Você está na página 1de 28
Aspectos da teoria geral do processo constitucional: teoria da separagao de poderes e fungoes do Estado José Aurnepo pe Otaverka BARACHO Diretor da Faculdade de Direlto da Uni- versidade Federal de Minas Gerais INTRODUGAO O exame dos pressupostos de uma teoria geral do processo constitucional tem merecido diversos estudos na doutrina estrangeira. Definir seus princfpios operas constitui tema central que possibilita mostrar a viabilidade de seu objeto. As indagagdes em torno da teoria dos controles constitucionais, da teoria da inconstitucionalidade, de declaragao de inconstitucionalidade, revisio judi- cial da constitucionalidade das leis fornecem elementos nos quais sio encon- tradas as origens do processo constitucional moderno. O problema do conflito entre a lei fundamental do Estado, que decorre da superioridade das normas constitucionais sobre as leis ordindrias, decretos ¢ atos administrativos, que devem acomodar-se aos Jimites tragados Cons- tituigdes e a defesa dos direitos individuais contra os excessos do publico, constitui tema fundamental para corrigir os diversos excessos de atuagio da atividade estatal em nossos dias, O controle dos poderes piblicos torna-se tema de interesse permanente, quando destaca-se a necessidade em conciliar a liberdade e a autoridade, Man- tin Pérez Guevara acentua que, a partir da Revolugio Francesa e desde quando Mowrtesquru aponta o principio da separagao dos poderes como instrumento essencial para assegurar a liberdade e as garantias do homem e do cidadio, 0 controle passa a ser um dos temas fundamentais do Direito Publico. Os sistemas de controle esto vinculados as indagagdes em tomo de re- gime politico, forma de Estado, sistema de governo, desde que os seus meca- nismos sdo bem diferentes quando nos atentamos para um governo autoritério ou um democritico, As autocracias sio refratérias a qualquer forma de con- trole, pois siio constantes em suprimir os obstéculos que intervenham em seu R. Inf. legisl. Brasilia a. 19 n. 76 out./dez, 1982 oF poder discriciondrio. Ao passo que os regimes democraticos, assentados na lei. aceitam as formas de controle como instrumento da paz, da justiga e dos va- lores que informam o regime democratico (1). Os sistemas ou instrumentos de controle, que se efetivam por meio de me- canismo ou técnicas, que visam a assegurar que os detentores do poder atuem dentro da Constituigao e das leis, constituem teme essencial na oportunidade em que o Estado contemporaneo, ao lado das criticas que The sio postas no ape toca & sua estrutura tradicional, amplia suas diversas formas de atuagio ireta ou indireta. A revisiio judicial da constitucionalidade das leis, de acordo com o sistema anglo-americano, foi tida como uma das manifestagdes que englobavam a racio- nalizagéo do poder, nos termos em que toi proposta por Bonus Minxrye-Guet- ‘ZEVITCH, Hacror Fix-Zamunio, em trabalhos que revelam o rico material recolhido em varios anos de indagagdes em torno do assunto, adverte que até a I Grande Guerra Mundial, havia acentuada tendéncia para a aceitagdo dos instrumentos anglo-americanos de controle, se bem que ndo apresentassem os caracteres espectficos de tutela dos direitos humanos, mas apenas daqueles relatives ao controle da constitucionalidade das leis, que sio os compreendidos na revisio judicial. Cart Scumirr, pouco afinado com a intervengao dos tribunais no con- trole constitucional dos atos de autoridade, afirmava que o modelo anglo-ame- ricano, Particularmente 0 fixado através da Corte Suprema dos Estados Uni- dos, transformou-se em uma espécie de mito. O sistema defendido por Hans Ka1sen orientou-se no sentido de estabelecer um tribunal constitucional espe- cializad’o, como competéncia exclusiva para o conhecimento de questées cons- titucionais, isto 6, o Tribunal ou Corte Constitucional, implantado nas Consti- tuigdes da Austria e Tcheco-Eslovdquia, que formam as duas tendéncias denomi- nadas de americana ¢ austriaca, do controle da constitucionalidade dos atos de autoridade, e disputavam a primazia nos anos seguintes a primeira pés-guerra. Com a queda de regimes autoritdrios, apés a II Guerra Mundial, ocorreu a ten- déncia para os tribunais constitucionais especializados (#). O controle de constitucionalidade das leis tem sido alvo de diversas pes- quisas que procuram situar os precedentes histéricos desse instituto (*), repre- (1) GUEVARA, Martin Pérez, “Bases Normativas del Control Jurisdicional de los Poderes Piiblicos en Venezuela”, El Control Jurisdivional de los Poderes Pubiicos en Venezuela, obra coletiva, Instituto de Derecho Publico, Universidad Central de ‘Venezuela, Caracas, 1979, pp. 15 € 58. (2) FIX-ZAMUDIO, Héctor, “Los Instrumentos Procesales Internos de Proteocién. de los Derechos Humangs en los Ordenamientos de Europa Continental y su In- Mluencla en Otros Paises”, Boletin Mezicano de Derecho Comparado, Nova Série, Ano XII, n° 35, malo/agosto 1979 — UNAM, Instituto de Investigaciones Juridicas, ‘Universidad Nacional Autonoma de México, pp. 337 ¢ ss. (3) BATTAGLINI, Mario, Contributi alla Storia del Controlio di Costituzionalita delle Leggi, Dott. A. Giuffré — Editore, Milko, 1957. 8 R Inf. legisl. Brasilia a. 19 n. 76 aut/der. 1982 senta grande passo na evolugio do constitucionalismo moderno, sendo corolirio da supremacia constitucional e fundamento para defesa da Constituigéo. Seu desenvolvimento deu suporte para o florescimento de uma justiga que, através de determinado processo, define a aplicagdo e vigdncia de preceitos constitu- cionais essenciais ao estado de direito democratico. Em 1963, foi publicado em lingua espanhola, pela Faculdade de Direito da Universidad Nacional Autonoma de México, importante trabalho do cons- titucionalista americano James A. C. Grant, no qual foi exposta a tese de que © controle jurisdicional da constitucionalidade das leis, que recebe na termino- logia inglesa a denominagio judicial review of legislation, 6 uma contribuigéo da América A Ciéncia Politica. Para esse autor, a confianga nos tribunais para fazer cumprir a Constituigio como norma superior as leis estabelecidas na legis- latura nacional operou-se gragas ao seu surgimento ali, realizado no século XII, para difundir-se posteriormente em outros Estados (4). A falta de instrumentos processuais adequados A protegfio direta dos di- reitos fundamentais da pessoa humana, consagrados constitucionalmente, como preceitos individuais e de caréter social, torna-se diariamente mais importante. ‘Ampliar seus meios de intervengio leva-nos a refletir sobre a conveniéncia da fixagdo de remédios processuais de tutela direta c especifica das liberdades fundamentais. Os instrumentos tutelares dos direitos humanos adquirem particular im- portancia no Estado constitucional democrdtico, que deve promover, através de um sistema de prineipios e regras processuais, o aperfeigoamento da ordem juridica, com o limite e controle do poder estatal. Tal perspectiva nfo se con- tenta apenas com um estado de direito formal, que pode aceitar apenas o império das leis, em um Estado legalista, mas garante as formas de atuacio estatal. Em sentido material, o Estado de Direito assegura a liberdade do indi- viduo, através de um conjunto de direitos individuais, sendo primordialmente direitos de defesa frente ao Estado, assim como barreitas e diretrizes para que ocorra limitagdo da sua atuagio (). Mauro Capreiierrr, ao examinar a jurisdicdo constitucional da liberdade, mostra que esses direitos, em geral, sio protegidos de maneira direta, pela im- pugnagio de leis que afetam os direitos essenciais da pessoa humana, definidos constitucionalmente, mas com deficiéncia de tutela (*). (4) GRANT, James A, C., “El Control Jurisdicional de 1x Constitucionalidad de las Leyes". Una Contribucién de las Américas a Ia Ciencia Polttica, Facultad de De- recho de Ia UNAM, México, 1963. (5) SCHNEIDER, Hans-Peter, “Pecullaridad y Funcién de los Derechos Fundamen- tales en el Estado Constitucionsl Democréitico”, traducio de JOAQUIN ABELLAN, “Problemética General de Iss Instituciones de Garantia”, Numero Monogritico sobre Garantias Constitucionales, Revista de Ketudios Politicos, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, Nova Epoca, n? 7, janelro/feversiro 1979, pp. 7 © #5. (8) CAPPELLETTI, Mauro, La Giurisdisione Costituzionate delle Liberta, Giufire, Mt- Jano, 1955. R, Inf, legi 19 n, 76 out/dez, 1982 ” Essas andlises, que ttm em Hécror Fix-Zamupio grande estudioso, esto Vigadas, também, ao Direito Constitucional Processual, quando o jurista mexi ano continua obra comegada por Epuanpo J. Covrure, através da contribuigdo latino-americana a estudos que h4 muito eram feitos no direito anglo-saxio através da rica jurisprudéncia sobre o due process of law. Esse publicista sustenta que os estudiosos do to Constitucional ¢ os cientistas do processo tém assinalado a estreita vinculagdo destas disciplinas, particularmente, apés a Il Grande Guerra Mundial, em que ocorreu nas Cons- tituigdes a consagracio de instituigdes processuais, desde que os constituintes contemporineos perceberam a necessidade de outorgar a devida importiincia & fungao jurisdicional. Reconhece a transcendéncia constitucional da fungio ju- risdicional, citando as expressées do processualista NiCETO ALCALA-ZAMORA Y. Casto quando afirmou que conhecemos o que ¢ jurisdigio, mas nio sabe- mos onde localizA-la, se no Direito Processual ou no Direito Constitucional, dai que essa instituicao € estudada pelos cultores das duas disciplinas (7). © processo constitucional esté ligado A justica constitucional, pois, confor- me acentua Gruseprs CHIOVENDA, 0s conceitos de proceso ¢ jurisdi¢ao so cor- relatos entre si, ao passo que outras indagacdes atentam para os caracteres Processuais dessa jurisdioao. Como processo que tem por objeto matéria constitucional, néo pode des- prezar os conhecimentos processuais, apesar das particularidades que assume. ENniQuE Vesoov1 acentua os exageros em se criarem processos especiais e dife- rentes, com busca de principios especificas, Muitos desses siio consagrados pela ciéncia processual geral coma os do contraditério, oralidade, concentragio ¢ celeridade. © reconhecimento dos antecedentes que propiciaram a conceituagio de jurisdig&o procura definir os processos que regulam a aplicagéo e vigéneia dos Preceitos constitucionais pode apresentar dados para tragarmos a evolugdo do Proceso constitucional. Reconhece-sa a necessidarle de que as normas cons- titucionais venham acompanhadas de processo especial que garanta sua vigén- cia e possa acautelar-se contra os abusos do legislador