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Actas del II Congreso Internacional SEEPLU - Difundir l/a Lusofonia

Cáceres: SEEPLU / CILEM / LEPOLL, 2012.

O sentido do trágico em Antero de Quental


Maria João Seco – mjseco.seco@gmail.com
Escola Secundária D.João V
Alcino Pedrosa – alcinopedrosa@gmail.com
Instituto Pluridisciplinar de História das Ideias / UNL

Resumo
Antero de Quental, escritor, cidadão, filósofo, pensador oitocentista vive na
encruzilhada do seu tempo. A tragédia do fim do século português
encontra-se com a tragédia que marca a sua vida e se torna essencial para
compreender a sua obra e acção. A vida (e obra) de Antero é uma sucessão
contínua de chegadas e partidas, um recomeço constante, caracterizado,
como notou Oliveira Martins, por uma profunda e ambivalente
conflitualidade dialéctica entre o sentir trágico que experimenta e racionaliza
perante a impotência de não encontrar o que busca e o anseio renovado de
retomar o caminho.
Abstract
Antero of Quental, writer, citizen, philosopher, thinker from the nineteen
century lives in the crossroads of his time. The tragedy of the end of the
Portuguese century crosses with the tragedy which marks his life and it
becomes essential to understand his work and action. The life (and the work)
of Antero is a continuous succession of arrivals and departures, a constant
recommencement, characterized, as it inderlined Oliveira Martins, for a deep
and ambivalent dialectic conflict between the tragedy of not finding for what
it looks and the renewed wish of retaking the search of the justice.

Maria João Seco / Alcino Pedrosa. “O sentido do trágico em Antero de Quental”.


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Oh, como se alonga de ano em ano
A peregrinação cansada minha!
Como se encurta e ao fim caminha
Este meu breve e vão discurso humano

Vai-se gastando a idade e cresce o dano;


Perde-se-me um remédio que inda tinha;
Se por experiência se adivinha,
Qualquer grande esperança é grande
engano.

Corro após este bem que não se alcança;


No meio do caminho me falece;
Mil vezes caio e perco a confiança.

Quando ele foge, eu tardo; e na tardança,


Se os olhos ergo, a ver se inda aparece,
Da vista se me perde, e da esperança
(Camões 1913: 40)

Antero, cavaleiro andante


“Sonho que sou um cavaleiro andante” referirá num dos seus
mais belos sonetos. Se a entrada do texto nos atira, desde logo, para a
dimensão sonhada, é igualmente verdade que é da busca sonhada
(utópica, na área de uma imensa ânsia), da demanda de um Graal, do
caminho na senda do Bem, da Justiça, da Verdade, da felicidade
distante e de uma não menos longínqua perfeição que o texto fala. Ou
melhor, diz. Diz poeticamente de um “eu” que é cavaleiro e, portanto,
defensor de princípios e valores, de um peregrino que, na sua
errância terrena, decerto vida, certamente viagem, avista a luz e se
deixa, deslumbrado, seduzir por “sóis” que, embora estabelecidos (ou
por isso mesmo) no domínio da utopia e da esperança, são a mola
real da sua demanda tão feita de ideal como de vontade. Mas, no
poema, encontramos ainda o reverso da viagem solar, que é agora
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feita de provações, de obstáculos, de aridez, de noite e de desânimos;
esse ser errante que é o mendigo da “Ventura”, o poeta que procura
“anelante” um aéreo e mágico “ palácio”, aquele que prossegue e
persegue a beleza – o impalpável e imaterial –, colhe a dor do
atingido: em cada palácio, construção de si próprio por desejo e
necessidade, há decepção, pessimismo, silêncio. Ora parece-nos,
independentemente de outras especulações de carácter literário, que
o poema referido é de certa forma paradigmático do percurso do
autor que pensamos fazer-se em dois eixos fundamentais – um eixo a
que chamaríamos horizontal, de procura, na terra, no mundo; e um
eixo vertical, de maior religiosidade, no âmbito do sagrado, da
espiritualidade, do que transcende a matéria, melhor dizendo, do que
a incorpora e está para além dela.
A vida de Antero perfaz-se no entrecruzar desses eixos, que,
perpassando toda a sua obra, se revêem num horizonte de Verdade,
de Justiça e de Bem, atingível pela reflexão e pela acção, caminhos
que calcorreia como sabe e pode, na justa medida de um equilíbrio,
que considera “condição indispensável do seu trabalho” (Quental
1989: 729) e nem sempre consegue alcançar. Animado pelo princípio
de pensar criticamente para agir generosamente, Antero deixa-se
conduzir pela crença numa ética verdadeiramente estruturada, que
possibilite a autogestão dos seres humanos. Não obstante coabitem
no homem que é, como escreve, duas variáveis por natureza e
definição contraditórias – a natureza conservadora e o espírito
revolucionário – e entre si e a acção se interponha, recorrentemente,
um temperamento místico, que perturba ou melhor reorganiza a
consciência valorativa, a sua vida decorre sob um intenso desiderato
de elevação moral. Não é de estranhar, por isso, a constante
introspecção que o acompanha, que o leva a procurar dentro de si o

