenso nos pafses de desenvolvimento intermedidrio ou paises semiper €, portanto, também é neles que os potenciais ¢ os li ricos res da reinvengio da ‘emancipagio social mais claramente se revelam. Dai que dos seis paises em i lo este projeto, cinco sejam paises de desenvolvimento inter- io espalhados por diferentes continentes. Os seis paises sio: Sul, Brasil, Colombia, india, Mogambique ¢ Portugal. Os novos conffitos Norte/Sul tém lugar nos mais diversos campos da ati- vidade social, econdmica, politica e cultural. H, no entanto, alguns campos ‘em que as alternativas criadas pela globalizago contra-hegeménica sio mais visiveis e consistentes, nao s6 porque € neles que os conflitos so particular- ‘mente intensos, mas também porque € neles que as iniciativas, os movimen- tos € as organizagées progressistas adquiriram niveis mais clevados de consolidacio ¢ densidade organizativa. Entre eles, selecionei os seguintes cinco campos ou temas para serem objeto de anilise em cada um dos sei integrados no projeto: democracia participativa; sistemas alternativos de produgio; multiculturalismo progressista justica e cidadania cultural; defe- jersidade e dos conhecimentos comunitérios contra o regime da Propriedade intelectual; novo internacionalismo operirio. Sobre a escolha dos pafses e dos temas, bem como sobre os pressupostos que subjazem a este projeto ¢ os desafios que ele pretende defrontar, aconselho a leitura da In- ‘trodugio Geral no primeiro volume. afses ‘A colegio é constituida por sete volumes. Os primeiros cinco volumes correspondem aos cinco temas referidos. Ol lente os temas nao sdo es- tanques e, por isso, hi uma intertextualidade, por vezes implicita, por vezes 16 explicita, entre os diferentes livros que os abordam. O Volume 3, que ora apresento, é dedicado ao tema do multiculruralismo, Trata das lutas ¢ das politicas de reconhecimento da diferenga que nas duas tltimas décadas tém confrontado as identidades imperiais, os falsos universalismos ¢ a coloniali- dade do poder, os quais sio tio intrinsecos ao cay t6rico quanto a exploracao do trabalho assalariado. Nao espanta, pois, que também resida af um confronto nuclear entre o Norte ¢€ 0 Sul, Sao analisados as Iutas ¢ os movimentos dos povos indigenas pela autodeterminagio, as lutas € os movi- mentos feministas, homossexuais, pela autonor direitos humanos multiculturais. © argumento central deste volume é que a globalizagao hegeménica, ao mesmo tempo que suscita novas formas de ra- ‘cismo, tem também criado condigées para a emergéncia do multiculturalismo. Este, porém, tanto pode ser conservador quanto emancipatério. Pela andl de iniciativas concretas e da reflexo te6rica, este volume procura identifi- car as condigées para um multiculturalismo emancipatério. Este volume comeca com uma Introducio ao tema do multiculturalismo escrita por mim ¢ por Joao Arriscado Nunes, em que procuramos identificar 0s principais debates em torno do multiculturalismo e em que apresentamos algumas teses que, a nosso ver, permitem distinguir entre multiculturalismo conservador ¢ multiculturalismo emancipatér O livro estd dividido em trés partes. A Parte I, intitulada Direitos coletivos € sociedades multiculturais, aborda a relagio entre 0 conceito de direitos coletivos ea redefinigio das sociedades nacionais como sociedades multi- culturais. ‘No Capftulo 1, Carlos Marés apresenta um quadro histérico das lutas pelo reconhecimento dos direitos coletivos dos povos indigenas da América idades da compa- tibilizagdo desses direitos com a matriz individualista do dircito e das teorias, constitucionais liberais. O efetivo reconhecimento desses direitos e a sua consagracdo na ordem constitucional de diferentes Estados € 0 resultado de tum longo e complexo processo de lutas, de aliangas com diferentes setores Jedades nacionais e de invengio de f6rmulas constitucionais inovado- tas. A discussio pormenorizada do caso do Brasil leva 0 autor a salientar a 1s BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS importancia da afirmagio de uma “légica dos povos” como base de uma so- berania nacional que reconhega e defenda efetivamente a diversidade cultural. tema das lutas e dos direitos dos povos indigenas do Brasil 6 retomado por Lino Jodo Neves no Capitulo 2. S40 analisadas, em particular, as formas dem 1as da Amazénia e a progressiva ampliagio e consolidagio do movimento indigena e das suas organizagbes em escala nacional, forjando aliangas entre etnias distintas e criando novos tipos de relagdes — marcadas por muitas tensGes — com o Estado e com ‘outros setores da sociedade brasileira. O processo de demarcacio das terras indigenas permite confrontar a p da “autodemarcagio”, de cunho ‘emancipatério, com a da “demarcacao participada”, conduzida segundo a 6gica do Estado e dos seus agentes, ilustrando duas concepgées distintas da autonomia dos povos indfgenas. No Capitulo 3, Luis Carlos Arenas analisa a luta dos U’wa, uma comt de ind{gena da Colombia, contra as tentativas de uma multinacional petrolife- ra de realizar prospeccdes no seu territério. Gragas a um processo de construco de aliangas tanto em escala nacional quanto transnacional, a luta dos U'wa conseguiu uma visibilidade que permitiu que um conflito que parecia condenado ao ambito local se tornasse num caso exemplar de ampliagao bem- sucedida, em escala global, de uma luta pelos direitos coletivos. O autor cha- ‘ma a atengio para a importancia decisiva dos atores coletivos locais como condigdo para uma efetiva solidariedade transnacional, baseada em relagdes. horizontais — tanto Norte/Sul quanto Sul/Sul —, nao hierdrquicas, entre os sistas locais das lutas e as forgas transn: que os apéiam. itulada Movimentos sociais e justica(s), centra-se nas rela- {g6es entre movimentos sociais e concepces alternativas de justiga, José Manuel Mendes analisa, no Capitulo 4, a uta de uma populagio do Centro de Portugal pelo reconhecimento do direito ao autogoverno. Essa Jura apéia-se na mobilizacio da meméria de um passado de combate a opres- sio A exploracdo, na luta pelo poder local e no forjar de uma identidade baseada em relagdes familiares e de trabalho. Os seus alvos ¢ interlocutores is nacionais. O repertério de agées, de imagens do nessa luta suscita importantes quest6es sobre 0 que permite caracterizar um movimento social enquanto movimento eman- RECONHECER PY ‘ATAR cipat6rio e sobre os riscos de eventuais desvios populistas € autoritérios em processos de acio coletiva. © Capitulo 5, de autoria de Francisco Gutiérrez ¢ Ana Maria Jaramillo, centra-se na experiéncia “pactista” na Colémbia. Com um estudo pormeno- rizado de duas situag6es locais, em Medellin ¢ Boyacé Ocidental, os autores ‘mostram como os pactos entre o Governo nacional ¢ certas forgas locais permitem administrar a tensio entre formas macroinstitucionais estiveis € conflitos armados miiltiplos e difusos. Contudo, nos casos estudados, esses pactos resultam no reconhecimento pelo Estado do poder de grupos arma- dos ¢ no sactificio dos direitos democraticos dos cidadaos em nome da paze ser desejaveis em escala nacion: local, comprometendo a possibilidade de dindmicas emancipatérias ¢ pre- servando 0 poder dos grupos armados € dos setores da sociedade que recor- rem a violéncia. © tema da Parte II, intitulada Diferengas e construgées identitérias, € 0 das relagbes entre as lutas pelo reconhecimento das diferengas € des emergentes ou em construcio. lo 6, Shamim Meer faz uma andlise das transformagées, na Africa do Sul, das relagées entre os diferentes movimentos sociais e de cida~ dios no perfodo da luta contra o apartheid e na era pés-apartheid, focando, em particular, as diferentes trajetrias dos ativistas em fungio da constela- ‘0 classe social/raca/diferenga sexual. A emergéncia de uma periodo pés-apartheid nao alterou si da populagdo. A passagem pelo governo de antigos ativistas de movimentos anti-apartheid em um quadro configurado pelo neoliberalismo e por uma concepgi a serem resolvidas por vi ic do, nos tiltimos anos, em novos movimentos soci idadaos com origem nos setores mais pobres e marginalizados da socieda- de, e da luta destes pela sobrevivéncia e pela dignidade, © Capitulo 7, de autoria de Ana Cristina Santos, traga 0 desenvolvi- BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS a emergéncia de movimentos pelos direitos das minorias sexuais. Essas lu- tas tém sido travadas no quadro da reivindicagio da diferenga e, ao mesmo tempo, da defesa da igualdade. No caso de Portugal, ¢ em resposta 20 peso cultural ¢ ideoldgico de um conservadorismo de raiz catélica € ao des- compasso entre uma legislagao relativamente avangada neste campo e pré- ticas sociais restritivas, os movimentos pelos direitos das minorias sexuais procuraram nao sé integrar as iativas de at Is € associagdes gays, Lésbicas, bissexuais transexuais, como forjar aliangas com outros movi- mentos, contra as discriminagées € exclusdes de todos os tipos, num pro- cesso de acentuada “politizagio” e de promogio de uma participagio politica e social inclusiva. No Capitulo 8, Maria José Arthur analisa a tensio entre identidades de classe ¢ diferenga sexual no movimento sindical em Mogambique, a partir da relagio entre as diregdes sindicais e os Comités da Mulher. Seguindo as tas de varias mulheres sindicalistas, a autora mostra como, ‘em conseqiiéncia da reorganizacio dos sindicatos levada a cabo na década de 1990, a identidade da “mulher trabalhadora” foi redefinida em um novo ‘quadro marcado pelo processo de privatizagées e por um agravamento das condigdes de vida da maioria da populagdo. Neste contexto, so caracteriza- dos tanto os discursosjustificatérios da discriminagao das mulheres por par- te das diregdes sindicais quanto as estratégias e préticas das mulheres visando novas articulagées das identidades de mulher e de trabalhadora e 0 seu re- conhecimento. ‘Na Parte IV, intitulada Soberania, cidadania ¢ internacionalismo solid4- boragio de uma concepsao dos direitos humanos que reconhega e integre a diversidade cultural, de modo a permitir a reinvencdo dos direitos humanos yguagem da emancipacdo. Contra um falso universalismo base- humanos como eles so concebidos no Oci- dente, como se essa fosse a tinica definigio possivel desses direitos, o autor propée o didlogo intercultural entre diferentes concepgdes da dignidade humana que reconhega a incompletude de todas as culturas ¢ a articulagio, 18 em tenslo, entre as exigencias do reconhecimento da diferenca e da afirmago da igualdade, entre direitos individuais e direitos coletivos. A hermenéutica diatépica € proposta como o meio para realizar o didlogo entre essas dife- rentes concepc6es. © Capitulo 10, de autoria de Shalini Randeria, € dedicado ao estudo das interagdes entre movimentos sociais, ONGs ¢ instituig6es internacio- nais, por um lado, e os Estados nacionais, por outro. Tomando a {ndia como. campo de estudo, a autora analisa a constituicio de novas formas de no quadro do que chama de Estados “ardilosos” (como 0 Estado indiano), dando origem a “soberanias fraturadas” e a configura- gbes varidveis (e de sentido ambiguo) de aliancas entre atores locais, nacio- nais ¢ transnacionais. O préprio Estado aperece como um campo de conflitos € de tenses entre diferentes ordens juricicas ¢ diferentes experiéncias de regulacio. Neste quadro, ¢ conferida especial atengio 3s novas oportuni- dades para ages emancipatérias protagonizadas por movimentos de base “local e ONGs. Finalmente, no Capftulo 11, José Manuel Pureza estuda em pormenor ‘as condiges que permitiram o surgimento e o desenvolvimento da agio coletiva, em escala global, em defesa dos direitos humanos e pela libertacio de Timor Leste da ocupacio indonésia. © autor caracteriza as transforma- ‘Bes recentes nas respostas as violagdes de direitos humanos e dos direitos dos povos como sendo respostas “pés-realistas”e solidérias baseadas em um ethos da democracia cosmopolia. A responsbildade parilhada ea ética do cuidado, protagonizadas pela figura do “cidadio pereg como dimensbes cruciais do novo internacionaliso sol dro, surge um novo papel para o Estado, o do “Estado pelo Estado portugués enquanto protagonista central da articulagao entre atores coletivos internacionais ¢ entre estes €a resisténcia do povo do Timor A ocupacio. Como disse, este volume & 0 terceiro de uma colegio de sete. Justfica~ se, por isso, uma breve referéncia aos restantes. ‘© Volume 1, intitulado Democratizar a democracia: Os caminhos da de- mocracia participativa, € dedicado ao tema da democracia participativa. O SOAVENTURA DE SOUSA SANTOS argumento central deste livro € que 0 modelo hegeménico de democracia (democracia liberal, representativa), apesar de globalmente triunfante, nio garante mais que uma democracia de baixa intensidade baseada na priva- tizagdo do bem piblico por elites mais ou menos restritas, na distancia cres- cente entre representantes e epresentados e em um: feita de exclusio social. Paralelamente a este mod existiram, ainda que marginalizados, outros modelos. Em tempos recentes, tum desses modelos, a democracia participativa, tem conseguido uma nova di , protagonizada por comunidades e grupos sociais subalternos em luta contra a exclusio social e a aio da democracia, desejo de contratos sociais mais inclusivos e de democracia de mais alt tivas so abordadas nese volume, nharam forga nas duas iltimas décadas como resisténcia & exclusio social ¢ A exploragio selvagem engendrada pela globalizagio neoliberal. S4o anali- sados modelos alternativos de desenvolvimento ca ria e 0 swadeshi de Gandhi, ¢ sio apresentados