que no direito americano se reconhece como judicial review, A origem do proceso constitucional moderno pode ser determinada no Direito Comparado com © surgimento da declaragio de inconstitucionalidade que, com perfis juridicos definidos, sé pode ser bem caracterizada nos Estados modernos, com o surgimento das Constituigdes (#). (D FIX-ZAMUDIO, Héctor, “El Pensamiento de Eduardo J. Couture y el Derecho Constitucional Procesal”, Boletin Mexicano de Derecho Comparado, UNAM, Nove Sérle, Ano X, n° 30, setembro/dezembro 1977, p. 317; idem, “Constitucién y Proceso Civil en Latinoamérica”, UNAM, México, 1974. (8) VESCOVI, Enrique, “Bases para una Teoria Americana del Proceso de Inconsti- tucionalidad (Declaracién de Inaplicabilidad de las Leyes)”, Nimero Especial, Estu- dios de Derecho Procesal en honor de Niceto Alcalé-Zamora y Castillo, Boletin Me- aicano de Derecho Comparado, UNAM, Nova Série. Ano VIII, n? 24, setembro/de- zembro, 1975, p. 1130, 100 R, Inf, legisl, Bresilia a. 19 n. 76 out./dex, 1982 Hicron Fix-Zamunio (*) tragou retrospective da evolugéo da justiga cons- titucional, com exaustive exame do controle da constitucionalidade dos atos de autoridade, com quadro geral das instituigdes protetoras das normas constitu- cionais, através de primoroso levantamento das mesmas em todos os Estados em que surgiram. As reflexées em torno do processo constitucional, justiga constitucional e da inconstitucionalidade da lei nao fizeram com que autores, como ENRIQUE VESCOVI, deixassem de apontar a existéncia de outros processos que pretendem proteger diretamente as normas constitucionais. Inclui o amparo mexicano, aceito em diversos Estados americanos, 0 proceso contencioso administrative e o man- dado de seguranga brasileiro. Para o autor referido, nos exemplos citados, com a inconstitucionalidade da lei protege-se a viggncia das normas constitucionais do forma direta. A antecedéncia do habeas corpus é importante, desde que esse institute de garantia propicia a apreciagao, por érgiios judiciais, da defesa de principio consagrado em norma constitucional. Ordenar os temas principais do proceso constitucional constitui o objetivo primordial deste trabalho, mas, para que se possa examinar seus aspectos essen- ciais, torna-se preciso apontar 0s pressupostos do tema. A teoria da separagio dos poderes, o sistema de freios ¢ contrapesos propi- ciam, inicialmente, uma proclamaggo politica que desperta a atengao para as violagdes constitucionais ¢ os remédios para atuagdo ilegal da autoridade publica. A consagragéo constitucional da divisio dos poderes fornece mecanismos para defesa das liberdades individuais e do abuso de poder. Caveriutrm faz referencia Aqueles que consideram a concepsao da tripar- tigto (ou da separagdio) dos poderes estatais como superada. Ele mesmo revela que reconhecen que aquele entendimento, como 0 fora originariamente, isto 6, cm sentido organico, ou na compreensio de que cada uma das trés fungdes era cxercida por érgios diferentes, esté completamente divorciado da realidade, nio s6 italiana, mas da que surgiu na Inglaterra de Locke ou na Franga de Montesqureu ou de Rousseau. Entretanto, faz reserva as criticas ao principio da separagio dos poderes nos moldes daqueles de Massio Szveno G1ANNINT, para quem se deve negar a validade da prépria tripartigao entre atos ¢ atividades legislativas, jurisdicionais ¢ administrativas, que correspondeu ao exercicio de trés grupos ou tipo de poderes, compreendendo-se essa ultima palavra no sen- tido orginico, mas funcional (2). Mauro Cavretuert, considerado como o principal criador de uma siste- mitica do processo constitucional, realga como objetivo fundamental da justiga (9) PIX-ZAMUDIO, Héctor, Veinticinco Afios de Evolucién de la Justicla Constitu- ional, 1940-1965, psane ‘Mexico, 1968. 0 CAPPELLETTE, Mauro, “ll Consol Cootusionlt, dello Lagst nel Quadro “dello Stato”, Rivista di Diritto Processuate, CEDAM, aM, Padova, Ano vw Julho/setembro, 1960, p. 383. R. Inf, legisl. Bra a, 19 n 76 out/der. 1982 101 constitucional a defesa juridica da liberdade, dai o nome que Ihe da de jurisdigao constitucional da liberdade, A preocupagao de garantir as normas constitucionais de violagvs, por meio ‘de processo especial, que precisa ser sistematizado, mostra a importdnica do tema. A fungao jurisdicional, levada de maneira ordenada para a defesa dos prin- cipios e normas constitucionais, aponta tipos de instrumentos que surgiram nos tltimos tempos, de maneira sistematica. A natureza e 0 objeto do processo constitucional tém merecido indagacées de constitucionalistas e processualistas que divergem em encaré-lo como um controle politico, uma atividade legislativa ou paralegislativa, uma nova e espe- cial fungao ou preferentemente fungio jurisdicional ("). As observagées a respeito desses aspectos do tema, nos entendimentos de CARNELUTIT e Car- PELLETTI, que procuram esclarecer se sc trata de um processo voluntirio, pot meio do qual examina-se a inconstitucionalidade, ou que é um processo conten- cioso, constituem pronunciamentos que mostram a complexidade dessas inves- tigagdes. Os sistemas difuso ou concentrado, as vias para alcangar-se 0 provesso de inconstitucionalidade, a via incidental ou a direta, bem como os efeitos da sentenga nessa modalidade de proceso, quando se trata da legitimidade cons- titucional da lei ou a declaragao de sua inaplicabilidade, tam sido objeto de diversos questionamentos. O estudo comparativo dos sistemas que apareceram permite-nos apreciar as particularidades que surgem. As apreciagdes em torno do sistema americano, dos modelos da Italia, Alemanha Federal ou da Iugoslavia, os controles poli- ticos, 0 sistema defendido por Kexsex, que na Austria estabeleceu-se como um tribunal especial, ou 0 Conselho Constitucional da Franga, além de autorizarem a apresentago dos pontos que levam ao estabelecimento de regras especificas jue apresentam pontos comuns, permitem assinalar a sua importancia dentro de estrutura do Estado contempordneo. Os sistemas jurisdicionais puros ¢ os especiais acarretam o surgimento de normas processuais, que objetivam a protegio processual dos principios cons- titucionais, com especial relevo daqueles que consagram os direitos individuais, para que nao sofram pela ocorréncia de decisées ilegais da autoridade publica. A doutrina italiana tem relevante contribuigio em matéria constitucional, principalmente tendo em vista a atuago da Corte Constitucional naquele regime politico. © debate em tormno da natureza contenciosa ou voluntiria do exame da legitimidade constitucional ¢ a eficdcia da sentenga no processo constitucional (QD VESCOVI, Enrique, Principios Estructurales del Proceso Constitucional, Univer- sidad Nacional del Litoral, Santa Fé, Republica Argentina, n? 79, setembro/de- ‘zembro 1960, pp. 437 © as. 102 R. Inf. legisl. Brasilia a. 19 n, 76 out./dez. 1982 foram motivo de penetrante indagagio de Cappexterm, Canneturm e Lirs- aan (32), A rica claboragio tedrica da jurisprudéncia do Tribunal Constitucional Federal leva a questionamentos em torno das influéncias metodolégicas que surgirio da andlise funcional dos direitos humanos no Estado constitucional de- mocritico. O sistema de giustizia costituzionale, proprio para o controle da lei como giurisdizione della inserindo-se também ai a giustizia internazionale e alustinia sociale, contribui para resolver problemas essenciais da sobrevivéncia lo mundo atual. A giustizia costituaionde poder ser importante instrumento da superagao do tradicional conflito entre eqilidade e lei, diteito natural ¢ direito positivo. A giustizia internazioncle contribuira para a superacéo do monopétio estatal sobre o direito ¢ a justica, A giustizia sociale superara a concepcao da justiga como liberdade individual ¢ igualdade formal. Mavro CArreuzrr, que deu tanto relevo ao tema proposto para estas indayagdes, vé a giustizie costituzionale como capaz de dar resposta a varios dos conflitos dos nossos dias. Estados como a Alemanha, Itélia, Austria e Japio, emergentes de tragicas experiéncias do totalitarismo, com violagdes dos mais fundamentais direitos do homem, para impedir 0 retorno aquele pasado, surgiram com o constituciona- Jismo moderno. Nesse sentido, a instituigio do controle judiciario da constitucionalidade das leis e os seus aperfeigoamentos posteriores representa tipica resposta, no quadro da giustizia costituzionale, a problemas que se assentam no estabeleci- mento de regimes totalitarios, baseados na tirania de um homem, um partido ou da ideologia. Os conflitos entre Estados e grupos de Estados, as transforma- ges econdmicas e tecnolégicas em grande dimenséo, criam condigécs que Jevam a tensoes que devem ser sulucionadas por meio de mecanismos adequados. Como elemento caracterizante de um novo Estado democritico, pratica- mente ignorado na Europa do século XIX, 0 controle jurisdicional da lei foi adotado na Austria, em 1920. Essa aceitagao implicava na consagragao de prin- cpio profmdamente inovador segundo o qual a legislago estava submetida 0s limites e controles de uma lagalita superiore, aceita e aplicada por uma corte constitucional suprema, Nova tentativa fol feita na Constituigao da Espanha Republicana de 1931. Entretanto, a justica_constitucional, nos termos em que é definida, nao convive com os regimes ditatoriais: “Ma Ia giustizia costituzionale non ha mai potuto convivere con regimi dittatoriali. In particolare il controllo di costituzionalita, in (12) GIANNOZZI, Giancarlo, “Riflesslon! Intorno all‘Oggetto del Proceso Costitu- aionale”, JUS — Rivista di Scienze Giuridiche, Nova Série, Ano XIV, julno/de- zembro, 1963; Fasc, III/IV, Milano, pp. 398 ¢ 8. R. Inf, legish, Brasilia a. 19 n. 76 out/dez. 1982 103 quanto garanzia, a opera di corti i del legislatore di una superiore le dell'uomo proclamati dalla costituzione, era destinato a sparire sia nell’Austria del Anschluss che nella Spagna di Franco. seltanto nelfepoca sucessiva alla Seconda Guerra Mondiale, in molti paesi si sono realizzate le condizioni per un grandioso fenomeno de ritomno alla giustizia costituzionale. Questo fenomeno ha permeato di sé la storia giuridica © politica un numero crescente di paesi negli ultimi trenta anni, dall‘Austria (1945) al Gia 1 (1947), dall'Italia (1948 e soprattutto 1956) alla Republica Federale Tedesce (1949). Anche Ia Iugoslavia ha adottato, a pie dal 1963, un sistema di controllo giudiziario di costituziona- lita, che costituisce un evento unico nell’'ambito degli Stati socialisti” (8). ndenti, del rispetto da parte e dei diritti fondamentali Outros temas ndo podem scr descurados na