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que não logra encontrar fora de si, como se por esta via pudesse
encontrar a perfeição moral indispensável à sua criação.
Movido por um imperativo ético, que considera a fonte
originária e a principal determinante de libertação dos seres
humanos, Antero submete-se voluntaria e conscientemente a esta
introspecção, fazendo emergir o Prometeu racionalizador que nele
existe. Questiona-se: como pode dar a compreender o que se lhe vai
tornando incompreensível. Entregue ao trabalho especulativo,
confessa: “Sou agora o Prometeu dum Cáucaso em dois volumes:
estou amarrado em cima dele, e o abutre que me rói o fígado –
immortale jecout – é, diria Victor Hugo, a águia filosófica” (Quental
1989: 204).
Agrilhoado ao sonho, entre um presente que parece não ter
futuro e a muralha que o bloqueia, Antero identifica-se com o
cavaleiro andante, que, despojado de todo o egoísmo, se vê impelido
por uma ideia de regeneração e metamorfose, expressão de uma
“paideia” humanística, que o impele para a realização de grandes
tarefas, submetidas a uma condição sine qua non, que não é
necessariamente o “talento nem a ciência, nem a experiência, mas a
elevação moral, a virtude da altivez, a independência da alma e a
dignidade do pensamento e do carácter” (Quental 1982: 286),
sublinhando, por esta forma, a indissociabilidade entre a exigência de
uma autoconstrução moral e uma “poesis” existencial, susceptível de
lançar os alicerces para novos estados de construção humana.
No fundo do seu eu pensante – “fundo que já não é o eu, mas o
espírito humano” (Quental 1989: 101) – parece tomado de assalto por
uma sede indagadora de perguntar sobre si, sobre o mundo, sobre a
transcendência, vendo na poesia o território ideal para exprimir “a
nova imagem do mundo a que aspiramos” (Dionísio 1934: 69). A
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poesia – escreve – “é a confissão sincera do pensamento mais íntimo
de uma idade, do homem, é a voz da revolução, porque revolução é o
nome que o sacerdote da História, o tempo, deixou cair sobre a fonte
fatídica do nosso século” (Quental 1943: 151). Porventura, quererá
esta definição significar que a sinceridade do poeta, subjectivamente
considerada, implica a identificação profunda do vate com a essência
profunda do devir temporal, no momento em que lhe é dado viver; o
que faz com que a sua existência não se esgote no tempo presente,
antes o empurre para uma busca da verdade, da justiça e do bem,
“numa pesquisa sôfrega, que tanto o ilude, como desilude, tanto lhe
alimenta o sonho como o consome e faz dele um cavaleiro da
aventura e desventura, uma espécie de Quixote moderno que
combate moinhos que são resultado tanto da realidade que o tolhe
como da imaginação que o faz soltar” (Quental 1864: 12).

Interrogações de uma demanda


A demanda anteriana, desde cedo, se manifesta nas ávidas e
sucessivas leituras que o transportam para as ideias e se tornam
caminho para sabedoria e conhecimento, saídas para o
adormecimento que constata em tudo o que o rodeia. O país é o do
bom senso e o do bom gosto, ordeiro, satisfeito e cordato,
fundamentalmente indiferente a novas ideias, fechado no que se
chamou, a nível das letras, “escola do elogio mútuo”, atrasado na
mentalidade e no desenvolvimento, entretido com os pequenos
escândalos à escala doméstica: modo como se escamoteava a
discussão que, mais do que literária, era ideológica e política, entre o
conservadorismo e as tendências inconformistas que vinham dessa
Europa tornada mais próxima. Do desencanto, nasce a urgência de
uma modernidade que tarda em chegar, sobretudo porque o
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estatismo é rei do comportamento mental português. Na realidade,
acreditamos que o poeta terá sentido agudamente o “paroquialismo”,
essa centragem em interesses locais que a periferia e pequenez do
país potencia, essa visão fechada e redutora, talvez “a choldra
ignóbil”, como implacavelmente lhe chamou Eça de Queirós1, causa
de uma decadência que é urgente vencer; percepcionados e
compreendidos os motivos que vê como superáveis, inaugura um
movimento de ruptura que é da ordem do pensamento, da acção e da
voz, seja ela poética ou não. O que equivale a dizer que ao imobilismo
oporá o movimento contínuo, fruto da curiosidade inesgotável que o
leva a submeter a escrutínio ideias ou filosofias alheias, analisadas e
pensadas como hipóteses viáveis. “Tacteia” a multiplicidade de
caminhos, primeiro na ânsia de modificar a sociedade que o rodeia
pelo combate ideológico, político, depois, pela procura do homem
“todo” voltando-se mais para o “em si”, pois é em si que ensaia os
degraus da elevação, de uma ascese que tem a finalidade de
encontrar o Ser, ou melhor dizendo, de encontrar o Homem – deus-
de-si-próprio, entidade suprema e livre que “é” e “não é”. Numa
visão que retoma (considerados os limites desta afirmação) o
antropocentrismo humanista e clássico, o poeta-pensador
compreenderá que nenhuma sociedade muda sem a alteração interior
                                                                                                                         