estudos de caso de organizacdes econdmicas populares, de cooperativas, de gestio comu- nitéria ou coletiva da terra e de associagbes de desenvolvimento local. O confronto entre este mundo nio capitalista e 0 mundo da globalizagio neoliberal constitui um dos pontos centrais do conflito Norte/Sul nos pré- ximos tempos. © Volume 4, intitulado Semear outras solucdes: Os caminbos da bio- diversidade e dos conhecimentos rivais, aborda uma dimensdo crescentemente importante do conflito Norte/Sul, o confronto entre conhecimentos rivais € © acesso cada vez mais desigual A informagio e ao conhecimento como con- seqiiéncia da mercantilizacio global destes tiltimos. Estes confrontos decor- rem dos avangos da biologi -enologia e da microeletrOnica, que transformaram a reserva de bi ide em um dos “recursos naturais” mais preciosos e mais procurados. Como grande parte desta biodiversidade est localizada nos paises do Sul e é sustentada por conhecimentos popul res, camponeses ou indigenas, a questio (e 0 conflito) reside em como de- fender essa biodiversidade e esses conhecimentos da voracidade com que 0 20 RECONMECER PARA LIBERTAR conhecimento cientifico-tecnol6gico-industrial transforma uma e outros em ‘objetos € conhecimentos patentedveis. E analisado um vasto conjunto de conflitos entre conhecimentos rivais, da biodiversidade as medicinas, a0 impacto ambiental e as calamidades natura. © Volume 5, intitulado Trabathar 0 mundo: Os caminhos do novo internacionalismo operdrio, & dedicado as novas formas do conilito capi- tal/trabalho, contradigao fundamental das sociedades capitalistas e portanto tum dos aspectos centrais do contlito Norte/Sul. As novas formas do contfli- to decorrem, por um lado, do fim da guerra fria ¢, por outro, do fato de o trabalho ter sido transformado nas duas Gltimas décadas em um recurso global sem que, no entanto, tenha sido cricdo um mercado global de traba- tho. Desse descompasso resultou o enfraquecimento do movimento sindi- cal tal como 0 conhecemos. Entretanto, hoje € visivel que a solidariedade estS se reorg formas, quer em nivel local € nacional, quer em nivel global. O livro analisa em detalhes algumas dessas -novas formas. © Volume 6, intitulado As vozes do mundo, € um livro distinto dos ante- riores, porque em vez de se centrar na an -social das alternati- ‘vas, centrou-se no discurso € no conhecimento pritico dos protagonistas ddessas alternativas. Uma das preocupagées centrais do projeto Reinventar a 0 social & a renovagio das ciéncias sociais. Uma das formas de renovacio € confrontar o conhecimento que elas produzem com outros co- hecimentos (priticos, plebeus, vulgarcs, ticitos) que, apesar de serem parte ignorados por estas. Nesse livro ganham voz os ativistas ideres de movimen- as e organizagées, muitos deles estudados nos livros an- de entrevistas. Finalmente, o Volume 7, intitulado Reinventar a emancipacdo social, dé conta da minha reflexdo teéri ica eepistemoldgica sobre as tematicas que dominaram este projeto, sobre os seus resultados principais e também sobre 0 projeto em si como processo de construsio de uma comunidade cientifica em condigdes e segundo regras nada convencionais. Jiparam deste projeto 69 pesquisadores ¢ foram an: sadas mais de BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS junto exigente de condigdes. Em primeiro lugar, exigiu um financiamento adequado. Agradeco vivamente & Fundagio MacArthur pelo financiamen- to ¢ também por ter apoiado incondicionalmente o projeto ao longo da ‘sua execucéo com total compreensio pela sua complexidade e pelas exigén- cias de autonomia do diretor do projeto. A parte portuguesa deste projeto foi financiada pela Fundagio Calouste Gulbenkian que, mais uma vez, apoiou generosamente o trabalho de pesquisa realizado pelo Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, apoio que muito agradego. Outra condigéo para a execusio deste projeto foi ter podido dispor de coordenadores de projeto, um em cada pafs, que me ajudaram na sclegio dos temas ¢ dos pesquisadores na execugo da pesquisa. Assim, pude contar com a colaboragio de Sakhela Buhlungu na Africa do Sul, Maria Célia Paoli no Brasil, Mauricio Garcia-Villegas na Colémbia, Shalini Randeria e Achyut ‘Yagnik na {ndia, Teresa Cruze Silva em Mogambique e Joao Arriscado Nunes em Portugal. A todos, o meu agradecimento muito sincero. Este projeto ndo teria sido possivel se eu nio tivesse contado com uma dedicada ¢ competentfssima equipe de secretariado, Silvia F Paula ‘Meneses ¢ Ana Cristina Santos dividiram entre si tarefas administrativas, cientificas e editoriais, mas todas fizeram de tudo um pouco. Ao longo de trés anos realizaram um trabalho notivel na criagio de condigées que agilizassem as minhas reunides com os coordenadores de paises, com os pes- quisadores, que ajudassem os pesquisadores em todas as suas, que garantissem a producdo dos textos. Foi um trabalho gigantesco que tem de ser citado e agradecido para no ficar oculto dentro dos milhares de li- thas que constituem esta colegio de livros. Last but not least, este projeto foi sediado no Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Uni © apoio da diregdo e do pessoal administrativo do CES. Como sempre, nfo poderia deixar de mencionar com um sublinhado muito forte Lassalete ‘Simées, minha colaboradora, secretéria, assistente e amiga h4 mais de dez anos. O meu agradecimento muito sentido. Da Faculdade de Economia, dos seus érgios diretivos, dos colegas do departamento de sociologia, tive sempre a solidariedade e 0 apoio, uma dé- 22 RECOMMECER PARA LiocaTAR diva tanto mais preciosa quanto vai sendo rara em instituig6es universitérias. © meu muito obrigado, pois. Maria Irene Ramalho esteve presente das formas mais insuspeitadas na execugio deste projeto. Daf que 0 agradecimento, por mais intenso, fique sempre aquém do devido e 56 ela saiba o porqué. Introdusao: para ampliar 0 cénone do reconhecimento, da diferenga e da igualdade Boaventura de Sousa Santos Joao Arriscado Nunes ‘Multiculturalismo, justica multicultural, direitos coletivos, cidadanias plu- rais sio hoje alguns dos termos que procuram jogar com as tensdes entre a Assim, quando 0 povo ¢ seus direitos esto circunscritos a um territério, apesar das dificuldades jé expostas, tem sido possivel reconhecé-los e garan- los. Uma grande dificuldade surge quando nao hé essa citcunscrigao territorial, como no caso dos ciganos, ou quando a circunscrigo nao é clara, ‘como no caso dos guarani. De fato, hd povos que sempre entenderam a possibilidade de seu territ6- tio ser partilhado por outros povos, convivendo num mesmo espago, com >, culturas diferentes. Muitas terras indigenas demarcadas abri- ‘gam mais de um povo, como a Terra Indigena do Alto Rio Negro, com suas "As fotografia adres da Amazbnia mostram com clarera o deseo das reas indigenas; quando as de dia, € vsivel 0 procesto de desmatamento em seu entorno, quando de noite, po- ‘dems observar os pontos de luz artificial marcando o desenko exato das steasindigenas vinte etnias diferentes. O problema de compatilhar o territério é exclusi mente dos povos que o habitam, desde que esteja demarcado e reconhecido pelo respectivo Estado nacional (Ricardo, 2000: 243). ‘Nao € mesma coisa com 0 territ6rio guarani, como jé se viu. Outros po- vos, como os kaingang ¢ os xokleng, viviam no espago que os guarani consi- deravam ser seu, Por isso no foi muito grave que os brancos também chegassem e ocupassem parte dessas terras. A diferenga € que os brancos nao s6 ocuparam, mas alteraram em profundidade a biota, trocando a natureza, isto é, substituindo as plantas e os animais, alterando os acidentes geografi- cos, derrubando florestas, cortando morros, construindo lagos, secando mangues. Os guarani, que pelo seu direito partilhavam territ6rios, comegaram ase cada vez mais expulsos de sua prépria terra porque j4 no podiam reconhecer os locais onde se manifestavam os espfritos dos antepassados e recebiam os conselhos € pt es dos deuses. A terra jd nao era a mesma € com seu desaparecimento jé nao tinha sentido compartilhar o territério. Os guarani viajantes do tempo e do espago, buscam o direito de continuar vi- vendo onde seu territério existe com flora, fauna ¢ acidentes que conhecem cuja linguagem podem entender e se fazer entender. Esses lugares, entre- tanto, so os mesmos que a civilizagio ou o direito atual considera bens de ‘0, bens de todos, guarda ¢ mostra do meio ambiente ecologi- lizem os intérpretes, no sao aceitos seres huma- nos; as unidades de conservagio, ou os espacos que sobraram da devastagio, devem ficar incélumes. Dois direitos coletivos entram em choque neste ponto. Mas é um falso conflito, porque ambos buscam guardar, preservar um territério contra a devastagio da propriedade privada, do dir al da acumulacio dos bens, inclusive florestais. E dios nao guardam apenas a floresta, mas o conh« iclusive os segredos de seu renascimento. Os guarani conhecem cada planta e suas associagoes ‘com animais ¢ solos ¢, ao ser reforcado este e aquele direito col frontado com os direitos individuais e suas estranhas patentes, é possivel sonhar que um outro Direito pode ser inventado, que da aridez do velho dircito individual pode nascer uma rosa. se porque os yento a ela associado, /0, con 104 direitos coletivos de povos, surge no horizonte a possi- bilidade de reivindicar direitos que nio sio territoriais, embora as vezes aparegam ligados a um espago de terra, como o dos guarani. Exemplo tipico é o da parcela do povo pankararu, origindrio do nordeste bra ro mas que imigrou para o sudeste, acabando por viver em favelas de S40 Paulo. A reivindicagio desta parcela nao é voltar para seu territério tra- inde vive a maioria de seus parentes, mas conseguir um espaco ticar seus rituais longe de olhos curiosos dé vizinhos amedrontados ¢ nao raras vezes violentos.* a reclamar direitos, na medida em que vislumbra a po: menos secreta, menos perigosa, é 0 cigano. Por outro lado, o problema nao termina quando a terra € demarcada, ainda que em dimensio adequada ao povo que a habita, como ficou demons- trado na urbanizacio desordenada e néo prevista da criagdo de cidades indf- .genas na Amaz6nia. & OS DIREITOS ECONOMICOS, SOCIAIS, CULTURAIS E AMBIENTAIS E claro que os 10s coletivos, especialmente dos povos indigenas, nao se tam A questio do territérios ultrapassam-no e atingem 0 amago do direi- toao desenvolvimento, ou aos direitos humanos econémicos, sociais, cultu- tais e ambientais. A diferenga destes direitos daqueles estabelecidos nos pactos internacionais de direitos humanos esta no carater coletivo que estes adqui- rem e que por isso representam uma novidade para o sistema juridico, Potencializando sua fungo emancipatéria. "#0 povo pankararu € origintio de Pernambuco, endo conseguido depois de 1988 uma terra demarcada nesse Estado, A tetta€ pequena para manter os quatro mil Indios que sobrevivem io tradicional enfo comporta a volta dos favelados de Sip Paulo, que atingem 0 de mil fndios. Mesmo que comportasse, estes jf no descam volar, consti- ude com reivindicagbes préprias. Os de Pernambuco coatinuam reivindi- ‘ura uma parca ‘eando o aumento de suas terra, inclusive porque tampouco podem pratcar seus rituals sagrados longe de olhares curiosos. primeiro dos dois Pactos € idéntico e trata dos direitos dos povos. Afirmam ue 0s povos tém direito de dispor de si mesmos ¢ determinar o seu estatuto romovendo livremente o seu desenvolvimento econémico, social Neste sentido, ambos pactos reconhecem aos povos o poder de dispor livremente de suas riqueaas e recursos naturais, nio podendo jamais ser privados de seus meios de subsisténcia, O conceito de povo para a ONU e para iternacional, empre- ¢gado nos pactos ¢ em outros documentos oficias, se limita base humana de um Estado nacional, sem qualquer diferenciagio interna. Povo, entio, quer dizer a soma simples de todos os cidadios individualmente tratados € que vive em um territério nacional determinado, jurisdicionado por um Esta- do. A constituigéo do Estado nacional deve reconhecer direito a todos ea cada cidadio, por igual. Nesta perspectiva, as minorias, os exclufdos, as po- pulagées locais organicamente estruturadas, os esquecidos, os anteriores € 0s distantes que ndo participam da diregao do Estado tém seus direitos civis, politicos, econémicos, sociais, culturais e ambientais escolhidos pelo Estado ou pela classe dirigente do Estado, e nao por sua organizacio prépria. Neste conceito de povo fica clara a armadilha da autodeterminagio. Os ovos tém a autodeterminagio para se constituir em Estado, desde que nio estejam sob a jurisdigao de um Estado jf constituido. Organizado o Estado, nhecimento do direito de autodeterminagio dos povos pelo direito interna- ional é, pois, o direito & autodeterminacéo dos Estados que garantam os direitos luais, entre eles 0 de propri Portanto, 0 conceito de povo nos pactos nao é 0 mesmo usado neste tra- balho, nem € adequado aos povos indigenas. Alids, isto é claro para o Direito Internacional. A Organizagio Internacional do Trabalho produziu duas con- vvengées acerca dos povos indigenas, a Convengio 107, de S de julho de 1957, 106 de paises independentes” e adiantava o que viria disposto no Pacto dos Di- reitos Civis € Politicos quase dez anos depois, e que no artigo 27 pr Estados negar as pessoas pertencentes a minorias étnicas, r. lifsticas os direitos de convivéncia e uso comum da cultura, rel direitos admitia apenas direitos individuals, tendida como metajuridica, isto 6, era rei tas vezes proibida, alcangando a categoria de antijurfdica. A Convencio 169, ao