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O Papel dos Atores

do Sistema Penal
na Era do Punitivismo
(O Exemplo Privilegiado
da Aplicação da Pena)
www.lumenjuris.com.br

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João de Almeida
João Luiz da Silva Almeida

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Salo de Carvalho
Mestre (UFSC) e Doutor (UFPR) em Direito
Pós-Doutor em Criminologia (Universidade Pompeu Fabra, Barcelona)
Professor Adjunto do Departamento de Ciências Penais da UFRGS
[http://antiblogdecriminologia.blogspot.com/]

O Papel dos Atores


do Sistema Penal
na Era do Punitivismo
(O Exemplo Privilegiado
da Aplicação da Pena)

CriminologiaS: Discursos para a Academia

Editora Lumen Juris


Rio de Janeiro
2010
Copyright © 2010 Salo de Carvalho

Categoria: Criminologia

Produção Editorial
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA.


não se responsabiliza pela originalidade desta obra.

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou pro-


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Todos os direitos desta edição reservados à


Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Impresso no Brasil
Printed in Brazil

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
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O livro é dedicado ao
Professor Doutor Tupinambá Pinto de
Azevedo, pelo seu compromisso republicano e
democrático com a Universidade pública e pela
sua militância pela humanização do Direito
Penal.
O presente trabalho seria
impossível sem o apoio da equipe do
Escritório “Alexandre Wunderlich &
Salo de Carvalho Advogados Associados”,
integrado por Antônio Tovo Loureiro,
Camile Eltz de Lima, Elisângela
Franco Lopes, Fernanda Luft Tessaro,
Gisele Maldonado Barcellos, Juliana
Oliveira Rocha, Karina Reginatto
dos Santos, Lilian Christine Reolon,
Natalie Ribeiro Pletsch, Paula Lopes,
Paulo Saint Pastous Caleffi, Renata
Saraiva e Sueli dos Santos Meireles.

A análise dos dados somente


foi possível pelo apoio dos Mestres
e Mestrandos Alexandre Costi
Pandolfo, Gregori Elias Laitano,
Marco Antônio de Abreu Scapini,
Raccius Potter, Marcelo Mayora
Alves, Nereu Lima Filho e Thayara
Castelo Branco.

Mariana de Assis Brasil e


Weigert, Amilton Bueno de Carvalho,
Alexandre Wunderlich e Rafael
Braude Canterji, leitores atentos
e interlocutores privilegiados,
possibilitaram o amadurecimento de
inúmeras questões trabalhadas na
pesquisa.

Rodrigo Ghiringhelli Azevedo


contribuiu com importantes
indicações de leitura.
Lia Weigert Bressan auxiliou
na elaboração dos gráficos e Thaís
Weigert realizou inúmeras revisões
no texto.

Elena Larrauri Pijoan, de


forma muito amável, possibilitou
a realização dos estudos de Pós-
Doutorado na Universitat Pompeu
Fabra, em Barcelona, durante os
anos de 2008 e 2009, e forneceu
a orientação segura para o
desenvolvimento e aprimoramento
das ideias presentes na pesquisa.

A Secretaria de Assuntos
Legislativos do Ministério da Justiça
(SAL/MJ), através do Projeto Pensando
o Direito, possibilitou o financiamento
parcial do trabalho, cujo resultado é
exposto na criação do banco de dados
e análise documental dos julgados.
Sumário

Apresentação ........................................................................... xiii


(Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Salo de Carvalho)
Apresentação ............................................................................ xix
Ricardo Timm de Souza (PUCRS)
Introdução ................................................................................. 1

PARTE I
A FORMAÇÃO CULTURAL
DOS ATORES PROCESSUAIS
E O CENÁRIO PUNITIVISTA CONTEMPORÂNEO

1. Vontade de Punir: Populismo Punitivo e Pânicos Morais...... 7


2. Crimes e Prisões no Século XXI ............................................. 15
3. Punitivismo e Reinvenção das Prisões.................................... 27
3.1. Populismo Punitivo e a Reinvenção da Prisão no
Brasil: Diagnóstico Normativo..................................... 32
3.2. O Grande Encarceramento ........................................... 36
3.3. A Centralidade do Cárcere na Lógica Punitivista:
Substitutivos Penais ....................................................... 47
4. Os Atores e as Agências Punitivas no Brasil: Filtros à Inci-
dência do Poder Penal ............................................................. 59
5. Os Paradoxos do Sistema Jurídico-Penal Brasileiro ............... 67
5.1. A Falta de Controle e de Transparência...................... 67
5.2. Cifras Ocultas, Ineficiência Resolutiva e Alta Puni-
tividade ........................................................................... 69
6. As Instituições da Persecução Penal e a Formação Cultural
dos seus Atores: a Tradição Inquisitória ................................. 73

ix
6.1. Estrutura do Sistema Inquisitório e as suas Conse-
quências na Formação dos Atores Processuais ......... 77
6.2. Mentalidade Inquisitória e Formas de Produção da
Verdade ........................................................................... 84
7. Os Atores da Persecução Penal e a Cultura Punitivista Con-
temporânea .............................................................................. 97
7.1. As Funções do Ministério Público na Nova Ordem
Constitucional e o Perfil Político-Criminal dos seus
Integrantes ....................................................................... 99
7.2. As Funções da Magistratura na Persecução Criminal.. 103

PARTE II
APLICAÇÃO DA PENA
E PUNITIVISMO NO BRASIL
(EXPERIMENTO E
ESTUDO DE CASOS)

8. Aplicação Judicial da Pena no Brasil: Tema, Problema e Pro-


cedimento Metodológico da Investigação ................................ 115
8.1. Referenciais Bibliográficos (Fase 01) ........................... 118
8.2. Levantamento Jurisprudencial (Fase 02) .................... 119
8.3. Critérios de Corte do Número Total de Acórdãos:
Metodologia, Objetivos e Dados de Análise ............. 122
8.4. Levantamento da Jurisprudência Nacional e Cria-
ção do Banco de Dados ................................................. 137
8.4.1. Levantamento de Dados no Supremo Tribunal
Federal ..................................................................... 137
8.4.2. Levantamento de Dados Superior Tribunal de
Justiça ....................................................................... 138
9. A Motivação Judicial na Definição da Pena ........................... 145
10. Estrutura da Aplicação da Pena no Brasil ............................ 151
10.1. Eleição da Pena Cabível .............................................. 152
10.2. Quantificação da Pena ................................................ 153
10.2.1. Pena-Base ................................................................ 155
10.2.2. Pena Provisória e Pena Definitiva ....................... 160
10.3. Qualidade de Pena (Regime) e Substitutivos Penais .. 161

x
11. Critérios de Aplicação da Pena-Base pelos Tribunais Supe-
riores no Brasil: Análise Qualitativa .................................... 165
11.1. Advertência: Sobre o Conteúdo dos Julgados e os
Critérios da Análise Qualitativa ................................ 169
11.2. Valoração e Conceituação das Circunstâncias Judi-
ciais ................................................................................. 170
11.2.1. Dupla Valoração de Circunstâncias: Violação ao
Princípio Ne Bis in Idem ........................................ 171
11.2.2. Culpabilidade: Imprecisão Conceitual ............... 179
11.2.3. Volatilidade dos Conceitos de Personalidade e
Conduta Social ....................................................... 184
12. Problemas na Aplicação da Pena Provisória (Atenuantes e
Agravantes) pelos Tribunais Superiores no Brasil: Análise
Qualitativa ............................................................................. 193
12.1. Aplicação de Atenuantes Abaixo do Mínimo Legal... 193
12.2. (In)Constitucionalidade da Agravante da Reinci-
dência............................................................................. 197
13. Aplicação da Pena Definitiva pelos Tribunais Superiores no
Brasil: Análise Qualitativa .................................................... 201
13.1. Quantificação da Minorante da Tentativa ................ 201
13.2. Critério de Aplicação e de Aumento da Pena do
Crime Continuado ....................................................... 204
13.3. (Des)Proporcionalidade do § 4º, Art. 155 do Códi-
go Penal ......................................................................... 208
13.4. Motivo de Valor Social, Intensidade da Emoção e
Provocação da Vítima: Critério de Diminuição de
Pena................................................................................ 212
13.5. Arma de Fogo Desmuniciada e § 2º, Inciso I, Art. 157,
Código Penal ............................................................... 214
13.6. Concurso de Causas Especiais de Aumento de Pena . 215
14. Questões Processuais na Aplicação da Pena pelos Tribunais
Superiores no Brasil: Análise Qualitativa ............................ 219
14.1. Dever de Fundamentar a Aplicação da Pena........... 219
14.2. Questão Probatória: Confissão. Fundamentação de
Juízo Condenatório e Não-Aplicação da Atenuante ..227

xi
CONCLUSÕES

15. As Reformas Penais e o Papel dos Atores do Sistema Penal


na Era do Encarceramento em Massa ................................... 231
16. O Estado Penal e os Atores das Ciências Criminais ............. 239
17. Resistências (Im)Possíveis .................................................... 245
18. Conclusão Específica: Reformas Penais, Punitivismo e Res-
ponsabilidade Político-Criminal: Duas Propostas Legislativas . 253
18.1. Vedação Expressa ao Encarceramento...................... 254
18.2. Responsabilidade Político-Criminal ......................... 257
19. Atuação no Campo Punitivo e Redução de Danos ............... 263
20. Conclusão Específica: Limites e Critérios de Aplicação da
Pena e Punitivismo no Brasil ............................................... 267
Bibliografia .................................................................................. 273

xii
Apresentação

CriminologiaS: Discursos para a Academia

A ideia de lançar uma coleção acadêmica na linha de pes-


quisa da Criminologia surgiu da constatação do avanço da
disciplina no Brasil.
Nas últimas duas décadas, dois institutos, vinculados
fundamentalmente à área do direito – o Instituto Carioca de
Criminologia (ICC) e o Instituto Brasileiro de Ciências Cri-
minais (IBCCrim) –, com muita competência, congregaram os
fóruns de debate criminológicos, realizando eventos, finan-
ciando publicações, realizando concursos, dentre uma série
de importantes e destacadas atividades. No campo edito-
rial, as revistas Discursos Sediciosos (ICC) e Revista Brasileira
de Ciências Criminais (IBCCrim) e as coleções Pensamento
Criminológico (ICC) e Monografias (IBCCrim) foram responsá-
veis pela divulgação, ao público nacional, de trabalhos clássi-
cos e de inovações no pensamento criminológico. Assim, ao
mesmo tempo em que estes veículos resgataram importan-
tes obras, com a tradução de textos fundamentais, lançaram
novos autores que hoje representam o que há de melhor na
academia criminológica brasileira. Nilo Batista e Alberto Silva
Franco podem ser nominados como os legítimos representan-
tes do esforço que move os Institutos para consolidar uma
tradição crítica nas Ciências Criminais do Brasil.
Paralelamente ao desenvolvimento do campo dos estu-
dos criminológicos vinculados ao Direito, a dimensão e o im-
pacto das diferentes manifestações da violência sobre o tecido

xiii
social e a incapacidade do sistema de segurança pública e de
justiça criminal em responder de forma minimamente eficien-
te e juridicamente correta as demandas de controle do crime
começaram a chamar a atenção dos cientistas sociais. Possível
indicar como marco inicial, para além de trabalhos pioneiros,
a criação, nos anos 80, do Núcleo de Estudos da Violência
(NEV), na Universidade de São Paulo, e os trabalhos reali-
zados por pesquisadores, como Sérgio Adorno, Paulo Sérgio
Pinheiro, Alba Zaluar, Luiz Eduardo Soares, José Vicente
Tavares dos Santos, Roberto Kant de Lima e Michel Misse. E
seguindo esta geração de investigadores, novos pesquisado-
res vêm desvendando os mecanismos de produção e reprodu-
ção social e institucional da violência no Brasil.
Nos anos 90, os estudos sobre a violência e a seguran-
ça pública deixaram de ser exclusividade dos estudiosos do
Direito Penal e passaram a constituir um dos campos mais
destacados da produção acadêmica no âmbito de programas
de pós-graduação em Sociologia, Antropologia e Ciência
Política, com a criação de grupos de pesquisa em vários cantos
do país. Representativos deste crescimento são os Grupos de
Trabalho realizados nos Encontros Nacionais da Associação
Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs)
e nos Congressos da Sociedade Brasileira de Sociologia
(SBS) e da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) so-
bre Violência, Conflitualidade e Administração Institucional de
Conflitos, não obstante o crescimento da produção de teses e
dissertações sobre estes temas.
Com base nestes estudos, dispomos hoje de um impor-
tante acervo de pesquisas de diferentes perspectivas teórico-
-metodológicas que permite indicar caminhos para o enfren-
tamento de um problema cujas vias de equacionamento estão

xiv
inexoravelmente vinculadas às possibilidade de construção
democrática no Brasil.
Neste mesmo período de consolidação do Instituto
Carioca de Criminologia e do Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais, e de desenvolvimento dos estudos sobre vio-
lência, conflitualidade e segurança pública no âmbito das
Ciências Sociais, a Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul lançou o projeto de criação do Programa de
Pós-Graduação em Ciências Criminais. Sob a coordenação
da incansável Ruth Gauer, desde a sua fundação em 1996, o
PPGCCrim destacou-se como o primeiro programa nacional
de pós-graduação com área de concentração específica nas
Ciências Criminais e linhas de pesquisa que contemplam, de
um lado, o campo da Criminologia e do Controle Social e, de
outro, com perfil normativo, a Dogmática Jurídico-penal (sis-
temas penais contemporâneos).
A primeira geração de mestres formados pelo PPGCCrim
da PUCRS, capitaneada por Alexandre Wunderlich, orga-
nizou-se em torno do Instituto Transdisciplinar de Estudos
Criminais (!TEC). O !TEC mobilizou o cenário universitário do
Rio Grande do Sul e sua publicação oficial (Revista de Estudos
Criminais) ganhou destaque no panorama nacional. Na atu-
alidade, uma nova geração de mestres em ciências criminais
que frequentou o PPGCCrim inova o saber criminológico.
Aglutinados no Instituto de Criminologia e Alteridade (ICA),
estes jovens pesquisadores oxigenam o debate na academia
gaúcha, consolidando pesquisas de vanguarda no campo cri-
minológico a partir de uma clara percepção das fronteiras e
dos horizontes da disciplina – sobretudo a radical diferencia-
ção que demarca a Criminologia como o saber autônomo e crí-
tico da limitada análise normativa fornecida pelas Dogmáticas
Penais, mesmo as autodenominadas críticas.

xv
A série CriminologiaS: Discursos para a Academia inau-
gura seus trabalhos com a publicação de cinco dissertações
representativas dessa dupla vertente de estudos criminoló-
gicos, em diálogo com o Direito, a Filosofia, a Psicanálise e
as Ciências Sociais: Alexandre Costi Pandolfo (A Criminologia
Traumatizada: um Ensaio sobre Violência e Representação dos
Discursos Criminológicos Hegemônicos no Século XX), Carla
Marrone Alimena (A Tentativa do (Im)Possível: Feminismos e
Criminologias), Fernanda Bestetti de Vasconcellos (A Prisão
Preventiva como Mecanismo de Controle e Legitimação do Campo
Jurídico), José Antônio Gerzson Linck (A Criminologia nos Entre-
Lugares: Diálogos entre Inclusão Violenta, Exclusão e Subversão
Contemporânea), Marcelo Mayora Alves (Entre a Cultura do
Controle e o Controle Cultural: um Estudo sobre Práticas Tóxicas
na Cidade de Porto Alegre).
Em conjunto com as publicações dos coordenadores da
coleção – Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo (Sociologia e Justiça
Penal: Teoria e Prática dos Estudos Sociocriminológicos) e Salo de
Carvalho (O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo:
o Exemplo Privilegiado da Aplicação da Pena) –, a série inaugural de
CriminologiaS: Discursos para a Academia reforça o papel da
academia na construção de um sólido saber crítico.
Em uma era de pasteurização e de mercantilização dos
saberes, com o ensino universitário imerso na lógica atuarial
das metas quantitativas e com o império da lógica manualís-
tica que traduz o descomprometimento do mercado editorial
com a publicação de sérias obras propedêuticas e de investiga-
ções específicas em temas sensíveis, a academia nacional vive
seu período de maior crise. Neste cenário de educação vir-
tual, muitos pesquisadores – termo utilizado neste momento
para designar o investigador comprometido com a formação e
a densificação do pensamento acadêmico crítico – encontram-

xvi
se no dilema entre o imobilismo ou o assimilacionismo, ou seja,
entre cair no ostracismo e abandonar projetos sérios ou aderir
à lógica do mercado educacional e agir pensando exclusiva-
mente na sua promoção pessoal, fenômeno este que pode ser
denominado de carreirismo acadêmico.
Todavia, conforme reivindica Ricardo Timm de Souza, é
necessário transformar a crise em crítica.
Desde a perspectiva estridentemente transdisciplinar que
orienta as pesquisas publicadas nesta coleção, a possibilida-
de de um saber criminológico crítico é visualizada através
do diálogo franco com os demais campos das humanida-
des, notadamente a Sociologia, a Antropologia, a Filosofia e
a Psicanálise, e com os saberes tradicionalmente desqualifi-
cados pelas ciências como profanos, sobretudo a Arte. Sem,
contudo, cair na tentação de disciplinar a transdisciplinaridade,
isto é, criar um novo campo hermético e dogmático a partir
da conciliação de dois ou mais discursos científicos. Não por
outra razão a enunciação do título da coleção no plural.
A série de publicações de trabalhos essencialmente aca-
dêmicos (monografias, dissertações e teses) pretende cons-
truir mais um espaço de diálogo, ser mais um canal de divul-
gação do pensamento crítico. E reivindicar a postura crítica
implica, necessariamente, em realizar autocrítica, o que é re-
fletido na perspectiva de desconstrução que os investigado-
res associados têm sobre as falsas imagens acadêmicas que
habitam determinadas mentes e certas instituições. A ironia
kafkiana do subtítulo da coleção pauta esta gaia abordagem
que conduz o projeto.
O projeto CriminologiaS: Discursos para a Academia
está vinculado formalmente ao Departamento de Ciências
Penais da UFRGS e ao Departamento de Direito Penal e
Direito Processual Penal da PUCRS. No entanto, apesar do

xvii
localismo da coordenação, o conselho editorial foi formado
de maneira a dar representatividade nacional e abrangência
transdisciplinar, não limitando o projeto à determinada re-
gião ou a campo de investigação.
Fundamental, pois, o apoio da Editora Lumen Juris, que
vem apostando na divulgação de trabalhos com características
distintas daqueles que habitam a grande imprensa editorial na
área das Humanidades, sobretudo no campo do Direito.
Assim, a aposta é que a série CriminologiaS: Discursos
para a Academia atinja uma grande parcela de leitores des-
contentes com o marasmo editorial brasileiro e ansiosos para
receber conteúdo acadêmico de qualidade, em oposição à ló-
gica manualesca que vem preponderando no mercado.

Porto Alegre, inverno de 2010.

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo (PUCRS)


Salo de Carvalho (UFRGS)

xviii
Apresentação

CriminologiaS

A “combinação etimológica” greco-latina “criminologia”


atravessa no momento presente a crise gerada pelo fruto de-
senvolvido, ao longo do tempo, desde sua própria genealogia,
exatamente como seus infinitos assemelhados – da socio-logia
à antropo-logia, da mito-logia à bio-logia. Ramos da ciência
ou do saber – da questão pelo ser em algum de seus aspectos
ou formas, para falar como os inarredáveis ancestrais de todo
o conhecimento científico ocidental, os filósofos gregos – que
se perguntam, sempre presentes, pela razão de seu próprio
existir em função dos objetos no qual se focam –, navegam
todos esses conceitos no mar tempestuoso da indeterminação
que perdeu a consciência de sua raiz, ou seja, a visibilidade real de
seu sentido, na ilusão de que este fosse tão óbvio que todo falar
sobre se tornasse supérfluo. O fluxo gerador das linguagens,
que geram os conceitos, que a Filosofia organiza em termos
causais e categorias através do logos, oportunizando assim o
surgimento e desenvolvimento das ciências, levanta, ao assu-
mir feições de especialidades, prematuramente, na agitação
da modernidade e no frenetismo da contemporaneidade, o
vôo temerário da auto-suficiência. Vôos prematuros e teme-
rários são vôos de Ícaro: a queda é longa, proporcional exata-
mente à pretensão de auto-suficiência. Restam os destroços: a
questão do sentido.
É, portanto, da questão do sentido que se trata – dir-se-ia
filosoficamente: a questão da multiplicidade dos sentidos. E a an-

xix
CriminologiaS: Discursos para a Academia

fibologia da palavra “sentido”, sábia como todas as palavras


que resistiram ao tempo, já diz tudo. Sentido aponta cami-
nhos, direções possibilidades, ousadia, télos; sentido aponta
origens, fontes, ancestralidade, arché. Ao mesmo tempo. O tem-
po da ética. Porque a questão do sentido é, nada mais, nada
menos, do que a questão de saber o que fazer com o tempo de
que se dispõe. E fazer – mesmo em sua intelectualizada versão
de tramas complexas de conceitos – é, necessariamente, uma
questão ética.
A racionalidade encontra, assim, sua necessidade mais
profunda, que é, igualmente sua condição de sobrevivência
em meio à tempestade: percorrer filosoficamente a arque-olo-
gia das categorias, refazendo caminhos, passando por lógicas,
conceitos e suas tramas, procurando chegar à fons vitae das
linguagens que se dão no tempo, transformando-o em tem-
pos – ou seja, rompendo finalmente com a unidade “de Jônia
a Jena”, esses dois mil e quinhentos anos que são os nossos e
dos quais vivemos –, e que, tomando uma outra vereda que
aquela – sediciosa – que culmina nas cores fátuas, nos exotis-
mos hipócritas e na infinitas razões ardilosas que justificam
o indecente, desemboque no instante de origem dos tempos
que ainda restam: os instantes de desconstrução da violência.
Múltiplos como os instantes que ainda restam. Pluralizados
como alguém que descobre não estar só no mundo. Variados
como os que encontram uns aos outros. Atentos à tentação da
auto-suficiência. Com verdadeiro “S” final.

Ricardo Timm de Souza (PUCRS)

xx
Introdução

A análise dos dados de encarceramento no Brasil nas


duas últimas décadas permite diagnosticar o ingresso do país
no cenário punitivista internacional. No entanto esta situação
de encarceramento em massa gera verdadeiro paradoxo, pois
este de período recrudescimento das leis penais é, ao mesmo
tempo, o momento de transição e de consolidação democráti-
ca após a experiência dos anos de Ditadura Militar.
Neste quadro, a investigação pretende analisar o papel
dos atores do sistema penal, sobretudo dos operadores do di-
reito, no panorama político-criminal punitivista que se inst-
aura paralelamente à promulgação da Constituição de 1988 e
à luta pela constitucionalização das leis penais e processuais
penais no Brasil.
A abordagem dos temas de investigação é, fundamental-
mente, criminológica e crítica, embora o objeto de análise
(critérios judiciais de aplicação da pena) esteja, em princípio,
vinculado à dogmática jurídico-penal. É que a perspectiva cri-
minológica permite olhar sensível sobre as agências e os ato-
res que sustentam o sistema punitivo brasileiro, sem incorrer
nos vícios paleopositivistas comuns à análise dogmática que,
no caso, estaria limitada ao horizonte interpretativo do direito
penal – normativo, portanto.
O texto inicia com reflexão que procura aterrissar os dis-
cursos penalógicos no panorama punitivista que marca os
países ocidentais. Desta forma, pretende realizar o diagnós-
tico normativo e empírico dos fatores que contribuíram para
a adesão nacional às políticas de encarceramento. Outrossim,

1
CriminologiaS: Discursos para a Academia

procura encontrar elementos históricos que forneçam pistas


sobre a edificação autoritária das instituições jurídico-penais
brasileiras. Identifica, pois, a formação cultural inquisitó-
ria dos operadores jurídicos nacionais, dado que possibilita
compreender a natural identificação da política e da jurídica
criminal brasileira com o projeto transnacional de grande en-
carceramento.
Com o objetivo de demonstrar empiricamente os efeitos
da formação inquisitória dos atores da cena jurídica e a sua
adesão ao punitivismo – fenômeno derivado do que se deno-
minará como vontade de punir –, foi realizado levantamento
de dados e análise qualitativa de julgados dos Tribunais Su-
periores (Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de
Justiça). A partir da criação de instrumento de análise, foram
verificados os critérios utilizados pelos Tribunais Superiores
para quantificação da pena carcerária. O período de análise
foi delimitado no primeiro semestre de 2008.
A hipótese que orientou o trabalho foi a de que a forma-
ção autoritária das instituições penais e a inserção dos seus
atores na cultura inquisitória permitem a adesão do Brasil às
políticas globais de hiperencarceramento, situação que acaba
sendo densificada na realidade marginal da América Latina.
O objetivo da investigação, portanto, é o de analisar o pa-
pel dos atores do sistema penal no cenário punitivista e os reflexos
na política criminal brasileira. Apesar de os dados relativos ao
encarceramento serem absolutamente preocupantes, parte-se
do pressuposto de que a análise exclusiva da situação prisio-
nal é insuficiente, pois revela apenas os resultados legislativos
de processo que atinge toda a persecução penal, da investiga-
ção do fato à execução da pena.
A investigação da formação cultural e das tendências po-
lítico-criminais dos atores que põem em marcha a persecução

2
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

criminal permite compreensão global do problema e, em con-


sequência, facilita projetar alternativas viáveis para redução
dos danos causados pelo projeto punitivista de edificação de
Estados penais.
Importante referir que a presente publicação é fruto de
dois projetos de pesquisa complementares.
A pesquisa documental realizada nas Cortes Superio-
res foi financiada pelo Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), a partir de pesquisa apresentada
para a linha de pesquisa sobre pena mínima, do projeto Progra-
ma Pensando o Direito, da Secretaria de Assuntos Legislativos
(SAL) do Ministério da Justiça. Realizada ao longo do ano de
2008, foi criado banco de dados e desenvolvida análise quali-
tativa dos julgados pelo grupo de investigação que, naquele
momento, estava vinculado ao Programa de Pós-Graduação
em Ciências Criminais da PUCRS. O trabalho foi finalizado e
o relatório aprovado pelos técnicos da Secretaria de Assuntos
Legislativos (SAL).
Em paralelo à pesquisa sobre pena mínima, foi realizado
estudo sobre o papel dos atores jurídicos na realidade político-
-criminal punitivista junto ao programa de Pós-Graduação em
Direito, linha de Criminologia, da Universidade Pompeu Fa-
bra, Barcelona. Esta investigação de pós-doutoramento, reali-
zada nos anos de 2008 e 2009, sob a orientação da Profa. Dra.
Elena Larrauri Pijoan, foi concluída em maio de 2010, com
a apresentação e aprovação de ensaio teórico homônimo ao
presente livro.
A pesquisa neste momento publicada é, portanto, versão
unificada e reduzida dos produtos finais destes dois projetos
autônomos, devidamente harmonizados, revisados e atuali-
zados.