apreciagdo da importancia desta andlise, no que se refere As relagdes e conflitos entre os érgaos do poder estatal. O destaque dado nesta introdugio as possiveis averiguagées que o tema per- mite, pela sua importdncia na atual fase do Estado e a fixagio de suas formas de atuacio, limites ¢ controles, torna-se cada vez mais importante. ‘Varios sao os sistemas que procuram definir o drgio do Estado que deve surgir como capaz de resolver 0 conflito, A reformulagio da teoria geral do controle juridico tem sido considerada como ponto de partida para examinar as caracteristicas da constitucionalidade. As modalidades do controle jurisdicional e nao jurisdicional levam 2 con- sideragio sobre os drgfos que efetivam os diversos sistemas consagrados no mundo juridico, O presente assunto 6 de importancia fundamental para o Estado moderno, que deve bem definir o papel fos tribunais e cortes constitucionais em qual- quer que seja o regime politico. Hiicron Frx-Zamunio, em trabalho apresentado no Segundo Coléquio Ibero- Americano de Direito Constitucional, realizado na Colémbia, em 1977, encontro este que teve o tema genérico de jurisdigéo constitucional na Ibero-América, numa demonstragio da importancia do assunto que deve ter maior namero de estudos ¢ divulgacio, afirma que a justiga constitucional requer condigées que esto ligadas & organizagao politica, social e econdmica das comunidades ibero- americanas, Sem aquelas nfo é possivel o controle constitucional dos atos de autoridade, nem a eficdcia, também, de uma jurisdig&o ordindria que se toma inaplicdvel em regimes autocraticos, Com a diminuigio das faculdades dos érgios legislativos contemporaneos, inclusive nos Estados de tradi¢ao parlamentar, o controle judicial da constitu. G3) CAPPELLETTI, “Appunti per una fenomenologia della giustizia nel XX secolo", Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Dott, A. Gluftré, Milano, dezem- bro, 1978, Ano KXKI, n° 4, p. 1385, 104 R. Inf, legisl. Brasilia a. 19 n. 76 out/dez. 1982 cionalidade dos atos de autoridade surge, atualmente, como contrapeso eficaz a um Executivo poderoso, em decorréneia das solicitagées provocadas, muitas vezes, por transformagées sociais, que s6 podem efetivar-se, com presteza, por meio de crescente intervengio da administracao nas relagdes juridicas, sociais, econdmicas, culturais e politicas de uma sociedade em transformagio, que precisa de progressivas atribuigoes legislativas diretas e indiretas da adminis- tragdo, por meio de faculdades de emergéncta decretos-leis, leis, quadros, regu- lamentos, decretos gerais e outros modelos normativos, muitas vezes, atribufdos a um organismo executivo. A justiga constitucional tera uma fungéo equilibradora frente a esses poderes vigorosos de uma administragaio poderosa e crescente, no que se refere a inter- vengio na elaborago direta ou indireta das disposigdes legislativas, ‘Um sistema furidico constitucional necessita de um bom numero de espe- cfalistas em Direito Piiblico ¢ em particular de Direito Constitucional, que s&o raros em muitos Estados do Continente americano. Para o publicista mexicano devemos estimular os estudos de Teoria da Constituigdo, com investigagdo em torno do instrumento de interpretacio constitucional e Direito Constitucional Comparado (#4). ‘A importincia da justiga constitucional acentua-se constantemente, pelo «que convém salientarmos algumas das conclusées finais do I Coléquio de Direito stitucional, em Sochagota, Colémbia, em novembro de 1977, que demons- tram a necessidade de ampliar as pesquisas sobre tema téo importante para os dias de hoj a) a justica constitucional configura um dos supostos fundamentais do Estado modemo, para servir de contrapeso efetivo entre 0 Poder Executivo, cada vez mais hegeménico, e um Poder Legislativo, que esta cada dia mais ambiguo em sua estrutura ¢ funcionamento; 1b) a jorisdiggo constitucional é um suposto fundamental para a preserva- 40 dos direitos humanos; c) pela nafureza especifica de sua fungao e pelos mecanismos de atuagao de que dispée, a justica constitucional é o instrumento mais apto para a garantia © a protegao dos direitos humanos, ao mesmo tempo que se constitui no melhor instrumento de controle e de tutela para funcionamento democritico dos demais poderes do Estado; d) para que a justiga constitucional possa cumprir com seus objetivos, torna-se necessdria a existéncia prévia de condig6es politicas que assegurem sua independéncia, pressuposto essencial para gue ela seja capaz de garantir ios fundamentais que inspiram os ordenamentos constitucfonas de- os pI mocrati (14) FOX-ZAMUDIO, Héctor, “La Justicia Constitucional en Iberoamerica y la De- claracion General de inconstitucionalidad”, Revista de ia Faculdad de Derecho do Mécico, Universidad Nacional Auténoma de México, Tomo XXVIII, set./dez., 1976, ne 111, pp. 641 2 694, R Inf. legisl. Brasilia a. 19 n. 76 out./dex. 1982 105 ¢) a criagio de cortes ou tribunais constitucionais especificos, cuja com- peténcia, devido & complexidade da vida politica no Estado modemo, devera ampliar-se a todos os aspectos que possam determinar ofensas ou violagdes 3 ordem constitucional; f) a ampliagéo das competéncias da justiga constitucional nao implica na politizagao da justiga, desde que o carter politico de um ato nfo exclu o conhecimento juridieo do mesmo, da mesma maneira que o resultado politico deste conhecimento nao ira despojé-lo de seu carater juridico (*). TEORIA DA SEPARACAO DOS PODERES E FUNQOES DO ESTADO. © principio politico-constitucional da separagio de poderes, tido como fundamental para o Estado constitucional democrdtico, sofreu diversas interpre- tagbes que influenciam no seu significado, tendo em vista as relagdes e conflitos que decorrem das fungdes atribuidas aos diversos drgios estatais A natureza do poder e 0 yoekbulo poder vistos como uma diviséo artifi- cial de fungoes ou difcrenciagio natural de atividades que levam a uma frag- mentagao do poder e 0 equilibrio sobre © papel do Executivo, do Legislativo e do Judiciario, conduzem a indagagdes sobre os mecanismos dos pesos e contra- pesos ou a edificagio de um sistema que, partindo de forgas existentes, leve a um verdadeiro equilibrio, através da separacao formal de poderes, A doutrina da limitagdo do poder, conforme assinala Bunraaxp DE JOUVENEL, ao demonstrar, baseando-se em Moxresqutev, a necessidade de contrapoderes, ndo deve esquecer que é uma experiéncia permanente, que todo homem que tem poder é impulsionado a abusar do mesmo, chegando até onde encontra barreira, © tema do fivro, considerado classico, é a luta entre 0 poder e a liberdade, que suzgem como rivais que disputam o espago politico, problemética intima. mente ligada A temitica deste trabalho. © regime do poder limitado constitui tema essencial da filosofia politica do século XVIII. Entretanto, para BeRrRaND DE JoUvENEL nfo ocorriam preo- ‘cupagées com os problemas da formagdo do poder e do direito, Aceitando-se 0 direito como criagéo da vontade geral, isto é, do Parlamento, este converte-se no tnico capaz de manifestar e formar esta vontade, pelo que foi entregue o ilimitado. Para aqueles constituintes, nenhum ato de governo poderia realizar- se a ndo set em virtude de lei, que nio passava de manifestagéo do consensus puli, O poder do povo no era mais do que uma ficgdo, aceita a soberania parlamentar. Ao interpretar a doutrina, conclui que as circunsténcias e a su- ficialidade rescindem todo o principio de limitagao do poder ao sistema Formal da separagio de poderes, Apesat de nto pretender editiear wn sistema GS) SILVA, José Afonso da, “Da Jurisdicho Constitucional no Brasil e na América Latina”, Separata da Revista da Procuradoria-Geral do Estado, nv 13/15, Imprensa Oficial do Estado, So Paulo, 1980, pp. 106 e 107. 106 R. Inf. legisl. Brasilia a. 19 n, 76 out./dez, 1982. susceptivel de limitar 0 poder, ao mesmo tempo que n&o apresenta qualquer ilusdo sobre a natureza do mesmo, ressalta em sua andlise o crescimento do poder ¢ as condigées teéricas do poder limitado (2°). A separagao de poderes, termo considerado como equiveco para muitos, tem gerado mal-entendidos na ciéncia constitucional moderna, principalmente quando se tem em mente defini-la. A doutrina é tida geralmente como uma volta as formas tirdnicas, A teoria rigida ¢ inflexivel nao esta no préprio MoNTEsQuiEU, mas em muitos de seus intérpretes, que Ihe deram contomos rigorosos. Tendéncia mais aceita é aquela que ensaia preservar a teoria gragas a uma interpretagdo reno- vada da formula de MoNresguiru, ndo como uma separagéo impossivel, mas como uma distingao funcional entre os érgaos do Estado. Durante muito tempo, a separagio de poderes adquiriu grande prestigio. Os americanos a adotatam de maneira formal, mas convém ressalvar que a Constituigio dos Estados Unidos nao a aplicon de maneira absoluta. Na Franga, o entendimento consagrado pelos intérpretes de 1789 esta visivel no artigo 16 da Declaragio dos Direitos do Homem, ao proclamé-la como dado essencial do constitucionalismo democritico. A Assembléia Constituinte ficou fascinada pelo principio. Canné pz Maerc lembra que a separagio de pode- res, desde 1789, constituiu-se como um dos principios essenciais do direito pi- blico francés. Apesar de fazer referéncia a AnisrOretxs, afirma set ela de ori- gem moderna, A excegio de Museau, considerado como precursor do parla- mentarismo modemo, os homens de 1789 no se detiveram no problema das relagées entre o Executivo e o Legislative no processo democratico. As dividas surgiram naquele periodo em que a separago de poderes era considerada elemento essencial na democracia, quando oscilava-se entre a aplicagao rigorosa da teoria ¢ o sistema parlamentar do governo, No estudo sobre a separagio de poderes na Constituigio de 1791, Ducurr faz uma anélise profunda das razées pelas quais o principio era inaplicdvel. ‘A vontade nacional ser racionalmente representada por varios érgios ou por apenas um s6. Admitindo-se que a soberania néo é divisivel e deve ser exercida em colaboragéo com os érgios de representacdo, nio ha lugar de dar, a cada um, um mundo diferente de participacdo no exercicio desta soberania e estabelecer entre eles uma separagdo de fungées. A soberania permanecendo indivisa e exercida em colaboracio por érgdo de representagio, nfio se pode confiar a fungio administrativa e a fungio jurisdicional a duas categorias de agentes diferentes. Mostra o publicista franoés a confustio que existia entre a separagdo de poderes e a separagéo de fungdes, assinalada em autores de destaque que (16) JOUVENEL, Bertrand, Ei Poder, Editora Nacional, Madrid, 1974, 24 ed., tradu- eSo de J. de ELZABURU, pp. IX, $56 a 860, 960, 361 e 364; BERNARDIN, Claude, “Le Pouvolr et les Pouvoirs d'aprés Bertrand de Jouvenel” em Libéralisme, Traditio- nalisme. Décentralisation. Contribution & L'Histoire des 1dées Politiques, obra cole- tiva sob # direcio de ROBERT PELLOUX, Librairie Armand Colin, Paris, 1952. Pp. 189 € 8. R, Inf, fegis!, Brasilia 2. 