contrério, reconhece em seu preambulo o desejo dos “povos indigenas ¢ tribais ao controle de suas préprias instituigBes, for- ‘mas de vida e de desenvolvimento econdmico compativel com sua identida- de cultural, lingiistica e religiosa”, dentro dos marcos legais dos Estados em vem. Assim, estabelece que a convengio se aplica aos “povos tribais ‘em paises independentes” (Gémez, 1991) A Convengio mudava o carster do direito, considerando-o coletivo, ¢ os Estados nacionais nio admitiram que a palavra “povo”, mesmo acrescida de tribal, fosse o designativo das populagées indigenas. Para resolver o impasse, a Convengio estabeleceu que a palavra povo, quando empregada por ela, néo tinha o significado que lhe dé o dreito internacional” Com isso, imaginam os Estados que ficava afastada a interpretagdo de que os povos indigenas venham ater direito & autodeterminagio, isto é, & constituigdo de Estados préprios. s povos indigenas latino-americanos, embora tenham participado das ‘guerras de independéncia, nunca se propuseram a constituir Estados préprios; ‘sempre lutaram por direitos préprios em territério compartilhado e em res- peito as formas de vida de cada um. Isto fica muito claro hoje no levante indigena de Chiapas, México, e nas lutas mapuche no Chi momento de duro enfrentamento com os Estados macioné Chiapas inclusive com armas. Apesar disso, as elites locais temem que cada ovo, ou alguns deles, lutem por uma independéncia local, enfraquecendo a soberania nacional. CConvengio ndo devers ser interpretada no 30s direitos que se podem conferir a tal 1991), QOAVENTURA DE SOUSA SANTOS Tronicamente, o enfraquecimento das soberanias nacionais esté se dando pela globalizagio, enquanto os povos locais precisam — exatamente na luta contra esta globalizacao que uma vez mais tenta integr4-los ndo mais como. cidadios, mas como consumidores ou fornecedores de conhecimento — de soberanias nacionais fortes, que consigam garantir seus dircitos coletivos de sobrevivéncia. Por isso as minorias, os exclufdos, as populagées locais organicamente ‘estruturadas, 0s esquecidos, os anteriores, os distantes, os que ndo tém capi- tal, precisam de um Estado forte que os proteja dos direitos individuais, dos is e dos poderes globais. Precisam reinventar o Esta- do, retirando-the a légica do capital, substituindo-a pela légica dos povos. fiografia Andrello, Geraldo; Azevedo, Marta (vd), Iauareté. Texto inédito. Boletim Informativo da Fundacao Cultural de Curitiba. Ca bro de 1996. ‘Chiavenatto, Julio José (1981), Genocidio americano: a guerra do Paraguai. Sio Paulo: B Gémex, Magdalena (1991), Lectura comentada del Convenio 169 de la OFT. México: INI, 105. Ladeira, Maria Inés; Azanha, (1988), Os indios da Serra do Mar. Sio Paulo: “El nuevo constitucionalismo Latinoamericano y | indigenas”, Enrique Sanches (org.), Derechos de los pueblos indigenas en las consttuciones de América Lat via, Brasil, Colombia, Ecuador, Guatemala, México, Nicaragua, Panamd, Paraguay, Peru y Venezuela. Santafé de ‘anard, a volta dos indios gigantes, So Paulo: Instituto Socioambiental, 1998, ‘Quem so os xet4? Curitiba: Secretaria do Estado da Cultura/Museu Paranaense, 2000, 1CD-ROM. Ricardo, Carlos Alberto (1996) (org), Povos indigenas no Brasil: 1991-1995, Sio Paulo: 0 Socioambi rg.) Povos indigenas no Br Souza Filho, Carlos Frederico Marés de (1998), O renascer dos povos indigenas para o direito. Curitiba: Jurus. i 4 Olhos mAgicos do Sul (do Sul): lutas contra-hegeménicas dos povos indigenas no Brasil Lino Joao de Oliveira Neves Introdugao ‘Treina-te a pensar em dois mundos ao mesmo tempo, de duas maneiras dife- rentes. Diz para contigo mesmo que, & noite, 0 adormecido observa os seus sonhos, mas uma vez acordado sio 0s sonhos que o seguem ese metem na sua vida, Tenta modifica a tua percepgio ¢ verss 0 mundo com olhos mégicos (Bourre, 2000). Este capitulo analisa agées e programas desenvolvidos pelo movimento indf- gena no Brasil em suas estratégias, formas de organizacio e mobilizagak iniciativas estas que podem ser tomadas como exemplos de processos con- trachegeménicos de globalizagio. A abordagem aqui desenvolvida € conduzida a partir do cruzamento de trés fator: : a) a consolidagao do movimento i digena no Brasil; b) o papel ativo assumido pelas organizacdes indigenas nas relagbes interétmicas com o Estado brasileiro e com segmentos locais da so- iedade nacional; ¢) o meu interesse pessoal como indigenista, acompanhando de perto a luta dos povos indigenas na regiio amaz6nica, em particular no Estado do Amazonas. Além destes, poderia ainda ser assinalado que é no Amazonas que esté localizado 0 maior nimero de etnias, o maior contingen- te populacional indigena, o maior niimero de organizagGes indfgenas e ain- da o maior nimero de terras indfgenas. As iniciativas consideradas sio aquelas que apresentam um cunho mais marcadamente politico: iniciativas responsdveis pela conquista da voz. polt- tica do indio como agente ativo no campo do indigenismo brasileiro e pela afirmagio de novas faces pol digena e de suas organi- zagbes locais, bem como iniciativas étnicas caracterizadas pela negociagio -as do moviment politica que coloca em pélos opostos os interesses dos povos it interesses defendidos pela sociedade-Estado brasileiro. A primeira parte do capitulo faz. um mapeamento dai igenas, do final dos anos 70 até os dias de hoje, necessério para uma contextualizagao das iniciativas i no cendrio ampliado da pr . A partir de dados empiricos,' a segunda parte discute estratégias adotadas, ganhos politicos, impasses, desa- fios e riscos presentes no cendrio atual dos processos interétnicos no Brasil, com énfase especial nas vas visando a conquista do reconhecimento oficial das terras indfgenas ea retomada pelos grupos étnicos do controle de seus territ6rios e dos recursos naturais neles existentes. “Sul” & aqui utilizado nao somente no sentido de “terceiro mundo”, de “paises subdesenvolvidos”, mas “Sul” como metéfora da hierarquia no siste- ‘ma mundial, de modo a sugerir as dominagdes impostas as regides periféricas antos, 2000: 340).? Neste sentido, “Sul (do Sul)” refere-se os povos indi nas, aqueles mantidos a margem na hierarquia do mundo moderno, suje ‘mais acentuadas e violentas formas de subordinagao.’ Retomando as palavras indfgenas utilizadas em epigrafe, “Olhos magicos do Sul” é, assim, o sonho que impregna a realidade, a utopia capaz de construir uma outa realidade; a “subjetividade emergente do Sul” (Santos, 2000: 341), a “subjetividade da tran- sigo paradigmética” (Santos, 2000: 340). E, por desdobramento, “Olhos magicos do Sul (do Sul)” pretende ser uma contribuigio, a partir de iniciativas contra-hegeménicas dos povos indigenas no Brasil, para um novo contexto de relagdes sociais que toma a emancipagio como principio e como objetivo. Em resumo, pautado nas premissas do Projeto “Reinventar a emanci- brasi jos em wabaos de campo reaizados no Amazonas a partir de 1978, formagbes aqui apresentadas foram recolhidas nos perlodos de ‘a novembro de 2000, ede julho a setembro de 20 rmas de subordinasio a que o sistema capi presso,slenclamento, diferenciagso desig Sul (do Sul", imagem evidentemente inspirada em Boavent necoun distintos grupos e do movimento indigena no Brasil pretendem contribuir para uma discusso sobre os ites entre formas “emancipatérias” e for- mas “retrogressivas” d contribuindo assim para a construgio de um referencial teérico-conceitual que se apresente aos diferentes gru- pos humanos como instrumento de apoio as suas lutas de afirmagio de direitos étnicos diferenciados no cendrio das relag6es interétnicas glo- balizadas. 1. MOVIMENTO INDIGENA O surgimento de mobilizagdes e manifestacées indigenas no Brasil esté dire- tamente relacionado com os movimentos étnicos que, a partir dos anos 70, emergem em diversos paises da América Latina, As dimens6es territoriais brasileiras, implicando um alto custo de trans- porte ¢ locomogio entre regides distantes, a dispersio da populagio indige- na em todas as regides do pais, as diferencas de contextos regionais, os variados graus de contato interétnico e a forma autoritéria como 0 Estado brasileiro historicamente trata as questées indigenas, sio fatores que dificul- tam a afirmacio de um movimento indigena de ambito nacional. Apesar de estes fatores representarem sérios obstéculos para a formagio de um “movi- ‘mento indigena unificado”, a razio fundamental €, sem divida, a diversida- de étnica responsivel por um grande mosaico cultural e lingiistioo que coloca barreiras & comunicagio entre os 215 povos indigenas ainda hoje localiza dos no Brasil. 1.1, Anos 70: as “assembléias indigenas” Para o movimento indigena no Brasil, os anos 70 representam 0 perfodo das ‘assem! idigenas”, marcado por descobertas miituas e trocas de infor- mag6es sobre os contextos interétnicos enfrentados por cada povo. £ nessa “As 215 emias exstetes no Brasil consttuem populasto de aproximadamente 350,000 pes- 02s, falando 180 linguas diferentes, fase que a troca de experiéncias e problemas vividos dé origem a uma nogio de solidariedade indigena nunca antes experimentada, constituindo um “es- pitito de corporagio” (Ramos, 1997: $1), que é a marca dessa fase € que ‘Appattir da primeira “assembléia”, realizada em abril de 1974, e contan- do com a presenga de 17 representantes indigenas, o mtimero de assembléias ede participantes aumentou a cada ano. Além de possibilitar o encontro entre povos que, na maioria das vezes, sequer se conheciam, 0 grande feito das assembléias foi a tomada de consciéncia da siruagio de dominagio e discr minagio a que estavam sujeitas todas as etnias, 0 que levou as populagées {ndigenas a buscar formas de organizagio p a disputas ¢ embates com a sociedade bra cos, como as pol ias Federal e militares, os povos indigenas passaram a so- fret oposigio as “assembléias” ¢ uma repressio aberta da ditadura ‘ais de formagao de um movimento indigena. Paradoxalmen- te, a repressio dos militares, cristalizada no “Projeto de Emancipagio”, de 1978, que pretendia anular os dispositivos legais especiais que normatizavam ‘as quest6es indigenas, levou a uma alianga entre indios e setores da socieda- de civil, dando origem as condig6es politicas para a criagio de uma entidade representativa dos povos indigenas de todo o pats. Em abril de 1980, um reduzido grupo de estudantes indigenas residentes em Brasilia criou a Unido das Nagées Indigenas (| Formada por jovens com pequena representatividade em seus préprios povos ¢ que mantinham_ fortes relagées com a Funai, e sobretudo por nio resultar das discussées que de liderancas indigenas, a Unind atropelou © processo de organizacio politica que vinha sendo construfdo em todas as regides do territério brasileiro. Nao reconhecendo na Unind legitimidade 7A partir de um golpe 1985, quando voltow a ter um Presidente da Repablica apenas volaram ao pats em novembro de *Usiizando o jogo de palavas, os governos da ditadura emp como representante do nascente movimento politico dos {ndios no Brasil, liderangas indigenas reunidas em “assem 1 cidade de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, criam, em junho desse mesmo ano, uma outra organiza- ‘¢40, também denominada Unio das Nag6es Indigenas, adotando a sigla UNI. ‘Ainda em 1980, como resultado da fusio entre Unind e UNI, foi c a primeira organizagio a conquistar credi do-se como legitima representante dos povos indi assumiu de imediato o papel de porta-voz do movimento indigena, organizan- do € coordenando por muitos anos as manifestac6es indigenas em todo 0 pals. As disputas, competicées, desencontros e, por fim, encontros que se conjugaram para a “invengio” e “re-invengo” da UNI atestam a maturidade € a urgéncia da idéia € os anseios de construgio de uma organiza¢io pan- indigena (Ramos, 1997: $1), voltada para a defesa dos direitos das diferen- tes etnias. Paralelamente ao esvaziamento p jo proceso de en- fraquecimento foi acentuado com o passar dos anos, © movimento indfgena consolidou-se em todo o pats por intermédio de organizacGes indigenas, que passaram a assumir 0 papel de agentes politicos e porta-vozes dos grupos indigenas. 