3
PARTE I
A Formação Cultural
dos Atores Processuais
e o Cenário Punitivista
Contemporâneo
1.
Vontade de Punir: Populismo
Punitivo e Pânicos Morais

A crise do Welfare State nos países centrais, que culmi-


na na década de 80, imprime profundas alterações no cenário
político-econômico mundial e, agregada aos efeitos provoca-
dos simbolicamente pela queda do Muro de Berlim, cria as
condições de implementação das políticas neoliberais no final
do século XX.
No novo cenário, com a constrição dos investimentos
em políticas públicas na área social, a estrutura de apoio e
de avaliação dos condenados criada pelo correcionalismo
demonstra-se inviável. Por outro lado, a própria legitimidade
de manutenção financeira do modelo ressocializador é ques-
tionada, pois no discurso político oficial o momento é o de
estabelecer prioridades nos investimentos públicos, restando
a recuperação dos condenados em plano secundário.
A desestabilização do pensamento correcionalista é pro-
vocada por dois distintos discursos deslegitimadores. O pri-
meiro, relativo à deslegitimação político-econômica, deriva
da falta de capacidade ou de interesse político-econômico em
manter a estrutura penal-welfare; o segundo, referente à desle-
gitimação teórico-acadêmica, decorrência das críticas sobre a
intervenção estatal com objetivo de correção dos condenados
(criminologia crítica e garantismo penal) e à falta de contro-

7
CriminologiaS: Discursos para a Academia

le sobre regime de penas altamente flexíveis (teoria do justo


merecimento).
As desqualificações que atingem o modelo penal inter-
vencionista abrem espaço para alterações nas finalidades po-
líticas da punição e, subsidiariamente, nas construções teóri-
cas sobre os sistemas de penas. Importante perceber, porém,
que estas desqualificações são direcionadas desde locais po-
lítico-ideológicos absolutamente distintos: a deslegitimação
estrutural advém do pensamento político conservador e a te-
órica das tendências acadêmicas críticas, não sendo cabíveis,
portanto, quaisquer aproximações.
Outrossim, paralelo ao avanço do pensamento con-
servador no espaço político, o Ocidente assiste, a partir da
década de 80, ao real crescimento nas estatísticas criminais
relativas aos tradicionais crimes violentos e, ao mesmo tem-
po, ao surgimento de novas formas de dano que fomentarão
novas espécies de criminalização. Há, portanto, significativa
mudança quantitativa e qualitativa do fenômeno crime ou da
questão criminal. Entende-se por questão criminal os fenômenos
relativos às práticas delitivas e suas circunstâncias, ou seja, as
formas do delito, seu o modo de execução, as consequências
que produz e grau de vitimização que provoca. Alterações na
questão criminal provocam, inexoravelmente, modificações na
questão penal, ou seja, nos procedimentos e nos mecanismos
de atribuição de responsabilidade regidos pelo direito penal
e processual penal.
O novo ambiente político-econômico e social possibilita
o desenvolvimento daquilo que Denis Salas nominou como
vontade de punir.1 A vontade de punir, que emerge como sinto-
ma do sistema político, segue a mesma lógica da vontade de

1 Salas, La Volontè de Punir, pp. 103-138.

8
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

sistema que caracteriza as ciências (criminais)2. Como legado


da racionalidade instrumental, a vontade de sistema se carac-
teriza pela construção de modelos políticos e científicos a par-
tir de fórmulas totalizadoras de compreensão dos fenômenos,
circunstância que produzirá imagens e representações falsas,
como a de que a redução da complexidade do problema ga-
rante estabilidade e segurança.
O sintoma contemporâneo vontade de punir, que atinge
os países ocidentais e que desestabiliza o sentido substan-
cial de democracia, propicia a emergência das macropolíticas
punitivistas (populismo punitivo), dos movimentos político-
criminais encarceradores (lei e ordem e tolerância zero) e das
teorias criminológicas neoconservadoras (atuarismo, geren-
cialismo e funcionalismo-sistêmico).
Neste cenário, Elena Larrauri aponta quatro fatores que
possibilitam condições de consolidação do populismo puni-
tivo nos países ocidentais: (1º) o neoliberalismo econômico, que
rompe com a ideia de Estado Social e define formas de gover-
nar através do crime, consolidando Estados punitivos; (2º) o
neoconservadorismo político, que enfatiza a mensagem da peri-
culosidade da delinquência; (3º) o sentimento de insegurança
ontológica, derivado dos novos riscos e da desagregação da co-
munidade local e do grupo familiar tradicional, que se projeta
nos grupos econômicos-sociais vulneráveis; e (4º) o aumento
continuado do delito e seu redimensionamento em formas or-
ganizadas e transnacionais.3
A prisionalização massiva contemporânea não pode, po-
rém, ser restringido ao aumento do número de delitos, inclu-
sive porque as taxas internacionais de criminalidade violenta,

2 Sobre a vontade de sistema nas ciências criminais, conferir Carvalho, Antima-


nual de Criminologia, pp. 35-54.
3 Larrauri, Populismo Punitivo... y como Resistirlo, pp. 11-14.

9
CriminologiaS: Discursos para a Academia

em geral, têm sido reduzidas, conforme será demonstrado.


Percebe Larrauri, portanto, que as taxas de encarceramento
são construções políticas decorrentes de decisões em distintas
esferas: “(...) o aumento de pessoas que estão na prisão não repro-
duz o aumento da delinquência, mas multiplicidade de outros fato-
res, como decisões legislativas, sensibilidade judicial e capacidade e
limites do próprio sistema para processar os diversos atos delitivos.”4
Portanto a questão seria definir quais os fatores que pos-
sibilitam afirmar ser determinada realidade político-criminal
classificada como punitivista ou, em termos mais precisos, se
os dados relativos aos índices de encarceramento seriam sufi-
cientes para indicar o nível de punitivismo de uma sociedade.
Apoiada em Nelken, Larrauri constata que uma socieda-
de poderia ser considerada não punitiva por ter baixas taxas
de encarceramento, mas, em termos de controle social infor-
mal, ser bastante intolerante com o delito e o desvio, fator que
possibilitaria fosse adjetivada como punitivista. De igual for-
ma, extenso rol de delitos previstos na Lei penal, seguido de
cominações abstratas de penas altas, poderia indicar adesão
às políticas punitivas, porém o baixo grau de incidência das
agências punitivas na efetivação do programa criminalizador
indicaria baixo nível de punitividade.5
Não obstante, indicadores de análise como sentimento
de impunidade e sensação de insegurança, comumente expostos
pelos meios de comunicação de massa como conteúdo de
demandas criminalizantes, poderiam indicar baixo grau de
punitivismo decorrente de alta taxa de ineficiência do siste-
ma penal ou da alta tolerância da comunidade com práticas
delituosas.

4 Larrauri, Populismo..., p. 14.


5 Larrauri, La Economia Política del Castigo, pp. 02-03.

10
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

No entanto estes referentes de análise, apesar de relevan-


tes em termos político-criminais pelos indícios que fornecem
ou pela simbologia que representam, apresentam incontestá-
veis dificuldades de averiguação, fato que torna questioná-
vel sua utilização como critérios de graduação dos níveis de
punitividade social. A ausência de instrumentos eficazes para
demonstrabilidade empírica de indicadores como sentimento
de impunidade e sensação de insegurança, amplamente utilizados
como argumentos de ampliação do punitivismo pelos empre-
endedores morais, torna volátil a associação entre medo e da-
manda sancionatória.
É notório, pela sua própria natureza, que categorias que
projetam sentimentos e sensações se constituem como indi-
cadores imprecisos, sendo altamente questionáveis as meto-
dologias que procuram realizar sua comprovação e calcular
sua intensidade. Difícil e impreciso, portanto, confirmar ou
refutar se efetivamente, em determinada sociedade, a sensa-
ção de insegurança e o sentimento de impunidade são altos
ou baixos.6 Não obstante, análise dos discursos político-crimi-

6 A partir da década de 70, com as preocupações decorrentes das campanhas


de pânico moral, inúmeras metodologias foram criadas para realizar a
graduação do sentimento de insegurança. O significado e a valoração da
insegurança pública em relação ao crime adquirem dimensões emocionais,
cognitivas e comportamentais que projetam distintas ênfases metodológicas.
Conforme destacam Gerber, Hirtenlehner e Jackson, em especial referência
às pesquisa sobre segurança na Alemanha, Áustria e Suíça, “modelos
explicativos, ferramentas empíricas e discussões políticas foram recebidas e muitas
vezes adotadas acriticamente” (Gerber, Hirtenlehner & Jackson, Insecurities
about Crime in Germany, Austria and Switzerland, p. 151).
Apontam os autores, contudo, que inúmeras e distintas fontes e métodos têm
sido utilizados, circunstâncias que alteram, inclusive, o foco se comparadas
às investigações sobre medo do crime nos países europeus continentais e
anglo-saxões – “enquanto a literatura britânica e americana enfatiza o papel da
vizinhança e da comunidade, a pesquisa alemã está mais preocupada com o impacto
das incertezas globais e remotas no bem-estar dos cidadãos” (Gerber, Hirtenlehner
& Jackson, Insecurities..., p. 152).

11
CriminologiaS: Discursos para a Academia

nais revela sua utilidade publicitária e/ou ideológica, normal-


mente para substancialização de práticas punitivas violentas.
Conforme inúmeros estudos criminológicos têm de-
monstrado, o medo do delito e o delito mesmo são fenôme-
nos distintos, e na maioria dos casos o sentimento de insegu-
rança excede superlativamente a realidade criminal. Segundo
Hassemer, “criminalidade e medo do crime não são como a coisa e
a sua imagem no espelho. Sentimento de ameaça e insegurança não
são meros reflexos de ameaças reais, mas também consequência de
circunstâncias de dessocialização e intranquilidade sociais.”7
Todavia, conforme sustenta Barry Glassner, “um dos pa-
radoxos da cultura do medo é que sérios problemas permanecem
ignorados, apesar de originarem precisamente aqueles perigos que
a população mais abomina.”8 Dentre estes principais fatores de
ansiedade, a quantidade e a gravidade dos crimes encontra
destaque. Demonstra Gassner, porém, que os pânicos morais,
conceito trabalhado por Cohen9, são normalmente amplifica-
dos pelos meios de comunicação de massa, que interpretam
e expressam incidentes isolados como epidemias, causando
traumas sociais. Em precisa análise sobre a forma e o conte-

Note-se que a definição do foco de interpretação – do aspecto comunitário ao


global – implica necessariamente a alteração da estratégia de pesquisa, sendo
incabível pensar em adequação e concretude de dados. Sobretudo em países
sem tradição em pesquisas criminológicas empíricas o mesmo em tabulação
estatísticas de dados sobre crime e criminalidade como é o caso do Brasil.
7 Hassemer, Segurança Pública no Estado de Direito, p. 163.
8 Glassner, The Culture of Fear, p. xxvi.
9 O conceito de pânico moral, introduzido pela teoria do etiquetamento – em
especial por Stanley Cohen no clássico estudo Folk Devils and Moral Panics
(1972) – adquiriu, no final do século passado, importância fundamental para
análise e compreensão da cultura ocidental. Não por outra razão é categoria
instrumenta da sociologia, psicologia social, antropologia, jornalismo e,
logicamente, das ciências criminais.
Sobre as origens da categoria, os problemas e as limitações conceituais, e
as perspectivas contemporâneas, conferir Garland, On the Concept of Moral
Panics, pp. 09-30.

12
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

údo de abordagem da questão criminal realizada pela mídia


norte-americana, o autor expõe os mecanismos de constru-
ção dos pânicos através de falsas imagens ou de representações
distorcidas da violência. Gangues juvenis, homicidas em série,
cybercriminosos, adolescentes armados, maníacos estupradores,
traficantes de drogas e sequestradores de crianças são caracte-
rizados como os superpredadores urbanos que geram instabi-
lidade e caos na sociedade norte-americana contemporânea. O
exagero nos dados e a inversão do significado dos indicadores
oficiais de violência permitem que o autor revele por que os nor-
te-americanos têm medo das coisas erradas.10
Pesquisa realizada por Roberts, Stalans, Indermaur e
Hough, a partir de entrevistas no Canadá, Estados Unidos,
Inglaterra, Austrália e Nova Zelândia, demonstra como “(...)
as pessoas tendem a crer que há mais delito do que existe, que o delito
é mais grave do que realmente é e que as penas que os Tribunais im-
põem são menos severas do que realmente são. Ou seja, tende a crer
que a situação está mais descontrolada do que efetivamente está: mais
delito, sempre de caráter violento e condenações benevolentes.”11
No entanto expõem os pesquisadores que as mesmas pesso-
as ao serem informadas dos princípios que regem o sistema
penal e ao serem confrontadas com casos reais julgados pelo

10 O subtítulo do livro de Glassner é provocativo: “why americans are afraid of


the wrong things: crime, drugs, minorities, teen moms, killer kids, mutant microbes,
plane crashes, road rage, & so much more”. No capítulo 02 (Crime in the News:
Tall Tales and Overstated Statistics), o autor aborda a mídia dos Estados
Unidos como fonte de produção de pânico. Neste sentido, conferir Glassner,
The Culture..., pp. 23-49.
Analisando o caso brasileiro, especificamente a questão carioca, a partir da
análise histórica da consolidação do medo na formação cultural, conferir
Batista, O Medo na Cidade do Rio de Janeiro, pp. 75-121.
11 Roberts, Stalans, Indermaur & Hough Apud Larrauri, Populismo..., p. 18.

13
CriminologiaS: Discursos para a Academia

Judiciário, normalmente concluem de forma similar ao enten-


dimento do juiz.12
Viável concluir, pois, que a formação do imaginário so-
cial sobre crime, criminalidade e punição se estabelece a par-
tir de imagens publicitárias, sendo os problemas derivados
da questão criminal, não raras vezes, superdimesionados. A
hipervalorização de fatos episódicos e excepcionais como re-
gra e a distorção ou incompreensão de importantes variáveis
pelos agentes formadores da opinião pública, notadamente
os meios de comunicação de massa, densificam a vontade de
punir que caracteriza o punitivismo contemporâneo.
Desta forma, em face da inconstância e da inconsistência
de dados sobre os mecanismos informais de controle social e
da ausência de demonstrabilidade empírica de variáveis emo-
tivas como sentimento de insegurança e de impunidade – ele-
mentos que poderiam ser compreendidos metodologicamen-
te como mecanismos de análise e medição –, o instrumento
eleito para definição do nível de punitivismo será o dos índi-
ces de encarceramento. Assim, na linha de Larrauri,13 o termo
punitivismo será empregado na pesquisa como sinônimo de
elevadas taxas de prisionalização, exatamente por serem as polí-
ticas de encarceramento a principal ferramenta do populismo
punitivo.

12 Roberts, Stalans, Indermaur & Hough Apud Larrauri, Populismo..., p. 18.


13 Larrauri, La Economia..., p. 03.

14
2.
Crimes e Prisões no Século XXI

O cenário político-criminal dos países ocidentais, cen-


trais e periféricos, nas duas últimas décadas, sofreu signifi-
cativa alteração. As taxas de encarceramento, que se manti-
nham relativamente estáveis em comparação com o aumento
populacional, a partir do final da década de 70, demonstram
vertiginoso crescimento.
Inegavelmente, conforme antecipado, no mesmo perío-
do houve aumento dos índices de criminalidade, fato que, em
tese, justificaria o acréscimo dos níveis de encarceramento.
No entanto, a expansão das políticas criminais encarcerado-
ras não se explica exclusivamente pelo aumento nos índices
de delitos registrados, sendo dois dados importantes para sua
análise autônoma e para compreensão da tendência de revi-
talização da instituição prisional: primeiro, porque o cresci-
mento do número da população reclusa foi substancialmente
superior, em termos quantitativos e qualitativos, ao aumento
do registro de crimes; segundo, porque delitos e prisões não
são fenômenos necessariamente vinculados, constituindo-se
como realidades distintas.
Alguns aspectos preliminares são necessários para com-
preensão destas duas hipóteses traçadas como pressupostos
de análise do punitivismo contemporâneo.
Apesar das relevantes críticas aos fundamentos da po-
lítica criminal correcionalista que orientaram a reforma da
legislação penal e penitenciária da maioria dos países ociden-

15
CriminologiaS: Discursos para a Academia

tais no final do século XX, o procedimento de individualiza-


ção científica da pena proposto pelo paradigma penal-welfare
possibilitou inúmeras formas de flexibilização da prisão.
Dentre os instrumentos mais notórios de descarcerização, o
aperfeiçoamento do sistema progressivo propiciava que o
condenado, ao longo de sua trajetória na instituição, conforme
o nível de adesão e de adaptação ao programa ressocializador,
evoluísse de grau, sendo paulatinamente transferido dos regi-
mes severos para instituições de maior liberdade. Concluídas
as etapas de desinstitucionalização, o condenado finalizaria
o cumprimento de sua pena em liberdade, observadas deter-
minadas condições e sob a vigilância dos órgãos de controle
penitenciário (livramento condicional, parole). Frise-se, porém,
que a flexibilização da pena poderia ser, a qualquer momento,
revogada, inclusive com a determinação de regime de cumpri-
mento de pena mais severo que o da condenação, em caso de
descumprimento das condições impostas ou reincidência.1
Além da gradual flexibilização do cumprimento de pena
pelo sistema progressivo, incluído o instituto do livramento
condicional, série de substitutivos penais foram, ao longo do
tempo, incorporados pelo modelo correcionalista de forma a
descentralizar a pena de sua modalidade exclusivamente car-
cerária. Prisão domiciliar, suspensão condicional da pena, li-
mitação de final de semana, interdição temporária de direitos,
prestação de serviços à comunidade, proibição de frequência
em determinados locais, pena de multa entre inúmeras outras
modalidades de respostas penais, foram agregadas à institui-
ção prisão como formas de proporcionar, conforme o caso es-
pecífico e de acordo com as condições pessoais do condenado,

1 Sobre os procedimentos de individualização executiva da pena e o controle da


identidade do condenado, conferir Carvalho, Pena e Garantias, pp. 182-188.

16
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

a individualização da pena criminal com a eficaz adequação


ao tratamento corretivo.
Desta forma, em razão das inúmeras alternativas puniti-
vas criadas, ou seja, das várias possibilidades de sanção penal
existente, o acréscimo nos níveis de delitos registrados pelas
agências de controle e julgados pelo Poder Judiciário não
implicava, necessariamente, aumento dos níveis de encarce-
ramento. Ademais, a consciência do sistema punitivo acerca
das cifras ocultas da criminalidade – delitos cometidos mas não
registrados pelos órgãos oficiais – e das cifras de ineficiência
das agências penais – delitos registrados mas sem desdobrar
procedimentos eficazes para a atribuição de responsabilidade
penal ao autor –, permitia, ainda na plena vigência do cor-
recionalismo, constatar a efetiva inexistência de relação e de
dependência entre crimes e penas.
Elena Larrauri lembra que “o fato de que o aumento da pri-
são não se produza de forma correlacionada com os índices de delitos
é uma conclusão majoritariamente aceita por toda a literatura crimi-
nológica, seja qual for sua orientação ideológica.”2
Os dados apresentados por Garland sobre o registro de
crimes e os índices de aprisionamento nos Estados Unidos,
entre 1950 e 1998, e na Grã-Bretanha, entre 1925 e 1998, são
significativos e demonstram esta ausência de correlação.3
Percebe-se da exposição realizada pelo autor que o aumento
do registro do número de crimes nos Estados Unidos ocorre
a partir do início da década de 60 e atinge seu ápice nos anos
de 80 e 92, apesar de estabilizar-se quantitativamente entre 76
e 98. De forma distinta, a curva de encarceramento apresenta
crescimento gradual neste período, com vertiginoso aumen-

2 Larrauri, La Economia..., p. 04.


3 Garland, The Culture..., pp. 208-209.

17
CriminologiaS: Discursos para a Academia

to a partir das décadas de 80 e 90. Na Grã-Bretanha, embora


os números acerca do aumento de crimes e de prisões sejam
mais próximos, similar leitura é possível.
Em sentido semelhante, Wacquant, ao constatar que
“basta uma única estatística para fazer sobressair a falta de cone-
xão flagrante e crescente entre crime e encarceramento nos Estados
Unidos: em 1975, o país prendia 21 criminosos para cada 1.000
crimes graves (homicídio, estupro, agressão, roubo, assalto e furto
de carros); em 1999, este número havia chegado a 106. Se conside-
rarmos o crime como uma constante, a sociedade norte-americana é
cinco vezes mais punitiva hoje do que era há um quarto de século.”4
Zimring, a partir da análise de dados dos últimos anos,
demonstra que nos Estados Unidos houve substancial decrés-
cimo nas taxas de crime, apesar de o índice de encarceramen-
to seguir aumentando. Conclui, porém, ser assimétrica a rela-
ção entre crime e punição e não corresponder a diminuição do
número de registros de ilícitos com o incremento das penas
ou, ao contrário, ter a restrição da punição relação direta com
a aumento do delito.5 A variação de um destes fatores (cri-
me ou pena), embora possa ter impacto no outro elemento de
análise, não é fator determinante.
Dados atualizados coletados junto ao United States
Bureau of Justice Statistics permitem esta conclusão. A partir de
1992, os índices de registro de crimes violentos – homicídio,
estupro, roubo e roubo qualificado –, nos Estados Unidos, ini-
ciam significativo processo de declive. Conforme os números
apresentados pelo órgão estatístico oficial norte-americano,
três são os indicadores de medição da quantidade de delitos

4 Wacquant, O Lugar da Prisão na Nova Administração da Pobreza, p. 10.


5 Zimring Apud Larrauri, La Economía..., p. 04.

18
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

graves: dados de vitimização,6 crimes registrados pela polí-


cia7 e prisões em flagrante em casos de crimes violentos.8 A
conjugação destas três variáveis permite realizar a estimativa
do número total de crimes violentos.

Gráfico 01
EUA: Número Total de Crimes Violentos (1973-2007)

Fonte: United States Bureau of Justice Statistics

Análise do número de homicídios por 100.000 ha-


bitantes, indicador internacional para medição do nível

6 Os dados de vitimização correspondem à “estimativa do número de homicídios


de pessoas com idade acima de 12 anos registrados pela polícia, acrescida do número
de estupros, roubos e roubos qualificados a partir da pesquisa de vitimização”
(Bureau of Justice Statistics, Four Measures of Serious Violent Crimes).
7 Os dados de registro policial correspondem ao “número de homicídios,
estupros, roubos e agressões incluídos no Uniform Crime Reports do FBI, excluindo
roubos em estabelecimentos comerciais e crimes cujas vítimas envolvidas tinham
idade inferior a 12 anos” (Bureau of Justice Statistics, Four…).
8 Os dados de prisões em flagrante em crimes violentos correspondem
ao “número de pessoas presas por homicídio, estupro, roubo e roubo qualificado,
conforme relatórios apresentados pelas autoridades policiais ao FBI” (Bureau of
Justice Statistics, Four…).

19
CriminologiaS: Discursos para a Academia

de violência dos países, reforça a conclusão apresentada


pelas estatísticas oficiais sobre a substancial queda dos
índices de delitos violentos nos Estados Unidos nas últi-
mas décadas. Após o contínuo decréscimo entre os anos
de 1991 e 2000, momento no qual os índices são reduzi-
dos de 9,8 para 5,5 homicídios por 100.000 habitantes,
ocorre sua estagnação.

Gráfico 02
EUA: Registro de Homicídios (1960-2008)

12
10 9,6
9,5
8 8,6
7,3 8,3
6,2 6,8 5,6
6
5,1 4,6 5,6 5,4
4
2
0
60

62

65

69

73

77

81

85

89

93

97

01

05

09

Índice de Homicídios por 100.000 Habitantes

Fonte: United States Bureau of Justice Statistics

No entanto de forma inversamente proporcional encon-


tram-se os níveis de prisionalização, pois nas duas últimas
décadas houve substancial incremento no grau de encarcera-
mento, fator que configurou os Estados Unidos como país de
maior contingente de pessoas presas no mundo. Estimativas
apontam que 01 em cada 04 presos no mundo encontra-se de-
tido em prisões norte-americanas.

20
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

Gráfico 03
EUA: Taxas de Encarceramento (1980-2008)

Fonte: United States Bureau of Justice Statistics

Segundo dados do International Centre for Prison


Studies do King’s College de Londres, ao final de 2008, os
Estados Unidos atingia a cifra de 2,3 milhões de pessoas
encarceradas, correspondendo a 753 presos por 100.000
habitantes. Acrescentando nestes números os condena-
dos não envolvidos na forma carcerária de execução pe-
nal (probation e parole), o número de pessoas sob vigilân-
cia penitenciária atingia 7,2 milhões. Em termos univer-
sais, apenas a Rússia se aproxima destes números, mas
com índices significativamente inferiores (610 presos por
100.000 habitantes em 2009).
Ao cruzarmos os dados, temos a seguinte representação
gráfica.