19 n. 76 out/der. 1982 107 escreveram sobre a uestdo. Citando Mrcuoup, conelui que para este a separa- sao de poderes é semelhante i separagao de fungbes. Em cada poder hé uma entidade juridica distinta e nesta separagio h4 apenas uma repartiggo de fungées entre os drgéos para evitar 0 despotismo, com o objetivo de manter apenas uma certa colaboragao. Apontando o engano da conclusio, Ducurr afir- ma que a Assembléia Nacional de 1789 quis realizar nao somente a separagio de fung6es, mas uma separagio de poderes, aceitando que trés entidades repre- sentativas, investidas, cada uma, de elementos da soberania retalhada, estabe- Jeciam um sistema contrério ao principio da soberania una e indivisivel, que, partindo dessa contradigao inicial, deveria cumular novas dtividas, Também em Havniov aceitou-se que a separacao de fungées era ao mesmo tempo uma sepa- ragio de poderes, Para Ducurr. a confuséo ndo provém de Locke ou Mostesqutey, criadores da teoria da separagio de poderes: “Ni Tun ni Fautre n’ont cu Tintention de faire une théorie juridi- que, mais seuJement de montrer comment la Constitution anglaise, par un partage des fonctions et une certaine collaboration des organes, a établi de sérieuses garanties au profit de la liberté” (7). Nem no De PEsprit des Lois nem no Traité du Gouvernement Civil encon- tra-se qualquer explicagio da separagio dos poderes como foi compreendida pelos constituintes de 1791. A expresso separagao de poderes néo foi empregada uma vez sequer por Monresqurev, nem entendeu que os orgios investidos das trés fungdes do Esta- do seriam representantes do soberano, investides de uma parte da soberania, absolutamente. Nao esté em Montesquieu qualquer explicagio que leva a0 entendimento de que uma teoria da separagéo de poderes implicava em sepa- ragdo absoluta dos drgios que exerccm a fungao executiva e a legislativa. Enten- dia quo devia existir uma agio continua dos dois poderes um sobre o outro, uma verdadeira colaboragio. Explicando 0 que se passava na Inglaterra, escla- recia ques Executivo participa na legislagio, sendo que o Legislativo exerce um controle continuo sobre o Executive e que aquele sistema repousa em uma colaboragao constante ¢ intima dos poderes, constitucionalismo francés, a partir da Republica de 1792, partiu para uma nova técnica politica sobre as novas concepgies da relagdo entre 0 Exe- cutivo e o Legislative, ocasido em que Ronesrrerre fez na Convencao de 10 de maio de 1703 uma critica 4 separacao de poderes. A Constituigo de 1793 nao fala em separagio de poderes. Jé a Declaragio de Dircitos de 1793, em scu artigo 24, proclama que a garantia social nao pode existir se os limites das fungbes piblicas nfo sio determinados claramente pela lei. A Constituigao de 22 de agosto de 1795 reconheceu s incipio, ao afirmar que a garantia social nio pode existir se a divisio de poderes nio (QD DUGUIT, Léon, Traité de Droit Constitutionnel, La Théorie Générale de VAtat, ‘Tomo segundo, E. de Roccard, Successum, Paris, 1928, 3° ed., p, 663. 108 R. Inf. legisl. Brasilia a. 19 n. 76 out./dez. 1982 esté estabelecida (art. 22). De todas as Constituigaes francesas foi esta que aplicou de maneira mais categérica o dogma derivado do De Esprit des Lois. A Constituigao de 1842 repete a f6rmula de 1791, quando no artigo 19 protama que a separagao de poderes é a primeira condigio de um governo Ja a Constituigio de 1875 niio menciona o principio de separagio de eres, O projeto de Constituig&o francesa de 15 de abril de 1946, rejeitado pelo referendums de 5 de maio de 1946, no 0 levou em consideragio. Entretanto, 0 projeto de Constituigio apresentado pelos membros do M.R.P., no seu artigo 16, reconhecia que toda sociedade na qual os direitos nio estao assegurados, nem @ separagzo dos poderes esté detorminada, nao tem Constituigéo. Também o projeto de Constituigéo apresentado por M. Bannoux dispunha no artigo 22: “a garantia social nao pode existir se a separagao de poderes nao for estabele- cida, se seus limites nfo estio fixados e se a responsabilidade dos funciondrios piblicos nao estd fixada”. No mesmo sentido, os membros do Partido Republi- cano da Liberdade proclamaram no artigo 16; “Toda sociedade na qual a garantia dos direitos nfo est assegurada, nem a separagio de poderes deter- tminada, nio tem Constituigio”. Considerado como um axioma da Ciéncia Polftica contemporinea, mere- ceu de Mmxmve-Guerziviren algumas indagagées que atentam para as’ conse- qiiéncias e teflexos que ainda pode ter: “Que reste-til de la doctrine de la séparation des pouvoirs deux sigeles aprés la publication de Esprit des Lois? Simple ent constitutionnel contre Tancien régime chez Montesquieu, el est devenue un dogme chez les théoriciens de la Révolution, chez, les hommes de la Constituante, Le dogme périmé, contraire & la réalité du parlementarisme démocratique, ne peut servir les besoins politiques de Europe moderne. Mais la théorie elle-méme ne sera jamais oubliée dans [histoire des doctrines politiques, dans Vhistoire des certitudes ct des justifications rationnelles de Ia. cité libre” (8), Canné pe Mausenc afirma que Locks, apesar de ser 0 primeiro a ressaltar a utilidade de uma separacdo de poderes, ndio conseguiu desenvolver uma teoria com suficiente clareza, A teoria, no seu significado moderno, foi composta por Monresquiey, Est4 af a preocupagdo com a separagao de certas fungées entre titulares diferentes. Essa teoria da separagio orginica de poderes enunciou-se sob a forma de principio geral que Montesquteu formulou como uma das con- digdes fundamentais da organizagac dos poderes em todo Estado bem ordena- do, Nao considera em sua exposigio nenhum Estado em particular. Nao partiu de uma especulagio abstrata para chegar a esse princ(pio geral. Antes de ser enunciado entre os franceses; como principio, havia sido aplicado, em certa me- (1) MIRKINE-GUETZRVITCH, Boris, “De la Separation des Pouvoirs”, en Montesquieu, sa Ponsée Politique et Constitutionnelle, Birenienaire de I-Rsprit des Tole (1748-1968), ‘obra coletiva sob a direcio de BORIS MIRKINE-GUETZEVITCH ¢ HENRI PUGET, Recueil Sirey, Paris, 1952, p. 181, R. Inf. legisl. Brasilia a, 19 n, 76 out/dez. 1982 109 dida, na Inglaterra, resultado da luta secular do Parlamento contra o poder real, com o objetivo de limitar os direitos da Coroa mediante as assembléias, tidas como representativas do povo. Apés a revolugdo de 1688 surgiu certo equilibrio entre a realeza e as Camaras, através, principalmente, de uma distri- buigdo de poderes entre os drgios encarregados do Legislative e do Governo. Essa repartigio e equilibrio foram realizados quando Mowresqumrv estudava as instituigdes jnglesas, observagées que o levaram a extrair a teoria geral exposta no capitulo VI do livro XI, intitulado De Constituigdo da Inglaterra, Em sua condenagio aos regimes autocraticos ou de poder absoluto, fica bem definida a idéia de que nos Estados em que todos os poderes estéo reuni- dos em maos de um titular unico, seja em um homem, ou uma assembléia, a liberdade publica esté em perigo, pelo que aponta estar a solugdo do problema na separagao das trés fungdes estatais, Existe na demonstragéo de Monrssquy, conforme aponta Carré pe Maxpenc, uma idéia principal que é assegurar a liberdade dos cidadaos, propor- cionando-Ihes, através da separagio de poderes, a garantia de que os mesmos serio exercidos legalmente, A sua doutrina refere-se essencialmente a um siste- ma de estado de ». Mesmo que se acentue como objetivo principal dessa explanagio a salvaguarda da liberdade civil, a doutrina est4 relacionada com disposigdes que devem assegurar a liberdade das préprias autoridades publicas em suas relagdes reciprocas, no exercicio do poder que Ihe é atribuido de maneira especifica, A divisio das competéncias e a especializagio de fungies nado sdo suficientes para efetivar a limitagdo dos res, Os titulares dos poderes ndo devem exereé-los, na sua area de atividade, de maneira superior, que atente contra 0 equilibrio de atuagio, E necessério que os respectivos titu- lares estejam investidos de competéncias distintas, bem como de uma estrutura organica que os coloque de maneira independente e igual entre eles, A ressonancia da teoria de Montesquieu foi assinalada por CaRRé DE Matyexc, que aponta a sua influéncia, principalmente, na Franca, que para ele chegou na época oportuna, isto é, no momento em que o Estado absolute tinha passado o seu apogeu, dai a doutrina ter encontrado um terreno favordvel para o seu desenvolvimento, Apesar de reconhecer que o principio da separagio de poderes teve grande importincia na Franga, por muito tempo, Carré pe MALpERc jé afirmava que, com o desaparecimento de causas politicas que a justificaram inicialmente, 0 prestigio da teoria estava perdendo influéncia na literatura juridica: “Pero, junto a estes defensores, la teoria de la separacién de pode- res cuenta hoy dia con numerosos adversarivs cuyo ntimero parece ir creciendo sin cesar. Se la atacé, primero, desde el punto de vista de su valor politico. E] principio de Mowresguieu es ante todo un principio restrictivo y creador de impedimentos, que divide el poder, en efecto, entre sus titulares, de tal modo que cada un de ellos, encerrado dentro de un circulo de atribuciones especiales, queda condenado a vegetar en un estado de penuria, que equivale a una especie de impoten- cia” (7), (19) MALBERG, R. Carré de, Teoria General del Estado — Fondo de Cultura Econé- mica, México, 1948, 1° ed., trad, esp. de José Lion Depetre, pp. 741 9 751. no R. Inf, legis! Brasilia a, 19 n, 76 out/dex, 1982 ‘Na andlise da teoria de Montesquieu, aponta, inicialmente, as criticas de ordem politica. Do ponto de vista juridico, assinala as objegdes provenientes da Alemanha, com LaBanp ¢ JELLINEX, para quem nfo é nem logicamente aceité- vel, nem praticamente vcaluvel Na Franca, também, surgiram autores que negavam seu valor juridico e a possibilidade de realizagdo positiva, destacan- do-se af Ducurr, que a qualificou de artificial. Mesmo assim, reconhece que mais tarde, enquanto que a doutrina estava desacreditada na Franga, houve o renascimento dela entre os alemies, quando Oro Maver apontou o erro daque- les que a combatiam. As criticas de Carri p= MALBERc apresentam