1.2. Anos 80: da “Unido” a “atomizagdo” A vida brasileira dos anos 80 foi marcada por intimeras mobilizagées reivin- dicando o fim da ditadura ea volta ao “Estado de Direito”. As manifestagbes ¢lutas politicas pela redemocratizagio desencadearam profundas mudancas no contexto nacional, mudangas que se estenderam ao indigenismo, resul- tando em alteragées na correlagdo de forgas entre os atores sociais envol dos no trato da questio indigena? s anos 80 representam para o movimento indfgena no Br de afirmagio de aliancas com segmentos da sociedade civil e com setores populares que procuravam se reorganizar. Além de estreitar relagbes, estas "No apenas no Brasil produgio e difusto de informagb ram, nos anos 70, organizagbes dedicadas & «das minoriasétnicas em todo o mundo, BOAVENTURA OF SOUSA SANTOS aliangas desencadearam aces conjuntas e cooperagdes com igrejas progres- sistas, organizagdes nio-governamentais, entidades de apoio a causa indige- na e com seringueiros da Amaz6nia,* aproximaco esta que deu origem & Alianga dos Povos da Floresta, marco renovador do ambientalismo no Bra- sil, Por outro lado, 0s militares ainda no poder desencadearam na década de 80 uma forte repressio contra o movimento indigena, interpretando-o como uum inimigo potencial do Estado e considerando 0 nome “Unio das Nagdes aliadas da causa indigena passam a utilizar express6es como “populacées in- digenas” ou “sociedades indigenas”, evitando também 0 uso de “povos indt- de “autodeterminagio” uma ameaga & integridade nacional. “II Assembléia dos Povos Indigenas do Alto Rio Negro”, realizada em abril de 1987, no municipio GQ Sao Gabriel da Cachoeira, Amazonas, € um igena no Brasil, “pois, pela primeira vez, as autoridades governamentais sentaram & mesa para ne- ‘gociar a questo das terras indigenas’ com liderangas da regio” (Barbosa € Silva, 1995: 21). Este acontecimento adquire ainda importancia: se considerarmos que, além de reunir cerca de 500 liderangas indigenas da regido, membros de entidades de apoio, antropélogos, advogados ¢ partidos , esta “assembléia” recebeu representantes dos governs federal e estadual, bem como de grupos econdmicos com interesse na regio. Em documento divulgado ao final das discuss6es, as liderangas indigenas exigiam a demarcacio imediata das terras, 0 reconhecimento da exclusividade de seus direitos sobre os recursos do solo € do subsolo € 0 .gbes pelas prospecgdes e exploragoes ilegais realiza- 1991). O que os ica indigenista nao fosse mais ditada de cima para baixo, a partir dos gabinetes do poder, mas que os temas propostos pelo poder local das aldeias fossem considerados ponto de parti “base do habitat de um povo" que assegure “a reprodugo fsicae cultural das comunidades indigenas” Santili, 1999: 50) da para as negociagées interétnicas, que deveriam orientar as ages desen- cadeadas nos territ6rios indigenas. Sem diivida, o mais importante ganho dos anos 80, aquele que maior impacto provocou na questio indigena, foi o direito outorgado pela nova Constituicao promulgada em 1988 de os povos indigenas se fazerem representar em questées politicas ¢ juridicas perante o Estado e segmentos da sociedade brasileira. Até entdo tratados pela legislagao como “relativa- ‘mente incapazes” e subordinados & tutela do Estado, os povos indigenas tinham um papel passivo, sendo representados por érgios pil tidos na autoridade de porta-vozes de seus anseios ¢ icagées. O novo “status” de porta-vozes de si mesmos abriu aos povos indigenas a possibi- lidade de conquistarem no espago internacional a voz politica anteriormente igo, 0 movimento indi- ‘gena sobrevivia a partir de uma “ilegalidade técita””® (Ramos, 19: apés 1988, com a promulgacao da nova Carta Magna, as organi digenas adquirem 0 “status” de organizagdes sociais, legalmente aceitas. E, pela primeira ver no Brasil, os indios podem exercer sua voz ativa e defen- der eles mesmos os seus interesses. Nos anos 80, © movimento indigena experimentaria uma mul gao das organizagées. Di nos, onde as mobilizagées indigenas ocorreram primeiramente nos niveis locais e regionais, a trajet6ria do movimento em sentido contr: ‘0s inves- rentemente dos demais paises latino-america- deu-se A medida que as “assembléias” passavam de locais € regionais para nacionais, com uma maior compreensio da probleméti- ca.e das questoes mais gerais por parte das populacées indfgenas, as “or- ganizagées indigenas” tendiam a constituir-se em locais e regiées e no mais segundo uma tinica entidade de abrangéncia nacional. Seguindo esta dinamica, a UNI constituiu representagées locais para em seguida, ao fi- nal dos anos 80, tendo como marco politico a promulgagao da nova cons- tituigao brasileira, ser gradualmente substitufda em sua representatividade ‘Lembremos que na América Latina dos anos 70 nto restava nenhum lugar pars 0 exerefcio 4a liberdade, sendo portanto necessério aot movimentos populates “operar em varios niveis ‘que vio desde attica da linguagem até a clandestinidade do pensamento e da ago” (Varese, 1981; 120), politica por “organizagées de base" formadas em todo o pafs a partir de demandas localizadas. Em um contexto de relagdes sociais multiémicas, como € 0 caso de todos 0 paises da América Latina, o cardter antagonico dos diferentes interesses étnicos tende a impulsionar o surgimento de organizacées que diferem entre sino apenas em razio de objetivos ou particularidades relacionadas a con- textos histérico-sociais diferentes, mas também em razio de “diferengas ét- nicas devidas & permanéncia de estruturas ideoldgicas, semantico-culturais, lingiifsticas e, em alguns casos, organizacionais que correspondem a base € a estrutura anterior (Etnica)” (Varese, 1981: 127). Assim, a formacao das orga- nizagdes em “associagdes”, “conselhos”, “uniées”, “movimentos”, “confe- deragées”, “coordenagées” etc. atende, no plano interno, a diferengas étnicas € formas de organizacio politica particulares, enquanto no plano externo busca atender as necessidades de uma melhor adaptacio as diferentes situa interétnico (Barre, 1983: 197). Apesar de uma aparente cor- ‘mimética entre a mi Gio das organizagées € 0 grande uuco contato entre si € poucos inte- tresses comuns diluidos pelo idedrio nacionalista de um Brasil homogéneo, ‘0 movimento indigena brasileiro € mais do que uma resposta meramente reativa as condigdes ¢ estimulos externos. No processo de busca de sua vo- a, o movimento indigena brasileiro experimentou alguns cursos originais de aso que de nenhuma maneira podem ser aribuidos a0 envol- vvimento externo, Deve-se ter em mente que os povosindigenas tém uma longa ‘experiéneia de andar alinhados em tilhos sinuosos. © que para um pensa- mento ocidental podem parecer desvos toa, pode verdadeiramente repre sentar 0 caminho mais curto entre dois portos, proporcionando-nos lighes inesperadas de produtividade (Ramos, 1997: yhamento” do movimento indigena na “multiplicagio” das organi- ‘agées locais € alcangado a partir de uma maturidade do movimento indige- ™-Organizagio de base”: organizaglo com ago e objaivos diretamente relacionados re- ‘ides ou povos espesficos. RECONMECER PARA LIBERTAR na e de compreensio tanto dos contextos locais particulares e nacional quanto do contexto politico internacional, que implica agées localizadas formando conexdes ¢ articulagdes entre diferentes organizagées locais, tanto por inter- es pontuais, em momentos histéricos determinados, como por intermédio de articulagées mais amplas visando objetivos comuns ou mesmo visando objetivos especificos de uma das organizagées. A manuten- io da articulagio entre “organizagées de base” visando acées mai das exige, assim, uma compreensio das diferencas sociais e politicas locais, que, sendo diferentes, exigem estratégias distintas. Portanto, antes de interpretar a proliferagao das organizag6es como uma “fragmentacao” do movimento indigena, © que poderia dar uma fals: dispersio a que esto submetidos os povos indigenas pela colonizacao de seus territérios tradicionais, ou um “fracionamento” no qual as organizagées de base, funcionando como “frag6es”, como “Stomos” constitutivos de uma mobilizacao maior, mantém ligagGes entre si de modo a criar estratégias € realizar agées locais dentro da perspectiva global do movimento indigena. 1,3. Anos 90: consolidagdo de projetos étnicos Os anos 90 trazem consigo mudanas significativas nas relagées Vinculada a uma politica de redugio da maquina estatal e de terceirizacio de servigos, a agio indigenista do Estado fragmenta-se em politicas setoriais indf- genas transferidas para a responsabilidade de diferentes érgios dos governos federal, estaduais e municipais. A partir desta mudanca fundamental na rela fo entre Estado e povos indigenas, no é mais possive falar de um indigenismo como politica do Estado, mas em ismos, no plural. Neste contexto em que 0 Estado jé nao detém o monopsilio da interlocusio com os indios, a linguagem dos dieitos passa a ser a via da negociagio, contestagio e riacko de sentidos na relagio entre indios Estado, que assume um caréter dialégico, ‘com pontos de vista indigenas tornando-serelativamente reconhecidos como vlidos na arena politica indigenista (Oliveira, Neves e Santili, 2001: 84). aay Como observa Jorge Leén Trujillo em relagao ao cendrio indigena equa- toriano, ainda que de uma forma nao evidente para um primeiro olhar & istncia, as organizagGes indfgenas mantém um fundamento ou uma estrei ta ligagdo baseada no conjunto de relagdes sociais, econémicas, culturais, politicas e juridicas préprias de cada um dos grupos étnicos. Reconhecidas pelo Estado, as organizagdes indigenas convertem-se em representantes de ides ou de povos, um fenémeno recente”, que se consolida com a cos, formagio de pessoal e de formulacio de pro- lo, 1991: 389). Além da prépria conso- desempenharam importante papel como centros de formago de quadro de pessoal, hd que se considerar ainda como fatores que facilitaram a sua mul- tiplicacio 0 novo contexto politico nacional marcado pela “transi icos muito distintos, a estratégia indigenista do governo nos anos 90 tem alguma semelhanga com aquela adotada nos anos 80 para a Amaz6nia, em que para assegurar a imposigio de seus projetos, o Estado liscutam com indios, om “atingidos de barra- ‘gens”, com garimpeiros, seringueiros, castanheiros, possciros e trabalhadores rurais." Permite que sentem A mesa de discusses, assimilando pressOes. Todavia, {quem vai regendo o pano de fundo das negociagées por parte do governo no parece para discutir e, sem fazé-o, dita as regras do jogo (Almeida, 1994: 533). A diferenga é que nos anos 90 os interlocutores da questio indigena foram pulverizados em instituigdes piblicas, que representam os interesses do Es- tado, que continua a “ditar as regras do jogo”. econhecimento foi alangado a partir da Constitigto de 1988. ‘Aingidos por barragens": populagBes remanejadas em virtude da construso de hieelée exploradores de ouro; “castanheiros":coletores de castanha-do-par4 ou Nao hd diivida de que as organizacées indigenas s4o instancias p. cas constituidas a partir de uma l6gica, de uma razio, de um ordenament de uma funcionalidade de uma estruturagio nio-indigenas, externas a0(8) universo(s) indigena(s)."* Apesar disso, as organizagdes indigenas nao po- dem ser consideradas simplesmente entidades externas transplantadas para © contexto das questées indigenas. Séo, antes, estratégias politicas de lizago de demandas nativas orientadas por concepg6es e valores &t- nicos que, mesmo nas situagdes de contato, fundamentam a vida e a luta dos povos indigenas nos novos cendrios das relag6es interétnicas em que foram ins idos com a instalagio do processo de colonizagio européia em seus territérios. Como formas de resisténcia, as organizagées indige- nas “sio, enfim, facetas de uma mesma luta, permanente, tenaz: a luta de cada povo e de todos em conjunto para seguir sendo eles mesmos; sua decisio de ndo renunciar a serem os protagonistas de sua prépria hist6- ria”, palavras de Guillermo Bonfil Batalla (1990: 14) sobre as lutas do movimento indigena no México, que podem ser usadas para a situagio indfgena no Br: E importante nao perder de vista que, apesar do didlogo interétnico ser sempre desigual, com interesses divergentes e em sua maioria conflitantes, as relagbes entre sociedades diferentes sio sempre conduzidas pelos univer- is operantes tanto no campo partilhado do contato quanto no interior de cada sociedade, o que faz com que a aproximagio de culturas povos distintos seja mais do que um simples processo de homo- ‘geneizacdo ou de descaracterizagio cultural (Neves, 1999a). E sendo assim, também as ages, programas, projetos € todos os tipos de iniciativas de- sencadeadas pelas organizagbes indfgenas estardo orientadas por valores ét- nicos. A questéo central que esta situagio coloca esté relacionada ao confronto entre universos simbélicos diferentes postos em interagao a partir das rela .g6es de contato entre povos distintos: o choque entre sistemas epistemol6gicos diferentes, as disputas e conseqiientes negociagdes entre conhecimentos ri- vais mobilizados para o entendimento das priticas indigenas articuladas as priticas das sociedades envolventes e a necessidade de reinterpretagoes, “Deve-se ter sempre presente que no Brasil exstem hoje 215 povos indigenas diferentes 123 BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS. rearranjos € reconfiguragées das estruturas sociais étnicas tradicionais ‘conjugadas as novas demandas politicas decorrentes da situagao de contato interémnico. Analisando o movimento indigena dos anos 70 na Am tina, Stefano Varese (1981: 120) refere-se ao seu potencial de criagio politi- ca como “potencial de rebeldia e das opgdes alternativas”, claramente visfvel ‘mesmo em movimentos e organizagées étnicas menos politizadas. Neste sen- tido, a expressio “realidades emergentes” (Santos, 1998: 13) parece indicada para designar as iniciativas indigenas, uma vez que sugere o potencial dor de um novo contexto de relagées socias interétnicas, em construgio pelo movimento indigena. Seja a pattir dos grupos locais, seja a partir de acées ordenadas de um “movimento indigena”, 0 cendrio interétnico brasileiro € marcado por ini- ciativas muito distintas entre si. Um grande niimero de agdes, programas, projetos, cursos, treinamentos € toda uma enorme variedade de atividades atualmente implementadas por organizagées indigenas no Amazonas poderiam caracterizar iniciativas po- tenciais de processos de “globalizagées contra-hegeménicas”, constituindo ‘© que temos denominado de “cosmopolitismo” (Santos, 1998). Sem preten- der relacionar todas estas iniciativas, até porque cada uma mereceria trata- mento detalhado, sio indicadas a seguir algumas “realidades emergentes” em construcio pelos povos indigenas no Amazonas: — produgio e difusio de programas radiofonicos destinados a transmitit informagées relativas & politica e & questo indigena nacional e regional; agao da informatica para a construcio de redes de apoio e para a divulgagao de noticias através de boletins