21
CriminologiaS: Discursos para a Academia

Gráfico 04
EUA: Curvas de Encarceramento e de Homicídios (1991-2008)

12 800
740 760
700 723 700
10 669 675 685
9,8 9,5 630
600 600
8 550 8,2
505 500
6,8
6 6 5,7 5,7 400
5,6 5,6 5,6 5,4
300
4
200
2
100

0 0
92 93 95 97 98 99 2001 2003 2004 2005 2008
Homicídios Encarceramento

Fontes: United States Bureau of Justice Statistics e International Centre for


Prison Studies, King’s College (Londres)

Observe-se, contudo, que em razão de os números serem


substancialmente distintos, são atribuídos dois valores ao eixo
vertical, gerando dados autônomos – eixo vertical direito regis-
tro de delitos de homicídio por 100.000 habitantes; eixo vertical
esquerdo número de pessoas presas por 100.000 habitantes. Do
contrário, ou seja, atribuindo paridade aos valores, o cruzamento
seria impossível. Assim, o gráfico apresenta imagem simbólica
das distintas curvas, permitindo apenas visualizar a tendência
encarceradora do sistema norte-americano apesar da diminui-
ção dos índices oficiais de registro de crimes violentos.
Embora a ressalva de ser este princípio apenas referen-
cial teórico, não necessariamente resultado concretizado na
prática,9 sustenta Garland que no sistema penal-welfare a pri-

9 Garland, The Culture..., p. 177.

22
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

são funcionaria como a última instância do sistema de con-


trole, como recurso extremo no continuum do tratamento,
direcionado exclusivamente àqueles delinquentes que não
respondessem adequadamente às medidas reformadoras
aplicadas em outras instituições punitivas.
Do ponto de vista teórico, o postulado da utilização da
pena, em geral, e da pena de prisão, em particular, como últi-
mo recurso sancionatório do sistema penal é legado do pen-
samento liberal clássico, consolidado pelo direito penal con-
temporâneo nos princípios de intervenção mínima, de frag-
mentariedade ou de subsidiariedade que concentram a ideia
da ultima ratio. E, diferentemente de ser conquista do modelo
correcionalista, conforme sustenta Garland, o discurso de
defesa da intervenção mínima acompanha a trajetória dos
discursos do direito penal e do direito processual penal da
Modernidade, apesar de, nos dois últimos séculos, sua con-
solidação científica (dogmática penal) ter, ao instrumentalizar
a aplicação do poder punitivo, operado constantes inversões
do significado liberal de subsidiariedade cuja consequência é
a relegitimação e ampliação do uso da pena.
Todavia parece ser correto o diagnóstico de Garland em
relação ao processo de reinvenção da prisão no período pós-
-crise do modelo correcionalista.
As mudanças econômicas e sócio-culturais da década de
80, sobretudo com a consolidação da economia de mercado e
do modelo político-econômico de gerenciamento neoliberal,
impuseram radicais câmbios na estrutura dos Estados, atin-
gindo diretamente os serviços prestados pelas suas institui-
ções. Assim, o giro ao punitivismo da década de 90 não cor-
responde apenas ao esgotamento do intervencionismo, como
se as críticas acadêmicas dos anos 60 e 70 tivessem o poder de
provocar rupturas na estrutura política. O colapso do modelo

23
CriminologiaS: Discursos para a Academia

penal-welfare é decorrência lógica da substituição do projeto


de Estado de Bem-Estar (Welfare State) por estruturas estatais
pautadas pelos princípios de eficiência e controladas pela ló-
gica do gerenciamento atuarial.
Assim como no período de transposição do Estado
Liberal ao Estado Social a concepção de intervenção penal re-
sidual é invertida em direção ao correcionalismo10, com a fa-
lência da política de bem-estar social as instituições do Estado
Providência igualmente entram em crise. O giro em direção
ao punitivismo, com o consequente declínio das formas pu-
nitivas ressocializadoras, é reflexo direto do câmbio político-
-econômico, não podendo ser reduzido à mudança de pers-
pectiva teórica do mainstream jurídico-penal e criminológico.
Parecem, pois, absolutamente estéreis e descolados da
realidade os debates acadêmicos voltados a identificar, inter-
namente aos discursos das ciências criminais, as causas do

10 François Ost expõe a transposição das funções estatais do Estado Liberal


absenteísta ao Estado Social intervencionista referindo que “é pois como
Estado protector que o Estado moderno se identifica. No século XIX, esta protecção
assumirá a forma minimalista da garantia generalizada da sobrevivência, com o
Estado liberal a deixar à esfera privada a gestão das condições materiais de existência.
No século XX, em compensação, as missões do Estado alargam-se, na medida em
que ele toma a seu cargo, para além da simples sobrevivência, a garantia de certa
qualidade de vida: fala-se então de Estado-providência ou de Estado social” (Ost, O
Tempo do Direito, p. 336).
Com ênfase na ocupação e na gestão da população excedente, Zygmunt
Bauman apresenta similar diagnóstico acerca das funções do Estado Social:
“(...) o estado de bem-estar foi, originalmente, concebido como um instrumento
manejado pelo estado a fim de reabilitar os temporariamente inaptos e estimular
os que estavam aptos a se empenharem mais, protegendo-os do medo de perder a
aptidão no meio do processo. Os dispositivos da previdência eram então considerados
como uma rede de segurança, estendida pela comunidade como um todo, sob cada
um de seus membros (...). A comunidade assumia a responsabilidade de garantir
que os desempregados tivessem saúde e habilidades suficientes para se reempregar
e de resguardá-los das temporárias soluções e caprichos das vicissitudes da sorte. O
estado de bem-estar não era concebido como uma caridade, mas como um direito do
cidadão, não como o fornecimento de donativos individuais, mas como uma forma de
seguro coletivo” (Bauman, O Mal-Estar da Pós-Modernidade, p. 51).

24
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

esgotamento do paradigma ressocializador, como se o eixo


político estivesse condicionado ao campo teórico. A imputa-
ção da responsabilidade sobre o avanço do punitivismo para
determinadas teorias criminológicas – v.g. a teoria do justo
merecimento ou a criminologia crítica –, não apenas desloca
a política criminal da política, como superdimensiona o pa-
pel das teorias, refletindo o profundo narcisismo dos atores
das ciências criminais. Nenhuma teoria (da pena) contempo-
rânea, frise-se à exaustão, teria o poder de definir os rumos
da política-criminal. Outrossim, e esta é uma das principais
teses propostas neste trabalho, serão os atores judiciais das agên-
cias de punitividade os que, conforme o seu maior ou menor grau
de identificação (ou de resistência) com o projeto político-criminal,
(des)legitimarão sua aplicação, visto serem os sujeitos que detêm a
capacidade de efetivar as reformas.
Interessante perceber, ainda, que, sob o aspecto do im-
pacto das alterações político-econômicas na política criminal
ocidental, os recursos de interpretação fornecidos pela cri-
minologia crítica são extremamente válidos, pois permitem
compreender a influência decisiva do câmbio provocado pelo
neoliberalismo no direcionamento da punição e o papel exer-
cido pelas instituições totais, sobretudo a prisão, neste novo
contexto social.

25
3.
Punitivismo e Reinvenção
das Prisões

Questão preliminar a ser colocada é sobre como a prisão,


instituição gradualmente deslegitimada durante o século XX,
foi reinventada e elevada ao posto de principal símbolo do
punitivismo contemporâneo.
A incisiva crítica criminológica aos fundamentos jurídi-
co-penais e às formas de aplicação e de execução do potestas
puniendi, agregada aos importantes avanços desinstituciona-
lizadores irrompidos pela antipsiquiatria e pelo movimento
antimanicomial, haviam aberto espaço para a superação do
modelo carcerário de resposta punitiva. Andrew Scull, no fi-
nal dos anos 70, expondo o sentimento otimista comum na
academia, sustenta que “a crise fiscal do Estado de bem-estar
keynesiano conduzia à desprisionalização; [o que] ocorreu com os
pacientes psiquiátricos mas não com os delinquentes.”1
Garland, ao analisar as raízes sociais do controle con-
temporâneo do delito, remeterá exatamente nesta perspectiva
seus questionamentos: “por que a prisão, instituição desprestigia-
da e destinada à abolição, constituiu-se em pilar aparentemente in-
dispensável e em expansão na vida social da modernidade tardia?”2
Segundo o autor, o ressurgimento e a relegitimação das pri-

1 Apud Braithwaite, El Nuevo Estado Regulador y la Transformación de la


Criminología, p. 52.
2 Garland, The Culture..., p. 199.

27
CriminologiaS: Discursos para a Academia

sões ocorreram em razão de sua utilidade na nova dinâmi-


ca das sociedades neoliberais no horizonte da modernidade
tardia: encontrar sentidos civilizados e constitucionais de se-
gregar as populações problemáticas criadas pelas instâncias
econômicas e sociais. Sustenta que a prisão se encontra no
ponto de encontro entre duas das mais importantes dinâmi-
cas sociais do nosso tempo: o risco e a retribuição.3 Assim, “em
poucas décadas deixou de ser instituição correcional desacreditada e
decadente, para constituir-se em pilar maciço e aparentemente in-
dispensável da ordem social contemporânea.”4
No diagnóstico de Downes e Morgan, em referência às
reformas penais ocorridas no Reino Unido, a redescoberta da
via criminal é decorrência da absorção pelo discurso político
do populismo punitivo, acrescido da retórica de tolerância
zero e da lógica da ressignificação retributivista das funções
da prisão (prision works). O expansionismo punitivo, inserido
no quadro emotivo da demanda social por medidas emergen-
ciais, inscreve-se na cultura contemporânea às expensas do
devido processo e das liberdades públicas.5
Na hipótese de Garland, voltada para interpretação das
mudanças no controle social nos Estados Unidos e na Grã-
Bretanha6, o uso da prisão contemporânea se assemelha ao

3 “Com a lógica absolutista da sanção penal, castiga e protege, condena e controla. O


encarceramento serve, simultaneamente, como satisfação expressiva de sentimentos
retributivos e como mecanismo instrumental para gestão do risco e confinamento do
perigo” (Garland, The Culture..., p. 199).
4 Garland, The Culture..., p. 14.
5 Downes & Morgan, No Turning Back, p. 214.
6 Ao analisar o trabalho de Garland e sua circunscrição ao universo norte-
americano e inglês, Larrauri demonstra que as generalizações quanto ao
fenômeno da cultura do controle não podem ser aplicadas indistintamente.
Assim, entende ser “(...) mais frutífero que discutir que países escapam da
análise de Garland talvez seja analisar quais são as características das sociedades
que não desenvolveram tendências tão punitivas nas últimas décadas” (Larrauri,
Populismo..., p. 17).

28
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

do gulag soviético, visto ser utilizada como local de reserva,


como zona de quarentena na qual são segregadas as pesso-
as supostamente perigosas, em nome da segurança pública.
Similar “às sanções pré-modernas de degredo ou banimento, as
prisões funcionam como forma de exílio e o seu uso está delineado
menos pelo ideal da reabilitação e mais por aquilo que Rutherford
denomina de ‘eliminação’.”7
Wacquant, analisando a relação dos processos econômi-
cos das últimas décadas com as novas formas de utilização
da prisão, aproxima seu olhar da realidade dos países peri-
féricos, e, ao relacionar cárcere e gueto8, demonstra como a
consolidação do Estado Penal restou como alternativa fren-
te à falência do modelo do Welfare State. As prisões, na con-
temporaneidade, justificam-se como mecanismos de gestão
da miséria e dos grupos inconvenientes representados pelos
mal-adaptados e desajustados sociais.9

A perspectiva da presente pesquisa é a de analisar as circunstâncias


que possibilitaram a assunção do punitivismo no Brasil. Compartilha a
perspectiva de Larrauri quanto à utilidade da compreensão dos fatores
desenvolvidos em outras realidades socioculturais de forma a produzir
discurso e atuação de resistência ao punitivismo.
Todavia, é importante perceber que, apesar das especificidades, a “política
de ‘contenção punitiva’ das camadas precarizadas do novo proletariado urbano se
difundiu por todo o planeta, na esteira do neoliberalismo econômico” (Wacquant,
O Corpo, o Gueto e o Estado Penal, p. 12).
7 Garland, The Culture..., p. 178.
8 “A representação maciçamente predominante e crescente de afroamericanos em
qualquer nível do aparato penal tinge a segunda função assumida pelo sistema
carcerário da nova administração da pobreza na América de uma cor desagradável:
compensar e complementar a falência do gueto como mecanismo de confinamento de
uma população considerada divergente, desonesta e perigosa, bem como supérflua no
plano econômico (imigrantes mexicanos e asiáticos são trabalhadores mais dóceis)
e no plano político (negros pobres raramente votam e,de qualquer forma, o centro
gravitacional eleitoral mudou das regiões centrais urbanas decadentes para os
prósperos subúrbios brancos)” (Wacquant, O Lugar..., p. 13).
9 Segundo Wacquant, “longe de contradizer o projeto neoliberal de desregulamentação
e degradação do setor público, a ascensão irrefreável do estado penal norte-americano
constitui, por assim dizer, o seu negativo (ou seja, é a um só tempo a revelação e a

29
CriminologiaS: Discursos para a Academia

No mesmo sentido Bauman, ao perceber que, com a falta


de emprego e a crise de financiamento dos Estados para pro-
mover bem-estar, a prisão surge como local de reserva da popu-
lação excedente: “nas atuais circunstâncias, o confinamento é antes
uma alternativa ao emprego, uma maneira de utilizar ou neutralizar
uma parcela considerável da população que não é necessária à produção
e para a qual não há trabalho ‘ao qual se reintegrar’”10. Neste aspecto,
acrescenta os socialmente inconvenientes (excluídos do processo
de produção e de consumo) aos grupos perigosos identificados
por Garland, ampliando o rol de destinatários das prisões. No
panorama atual, portanto, “a incriminação [e o encarceramento,
por consequência] parece estar emergindo como o principal substituto
da sociedade de consumo para o rápido desaparecimento dos dispositi-
vos do estado de bem-estar.”11
A hipótese sustentada nesta investigação corrobora o
diagnóstico dos autores, mas amplia os horizontes ao procu-
rar visualizar as especificidades da margem latino-americana,
pois, se nos países centrais a reinvenção da prisão adquire
funções instrumentais na nova lógica do capitalismo pós-
-Welfare State, sua ressignificação adquirirá potência em grau
superlativo nos países periféricos. Na margem, como é notó-
rio, as conquistas do Estado Social foram simulacros e, no que

manifestação do seu reverso), uma vez que evidencia a implementação de uma política
de criminalização da pobreza, que é o complemento indispensável à imposição de ofertas
de trabalho precárias e mal remuneradas na forma de obrigações cívicas para aqueles
que estão cativos na base da estrutura de classes e castas,bem como a reimplantação
concomitante de programas de welfare reformulados com uma face mais restritiva e
punitiva” (Wacquant, O Lugar..., p. 11).
Sobre o tema da consolidação do Estado Penal, conferir Wacquant, As Prisões
da Miséria, pp. 77-152; Wacquant, Punir os Pobres, pp. 53-98; Wacquant, A
Tentação Penal na Europa, pp. 07-12; Wacquant, A Ascenção do Estado Penal nos
EUA, pp. 13-40.
10 Bauman, Globalização, pp. 119-120.
11 Bauman, O Mal-Estar..., p. 78.

30
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

tange especificamente à dimensão do penal, os modelos cor-


recionalistas foram implementados de forma residual, sendo
possível, em nível macropolítico criminal, sustentar sua in-
corporação meramente formal.
Em termos punitivos, portanto, nos países da América
Latina os discursos penalógicos neorretribucionistas, de neu-
tralização e de incapacitação ingressam com força máxima,
legitimando científica e politicamente a atuação genocida das
agências de controle. Se na experiência punitiva latino-ameri-
cana a pena nunca abandonou a função explícita de controle
violento dos indivíduos e dos grupos perigosos e inconve-
nientes, mesmo sob a égide formal das reformas em direção
ao correcionalismo, com o abandono das políticas penal-wel-
fare e a ressignificação da prisão como mecanismo exclusivo
de neutralização, a violência da aplicação do poder punitivo
será densificada.
A perversa equação que agrega as históricas omissões nas
políticas sociais às políticas criminais de ampliação das hipóte-
ses de criminalização e punição produz, como resultado, a bar-
barização dos espaços de encarceramento. Locais de punitivida-
de cada vez mais alheios aos projetos voltados à implementação
dos programas de ressocialização e deficitários em relação aos
investimentos que propiciem a sobreviência digna aos apenados
(cárceres, manicômios e instituições juvenis).
Neste quadro, seja no que tange à exclusão da dimen-
são qualitativa do idealizado projeto ressocializador, seja
no que diz respeito ao incremento quantitativo nos índices
de encarceramento, as formas de aplicação e de execução
da pena criminal na realidade periférica ingressam, no ter-
ceiro milênio, como problema central das perspectivas cri-
minológicas minimamente preocupadas com a efetividade
dos direitos humanos.

31
CriminologiaS: Discursos para a Academia

3.1. Populismo Punitivo e a Reinvenção da Prisão no


Brasil: Diagnóstico Normativo

A legislação brasileira, em especial a penal e a processual


penal, foi objeto de profunda modificação após a publicação
da Constituição de 1988. Apesar de o sistema político pré-
-Constituição ser de nítida natureza autoritária e conformar,
no âmbito da repressão aos crimes políticos, modelo penal
e político-criminal de exceção que contaminou as práticas
punitivas e repressivas da criminalidade comum, o cenário
legislativo (formal) encontrava-se razoavelmente estável e em
associação ao welfarismo penal, sobretudo após a Reforma de
1984, com a publicação da nova parte geral do Código Penal e
a unificação das regras penitenciárias na Lei de Execução Penal.
A constância legislativa em relação à criminalidade co-
mum pode ser caracterizada pela preservação da estrutura
penal e processual penal codificada em realidade que deman-
dava reduzidas inovações em matéria de criminalização, pou-
cas alterações visando ao aumento de penas e escassa criação
de leis penais especiais e/ou complementares. Entre o período
das décadas de 60 e 80, o impacto mais profundo no Código
Penal pode ser visualizado na descodificação dos crimes con-
tra a saúde pública e a elaboração da Lei 6.768/76, que institui
sistema integral de prevenção e repressão ao consumo e ao
comércio de entorpecentes (Lei de Drogas).
A propósito, interessante notar certo paradoxo entre a
estrutura jurídico-penal formal e a atuação das agências de
punitividade. Enquanto a relativa estabilidade legal era man-
tida – inclusive com a participação de experts de tradição libe-
ral e humanitária na reforma da parte geral do Código Penal
e na elaboração da Lei de Execução Penal em 1984 –, a atuação
do sistema repressivo, sobretudo o policial e o carcerário, in-

32
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

corporou a ideologia (de segurança nacional) e as estratégias


militarizadas de combate ao crime político (repressão ao ini-
migo interno).12 Percebe-se, inclusive, que a permanência da
estrutura inquisitiva do Código de Processo Penal de 1941,
redigido sob a forte influência do Código de Rocco, facilitou,
durante o período de exceção, a adoção de posturas autoritá-
rias pelos atores judiciais.
Com a mudança no cenário político no final da década
de 80, a expectativa da comunidade jurídica nacional e dos
analistas do sistema penal foi a de gradual abertura e demo-
cratização dos poderes e das instituições que integravam as
inúmeras agências do sistema punitivo.
O texto constitucional de 1988, no que diz respeito à maté-
ria penal, apresentou, porém, ambiguidades. Apesar de manter
a tradicional exposição de princípios limitadores do potestas pu-
niendi, trouxe inúmeras modificações na estrutura do direito pe-
nal e do processual penal que abriram espaço para o incremento
do punitivismo que caracterizou a década de 90.
A atividade legislativa da década de 90 no Brasil, po-
tencializada em parte pelo conjunto de normas constitucio-
nais programáticas, ampliou as hipóteses de criminalização
primária e enrijeceu o modo de execução das penas. Para-
lelamente à criação de inúmeros novos tipos penais, houve
substancial alteração na modalidade de cumprimento das
sanções, sendo o resultado desta experiência a dilatação do
input e o estreitamento do output do sistema, com reflexos di-
retos no número de pessoas processadas e presas (provisória
ou definitivamente).
O exemplo mais significativo da tendência legislativo-
punitivista que orientou a política criminal brasileira foi a re-

12 Neste sentido, conferir Carvalho, A Política Criminal de Drogas no Brasil, pp. 29-42.

33
CriminologiaS: Discursos para a Academia

dação da Lei 8.072/90, a qual aumentou as penas dos delitos


classificados como hediondos e, no que diz respeito à execu-
ção penal, estabeleceu vedação na progressão de regime, au-
mento de prazo para livramento condicional e obstrução de
comutação e de indulto aos crimes nela dispostos. A obstacu-
lização do processo de desinstitucionalização progressiva na
execução da pena estabelecida pela Lei dos Crimes Hedion-
dos foi, inegavelmente, uma das principais causas do aumen-
to da taxa de encarceramento no país. E não obstante algumas
decisões monocráticas isoladas que reputavam inconstitucio-
nal a Lei 8.072/90, em harmonia com a unanimidade da dou-
trina, sobretudo a partir da edição da Lei 9.455/97 (Lei dos
Crimes de Tortura), o Supremo Tribunal Federal (STF), com o
intuito de pacificar a matéria, emitiu a Súmula 698, afirmando
sua constitucionalidade.13 Apenas com o julgamento do HC
82.959/06 pelo Pleno do STF, por maioria de votos a Corte re-
conheceu, após 16 anos de vigência, a inconstitucionalidade
do § 1º do art. 2º da Lei dos Crimes Hediondos.14
Além da Lei dos Crimes Hediondos, o processo de descodi-
ficação e de reforma parcial do Código Penal ampliou a crimina-
lização primária, criando novos tipos penais, aumentando penas
e alargando as hipóteses de aplicação e de execução das penas
privativas de liberdade em regime carcerário fechado.
Em matéria processual penal, as alterações no Código
de Processo densificaram a criminalização secundária. Não

13 “Não se estende aos demais crimes hediondos a admissibilidade de progressão de


regime de execução da pena aplicada ao crime de tortura.”
14 Importante registrar que mesmo após a publicação da Súmula 698, a 1ª
Turma do STF decidiu, em dois Habeas Corpus (HC 87.623 e HC 87.452),
à unanimidade, afastar a proibição da progressão de regime em casos
de extorsão mediante sequestro (art. 159, § 1º CP) e de tráfico ilícito de
entorpecentes (art. 12 c/c art. 18, III da Lei 6.368/76). Os precedentes deram
origem à referida decisão do Tribunal Pleno: STF, Tribunal Pleno, Habeas
Corpus 82.959/SP, Rel. Min. Marco Aurélio de Mello, j. 23.02.06.

34
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

apenas as possibilidades de prisão cautelar foram (re)estrutu-


radas – v.g. prisão temporária (Lei 7.960/89) e novas espécies
de inafiançabilidade e vedação de liberdade provisória (Leis
7.716/89, 8.072/90, 9.034/95 e Lei 9.455/97) –, como foi possi-
bilitada modalidade de execução de pena sem o trânsito em
julgado de sentença condenatória (Lei 8.038/90), denominada
execução penal antecipada.15
Nota-se, portanto, que no âmbito do Poder Legislativo
inúmeros fatores contribuíram para o aumento dos índices de
encarceramento:

(a) criação de novos tipos penais a partir do rol de bens


jurídicos expostos na Constituição (campo penal);
(b) ampliação da quantidade de pena privativa de liber-
dade em inúmeros e distintos delitos (campo penal);
(c) sumarização do procedimento penal, com o alar-
gamento das hipóteses de prisão cautelar (prisão
preventiva e temporária) e diminuição das possi-
bilidades de fiança (campo processual penal);
(d) criação de modalidade de execução penal anteci-
pada, prescindindo o trânsito em julgado da sen-
tença condenatória (campo processual e da execu-
ção penal);
(e) enrijecimento da qualidade do cumprimento da pena,
com a ampliação dos prazos para progressão e livra-
mento condicional (campo da execução penal;

15 O Superior Tribunal de Justiça, em 2005, revisou a posição que admitia


cumprimento de pena sem o trânsito em julgado de sentença penal condenatória
— execução penal antecipada (STJ, 6ª Turma, Habeas Corpus 25.310, Rel. Min.
Paulo Medina, DOU 02.02.05). Até a revisão do posicionamento, os Tribunais
entendiam que a interposição de Recursos Federais (Especial e Extraordinário)
contra acórdão condenatório não suspendia os efeitos da decisão, conforme
disciplina o art. 27, § 2º, da Lei 8.038/90. O Entendimento havia sido pacificado
na Súmula 267 do STJ (“a interposição de recurso, sem efeito suspensivo, contra
decisão condenatória não obsta a expedição de mandado de prisão”).

35
CriminologiaS: Discursos para a Academia

(f) limitação das possibilidades de extinção da pu-


nibilidade com a exasperação dos critérios para
indulto, graça, anistia e comutação (campo da exe-
cução penal); e
(g) ampliação dos poderes da administração carcerária
para definir o comportamento do apenado, cujos
reflexos atingem os incidentes de execução penal
(v.g. Lei 10.792/03) (campo penitenciário).

A partir do diagnóstico normativo, é possível dizer, em ter-


mos preliminares, que a diminuição das taxas de encarceramen-
to no Brasil prescindiria reforma geral no quadro legislativo,
atingindo na integralidade todas as fases de persecução crimi-
nal, ou seja, da investigação policial à execução da pena.
Todavia, apesar de se entender como correta a assertiva da
necessidade de racionalização e de ressistematização do quadro
geral dos delitos, das sanções, dos procedimentos e da execução
(law in books), é lícito afirmar que as mudanças devem necessa-
riamente operar de forma intensa na cultura dos atores jurídicos
que realizam a law in action. Isto porque, ao longo do processo
de formação do grande encarceramento nas duas últimas déca-
das, inúmeras hipóteses concretas de estabelecimento de filtros
minimizadores da prisionalização foram criadas pelo Poder
Legislativo, sendo obstaculizadas na esfera do Poder Judiciário,
nitidamente influenciado pela racionalidade punitivista.

3.2. O Grande Encarceramento

Os dados quantitativos sobre encarceramento no Brasil passa-


ram a ter periodicidade apenas na última década. Anteriormente,
o controle do número de presos era realizados pelos Estados da
Federação, não havendo integralização. Atualmente, o órgão en-
carregado em receber, unificar e divulgar os números sobre a situ-

36
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

ação carcerária nacional é o Departamento Penitenciário Nacional


(DEPEN), vinculado ao Ministério da Justiça.
No entanto, apesar de não existirem condições de ana-
lisar o nível de encarceramento no período anterior ao iní-
cio da reforma no sistema punitivo, os números parciais dos
anos 90 e integrais da última década permitem diagnosticar
a profunda imersão da política criminal brasileira no cená-
rio punitivista internacional. O aumento de 87,87 para 247,68
presos por 100 mil habitantes nos últimos 15 anos é dado que
sustenta a hipótese, sendo de difícil refutação.

Tabela 01
Brasil: Número de presos por 100.000 habitantes

Presos/100.000
Ano População Presos hab.
1994 147.000.000 129.169 87,87
1995 155.822.200 148.760 95,47
1997 157.079.573 170.207 108,36
2000 169.799.170 232.755 137,08
2001 172.385.826 233.859 135,66
2002 174.632.960 239.345 137,06
2003 176.871.437 308.304 174,31
2004 181.581.024 336.358 185,24
2005 184.184.264 361.402 196,22
2006 186.770.562 401.236 214,83
2007 183.965.854 419.551 228,06
2008 189.612.214 451.429 238,10
2009 Sem dados 473.626 249,781

Fonte: Censos Penitenciários (Ministério da Justiça) e do Instituto


Brasileiro de Geografia e Estatística.