1 Atente-se na corrosiva citação que, de certa forma, reflecte o ambiente da Coimbra
da época; note-se a alusão à personagem de um poeta, “Trovão e socialista” que
quadra a Antero: “Ao princípio este esplendor tornou Carlos venerado dos
fidalgotes, mas suspeito aos democratas; quando se soube, porém, que o dono destes
confortos lia Proudhon, Augusto Comte, Herbert Spencer,e considerava também o
país uma choldra ignóbil — os mais rígidos revolucionários começaram a vir aos
Paços de Celas tão familiarmente como ao quarto do Trovão, o poeta boémio, o duro
socialista, que tinha apenas por mobília uma enxerga e uma Bíblia. Ao fim de alguns
meses, Carlos, simpático a todos, conciliara dandies e filósofos (…)” (Queirós 1988:
74).
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do ser humano, sem uma nova mentalidade, sem um pensamento
que se estruture para fora, para dentro e para cima: um pensamento
que “sinta” e convoque consciência, irradiando os princípios e valores
que constroem esse Ser que se expande para melhor ser Um. Teixeira
de Pascoaes di-lo-á de outro modo e noutro momento:
O aperfeiçoamento da Humanidade depende do aperfeiçoamento
de cada um dos indivíduos que a formam. Enquanto as partes
não forem boas, o todo não pode ser bom. Os homens, na sua
maioria, são ainda maus e é, por isso, que a sociedade enferma de
tantos males. Não foi a sociedade que fez os homens; foram os
homens que fizeram a sociedade. Quando os homens se tornarem
bons, a sociedade tornar-se-á boa, sejam quais forem as bases
políticas e económicas em que ela assente. Dizia um bispo francês
que preferia um bom muçulmano a um mau cristão. Assim deve
ser. As instituições aparecem com as virtudes ou com os defeitos
dos homens que as representam (Pascoaes 1998: 123).

Profundo conhecedor das filosofias e das ideologias da Europa,


mas independente de espírito, Antero ousará pensar, pensar o país e
pensar-se, em liberdade de espírito, numa atitude de reflexão que
procura fundar uma nova mentalidade, em obra e em acção, o que
equivale a dizer pela palavra do poeta lírico, pela palavra do ensaísta,
pelo pensamento que nas duas se espelha, pelo activismo. Na
mobilidade do seu pensamento se rompe com a limitação e a
subserviência a um pensamento dirigido e focado, provinciano.
Antero – e com ele uma geração evoluída e crítica – absorve o que lá
fora vai surgindo, vê de fora e procura intelectualmente reformar,
partindo sem cessar em “viagens” mentais, espirituais, regressando,
repensando, subindo a escada; afinal, as novas ideias são degraus
para outras tantas interrogações, uma vez que não existem produtos
acabados no seu pensamento – existe a inquietação humana, existem
críticas, novas reflexões, rectificações, tentativas de outros percursos,

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dinamismo, novas possibilidades. Como o homem da ciência, que vê
o provisório em cada conclusão e nela a semente de outra descoberta
“a haver”, como um explorador, que viaja até aos extremos limites do
território cultural em que o seu ideário se move, enquanto pôde
mover-se. Pois bem: quais as coordenadas deste território? Quais os
caminhos que, como cavaleiro andante, calcorreia em busca do sonho
que, simultaneamente, o anima e o atormenta? Questões que se
colocam a Antero e que ele coloca ao leitor, não de forma directa, mas
de uma forma labiríntica, como se necessitasse dele para encontrar o
caminho para saída. “O que penso, o que escrevo – escreve – só terá
sentido e continuidade se os que lerem encontrarem nestes textos as
saídas de caminhos que parecem fechados e nebulosos” (Quental
1864: 11).
Antero vai-se interrogando no labirinto (ou labirintos) das suas
entrecruzadas ansiedades, dilacerado por uma angústia que o conduz
e persegue, mas não o impede de antever e lograr o que outros
contemporâneos não conseguiram. No futuro, reconhece, outros
veriam mais longe, à sombra do seu tempo e da sua obra,
acrescentámos nós2. O que, de certa forma, explica a transcrição do
hino espartano, com que abre o texto O poeta e o seu tempo: “Somos o
que foste, seremos o que sois” (Quental 1864: 2).
Ponte, leitura e interpretação do passado, leitura e interpretação
compreensiva do presente à luz, não apenas do ouro3 que se prolonga