eletrOnicos periédicos que, de permitir ampliar e estritar 0 leque de aliangas, mostram-se efi instrumentos na luta pela afirmacio e garantia de direitoss — implantagio de sistemas de radiofonia destinados a permitir a comu ao entre as diferentes aldeias de um mesmo povo ou de uma regiac — formagio de entidades de cunho profissional, tais como associagbes de professores indigenas, que, a partir da retomada e da revalorizagio de conhecimentos tradicionais, tém conseguido incorporar as linguas nati- vas aos programas oficiais de escolarizagio; 124 — realizagéo de cursos de formagio profissional destinados a capacitar € cursos de mecdnica de motores, cursos de multimeios € comunicagio, cursos de formago de agentes de satide indigena etc.; 0 de cursos de capacitagao pedagégica ¢ lingiistica para profes- sores indigenas que lecionam em “escolas indigenas”; — construgio de sistemas econdmicos de aceitagio no mercado nal, alternativos ao antigo modelo de economia de subsisténcia, como a venda de artesanato em redes de lojas de decoracio espalhadas pelas prin- cipais capitais do pais, ou de guarand", vendido na Itélia a partir de uma alianga com organizagées nio-governamentais; — desenvolvimento de téenicas e implementagio de projetos de psicultura para a criagio de espécies nativas para consumo interno nas aldeias comercializagao do excedente; — implementagio de programas e projetos de controle e protego ambiental das terras ind{genas e apropriagdo de seus recursos naturais de modo sustentiv iciativas auténomas visando promover o reconhecimento das reas de ‘ocupagio indigena, processos denominados de “autodemarcagio” que, orientados por conceitos ¢ sistemAticas étnicas de reconhecimento e -s territoriais, vém se constituindo em novas bases io dos indios na defesa de suas terras; racio dos Distritos Sanitdrios Especiais Indigenas (DSEI), instan- recentemente criadas com a atribuigdo de coordenar ¢ exe- de saiide para as populagdes indigenas; ipacdo de representantes indigenas de todas as regides do Estado do Amazonas no Conselho Estadual de Educagao Indigena (CEI) ¢ de representantes indigenas no Conselho Municipal de Satide de S40 Gabriel da Cachocira, de reftigerantes. vere da Amazdnia, do qual €extrado 0 concentrado para afabricagSo ‘Além destas iniciativas, ainda podem ser citadas a criaglo de féruns amplia- dos de discussio e encaminhamento politico, tais como a Comissio dos Pro- fessores Indigenas da Amaz6nia (Copiam), entidade auténoma voltada para a formulagio de diretrizes para a educagao escolar indigena; a Unio Ticuna (Ticunigo), movimento em fase de discussio politica, com 0 obj uma unio entre os indios ticuna, agregando as populagdes localizadas de Brasil, Colombia e Peru; e 0 Forum de Debate dos Direitos Indigenas (FDD, grupo formado por liderangas indigenas da regido do alto rio Negro com 0 propésito de discutir e propor alternativas para a politica local, e de consti- tuir uma base para que os {ndios desta regio conquistem em um futuro pré- ximo, pela via da eleigio, 0 poder local. 0 de criar 2. REALIDADES INDIGENAS EMERGENTES Paralelamente a reorientacio da vida politica brasileira, da ditadura militar 20 neoliberalismo adotado pelos governos Collor de Melo, Itamar Franco Fernando Henrique Cardoso, passando pelo periodo de “transigao demo- critica” do governo Sarney,* a neutralizacdo dos instrumentos basicos de cordenamento da politica fundidria provocou o esvaziamento politico da Funai, conduzindo a uma quase total paralisagao dos processos de demarcagio de terras indfgenas, abrindo caminho para o acirramento dos conflitos de terra em reas ocupadas pelos povos indigenas. Nesse cendrio de completa falta de iniciativa do Estado em favor dos indios, 0 autoritarismo do governo foi expresso em duas ag6es extremamente violentas. A primeira, uma violéncia de ordem juridica, com duas medidas legais impostas em janeiro de 1996, pelas quais o Estado brasileiro efetivou a juridificagdo do processo de de- ‘marcagio das terras indigenas, modificando radicalmente a sistemética de reconhecimento das terras e reduzindo a participacéo dos indios no proces- so de demarcagdo a uma mera presenga formal com o sentido de ks rocedimento jurfdico de definicio de limites territoriais. Com 1erno Jos Sarney, de 1986 2 1990; Governo Fernando 11994; Governo Fernando Henrique Cardoso, de da demarcagio, a luta dos povos indigenas sofreu um violento proceso de regulagio social, diluindo a mobilizagio politica alcangada na década de 80 € minando, com isso, 0 movimento indigena. A segunda, uma violencia ffsi- ca desencadeada por forgas policiais em abril de 2000 contra os represen- tantes indigenas presentes nas manifestagbes indigenas contra as celebragdes governamentais dos 500 anos de descobrimento do Brasil. Antes de repre- sentar uma excegio de comportamento, estas duas atitudes violentas demons- tram a continuidade da politica repressiva do Estado em relagio aos povos indigenas, uma continuidade que, apesar das mudan¢as politicas, tem atra- vessado séculos ¢ regimes. Da parte dos indios, os anos 90 foram marcados pela consolidagio de pro- _gramas e projetos étnicos destinados ao atendimento de demandas imediatas € bastante definidas, além de iniciativas locais ¢ nacionais de ocupagio dos espa- 0s politicos institucionais, como estratégia decisiva para romper 0 marco da dominagio interiorizado construgio de realidades indigenas emergentes, merecem espe grande mobilizacio nacional da “Marcha indigena”, que percorreu todo o isi0 da “Conferéncia Indigena”, em Porto Seguro, no Sul da Bahia (o mesmo local do desembarque da esq dra portuguesa hi 500 anos) e as mobilizagdes desencadeadas por grupos lo- cais com o objetivo de demarcar suas terras, que, a partir do termo genérico de “autodemarcagio”, se difundiram por todo o pais. 2.1. “Marcha” e “Conferéncia Indigena” Sem diivida, uma das m: as populares dos iltimos anos foi o Movimento “Bra Indigena, Negra e Popu- lar — Brasil Outros 500”, organizado por segmentos excluidos da sociedade brasileira em resisténcia as comemoragées oficiais pelos $00 anos de desco- brimento do Brasil. Em uma retomada das estratégias politicas dos anos 70, quando as aliangas transnacionais ofereceram um suporte decisivo para o movimento indigena em construgio no Brasil, 0s indios redescobriram a importancia e 0 peso da ica que tém as aliangas ¢ mo! ages realizadas em conjunto 427 ‘com outros segmentos da sociedade civil. © momento que marcou a retomada destas aliangas foi 0 “II Encontro pela Humanidade e contra 0 Neoli- beralismo”,” que reuniu em Belém do Pari, na Amazdnia, em dezembro de 1999, 2.686 delegados de 24 paises das Américas e da Europa, estando re- presentadas 31 nagdes indigenas e numerosas organizagdes politicas e sociais de todas as regides do mundo. Inspirados nos zapatistas que sustentam suas reivindicagoes em redes inter- nacionais de apoio, em Belém do Para os movimentos populares brasleiros re- conquistando forgas para a organizagio das mobilizagées n cia ao tom festivo € A euforia das celebragdes governamentais triunt desencadeadas pelo governo Fernando Henrique Cardoso ¢ pela Rede Glob A participagao dos indios no “Movimento Brasil Outros $00” ficou marcada por dois momentos — “Marcha Indigena 2000” ¢ a “Conferéncia dos Povos ¢ Organizagbes Indigenas do Brasil” —, que sio marcos na histéria do movi ‘mento indigena no Brasil. Partindo dos quatro cantos do pais, a “Marcha Indi- gena” mobilizou cerca de 3.600 indios em caravanas, Tragando o caminho inverso da ocupagio européia, em wm movimento simbélico de retomada do Brasil, a “Marcha” deu ao pais um exemplo gritante de exercicio de cidadania na defesa de direitos fundamentais das populagées indigenas, realizando ma- nifestagdes nas diversas cidades por onde passou. Concebida como férum para reflexio sobre o passado ¢ definigio de estratégias comuns ¢ aliangas para 0 futuro, a “Conferéncia” reuniu, de 18 a 21 de abril de 2000, na aldeia patax6” de Coroa Vermelha, municipio de Santa Cruz de Cabrilia, cerca de 6 mil indios, representando 140 povos indigenas de todo o pais.” 10 México, em meados de 1996, orgar a Rede Globo, uma multinacional de se os tempos da ditadura o principal velculo de propaganda governament "Origindrios des foram os ancestais dos aruais pataxé que receberam as caravelas| portuguesasem 1500, e descendentes ainda hoje lutam para recuperar as suas terastradicio- ais ivadidas por sexs fszendeiros. Além dos 3.600 representantes indigenas de todo 0 pafs e de 2.400 patax6 desta repito, concentravam-se em Cabrila cerca de 2.000 representantes do movimento negro e $.000 © desastroso desfecho das festividades em Porto Seguro nio representa apenas a crise de valores por que passa o Brasil de 500 anos; “o que aconte- cceu em Porto Seguro, em abril de 2000, foi algo muito mais grave do que a imprensa fala. Ndo nos assumimos como nagio brasileira, com as nossas rafzes” (Betto, 2000: 26). O fiasco das celebracées dos $00 anos demonstra aviruléncia ¢ 0 autoritarismo de um Brasil que a todo custo utiliza a forga do poder, da exclusio ¢ da negaco do diélogo para impor um projeto nacional Ginico, que ignora as raizes indigenas, negras e populares, que fundam e que movem a sociedade brasileira, rafzes vivas que sustentam a sociedade de um Brasil “profundo”2* Os acontecimentos sociais das malfadadas comemora- sbes off icam que © Brasil nfo pode continuar a ver a si préprio a partir de uma visio européia, e que tampouco pode continuar a construir a imagem para o restante do mundo pautada num mundo exterior & rea- lade brasileira pluriétnica. Hi ainda dois aspectos importantissimos que merecem ser assinalados sobre a participagio dos indios no “Movimento Brasil Outros 500”. O pri- meiro refere-se ao local onde ocorrew a “Conferéncia Indfgena”, o Nordes- te, justamente a regio onde se deram os pri com a colonizagio européia, ¢, por conseguinte, a regio onde as etnias es- to mais descaracterizadas. Certos grupos, que até entio incorporavam 0 esteredtipo nacionalmente difundido de que “no Nordeste nao tem mais Indio”, ou que “os indios do Nordeste nao sio mais indios”, comegaram a ‘ver que 0s povos do Nordeste sio tio indios quanto todos os indios do Bra- |, apesar de ao longo do proceso de contato terem perdido alguns de seus sinais culturais diacriticos. Os indios do Nordeste, que ao longo do tempo foram perdendo tudo — perderam a terra, perderam a lingua, perderam a dignidade —, acabaram, com a participagio no “Movimento Brasil Outros 500”, com 0 “interapoio” dos outros povos e com o reconhecimento como {ndios — tanto o reconhecimento de si préprios como indios quanto 0 reco hecimento dos outros indios —, reconquistando direitos (Marés, 2000b), Este contato entre povos indfgenas, ao mesmo tempo que fortalece os indios "México profundo, as aldeas, os povos, os barros que permaneceram A margem da ativida- de politics imaginiaimposta por ese outro México irreal, dominance, mas em ralzes, sem do Nordeste, perante a sociedade brasileira, reforga as outras reas (Amaz6- nia, Centro-Oeste, Sul) do movimento indigena. O segundo aspecto impor- tante é que 0 “Movimento Brasil Outros 500” contribuiu para que, pela primeira vez, os indios tivessem a percepcio da “terra indigena Brasil”, ou seja, do Brasil como uma terra indigena ampla, uma terra formada pelos es- pacos originalmente ocupados pelas diferentes etnias (Marés, 2000b). Esta percepgio c este reconhecimento do Brasil como “terra indfgena” constituem uma dimensio nova para o movimento indigena, uma dimensio nova que supera a limitagao da visio local e etnocéntrica conformada aos limites da ‘ocupagio territorial de cada povo. A partir da “Conferéncia Indigena” o Brasil passou a ser para os indios a “terra indigena” de todos os povos indigenas no Brasil, a terra do con- junto dos povos indfgenas que se encontram localizados em territ6rio bra- sileiro. O mais fantastico de tudo é que este sentimento de pertencer a uma terra comum foi provocado pela repressio do aparato militar, que atingiu indistintamente todas as etnias, inclusive algumas que nunca haviam softi- do agressio por parte de forgas piblicas. Sem que tivesse sido sua inten- io, ¢ talvez sem que ainda tenha tomado consciéncia deste fato, o governo brasileiro deu uma enorme contribuigéo para o fortalecimento das lutas indigenas no Brasil. ‘Como marcos politicos contra-hegeménicos de afirmagio de uma identi- dade indigena profunda que alicerca a identidade nacional de um Brasil pluricultural, a “Marcha Indigena 2000” e a “Conferéncia dos Povos e Or- ganizages Indigenas do Brasil” marcam um comecar de novo, um redes- cobrimento de um Brasil ndo-europeu, a retomada de uma consciéncia nacional indigena fundadora de uma identidade composta indigena-negra- européia do perfil do Brasil atual, 2.2, “Autodemarcagao” ‘Annova Constituicéo Federal promulgada em 1988 trouxe para 0 campo do indigenismo um novo parametro: os direitos or indigena” entendida nio mais como uma opgio do Estado, mas como um dircito dos povos indigenas. Antes 0 Estado reconhecia a terra. Na verdade, nais & terra; uma “terra 130 para a sociedade nacional o reconhecimento de terra indigena significava 0 Estado conceder terras aos indios. Depois da Constituigdo, sendo a terra um direito dos indios, ao Estado cabe apenas promover a legalizagao deste direi to. Para os indios, antes da Constituigao a terra era percebida como um di- reito histérico reivindicado; depois da Constituiglo, a terra indigena é um direito constitucional, que reconhece aquele direito histérico. Foi ainda a Constituigdo