37
CriminologiaS: Discursos para a Academia

Ao ser analisada a curva de aumento da população


carcerária nas duas últimas décadas, nota-se que a opção
político-criminal autoritária de recrudescimento dos apa-
relhos punitivos tem obtido êxito. Dados que, desde o pon-
to de vista da crítica criminológica, tomam dimensões pre-
ocupantes.
Em relação aos países da América do Sul, o Brasil é su-
perado em número de presos por 100.000 habitantes pela
Guiana Francesa (365), Suriname (356), Chile (297) e Guiana
(260). Todos os demais países do continente apresentam ní-
veis de encarceramento inferiores aos brasileiros: Argentina
(154), Bolívia (82), Colômbia (151), Equador (126), Paraguai
(95), Peru (146), Uruguai (193) e Venezuela (79) – dados relati-
vos ao biênio 2006-2008.16
Se proposta comparação dos índices apresentados pelo
Brasil com os dos países da Comunidade Europeia (dados de
2006)17, percebe-se que o grau de encarceramento supera em
grande medida países como Portugal (104,3), Espanha (146,1),
França (91,6), Itália (65,2), Inglaterra (145,1) e Alemanha (95,8),
aproximando-se de países do Leste, como Azerbaijão (211,9),
Lituânia (237,0), Moldávia (230,0) e Polônia (229,9). Os países
mencionados são ultrapassados apenas pela Estônia (321,6),
Georgia (302,7), Ucrânia (355,3) e, notoriamente, pela Rússia
(608,6), país com a maior densidade populacional encarcera-
da do continente.
Como ressaltado anteriormente, os Estados Unidos per-
manecem com a maior taxa de encarceramento mundial, atin-
gindo em 2007 o número absoluto entre presos provisórios e

16 Dados colhidos pelo International Centre for Prison Studies (ICPS).


17 Council of Europe, Annual Penal Statistics 2006, p. 18.

38
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

definitivos de 2.293.157, correspondendo a 756 presos por 100


mil habitantes.18

Gráfico 05
Brasil: Curva de Encarceramento 1994-2009

300
249,78
250 228,06 238,1
214,83
196,22
200 174,31 185,24
137,08 135,66 137,06
150
108,36
87,87 95,47
100

50

0
1994 1995 1997 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN)

Significativo nos dados apresentados pelo Brasil é o núme-


ro de presos provisórios, cujo percentual varia, na média dos úl-
timos 05 anos, em torno de 30% da população carcerária.

18 Bureau of Justice Statistics, Prisioners in 2007, p. 04.

39
CriminologiaS: Discursos para a Academia

Tabela 02
Brasil: Relação Presos Condenados e Presos Provisórios
(2000-2009)

Total de Presos Presos


Ano Presos Provisórios Condenados
2000 232.755 80.775 151.980
2001 233.859 78.437 155.422
2002 239.345 80.235 159.110
2003 308.304 67.549 240.203
2004 336.358 86.766 249.592
2005 361.402 102.116 259.286
2006 401.236 112.138 289.098
2007 422.590 127.562 295.028
2008 451.429 138.940 312.489
2009 473.626 152.612 321.014

Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN)

Em termos absolutos, apesar de o número de mulhe-


res encarceradas ser infinitamente menor que o de ho-
mens, nota-se que nos últimos anos o volume da popu-
lação feminina presa supera, proporcionalmente, a mas-
culina. Se no ano de 2000 o número de mulheres presas
era de 10.112, no primeiro semestre de 2009, havia 24.068
encarceradas, correspondendo a 5,12% do total de brasi-
leiros nas prisões.
No que diz respeito à relação presas provisórias e presas
condenadas, os índices são similares aos da população encar-
cerada masculina, girando em torno de 30%.

40
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

Tabela 03
Brasil: Mulheres Condenadas e Presas Provisórias (2000-2009)

Presas Presas
Ano Presas Provisórias Condenadas
2000 10.112 3.382 6.730
2001 9.873 3.373 6.500
2002 10.285 3.536 6.749
2003 9.863 2.700 7.163
2004 16.473 8.174 8.299
2005 12.925 3.894 9.031
2006 17.216 4.170 13.046
2007 19.034 5.228 13.806
2008 21.594 6.535 15.059
2009 24.686 8.671 16.015

Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN)

A substancial diferença entre as populações presas


masculina e feminina diz respeito à espécie de crime pra-
ticado. Enquanto o fenômeno da prisionalização masculi-
na é caracterizado pela pluralidade dos crimes, com certa
prevalência dos patrimoniais, a maioria das mulheres se
encontra presa em decorrência de delitos vinculados ao
tráfico de entorpecentes.

41
CriminologiaS: Discursos para a Academia

Tabela 04
Brasil: População Carcerária Masculina
e Espécies de Crimes (2009)

Número
Crime de Presos Proporção
Homicídio* e Latrocínio** 60.489 12,88%
Furto*** 61.440 13,08%
Receptação, Estelionato e
Apropriação 17.476 3,72%
Roubo**** 108.824 23,17%
Extorsão e Sequestro***** 6.083 1,29%
Tráfico de Drogas****** 73.877 15,73%
Crimes Sexuais 17.283 3,68%
Demais Crimes 124.074 26,45%
Total 469.546 100%

Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN)

* Estão representadas nos números as formas tentadas, simples e qualifica-


das.
** O delito de latrocínio, apesar de ser cometido contra o patrimônio, em face do
resultado morte foi vinculado com o homicídio, de forma a dar a representati-
vidade pelas consequências.
*** Estão representadas nos números as formas tentadas, simples e qualifica-
das.
**** Estão representadas nos números as formas tentadas, simples e qualifica-
das.
***** Incluem-se nos dados os casos de extorsão mediante sequestro.
****** Estão representadas nos números as modalidades de tráfico internacional
e doméstico.

42
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

Tabela 05
Brasil: População Carcerária Feminina
e Espécies de Crimes (2009)

Crime* Número de Presas Proporção


Homicídio e Latrocínio 1.765 7,33%
Furto 1.949 8,09%
Receptação, Estelionato e
Apropriação 578 2,4%
Roubo 2.127 8,83%
Extorsão e Sequestro 522 2,1%
Tráfico de Drogas 11.629 48,31%
Crimes Sexuais 117 0,48%
Demais Crimes 5.381 22,46%
Total 24.068 100%

Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN)

Em relação ao perfil das pessoas encarceradas, nota-se


que o produto da incorporação do punitivismo é o da hiper-
criminalização da juventude pobre e analfabeta, conforme
indicam os dados oficiais de encarceramento. Relatório refe-
rente ao primeiro semestre de 2009 informa que dos 409.287
presos(as) que indicaram escolaridade e instrução, 31.575 (7,71%)
eram analfabetos, 50.502 (12,33%) eram alfabetizados sem es-
colaridade, 186.949 (46,47%) possuíam ensino fundamental
incompleto, 48.372 (11,81%) possuíam ensino fundamental
completo, 40.894 (9,99%) possuíam ensino médio incompleto
e 27.920 (6,82%) possuíram ensino médio completo, sendo ir-

* Aplicam-se todas as observações anteriores às imputações realizadas à po-


pulação carcerária feminina.

43
CriminologiaS: Discursos para a Academia

risórias as taxas de ensino superior (completo ou incompleto),


que atingiam apenas 4.486 (1,09%) das pessoas presas.
Quanto ao item faixa etária, a partir da mesma quanti-
dade de informantes, obtém-se os seguintes dados: 127.386
(31,12%) presos entre 18 e 24 anos, 105.471 (25,76%) entre 25
e 29 anos, 69.384 (16,95%) entre 30 e 34 anos, 60.000 (14,65%)
entre 35 e 45 anos e 26.597 (6,49%) acima de 46 anos.
No que tange à relação entre índices de aprisionamento
e nível de gravidade dos delitos, o cenário é próximo ao fenô-
meno norte-americano. Embora os níveis de encarceramento
no Brasil sejam menores e as taxas de homicídio superiores
às apresentadas pelos Estados Unidos, nos últimos anos per-
cebe-se que enquanto o número de crimes contra a vida se
mantém estável, com tendência de queda, o aumento do apri-
sionamento em massa segue ritmo acelerado.
De 1993 a 2003, período de forte recrudescimento da lei
penal, os níveis de homicídio por 100.000 habitantes no Brasil
foram substancialmente alterados, aumentando de 18,7 para
28,16. Todavia, nos últimos 05 anos, o descréscimo das taxas é
sensível e, apesar de o número de crimes contra a vida ainda
permanecer demasiadamente alto, estabilizou-se em 25,2.

44
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

Gráfico 06
Brasil: Número de Homicídios por 100.000 habitantes
(1985-2008)

30 28,16
26,5 27,11 27
24,2 25,2
25
21,7 20,8
19,8
20 18,7
16,5
14,9
15

10

0
85 87 89 91 93 95 97 99 2001 2003 2006 2008
Brasil - Taxa de Homicídios

Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN)

Em análise comparativa, é possível perceber a diferen-


ça entre as curvas de encarceramento e de homicídios por
100.000 habitantes.

45
CriminologiaS: Discursos para a Academia

Gráfico 07
Brasil: Curvas de Homicídios e de Encarceramento
(1994-2008)19

300 30
28,16 28
26 26,8 27,11 27,67 27,5 27
26 25,2 25,2
250 25
23,4 238,1 249,78
228,06
20,8 214,83
200 196,22 20
185,24
174,31
150 15
137,8 135,66137,06

100 108,36 10
87,87 95,47

50 5

0 0
94 95 97 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009
Encarceramento Homicídios

Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN)

Conforme indicado na análise relativa ao caso norte-ameri-


cano, os dados permitem visualizar a ausência de relação causal
entre altas taxas de encarceramento e diminuição de crimes vio-
lentos. Os fenômenos são, definitivamente, distintos e operam
igualmente a partir de lógicas autônomas. O interessante de se
notar, contudo, é de que o discurso do incremento da violência,
que legitima as campanhas para o aumento do número de encar-
cerados, não encontra fundamento empírico.

19 Em relação ao comparativo entre as curvas de homicídio e de encarceramento


no Brasil, são aplicáveis as mesmas observações realizadas no Gráfico 04,
quando estabelecida a relação entre homicídios e encarceramento nos EUA.
Assim, são atribuídos dois valores distintos aos eixos vertical, gerando
dados autônomos – eixo vertical direito registro de delitos de homicídio por
100.000 habitantes; eixo vertical esquerdo número de pessoas presas por
100.000 habitantes. Do contrário, o cruzamento dos dados seria impossível.

46
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

3.3. A Centralidade do Cárcere na Lógica Punitivista:


Substitutivos Penais

Antes de qualquer análise crítica detalhada, importante


reafirmar a consagrada hipótese de Alessandro Baratta de que
“deve ser olhado com respeito qualquer passo que se possa dar para
que as condições de vida nos cárceres sejam menos dolorosas e menos
danosas, ainda que seja para apenas um condenado, quando real-
mente inspirado no interesse pelos direitos e pelo destino das pessoas
presas, e provenha de uma vontade de mudança radical e humanista,
e não de um reformismo tecnocrático cuja finalidade e funções sejam
legitimar, através de alguns melhoramentos, a instituição carcerária
em seu conjunto.”20
Assim, fundamental perceber que as medidas descar-
cerizadoras devem ser vistas como importantes mecanismos
de desinstitucionalização, sendo sua aplicação inegavelmen-
te mais vantajosa que qualquer forma de aprisionamento. O
problema que se coloca na investigação, porém, é o de até que
ponto os substitutivos penais efetivamente diminuem o im-
pacto do carcerário sobre os grupos vulneráveis/criminaliza-
dos, ou seja, se as alternativas são efetivamente incorporadas
pelos sistemas político-legislativo, jurídico e executivo como
alternativas à prisão (e também ao processo penal) ou se cons-
tituem aditivo de ampliação do controle social punitivo retro-
alimentador da prisão.
Desde a assertiva de Baratta, cabe avaliar se na atual rea-
lidade político-criminal brasileira os novos mecanismos insti-
tucionais de diversificação processual e de descentralização da
pena de prisão (composição civil, transação penal, suspensão
condicional do processo, penas restritivas de direito) rompem

20 Baratta, Resocialización o Controle Social, p. 254.

47
CriminologiaS: Discursos para a Academia

com a lógica punitivista ou simplesmente revigoram o paradig-


ma penal-carcerário, representando reformismo tecnocrático,
conservador e relegitimador da instituição prisional.
O projeto de reforma prisional com a criação de medidas
alternativas ao cárcere é universalizado no 8º Congresso da
Organização das Nações Unidas (1990), quando da elabora-
ção das Regras de Tóquio. O acordo internacional visou enun-
ciar conjunto principiológico que promovesse o emprego de
medidas não-privativas de liberdade substitutivas à prisão.
Neste quadro, elenca que suas “regras têm por objetivo promover
uma maior participação da comunidade na administração da justiça
penal e, muito especialmente, no tratamento do delinquente, bem
como estimular entre os delinquentes o senso de responsabilidade em
relação à sociedade.”21
Em termos de justificação, a fundamentação da pena
criminal, carcerária ou restritiva de direitos, permanece asso-
ciada ao correcionalismo do modelo penal-welfare. Segundo a
orientação das Nações Unidas, caberia aos Estados-membos
introduzir medidas não-privativas de liberdade em seus sis-
temas jurídicos, levando em consideração as necessidades de
reabilitação do delinquente (art. 12.2) a partir de intervenções
de ordem ressocializadora visando à não-reincidência – “as
condições da medida devem ser práticas, precisas e tão poucas quan-
to possíveis, e terão por objetivo reduzir as possibilidades de reinci-
dência do comportamento delituoso e incrementar as possibilidades
de reintegração social do delinquente” (art. 9.1).
Todavia, para além das discussões epistemológicas – in-
tensamente refutadas pelas criminologias burocráticas con-
temporâneas –, e centrado nos problemas empíricos, restaria
saber se a política de substitutivos penais implementada no

21 Organização das Nações Unidas, Regras de Tóquio, art. 1.2.

48
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

Brasil, sobretudo a partir de 1995, propiciou, minimamente,


a diminuição do encarceramento e a melhoria na qualidade de
vida dos grupos e pessoas criminalizadas. Inclusive porque para
os modelos criminológicos tecnocráticos (criminologias atua-
riais, situacionais e sistêmicas) a constatação fática da diminui-
ção do encarceramento suplantaria qualquer discussão sobre os
fundamentos do novo status puniendi, tornando supérfluo o de-
bate sobre a validade dos discursos que o sustentam.
Hipótese tradicional comungada pelas vertentes da
criminologia crítica foi a de que a política dos substitutivos
penais não rompe com a estrutura de punição centralizada
no carcerário. Pelo contrário, atuaria como elemento de re-
produção e de relegitimação da lógica do encarceramento. A
título exemplificativo, Stanley Cohen aponta para os efeitos
maximizadores do controle punitivo/carcerário ínsitos aos
modelos de diversificação penal e processual penal: “os distin-
tos estudos nos Estados Unidos, Canadá e Inglaterra demonstram
que as alternativas aos cárceres não são válidas. Pelo contrário, se
convertem em ‘aditivos/somatórios’ das prisões, seja pelo simples
fato de aumentar o número de pessoas sob controle social formal,
seja por somar mais do que obstruir o sistema de controle formal.
As ‘alternativas’ planificadas tendem claramente a ‘estender a rede’
(...).”22 Para Nils Christie, “as experiências recentes com ‘opções
ao encarceramento’ indicam que facilmente se tornam ‘prolongações
do encarceramento’, e que as decisões condicionais em realidade se
convertem em mais tempo de permanência na prisão.”23 Andrew
Coyle demonstra que a Inglaterra, apesar do amplo uso das
alternativas ao cárcere, aumentou seu contingente prisional,
gerando sério problema aos direitos humanos: as alternativas

22 Apud Mathiesen, La Politica del Abolicionismo, p. 115.


23 Christie, Los Límites del Dolor, p. 151.

49
CriminologiaS: Discursos para a Academia

são usadas pelas Cortes de Justiça como extensão da rede de


controle.24 Na literatura criminológica brasileira, sob o título
‘a ampliação do controle social’, Juarez Cirino dos Santos, ao co-
mentar a inserção das penas restritivas de direito na Reforma
Penal de 1984, chamava atenção para a armadilha que pode-
riam representar os mecanismos legais de desprisionalização:
“os substitutos penais não enfraquecem a prisão, mas a revigo-
ram; não diminuem sua necessidade, mas a reforçam; não anulam
sua legitimidade, mas a ratificam: são instituições tentaculares cuja
eficácia depende da existência revigorada da prisão, o centro ne-
vrálgico que estende o poder de controle, com a possibilidade do
reencarceramento se a expectativa comportamental dos controla-
dos não confirmar o prognóstico dos controladores.”25
Conforme sustentam os autores, é necessário que as alter-
nativas à prisão sejam efetivamente alternativas, e não sistemas
adicionais, apêndices ou válvulas de escape do insolvente mo-
delo carcerário. Deveriam constituir-se, pois, em possibilidades
reais de minimizar a dor e o volume da prisionalização, estabele-
cendo ruptura com a tradicional lógica encarceradora.
As assertivas estão seriamente fundamentadas em
Foucault, que demonstrou que o objetivo de reforma da pri-
são nasce com a sua construção, basicamente porque o mode-
lo disciplinar de isolamento e de reforma individual cumpre
funções (reais) distintas do discurso oficial que o legitima.
Segundo o autor, “se em pouco mais de um século o clima de ob-
viedade se transformou, não desapareceu. Conhecem-se todos os in-
convenientes da prisão, e sabe-se que é perigosa quando não inútil.

24 Coyle, Alternatives to Imprisonment, p. 04.


25 Santos, Direito Penal, p. 299.

50
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

E entretanto não ‘vemos’ o que pôr em seu lugar. Ela é a detestável


solução, de que não se pode abrir mão.”26
Passados dois séculos de afirmação do encarceramento
como ‘a’ pena por excelência, a partir da década de 70 são de-
senvolvidos mecanismos penais, processuais penais e de execu-
ção com objetivo de evitar prisionalização. Dentre os de maior
aceitação estão as denominadas penas alternativas ou, conforme
a Lei Penal brasileira, penas restritivas de direito (prestação de
serviço à comunidade, limitação de final de semana, interdição
temporária de direitos, prestação pecuniária).
As soluções alternativas ao cumprimento da pena privativa
de liberdade em regime carcerário foram vislumbradas e aper-
feiçoadas em inúmeros institutos, da pena pecuniária à suspen-
são condicional da pena e ao livramento condicional.27 Todavia é
com as medidas restritivas de direito, sobretudo na espécie pres-
tação de serviço à comunidade, que os atores jurídicos passam a
conceber forma de sanção distinta do aprisionamento.
Apesar da previsão das penas restritivas de direito na re-
forma da parte geral do Código Penal em 1984 (Lei 7.210/84),
a inserção normativa não produziu o efeito de efetiva imple-
mentação do projeto descarcerizador. Conforme os dados
do Ministério da Justiça,28 em 1987 apenas 197 condenados
cumpriam penas alternativas, todos localizados na cidade
de Porto Alegre, em decorrência da iniciativa do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, trabalho inovador que consti-

26 Foucault, Vigiar e Punir, p. 209.


27 Sobre o tema, conferir o importante trabalho de demonstração da gradual
incorporação dos substitutivos penais (livramento condicional, penas
pecuniárias, suspensão condicional da pena e penas restritivas de direito) na
legislação penal ocidental, Bitencourt, Falência da Pena de Prisão, pp. 212-332.
28 Departamento Penitenciário Nacional, Evolução Histórica das Penas e Medidas
Alternativas (PMAS) no Brasil, p. 01.

51
CriminologiaS: Discursos para a Academia

tuiu projeto piloto para posterior implantação do sistema das


penas alternativas em todo o Brasil.
No entanto, o grande giro na concepção de como julgar
e como punir na cultura jurídica nacional ocorreu na década
de 90 com a publicação de dois instrumentos normativos: a
Lei 9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais Criminais, e
a Lei 9.714/98, que redefiniu a aplicação das penas alterna-
tivas. A primeira, concretização de preceito do art. 98, I, da
Constituição, definiu possibilidade de composição civil e tran-
sação penal nas infrações de menor potencial ofensivo, delitos cuja
pena máxima não ultrapasse 02 anos de prisão, e criou o ins-
tituto da suspensão condicional do processo, aplicável aos delitos
de médio potencial ofensivo, cuja pena mínima não seja fixa-
da acima de 01 ano de prisão. A segunda normativa revigorou
a concepção das sanções restritivas de direito, ampliando as
possibilidades para os casos de pena de prisão aplicada na
quantidade máxima de 04 anos de reclusão.
No primeiro ano de vigência da Lei 9.099/95, o Ministério
da Justiça registrou o cumprimento de 78.612 medidas diver-
sificadoras (composição civil, transação penal ou suspensão
condicional do processo) e 1.692 penas alternativas. Em 2002,
com a redefinição dos critérios da Lei 9.099/95,29 e após perí-
odo razoável de vigência da Lei 9.714/98, os números foram
substancialmente alterados.

29 A Lei 9.099/95 dispôs como infrações de menor potencial ofensivo aquelas


condutas cuja pena máxima prevista abstratamente não ultrapassasse 01 (um) ano.
Posteriormente, com o advento da Lei 10.259/01, que instituiu os Juizados Especiais
Criminais no âmbito da Justiça Federal, o critério da menor potencialidade delitiva
foi ampliado para os crimes cuja pena máxima prevista não fosse superior a 02
(dois) anos, ou multa (art. 2o). Com a Lei 11.313/06, o patamar foi universalizado
para ambas as esferas de competência (Justiça Estadual e Justiça Federal), embora a
jurisprudência, a partir de 2001, admitisse esta equivalência.

52
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

Tabela 06
Brasil: Evolução das Penas e Medidas Alternativas (1987-2008)

Cumprimento de Cumprimento de
Ano Penas Alternativas Medidas Alternativas Total
(Lei 9.714/98) (Lei 9.099/95)
1987 197 Sem previsão legal 197
1995 1.692 78.672 80.364
2002 21.560 80.843 102.403
2006 63.457 237.945 301.402
2007 88.837 333.685 422.522
2008 97.674 401.055 498.729

Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN)

A evolução do controle punitivo formal não carcerário,


instrumentalizado pelos substitutivos penais, pode ser de-
monstrada da seguinte forma:

Gráfico 08
Brasil: Evolução das Penas e Medidas Alternativas (1995/2008)

600.000
498.730
500.000
422.520
401.060
400.000
333.690
301.410 MA
300.000
237.950 PA
200.000 Total
102.400 88.840 97.670
80.360 80.840
100.000 78.670 63.460
21.560
1.690
0
1995 2002 2006 2007 2008

Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN).

53
CriminologiaS: Discursos para a Academia

Ao cruzar os dados de cumprimento de penas e medi-


das alternativas com a curva de encarceramento, percebe-
-se a veracidade dos argumentos da criminologia crítica no
sentido de os substitutivos penais atuarem como mecanis-
mos de relegitimação do cárcere, fato que acaba por reduzir
a potência do discurso anticarcerário em nome de alterna-
tivas político-criminalmente viáveis. Conforme Cirino dos
Santos, é mantido o sistema tradicional de penas no qual
a instituição carcerária segue no papel central e, nas suas
margens, encontram-se as ferramentas substitutivas. Não
por outro motivo “é indispensável a eficácia dos substitutivos
penais, cuja função reversa é legitimar a prisão, como centro do
‘arquipélago carcerário’, com novas estratégias e métodos que
controlam, de forma mais intensa e mais generalizada, o conjunto
dos setores marginalizados.”30
Do que se pode observar na realidade brasileira contem-
porânea, a institucionalização das penas e medidas alternati-
vas não diminuiu os níveis de encarceramento. Pelo contrário,
as taxas de prisionalização vêm crescendo gradual e constan-
temente e, em paralelo, de forma abrupta, o controle punitivo
formal amplia hiperbolicamente seus horizontes em face da
instituição dos substitutivos penais.
Os dados comparativos permitem esta conclusão.

30 Santos, Direito..., p. 298.

54
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

Gráfico 09
Brasil: Relação entre Prisão e Penas e Medidas Alternativas
(1995-2008)

600.000
498.700
500.000 422.500 440.000
401.000 420.000
400.000
301.400
300.000
PMAs
239.000

200.000 149.000
Prisão
102.400
80.400
100.000

0
1995 2002 2006 2007 2008/1

Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN).

A comprovabilidade empírica da hipótese traçada pela


criminologia crítica em relação aos substitutivos penais de-
manda importantes questionamentos e novas reflexões no
que diz respeito às estratégias político-criminais. A principal,
logicamente, diz respeito à ineficácia dos substitutivos pe-
nais como mecanismos alternativos e de ruptura com a lógica
carcerária,31 isto é, se os instrumentos substitutivos, em nossa

31 Em sentido idêntico as conclusões realizadas pelo Instituto Latino Ame-


ricano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do
Delinquente (ILANUD/Brasil), em virtude de convênio celebrado com o
Ministério da Justiça por meio do Departamento Penitenciário Nacional
(DEPEN/MJ). Nas conclusões da pesquisa Levantamento Nacional sobre
Execução de Penas Alternativas, realizada entre dezembro de 2004 e janeiro
de 2006, os investigadores expõem que “A pena alternativa, tal como é prevista
no ordenamento brasileiro e aplicada pelo sistema de justiça, não cumpre a função
de “esvaziar as prisões”, ou seja, o perfil do indivíduo apenado por pena restritiva de
direito, especialmente quanto ao delito cometido, não se identifica com o da população

55
CriminologiaS: Discursos para a Academia

realidade, efetivamente minimizaram o impacto das políticas


encarceradoras, sobretudo em razão da possibilidade de sua
conversão em pena carcerária face ao descumprimento.
Andrew von Hirsch, ao analisar o processo de imple-
mentação de penas substitutivas nos Estados Unidos, cons-
tata que “à medida que foram sendo introduzidas novas opções
[multa, prestação de serviços comunitários, supervisão inten-
siva e prisão domiciliar] se pensou que os juízes as aplicariam em
substituição da prisão. No entanto, a estratégia de criar mais opções
demonstrou-se decepcionante. Sem princípios que regiam seu uso,
as novas sanções não foram aplica das no lugar da prisão. Em vez
disso, os juízes seguiram condenando à prisão como anteriormente e
passaram a usar as novas sanções como substitutivos às tradicionais
medidas não privativas de liberdade [suspensão da pena].”32
Outrossim, questão derivada latente, de improvável de-
monstração, é relativa à aplicação dos substitutivos penais como
alternativas ao princípio do in dubio pro reu. Apesar de esta per-
cepção ser meramente intuitiva, seria altamente relevante se

carcerária” (ILANUD, Levantamento..., p. 16). Ademais, “conclui-se que os


indivíduos que são condenados à pena privativa de liberdade e que têm realmente sua
pena substituída pela pena restritiva de direitos não seriam apenados com a prisão,
dada a pré-existência de outros institutos, como o sursis, que evitariam sua prisão.
A Lei 9.714/98, promulgada com vistas à ampliação das possibilidades de aplicação
das penas alternativas, ao prever o aumento para quatro anos do quantum de pena
passível de substituição, mostrou-se absolutamente ineficiente para essa finalidade.
Os resultados da pesquisa indicam que os juízes, na maior parte dos casos, decidem
pela substituição de penas com duração de até um ano, alcançando percentuais
significativos tão-somente até dois anos, tempo de pena que não se enquadra nas
modalidades penais de maior incidência no sistema penal. Nesse mesmo sentido, a
restrição introduzida pela referida lei aos delitos cometidos com ameaça e violência
também afastou as possibilidades de aplicação das penas alternativas aos condenados
pelo delito de roubo, ainda quando é compatível o tempo de pena. Tendo em vista a
imensa proporção de indivíduos condenados no sistema carcerário por esse crime e
por outros delitos também excluídos das possibilidades legais de substituição, chega-
se à conclusão de que é reduzido o impacto das penas alternativas para diminuição
do contingente prisional” (ILANUD, Levantamento..., p. 16-17).
32 Hirsch, Censurar y Castigar, p. 99.