                                                                                                                         
2 A obra de Antero tal como uma árvore tem as suas folhas, tronco e raízes e são estas

que tornam a copa frondosa para que à sua sombra possam meditar os viajantes que
na sua viagem por ela passam, tantas vezes ocultos como as raízes por onde corre a
seiva da vida.
3 “A herança do passado” – escreve Antero – “é um legado que o homem não pode

desprezar. Camões, Sá de Miranda, Gil Vicente e, mais recentemente, Bocage


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desse passado, mas também do impulso modernizador de uma
inteligência aglutinadora, a obra anteriana abre-se hoje como se abrirá
no futuro, porque persiste como pluralidade questionante que não se
prendeu a um tempo nem a um dogma, porque, depois da decepção
com a terra se volta para o ar, o impalpável, se refere à existência que
ultrapassa o aqui e o agora. Por muito que Antero tenha buscado a
unidade e o sistema, a sua palavra poética, conjugadora do sentir e do
pensar, imbuída de ideias, especuladora de filosofias alheias, ergue-se
ainda como imaginação e, contrariando o pessimismo, oferece-se à
esperança, escapando ao concreto dos resultados imediatos que
ficam presos na História. Melhor dizendo, são as perguntas que
permanecem – por serem de sempre, por não se encontrarem presas à
arbitrariedade e às contingências de um tempo, antes por
configurarem a inquietação humana, do anjo caído e inconformado,
rebelde e assertivo que, sendo, existindo, escolhendo, perguntando,
está sozinho diante de si, consciente de si, crendo e querendo ser
capaz de (ou ambicionando como possível) atingir um conhecimento
pleno de verdades mais autênticas e justas, a perfectibilidade e, com
ela, a plenitude e a transcendência, sem princípio nem fim.

Antero: o poeta-herói
Pensemos em Dédalo ou em Ícaro, no sonho de libertação do
labirinto e no aéreo voo de desafio a uma condição a que o
fechamento impõe limites. Em Antero, o voo libertador é plural.

                                                                                                                         

deixaram-nos verdadeiros pingos de ouro, aos quais, nós, quais alquimistas do


pensamento, devemos dar um novo significado, conferindo, por esta forma um
alento e sentido a uma cultura, que deve ser libertadora do homem” (Quental 1864:
12).
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Considerando a espiral da deambulação perscrutinadora do
autor, sempre realizada em movimentos que se inter-relacionam e
complementam, é na ida e volta para um “lá fora” que se dispõe a
modificar o acriticismo de âmbito local e limitado, trazendo visões
diferentes que possibilitem uma melhor compreensão do seu
“mundo”, isto é, do seu próprio país.
Trata-se, primeiro, a dádiva da luz e do fogo, na terra, para a
terra, indo do sonho utópico bebido longe que transforma em dádiva
de si aos outros. Falamos do Antero jovem, esse novo “Messias” para
a geração de Coimbra, que se manifesta combativamente e em tom
panfletário nas Odes Modernas, que defende a poesia como “voz da
revolução”, ideologicamente empenhado na reforma do corpo social
pela renovação social, histórica, política, de uma sociedade civil que
deseja mais esclarecida, evoluída e actuante. É o Antero combativo,
que elegeu a justiça como ponto cardeal do seu pensamento e que
aspira a um mundo diferente (um mundo que parece perto, tal como
é desenhado no imaginário socialista), mas que, a um nível mais
profundo, deixa entrever uma outra ruptura, mais cultural do que
mental, que parte do pressuposto que o universo é uma totalidade
evoluente, composta por uma hierarquia de esferas, cujo vértice só o
homem pode ocupar
Assumindo a “missão revolucionária da poesia” exposta na
nota posfacial (onde formula também uma concepção socialmente
militante da missão do poeta), este “Soldado do Futuro” propõe
“combater, à grande luz da História, os combates eternos da Justiça”
a que juntará a Razão, a Liberdade, a Verdade, saídas apontadas pelo
poeta “pesquisador” de ideias no rumo para a modernidade e
evolução de um país de que interpreta o atraso. Para tal, a primeira
acção é a insurreição que o poeta figura na poesia, uma rebeldia que é