que abriu a possibilidade de reconhecimento oficial da partici- pacio dos indios nas demarcagées de seus territ6rios. Antes, os indios eram entendidos como povos em transigio a serem integrados na sociedade na- ional, perdendo a condi¢io de povos para se tornarem “cidadaos”. Em seu artigo 231, a nova Constituigao garante aos povos indigenas “o direito ori- gindrio e coletivo sobre as terras que ocupam, apesar de reconhecer um di- teito individual, porém piblico, de propriedade sobre essas terras, entregando a titularidade a Unido Federal” (Marés, 2000a: 14). Sendo um “direito cole- tivo”, a titularidade da terra indigena nao € individualizada, Assim, todos os membros de uma comunidade indigena sio sujeitos do mesmo direito sobre a terra que thes pertence hist6rica e constitucionalmente; todos tém dispo- nibilidade da terra mas ao mesmo tempo ninguém pode dela dispor indivi- dualmente, “porque a disposi¢io de um seria violar o direito de todos os outros” (Marés, 2000a: 7). Nao havendo a possibilidade de relacionar a ter- ra indfgena “com um titular, que seja pessoa, nos termos da dogmatica tradi- ional, aparentemente estamos diante nao de um direito, mas de um simples interesse” (Marés, 2000a: 7), que faz com que, ainda hoje, a terra indigena seja percebida, na maior parte das vezes, como uma “terra de ninguém” tan- to pela populagio préxima com interesse nestas terras quanto por politicos € autoridades constitufdas, abrindo a possibilidade de que as demarcagoes de terras indfgenas sejam contestadas por invasores ¢ pretensos proprietd- ros, Foi esta ambigitidade legal que permitiu ao Governo Federal impor, em janeiro de 1996, o Decreto n° 1.775, do Ministério da Justiga, que “dispoe sobre o procedimento administrativo de demarcacio das terras indigenas” € a Portaria n® 14, da Funai, que “estabelece normas para a elaboracio de re- lat6rio circunstanciado de identificagio e delimitagao de Terras Indigenas”, transformando o embate politico em torno da negociagao de limites ter ritoriais em uma questo de ordem jurfdica em que a ocupagao da terra pas- aay BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS 8a a ser percebida no como direito hist6rico, mas sujeita a uma sentenga que conceda aos indios a possibilidade de permanecerem em terras que sem- pre foram suas (Neves, 1999b: 120). ‘Em um paralelo com a situagao exposta por José Manuel Pureza (2000), ‘0 argumento que pode evocar 0 Estado brasileiro para reivindicar a midade de controle sobre as terras indigenas ¢, por conseguinte, controle sobre os processos de demarcacio é aquele da “efetividade dos fa- tos consumados.”” A luz dos principios internacionais que defendem a auto- determinagio de todos 0 povos, a questo indigena no Brasil consti to-e-branco’, de um manifesto descumprimento dos pr ito Internacional” (Pureza, 2000: 11). Seja a partir da Fur tir de outras agéncias estatais destinadas ao atendimento das demandas indi- ‘genas, o Estado brasileiro continua a reivindicar para sia gestio sobre a vida das populagées indigenas, pelo controle que exerce sobre as politicas setoriais e, de modo mais ivo, pelos processos de reconhecimento legal das terras ocupadas pelos povos indigenas. © proceso de demarcacio das terras indigenas compreende uma suces- siio de fases sequenciadas e hierarquizadas que vai da situago em que a terra ndo conta com nenhum reconhecimento oficial & situagdo extrema em que a sua situagdo fundidria ¢ regularizada por registro no Servigo de Patriménio da Unio e cartérios imobilidrios. Para os objetivos deste capitulo basta nalar que sio quatro as fases do processo: Identificagdo e Delimitacio; De- marcacio; Homologagio e Regularizacao Fundidria. De modo simplificado, © reconhecimento oficial das terras indigenas € comummente chamado de “processo de demarcacio”, ‘Com a expansio da colonizagio européia, que se estendeu a todas as partes do Brasil, as “terras indigenas” representam hoje parcelas menores dos anti- 08 territérios indigenas tradicionalmente ocupados. O volume total de ter- ras ind{genas varia de acordo com os critérios utilizados por cada agéncia na manipulagio dos dados. Segundo levantamento do Conselho Missionério Argumento uilizado pela Indonésia para impor a sua soberania sobre o Timor Leste invadi- do, 132 ido em margo de 2000, existem no Brasil 739 (mais de 24% do total) so terras reivindicadas por povos terras indigen: indigenas mas que ainda ndo contam com nenhuma providéncia. Das 560 terras reconhecidas oficialmente pela Funai, apenas 231 (cerca de 3196) tém a sua situacdo fundiéria regularizada conforme as normas oficiais, enquanto ‘outras 220 (quase 4096) sofrem invasdes e pressdes de interesses ndo-indige- nas (Reportagem, 2000). Em virtude das ambigilidades legais e da inoperancia do Estado no cumprimento de sua obrigagio constitucional de promover a demarcagao das terras indfgenas, os préprios indios assumiram a tarefa de demarcar e garantir as suas terras. Uma das primeiras iniciativas neste senti- do foi desencadeada pelos indios kulina da regio do alto rio Purus, no Esta- do do Acre, na fronteira entre o Brasil eo Peru, que realizaram a demarcacio fisica de sua terra abrindo picadas na mata e fixando improvisados marcos € placas de madeira construidos por eles préprios.* Apesar de totalmente fora dos padrées oficias, as placas e marcos indicativos utilizados pelos kulina serviram para afirmar o seu direito territorial junto & populagio regional, que passou a no mais invadir a drea como até entéo 0 fazia (Monteiro, 1999: 156). Embora 0 Estado néo reconhecesse aquele pro- cedimento kulina como uma “demarcagio” legal, na perspectiva dos indios a sua iniciativa constitui-se numa “demarcagi0” de fato, definindo como “terra indigena” as terras que hist6rica e miticamente identificam como suas. Na assembléia do povo kulina realizada em 1990, os indios do alto rio Purus, a partir da experiéncia acumulada em sua terra, incentivaram os seus parentes moradores no rio Jurud a promover a abertura das picadas nos ites da terra indigena Kulina do Médio Rio Juru4 que, apesar de delimita- da em 1988 pela funai, nunca fora demarcada e que era constantemente invadida por madeireiros, pescadores, seringueiros ¢ principalmente serin- galistas, que se recusavam a admitir aquela terra como “terra indigena”. Decididos a levar a agdo por conta pr6pria, “os kulina, ainda na mesma as- comecializagio de borracha natural produzids nos seringat da AmazSaia. waa BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS planejaram aumentar os rocados para sustentar os Arduos traba- Thos da demarcagio™" (Monteiro, 1999: 156). Com a proximidade do int- io dos trabalhos, a populagio local reagiu 3 iniciativa dos fndios ku médio rio Jurua. Visando dissipar estas tens6es, no qual membros das equipes indigenistas que apoiavam os kulina e repre- sentantes da UNI-Acre e Sul do Amazonas explicaram 4 populagio € as autoridades locais a natureza e razGes das atividades que estavam sendo rea- lizadas. A partir deste momento ficou evidente para todos que a visava exclusivamente atender os er esse trabalho com o objetivo d acabar com 0s conflitos, justamente porque o Governo Federal se omit nao cumpria as obrigagdes que eram suas" (Monteiro, 1999: 157). Na pri- meira fase os trabalhos foram conduzidos a partir de uma metodologia bem pratica desenvolvida em pequenos cursos de topografia realizados nas aldeias para treinar os indios. Baseados na utilizacio de bissolas, balizas ¢ ainda de fogos de artificio e sinais de fumaga para orientar a diregio das picadas a serem abertas na mata, os trabalhos foram marcados por muitos erros ¢ im- Precis6es que seriam corrigidos posteriormente. Além das questées técnicas, outro obsticulo enfrentado pelos kulina foi o abastecimento de alimentos, pois & medida que as frentes de trabalho avancavam, distanciavam-se das aldeias responsaveis pelo suprimento de farinha de mandioca, carne de caca € peixe salgado, a base da alimentagio. Esta situagio perdurou durante os dois primeiros anos dos trabalhos. Na segunda etapa, o esquema do trabalho foi modificado a partir do apoio recebido da agéncia de cooperacao interna- cional “Pio para o Mundo” (PPM)® e, principalmente, em fungio do con- ™"Rogados" eultvos de mandioea, a base vegetal da aimentagto de todos os povos indigenas dda Amazénia. Na rego do rio Jurus, a mandioca €consumida principalmente na forma de farinha, Seminério realizado em Eirunepé, pequena cidade que & 0 cento politico do rio Jurud, 2A principio, a UNF-Acre consiuta uma repreentasio da UNI para 0 Estado do Acre Com 0 Snes local, como estendendo sua agio a0 Sul do Amazonas, € as 1a ago de cooperasio das igreas evangéli ify a PPM segue o seu principio de‘siudar sibilitar um processo res volvimento.” (Mer 10 do desen- iodenominago do povo 134 vénio firmado entre 0 Estado brasileiro e os indios, que garantiu 0 reconhe- cimento legal da demarcagio feita pelo povo kulina.” A partir da assinatura do convénio a orientagio de rumo das picadas e a implantagao de marcos ¢ placas na floresta passaram a ser realizados com instrumentos de agrimensu- ra, como teodolitos e GPS", que deram maior precisio téenica a demarca- 40. Contudo, a necessidade de atender aos padrées normas técnicas exigidos pelo convénio para a abertura das picadas que estabelecem os limi- tes das terras indigenas fez com que os trabalhos se tornassem ainda mais demorados que na primeira fase. Por outro lado, a dependéncia da equipe técnica dos procedimentos administrativos e burocraticos dos érgiios de go- verno para a liberagao de recursos econdmicos, além de reduzir a eficdcia dos trabalhos, contribufa para 0 “descrédito ¢ desinimo, que atingiam os kulina” (Monteiro, 1999: 159). As turmas de servigo que realizavam os tra- balhos na mata eram compostas basicamente de homens adultos, geralmente acompanhados pelos chefes das aldeias. As mulheres contribuiram decisiva- mente, promovendo o abastecimento da alimentago necesséria e, em alguns ‘casos, acompanhando os seus maridos nos trabalhos de derrubada de érvo- res para a abertura de picadas. Vale destacar que todas as aldeias localizadas na Terra Indigena Kulina do Médio Jurué tomaram parte da demarcagio, tumas contribuindo mais intensamente que outras, mas todas participando do processo. ‘A demarcagao fisica estendeu-se de 1991 a0 inicio de 1998, perfodo que trouxe enormes conquistas para os kulina: o fortalecimento de suas organi- ‘zagbes politicas, o conhecimento mais pormenorizado de suas terras, o apren- dizado técnico que thes permitiu o dominio de mapas, de coordenadas geogrificas, de balizamentos, de rastreio por satélites etc. (Monteiro, 1999: 163). Considerando que “a demarcagio de um te fgena se consti- ‘tui numa trama de relagdes sociais, tanto internas & comunidade indigena, quanto com a populagio envolvente e, sendo assim, para ser duradoura, re- *Convénio n® 004/93, celebrado entre a Funai, como representante do Estado brasileiro, € 8 LUNLAcre eSul do Amazonas e a Comunidade Indigena Kulina do Médio Jurus,representan- quer algo mais que a simples aplicagao do instrumental técnico le (Monteiro, 1999: 163), a demarcagio kulina funcionou ao mesmo tempo como procedimento e afirmagio de direitos sobre as terras ocupadas € como processo de afirmagao da auto-estima kulina no contexto das relagdes interétnicas. £ incontestavel que ‘o respeito pelos povos indigenas cresceu significativamente no seio da popu- lagio urbana e rural da regio, devido & coragem ¢ a capacidade que os kulina demonstraram ao tomar para si a responsabilidade de demarcar suas pré- prias terras (Monteiro, 1999: 162). ‘Assim, surgia no campo das lutas indigenas a “autodemarcacio”, cuja forma mais acabada foi aquela desencadeada pelos fndios kulina no médio rio Jurus, no Amazonas. ‘Além de afirmar perante a sociedade local os seus direitos indfgenas, a “autodemarcacio” kulina gerou e consolidou uma metodologia de demarca- 0 construida a partir da efetiva participagio dos grupos locais nos traba- Thos de demarcagio fisica de suas terras, terras estas que foram legalm reconhecidas como “terra indigena” pelo convénio entre a Funai e os fndios, ‘Como estratégia para forcar o Estado brasileiro a reconhecer terras, 0 mo- delo da “autodemarcagio” difundiu-se por todas as regides do pats, sendo adotado por intimeros povos indigenas. No mesmo rio Jurud, por exemplo, (0s kanamari ¢ os deni, dois povos vizinhos dos kulina, empregaram a siste- mética de colocar marcos de madeira e abrir caminhos na mata para assina- lar as divisas das terras que tradicionalmente ocupam no rio Jurus, € cujo reconhecimento oficial hd muitos anos aguardavam. Apesar de destituida de qualquer legalidade formal, a iniciativa kanamari em 1991 foi fundamental para afirmar 0 deste povo sobre as suas terras, fato este que cont icialmente contestada iva, os improvisados e pre- cérios marcos divis6rios implantados foram adotados pelo grupo de traba- Iho técnico que fez a identificagio e delimitagao da Terra Indigena Mawetck, cujo relatério antropol6gico (Neves, 1998) reconheceu os direitos indige- nas ¢ considerou le; ites estabelecidos nos trabalhos de “auto- 108 08 lis demarcagio” efetivados pelos kanamari.!? Quanto aos deni, que tiveram a sua terra identificada e delimitada em 1985, permaneceram 16 anos & espera de que 0 processo de demarcagio superasse as interminaveis burocracias administrativas da Funai. Cansados de aguardar uma solugo que nunca che- gava, em setembro de 2001 os prépi ios deni, apoiados por entidades indigenistas ambientalistas”, deram infcio & demarcagio de suas terras nos mesmos moldes da “autodemarcagio” kulina. £ interessante observar que apés uma primeira reagio negativa da presidéncia da Funai exigindo que os deni suspendessem os trabalhos de abertura de limites na floresta e implan- tagdo de marcos, um decreto governamental garantiu aos deni a posse de sua terra ¢ estabeleceu um prazo préximo para o inicio dos trabalhos oficiais de demarcagio. Por intermédio da Funai e de outros érgios ligados as questées indigenas, pelos povos indigenas, incorporando-os as pol marcagio” kulina nao fugiu a regra. A partir de conjunto entre o Estado, organizagdes ndo-governament genistas ¢ organizagées indfgenas, a “autodemarcagio”, em sua metodologia ¢ forma de organizagio das atividades no terreno, foi submetida a um empo- brecimento de sua dimensio emancipatéria, a uma “interpretacio da abrevia- 40” (Santos, 1998), reduzida pelo PPTAL/Funai/GTZ* a um modelo de demarcagio fisica de terras. E como modelo, as estratégias e sistemiticas ctiadas ¢ aprimoradas pelos {ndios kulina durante o processo de “autode- marcagio” foram isoladas do contexto politico, hist6rico, geografico € interétnico da regio do médio rio Jurué, sendo convertidas em uma nova forma de conhecimento institucional, agora rebatizado de “demarcagio "A demarcago flsica da Terra Indigena Mawetck fi ralizads durante o ano de 2000, egun- do os limites incialmente definidos pelos Kanamari. 