conclusdes sobre os desacer- tos de certos entendimentos a respeito da teoria de Monresquieu, que levam a interpretagdes que estéo em desacordo com as desenvolvidas naquelas expo- sig6es. O valor real do principio nao deve ter, como base, as variantes propostas que apresentam uma imagem deformada da explicagdo inicial. Para isso, aconsclha que se parta da primitiva pureza do principio sua signifieacto inte- gral, o que possibilita juizos a respeito do conceito da separagio nos termos em que foi formulado por Monresgutev. Como signo essencial da doutrina, deve-se entender que foi decomposto e seccionado o poder do Estado em trés poderes principais, susceptiveis de serem atribuidos separadamente a trés clas- ses de titulares, que se integram no préprio Estado, através de autoridades pri- mordiais e independentes. Ao conceito de poder estatal e da unidade de seu titular primitivo opée-se um sistema de pluralidade das autoridades estatais, assentado na pluralidade de poderes: “La forma en m gue Montesquieu presenta su teorfa separatista implica que cree hallar en el Estado tres potestades diferentes, cuya reunién o haz constituye la potestad estetal total, pero que tienen un contenido diferente y que, por lo mismo, se le muestran‘como iguales, independientes y auténomas en sus relaciones de unas con otras. A su vez, las tres clases de autoridades que corresponden a esta divisién tripartita de la potestad del Estado constituyen orgénicamente tres grandes poderes yuxtapuestos e iguales, en el sentido de que cada una de ellas posee una parte especial y diferente de la potestad estatal, asi como tiene cada una de ellas su esfera. de accién propia, en cuyo inte- rior es independiente y duefia; de donde se deduce la consecuencia de que, en la esfera de cada uno de los tres poderes, el titular mAs ele- vado tiene realmente cardcter de érgano supremo” (7°). Citando Ducurr, salienta as discussées sobre o alcance absoluto do signi- ficado dessa doutrina, quando nem sequer a expressio separagdo de poderes foi utilizada, apesar da consagragdo que teve entre os scus partiddrios, Mesmo que o texto nfo contenha a palavra separagdo, a adverténcia de Maxserc é correta, quando acentua que, apesar de nao ser empregada no ca- jitulo De la Constitution d Angleterre, a idéia de separagao emerge do conjunto ja doutrina, principalmente, de maneira clara, in aparece como proposigio fundamental do titulo acima referido, e ser o fundamento e a descrigio essen- cial desta parte do De PEsprit de Lois. (@0) MALBERG, R. Carré de, Teoria General del Estado, ob. cit, pp. 157 © 758. R. Inf, legist. Brasilia a. 19 n. 76 out./dex. 1982 m A importancia da exposigdo sobre o assunto deve ser apontada nas inter- pretagées que ocorreram durante o século XVIII e grande parte do XIX, bem como nas tentativas que jé se verificavam na época dos estudos de MALBERG, em que se percebe a tendéncia para compreender » principio de MonTESQUIEU afastado de uma verdadeira idéia de separagio. Surgiram quando queriam in- quind-lo de falso. Matserc, numa das criticas mais completas da teoria, condena a doutrina de Moxtrsquirv, afirmando que suas idéias sio inconcilidveis com o principio da unidade do Estado e de seu poder. De maneira alguma aceita a proclamagao da existéncia de trés classes de poderes no Estado, mas apenas um tnico dotado de dominagio. O poder se apresenta sob miltiplas férmulas, sendo que o exer- cfeio conerétiza-se por diversas fases: iniciativa, deliberacio, decisio e execugao. Esses modos, formas ou fases, como os denomina, visam a um fim tinico: assegu- rar dentro do Estado a supremacia de uma vontade dominante, que é tinica e indissoluvel. O Estado pode ter varios érgios, sem que deixe de existir a uni- dade que the é peculiar. O principio da unidade do Estado, que é tido como fundamental para a elaborayiio do sistema estatal moderno, nio impedia que fosse aceita a coorde- nagio entre os diversos poderes, Dentro da minuciosa andlise dessa doutrina, Maxperc afirma que MoN- TEsquieu criou seu sistema com o intuito de aplicé-lo a fungdes materiais de- terminadas. A teoria é aceita como uma teoria de separagio de fungées, pelo que a especializagio das mesmas constitui um dos elementos essenciais da se- paragio de poderes, Entretanto, a separagio de fungdes, com afetagdo exclu- siva de cada um deles a uma espécie determinada de érgio, é tida como irrea- lizavel. A atividade dos érgaos esta vinculada a fins estatais determinados. Den- tro dessa critica, considera-se que a separagio ou especializagio orginica das fungées est obstrufda pela circunstancia de que as fungdes propriamente ditas de legislar, administrar e julgar, no sentido material de Monresquiry, apresen- tam certos pontos de contato ou apenas limitrofes ou mistas. Os érgaos estatais acumulam fungdes materiais diversas, mesmo naqueles regimes em que se pretendeu aplicar com mais pureza a doutrina de MoNtes- quiEu. Certos Executivos possuem faculdade regulamentar, que, dentro da teo- ria material das fungées, constitui uma espécie de poder de legislar. Os juizes incluem em sua competéncia atos que nio sao de realizagio jurisdicional, mas administrativa ¢ até legislativa. Depois de apontar diversas criticas & teoria, MaLprnc afirma que, dos pon- tos de vista sob os quais tinha examinado a separagao de poderes, poder-se-ia concluir que ela, além de ser irrealizdvel, nao fora aplicada no direito positive. Nesse sentido, nem a divisio do Estado em trés poderes distintos, nem a espe- cializagdo das fungdes materiais e sua repartigéio entre titulares diferentes, nem a independencia dos érgios e a auséncia de relagdes entre eles, nem a igual- dade de poderes ou de autoridades encarregadas de exercé-los foram reconhe- cidas como possiveis, da{ os ataques e negativas que surgiram contra o princi- pio de Moxtesquiev, tachado pela literatura jurfdica como errdnco e inaplicdvel. 12 R. Inf, legisl. Brasilia a. 19 n. 76 out./dex, 1982 Nao aceita os esforgos de autores que, no seu entendimento, para salvar 0 Principio, alegavam que as criticas dirigidas contra a doutrina referiam-se, ape- nas, A aceitagéo de uma separagio absoluta e exagerada: “Cualquier tentativa para justificar la separacién de los poderes en uno cualquier de los sentidos que se han indicado hasta ahora, es decir, en una direccién conforme con el pensamiento de MonTs- quieu, estd destinada a un evidente fracaso. Por ejemplo, evalquier separacién de funciones en el sentido en que quiere establecerla Montesquieu es inadmisible. La misma palabra separacién, en efecto, tiene un alcance absoluto; implica una escisién entre las funciones ¢ los érganos. Ahora bien, esta escisién, en cualquier grado que 30 pe tenda realizar, tropieza con imposibilidades. Las eriticas form contra Ia separacién de poderes concebida segtin el Espiritu de las Leyes no se dirigen solamente, pues, al sistema que trata de separar hasta el exceso las funciones materiales comprendidas en la potestad estatal, sino que se dirigen a cualquier sistema que pretenda separar- las en cualquier grado, ya que toda separacién propiamente dicha, por Jo que concieme a estas funciones, es excesiva en si. La separacién de los poderes, en cuanto a ellas, asi como en cuanto a sus titulares, sélo seria aceptable con la condicién de no ser de ningén modo una se- paracién” (1). As dificuldades sobre a exposig&io em torno do Drinetpio da separacéo dos poderes so apontadas pelos publicistas, que dificilmente deixam de fazer refe- réncias ao mesmo, como figura essencial das idéias da democracia ocidental, A sua significagéo tedrica para Vepex. esté ligada, na Franga, principalmente, a0 dogma da soberania nacional e & nogéo de representagio, desde que a se paragio de poderes apresenta as diversas fungGes, através de atribuigdes que séo encaminhadas a érgios diferentes e independentes: “Ceci revient a dire que chacun des pouvoirs ost Je représentant de la nation, dans Tordre qui est Ie sien: le Parlement représente la volonté nationale dans Yordre législatif; le gouvernement représente la volonté nationale dans Fordre exécutif; les tribunaux jugent au nom de la nation dans ordre judiciaire” (28). ‘A separagao dos poderes 6 ai, também, tida como uma garantia concreta da liberdade e uma afirmativa de que a soberania nfo seri usurpada por qual- quer um dos érgaos. Este publicista nao esté de acordo com aqueles que admi- fem a separagio dos poderes como principio juridico absolut, que conduz a extremismos os mais extravagantes, principalmente quando se aceita a existén- cia, em cada poder, de uma pessoa moral distinta das outras. Considerando-o como preceito de arte politica, pelo qual o povo pretende conservar a liberdade, conclui-se que nfo deve ser confiado a qualquer érgio um poder total, que conduziré a formas autoritdrias. Em sua efetivacao pratica, (21) MALBERG, R. Carré, Teoria General del Estado, ob. cit., p. 886. (22) VEDEL, M, Georges, Cours de Drott Constitutionnel et d'Institutions Politiques, ‘Les Cours de Droft, 195-1069, Paris, p. 628. R, Inf, legist, Brasilia a, 19 n, 76 out./dez. 1982 13 a distingao entre os poderes deve ocorrer através de uma fragmentagio em que cada érgio nao deve deter sendo poderes parciais e limitados. Como corolario desta conseqiiéncia, os poderes devem ser independentes uns dos outros. Na ocorréncia de influéncia de um dos érgios sobre outro, de tal maneira que pu- desse transformé-lo em um ser subordinado, em que aquele passasse a ccumular, simultaneamente, os poderes confiados ao outro e a ele mesmo, se se admitisse a superioridade juridica de um sobre o outro, tornar-se-ia imprescindivel armar © que fosse considerado hierarquicamente inferior de meios de defesa (7%). Examinada em muitos autores modernos, sob a denominagiio de fungdes de Estado, como as diferentes formas juridicas de que se revestem suas ativida- des, a teoria de MonTesquiEu constitui tema fundamental da estrutura do Esta- do democratico. A teoria da divisio dos poderes, nomenclatura empregada por certos juris~ tas, teve grande influéncia no pensamento e nas instituigdes politicas de seu tempo, apesar de nio ser aceita em sua integralidade ¢ ter sofrido modifica- g6es. Centralizou-se, em texto positive, no momento em que foi aceita por dife- rentes Constituicdes. Como instrumento que reduz o perigo de um 6rgio ize rar o campo preciso de sua atuagiio e ir além de suas atribuig6es, constitui dado essencial para fixar 0 relacionamento que deve ser tragado para as diversas estruturas estatais: “Repartida Ia soberania entre varios érganos, correspondiendo a distintos érganos dentro del Estado ejercitar la soberanfa dentro de un mismo plano de igualdad, se puede obtener un equilibrio que se traduzca en un prudente ejercicio del poder, en un balance de poderes, en el que un poder sirva de freno y de control al otro” (%). As vantagens da teoria exposta por Montesquieu, apesar das modificagbes que foram apontadas em muitas de suas interpretagdes, sto indiscutiveis, dai a sua aceitacgao pela maioria das Constituigses dos Estados modernos, que, apesar de nao aceité-la de modo rigido, partiram para elaborages constitucio- mais que nio abandonaram os pontos hdsicos formulados pelo pensador fran- cés, mas atenderam a necessdria flexibilidade, que ocasiona melhor funciona- mento dos érgaos politicos. As precis6es, moderagées e integragdes por que passou essa doutrina, através dos tempos, ocasionaram nos textos a sua adapta- do as novas motivagdes constitucionais que estruturam o Estado: “Por otra parte, al continuar el estudio de las modificaciones de Ja teoria de Ja division de poderes, debemos tomar en cuenta que existe no una division tajante entre ellos, como hemos visto exponer Mowtesquiey, sino que, de acuerdo con la doctrina moderna, existe una flexibilidad en la separacién de los poderes, para expresarlo con propiedad en el reparto de las competencias” (2°). (23) VEDEL, M. Georges, Cours de Droit Constitutionnel et d'Institutions Politiques, ob, clt., pp. 628, 629 e 630, (24) PEREZ, Francisco Porrua, Teorla del Estado, Editorial Porrua, $.4., México, 1969, BA ed, p. 364. (25) P#REZ, Francisco Porrua, Teorfa del Estado, ob. cit, p. 366. 