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voo do pensamento. Mediante o poema, o poeta-herói chama o
sangue de outros heróis, atravessa o fatalismo da História para
anunciar os trabalhos a vencer, os obstáculos a transpor, a viagem
épica para a conquista / apropriação de uma “ideia nova” que é
aquela de que precisa a “gasta” cultura (portuguesa, europeia) “ para
se regenerar” – eis o “novo credo humanitário”. Se o “mundo novo é
toda uma alma nova, um homem novo, um Deus desconhecido”
(Quental 1875: 100), se “o Evangelho novo é a bíblia da Igualdade:
Justiça, é esse o tema imenso do sermão” (Quental 1875: 111), então, o
escritor é o profeta, o que revela e antecipa “as imensas auroras do
Futuro” (Quental 1875: 83).
É na sua consciência, como escritor, poeta-herói, que Antero
desenvolve as ideias de evolução / renovação (que considera
inseparáveis), acreditando que, após o apelo, depois do despertar da
consciência e o vislumbre da terra, a “terra árida e bruta” será
fecundada “pelo sangue dos heróis” e a utopia socialista será
possibilitada, na senda e no evoluir de uma espiritualidade que já
assumira relevo nas obras de Garrett e de Herculano, mas que fora
degradada pela marcha do “trabalho secular das raças”. Ou não fosse
a história “essa Penélope sombria que leva as noites desmanchando a
teia / que suas mãos urdiram todos o dia”. (Quental 1875: 15) A
renovação aparece como elemento moral e nessa acepção o desiderato
de mudança soa como um permanente apelo da vitória da
espiritualidade sobre o naturalismo, do bem sobre o egoísmo, da
Ideia sobre a matéria.
O trágico é a pergunta “Quem és tu?”, formulada por outra
utopia, que deverá mover continuamente o homem, continuar sem
resposta, no tristíssimo espectáculo de materialidade que é seu
tempo, espaço que nega “O vivo altar onde comungue a terra”

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(Quental 1875: 18). Não será, assim, de admirar, que Antero tenha
visto na figura do santo, e não na do filósofo ou do político, e no
Verbo, como princípio criador, as expressões existenciais mais
coerentes e iluminadoras, porque nelas se funda a filosofia com a
própria vida.

No princípio era o Verbo


Recordando as primeiras palavras do Evangelho de S. João:
“No princípio era o Verbo”, encontramos, nesta concepção, o acto
poético como um logos que, unindo pensamento (interior) e palavra
(exterior), é uno, é criação que, por seu turno, frutifica na criação de
um mundo que é novo, tão só porque se vê corrigido (sublinhado
nosso).
O acto criador expressa, deste modo, a multiplicidade de
movimentos com os quais se pretende, em última instância,
atingir a gnose, porque ao que sofreu o “baptismo dos poetas” foi
revelada a “Beleza que não morre” (Gonçalves 1981: 132) e o belo
prefigurado busca a forma que será reencarnação da ideia,
lirismo puro, fruto do sentir e da inteligência. Porque também na
doutrinação estética anteriana surge o pendor totalizante que o
move na procura da síntese de contrários. Se há, na sua obra, o
que ele próprio toma por poesia mais simples, na ordem da
doutrinação, vazada nas odes, se esse eixo é o eixo inicial da
mudança do mundo e dos outros, se é apelo e missionação, será
no soneto - que elege como forma superior da palavra poética -
que mais atomiza, que mais fragmenta para ascender ao uno. Nos
sonetos, são nítidas as interrogações filosóficas, e neles se
imprimiu o drama de quem trabalha o sentimento, para o
objectivar e impessoalizar, para pesquisar “além de”,
formalizando a pergunta primordial do que é ser, ainda que o ser
se desdobre em perguntas de caminhos vários e, na consciência

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de não-ser, procure o reencontro com o transcendente, a matriz, a
origem, a totalidade infinita. Logo, as resposta, sendo da ordem
do universal também o são da ética e da metafísica. Para tal, “o
poeta toma conhecimento do que lhe vai na alma; estuda-se no
íntimo; tem consciência dos factos do espírito e deixa a
inteligência retrata(r) como pode, esse estranho que lhe entrou
em casa” (Quadros 1992: 42). Em seguida, a inteligência forma
ideia do sentimento, e é então que o belo todo, já “desfigurado
no retrato do inhábil fotógrafo se vai vestir na forma unificadora
que considerou a mais pura – o soneto, onde encontrou a
estrutura dialéctica capaz de fazer ascender os conceitos nascidos
da observação e da reflexão ou dos juízos de valor sobre a
existência problemática do homem neste mundo até uma
conclusão de ordem metafísica” (Quadros 1992: 42).

Nesta ordem de ideias, o Belo assume-se como a expressão


mais sublime do Bem, “porque introduz a ordem na diversidade, o
todo nos elementos fragmentados, conferindo-lhes harmonia e
equilíbrio” (Quental 1864: 14). Se a ética é mola propulsora para
revolução social, a estética será a sua parceira ideal no vislumbrar do
mundo novo. Unindo a dimensão ética com a estética num processo
inclusivo, o poeta salienta a importância da primeira, pelo
desenvolvimento dos valores e das virtudes que potencia e a
imprescindibilidade da segunda, pelos estímulos à criatividade, sem
a qual a ordem e a harmonia não passam de uma pura ilusão, “que
lança o homem no erro e o afasta do caminho da verdade” (Quental
1864: 15).