294 “autodemarcagio” deni contou com o apoio do Cimi, da Operacio Amazdnia Nativa (Opan), da Coordenagio das Organizagées Indigenas da Amarbnia Brasileira (Coiab) e do Greenpeace. 40 Projeto tegrado de Protegto 8s PopulagbesIndigenas da Amazdhnia Legal (PPTAL) € wn fojeto do Programa Piloto para Protegio das Florestas Tropic plementado pela Funai com a cooperasio técnica da Det (GTZ). A panic dagui ser velizado apenas PPTAL como 437 participativa”, a ser estendido pelo PPTAL, como modelo de demarcagio, as 119 terras indigenas localizadas na Amaz6nia brasileira.”* Conforme sua pro- posta inicial, o PPTAL “propés-se a identificar 55 éreas, a demarcar € regu larizar 58 € a promover a revisio de limites de seis outras éreas” (Arruda, 1998: 06). O PPTAL assume, assim, 0 papel de regulador de uma experién- cia contra-hegeménica bem-sucedida a ser replicada em diferentes realida- des indigenas, que, por serem diferentes, deveriam exigir tratamentos € procedimentos também diferentes para cada uma das demarcagdes a serem realizadas. ‘A partir desta dindmica institucional replicada, o PPTAL promoveu dois pprocessos de demarcagio em carter experimental, com a finalidade de apri- -amente o seu modelo de “demarcagéo participativa”,»* apés 0 do Javari foi demarcada no decorrer de 2000 e homologada agora em abril de 2001. ‘A demarcagio foi feita por uma empresa de topografia contratada pela Funai via Setag. A Funai, através do PPTAL, contratou 0 Civaja™” para que este mobilizasse os indios para promover 0 acompanhamento da demarcagio, sua divulgagio e apresentasse um plano de vigilincia a ser exe- ‘cutado apés concluida a demarcagio (Mendes, 2001). Conforme informagio pessoal do antropélogo Gilberto Azanha, funcion’- ue acompanhou os trabalhos no Vale do Javari, a demarcagio dessa terra indfgena na verdade limitou-se a uma “autodemarcagio burocr4- tica” (Azanha, 2000), uma vez que os indios participavam apenas como ob- "A agio do PPTAL atinge 81 povos indigenas diferentes, dos qusis 8 sto grupos que ainda ‘mio mantém contatos regulars com a sociedade bese *Civaia: Conselho Indigena do Vale do Javari, organizacio que representa os povos do Vale do Java. servadores, ¢ nao como parte ativa no processo de demarcagio de sua terra, (© que configuraria a “autodemarcagio” segundo a sistemstica criada pelos fndios kulina, Embora reconhecendo que as “parcerias” com ONGs indigenistas e indios alcangaram um certo éxito operacional na demarcagio das terras indfgenas waiapi do alto rio Negro ¢ do Vale do Javari, a a do processo de regularizagao fun tiva como quantitativamente 0 seu desempenho “ainda deixa a desejar” (Arruda, 1998: 07). Segundo a descrigio do Coordenador do PPTAL, a “de- do desenvolvimento contratagio de uma firma de topografia para a realizagio do levantamento geodésico, abertura de picadas e colocagio de marcos”, sendo os indios pa- ralelamente mobilizados seja diretamente pela organizagio indigena local ou, indiretamente, por al- ‘guma ONG indicada por eles, para o acompanhamento de todas as frentes| de trabalho, colocagio de placas indicativas e divulgagio nas aldeias € no ‘entorno da frea da demarcagio do que ela implica em termos de direitos territoriais indigenas (Mendes, 1999: 19). Detalhado desta forma, sobressai a diferenga entre a “demarcagio par- ticipativa” ea “autodemarcagao”, que vem a seraquela demarcagio em que 6s proprios indios residentes na terra indigena assumem todas as atividades direta ¢ indiretamente relacionadas com a construgio fisica ¢ a cons io legal de seu territ6rio segundo as normas ditadas pelo Estado brasilei- ro. Por um lado, “demarcagdo”, como uma iniciativa externa de atrib do Estado, traz em si uma conotagio de configuragio de espacos de confinamento, de redugo, de fechamento societério com a exclusio de re- ages com o mundo externo; enquanto “autodemarcagio”, como mo- \cdo indfgena para a construgio ter dicional uilizado pela Funai” (Mendes, 1999: 18). Este indigenas, nas quais 0 modelo de “demarcasio 139 BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS digena no fortalecimento do grupo étnico em suas relagdes com o Estado com a sociedade circundante. Embora a “autodemarcagio” e a “demarcagiio participativa” tenham por objetivo o mesmo resultado de regularizagao fundiéria das terras indigenas, resultado este muitas vezes alcangado a partir de metodologias e procedi- mentos semelhantes, elas so substantivamente diferentes, uma vez que a participagio indigena nestes dois modelos de demarcagio é totalmente dis- tinta, Enquanto a “autodemarcacio” € 0 espago por exceléncia de exerci da mobilizagao politica, de formulacio de propostas e da emancipacio é ca, na “demarcagio participativa” a presenca mente de apoio aos trabalhos no terreno com a pa por normas técnicas, por cronogramas de execugio de tarefas e por planeja- ‘mentos administrativos totalmente alheios ao universo indigena. Quanto ao modelo de “demarcagio participativa” difundido pelo PPTAL, pode-se ainda questionar se verdadeiramente existem diferencas em relagio 20 ineficiente modelo de “demarcagées pela via das licitagées”, o modelo tradicionalmente ado pela Funai, uma vez que suas dindmicas sio em tudo semelhantes. Um outro questionamento pode ainda ser feito: em que medida “parcerias” desta ordem garantem, a longo prazo, a sustentabilidade de inic nas contra-hegemnicas frente 0s riscos de institucionalizagio do movimento indigena, de burocratizagio administrativa das organizagées e de formalismo cago do Vale do Javari quanto no processo crescente de ¢ formalismo que a Federagio das Organizacées I (Foirn) e Conselho Indigena do Vale do Javari (Ci ‘mais assustador € que o enfraquecimento da dimensio contra-hegeménica das organizagGes indigenas, tem lugar a partir da incorporacio pelo préprio igena da “interpretacao da abreviagao” que pasteuriza e con- duz a estagnagio as iniciativas indigenas reduzindo a sua eficécia como “re- alidades emergentes”. A efetivagao de convénios para a realizagao das “parcerias” representa a incorporagio pelo Estado brasileiro da “rotina de io” indigena, pasteurizada e convertida pela légica do Estado em 140 lizagio de rotina”, que passa a ser transferida ao movimento indigena organizado e/ou organizagées indigenas como uma forma de fazer politica. AA “demarcasio partcipativa”, formulada pelo PPTAL a partir da “auto- demarcagio” kulina, é uma idéia institucional nova, que adapta a criatividade fgena da “autodemarcagao” A burocracia institucional obsoleta do in- igenismo do Estado brasileiro. Este é um modelo de demarcagao que se por tum lado aproveita inovagdes ¢ dindmicas introduzidas pela iniciativa kulina, Por outro, mais uma ver reserva 20s indios um papel secundério de acompa- nhamento e fiscalizacio dos trabalhos técnicos, uma participagio coadjuvante no processo de construgio politica do territério indigena. Um olhar sobre os aspectos positives dos modelos de demarcacio propagados pelo PPTAL res- salta a sua inspiragio na “autodemarcagao” inventada pelos indios kulina durante a mobilizagio em defesa de suas terras: Demarcagées participativas nfo so uma utopia possivel, nem sio produtos antficiais de ramos indefinidos, que precisam ser maquiados para poder ex- por-se em vitrines. Nio correspondem a obras de fachada nas pol vernamentais, mas representam experiéncias com enorme densidade il. Nao sio uma invengio do PFTAL, nem resultam da pura simples aplicagio de um modelo de engenharia social; sio construgbes dos indigenas, diferenciadas culturalmente, com enquadramentos histdricos dis- tintos e projetos politicos heterogéneos (Oliveira, 2001: 32). A demarcagio de terras indgenas néo pode ser encarada como uma simples aplicagio de técnicas de agrimensura para delimitagio de terrenos ou como de zoneamento ambiental, Demarcar terras indfgenas 6 um fato mais complexo de construgdo de uma nova ealidade sociopottica, em que um sueito hist6ri- ‘Acessada em 10 de outubro de 1999. —. (1998), “Carta a Roberto Cobaria y Abadio Greeen” (mimeo), Washington, D.C. 16 de junho. ‘Mayr, Juan; Gut ‘agosto. —. (1999b), “Acta de Acuerdo del Consenso entre el Mit tex, Roberto Pérez (1999), “Comunicado” (mimeo), Tamaria, 23 de rerio del Medio Ambiente y el Cabildo Mayor U'wa” (mimeo). Cubard, 19 de julho. 99), “A Year of Oil Resistance. An Interview with FoE Ecuador's Esperanza Martine2", Link, 91. Friends of the Earth. Outubro(dezembro. Pucblo Indigena Ancestral del Norte de Memorias Ambientales de las Provincias de Norte y Gutierrez, Boyacd (1990- icia Universidad Javeriana — Ideade. in Numero 0997. Por Medio de la Cual se Resuelve un Recurso de Reposicin Interpuesto contra la Resolucién # 0788 del 21 de Septiembre de 1999 y se Toman Otras Determinaciones. Bogoti, 23 de no- vembro. Ministerio de Medio Ambiente (2000), “U'wa”, htp:/iwww.ninambiente-gov.cofuwa> “Defendiendo la Sangre de Kerachikaré. Breve Resumen del Caso del Pueblo Uwa" (mimeo), Ofi idica de la ONIC. Organizaciones Sociales Departamento de Arauca y Cubaré (1998) “Pliego de Exigencias ependentemente do sexo dos sueitos e ndo conceder quasquer pensbes, 339 A aprovagao de ambos os instrumentos torna clara a necessidade de positivamente os cidadios homossexuais. Na verdade, nada impedi casal homossexual se beneficiasse da protego juridica prevista na lei da econo- ‘mia comum, Todavia, a lei sobre a economia comum foi considerada insuficien- te plas associagées LGBT nacionais, uma vez que destitufa a relagio familiar LGBT do seu componente afetivo, reduzindo-aa uma vertente meramente €c0- némica.‘ E por esta razdo que, durante a manifestagio de rua realizada no dia 6 de fevereiro de 2000 em frente & 6* Conservat6ria do Registro Civil, em Lisboa, diversos casais de lésbicas e gays trocaram beijos enquanto empunhavam carta- zes nos quais se lia: “Isto ndo € uma economia comum!”. A lei sobre as uniGes de fato, a0 reconhecer claramente a sua aplicagio, no art. 1°, a“duas pessoas, inde- pendentemente do sexo”, vis, assim, evitar qualquer interpretagio mais exclu- dente da protego em causa, Condlui , que 0 caminho para uma sociedade mais includente para ‘todos passa por etapas em que nio € iil nem justo promover um universalismo cessencialista que ndo considera as especificidades dos contextos. O universalismo ‘itl deve conduzir a politcas para a igualdade, evitando, contudo, quaisquer ‘medidas homogeneizantes. Quem pode homogeneizar é sempre quem esti no topo da pirdmide do poder. £ devido a este risco de homogeneizagio que alguns ativistas LGBT tém feito fortes criticas ao discurso em defesa da igualdade, argu- mentando que 0s “direitos iguais” visam, em ltima instincia, anular a diversi- dade no seio do préprio movimento LGBT. De fato, oreconhecimento de direitos ‘205 casais LGBT pode ser interpretado como um incentivo ou uma recompensa concedida a um modelo tinico de comportamento sexual, desta feita muito pr6~ ximo dos modelos heterossexuais mais convencionais, isto é uma relagio estd- vel e monogimica” (Tatchell, 2001). 2 importante lmbrar que tal modelo heterotextalconvenionl € um produto clr hai mente consid de form a servi os ntecesesecondmicas do sistema capitalist. Como recor dlam Greenberg eB ‘eologia da fara decorrete (0 sistema epi ‘monogamia iat ininecamente 0 amor & eos, st uma aolesctncia bem adiantada e abragou uma fore dvsio sexual do abaho™ A eflexio contemporanea sobre igualdade e diferenca no pode deixar de ser enquadrada no quadro do ne cruzam, aproximam e divergem, con nem sempre simples de d ‘tugués €0 sistema capi iberalismo, onde estes pélos se entre indo redes complexas e dinamicas, indar. A relagao entre o movimento LGBT por- ta € permeada por contradigées que decorrem dessa complexidade e da necessidade de maximizar os recursos disponiveis para grupos que, lutando pela igualdade de direitos, acenam com a bandeira do orgulho na diferenga. Segue-se uma andlise necessariamente breve sobre as condigées que o atual sistema impée & luta pela emancipacio sexual, na ten- tativa de perceber se esta pode ou nio ter pleno éxito no contexto de uma sociedade capitalista. 