56
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

fosse possível quantificar os casos em que tradicionalmente,


em face da dubiedade da prova, o julgamento seria absolutório,
mas, em decorrência da possibilidade de aplicação de pena não
carcerária, há opção judicial pela condenação criminal.

57
4.
Os Atores e as Agências Punitivas
no Brasil: Filtros à
Incidência do Poder Penal

A principal tese desenvolvida nesta pesquisa é a de que


o diagnóstico sobre os efeitos produzidos pelas alterações le-
gislativas das duas últimas décadas não pode ficar adstrito ao
âmbito normativo. Aliás, imputar os problemas gerados pelo
grande encarceramento que marca o cenário político-criminal
nacional exclusivamente aos Poderes Legislativo, em maior
medida, e Executivo, é simplificar o problema, eximindo a
responsabilidade dos atores que atuam nas diversas agências
que compõem a rede do sistema de justiça penal. Isto porque
são os atores que diariamente presentificam as agências de
punição e tornam concreta a atuação desta abstração denomi-
nada sistema penal. Assim, é possível constatar que apesar de
o impulso punitivista ser deflagrado na órbita legislativa, são
estes atores que lhe conferem efetividade.
Portanto conclusão preliminar pode ser apontada como
hipótese de investigação: o fenômeno do grande encarceramen-
to que marca a política criminal nacional não está restrito à incor-
poração do populismo punitivo por parte das agências legislativas,
mas requer, para sua plena efetivação, que os atores com poder de
decisão na cena processual penal entendam a diretriz punitivista

59
CriminologiaS: Discursos para a Academia

como legítima, concretizando-a através da racionalidade jurídico-


-instrumental.
Outrossim, importante destacar que hipótese de traba-
lho centrada na esfera decisional não limita a pesquisa à atu-
ação dos atores vinculados à Magistratura, embora tenha o
Poder Judiciário evidente protagonismo no poder decisório. É
que na complexa rede que conforma a abstração denominada
poder punitivo, série de personagens atuam preliminarmen-
te como filtros ou impulsionadores do punitivismo, muitas
vezes condicionando a própria decisão judicial. O ato judi-
cial, mormente a sentença penal, apenas consolida a série de
inúmeras decisões político-criminais que são tomadas pelos
operadores jurídicos ao longo da persecução penal (fase ad-
ministrativa de investigação, processo de instrução e, poste-
riormente, no processo de execução penal).
Neste aspecto, a teoria interacionista do desvio, respon-
sável pelo criminological turn1, define com precisão as etapas
do processo de criminalização, estando o Poder Legislativo
limitado à seletividade das condutas e às formas abstratas
de punição (criminalização primária). Diversamente, são as
agências dos Poderes Executivo (Polícia, Ministério Público e
Administração Carcerária) e Judiciário (Magistratura), que es-
tabelecem os critérios de interpretação (regras e metarregras)
que definirão as formas de incidência do controle penal na
sociedade civil (criminalização secundária) com a efetivação/
obstaculização da política legislativa, aumentando ou restrin-
gindo o punitivismo. Não obstante comporem a mesma rede,
as instâncias e os personagens são autônomos e independen-
tes na tomada das decisões. Assim, se houver direcionamen-
to harmônico no que respeita às opções político-criminais, os

1 Sobre o tema, Carvalho, Antimanual..., pp. 79-98.

60
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

níveis de punitivismo terão intensidade ótima (alta ou baixa);


se houver discordâncias e/ou resistências entre as distintas
instâncias, os efeitos encarceradores provavelmente serão es-
tabilizados em níveis intermediários.
As performances (grau de eficiência) e os consensos
político-criminais das distintas instituições que compõem o
sistema penal definem, ao final, o nível de punitividade de
determinado contexto espaço-temporal.
No Brasil, assim como na maioria dos países ocidentais,
o primeiro filtro estabelecido à criminalização secundária se
encontra nas agências policiais, responsáveis pela investiga-
ção preliminar (inquérito policial). Encerrada a investigação,
a autoridade policial pode requerer o arquivamento do caso
(em razão de ausência de provas de autoria ou de materia-
lidade ou em razão de o fato não constituir delito) ou enca-
minha o inquérito ao Ministério Público, com o indiciamento
formal do investigado.
A investigação preliminar é de natureza eminentemente
administrativa, no qual cabe à Polícia Judiciária, sob a presi-
dência do Delegado de Polícia, realizar inquérito com objeti-
vo de coletar o máximo de elementos de prova sobre o fato-
-crime. Assim, na fase investigativa, são produzidas todas as
provas indiciárias em direito admitidas (testemunhal, pericial
e documental), com objetivo de reconstrução do delito e de
imputação de responsabilidade ao seu autor.
O procedimento investigativo é eminentemente inquisi-
torial, burocratizado e regido pela escritura, sendo a forma
dos atos totalmente alheia aos princípios e regras do devido
processo legal, visto inexistir previsão legal de contraditório
e de ampla defesa nesta fase preliminar. O modelo investi-
gatório do inquérito policial foi incorporado pela legislação
brasileira em 1940 (Decreto-Lei 3.689/41, Código de Processo

61
CriminologiaS: Discursos para a Academia

Penal) sob forte influência do Código de Processo Penal italia-


no, editado pelo regime fascista, o qual se apropria do modelo
francês napoleônico.
Somente após a Constituição de 1988, algumas limita-
ções à discricionariedade plena da autoridade policial foram
estabelecidas, sobretudo com a determinação da obrigatorie-
dade de decisão judicial nos casos de restrição aos direitos
e às garantias fundamentais dos acusados. Assim, apesar de
permanecer evidente sua natureza administrativa, as decisões
produzidas no inquérito passaram a requerer o controle ju-
dicial. Os exemplos mais notórios são os casos de medidas
cautelares (prisão cautelar, busca e apreensão, interceptação
telefônica e ambiental, arresto e sequestro de bens entre ou-
tras) em que, diferentemente do cenário pré-constitucional,
quando o Delegado de Polícia decidia livremente sobre sua
conveniência, há necessidade de requerimento da autoridade
policial à judicial, que é a detentora do poder soberano de
deferir ou indeferir o pedido.
Finalizado o procedimento investigativo, o inquérito
é encaminhado ao Ministério Público, titular da ação penal
pública,2 para análise da conclusão administrativa de indicia-

2 No Brasil há previsão de duas espécies de ação penal: pública e privada. Na


ação penal pública, o Ministério Público titulariza a ação penal, conforme
determinado pelo art. 129, I da Constituição. A exceção da ação penal
pública é a ação penal privada, na qual o ofendido ou seu representante
legal exercem a ação. As diferentes espécies de ação determinam, inclusive,
distintos procedimentos e ônus processuais, sobretudo porque são
orientadas por diferentes princípios reitores, quais sejam, o princípio da
obrigatoriedade na ação penal pública e o princípio da disponibilidade na
ação penal privada.
Outrossim, dependendo da espécie de delito, da natureza ou do nível de
gravidade da lesão ao bem jurídico e da qualidade dos sujeitos imputados,
existem distintos procedimentos previstos na lei processual penal brasileira.
No caso de infrações de menor potencial ofensivo, a competência para
julgamento é dos Juizados Especiais Criminais, cuja lei prevê mitigação no

62
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

mento do investigado, de determinação de novas diligências,


ou de arquivamento do caso. O agente do Ministério Público,
órgão do Poder Executivo, realiza o segundo filtro na criminali-
zação secundária, pois sua opção por denunciar, requerer novas
investigações ou arquivar o inquérito é autônoma e independe
da conclusão realizada pela polícia. Possível, pois, a autoridade
policial indiciar o investigado e o Ministério Público entender
não estarem presentes os requisitos para ação penal ou inexistir
indiciamento e o dominis litis oferecer denúncia. Embora ambas
sejam agências persecutórias, a conclusão do órgão investigador
não vincula a opinião do órgão acusador.
Com base nos dados colhidos na investigação, o
Ministério Público analisa formal e materialmente as possibi-
lidades de imputação de responsabilidade e, estando presen-
tes as condições da ação, exerce o poder-dever de acusar atra-
vés do oferecimento formal da peça acusatória (denúncia).3
O oferecimento da denúncia estabelece o terceiro filtro ao
processo de criminalização. Conforme o procedimento perse-
cutório estabelecido pelo Código de Processo Penal brasileiro
após a série de reformas consolidadas em 2008, oferecida de-

princípio da obrigatoriedade da ação penal com a previsão de hipóteses de


transação ou conciliação penal (institutos diversificadores) – igualmente
há restrição ao princípio da obrigatoriedade no caso dos crimes de médio
potencial ofensivo que, apesar de serem julgados pelo procedimento
comum, comportam a possibilidade de suspensão condicional do processo.
Em caso de crimes dolosos contra a vida, o rito estabelecido é o do
julgamento pelo Tribunal do Júri, em procedimento que sucede a instrução
processual própria do rito ordinário. Nos demais delitos, o procedimento
comum orienta a forma dos atos.
A exposição do procedimento persecutório é baseada, exclusivamente,
no rito ordinário, notadamente em razão de ser a regra no processo penal
brasileiro.
3 “A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas
circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa
identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas”
(art. 41, CPP).

63
CriminologiaS: Discursos para a Academia

núncia pelo agente ministerial cabe ao juiz analisar as condi-


ções da ação4 – previsão legal da conduta narrada (tipicidade
aparente5); interesse de agir (punibilidade concreta), legiti-
midade para a causa (titularidade da parte) e justa causa pro-
cessual penal (provas mínimas de autoria e materialidade)6
– e, após a manifestação técnica da defesa do denunciado (res-
posta à acusação7), receber ou rejeitar8 9 a inicial acusatória
ou, ainda, absolver sumariamente o acusado.10 Apenas com o
recebimento da denúncia, através de decisão judicial motiva-

4 Sobre as condições genéricas da ação, conferir Tucci, Teoria do Direito Pro-


cessual Penal, pp. 89-97.
5 Sobre a inaceitabilidade da possibilidade jurídica do pedido como condição
de ação e a substituição pela ideia de tipicidade aparente, conferir Coutinho,
A Lide e o Conteúdo do Processo Penal, pp. 146-148; e Silveira, A Tipicidade e o
Juízo de Admissibilidade da Acusação, pp. 75-91.
6 Sobre a justa causa processual penal, conferir Moura, Justa Causa para a Ação
Penal, pp. 47-59.
7 A obrigatoriedade de a defesa do acusado manifestar-se antes do
recebimento formal da denúncia pelo juiz decorreu de recente alteração
legislativa (Lei 11.719/08). Segundo a nova redação do art. 396, CPP: “nos
procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a
rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à
acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias.”
8 “A denúncia ou queixa será rejeitada quando: I – for manifestamente inepta; II –
faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal; ou III –
faltar justa causa para o exercício da ação penal” (art. 395, CPP).
9 Antes da reforma operada pela Lei 11.719/08, para diferenciar a análise
judicial do mérito e a análise dos requisitos formais, havia diferenciação
entre rejeição e não recebimento da denúncia – na rejeição havia discussão
do mérito da causa, enquanto no não-recebimento havia apreciação das
condições da ação, configurando situações processuais distintas. Com a
reforma e a previsão da absolvição sumária, a rejeição da denúncia refere
análise dos requisitos formais (art. 396, CPP) e o juízo sumário diz respeito
ao mérito da causa (art. 397, CPP).
10 “Após o cumprimento do disposto no art. 396-A, e parágrafos, deste Código, o
juiz deverá absolver sumariamente o acusado quando verificar: I – a existência
manifesta de causa excludente da ilicitude do fato; II – a existência manifesta de
causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade; III – que o
fato narrado evidentemente não constitui crime; ou IV – extinta a punibilidade do
agente” (art. 397, CPP).

64
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

da, é que se instaura a situação processual penal, adquirindo


o acusado a condição de réu.
Percebe-se, portanto, que somente após o caso registrado
passar por três filtros de análise, em três distintas agências
penais, inicia-se efetivamente o processo penal, com instrução
processual regida pelos princípios ínsitos ao sistema acusa-
tório do due processo of law (princípios da presunção de ino-
cência, ampla defesa, contraditório, proibição de prova ilícita,
nemo tenetur se detegere, motivação dos atos judiciais, in dubio
pro reu, duplo grau de jurisdição).
Ao final da instrução, após manifestação das partes,
o Magistrado julga o caso, absolvendo ou condenando o
acusado. Desta decisão proferida pelo juiz singular cabe re-
curso aos Tribunais, local em que colegiado de juízes com-
posto por Câmaras ou Turmas re-analisará as matérias de
fato e de direito, proferindo novo julgamento. Todavia, em
caso de ofensa direta às normas constitucionais e/ou nega-
tiva de vigências à Legislação Federal ou divergência juris-
prudencial, a matéria de direito poderá ser submetida aos
Tribunais Federais (Supremo Tribunal Federal e Superior
Tribunal de Justiça), mediante a interposição de Recurso
Extraordinário (art. 102, Constituição11) e/ou Recurso
Especial (art. 105, Constituição12).
Após a tramitação do caso, com o esgotamento das
vias recursais e o trânsito em julgado da decisão conde-

11 “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição,


cabendo-lhe: (...) III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas
em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo
desta Constituição (...).”
12 “Compete ao Superior Tribunal de Justiça: (...) III – julgar, em recurso especial, as
causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais
ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão
recorrida: a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência; b) julgar válido

65
CriminologiaS: Discursos para a Academia

natória, inicia-se a execução da pena, com o retorno dos


autos ao juiz de primeiro grau e a formação do processo de
execução penal.

ato de governo local contestado em face de lei federal; c) der a lei federal interpretação
divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.”

66
5.
Os Paradoxos do
Sistema Jurídico-Penal Brasileiro

5.1. A Falta de Controle e de Transparência

Conforme antecipado, o levantamento de dados sobre a


situação da Justiça Criminal brasileira é experiência relativa-
mente recente. Em relação à população carcerária, apenas a
partir do ano de 2000 há periodicidade na sistematização e
na atualização dos dados, fato que permite analisar razoavel-
mente o fenômeno do punitivismo no Brasil.
Em relação ao desempenho das instituições que compõem
a rede de Justiça Criminal, os instrumentos de interpretação
possíveis advêm de estudos acadêmicos sobre casos específicos
ou de experiências inovadoras, porém incipientes, das próprias
instituições. Aliás, a própria análise do processo legislativo em
matéria penal carece profundamente de transparência, apesar
de a visibilidade dos Poderes ser uma das principais caracterís-
ticas dos regimes democráticos, constituindo-se, inclusive, como
qualidade ínsita aos deveres republicanos.
A análise, portanto, será realizada a partir do reconhe-
cimento do “déficit de informações públicas sobre o sistema penal
brasileiro.”1

1 Machado & Machado (coords.), Sispenas: Sistema de Consulta sobre Crimes,


Penas e Alternativas à Prisão, p. 04.

67
CriminologiaS: Discursos para a Academia

Neste quadro, sustentado nos estudos de Pierre Landreville,


preciso o diagnóstico proferido por Marta Machado e
Maíra Machado sobre a absoluta carência de controlabilida-
de do sistema penal brasileiro, ou seja, a ausência, por parte
dos Poderes Públicos, de coordenação sobre suas próprias
operações. Em cenário absolutamente complexo em razão
das sucessivas reformas do sistema penal ao longo das úl-
timas décadas, “esse quadro traduz-se na ausência de produção
de informações e de compartilhamento de resultados, bem como
na falta de mecanismos de planejamento.” A consequência,
exemplificada no caso das mudanças nas quantidades das
penas, é que “atualmente, esses dois conjuntos – as normas de
sanção acopladas às normas de conduta, de um lado e, de outro,
as normas sobre procedimentos e benefícios – praticamente não
se comunicam (...). E o que é pior: modificam-se simultaneamente
sem que haja verificação prévia sobre o impacto que exercem mu-
tuamente. Isto quer dizer que quando são propostas mudanças
pontuais nas penas cominadas para determinados crimes não se
sabe facilmente que tipo de consequência isso vai ter no que diz
respeito aos benefícios que deixarão ou passarão a ser passíveis de
aplicação a esse crime.”2
Assim, a leitura sobre a cultura dos atores do sistema
penal brasileiro será realizada a partir de uma série instru-
mentos coletados, aplicados por distintos grupos de pesquisa
em diferentes contextos. Em sua maioria, investigações aca-
dêmicas sobre o funcionamento da justiça criminal brasileira
e que possibilitam, de forma consistente, apontar seu modus
de atuação, projetando instrumentos parciais de controlabili-
dade da rede de punitividade.

2 Machado & Machado (coords.), Sispenas..., pp. 04-05.

68
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

5.2. Cifras Ocultas, Ineficiência Resolutiva e Alta


Punitividade

A questão central que surge das investigações sobre o


sistema formal de criminalização no Brasil é o paradoxo entre
a notória ineficiência das agências de controle em investigar e
elucidar delitos e, ao mesmo tempo, o alto grau de punitivis-
mo refletivo no número de pessoas aprisionadas.
Como a maioria dos países ocidentais, o Brasil assistiu
nas últimas décadas ao aumento do número de delitos violen-
tos, conforme exposto anteriormente – apesar do leve decrés-
cimo e da estabilização nos últimos anos. Todavia é inegável
que a taxa de homicídios por 100.000 habitantes, indicador
internacional de violência, ainda é bastante alta.
Ocorre que apesar do alto grau de violência urbana e do
enorme contingente de pessoas presas – o que poderia, em
tese, ser fenômenos reflexo – a ineficácia das instituições em
termos de resolução dos casos que lhes são apresentados é
superlativa.3 Rodrigo Azevedo demonstra que no Rio Grande
do Sul, Estado cuja taxa de elucidação de crimes está entre as
maiores do país, os dados oficiais referentes a 2007 demons-
tram que do total de Inquéritos instaurados, 55% são finali-
zados e remetidos ao Ministério Público. No entanto, deste

3 Registre-se que apresentar diagnóstico e apontar o grau de ineficácia do


sistema de justiça criminal na resolução dos casos que lhe são apresentados
não implica em aderir ao que se convencionou chamar de discursos eficientistas,
em grande parte inspirados nos discursos atuariais e nas políticas criminais
securitizadoras. Pelo contrário, a orientação da investigação está em sentido
oposto ao discurso eficientista que se reflete exatamente na alta seletividade
e na aplicação desigual da sanção criminal contra grupos vulneráveis
denunciada nesta pesquisa.
A constatação da alta punibilização de grupos vulneráveis apesar da
ineficácia patológica do sistema penal é provavelmente o maior sintoma da
orientação eficientista das agências punitivas nacionais.

69
CriminologiaS: Discursos para a Academia

universo, apenas 15% originam denúncia e são submetidos à


primeira análise judicial (terceiro filtro).4
Se for incluída neste cálculo a cifra oculta de delitos não
comunicados às autoridades policiais e se forem agregados
os números de absolvições por fragilidade probatória e as ex-
tinções de punibilidade (prescrição, p. ex.), a ineficiência ope-
racional do sistema torna-se bastante elevada. O problema é
que apesar desta falta de efetividade na formação de conjunto
probatório lícito e idôneo para alcançar a responsabilização
pela prática do delito, o Brasil apresenta elevados índices de
encarceramento.
Fernanda Vasconcellos e Rodrigo Azevedo explicam este
paradoxo demonstrando que é exatamente em decorrência
da falta de credibilidade no sistema de justiça criminal que
“o processo penal, que é instaurado em relativamente poucos casos,
passa a ser utilizado como um mecanismo de punição antecipada,
já que a prisão imediata e todos os demais ritos processuais podem
oferecer a falsa sensação de eficácia do poder punitivo do Estado.”5
O descrédito deriva, segundo os pesquisadores, do alto grau
de seletividade na criminalização secundária, da ausência de
imparcialidade nos julgamentos, da superlativa cifra oculta
e da lentidão burocrática das instituições, fatores que produ-
zem ineficácia quanto aos resultados esperados pelo público
consumidor do discurso punitivo.
A utilização do processo penal como efetiva (antecipa-
ção de) pena contra os grupos vulneráveis criminalizados e
os autores de obras toscas da criminalidade6 fornecem elementos

4 Azevedo, Justiça Penal e Segurança Pública no Brasil, pp. 98-99.


5 Apud Azevedo, Justiça..., p. 99.
6 Segundo Zaffaroni, Batista, Alagia e Slokar, “a regra geral da criminalização
secundária se traduz na seleção: a) por fatos burdos ou grosseiros (obra tosca
da criminalidade, cuja detecção é mais fácil), e b) de pessoas que causem menos
problemas (por sua incapacidade de acesso positivo ao poder político e econômico

70
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

para compreensão da patologia do grande encarceramento


brasileiro, seja em relação ao alto número de prisões caute-
lares, inclusive em casos de delitos praticados sem violência,
seja em decorrência de condenações criminais. Além disso,
igualmente possibilita formas de compreensão do (ab)uso de
métodos ilegais para a construção da prova, especialmente na
fase policial, seja através da violação dos procedimentos for-
mais estabelecidos pelas normas processuais (buscas e apre-
ensões, interceptações telefônicas e prisões sem autorização
judicial), seja pelo uso brutal da força física e pelo abuso da
autoridade (torturas, ameaças, extorsões).

ou à comunidade massiva” (Zaffaroni, Batista, Alagia & Slokar, Direito Penal


Brasileiro, p.46).

71
6.
As Instituições da Persecução
Penal e a Formação Cultural
dos seus Atores:
a Tradição Inquisitória

José Eduardo Faria enuncia a crise do sistema de Justiça


brasileiro a partir da ineficiência no desempenho de três fun-
ções que considera básicas: a instrumental, a política e a sim-
bólica. A função instrumental seria relativa à capacidade de o
Judiciário e de o Ministério Público resolver os conflitos que
lhes são apresentados; a função política representaria o papel
das instituições como mecanismos de controle social e efeti-
vação dos direitos; a função simbólica efetivaria as expectativas
sociais de aplicação equânime da justiça.1
Alerta o investigador que a crise de disfuncionalidade
instrumental, política e simbólica não é fenômeno contempo-
râneo, pois remete a questão para a formação histórica das
instituições da Justiça luso-brasileira. Note-se, ainda, que o
autor não restringe sua análise à questão penal, mas visualiza
o sistema de Justiça de forma ampla, integrando o sistema pe-
nal às demais agências da Administração da Justiça.
Se é possível diagnosticar como causa da crise da ad-
ministração da Justiça brasileira o fato de ter sido concebida

1 Faria, O Sistema Brasileiro de Justiça, p. 104.

73
CriminologiaS: Discursos para a Academia

para atuação em sociedade relativamente estável, com níveis


equitativos de distribuição de renda, refletida em ordem le-
gal integrada por normas padronizadas e unívocas, não é lí-
cito olvidar a tradição luso-brasileira de formação dos atores
que manipulam este sistema burocrático. Desta forma, possí-
vel verificar que além da configuração de sistemas de gestão
pública a partir de modelos idealizados – modelos de justiça
e de sociedade distintos da brasileira, fato que reflete haver
grande incompatibilidade entre a realidade social e a progra-
mação das instituições2 – a justiça criminal atual é o reflexo
natural do pensamento inquisitório institucionalizado desde a
colonização que se consolidou ao longo do processo de for-
mação do Estado nacional.
Segundo Faria, “A ineficiência do ‘sistema de Justiça’ no
exercício dessas funções decorre, em grande parte, da incompati-
bilidade estrutural entre sua arquitetura e a realidade socioeco-
nômica sobre a qual tem de atuar. Em termos históricos, desde
seus primórdios no Brasil colonial, como instituição de feições
inquisitórias forjada pelo Estado português a partir das raízes
culturais da Contra-Reforma, com seus prazos, instâncias e re-

2 “A realidade brasileira é incompatível com esse modelo de Judiciário. Contraditória


e conflitiva, ela se caracteriza por desigualdades sociais, regionais e setoriais;
por situações de miséria que negam o princípio da igualdade formal perante a
lei, impedem o acesso de parcelas significativas da população aos tribunais e
comprometem a efetividade dos direitos fundamentais; pelo aumento do desemprego
aberto e oculto e pela redução do número de trabalhadores com carteira assinada;
por uma violência urbana desafiadora da ordem democrática e oriunda dos setores
sociais excluídos da economia formal, para os quais a transgressão cotidiana se
converteu na única possibilidade de sobrevivência; por um aumento preocupante
nos índices de criminalidade; e por um sistema legal fragmentário e incapaz de gerar
previsibilidade, dada a profusão de regras editadas para casos conjunturais” (Faria,
A Crise do Judiciário no Brasil, p. 25).

74
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

cursos, o Judiciário sempre foi organizado como um burocratiza-


do sistema de procedimentos escritos.”3
O diagnóstico apresentado por José Eduardo Faria permi-
te não apenas encontrar importante chave de interpretação para
compreender a estrutura da administração da Justiça luso-bra-
sileira, mas, sobretudo, para avaliar seu sistema de Justiça pe-
nal. Sobretudo porque é no âmbito da repressão ao crime e aos
desvios que a mentalidade inquisitória se infiltra de forma mais
vigorosa e produz seus mais consistentes efeitos.
Importante destacar, portanto, que a técnica repressiva
moldada no sistema inquisitório estabelece modelo paradig-
mático de administração da justiça criminal que orientará
grande parte dos modelos jurídicos autoritários contemporâ-
neos. Conforme destaca Jacinto Coutinho, a elaboração desta
matriz processual penal é tão genial que permanece vigente
nos tempos atuais4 – diagnóstico, diga-se, não restrito apenas
à realidade brasileira.
Caracterizar a estrutura do paradigma inquisitório, com
a precisa identificação dos papéis atribuídos aos sujeitos da
persecução penal, permite, portanto, traçar o horizonte de
projeção, apontar o direcionamento da atuação do sistema
punitivo5, pois “mudam os sinais, mas não a lógica de um sistema
totalitário e por isso repressivo de toda e qualquer diferença.”6 Nas
palavras de Umberto Eco, “a Idade Média representa o crisol da

3 Faria, O Sistema..., p. 104.


4 Coutinho, Jurisdição, Psicanálise e Mundo Neoliberal, p. 47.
5 Nas palavras de Novinsky, “na Inquisição está o modelo ideal da implantação de
regimes totalitários, dos seus métodos de tortura, de como são tratados dissidentes
políticos e sociais, de como isolar milhares de pessoas proibidas de conhecer suas
origens culturais, da miséria dos condenados ao silêncio e à incomunicabilidade, do
racismo mascarado em novas ideologias e da apropriação de bens como fiança desses
crimes.” (Novinsky, Inquisição: Rol dos Culpados, p. XI)
6 Boff, Inquisição, p. 20.