4 R. Inf. legisl. Brasilia a, 19 n. 76 out./dez. 1962 © regime constitucional modemo, quando proclama a separagio como in- dispensivel & Iiberdade pablica, vem ‘asim ntendendo-a de maneira limitada, sem acobertar uma interpretagdo exclusivista, que levaria essa distin¢do a nao aceitar 0 menor ‘inoulo He relactonamento entre esses érgios. Um dos motivos que siio apontados as constantes revisdes da formulagéo de Montrsquaeu é a concentragdo de poder que surge em determinados Estados contempordneos, que tém gerado novos entendimentos acerca de uma possivel reformulagio em torno dessa doutrina (**). Apesar da preocupagio do autor em Ihe dar vestes juridicas, sua impor- tancia reside no aver elaborado um sistema de organizagio da atividade esta- tal de um regime democratico, assentado na liberdade dos cidadios. Diversas denominagées sao utilizadas para designar o principio teorizado por Monrasgumu: divisdo de poderes, sepdracao de poderes ou distingao de fungoes. Franco Bassi, que preferiu a expresstio separagdo de poderes, afastando-se da opinido prevalente na juspublicistica italiana, justifica com argumento de ordem histérica, que a doutrina francesa consagrou séparation des pouvoirs. Argumenta, ainda que, do Ponto de vista puramente légico-gramatical, a fér- mula separagao de poderes & mais eficaz do que divisto de poderes, que ¢ mais idénea para exprimir o significado atual resultante da teoria de MonTEsQuiEU. A expressiio no individualiza um conceito légico, identifica uma nogio histérica, que vem sendo interpretada, ou melhor, reiuterpretada e considerada nas suas diversas acepgées. A teoria da separagio dos poderes, apesar de opiniées de que a sua versio clissica est superada, passou Pos patrimdnio da Fuspublicstice modema, Nao & possivel abandonar a discussio em torno da articulegio do poder no ambito da organizagio do Estado, principalmente tendo em conta que 0 principio tomom-se uma exigéncia constitucional do grupo politico emergente. principio que, Cant Scumarr, se destina a assegurar a moderagio @ 0 controle ge tedos bs érgies de poder do Estado, no seu processo de cons- titucionalizagio, foi recebido pela Constituigio dos Estados Unidos de 1787 a Constituigao francesa de 1791, tendo em Botincsroxe um ativo divulgador. Em eseritos de caréter polémico e memoriais, mas sem explicagio sistemAtica, em The Craftsman, referiu-se & teoria constitucional do equilfbrio e controle reciproco entre os érgiios do Estado, através da garantia de um adequado sis- tema de contrapesos. Nesses trabalhos empregou expressdées como: freios re- efprocos, controles reciprocos, retengdes e reservas reciprocas. ‘A variedade de expressdes e de justificativas para o principio geral da organizago da distingio de poderes merece novos reparos, quando Saaarr aceita que o enunciado mais geral é 2, que Propée como “distingao de poderes”, Entende que separagao significa um isolamento completo, que serve como pon- (26) ROJAS, Andres Serra, Teoria General del Estado, Libreria de Manuel Porrus, 5.A, 1964, pp. 322 © ss; CAMACHO, Miguel Galindo. Teorfa de! Estado, Edito- res Mexicanos Unidos, 8.A., México, 1989, pp. 304 e ss. R. Inf, legisl, Brasilia a. 19 n, 76 out/dex. 1982 1s to de partida da organizagdo ulterior, com regulamentagao posterior, que leva a algumas vinculagGes. J4 a divisdo significa uma distingdo no seio de um dos varios poderes. A teoria dos poderes vem sendo examinada sob diversos eritérios ou angu- los, conforme prefere Franco Bassi, a0 apresentar as varias opinides da dou- trina, no que toca A separagao subjetiva de poderes e & separacio objetiva das fungées. Outra das dificuldades apontadas esté na prospectiva estritamente juridica e de qualificagao mais politica ou na tendéncia em reconhecer-se que 4 separagdo de poderes, ‘nspitatiora das Constituigdes modemas, transformou- se em principio fundamental da organizagio do Estado. Tida como importante para a teoria geral do direito, existem aqueles tam- bém que negaram seu aspecto juridico, sustentando que seu valor no campo do direito nao passa de uma determinante pratica da estrutura institucional a Estado. Este tema constitui objeto de intimeros estudos no campo da Ciencia Politica e da Ciéncia Juridica. Deve ressaltar-se que os autores, ao tratarem da organizagaio constitucional do Estado modemo, geralmente, nao deixaram de apresentar a posicéo que tém, frente 2o principio da separagio de poderes. Fnanco Bassr, ao determinar as épocas que contribuiram para a formula- go dessa teoria, apesar de reconhecer que somente no século XVHI tenha adquirido suficiente grau de teorizagéio, aponta como primeira aplicagao con- ereta no século precedente o Instrument of Government de Cromwell, de 1653, Essas indagagées recuam a PLatio, AwsrérELns, Potisio, Cicero, SANTO Toads DE AQUINO, Mansit10 pe PApua. A formulagio teérica de Locke esté assentada na aceitagao do jusnatura- lismo, acompanhada da idéia de um estado de natureza, em que existia per- feita igualdade e liberdade. Sua teoria de poder do Estado, por sua origem contratualista, néio surge absoluta, encontra Fimites nos direitos invioléveis do homem. Adquire ai maior relevo o aspecto substancia! do limite interno do poder estatal do que a existéncia meramente instrumental da subdivisio atra- vés de uma pluralidade de érgios. Apesar dos precursores acima referidos, relaciona-se como auténtico eria- dor do principio politico constitucional da separagio dos poderes estatais o bario de Montesquieu. Contido no Capitulo III, IV e sobretudo no VI, do Livro XI do De Esprit des Lois, publicado em’ 1748, com referéncias j& no Capitulo IV, do Livro II, surge ai a mais sedimentada formulagio das idéias que consolidaram o principio. © valor politico, e sobretudo juridico, & luz das miltiplas interpretagées fomecidas pela juspublicistica, determinou as tendéncias predominantes no exame da doutrina. Originariamente, o conteddo preferentemente politica do- minou, ocorrev, depois, a preocupagao do autor em controlar o ilimitado poder da monarquia absoluta e em salvaguardar a liberdade do cidadao, no con- fronto com o Estado. Esses pressupostos levam Franco Basst a assinalar dois momentos légicos distintos ¢ sucessivos. Na primeira fase, surge a oportunidade de se proceder a um fracionamento da autoridade estatal e depois o reconhecimento da ne- 16 R. Inf. legisl. Brasilia a. 19 n, 76 out./dex, 1982 cessidade de determinar a forma como deveré ocorrer. No primeiro momento atende-se As questées politicas e, na segunda etapa, recorre-se ao cardter es- tritamente instrumental, que atinge a problemética juridica, A importancia do princ{pio residiu na possibilidade da elaboracao de um Estado que surge com atividades limitadas. O Estado ideal, delineado em De TEsprit de Lois, é visto pelos pronunciamentos tradicionais no seu signifi- cado rigoroso, desde que chegam a ver os trés poderes como iguais, indepen- dentes € auténomos em suas relagées reciprocas. A nogio tradicional do principio da separagao de poderes teve uma pro- gressiva influéncia na problemética do Estado teed a constineia como passou a ser examinada pelos publicistas (2"). A publicistica contempordnea prefere consagrar a expresso “fungoes funda- mentais do Estado”. Mesmo af consagra a seferéncia a Monresguimy. A teoria das suas atividades conduzem a um conhecimento mais amplo, que levaré 4 necessidade do conhecimento das fungdes essenciais do mesmo, As distintas divisSes que tém um cardter cientifico tomam por base o conhecimento da época em que as doutrinas foram formuladas. Para JELUNEK a distingio mais fecunda e cientifica entre as fungdes do Estado é a que surge do reconhecimento da oposigéo em que se encontram determinados membros do mesmo. A classificago dos contetidos das fungies do Estado nas distintas ordens da administragao nao é uma divisio daquelas, A teoria da separagio dos poderes foi rechagada pela ciéncia juridica alema, que aceitou a teoria da divisio tripartida das fungdes do Estado, que em muitos pontos é formulada de maneira diferente daquela feita por MonTEs- Quizv ¢ seus cOntinuadores. A separagio das fungSes corresponde a divisio do trabalho entre os érgiios. Existe a necessidade de se separarem as fungées em materiais e formais, distinguindo as grandes diregdes da atividade do Estado e as de determinados grupos de érgios. Nao é possivel a identificago entre a atividade do érgio e a fungéo do Estado, como querem muitos. As fungées materiais do Estado surgem da relagio entre a atividade do mesmo e seus fins, As fungdes materiais do Estado so: legislacio, jurisdigéo e administracio, De acordo com a distingéo das fungées normais, divididas em atos particula- tes do Estado, segundo o contetido, em leis, atos administrativos e decisoes judiciais. As leis e as decisoes judiciais tém o cardter de atos de império, A primeira ordena uma regra jutidica, a segunda aponta um caso concreto sob a norma abstrata e decide. As fungdes materiais estio distribuidas entre os distintos generos de érgios relativamente independentes uns dos outros. A