1.1. (Des)igualdades no quadro capitalista Como é facilmente aceito, em situagdes de miséria material extrema em que 08 sujeitos se debatem com um esforgo constante pela sua prépria sobrevi resta pouco espago (forcas?) para lutar por outras causas aparentemente menos cruciais. Quando as condigées objetivas de exis- téncia dos sujeitos melhoram, o espectro de reivindicagées sociais aumen- ta, uma vez que se tornam visiveis outras necessidades, que nao de pio, mas, por exemplo, de liberdade de expressio ou de autodeterminagio sobre 0 corpo. £ neste sentido que a emergéncia de um sistema capitalis- ta proporcionow algumas condigées essenciais 20 surgimento do movi- ‘mento homossexual. Entre estas, sublinho o saldrio mensal e a produgio de bens de consumo. Em um artigo freqiientemente citado, D’E (1996) argumenta que foi o desenvolvimento ico do capi seu sistema de trabalho livre —, que permi ismo — mais especificamente © que um grande némero de homens e mulheres no final do século XX se autodenominasse gays, se visse ‘como parte de uma comunidade de homens e mulheres semelhantes e se ‘organizasse politicamente com base nessa identidade (1996: 264). BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS De fato, a0 retirar da unidade familiar 0 seu papel tradicional de produtor econdmico, o sistema capitalista converteu utilitariamente a familia em um cespaco de fortalecimento e restabelecimento das relagdes de afetividade que permitiriam ao operério fabril manter um elevado desempenho profissional, como o sistema exigia. Inesperado neste processo foi o fato da familia nu- clear passar a ser, antes de mais nada, um espaco de busca de bem-estar € felicidade, onde se colocam sentimentos acima de obrigagoes, Abriu-se, as- sim, o horizonte para novos modelos familiares que transcendem os tradi- cionais lagos de sangue. No dia 24 de margo de 2000, a comunicagéo apresentada pela ILGA-Portugal na Cimeira Alternativa definiu o significa- do de familia para esta associagio LGBT: ‘Como unidos de fato que muitas vezes também somos, somos também a fa- vor da familia, entendida como local prvilegiado de afetos, ¢ nao como um ngs lico, Para nés a familia € a velha familia que herdamos —e que ‘em muitos casos esta em crise grave — mas sio também as novas familias de ‘casais do mesmo sexo, mies solteiras, mies lésbicas, pais solteiros, vitvos, ‘gays, bissexuais, transexuais, familias de filhos adotados, de filhos inse- minados, todos os que sentem em familia, no lar onde sio criados, cuidados, tratados e amados (Rodrigues, 2000). Esta transformagio afetou a prépria famflia heterosexual. O ntimero de fi- Ihos por casal, por exemplo, diminuiu drasticamente, uma vez que as criangas, deixando de ser necessérias para a economia doméstica como mio-de-obra, ppassaram a ser desejadas por razGes afetivas. desenvolvimento dos mercados representa também uma maior circu- lagio de pessoas e bens, o que fomenta a troca de informagées ¢ experiéneias que, de outra forma, permaneceriam desconhecidas. E neste sentido que Anténio Serzedelo, presidente da Opus Gay, argumenta que a aposta a no crescimento econdmico ‘rouxe para Portugal as importantes estradas, as importantes pontes, que tra- zem ou nio levam coisa nenhuma, mas isso € outra questo, e que trouxeram também por essas estradas muitasidéias européias caras as burguesias urba- aa PARA LIBERTAR nas. E, como efeito secundério certamente ndo previsto, vieram também com isso, nos avides, nos 6nibus, nas ferrovias, estas idéias liberalizantes que si0 io do capital. £ uma conseqiénciacontraditria smo. Por um lado, obriga as pessoas a aceitarem as sexualidades or outro lado, ao préprio capital nio mossexuais, porque parte do teressa que haja ho- incipio de que precisa de mio-de-obra, € portanto os homossexuais nao seriam criadores de mio-de-obra porque nio podiam ter filhos (Santos e Fontes, 1999), E, de fato, a década de 90 testemunhou o nascimento de um mercado LGBT portugués, constituido sobretudo por espacos de diversao noturna, especial- ‘mente bares e discotecas, mas também saunas, uma agéncia imobi hotel, uma agéncia de viagens, uma livraria e a revista Korpust, além dos diversos servigos disponibilizados pelas préprias associagées. Portanto, parece jé haver a percepgio de que os homossexuais so também consumi- dores, cujo poder de compra constitui um importante fator de atragio co- mercial, embora em Portugal a expresso deste mercado ainda se afaste das indistrias “rosa” de paises como os Estados Unidos, o Reino Unido ou ‘mesmo a Espana. Nao obstante, 0 desenvolvimento do poder socioeco- ico deste grupo tem fortalecido a sua capacidade de negoci: direitos lade. Como diz Santos, “muitos dos grupos socia tes’, minorias étnicas e outros, comegaram a ter rec suficientemente importantes para colocar na agenda p sidades e aspiragbes especificas” (19 . No outro lado desta moeda, a ideologia capitalista surge como génese da opressio sexual, aspecto sobre o qual me debrugarei nas préximas linhas. Alguns estudos identificam a familia nuclear burguesa — definida como institucionalizagao econémica das relag6es pessoais no contexto do sistema 10s organizativos "Nascida em 1996 esendo a nica publicagSo petiédicaexclusivamente gay, a Korpus presen ta uma cobertura dos eventos gays nacionais, entrevista com as principas figuras do movi mento homostexual portuguts, artigos de opinito e divulgagio de conteddo gay. atualmente com cerca de duzentos ssinantes, 343 ista —como 0 principal fator de justificativa para a homofobia? Esta opressdo remonta ao perfodo de implementacio do modelo familiar burgues, quando é incorporada a “sexualidade economicamente stil e politicamente conservadora” de que nos fala Foucault (1994: 41). E com este modelo fa- miliar que se introduz.a divisio sexual do trabalho segundo a qual a mulher funcionava como uma garantia da estabilidade doméstica, cuidando das rou- pas, da alimentacao, da limpeza e das criangas, Este papel, embora servisse plenamente aos propésitos do sistema econdmico, nao tinha tradugio direta no reconhecimento social a ela atribufdo, remetendo a mulher para a reali- zagio de tarefas rotineiras consideradas pouco relevantes, Embora a partir da revolugio industrial o mercado de trabalho tenha, progressivamente, ab- sorvido mao-de-obra feminina, o papel tradicional da mulher no lar no se alterou radicalmente (Ferreira, 1981). Na verdade, a ideologia capitalista construiu e disseminou fortes dicotomias sexuais que atribuem a homens € mulheres papéis diferentes e freqiientemente opostos.” A homofobia é uma das faces desta ideologia patriarcal, uma vez que sujeitos, sejam eles homens ‘ou mulheres, que se consideram iguais e lutam com ages ¢ discursos idénti- cos pelo direito a diferenca, constituem uma verdadeira ameaca a um siste- ‘ma construfdo com base em divisdes dicotomicas em fungio também do sexo. Em outras palavras, a burguesia, capi aterrorizada pelo espectro comunista da igualdade entre homens e mulhe- tes, clasifica a igualdade sexual como ndo-natural. A homossexualidade € também classficada como nfo-natural e, como tal, uma ameaga ao dominio burgués, precisamente porque reeita a “natural” sociedade burguesarefleti- da na “natural” relagio burgués(proletério da famflia nuclear (LARG, 1996: 350). "Ver, entre outros, LARG, 1996. Greenberg e Bystrin (1996) identificam cinco fatores que relacionam @ advento da ordem capi 130 da homossexualidade: a) Intensificagio da competiividade no ) desenvolvimento de uma éica de autocon~ trabalho; fortaleci= interpreasio do desvio pela me: )- Sobre a construgio social da diferenga ‘entre mulheres e homens na politi, ver Osério (2002). ry + RECONNECER PARAL Ainda nos nossos dias ha trabalhadores homossexuais que sio desp ‘ou tém sua carreira profissional prejudicada — 0 que € chamado na de “ficar na prateleira” — por motivos que, longe da esperada avaliagio de desempenho, se prendem claramente a orientagao sexual inferida ou assumi- da."" O conhecimento desse tipo de discriminagao que atinge trabalhado- tes LGBT levou a aprovagio de uma mogao de apoio as reivindicagdes do Movimento de Gays, Lésbicas e Travestis no 6° Congresso Nacional da Central Unica de Trabalhadores, realizado em Sio Paulo, no Brasil, em agosto de 1997: (06° Concut resolv ‘combater a homofobia dentro dos sindicatos e locais de trabalho, desenvolvendo uma politica que vise a supressio da discriminae ‘40 contra gays, ésbicase travests trabalhadores nas organizagées sind ‘ena sociedade em geral, em comum acordo com as entidades que jé lutam ‘contra esse preconceito (CUT, 1997: 61). Fora do ambito do trabalho, cada vez que é rejeitada a custédia de um filho a um pai ou a uma mae homosexual, que um casal de lésbicas evita manifestag6es piblicas de carinho ou que um gay 6 espancado por nao ser heterossexual, estamos perante uma subjugacio da diferenca a hege- ‘monia heterosexual, o que também serve aos interesses econdmicos do- minantes. O fato de esta opressio ser exercida em fungio da sexualidade, como também acontece em fungao de raga, classe ou sexo, revela quo poderosas sio as armas do cay 10s do poder de resistir, remetendo-os ao isolamento e & invisibilidade pelos motivos mais diversos. ‘Além dessas formas mais diretas de exclusio por homofobia, 0 alega- damente superior poder econdmico dos homossexuais nio € condigio sufi- ? “Criada em 1973 pela Frelimo,tinha o estatuto de “organizagio democrética de massss” (ODM). Semindrio do Comutra para Polica de Gtnero, OTM-CS, Matola, 11a 13 de novembro de 2000. Mula, 1996; importante detacar a uilizasto da expresso: “companbeitsinsepardvel, do ino da OM, 393 Nenhum sindicato ousou ir contra esta posicio, que representa a nova imagem que as organizagdes sindicais querem dar de si mesmas. Alias, os dirigentes sindicais insistem nos antecedentes deste projeto de “emancipa- ‘sao da mulher”, dando a entender que sempre estiveram i {que 0s sindicatos lutam ha muito pela defesa dos interesses das mulheres. Quando da realizagio de uma reuniao intitulada “Estratégia a adotar para cencorajar a mulher a aceitar posigGes de chefia e breve sensibilizacio sobre o genero”, ‘gente sindicalista sublinhou: “Depois da independéncia nacional, a mulher como mae, esposa e trabalhadora engajou-se nos setores ‘ais diversos de produco, na formagao socioprofissional, segundo as orien- tagdes da nova Constituicéo e da Lei do Trabalho”. Afirmou em seguida que a igualdade nao se constr6i somente por intermédio das leis, pois “os funda- mentos sociais, econémicos politicos sobre os quais repousa a discrimina- 0 da trabalhadora sio profundos”; no entanto, “as mulheres também fazem arte da sociedade mogambicana”.” Em nenhuma oportunidade € contestada a concepgio de “emancipagio da mulher”, tomada de empréstimo a teoria social da Frelimo. Os discursos afirmam que as mulheres sio oprimidas pela sociedade “tra no qual foi educa estatuto dos co! de um semi Quando da abertura Ario dirigido as trabalhadoras, um secretério geral de um sindi cato nacional declarou que comité, em coordenagio com a direcio do sindicato, “guiard ¢ defenderd os destinos, os objetivos € os interesses socio- econdmicos e profissionais da trabalhadora, a fim de que a mulher possa enfrentar 0s obstaculos sem complexos”.* Esta referéncia remete ao que é Teme, 1996. Deseague met : Cosa (1996), Manjaze (1996s), Manjaze (19968), 196), Nhaca (1995), Simbine (1995), Tembe (1996), PARA LIBERTAR, chamado de “complexo de inferioridade da mulher” e que a Frelimo chama- va de “alienagéo da mulher”. ara buscar a origem e justificativa dessa posigio, € necessdrio fazer uma incursio a teoria social da Frelimo sobre a “emancipacao da mulher”. Se & certo que a igualdade das mulheres esté estabelecida como um direito uni- versal, no enunciado de princfpios e nos textos da lei, a diferenca €(re)fundada a partir do que. teoria social da Frelimo chama de “alienacao das mulheres”. Durante muito tempo oprimidas ¢ humilhadas — dizem os discursos —, as mulheres assumem a sua posi¢ao de dominadas e reproduzem-na. E realgada entio a necessidade de combater esta passividade e resignacao femininas, para ganhar as mulheres para a causa da luta. Embora se admita que os homens também tém “preconceitos” em relagio as mulheres, nunca se fala da “ rnagio dos homens”. A diferenca, assim construida, justificou uma emanci- Pacio distinta no tempo e sob orientagdo masculina,” antes de Ihes dar autonomia para decidir e agir em fungdo dos seus interesses. A diferenca é, pois, continuamente redefinida pela producao discursiva, sempre magnificada para legitimar uma exclusio renovada (Riot-Sarcey, 1993b). Esta ambiva- lencia, | durante a Juta armada (Arthur, 19983), reproduziu-se em cada novo contexto (Kruks, s/d). Assim € para os discursos dos sindicatos, elaborados em novos contex- tos, mas reproduzindo a ambivaléncia em relagio & “emancipagdo da mu- Iher”, contendo representacdes femininas contraditérias ¢ impondo a idéia de uma “tradigao de passividade” das mulheres, que ao mesmo tempo sus- tenta e legitima o poder masculino. Como afirmou um outro secretério-ge- ral, “a mulher € muito t{mida e lenta em todos os aspectos. Ela transporta cconsigo 0 ideal de doméstica. Ela € vulnerdvel a muitas tentagGes: € por isso ‘que procuramos integré-la”. Os discursos dos sindicatos devem ser lidos em dois registros. O primei- 10, piblico, é dirigido tanto ao interior quanto ao exterior, apresenta o que so os comités ¢ a sua importincia gundo nivel, o discurso, menos of exclusivamente interno, diz respeito "990 paride como a consciéncia das mulheres” (Gadant, 1 Jodo T, entrevista da autora, 1997. 1),

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