75
CriminologiaS: Discursos para a Academia

Europa e da civilização moderna. A Idade Média inventa todas as


coisas com as quais ainda estamos ajustando as contas.”7
Em sua forma jurídico-penal, o sistema inquisitório se es-
trutura em economia de poder cujo protagonismo é exercido
pelo Magistrado. A relação que se estabelece entre julgador e
julgado é estruturante, pois traça os limites de atuação dos su-
jeitos processuais. Aliás, todos os demais atores desta cena pro-
cessual são coadjuvantes, detentores de papéis secundários, pois
a resolução do caso se vincula fundamentalmente à técnica do
Magistrado em descobrir a verdade que o acusado é o exclusivo
detentor. O poder, portanto, é altamente concentrado e direcio-
nado exclusivamente contra o suspeito-acusado-réu.
A forma judicial de atuação-protagonismo processual se
manifesta, pois, como “verdadeira obsessão do inquisidor; daí ser
natural, nessa perspectiva, a utilização do saber do próprio acusado
como fonte de informação.”8
Fundamental frisar, porém, que as referências históricas
ao sistema inquisitório ou aos Tribunais do Santo Ofício9 têm

7 Eco, Dez Modos de Sonhar a Idade Média, p. 78.


8 Gomes Filho, O Direito à Prova no Processo Penal, p. 21.
9 No Brasil, o Tribunal do Santo Ofício iniciou sua atividade em 1572,
permanecendo ativo até a Independência. Apesar de centralizar a persecução
no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Paraíba, atuou em todo o território
nacional – “na verdade, o Santo Ofício interferiu profundamente na vida colonial,
durante mais de dois séculos, perseguindo portugueses, brasileiros, índios e africanos
nos quatro cantos do Brasil.” (Fernandes, A Inquisição e as Etnias, p. 232).
A instalação do aparato judiciário-clerical em Portugal ocorre no ano de
1536, tendo perdurado até 1821 com a ruptura imposta pela revolução
constitucionalista. Gestada na Lei da Boa-Razão (1769), que seculariza
o direito pela restrição à soberania das fontes do Direito Canônico, e na
reforma pombalina, que cria condições de formação de um novo caldo de
cultura (Gauer, A Modernidade Portuguesa e a Reforma Pombalina de 1772, pp.
63-86), a cisão com o modelo inquisitorial nas terras lusitanas culmina com
a insurreição do Porto de 1820 e com o início do processo codificador.
Com a colonização nota-se claramente a transposição desta máquina
judiciária para o Brasil, a qual possibilitou não apenas a repressão política
dos ‘hereges’, mas o controle dos dissidentes políticos e das classes

76
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

como única função a elaboração de motivo histórico-conceitual,


recurso interpretativo sem qualquer pretensão de estabele-
cer linearidade histórica estável ou origens fenomênicas ou
epistemológicas. A temática inquisitorial está inserida em
terreno volátil de alta complexidade, não podendo ser en-
clausurada em modelos históricos cerrados, sobretudo jurí-
dicos. Importante ressaltar, contudo, na demonstração deste
modelo persecutório de investigação e conquista de verdade
juridicamente válida, a sua proliferação em dimensões extra-
ordinárias10, decorrência de sua característica trans-histórica
e de sua alta funcionalidade para legitimação de máquinas
judiciárias autoritárias.

6.1. Estrutura do Sistema Inquisitório e as suas


Consequências na Formação dos Atores
Processuais

Ao procurar elemento para a caracterização de uma epis-


temologia inquisitiva, Ferrajoli propõe identificar e expor ele-
mentos assimétricos ao tipo-ideal garantista. Cria, pois, dois

subalternas (Novinsky, Inquisição: rol dos culpados, pp. VII-XIX; e Novinsky


& Carneiro, Inquisição: ensaios sobre mentalidades, heresias e arte, pp. 03-10, pp.
97-159, pp. 337-439), inclusive com o genocídio dos povos nativos (Silva
Filho, Da ‘Invasão’ da América aos Sistemas Penais de Hoje, pp. 279-329).
Se as Ordenações Afonsinas (1446) e Manuelinas (1521) não tiveram ampla
aplicação, as Ordenações Filipinas (1603) representaram o complexo
legislativo do modelo jurídico-penal da Inquisição no Brasil. No Livro V
das Ordenações Filipinas encontra-se a codificação penal e processual penal
da Colônia que reflete o espírito pré-secular de ausência de distinção entre
direito, moral e religião.
Mister notar que o estatuto repressivo inquisitorial que perdura formalmente
mesmo após a proclamação da Independência (1822) e a outorga da
Constituição de 1824, sendo substituído apenas em 1830 com o Código
Penal e em 1832 com o Código de Processo Criminal de Primeira Instância –
em 1823 foi editada Lei que mantinha a vigência das Ordenações Filipinas.
10 Foucault, A Verdade e as Formas Jurídicas, pp. 53-78.

77
CriminologiaS: Discursos para a Academia

modelos epistemológicos puros e estabelece seus contrapon-


tos na definição normativa do ilícito (direito penal), nas for-
mas de comprovação judicial do desvio penalmente relevante
(processo penal) e nos modelos de sanção (execução da pena).
Conforme o autor, o primeiro aspecto caracterizador da
epistemologia inquisitiva seria a concepção ontológica de delito
– “das doutrinas moralistas que identificam no crime um pecado às
naturalistas que vêem no crime um sinal de anormalidade ou patolo-
gia psicofísica do sujeito, até aquelas pragmáticas e utilitaristas que
a este conferem relevância somente quando se mostra como sintoma
especial e alarmante da periculosidade do seu autor.”11 A concep-
ção substancialista do desvio, consequência lógica da fusão
antissecular entre elementos do direito e da moral, redefiniria
os limites de incidência do poder punitivo (garantias) forneci-
dos pelo princípio da legalidade (mala prohibita), substituindo
a proibição formal da conduta pela ideia material de autor/
conduta criminais (mala in se).
Em termos genéricos, a epistemologia inquisitiva no
direito penal (teoria da lei penal, teoria do delito e teoria
da pena) potencializa modelos de direito penal de autor
nos quais são reprimidos comportamentos individuais ou
estados/condições pessoais em detrimento da violação ex-
terna de bens jurídicos normativamente tutelados (direito
penal do fato). Em termos político-criminais, a tensão entre
os dois modelos extremos delineia projetos de direito penal
máximo (sistema inquisitório) e de direito penal mínimo
(sistema garantista).
O segundo elemento da epistemologia inquisitiva é refe-
rente ao processo penal e às formas de execução da pena, na
caracterização do decisionismo processual. A tensão apresenta-

11 Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 14.

78
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

da definiria os sistemas processuais penais como acusatórios


ou inquisitórios.
A principal caracterização dos modelos processuais pe-
nais é realizada a partir da posição do Magistrado no proces-
so. No sistema acusatório, regido pelo princípio dispositivo do
juiz espectador, o Magistrado é sujeito passivo, tanto no que
concerne à iniciativa da ação penal quanto na gestão da prova.
Encontra-se rigidamente separado das partes, principalmente
do órgão acusador, de forma a garantir a imparcialidade do
julgamento.12 O juízo é caracterizado por procedimento oral
e público, sendo a decisão final modelada pelo princípio do
livre convencimento, ou seja, a sentença cabe exclusivamente
ao Juiz que, a partir da exposição motivada dos argumentos
que permitiram concluir sobre o objeto de discussão (caso
penal), coloca termo ao procedimento. Opõe-se, portanto, ao
modelo inquisitivo no qual o Juiz procede à busca e à valo-
ração das provas, decidindo após procedimento instrutório
escrito e sigiloso.
No entanto, alerta Tornaghi13 que apesar de o sistema
inquisitório ser modelado pela escritura e pelo sigilo, essas
características não lhe são essenciais, pois o que distinguiria
a forma acusatória da inquisitória é o fato de que, na primei-
ra, as funções de acusar, defender e julgar estão distribuídas
igualmente entre três órgãos distintos (acusador, defensor e
juiz), e no segundo modelo as funções estão confiadas a um

12 Segundo Luigi Ferrajoli, a postura imparcial dos julgadores nos modelos


acusatórios resulta caracterizada pela sua posição desprendida do sistema
político e pela ausência de vínculo com as partes do caso em julgamento
ou de qualquer interesse particular no resultado da demanda (Ferrajoli,
Giurisdizione e Democracia, p. 293).
13 Tornaghi, Instituições de Processo Penal, p. 465.

79
CriminologiaS: Discursos para a Academia

único sujeito, pois, conforme Feuerbach, “en el proceso inquisi-


torio se considera al juez como una triple persona.”14
Apesar da importância da distribuição equânime de po-
deres instrutórios às partes, entende-se que a gestão judicial
da prova segue sendo o elemento que melhor indica a adjeti-
vação inquisitória ou acusatória aos sistemas processuais.
Claus Roxin, avaliando a posição jurídica dos sujeitos
processuais, sustenta que o processo inquisitivo é baseado “en
el principio de que la investigación de la verdad está em manos del
juez: él reúne, desde el principio en material probatório, interroga al
imputado, dirige el juicio y dicta la sentencia.”15
Barreiros, ao traçar as principais características dos sis-
temas, sustenta que no acusatório o julgador é representado
por assembleia ou corpo de jurados populares; o juiz é árbitro
sem iniciativa na investigação; a ação é popular (delitos públi-
cos) ou compete ao ofendido (delitos privados); o processo é
oral, público e contraditório; a prova é valorada livremente; a
sentença faz coisa julgada; e a regra nas medidas cautelares é
a liberdade do arguido. Na antípoda inquisitória, o julgador
é permanente; o juiz investiga, dirige, acusa e julga numa po-
sição de superioridade face ao imputado; a acusação procede
ex officio, admitindo-se denúncia secreta; o processo é escrito,
secreto e não-contraditório; a prova é legalmente tarifada; a
sentença não faz coisa julgada; e a característica das medidas
de cautela é o aprisionamento.16 Dessa forma, como salienta
Ferrajoli, enquanto “ao sistema acusatório convém um juiz espec-
tador, voltado sobretudo à objetiva e imparcial avaliação dos fatos, e
portanto mais sábio que ilustrado, o rito inquisitório exige um juiz
ator, representante do interesse punitivo, e por isso legalista, versado

14 Feuerbach, Tratado de Derecho Penal, p. 372.


15 Roxin, Derecho Procesal Penal, p. 122.
16 Barreiros, Processo Penal, p. 12.

80
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

nos procedimentos e dotado de capacidade investigativa.”17 Trata-


se, em última análise, de opção política entre duas distintas
espécies de julgadores: juízes-cidadãos ou juízes-magistrados.
O sistema inquisitório, portanto, exclui o contraditório,
limita a ampla defesa e obstaculiza, quando não inviabiliza, a
presunção de inocência, cuja comissividade é o postulado bá-
sico do garantismo processual.18 Recorde-se que no processo
penal inquisitório a insuficiência de provas e sua consequente
dubiedade não gera absolvição; ao contrário, o indício equi-
vale à semiprova, que comporta juízo de semiculpabilidade e,
em consequência, semicondenação.19
Conforme as lições de Franco Cordero, possível identifi-
car o estilo inquisitivo a partir de duas constatações: (1a) a sobre-
valorização da imputação em relação à prova, configurando o
primado das hipóteses sobre os fatos; e (2a) a conversão do processo
em psicoscopía, ao estabelecer rito fatigante e isento de forma
rígida.20 Assim, as técnicas do modelo inquisitório desenvol-
vem no Magistrado quadros mentais paranoicos e tendências po-
licialescas, visto que, ao invés de o juiz “se convencer através da
prova careada para os autos, inversamente, a prova servia para de-
monstrar o acerto da imputação formulada pelo juiz-inquisidor.”21
Conclusão idêntica é a de Roxin, para quem a desvantagem
significativa do processo inquisitivo, como resultado da união
dos papéis processuais de persecutor e julgador na figura do

17 Ferrajoli, Diritto..., p. 588.


18 Sobre a importância do princípio da presunção de inocência no processo
penal garantista, conferir Ibáñez, Garantismo y Proceso Penal, pp. 52-55.
19 Quanto ao regime probatório e à formulação de juízos de semiculpabilidade
a partir de indícios, verificar Foucault, Vigiar e Punir, pp. 11-61.
20 Nas lições de Cordero: “a solidão na qual trabalham os inquisidores, nunca
expostos ao contraditório, alheios à dialética, pode ser útil ao trabalho policialesco,
mas desenvolve quadros mentais paranóicos. Poderíamos chamar ‘primado das
hipóteses sobre os fatos’” (Cordero, Guida alla Procedura Penale, p. 51).
21 Jardim, Ação Penal Pública, p. 24.

81
CriminologiaS: Discursos para a Academia

Juiz, é a “sobre-exigência psicológica: aquele que reuniu o material


de prova, em geral, não se coloca de forma imparcial em relação ao
resultado da investigação, posição indispensável para ditar uma sen-
tença fundada em valorações equitativas.”22
Neste quadro inquisitorial, o réu transforma-se em ob-
jeto de investigação, pois detém com exclusividade verdade
histórica (verdade material) que necessita ser revelada – “o
inquisidor investiga, procurando buscar signos do delito, e trabalha
sobre os acusados, porque, culpados ou inocentes, sabem tudo o que
se requer para decisões perfeitas; tudo se resume a fazê-lo dizer.23”
Os dois extremos da intervenção processual penal descri-
tos nos sistemas acusatório e inquisitório apresentam escopos
substancialmente diferenciados. Enquanto o modelo garantis-
ta-acusatório vincula-se à racionalidade do juízo, tendo como
objetivo principal a máxima tutela das liberdades contra os po-
deres, o modelo inquisitivo potencializa a violência institucio-
nal, pois isento de mecanismos de contenção à intervenção do
poder punitivo, motivo pelo qual determinados autores sequer
nominam como processo o rito inquisitório.24
Não por outro motivo o resultado do processo inquisiti-
vo é determinado ex ante, pois a conclusão posta em senten-

22 Roxin, Derecho..., p. 122.


23 Cordero, Procedura Penale, p. 580.
No papel de único detentor da verdade, o réu se transforma na própria
verdade a ser explorada, motivo pelo qual as técnicas de investigação não
respeitam limites: “o estilo inquisitório multiplica os fluxos verbais: é preciso que
o imputado fale; o processo se transforma em sonda psíquica. O inquisidor trabalha
livremente, indiferente aos limites legais, mas recolhe toda sílaba: a obsessão micro-
analítica desenvolve um formalismo gráfico; nenhum fato é realmente um fato
enquanto não figure no papel” (Cordero, Procedura..., p. 329).
24 Segundo Montero Aroca, “o denominado processo inquisitivo não foi e,
obviamente, não pode ser, um verdadeiro processo. Se este se identifica como
actus trium personarum, no qual perante um terceiro imparcial comparecem dois
sujeitos parciais, situados em posição de igualdade e com pleno contraditório, e
colocam um conflito para que aquele o solucione concretizando o Direito objetivo,

82
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

ça deriva de prova antecipada à sua realização, concebida


previamente à sua produção – “o Juiz-acusador formula uma
hipótese e realiza a verificação. A verdade admitida como ‘ada-
equatio rei et intellectus’ é atingível e deve ser alcançada. Esta
verdade, verdade material, já existente como hipótese na mente
do Juiz-acusador, deve, por outro lado, ser atingida solipsistica-
mente. O contraditório perturba esta investigação. A poluição da
prova daquela verdade já postulada é o maior de todos os perigos.
Daí resulta o sigilo do processo, a ausência do indiciado ou do seu
defensor na aquisição da prova que poderá servir para fundamen-
tar a sentença de condenação.”25
A identidade Juiz-acusador produz a sacralização do rito
(procedimento instrutório burocrático), situação que anula
qualquer possibilidade de defesa, visto reduzir o imputado
a objeto privilegiado do saber – “o instrumento inquisitório de-
senvolve um teorema óbvio: culpado ou não, o indiciado é detentor
das verdades históricas; tenha cometido ou não o fato; nos dois ca-
sos, o acontecido constitui um dado indelével, com as respectivas
memórias; se ele as deixasse transparecer, todas as questões seriam
liquidadas com certeza; basta que o inquisidor entre na sua cabeça.
Os juízos tornam-se psicoscopia.”26
Em conclusão, nas precisas lições de Geraldo Prado ao
analisar o papel dos sujeitos nos sistemas processuais, “(...) a
função predominante do processo inquisitório consiste na realização
do direito penal material. O poder de punir do Estado (ou de que

algunas das características indicadas como próprias do sistema inquisitivo levam


ineludivelmente à conclusão de que esse sistema não pode permitir a existência de
um verdadeiro processo. Processo inquisitivo se resolve, pois, como uma contradictio
in terminis” (Montero Aroca, Princípios del Proceso Penal, pp. 28-29).
No mesmo sentido, Montero Aroca, El Derecho Procesal en el Siglo XX, pp.
106-107.
25 Bettiol, & Bettiol, Instituzioni di Diritto e Procedura Penale, p. 129.
26 Cordero, Guida…, pp. 48-49.

83
CriminologiaS: Discursos para a Academia

exerça o poder concretamente) é o dado central, o objetivo primor-


dial. No sistema inquisitório, portanto, os atos atribuídos ao juiz
devem ser compatíveis com o citado objetivo. Em linguagem con-
temporânea equivale a dizer que o juiz cumpre função de segurança
pública no exercício do magistério penal.”27

6.2. Mentalidade Inquisitória e Formas de Produção


da Verdade

O sistema de administração da justiça criminal brasileira,


conforme delineado anteriormente, é caracterizado por dois
momentos distintos: o primeiro, de natureza administrativa,
no qual atuam os agentes de investigação (Polícia Judiciária)
sob a fiscalização do Ministério Público e com parte de sua
discricionariedade subordinada à autorização do Poder
Judiciário; e o segundo, eminentemente jurisdicional, no qual
é consolidada a situação processual de partes.
A bipartição do procedimento persecutório em duas fa-
ses com naturezas jurídicas distintas (administrativa e juris-
dicional) induziu a percepção pela doutrina e pela jurispru-
dência de o processo penal brasileiro estar orientado por dis-
tintos sistemas processuais. Assim, conforme o pensamento
processual-penal dominante, a fase de Inquérito seria regida
pelos princípios do sistema inquisitório, marcado pelas au-
sências de contraditório, de publicidade e de ampla defesa,
e, após o recebimento da denúncia pelo Magistrado, ou seja,
constituída a situação processual penal, o procedimento es-
taria orientado pela estrutura do processo acusatório, com a
efetivação plena das garantias constitucionais.

27 Prado, Sistema Acusatório, p. 105.

84
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

Todavia, conforme vem sendo denunciada pela crítica do


direito penal nacional28, a lógica que orienta a atuação dos su-
jeitos do processo penal no Brasil, em grande medida pela in-
corporação da sistemática do Código de Processo Penal de 1942,
é notadamente inquisitória, apesar de ser suavizada pela apa-
rência de o procedimento ser guiado pelo due process of law. A
crítica direcionada ao pensamento processual dominante se alia,
portanto, às conclusões apresentadas de José Eduardo Faria, em
sua análise global do sistema de Justiça brasileiro.
No entanto, para além da arquitetura processual que
caracteriza como inquisitório o processo penal brasileiro, in-
clusive em sua fase jurisdicional, Kant de Lima percebe na
cultura judiciária brasileira a incorporação de determinadas
formas de produção da verdade que permite a manutenção e
a transcendência da lógica inquisitória, inclusive após a rede-
mocratização política com a Constituição de 1988.
Sustenta Kant de Lima29 que a moldura dos sistemas
judiciários se define a partir da compreensão dos conflitos,
fundamentalmente se a sociedade na qual se está inserido
percebe o conflito como fonte de desordem e de ruptura com
a harmonia social, sendo imprescindível sua repressão, ou se
entende como inevitáveis no convívio e, portanto, fonte de or-

28 Dentre os autores, destacam-se, sobretudo, Bueno de Carvalho, Nós, Juízes,


Inquisidores, pp. 39-50; Bueno de Carvalho, Atuação dos Juízes Alternativos
Gaúchos no Processo de Pós-Transição Democrática, pp. 29-32; Carvalho, Pena
e Garantias, pp. 257-265; Carvalho, As Reformas Parciais no Processo Penal
Brasileiro, pp. 83-132; Carvalho, Antimanual de Criminologia, pp. 57-78;
Choukr, Processo Penal de Emergência, pp. 56-69; Coutinho, O Papel do Novo
Juiz no Processo Penal, pp. 33-44; Coutinho, Introdução aos Princípios Gerais
do Processo Penal Brasileiro, pp. 26-51; Lopes Jr., Introdução Crítica ao Processo
Penal Brasileiro, pp. 150-174; Prado, Sistema..., pp. 104-124; Rosa, Decisão
Penal, pp. 117-151; Wunderlich, Por um Sistema de Impugnações no Processo
Penal Constitucional Brasileiro; pp. 15-45.
29 Kant de Lima, Polícia e Exclusão na Cultura Judiciária, pp. 170-171.

85
CriminologiaS: Discursos para a Academia

dem quando devidamente solucionados. As distintas formas


como cada sociedade compreende o conflito instituiriam di-
ferentes sistemas ou regimes de verdade que caracterizariam
seus sistemas judiciários.
Assim, utilizando-se do método comparativo, distingue
dois sistemas de produção da verdade: os sistemas de decisão
consensual e os sistemas de decisão conflitiva (ou de disso-
nância cognitiva).30 Nos sistemas consensuais, cuja tradição
se encontra consolidada nos países da common law, o regime
de verdade é baseado na ideia de decisão como resultado de
processo de negociação entre as partes, seja no momento em
que o acusado se declara culpado (plea guilty) após a barganha
com a acusação (plea bargain), seja quando a decisão requer a
arbitragem judicial nos casos em que o réu se declara inocente
(not guilty) – “neste último caso, constrói-se também a verdade pela
negociação, pois o veredict nada mais é do que uma decisão toma-
da por maioria ou por unanimidade dos jurados, que a negociam
discutindo entre si até chegarem a uma conclusão satisfatória para
todos.” A decisão que encerra o caso é, portanto, consequência
do debate entre acusação e defesa ou entre os jurados, quando

30 O autor trabalha a comparação entre os dois modelos em inúmeros artigos


distintos, mas, principalmente, em Kant de Lima, Polícia..., p. 169-183; Kant
de Lima, Os Cruéis Modelos Jurídicos de Controle Social, pp. 131-147; Kant de
Lima, Direitos Civis e Direitos Humanos, pp. 49-59.
Em relação à utilização do método, sustenta o autor que “a perspectiva que
se adotou na apresentação desses dados foi ditada pelo uso do método comparativo
como em voga na tradição antropológica contemporânea, que enfatiza as diferenças e
as descontinuidades, mais que as semelhanças e as continuidades, entre os sistemas
de justiça criminal estudados. Tal ponto de vista pode ser responsabilizado pela
maior parte das polêmicas geradas por seus resultados, tanto no que diz respeito
a sua validade e abrangência, quanto a sua contraposição a outros usos do método
comparativo correntes na ciência política e no direito que, enfatizando semelhanças,
costumam classificar as diferenças empíricas de acordo com um sistema de referências
pré-estabelecido, o que resulta exatamente naquilo que aqui se quer evitar: classificá-
las como piores ou melhores, independentemente de seu contexto” (Kant de
Lima, Polícia..., p. 170).

86
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

“cada uma das partes desiste da sua verdade para compor uma ter-
ceira versão satisfatória para todos” ou é necessário “decidir qual a
verdade que vão dizer ao público, depois de presenciarem a exposição
dos fatos admitidos em juízo”.31
A característica fundamental deste regime de verdade é
a resolução do caso a partir do seu debate no espaço públi-
co, local em que verdades parciais – apresentadas pelas partes
processuais – serão propostas, abdicadas e finalmente nego-
ciadas com intuito de se estabelecer nova verdade, partilhada
entre os envolvidos e o público. Não interessa, portanto, a
tentativa, sempre falha, de reconstrução da verdade do fato,
verdade substantiva que se encontra congelada e obscurecida
pelo tempo. Ao contrário, a negociação (diálogo) processual
pública pretende construir uma verdade possível, atual e que
possibilite a resolução do conflito em termos razoáveis.
A importância do momento dialogal na resolução do
caso torna o procedimento oral indispensável, pois serão as
falas das partes no espaço público que possibilitarão representar
e significar as inúmeras verdades possíveis. Publicidade, orali-
dade e contraditório pleno delineiam a estrutura acusatória
de procedimento no qual o árbitro judicial atua como garante
da regularidade dos atos e das decisões, sem interferências na
negociação. A fala judicial, neste modelo, é, portanto, restrita
à exclusiva declaração pública do acordo realizado entre as
partes ou partilhado entre os jurados.
Ao interpretar o complexo sistema processual penal bra-
sileiro, Kant de Lima apresenta quatro procedimentos dis-
tintos de produção da verdade: Inquérito Policial, Processo

31 Kant de Lima, Polícia..., pp. 171-172.

87
CriminologiaS: Discursos para a Academia

Judicial, Tribunal do Júri e, mais recentemente, Juizados


Especiais Criminais.
Conforme relatado, o Inquérito constitui-se como um
dos principais instrumentos de investigação preliminar no
processo penal brasileiro. Embora não seja o único mecanis-
mo previsto em Lei,32 a investigação titularizada pela autori-
dade policial adquiriu status principal na lógica da persecu-
ção criminal. O Inquérito Policial, passível de ser instaurado
para quaisquer hipóteses de delito, independente da natureza
do bem jurídico tutelado (crime de maior ou menor potencial
ofensivo) ou do rito judicial (Procedimento Comum, Juizado
Especial Criminal ou Tribunal do Júri), constitui-se como
input do sistema penal brasileiro e, de forma substancial, rege
a mentalidade dos atores processuais.
Inquisitorial por excelência, o Inquérito pode ser instau-
rado de ofício, ou seja, sem a provocação das partes em con-
flito, a partir de iniciativa espontânea do agente público. Nas
palavras de Kant de Lima, “o inquérito policial é um procedimen-
to no qual quem detém a iniciativa é um Estado imaginário, todo
poderoso, onipresente e onisciente, sempre em sua busca incansável
da verdade, representado pela autoridade policial, que, embora sendo
um funcionário do Executivo, tem uma delegação do Judiciário e a
ele está subordinado quando da realização de investigações.”33
Com objetivo de reconstrução do fato passado através
dos elementos de prova a serem traduzidos e inseridos no
Inquérito, a Polícia Judiciária realiza a investigação investida

32 Em tese, qualquer procedimento Administrativo (ou Legislativo, como no


caso das Comissões Parlamentares de Inquérito) na esfera do Poder Público
pode colher elementos probatórios que deem sustentação à ação penal,
independentemente da atuação da Polícia Judiciária. No entanto, apesar de
não ser exclusivo, o Inquérito tornou-se presente em praticamente todos os
procedimentos preliminares de investigação criminal.
33 Kant de Lima, Direitos..., p. 52.