separacgéo das fungdes corres- ponde & separagio dos érgios, mas esta separagio niio é absoluta. (7) BASSI, Franco, “I! Principio della Separazione del Poteri (evoluzione problematica)”, Rivista Trimesivate di Dirttto Pubblico, Dott, A. Gtutfré, Milo, 1965, Ano KV, n° 1, Janeiro/margo, 1965, pp. 17 € 38. R. Inf, legisl. Brasilia a. 19 n. 76 out-/dex. 1982 7 Existe uma oposigio com as fungées formais, que sio exercidas pelos 6rgaos legislative, administrativo e judicial. De acordo com este aspecto formal, as _manifestagdes das atividades do Estado surgem em atos formais de legislago, administragdo e justica. Para JELLINEK nfo coincide a oposigio material da legislagio, administragio e jurisdiggo com a atividade formal de seus respectivos érgaos, A teoria constitucional franco-americana vé na separacdo das fungdes formais a melhor garantia do exercicio legal do poder ‘do Estado, dando em conseqiiéncia a liberdade politica dos cidadios. Os poderes formam entre si uma rede em que se entrelagam uns com os outros, influindo-se mutuamente como regulador. A formagio normal das fungées formais opera-se pelo sistema de checks and balances (*). erase Pe O prinefpio da separagio de poderes, de principio politico, na forma entendida por Moxnsston que pete 6 base’ para’ garhtia da liberdade individual, transformou-se, na dogmatica modema, em critério juridico de organizagio do Estado, através de seus érgios com’ a respectiva competéncia. Apesar da regra normal de que a cada érgio ou grupo determinado de érgios deve ser atribuida uma tinica ¢ tipica fungio, néo impede que, de maneira excepcional ¢ subsidigria, possem esses Srglos exeroer uma fungio versa. Denomina-se fungao jurisdicional aquela atividade do Estado destinada a tutelar a ordem juridica, obtendo em casos concretos a declaragio do direito e a observancia da norma juridica preconstituida, mediante a resolugao das controvérsias, que como conflitos de interesses surgiram tanto entre particula- res quanto entre particulares ¢ entes publicos, mediante a atuacio coativa das sentengas. A declaragao do direito e a observacao da lei sio obtidas por meio do proceso, que constitui o complexo de coordenadas visando a provocar f atuagad da vontatie conoreta da lei, por intermédio dos érgaos da. jirisdigdo, relativamente a um bem que o autor pretende seja garantido pela lei. Para Gnorpat é errada a identificagdo do Poder Jurisdicional com o Poder Executive, porque ambos dao provimento a execugdo da lei, Também nio aceita a similitude com o Poder Legislativo, quando alguns pretendem que o iz, algumas vezes, é solicitado a criar a norma a ser aplienda, Para o publi- cista italiano a Constituigao tem dado pouca atengao 4 fungio jurisdicional, deixando que leis especiais disciplinem esta atividade (2°), A primeira classificagio, que se costuma dizer material ou substancial, visa a0 contetido do poder, reduz todas as manifestagSes de poder em trés (8) G, JELLINEK — V. E. ORLANDO, La Dottrina Generale del Diritto dello Stato, Dott, T. Gluffre — Edltore, Milo, 1949, trad. italiana da 3 ed. alem& de Dott. ‘Modestino Petrozztetlo. (23) GROPPALI, Alessandro, Dottrina dello Stato, Droit. A. Giuffré — Editore, Milo, 1062, 84 ed., pp. 160 a 180. ne R, Inf. legisl. Brasilia a. 19 n. 76 out/dex. 1982 fungdes, Esta triparticfio, considerada como aspectos do poder do governo, deve ser entendida no sentido de que sao abstratamente distintas, mas nfo se pode deixar de reconhecer que 0s atos em que se manifestam tém, as vezes, cariter misto, por néo pertencerem inteira e exclusivamente a uma das fungdes. Ao lado da classificagio material, existe a organica ou institucional, desde que as atividades sio realizadas através de érgaos. As fungdes podem ser classificadas quanto as formas que revestem seus atos, Para Sans RoMANo a classificagio formal coincide com a institucional, ‘em muitos de seus aspectos (5°), A doutrina pura do direito de Hans Ketsen, que assenta sobre a constru- do em degraus (Stufenbatr) do ordenamento juridico, introduziu uma dicoto- mia entre legislagio (legis datio) © execugdo (legis executio). Para Ketsen a separagio de poderes designa um principio de organizagio politica, em que se pressupde que os mesmos podem ser determinados como trés fungées coordenadas do Estado, em que & poss{vel definir as linhas que as separam. Criticando a teoria, afirma KELseN que as fungées fundamentais do Estado nfo sao trés, mas duas: criacéo e aplicagio da lei (execugio), fungdes que nao séo coordenadas, mas sub e supra-ordenadas. Nao 6 possivel definir as Tinhas que separam estas fungdes entre si, desde que a distingdio entre criagio apllcagio lo direito que serve de base ao dualismo, Poder Legislative e ler Executivo, tem apenas um cariter relativo, pois em sua maioria os atos do Estado séo ao mesmo tempo atos de criago ¢ de aplicagdo do direito. A legislagio compreende a criagdo das normas juridicas gerais. As Consti- tigdes que consagram o principio da scparagao de podercs autorizam o Chefe do Executive a expedir normas gers em lugar do érgao legislativo, muitas vezes sem autorizagéo especial do mesmo érgéo, em ocasides especiais. As vezes, a_competéncia legislativa concedida ao Chefe do Poder Executivo é ampla. O Chefe do Executivo exercita funcio legislativa quando tem o direito de veto de evitar que normas aprovadas pelo legislative se convertam em leis. Os tribunais realizam fungao legislativa quando esto autorizados a decla- rar leis inconstitucionais. Considera Keisen que é fungio legislativa aquela decisio em caso concreto que se converte em precedente para resolugdo de outros casos similares. Com esta competéncia, o tribunal cria uma norma que se encontra no mesmo nivel das leis que procedem do érgio legislative. A separagdo do Poder Judicial do Poder Executivo s6 ¢ possivl de manei- ra limitada. A restrta dos poderes € impraticével, pois os tipos do atividades usualmente designados por estes termos ndo implicam fungSes (80) SANTI ROMANO, Principios de Direito Constitucional Geral, Editor Revista dos ‘Tribunais, So Paulo, 1972, trad. de MARTA HELENA DINIZ, pp. 224 a 232. R. Inf, fegisl. Brasitia a. 19 n. 76 out./dez. 1982 ny essencialmente distintas. A fungdo judicial & executiva, no mesmo sentido que a fungio que ordinariamente designa esta palavra (31). A autoridade tinica, seja individualizada ou colegiada, constitui para os governados permanente risco de arbitrariedade. Conforme assinala BURDEAU, uando um 6rgio passa a ser o detentor exclusivo do poder estatal, terd este fins contrarios aos" intereses. da coletividade, © risco apontado é corrigido pela distribuigio das prerrogativas do poder publico entre drgios distintos. A doutrina da fungdo do Estado, de Buroeav, no que se refere a um confronto com a formula de Montesgurru, apresenta pontos discutiveis, Ao partir da nogdo de fungio e de suas finalidades, através da aceitagdo do cardter meramente instrumental da mesma, rejeita a tricotomia clAssica para chegar a aceitagio da bipartigio. A funcio que se concretiza na decisio opera-se através da decisio do governo, ao passo que esta opera-se através da fungdo administrativa. Esta exposigao parte da afirmativa de que a teoria a pratica da separagao de poderes sio formuladas por meio de elementos, que propiciam um fracionamento da autoridade e 0 ctitério sobre 0 qual sera Metuado. A reparticio das prerrogativas estatais, calculadas sobre a distingSo das fungées do Estado, dé a entender que a multiplicidade de atuagdes ¢ que justifica a divisio de poder. Para Burprav, deve-se restituir & idéia de divisio de poder sua plena independéncia da teoria das fungdes, pois entende que a classificagéo delas remonta a antiguidade, ao passo que a repartigo foi poste- rior, Diversas modalidades de repartigao funcional de competéncias revelam que a divisio de poder foi efetivada em todos os Estados liberais, Nenhuma das componentes da fore constitucional & tio Jembrada como aquela que consagra a repartigio: totalidade atividade estai via das trés fungoes,Entretanta, psa BuTweav existom escensialmente dune Range no Estado. A primeira ocorre quando o poder estatal, em toda a sua plenitude criadora, autdnoma e independente, realiza a fungio governamental. A outra revela-se atrayés de um poder derivado, secundério € subordinado, que é a fungaio administrativa (32), A dicotomia fundamental da distribuigéo e concentragao do exercicio do poder politico leva Lomwexsrain co exame do dogma politico que ele consi- jera como fundamento do constitucionalismo modemo: a separagéo de . A separagio de poderes nao é mais do que o reconhecimento de que uma parte do Estado tem que cumprir determinadas fungdes, decorrentes do proble- ma téenieo da divisdo de trabalho, sendo que os destinatérios do poder sio beneficiados se clas sao realizadas por diferentes érgios: a liberdade é 0 telos (SL) KELSEN, Hans, Teoria General det Derecho y det Estado, Imprenta Universttéria, México, 1950, trad, de EDUARDO GARCIA MAYNEZ, pp. 268 e ss.; idem, Teorfa Generat del Retado, Editor Nacional, 8.A. México, 1981, trad. de LUIS LEGAZ LA- CAMBRA, pp. 338 e $s. (82 BURDEAU, Georges, “Remarques sur 1a Classification des Fonctions itatiques”, Revue du Dott Pudlic, 1985; tdem, ratte de Science Politique. Regimes Politiques, ‘Tomo IV, Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, Paris, 1952, pp. 202 © a8.; idem Précts de Droit Constituttonnel, pp. 408 € ss. 120 R. Inf. I Brasilia a. 19 n. 76 out/der, 1982 ideolégico da teoria da separagio de poderes, A separagio de poderes é uma forma cldssica de expressar a necessidade de distribuir e controlar respecti- vamente o exereicio do poder politico. A designagio errénea de separacao dos poderes estatais na realidade nao passa de uma distribuicio de deter- minadas fungdes estatais por érgaos diferentes. O conceito de poderes deve ser entendido neste contexto de maneira figurativa, dai que prefere falar em separagdo de fungées em lugar de separagio de poderes (23). Numa demonstragio das particularidades que surgem em torno do enten- dimento dessa doutrina, Grorrrey Mansnatt diz que a expressio separagio de poderes é uma das mais confusas do vocabulario politico e constitucional, pois vem sendo usada com variadas implicagGes. Ao apreciar as formas da separagio, entende que ela agrupa diversas idéias coincidentes que nao sio sinénimas, mas apresentam pontos comuns como ocorre com distribuigao, diferenciagao, isoladamente e confrontagso. Nem todos os regimes apresentam a mesma forma de relacionamento entre os érgios que se ocupam de certas atividades do Estado. O posiciona- mento que Surge