O pensamento – escreve – é como o ar puro que respiramos: belo


e essencial, etéreo e vital (…) Desenganem-se os que intentam
separar a estética da ética (…) A perfeição e a beleza são
inseparáveis porque dão forma ao pensamento e acção do

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homem, conferindo ao Bem a dimensão de Belo. O que nos deixa
perante uma inquietação constante, à qual temos de responder.
Por esta via, o homem atinge a sua verdadeira dimensão integral
e por esta via, também, o homem encontra na prossecução do
Bem o fim último do seu ideal. Se quereis sintetizar este
princípio, podereis pensar que o Belo está para o Bem, como a
ciência para a verdade científica” (Quental 1864: 15).

Ao admitir a inseparabilidade da ética e da estética, Antero


introduz, por esta forma, uma inflexão nova no esquema hegeliano: a
ideia de que o Belo é uma forma de acordo feliz e, por assim dizer,
inesperada entre as nossas faculdades (sensibilidade, imaginação,
entendimento) que, não desprezando a relatividade e subjectividade
do conhecimento, assegura uma universalidade conceitual.

O progresso como exigência ética


Ao identificar o Bem e o Belo, com o sentido último da
demanda humana, Antero parte do princípio que o homem vive em
busca de equilíbrios e, como força inteligente e sensível que é, na
impossibilidade de os restabelecer, cria para si um novo mundo.
Ante as imperfeições da realidade que o rodeia, o poeta
questiona-se: “O que é vital para o homem? (…) Conhecer-se a si e à
realidade (Quental 1864: 15), responde. E continua:
Só pela consciência do que é o Bem e Justo se percepciona o Belo
que subjaz à realidade, pois só neste acto de consciencialização
reside a noção do que deve ser o destino do homem, enquanto ser
vivo. Só desta forma ele perceberá o que é contingente e
necessário, o que é o real e o ideal, o que é viver e dar um sentido
à vida. E, sabendo distinguir estes elementos, saberá
necessariamente o significado do fim último que o espera
(Quental 1864: 15).

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Na visão moral do mundo anteriano, o homem é, antes de mais,
compreendido na mediação entre o que é e o que deveria ser, entre a
Realidade e o Absoluto, entre o presente e o futuro. É um homem em
construção e construtor, é criador e criação, um ser animado de
espírito e vida, que, pelo trabalho e aperfeiçoamento atinge a
felicidade. Este conceito de Homem em permanente devir, se, por um
lado, ultrapassa o fatalismo inerente à abstracção materialista (que
aposta na revolução “violenta” como força de transformação), por
outro, pressupõe uma concepção de progresso que se funda na
constante superação do instinto pela reflexão, do ser social pelo ideal.
A evolução e regeneração da sociedade exigiria, assim, um acréscimo
interventivo do espírito humano, o que leva Antero a questionar-se
“se o progresso do universo não corresponde à criação de um outro
universo” (Quental 1864: 15).
Concedido desta forma, como um facto de ordem moral, o ideal
de progresso anteriano deixa pressupor a crença na possibilidade de
criação de uma sociedade mais justa, através da regeneração do mal
ou da superação do egoísmo, sublinhando, na senda do humanismo
francês oitocentista, uma ligação intrínseca entre a justiça e o amor,
irmãos da razão. O poeta iria, no entanto, mais longe ao identificar a
“justiça perfeita” como uma exigência de ordem ética e moral, que
deve mover o “pensamento e as acções do homem, tendo em conta o
ideal de felicidade que persegue a humanidade” (Quental 1864: 13). A
ética, virtude capital do homem, ao ser transformada em princípio
constitutivo da acção humana e lei, transfigurar-se-ia, desta forma,
em exigência social. Estaria para a esfera ideal ou o mundo espiritual,
como a justiça para o mundo temporal – seria lei e princípio de
horizontes distintos. Na perspectiva anteriana, as duas esferas
conciliar-se-iam no cumprimento da finalidade ética.

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Pelo dever, como exigência de carácter ético e social, a Justiça
torna-se na suprema expresão do Bem, princípio em que se funda,
mas não se esgota. O que faz do primeiro princípio ( ), também o fim
( ) de todas as coisas, pois é a demanda do bem que move o homem
e o drama da vida humana só terá o seu fim quando este estádio for
alcançado.
Ora, esta aspiração de Antero, se, por um lado, dá, ou melhor,
ordena, organiza o seu pensamento, por outro, perante o
antagonismo da realidade em que se move, não deixa de o perturbar,
lançando-lhe indagações permanente, que, ao fim e ao cabo, como
reconhece demonstram as “fragilidades do ser humano” (Quental
1864: 13).

Ecce Homo. Eis o Homem.