88
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

de poder legítimo para, em sua discricionariedade, imputar


responsabilidade do delito ao investigado. Os indícios, por-
tanto, visto se tratar de fase preliminar preparatória, tornam-
-se suficientes para a atribuição de autoria, sendo descartável
a possibilidade de o investigado refutar a hipótese formula-
da pela Autoridade Policial, pois publicidade, ampla defesa
e contraditório não são princípios que se harmonizam com a
lógica administrativo-inquisitorial.
Embora no plano discursivo a doutrina processual pe-
nal atribua ao procedimento policial papel secundário, o fato
de ser o input do sistema de persecução criminal constitui o
Inquérito como principal mecanismo de produção da verda-
de processual. As hipóteses de imputação nele produzidas
influenciarão todas as decisões posteriores, condicionando a
atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário à perqui-
rição da verdade pré-constituída na fase inquisitorial.
Assim, apesar de as demais fases do processo penal em
termos estritamente técnicos estarem formalmente orientadas
pelos princípios do sistema acusatório conforme estabele-
ce a Constituição, a manutenção da investigação através do
Inquérito presentifica a forma inquisitorial, pulverizando sua
lógica em todas as fases posteriores. O processo misto, “mons-
tro de duas cabeças” (Cordero) idealizado por Napoleão34, man-

34 Com o Código de Napoleão, fonte inspiradora de grande parte da legislação


processual penal de tradição latina, nasce o denominado processo misto.
Cordero sintetiza com precisão o efeito desta sistematização legislativa:
“e assim, pela Lei de 17 de novembro de 1808, nasce o chamado processo misto,
monstro de duas cabeças: nos labirintos escuros da instruction reina Luís XIV;
segue uma cena disputada coram populo. Para alguns um capolavoro (...). Jean
Constantin, Charles Demoulin, Pierre Ayrault, julgam-na menos bem: existe um
abismo, nota o último, entre ‘instrução secreta’ e pública; ‘é fácil a portas fechadas
ajustar ou diminuir, produzir brigas ou impressões’; a audiência pública garante um
trabalho limpo; ‘haverá sempre alguma coisa a ser dita novamente’ sobre os juízos
não produzidos em público, do começo ao fim; ‘esta face composta de mais olhos, mais

89
CriminologiaS: Discursos para a Academia

tém viva estrutura fundada na concentração do poder de cri-


minalização na autoridade do inquisidor.
O cenário do Inquérito descrito por Kant de Lima, em
atual pesquisa empírica realizada no Rio de Janeiro, é eluci-
dativo: “registradas as práticas no trabalho de campo, pesquisas
históricas complementares mostraram que os procedimentos obser-
vados eram muito semelhantes aos da ‘inquirição-devassa’ do direito
português ou da ‘inquisitio’ do direito canônico: procedimentos si-
gilosos, que preliminarmente investigam, sem acusar, visando obter
informações sobre perturbações da ordem denunciadas pública ou
anonimamente (...).”35
Posteriormente, instaurado o processo com o recebimento
da denúncia, o protagonismo transfere-se da autoridade Policial
para a autoridade Judicial. Toda a prova a ser (re)produzida tem
como destinatário o Magistrado, que, ao final da instrução, pro-
ferirá sentença a partir do seu livre convencimento.
A partir da Constituição de 1988, com a definição do
Ministério Público como dominis litis (titular exclusivo da
ação penal pública), foi vedada a possibilidade de o Juiz ins-
taurar de ofício o processo penal, hipótese anteriormente ca-
bível no caso de imputação de prática de contravenção penal
(art. 2636 e art. 53137, CPP) ou de lesão corporal culposa (art.
1º, Lei 4.611/6538). A iniciativa de propositura da ação penal

orelhas, mais cabeças, que aquelas de todos os monstros e gigantes dos poetas, tem mais
força... para penetrar até as consciências e ali ler de que lado está o bom direito, que a
nossa instrução tão secreta’” (Cordero, Guida alla Procedura Penale, pp. 73-74).
35 Kant de Lima, Direitos..., p. 53.
36 “A ação penal, nas contravenções, será iniciada com o auto de prisão em flagrante ou
por meio de portaria expedida pela autoridade judiciária ou policial.”
37 “O processo das contravenções terá forma sumária, iniciando-se pelo auto de prisão
em flagrante ou mediante portaria expedida pela autoridade policial ou pelo juiz, de
ofício ou a requerimento do Ministério Público.”
38 “O processo dos crimes previstos nos artigos 121, § 3º, e 129, § 6º, do Código Penal,
terá o rito sumário estabelecido nos arts. 531 a 538 do Código de Processo Penal.”

90
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

ao Ministério Público, agregada à série de princípios relativos


ao devido processo legal nominados entre os direitos e garan-
tias individuais (presunção de inocência, ampla defesa, pu-
blicidade, duplo grau de jurisdição, vedação da prova ilícita,
motivação das decisões, nemo tenetur se detegere), demarcou a
opção constitucional por estrutura processual acusatória.
No entanto a manutenção dos dispositivos do Código
de Processo Penal que centralizam o processo na figura do
Juiz, mormente no que tange à gestão da prova, mantém forte
traço inquisitório, invertendo a ênfase constitucional de pro-
tagonismo das partes.
Assinala Kant de Lima que “embora se diga que este pro-
cesso não é conduzido pelo juiz, mas pelo Ministério Público, não
caracterizando, assim, um inquérito judicial propriamente dito, a
ênfase no papel do juiz é manifesta, seja na iniciativa a ele atribuída
de buscar a verdade real, crível além de qualquer dúvida, seja na
condução exclusiva do interrogatório do réu, seja na tomada do de-
poimento das testemunhas, quando o juiz sempre pode interpretar
as respostas dos ouvidos e interrogados ao escrivão, ditando-as ou
mandando-as transcrever para registro nos autos.”39
Importante frisar que apesar de a reforma parcial do
Código de 2008 ter ampliado as formas de atuação das partes,
sobretudo através do questionamento direto, sem interferên-
cia judicial, das testemunhas e com a alteração do momento
do interrogatório para o final do procedimento, a prevalência
do papel do juiz é manifesta, inclusive pela manutenção da
gestão judicial da prova.
Ademais, como característica da postura inquisitória, os
procedimentos judiciais privilegiam a escrita e a interpreta-
ção, diferentemente da oralidade e da literalidade que mar-

39 Kant de Lima, Polícia..., p. 176.

91
CriminologiaS: Discursos para a Academia

cam a forma acusatória nos países da common law.40 Conclui


José Eduardo Faria, acerca do papel do Magistrado no proces-
so brasileiro, que “a conversão dos cartórios judiciais em máqui-
nas kafkianas de fazer transcrições e expedir notificações transforma
juízes em gestores de escritório emperrados.”41
A sentença final, portanto, que deveria demarcar a re-
solução do caso para as partes, representa a manifestação de
ato de império, resumindo-se à imposição, através da força
legítima, da verdade revelada pelo Estado-Juiz: “o juiz, não
mais o Estado, é visto como um ser superior, capaz de formular um
julgamento racional, imparcial e neutro, que descubra não só a ‘ver-
dade real’ dos fatos, mas as verdadeiras intenções dos agentes.”42
Sequer no julgamento realizado pelos juízes leigos no
Tribunal do Júri há a possibilidade de se encontrar a resolu-
ção para o caso de forma consensual através do debate, visto
ser expressa a proibição do contato (incomunicabilidade) en-
tre as pessoas que compõem o Conselho de Sentença43. Aliás,
a manifestação do jurado aos demais membros do Conselho
de Sentença sobre o conteúdo ou a intenção do seu voto acar-
reta na nulidade do julgamento.
A mentalidade inquisitorial é tão marcante na cultura
dos operadores da cena jurídica que chega ao ponto de anular

40 “À literalidade e oralidade dos procedimentos judiciais dos EUA, os procedimentos


brasileiros apontam para o privilegiamento da escrita e da interpretação” (Kant de
Lima, Polícia..., p. 177).
41 Faria, O Sistema..., p. 105.
42 Kant de Lima, Polícia..., p. 176.
43 “Art. 466. Antes do sorteio dos membros do Conselho de Sentença, o juiz presidente
esclarecerá sobre os impedimentos, a suspeição e as incompatibilidades constantes
dos arts. 448 e 449 deste Código. § 1o O juiz presidente também advertirá os
jurados de que, uma vez sorteados, não poderão comunicar-se entre si e com outrem,
nem manifestar sua opinião sobre o processo, sob pena de exclusão do Conselho e
multa, na forma do § 2o do art. 436 deste Código. § 2o A incomunicabilidade será
certificada nos autos pelo oficial de justiça.” (Código de Processo Penal).

92
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

determinadas reformas legislativas. Veja-se, p. ex., a frustra-


da tentativa de instituir modelo dialogal de justiça no caso
das infrações de menor potencial ofensivo. A Lei 9.099/95, ao
criar os Juizados Especiais Criminais, não apenas criou nova
modalidade de ilícito na legislação penal brasileira (infrações
de menor potencial ofensivo), como impôs a readequação da
forma dos atos, projetando sistema eminentemente consen-
sual moldado pelos princípios de oralidade, simplicidade, in-
formalidade, economia processual e celeridade. O câmbio ob-
jetivava, fundamentalmente, facilitar a composição civil entre
autor do fato e vítima ou, nos casos de infrações públicas, a
transação com o Ministério Público.
A composição civil ou a transação penal seriam institutos
diversificadores, propostos em audiência preliminar antes do
oferecimento formal da acusação. Em caso de acordo, ou seja,
havendo decisão consensual entre as partes, o processo penal fi-
caria suspenso até o cumprimento das deliberações, extinguindo
a punibilidade do fato após o adimplemento da decisão pactu-
ada. Na audiência preliminar, a Lei 9.099/05 previa o protago-
nismo das partes, ocorrendo a intervenção judicial apenas para
fiscalizar a legalidade do acordo e homologar seus termos.
Para além das críticas acerca da ruptura do novo pro-
cedimento com o sistema de garantias moldado pela Consti-
tuição,44 estudos realizados sobre a Lei 9.099/95 após dez anos

44 Dentre as principais críticas apresentadas, notou-se que o objetivo de ce-


leridade e desburocratização na busca da composição civil e da tran–
sação penal, aacabou por romper com a estrutura formal mínima dos
procedimentos penais, mesmo aqueles previstos aos ritos sumários. A opção
pela simplicidade procedimental gerou total descontrole no que tange
à regularidade dos atos, expondo, em inúmeros casos, os autores dos fatos
a situações constrangedoras, vista a ausência de mecanismos de controle
típicos dos sistemas processuais de garantias. Sobre a incompatibilidade
do sistema de justiça penal brasileiro com os mecanismos da conciliação e
transação, conferir Carvalho, Considerações sobre as Incongruências da Justiça

93
CriminologiaS: Discursos para a Academia

de sua implementação demonstram que a interferência inábil


dos atores processuais (Magistrados, Promotores de Justiça,
Defensores Públicos e Advogados) obstaculizou a criação de
espaço público para mediação de decisões.45 A formação deci-
sionista-inquisitorial dos operadores jurídicos, sobretudo dos
Juízes, revela sua profunda incapacidade de escuta para apreender
as angústias das partes envolvidas na causa, fato que obstacu-
liza qualquer possibilidade de mediação razoável de conflitos.
Ao contrário, em determinados casos específicos a intervenção
jurídica potencializou o conflito, ao invés de encontrar sua reso-
lução, como nos casos de violência doméstica.46
Embora a conclusão seja eminentemente intuitiva, a tra-
dição inquisitória da formação dos atores do processo penal
no Brasil proporciona visualizar forte tendência de que a am-
pliação da oralidade no procedimento de julgamento dos cri-
mes comuns (rito ordinário), instituída pela reforma proces-
sual de 2008, seja obstruída através de contrarreforma velada
para o reforço da burocracia formal e escrita.
Possível concluir, portanto, que o sistema brasileiro de
Justiça criminal opera através de técnicas eminentemente in-

Penal Consensual, pp. 263-284; e, sobretudo, Prado, Elementos para uma Análise
Crítica da Transação Penal, pp. 111-220.
45 “Os JECrim, embora não se definindo oficialmente como tal, pretendem introduzir
uma espécie de civilização da lei penal, buscando, mediante a composição e a
transação penal, saídas alternativas para as penas de prisão. Entretanto, devido
a vários fatores, não sendo de menor importância aqueles ligados à tradição
inquisitorial e de aplicação desigual do direito a segmentos distintos da população
descritos acima, o tratamento desigual dado às partes em função de seu status social,
a ausência de funcionários e de operadores especialmente sensíveis a uma atuação
tão díspar daquela encontrada no sistema de justiça criminal tradicional e uma forte
ambiguidade com relação à aplicação universal das garantias constitucionais, em
especial no que se refere ao emprego da transação penal, estão se evidenciando como
prováveis obstáculos à plena realização de seus objetivos explícitos, de desafogar os
tribunais e de democratizar-lhes o acesso” (Kant de Lima, Direitos..., p. 56).
46 Neste sentido, conferir Carvalho & Campos, Violência Doméstica e Juizados
Especiais Criminais: Análise desde o Feminismo e o Garantismo, pp. 409-422.

94
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

quisitoriais de revelação de verdade, incorporadas na forma-


ção cultural dos atores jurídicos. Centralizada na figura de
autoridade (Juiz ou Delegado), os procedimentos, apesar de
distintos – “o inquérito policial enfatiza procedimentos de inqui-
rição, o processo judicial enfatiza procedimentos de inquérito, e o
tribunal do júri enfatiza procedimentos do sistema de prova legal,
ou de justiça divina”47 –, fomentam o enfrentamento entre as
partes a partir da imposição da sua verdade sobre o caso, situ-
ação que reforça o decisionismo e o protagonismo judicial.

47 Kant de Lima, Polícia..., p. 180.

95
7.
Os Atores da Persecução
Penal e a Cultura Punitivista
Contemporânea

A reforma do sistema de Justiça criminal, das agências


que integram as instituições policiais e carcerárias àquelas
que compõem as judiciais, é tema de constante investiga-
ção nas ciências sociais, sobretudo nas duas últimas déca-
das, quando se consolida o processo formal de redemocra-
tização brasileiro.
No entanto, se o diagnóstico em outras áreas do sistema
de administração da Justiça é o da ocorrência de importantes
alterações estruturais – “de um lado, há os estudos que tematizam
o sistema de justiça no contexto da democratização e das reformas
normativas e institucionais, privilegiando o tratamento dos confli-
tos cíveis e, em geral, diagnosticando rupturas na configuração das
instituições” –, no âmbito criminal percebem-se “(...) dificul-
dades de democratização, a persistência de padrões hierárquicos e
obstáculos de atualização das instituições para o enfrentamento da
criminalidade no período democrático.”1
O diagnóstico sustenta a hipótese da investigação de que
a formação cultural inquisitória dos atores da persecução cri-

1 Sinhoretto, Reforma da Justiça (Estudo de Caso), p. 159.

97
CriminologiaS: Discursos para a Academia

minal representa um dos principais obstáculos à reforma e à


democratização do sistema punitivo nacional.
O cenário de permanência da mentalidade inquisitória e
de resistência das agências de repressão penal ao processo de
democratização apresenta-se como terreno fértil para incor-
poração do punitivismo, nas políticas institucionais e no agir
dos atores que as instrumentalizam. Assim, são estabelecidas
condições ótimas de incorporação da ideia de serem legítimas
as demandas populistas de necessidade de encarceramento
em grande escala.
A impressão inicial, que será objeto de indagação mais
apurada na análise qualitativa das decisões penais, é a de
que os atores processuais, notadamente a Magistratura – com
principal ênfase nos Juízos monocráticos de primeiro grau
(Juízes singulares) –, são reticentes em efetivar as mudanças
determinadas pela Constituição de 1988, fundamentalmente
em razão desta formação inquisitória. Desta forma, a postura
conservadora dos atores jurídicos opera como canal de ex-
pansão da criminalização (e em especial do encarceramento),
quando, conforme os parâmetros constitucionais, seu papel
deveria ser o de criar, incrementar ou potencializar filtros pro-
cessuais de resistência à demanda punitiva.
A mentalidade inquisitória que percebe como legítima a
demanda punitiva cria, nos principais momentos processuais –
v.g. pedido de prisão cautelar, indiciamento do investigado, ofe-
recimento e recebimento da denúncia, sentença e aplicação da
pena, incidentes de execução –, importantes espaços de abertu-
ra/vazão ao punitivismo. Nestes momentos centrais da atuação
dos operadores jurídicos, a opção entre ampliar ou minimizar
o poder punitivo é colocada de forma explícita. Ocorre que a
formação cultural autoritária dos atores transforma espaços de
fechamento em canais de abertura, cujo efeito, sobretudo no mo-

98
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

mento de aplicação judicial da pena, será significativo para o au-


mento quantitativo do encarceramento.
Conforme destaca Rodrigo Azevedo, no campo de atua-
ção processual penal, ou seja, excluindo a fase preliminar de
Inquérito Policial no qual há o protagonismo da Autoridade
Policial, os atores do sistema penal que se destacam como
agentes de realização da ordem jurídica são o Ministério
Público e a Magistratura. Embora seja imprescindível para o
funcionamento da Justiça Criminal a presença do Defensor
(Público ou Privado), a natureza do seu trabalho é eminente-
mente de reação à imputação, com atuação comissiva no sen-
tido de anular ou minimizar os efeitos da criminalização ou
da punição, mormente com o fato de serem muito restritas as
possibilidades de propositura de ação penal privada e de o
trabalho de assistência de acusação ser sempre auxiliar e sub-
sidiário ao do agente público de acusação. Assim, as possibi-
lidades de ampliação ou diminuição dos filtros processuais ao
punitivismo ficam, evidentemente, concentradas nas figuras
do acusador e, fundamentalmente, na do julgador.

7.1. As Funções do Ministério Público na Nova


Ordem Constitucional e o Perfil Político-
Criminal dos seus Integrantes

O Ministério Público, após a Constituição de 1988, ga-


nhou papel de destaque no cenário político nacional. A rees-
truturação das suas funções, com a atribuição de novos pa-
péis, sobretudo de tutela dos direitos coletivos e transindivi-
duais, fortaleceu a instituição, que passou a protagonizar série
de demandas em nome da sociedade civil. A titularidade na
propositura das ações civis públicas, por exemplo, deslocou
parte do debate sobre a implementação de políticas públicas

99
CriminologiaS: Discursos para a Academia

do Executivo para o Judiciário, gerando no Brasil fenômeno


conhecido como judicialização da política2. Em face do princípio
da inércia da jurisdição, é através da iniciativa processual for-
mulada pelo Ministério Público que houve a possibilidade de
ampliação da interferência judicial nos critérios de definição
das políticas públicas.
No entanto, apesar de o Ministério Público ter adquiri-
do o status de “(...) o mais importante agente da defesa dos di-
reitos coletivos pela via judicial, produzindo um alargamento do
acesso à justiça no Brasil”3, é possível destacar, conforme indica
Arantes, o predomínio de postura corporativa conservadora
acerca da política e da sociedade, na qual grande parte dos
seus integrantes percebem a instituição como órgão público
de tutela da sociedade marcadamente hipossuficiente.4

2 Neste sentido constata Santos que “num contexto, caracterizado pela crise
de legitimação dos poderes executivo e legislativo, de profundas transformações
no Estado, na sociedade e na economia, de fortes mutações e do agravamento da
criminalidade grave, em especial da corrupção e da criminalidade económica, cada
vez mais com conexões internacionais e transfronteiriças, de emergência de novos
riscos públicos em domínios vários, do agravamento das desigualdades sociais, de
“velhas” e de “novas” violações dos direitos humanos, as sociedades contemporâneas
viram-se para os tribunais, conferindo-lhes um papel central no funcionamento
e consolidação dos regimes democráticos, seja como órgãos de controlo externo
das instituições do Estado e da própria acção governativa, como garantes das
liberdades cívicas, da protecção e da efectivação dos direitos sociais e humanos, seja,
ainda, como instrumentos de criação de um ambiente de estabilidade e segurança
jurídica que facilite o comércio jurídico e o crescimento económico. A expansão do
poder judicial para áreas que tradicionalmente se situavam na esfera dos poderes
legislativo e executivo é um sinal forte do protagonismo dos tribunais nas sociedades
contemporâneas” (Santos, A Justiça Penal: uma Reforma em Avaliação, p. 527).
Sobre o tema da judicialização da política, conferir Faria, Independência..., pp.
23-51; Faria, O Sistema..., pp. 103-125.
3 Azevedo, Direito e Controle Social, p. 62.
No mesmo sentido o diagnóstico de que “O Ministério Público, cada vez mais,
vislumbra-se como órgão constitucionalmente encarregado de induzir políticas
públicas e catalisar demandas sociais” (Azevedo & Weingartner Neto, Perfil
Socioprofissional e Concepções de Política Criminal do Ministério Público Gaúcho,
p. 02).
4 Apud Azevedo, Justiça..., p. 103.

100
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

No campo político-criminal, a postura conservadora refle-


tirá, naturalmente, na substancialização da demanda punitiva,
através de inúmeras ações pontuais no processo persecutório
como, p. ex, aumento na representação por prisões cautelares;
propositura indiscriminada de ações penais independentemente
da intensidade de lesão ou da qualidade do bem jurídico tutela-
do; adoção de política de recursos automáticos em casos de deci-
sões favoráveis aos imputados no processo de conhecimento ou
aos condenados no de execução entre outras.
Expressiva pesquisa, realizada pela Procuradoria Geral
de Justiça em convênio com a Universidade Federal do Rio
Grande do Sul sobre o perfil político-criminal dos membros
do Ministério Público gaúcho,5 comprova as hipóteses ante-
riormente apresentadas.
Os Procuradores e os Promotores de Justiça indagados
sobre o motivo pelo qual escolheram a carreira do Ministério
Público, em escala de prioridades, 57,7% apontaram a crença
na função social da instituição, sendo seguida, como segunda
opção, além da própria função institucional (20,2%), a atuação
no combate à criminalidade, com 30,8% das indicações, e a defe-
sa dos direitos difusos e coletivos, com 20,2% de adesão.
Confrontados diretamente sobre as opções político-crimi-
nais, 54,4% dos pesquisados identificaram-se com as políticas de
tolerância zero, 26,9% aderiram ao funcionalismo penal. Do total,
8,2% demonstraram-se influenciados pelo garantismo penal.
Em relação ao papel do Ministério Público em matéria cri-
minal, responderam, em escala de prioridades, em primeira op-
ção a tutela dos direitos e garantias individuais (48%), seguida da

5 A pesquisa obteve a participação de 48,5% dos integrantes da instituição,


sendo os questionários elaborados pelos pesquisadores respondidos por
331 integrantes do Ministério Público do Rio Grande do Sul (Azevedo &
Weingartner Neto, Perfil..., pp. 01-34).

101
CriminologiaS: Discursos para a Academia

opção da busca de elementos para garantir a punição dos acu-


sados (44,7%). Como segunda opção, o quadro é invertido, com
46,2% de respostas direcionadas à garantia de elementos para
condenação do réu e 33,5% para defesa dos direitos individuais.
No que tange às funções da pena, apresentadas quatro
hipóteses, optaram pela prevenção do delito como sentido
prioritário da sanção 59,6% dos entrevistados, seguida pelas
opções de ressocialização do delinquente (18,2%), retribuição
ao delito (17,9%) e reparação do dano (4,5%).
Na análise da legislação e do funcionamento do sistema
penal, 83,8% aderiam à afirmação de que a legislação brasi-
leira seria excessivamente branda, com demasiados benefí-
cios aos réus e penas muito curtas, situação que dificultaria
a contenção da criminalidade. Em relação à necessidade de
ampliar a legislação para tutelar bens jurídicos ameaçados pe-
los novos riscos sociais, 82% manifestaram-se favoráveis à ex-
pansão do direito penal; e indagados sobre a possibilidade de
esta expansão gerar a vulgarização do sistema penal, 62,8%
contrariaram a assertiva. Sobre a eficácia da Lei dos Crimes
Hediondos em realizar as metas de prevenção geral e espe-
cial, 80,1% concordaram com a afirmação.
No que diz respeito às questões processuais, a tendência
persecutória é revelada com maior vigor: 66,9% manifesta-
ram-se favoráveis à ampliação do papel do órgão no Inquérito
Policial, inclusive no sentido de coordenar diretamente a ati-
vidade de investigação; 94,2% aderiam à ideia de a institui-
ção realizar investigações paralelas ou complementares à da
Polícia Judiciária; 83,8% foram contrários à possibilidade de
contraditório e de ampla defesa no Inquérito Policial; 71,6%
demonstraram-se em desacordo com a ampliação do princí-
pio da oportunidade da ação penal de forma a criar novas
possibilidades de negociação entre acusação e imputado.