entre o Legislativo e 0 Judicidrio é apresentade como o mais crucial para o sistema constitucional. Exemplificando com @ Inglaterra, Gzor- yrey MARSHALL assinala que ha uma concentragio do poder formal no Legis- lativo, que de certa maneira surge como superior ao Executive e Judicial, na estruturago dos érgios do governo. Reconhece, ainda, que em outros sistemas constitucionais percebe-se mais uma separagio de poderes do que uma concentragéo (3), Vérias implicagdes decorrem do funcionamento das estruturas de poder, desde que apresentam particularidades que variam de conformidade com as it que ocorrem com este principio constitucional. Dentre esses entendimentos o Brincipio é essencial 4 determinagio do Estado liberal. Este funciona sob uma dupla separagio: separagio entre a sociedade civil e o Estado, considerada como separagdo externa e separacio de poderes no Estado ou separagéo interna. Tido como dado simétrico na estrutura do Estado liberal, postula mais do que simples técnica de trabalho na conduta dos negécios ‘pitblicos. Trata-se de uma obrigagdo de que as diversas fungdes do Estado sejam asseguradas por érgios independentes uns dos outros, auténomos na sua designagéo e funcionamento. As implicagées teéricas ¢ politicas deste principio de organizagio, apesar das critioas que Ihe sfio feitas ou das referéncias ao mesmo como um mito ou idéia-forca, surgem a todo momento, com incursées constantes A obra de Monresquiru: “Al faut zemarquer quiane lecture attentive du texte de Mores, guy ne fait mulfement apparaitre un principe de séparation des (33) LOEWENSTEIN, Karl, Teoria de la Constitucion, Ediciones Ariel, Barcelona, 1970, 2° ed, trad. de ALFREDO GALLEGO ANABITARTE, pp. 54 4 56. (St) MARSHALL, Geoffrey, Constitutional Theory, 1971, pp. $7 e ss. t the Clarendon Press, Oxford, R, Inf. legis. Brasilia a. 19 n. 76 out/dex. 1982 121 pouvoirs, mais, bien au contraire, celui de la collaboration étroite des pouvoirs entre eux. Les exemples sont nombreux qui montrent comment un acte politique est en réalité le fruit de activité de plusieurs organes dans TEtat” (2), Este critico do Direito Constitucional assinala que nenhum sistema liberal praticou uma estrita separagio de poderes, desde que a concebe impossivel no plano juridico, Essa impossibilidade levou a que todas as Constituigses politicas procurassem organizar, da melhor maneira possivel, a natureza e as modalidades das relugdes entre as diferentes fungées exercidas pelo Estado As teorias clissicas tém permitido ambigiiidades de linguagem e de pensa- mento, dai as leituras possiveis que levam a interpretagées discordantes ou variéveis com a época. Uma primeira ¢ fundamental leitura de MonTESQUIEV, considerada como a mais tradicional, feita por Canné p= Matnerc. Nos nossos tempos, outra leitura, também liberal, chega a conchis6es bem diferentes ¢ Propée outra imagem da separagio, Raymoxp ARON admite que a idéia essencial de Montesquieu nio é a separagio dos poderes no sentido juridico, mas um equilibrio de poderes sociais, condigio da liberdade politica, Expée uma concepgdo da constituigéo de Estados moderados ¢ livres, que instituem 0 equilfbrio de poderes sociais como condigéo da liberdade (33). Pelo levantamento dos autores de manuais, duas conseqiiénclas juridicas podem ser tiradas da teoria da separagéo de poderes: a especializagdo e a in- dependéncia. A especializagio funcional significa que os érgios instituidos sio especializados em determinada fungio. Os limites desse entendimento estdo em que cada fungio nao é monopolizada por um érgio, mas muitos podem participar da mesma. A independéncia orgdnica torna-se necessdria para que © poder nao seja concentrado nas maas de um s6 érgio; é preciso dividir em poderes concorrentes representados por érgios independentes uns dos outros em suas relagies. MicueL Mrante vé o equilibrio dos poderes como equilibrio das forgas sociais, quando examina o projeto de Monresqureu e a natureza da preten- dida separacio, Esta compreensio nao vé na idéia de separagio dos poderes uma repartigio, mas um sistema engenhoso que na realidade beneficia certo grupo. Apesar de reconhecé-lo como ponto central das instituiges, encara-o como um artificio (27), (35) MIAILLE, Michel, L'ttat du Droit, Introduction @ une Critique du Droit Constitu- tionnel, Prangois Maspero, Presses Universitaires de Grenoble, 1978, pp. 87, 95, 96. (98) ARON, Raymond, Les ftapes de la Pensée Sociologique, Gallimard, Bibliothéque des ‘Gelencés Humaines, 1967, p. 40; EISENMANN, Ch., L'Esprit des Lois et la Séparation des Pouzotrs, Mélanges Carré de Malberg, Paris, 1953, pp. 190 @ ss. (31) MIAILLE, Michel, L'ftat du Droit, ob, clt., pp, 217 ¢ 218. 12 2, 19 n. 76 out./der. 1982 Varias dedugdes ocorrem quando atentamos para definir a contribuicao e as conseqiiéncias da teoria da separagao de poderes na evolugdo das ins- tituigdes politicas. Heaman Fiver Jembra que a utilidade politica do relacio- namento entre os poderes ndo depende apenas de sua natureza, mas da men- talidade e procedimento daquele que o exerce. Considera como seu objetivo a defesa de valores espirituais e materiais acerca do controle do governo, no que depende em grande parte das circunstancias que favorecem a sua apli- cagio (9). As explicagdes em toro do assunto e as criticas que lhe s4o apresentadas no acarretam o abandono da terminologia tradicional. Chega-se a afirmar a independéncia ea harmonia teérica dos poderes, bem como, em principio, a predomindncia de qualquer deles. A forma do exercicio de cada um deles pode levar A preponderdneia, desde que a atuacéo de um deles possa superar a dos outros ou no se procure agir com a intensidade que seria prépria: “Antes de entrarmos no assunto, convém atendermos ao seguinte: um conceito é 0 de distingio das fumgées do Estado em fungao le- gislativa, fungaio executiva e func&o judicidria; outro o de separagio joluta dos poderes segundo tal eritério distintivo. Quer se adote o principio da separagdo absoluta, get nao se adote, a distingao existe, porque é de ordem fatica, isto é, pertence & natureza dos fatos da vida social” (%*). Pavto Bonavies, no titulo sobre a queda de um dogma, apresenta a se- paragio de poderes como esteio sagrado do liberalismo. Nesse estudo exa- mina a influéncia que o principio aleancou nas diversas etapas do constitu- cionalismo, para ressaltar aspectos de sua sobrevivéncia no Estado social. Apontando a fase de seu apogeu como base da organizagio politica do Estado liberal-democritico, mostra as transformagées ocorridas em relacio ao mesmo: “Esse principio, que nas origens de sua formulacao foi talvez o ‘mais sedutor, ognetizando os construtores da liberdade contempo- rnea e servindo de inspiragio e paradigma a todos os textos da lei fundamental. como garantia suprema contra as invasGes do arbitrio nas esferas da liberdade politica, j4 ndo oferece em nossos dias o fas- cinio das primeiras idades do constitucionalismo ocidental” (1). Esse publicista aponta o papel histérico que o principio representou. Conclui que @ separacio de poderes como técnica em declinio, em vista de se- patagéo gradual, determinada por novos modos de equilibrio politico, nao est& apenas assentada em justificativas formais de protecio aos direitos indi- viduais. Cumpriu sua missio. (98) PINER, Herman, The Theory and Practice of Modern Government, Methuen & Co. ‘Ltd, Londres, 1964, pp. 94 € 99. (89) MIRANDA, Pontes de, “Independéncia e Harmonia dos Poderes”, Revista de Direito Piblico, Editora Reviste dos Tribunals, 869 Paulo, n° 20, abril/junho 1972, pp. 9 € ss. (4) BONAVIDES, Paulo, Do Estado Liberal ao Estado Social, Edigéo Saraiva, Sio Paulo, 1961, p. 36. BR. Inf, legisl. Brasilia a, 19 n. 76 out/der. 1982 123 No que diz respeito & origem e justificagio da doutrina da divisio de poderes, aceita sua importancia histérica ¢ a sua conveniéncia, através da ex- posiggo dos fatores que contribufram para sua explicagio e o ambiente que propicion a sua concretizagio: “Mas essa divisio no se prende apenas a uma racionalizagio doutrindria, A maneira do que fez Monresgureu para a Franca, quando elaborou as bases teéricas do principio, a saber, em observacdes co- Ihidas na vida constitucional inglesa, sem embargo de a critica dos tratadistas haver subseqitentemente comprovado o engano do inclito fildsofo liberal, engano que, segundo certo autor, foi “o mais fecundo” de que h4 noticia na histéria das politicas da humanidade, por haver permitido o advento do constitucionalismo democritico” (*}. Entendendo-a como técnica de limitagio do poder ou arma de combate aos sistemas tradicionais de opressio politica, Bonavines percebe, entretanto, que ela contribuiu para a limitago maxima dos fins do Estado. O Estado social fez crescer os fins do Estado, pelo que entende ser 0 prinefpio de Montesquieu favoravel & diminuigéo e nao ao alargamento dos seus fins, circunstancia que determinou o recuo ou o abandono desse principio na doutrina moderna. Na apresentagéo dos corretivos & técnica separatista, verifica que téenicas existem, como desmentido A teoria da separacao de poderes na sua interpre- tagio rigorosa: “O sistema de freios e contrapesos constitui a primeira coregdo essencial que se impds ao referido principio, como decorréncia até certo ponto empirica da pritica constitucional, bem que nio esti- vesse ausente das reflexes de Montesquizu (*). Institutos provenientes da impossibilidade de manter os poderes afastados Propiciaram a maior intercomunicagao dos poderes, solidariedade que corrige no Estado democrético moderne o melhor entrosamente entre o individuo e as garantias que lhes sio ampliadas no elenco constitucional e nos remédios favordveis & sua efetivagio. © principio que para Det Vecamo foi impropriamente denominado da diviséo dos poderes, pois com maior rigor deveria chamar de distingdo das fungbes, constitu, ainda hoje, motive para profundas discussoes, mesmo para aqueles que procuram afasta-lo da andlise do constitucionalismo moderno. Nao se pode negar que a reparti¢io do poder do Estado, com distingdes precisas, teve grande significacio técnica e valor jurfdico, ao mesmo tempo que pro- piciou a demarcagio de limites inerentes a cada um dos érgios e permitin ages legais reparadoras nos casos de transgressio (*), (1) BONAVIDES, Paulo, Do Estado Lideral ao Estado Social, ob, cit., p. 4%. (42) BONAVIDES, Paulo, Do Estedo Liberat ao Estado Social, ob. cit., p. 51. (43) VECCHIO, Giorgio Del, Teoria det Estado, Bosch, Barcelona, 1956, trad. de EUSTA- QUIO GALAN ¥ GUTIERREZ, pp. 139 e ss. 144 R. Inf. legisl. Brasilia a, 19. 76 out./dex. 1982

Você também pode gostar