Por sê-lo, Antero assumirá em pleno essa condição, sem cessar
de perguntar – quantas vezes em agónica aflição – sobre a vida, sobre
a existência, sobre o ser criado que é, sobre o criador, esse Outro de
quem jamais obterá resposta e de cujo reflexo se apercebe (ou
precisa), no espelho em que se olha. Esse “tu”, pai mudo, distante e
negado4 pelo desafio que constitui, desde cedo, a assunção plena da
sua consciente humanidade, é ausência dolorosa, enigma a que a sua
sabedoria aspira, parte sem a qual a espiritualidade permanecerá
incompleta.5 A “rosa dos ventos”6 toma a direcção do alto,

                                                                                                                         
4 “Se há pai, que estenda sobre nós o manto / Do amor piedoso que eu não sinto

agora (Quental 1886: 11).


5 “Nenhuma montanha tão alta, aonde a olho nu se aviste Deus, como o voo desta

frase, a maior revelação que jamais ouvirá o mundo – dentro do homem está Deus”
(Quental 1982: 201).
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relacionando este “cá” com a sede de um “lá” que lhe complete a
alma, um “lá” que possa responder ao desespero da finitude, possa
responder à angústia da morte e dar sentido à vida no seu todo. A
procura será “vestida” com a roupagem de uma estética com que vai
ordenando o caos, mediante o acto criador: pensamento para o qual
convergem consciência, sentimento (sentimentos), intuições, e a que o
autor “empresta” uma linguagem que lhe/nos é mais próxima, a da
religiosidade, mobilizando-se em torno de conceitos e dúvidas,
angústias e perguntas que são universais, intemporais. Eis, também, o
tempo que se escoa – o tempo de que, como qualquer outro homem,
dispõe, o tempo em que tem plena consciência da morte, dos seus
limites terrenos, um tempo que é “via crucis” pelo absurdo de ser
para nada, o tempo em que “o mal é ter nascido”, o tempo acordado,
fora “do nada e do que ainda não existe” (Quental 1886: 18). Um
tempo inútil? Será, pelo menos, o tempo de “ser triste” (Quental 1886:
18), do desassossego, do calvário e da demanda de um Graal
idealizado, buscado por desejo até ao limite da força e da energia de
um humaníssimo e sentido pensar, em privação do Outro, atingível
por crença, mas reexaminado e tornado invisível pelo que sabe, ainda
assim urgência de espiritualidade, tempo saudoso do antes de ser,
não dividido. Pessoa não dirá menos do cansaço desta caminhada e
da tentação de desistência, de sono e paz:
Se eu um dia pudesse adquirir um rasgo tão grande de
expressão, que concentrasse toda a arte em mim, escreveria uma
apoteose do sono. Não sei de prazer maior, em toda a minha vida,
que poder dormir. O apagamento integral da vida e da alma, o
afastamento completo de tudo quanto é seres e gente, e noite sem
                                                                                                                         
6“Sujeito pensante, aprendiz de talento, espécie de rosa dos ventos relativamente às
preocupações do meu tempo, eis o que sou" (Quental 1864: 3). Assim se define
Antero.
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memória nem ilusão, o não ser passado nem futuro (Pessoa 1982:
338).

Diferente, Antero explorará vias mais pessoais, volúvel e


dispersamente, percorrendo o “mundo inteligível” em constante
avaliação das hipóteses de feição ontológica, crendo e descrendo,
facto que lhe provoca o estado permanente de pathos enquanto ser
relativo, contingente, num mundo contingente e relativo. Separado
da origem ou (para usar uma expressão do imaginário metafísico) da
luz, sempre em viagem “pelo caminho estreito” (Quental 1886: 90),
trava o seu humano combate de compreensão desse ignoto deo
(Quental 1886: 3) e prossegue na direcção de uma união com o
espírito, que é força espontânea e consciente. A porta do ser abre-lhe
a porta do Não-ser, a oriente, um oriente que já de si está contido na
etimologia da palavra, uma vez que orior significa origem, eôs,
aurora e éon, ente. Nesta demanda, Antero aspira ao encontro do
Ocidente e do Oriente, do fim e do princípio, para que o mundo se
possa consumar como o reencontrado paraíso de que a humanidade
fugira para poder haver pecado e história.
A caminhada foi, contudo, longa. Como um Cristo real - que é
imagem histórica e culturalmente interiorizada - proferiu as palavras
do fel (“Pai, pai, porque me abandonaste?”) e acreditou na
capacidade modificadora do “novo” evangelho, ou seja, combateu
deslumbrado pela reforma e justiça sociais. Tentou insuflar “a alma
colectiva de uma época” no ser pátrio e viu-o, ainda, entregue ao
materialismo de Sancho, sem que princípios, valores, tivessem
modificado – de facto –, sem que a sua própria acção alterasse – Ah!
L’enfer c’est les autres! (Sartre 2010) –, em termos práticos, um país que
não se reconhecia naquele ou noutro evangelho, que não se
solucionava, não escolhia, não se “via”. Estruturalmente religioso,

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desencantado com os resultados imediatos da sua intervenção sobre a
realidade circundante, amargurado com o ser-social, Antero explora
autores múltiplos, argumenta, desafia, busca fugir ao seu destino,
construir um caminho alternativo para a vida, baseado nas suas
ponderações; enfrenta o “Céu intemerato e cristalino” onde (a
dúvida, o cepticismo, marcam-se no poema) “Pode habitar talvez um
Deus distante” e opõe-lhe, na terra, “A ideia [que] encarna em peitos
que palpitam” (Quental 1886: 67). Vê-se no dilema de crer ou no
tempo, e consequentemente na História, ou no Eterno. Mas afasta-se
da ideia que já não sabe o que vale, porque nunca assentiu
acriticamente nem ajoelhou diante de qualquer gelo dogmático e
porque tudo reexamina pela “Razão, irmã do Amor e da Justiça,”
onde emerge “a voz dum coração que te apetece,/ Duma alma livre,
só a ti submissa” (Quental 1886: 71). Antero pode cair e – todavia -
ergue-se, investiga, voa, em nome “da liberdade moral e da
consciência” (Sérgio 2001: 61), da intervenção do espírito e da sua
força na construção da humanidade que foi a sua e é a nossa. “Sob
todas as contradições e desordens, houve porém um sentimento que
unificou a sua vida e a sua obra: foi a aspiração moral, o enlevo do
bem, o entusiasmo da justiça” (Sérgio 2011: 61). Se na essência da
tragédia, resta ao herói, muitas vezes e a bem da verdade, a simples
certeza de ter podido escolher, rebelando-se contra vontades divinas
em benefício da vontade humana, marcando o momento da acção e
da afirmação do homem diante de uma qualquer inevitabilidade, a
amplitude da interrogação anteriana, multifacetada e fragmentária,
dinâmica, é trágica até pela vivência do drama íntimo, interiorizado,
que o dilacera pois, “vagabundo do mistério,(...) peregrino do
infinito, mago que partiu à consulta das estrelas, (...) não transportou
a verdade que, afinal, transportava em si” (Fava 2008: 136). Se

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desespera, se (como Camões) quase amaldiçoa o dia em que nasceu e
pergunta “Valia a pena, acaso, em ansiedade/Ter nascido?” (Quental
1880: 21), se “Só vê com tédio, em tudo quanto fita,/ A ilusão e o
vazio universais” (Quental: 1880: 31), se procura a paz do “Não-ser
que é “o Ser único absoluto” (Quental 1880: 31), se aspira ao repouso
no eterno feminino, ao descanso na “mão direita” de Deus, se
ironicamente traz à tragédia da interrogação do ser divino uma outra
Divina Comédia na qual “os deuses, com voz inda mais
triste,/Dizem: - «Homens! porque é que nos criastes?” (Quental 1880:
31), se – para parafrasear um verso de Evolução – interroga o
infinito e às vezes chora, se o desespero surge na sua interminável
viagem de caminhante da vida, é porque esses são os passos do que
transporta a cruz de existir e pergunta sempre “porquê”, um porquê
que infindavelmente repete nas aéreas viagens cujo círculo não
encerra por serem estas as perguntas sem resposta, mas à procura-de-
resposta do Homem, inacabada inquietação daquele que pensa. Di-lo-
á, aliás:
Penso, inquieto-me.... e volto a pensar, mas antes senti... senti a
vontade de conhecer, senti o medo de não saber, senti o medo da
inquietação, mas o medo que mais me tolheu foi o não ter
conseguido atingir a ideia que perseguia. Pergunto-me porque
[me] criou Deus à sua imagem se não me deu o poder de
conhecimento absoluto. A resposta é só uma: criei-me homem,
homem divinizado, que tem na capacidade de falhar a
característica principal. Mas falhar não é o início da verdade?”
(Quental 1864: 16).

Terá falhado a impossível resposta única no seu exercício de


questionador, mas, se tragédia assenta ainda nas escolhas a partir do
binómio bondade/maldade, sabemos que nunca desistirá de um ideal
de perfeição e, sobretudo, de harmonia que seja solução para o conflito
insanável do homem que interroga Ser e Não-ser. Afinal, encontra, no
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“negro corcel” da Morte, o “cavaleiro de expressão potente,/
Formidável, mas plácido, no porte” (Quental 1886: 78), o Amor,
expressão última da pacificação que une Beleza, Bem, Fraternidade e
Justiça universais. “Verdade. A religião chama-lhe Deus: a Ciência
chama-lhe Ideia. Mas ambas por várias estradas, com vário passo,
caminham para esse desconhecido, e é uma voz de comando também
desconhecida que as faz andar e precipitar-se – o sentimento do infinito”
(Quental 1923: 324). Que é sentimento, trágico, dizemos nós. Na música
de Orfeu.
Orpheu
seu canto alto e grave
O canto de oiro o êxtase da lira
Orpheu
A palidez sagrada de seu rosto
Que de clarões e sombras se ilumina (Andresen 1994: 23)

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