102
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

Sobre temas relativos à execução penal notou-se signi-


ficativa resistência às penas restritivas de direito (34,4% em
desacordo com a eficácia das medidas alternativas à prisão,
mesmo se ampliadas as formas de fiscalização); e divisão em
relação à proposta de uso exclusivo da prisão em casos de
prática de crimes graves (53,5% favoráveis ao uso subsidi-
ário do cárcere) e à relevância da progressão de regime na
individualização da pena (64,5% entendem ser importante o
sistema progressivo). Contrariamente, sobre a necessidade
dos laudos criminológicos como requisito para progressão de
regime, praticamente foi unânime a posição contrária à altera-
ção legislativa de substituição da perícia técnica por atestado
de boa conduta carcerária (97,6%).
Embora a pesquisa relatada esteja restrita ao Estado do
Rio Grande do Sul, apresenta dados significativos sobre o per-
fil político-criminal dos integrantes da instituição Ministério
Público e, de forma geral, está em sintonia com os diagnósti-
cos apresentados por pesquisas realizadas em âmbito nacio-
nal que apontam para “a valorização das práticas exclusivamente
retributivas na área penal e a falta de investimento institucional no
controle e persecução à violência policial.”6

7.2. As Funções da Magistratura na Persecução


Criminal

Inúmeras pesquisas de opinião têm indicado a tendência


político-criminal conservadora da Magistratura nacional, so-
bretudo em relação aos Juízes de primeiro grau de jurisdição. A
adesão integral ou parcial às correntes punitivistas demonstra
que a influência do populismo punitivo não se restringe apenas

6 Azevedo, Direito..., p. 63.

103
CriminologiaS: Discursos para a Academia

à esfera Legislativa, exercendo importante impacto no senso co-


mum prático-teórico dos operadores do direito.
O efeito mais evidente é o da permanência da centralidade
da pena de prisão em regime fechado como resposta ao delito, apesar
da existência de ferramentas infraconstitucionais descarcerizan-
tes e de normas constitucionais dirigidas ao deslocamento do
carcerário para a margem do sistema de penas no Brasil.
Dados de importante pesquisa, realizada entre os anos
de 2005 e 2006 pela Associação dos Magistrados Brasileiros
(AMB), apontam esta forte tendência de a Magistratura agir
na potencialização do punitivismo legislativo e na obstaculi-
zação dos substitutivos como efetivos instrumentos alterna-
tivos à prisão. Na investigação, cerca de 03 mil juízes brasi-
leiros, ou seja, 25,1% do total de Magistrados nacionais, res-
ponderam questões relativas ao direito do trabalho, ao direito
penal, ao direito ambiental, à formação profissional e à polí-
tica eleitoral, sendo reveladores os dados relativos à questão
político-criminal. Rodrigo Collaço, na época Presidente da
Associação, ao manifestar-se sobre as conclusões da investi-
gação, constatou que “a pesquisa revela que o ambiente extremo
de violência que atinge as grandes cidades brasileiras influencia o
comportamento da magistratura. A categoria coloca-se como
protagonista importante do combate à criminalidade e anseia
pela instituição de formas mais poderosas para combatê-la,
seja por meio de alterações legislativas ou da instrumentalização de
procedimentos que possam ser aplicados no combate ao crime. Os
magistrados querem o endurecimento da lei penal.”7
Indagados sobre os aspectos que influenciam a impu-
nidade no país, foram considerados altamente importantes,
dentre outros, o excesso de recursos (86,1%), a falta de coo-

7 Collaço, Desenvolvimento: Uma Questão de Justiça, p. 06 (grifou-se).

104
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

peração do Judiciário com as instâncias administrativas de


persecução (Polícias e Ministério Público) (70%), a existência
de várias instâncias de julgamento (68,1%), a amplitude dos
indultos (35,6%), os prazos prescricionais (44,1%), a inexistên-
cia de vagas no sistema carcerário (71,9%).8
Ao serem respondidos temas específicos de política cri-
minal, os Magistrados demonstraram-se totalmente favoráveis
ou favoráveis à diminuição da idade penal (61%), ao aumen-
to do tempo de internação de menores em conflito com a Lei
(75,3%), ao aumento das hipóteses de internação de menores
(73,8%), ao aumento do tempo de cumprimento de pena para
progressão de regime em crimes graves (89,3%), ao aumento
do tempo de cumprimento de pena para livramento condicio-
nal (81,5%), à ampliação do sigilo das investigações em crimes
graves (84,1%), ao aumento da pena mínima para crimes de
tráfico de drogas (76,8%), à proibição da liberdade provisória,
com ou sem fiança, para crimes de tráfico de drogas (74,5%),
ao aumento de pena para casos de corrupção e improbidade
(95,6%), ao aumento do limite máximo de cumprimento de
pena privativa de liberdade (69,1%), à privatização do siste-
ma carcerário (49,4%), à ampliação das hipóteses de crimes
hediondos (50,9%). Em contraparte, e em certo grau de forma
contraditória, manifestaram-se totalmente favoráveis ou favo-
ráveis9 à ampliação da aplicação das penas alternativas (64,9%)
e ao caráter ressocializador da pena criminal (86,4%).
A postura dos juízes brasileiros revelou similar ambiva-
lência que acomete o setor político-legislativo, sendo pendula-

8 A metodologia da pesquisa apresentou, para cada indagação, rol de


possibilidades nas quais os pesquisados respondiam ser o critério (a)
altamente importante, (b) medianamente importante, (c) sem importância
ou (d) não possuir o entrevistado opinião sobre o tema.
9 Neste caso, foram apresentados problemas político-criminais aos quais os
pesquisados respondiam ser (a) totalmente favoráveis, (b) favoráveis, (c)

105
CriminologiaS: Discursos para a Academia

res as posições entre o incremento do punitivismo, a opção des-


carcerizadora e a função ressocializadora da pena. No entanto
resta clara a atribuição de papel ativo de combate ao crime, em
espécie de transmutação da função judicial em função policial.
Mesmo que os pesquisados não atuem na integralidade
da área penal10, a pesquisa expõe a postura da Magistratura
brasileira sobre os temas, revelando o senso comum teórico e
ideológico da categoria em matéria político-criminal. Assim,
os dados são relevantes visto possibilitarem diagnosticar
o conjunto de regras e metarregras interpretativas que será
orientador das decisões judiciais nos casos penais concretos.
A pesquisa quantitativa da Associação dos Magistrados é
validada por duas importantes investigações qualitativas reali-
zadas pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).
O primeiro estudo, desenvolvido em parceria com o
Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), analisou
processos relativos aos crimes patrimoniais violentos (rou-
bos) no Estado de São Paulo. O estudo apresentou como obje-
to de pesquisa os casos em que houve sentença condenatória
com interposição de recurso de apelação ao (extinto) Tribunal
de Alçada Criminal (TACRIM-SP). Foram analisados 6.530
processos, com data de julgamento entre 01.01.99 e 31.12.00.
Os crimes patrimoniais violentos, sobretudo nos grandes
centros urbanos, representam parte significativa da popula-
ção carcerária nacional. Conforme exposto, segundo dados
do Departamento Penitenciário Nacional, a atual população
masculina nacional encarcerada em decorrência da imputação

indiferente, (d) contrário, (e) totalmente contrário ou (f) sem opinião sobre a
proposta.
10 A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) reúne todos os integrantes
do Poder Judiciário nacional, independente da esfera de atuação. Assim, as
questões não revelam a posição específica dos juízes criminais, mas de parte
representativa da classe, visto que praticamente a integralidade é associada.

106
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

dos crimes de roubo (simples e qualificado) é de 114.907 pes-


soas, correspondendo a 24,46% dos presos. Entre as mulheres
a proporção é menor, mas de igual forma relevante, signifi-
cando 10,93% do universo feminino encarcerado. Outrossim,
a pesquisa é relevante pois a população carcerária do Estado
de São Paulo é a maior do país, com aproximadamente 40%
do total de presos.
O problema que motivou a investigação foi a constatação
de que nas sentenças condenatórias em que a pena foi fixada
no mínimo legal (77,19%), o regime fechado imposto foi, em
expressiva maioria, o fechado – em primeiro grau de jurisdi-
ção: 80,75% dos casos para primários e 97,6% para reinciden-
tes; em segundo grau 69,85% para primários e 98,65% para
reincidentes. Ocorre que a Lei penal define que para as penas
aplicadas entre 04 e 08 anos o regime inicial de cumprimento
será o semiaberto, facultando o regime fechado apenas nos
casos de reincidência.
A distorção percebida na pesquisa, evidentemente no
caso de réus primários, foi a de que ao fixar a pena no míni-
mo legal, seguindo consolidada doutrina e jurisprudência, to-
das as circunstâncias judiciais presentes no art. 59 do Código
Penal (culpabilidade, antecedentes, motivos, personalidade,
conduta social, consequências e circunstâncias do crime, com-
portamento da vítima) eram consideradas favoráveis. No en-
tanto, ao ser definido o regime de cumprimento, a argumen-
tação judicial se alterava, sendo cominada qualidade de pena
mais grave do que a prevista no Código, isto é, era fixado
regime fechado ao invés do regime semiaberto. Importante
referir que, em se tratando de reincidentes, o Código faculta
a aplicação do regime inicial fechado, fato relevante em face

107
CriminologiaS: Discursos para a Academia

do escasso número de decisões favoráveis no que tange ao


regime para os réus com antecedentes criminais.
As justificativas judiciais para determinação de regime
fechado de encarceramento, segundo indicam os investigado-
res, variam entre valorações negativas da gravidade do delito
(60,83%), periculosidade do agente (56,86%), defesa da socieda-
de e prevenção do crime (42%) – motivações não excludentes.
A conclusão da pesquisa é a de que para além das barrei-
ras legais, das orientações doutrinárias e da consolidação da
jurisprudência, os integrantes do Poder Judiciário do Estado
de São Paulo, a partir de dupla valoração (bis in idem) de cir-
cunstâncias idênticas (a gravidade do delito nos crimes de
roubo é elementar do tipo) e de adoção de metarregras inter-
pretativas (periculosidade, defesa social e prevenção do crime
– circunstâncias não previstas na sistemática da aplicação da
pena no Código Penal), fixavam regime de pena mais grave
do que o cominado legislativamente, violando significativa-
mente o Código Penal e a Constituição.
Na sequência de estudos sobre os operadores do sis-
tema de justiça criminal paulistano, em 2007 o Núcleo de
Pesquisa do IBCCrim publicou Visões de Política Criminal entre
Operadores da Justiça Criminal de São Paulo.
A partir do mapeamento das inúmeras vertentes con-
temporâneas de política criminal, foi realizada série de entre-
vistas semiestruturadas com Defensores Públicos e Juízes11 do
Complexo Jurídico Mário Guimarães, onde está localizado o

11 Segundo relatado na pesquisa, houve recusa em blocos dos promotores


de justiça atuantes no local em razão de alegada parcialidade do IBCCrim.
Segundo o argumento apresentado pelos membros da instituição, a
parcialidade do Instituto decorreria de sua associação com os movimentos
de direitos humanos e pelo fato de ser integrado por juristas contrários
à expansão do direito penal e por defensores com práticas garantistas
(IBCCrim, Visões..., p. 04).

108
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

Fórum da capital paulista que centraliza as 34 Varas Criminais


de primeiro grau de jurisdição. Na época atuavam no local
111 Juízes, cerca de 80 Promotores de Justiça, 27 Defensores
Públicos e 67 Procuradores do Estado.
As posições político-criminais foram classificadas em
quatro grupos ou correntes: a primeira incluiu as posições
abolicionistas, minimalistas e garantistas, baseadas na residu-
alidade da legislação penal; a segunda indicou o garantismo e
o minimalismo no sentido de reforço das agências de controle
penal para o aumento da eficácia do sistema; a terceira, além
de enfatizar a necessidade de reforçar as instituições, inseriu
propostas de expansão do direito penal para tutela de novos
bens jurídicos e o aumento de penas, mantendo, contudo, o
sistema de garantias; a quarta exporia tendências próximas
aos movimentos de lei e ordem, defesa social e gestão penal
da sociedade, com preponderância do interesse estatal e dos
valores sociais em detrimento da proteção individual.12
Segundo os investigadores, apesar de as posições extre-
mas serem facilmente identificadas, o principal resultado da
pesquisa foi “(...) a confirmação de que há, entre os operadores da
justiça criminal, uma zona de consenso, um centro político-crimi-
nal, caracterizado pelo reconhecimento comum da necessidade de
reforço das capacidades institucionais e da importância do sistema
de garantias individuais, diferindo, contudo, quanto à eficácia da
expansão da tutela penal e ao sentido (repressivo, contra-repressivo
ou preventivo) do aumento do reforço institucional.”13
Contudo a tendência geral de os atores judiciais apre-
sentarem nas respostas de identificação direta opção por
correntes político-criminais intermediárias acabou sen-

12 IBCCrim, Visões..., pp. 15-16.


13 IBCCrim, Visões..., p. 16.

109
CriminologiaS: Discursos para a Academia

do diluída nas questões específicas, inclusive entre os


Defensores Públicos que, em geral, adotariam naturalmen-
te a postura garantista em oposição às posições de reforço
e de ampliação do papel do Estado advogadas pelos mem-
bros do Ministério Público.
Conforme o levantamento de dados, os Juízes entrevis-
tados demonstraram tendência “a ser mais ‘rigorosos’ na defesa
de estratégias de política criminal baseadas na penalização/crimina-
lização de condutas, quando concordam, no todo ou em parte, que a
legislação penal é excessivamente branda, dificultando a contenção
da criminalidade (61,9% dos respondentes), e que o direito penal
deve expandir seu campo de abrangência para novos bens jurídicos
ameaçados, cuidando de novos riscos sociais (85,4% dos responden-
tes), referendando assim posições de governo penal da sociedade,
seja pela sua matriz punitivista mais clássica (defesa social), seja em
suas atualizações pelas doutrinas penais do risco.”14
Em conclusão, interessante notar que o conteúdo de am-
bas as pesquisas reforçou o papel dos Tribunais Superiores na
defesa da Constituição e na inibição do punitivismo.
Possível perceber, nos últimos anos, sobretudo pelos es-
paços de destaque na imprensa nacional, a importância do
Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça
na limitação da tendência punitivista da jurisdição penal de
primeiro grau. A diferença entre as formas de atuação pare-
ce ser influenciada pela formação política das Cortes, com
abertura às demais carreiras jurídicas através da indicação de
membros do Ministério Público e da Ordem dos Advogados
para composição dos colegiados de julgamento. Outrossim, o

14 IBCCrim, Visões..., p. 25.

110
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

distanciamento do conflito tende a ser outro importante ele-


mento de análise.
No entanto cabe alertar que tais hipóteses apenas apon-
tam tendências ou situações episódicas, fato que não compro-
va serem efetivamente as Cortes Superiores menos punitivis-
tas que a Magistratura de primeiro grau.
A investigação empírica e a análise dos discursos judi-
ciais dos Tribunais Supremo e Superior sobre os critérios de
fundamentação da aplicação da pena, objeto de análise na
segunda parte deste estudo, serão importantes indicadores e
instrumentos privilegiados para realizar este diagnóstico.

111
PARTE II
Aplicação da Pena
e Punitivismo no Brasil
(Experimento e
Estudo de Casos)
8.
Aplicação Judicial da Pena
no Brasil: Tema, Problema e
Procedimento Metodológico
da Investigação

A tradição inquisitorial que modelou a cultura dos ope-


radores do direito no Brasil se consolida, na atualidade, a
partir da significante aproximação com os discursos político-
-criminais punitivistas.
Dentre os inúmeros atores que compõem a cena judicial
brasileira, a Magistratura criminal adquire importante papel
em razão da possibilidade de definição, no caso concreto, dos
rumos da política criminal. Conforme destacado anterior-
mente, qualquer proposta político-criminal, de natureza ga-
rantista ou inquisitiva, não subsiste sem a concretização dos
seus postulados pelos atores judiciais.
A atuação da Magistratura, na resistência ou na adesão
aos discursos punitivistas, será, portanto, fundamental para
diagnosticar o estado da arte político-criminal. Outrossim,
dentre os inúmeros momentos de intervenção judicial que
possibilitam estabelecer filtros ao punitivismo, a aplicação da
pena, como etapa final da sentença penal condenatória, tem
destacado papel.
O destaque, porém, não diz respeito apenas ao fato de a
sentença fixar a quantidade de pena ao caso penal judicializa-

115
CriminologiaS: Discursos para a Academia

do, situação que permitiria quantificar o volume de condena-


ções e estabelecer o tempo médio de condenação para as prin-
cipais condutas puníveis no Brasil. Além disso, a argumenta-
ção judicial na aplicação da pena revela-se como importante
instrumento de análise em razão das seguintes circunstâncias:

(a) a legislação brasileira definir, como pena de refe-


rência, a pena de prisão, ou seja, mesmo nos casos
em que há possibilidade de aplicar pena diversa
da privativa de liberdade o ordenamento jurídico
impõe ao Magistrado o dever de analisar o caso
concreto, aplicar a pena de prisão e, posteriormen-
te, substituir pela pena alternativa;
(b) o sistema de penas no Brasil adotar critérios de
quantificação variável entre mínimos e máximos,
cabendo ao juiz, no caso concreto, individualizar a
quantidade de pena a partir da análise fundamen-
tada das circunstâncias impostas em lei;
(c) as circunstâncias de análise judicial para dosime-
tria da pena serem caracterizadas, em sua maioria,
pela tipicidade aberta, ampliando o poder discri-
cionário do Magistrado; e
(d) a qualidade da pena, isto é, a forma de execução
da sanção, ser determinada pelo juiz, na sentença
penal, após o cálculo da quantidade de pena.

Desta forma, um dos principais mecanismos de avaliação


da adesão ou da resistência dos atores judiciais ao punitivis-
mo encontra-se na interpretação dos critérios judiciais da de-
finição da pena na sentença penal condenatória. Os critérios e
os argumentos utilizados para justificar a quantidade e a qua-
lidade das penas sinalizam como estão sendo preenchidos os

116
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

espaços legais e quais as formas de controle democrático da


decisão judicial no campo do direito e do processo penal.
Para realizar a análise proposta, a primeira etapa da
pesquisa foi a de sistematização de material doutrinário e ju-
risprudencial relativo à aplicação das penas no Brasil, desde
os seguintes campos de análise: Direito Penal: análise doutri-
nária e jurisprudencial dos critérios de aplicação da pena; e
Direito Processual Penal: análise doutrinária e jurispruden-
cial dos limites e controles processuais à aplicação da pena
(requisitos e fundamentos da sentença penal).
A sistematização do material foi realizada de modo a
permitir o diagnóstico sobre (a) os critérios de aplicação da pena
no Brasil, mormente da pena privativa de liberdade, (b) as for-
mas de controle da atividade judicial e, finalmente, (c) as alterna-
tivas possíveis presentes na legislação brasileira.
A partir da perspectiva fixada nos campos de análise refe-
ridos, o procedimento metodológico foi delimitado do seguin-
te modo: (a) levantamento e sistematização de doutrina acerca
da aplicação das penas; e (b) levantamento e sistematização de
jurisprudência relativa ao tema junto aos Tribunais Superiores
(Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça).1
Definido o caminho metodológico, a pesquisa se desdo-
brou nas seguintes etapas:

(a) Fase 01: sistematização dos referenciais bibliográ-


ficos atualizados na doutrina nacional (2000-2008).

1 A criação do banco de dados e a posterior análise qualitativa dos julgados


foram realizadas conjuntamente com o desenvolvimento de pesquisa fi-
nanciada pela Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça
(SAL/MJ), através do Projeto Pensando o Direito.
Outras versões parciais do trabalho apresentado nesta segunda parte foram
publicadas em Carvalho et al., Notas sobre os Critérios de Aplicação da Pena
no Brasil: Síntese da Análise Doutrinária e Jurisprudencial da Conveniência da

117
CriminologiaS: Discursos para a Academia

O levantamento objetivou analisar o estado da arte


da matéria no Brasil e verificar se houve alterações
significativas da doutrina a respeito da aplicação
judicial da pena.
(b) Fase 02: sistematização da jurisprudência nacional
atualizada (janeiro-julho de 2008) nos Tribunais
Superiores. O levantamento objetivou analisar os
referenciais judiciais sobre a matéria e verificar se
houve alterações significativas da jurisprudência a
respeito da aplicação da pena.

8.1. Referenciais Bibliográficos (Fase 01)

O levantamento da bibliografia nacional foi restrito ao


período 2000 a 2008 e originalmente limitado à palavra-chave
‘aplicação da pena’. Objetivou analisar se houve significativa
mudança da doutrina na concepção tradicional sobre a apli-
cação judicial da pena.
No desenvolvimento da pesquisa houve necessidade de
harmonizar os referenciais do direito penal sobre a definição
da pena com as formas processuais de limitação e controle da
atividade judicial. Assim, seguindo o projetado para a análise
jurisprudencial, ao tema ‘aplicação da pena’ foram agregadas
as palavras-chaves ‘fundamentação da pena’, ‘motivação da
pena’, ‘dosimetria da pena’, ‘cálculo da pena’ e ‘sentença cri-
minal’, vinculando a sanção à forma de motivação exigida aos
juízes no momento da sentença criminal.

Determinação da Pena Mínima, pp. 363-392 e Carvalho et al, Dos Critérios de


Aplicação da Pena no Brasil: Análise Doutrinária e Jurisprudencial da Conveniência
da Determinação da Pena Mínima, pp. 01-118.

118
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

Foram levantados trabalhos gerais, específicos e que, de


alguma forma, tangenciam o tema. O levantamento foi con-
cluído e está exposto na bibliografia final do trabalho.

8.2. Levantamento Jurisprudencial (Fase 02)

A sistematização da jurisprudência nacional, delimitada


entre os meses de janeiro a julho de 2008, foi alterada ao longo
do levantamento.
No primeiro momento foram estabelecidos critérios de
pesquisa no âmbito do direito penal e do direito processual
penal a partir de palavras-chave que seriam os indicadores
para eleição dos julgados. Foram escolhidas inicialmente, na
área penal e processual penal, duas palavras-chave: ‘aplica-
ção da pena’ e ‘fundamentação da pena’.
Posteriormente, sentiu-se necessidade de ampliar os cri-
térios de busca englobando: ‘dosimetria da pena’, cálculo da
pena’, ‘pena-base’, ‘circunstâncias judiciais’, ‘pena mínima’,
‘pena abaixo/aquém do mínimo’, ‘súmula 231’, ‘motivação da
pena’, ‘proporcionalidade da pena’, ‘nulidade da aplicação
da pena’, ‘atenuantes’, ‘agravantes’, ‘periculosidade’, ‘culpa-
bilidade’, ‘antecedentes’, ‘conduta social’, ‘personalidade do
agente’, ‘motivos do crime’, ‘circunstâncias do crime’, ‘com-
portamento da vítima’, ‘consequências do crime’, ‘mínimo le-
gal’ e ‘pena acima do mínimo’. Com o aumento dos critérios
de busca foram totalizadas 25 palavras-chaves para a realiza-
ção da pesquisa jurisprudencial.
Neste segundo momento houve limitação da pesquisa
anteriormente prevista. A ideia do projeto seria a de levanta-
mento e sistematização de jurisprudência sobre o tema junto
ao Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e
os principais Tribunais de Justiça dos Estados e Tribunais Re-

119
CriminologiaS: Discursos para a Academia

gionais Federais. Ocorre que mesmo limitando-a no primeiro


semestre de 2008, com a ampliação dos critérios de seleção
tornou-se inexequível pesquisa fora do âmbito do STF e do
STJ. Assim, em face de o STJ ser o sistematizador da jurispru-
dência nacional e o STF o regulador/controlador da constitu-
cionalidade, optou-se por restringir a pesquisa nestas cortes,
mais especificamente nas 1ª e 2ª Turmas do STF e 5ª e 6ª Tur-
mas do STJ, responsáveis por julgar as matérias criminais.
Cumpre salientar que as buscas fixadas inicialmente em
02 (duas) e posteriormente em 25 (vinte e cinco) palavras-chave
foram realizadas nos sítios virtuais dos Tribunais com o uso de
aspas, vislumbrando circunscrever os resultados à expressão.
As buscas ocorreram nos espaços virtuais dos Tribunais
e os documentos obtidos (inteiro teor da decisão) foram sal-
vos em banco de dados em arquivos no formato “pdf” ou
“doc”, respeitando a seguinte regra de nomenclatura: sigla
do recurso/número do processo/estado da federação (p. ex.:
RESP 896874-RS) – e armazenados em pastas correspondentes
à respectiva palavra-chave (p. ex.: ‘dosimetria da pena’).
Por fim foi criada a pasta ‘resultados’, em que foram de-
positados todos os documentos, eliminando-se aqueles que se
repetiram ao longo da coleta dos dados.
Importante destacar que todo processo de levantamento de
dados foi realizado com base no problema de pesquisa, delimi-
tado do seguinte modo: quais as circunstâncias de aplicação da pena
que mais influenciam o juiz e quais os critérios que impedem sua aplica-
ção no mínimo ou abaixo do mínimo fixado pelo Legislador.
Realizado o levantamento foi iniciada a análise da juris-
prudência nacional. Assim, o estudo do acervo (banco de da-
dos) passou por duas etapas distintas: (a) análise quantitativa
do material a partir das palavras-chaves preestabelecidas; e,
posteriormente, (b) análise qualitativa dos julgados.

120
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

A primeira etapa correspondeu ao levantamento dos


dados brutos a partir dos elementos de busca definidos pelo
problema de pesquisa. A partir de sistematização do material
integral foi possível estabelecer critérios de seleção e a filtra-
gem dos dados para análise qualitativa.
O levantamento inicial capturou centenas de julgados,
grande parte deles repetidos pela incidência de mais de uma
palavra-chave por resultado ou porque o material colhido se
encontrava vinculado a outras áreas do direito – direito ad-
ministrativo (p. ex., palavra-chave agravante, vinculada ao
polo ativo recursal), direito trabalhista (p. ex. palavra-chave
periculosidade, vinculada ao ambiente de trabalho), direito
juvenil (p. ex. inúmeras referências similares de atos infra-
cionais) entre outras – distintas do objeto central ‘critérios de
aplicação da pena’. Foram somados, nas primeiras buscas,
181 resultados no Supremo Tribunal Federal (STF) e 1.365 no
Superior Tribunal de Justiça (STJ) – v.g. análise apenas da área
do direito penal, a partir de todas as palavras-chave, excetua-
dos os demais campos, com acórdãos repetidos.
O primeiro passo após a coleta deste material bruto foi se-
lecionar e filtrar os julgados. A filtragem ocorreu, portanto, com
a limitação da matéria no direito penal e processual penal, ex-
cluindo, inclusive, matéria relativa à execução penal, visto ser
etapa posterior à aplicação da pena – p. ex. palavras-chaves co-
muns à aplicação, mas vinculadas aos incidentes de execução.
Neste segundo filtro foram selecionados 108 julgados
do Supremo Tribunal Federal e 621 do Superior Tribunal de
Justiça – v.g. análise da área do direito penal, excetuando
acórdãos repetidos. Filtrados os acórdãos relacionados espe-
cificamente com o objeto de investigação (aplicação judicial
da pena e critérios de cominação), foi aplicado critério de cor-
te para análise quantitativa-qualitativa.

121
CriminologiaS: Discursos para a Academia

8.3. Critérios de Corte do Número Total de Acórdãos:


Metodologia, Objetivos e Dados de Análise

As jurisprudências selecionadas no Supremo Tribunal


Federal e no Superior Tribunal de Justiça necessitaram ser fil-
tradas por uma série de circunstâncias.
Ademais dos critérios de corte expostos, nas duas primeiras
seleções foram incorporados julgados por palavras-chave. O re-
sultado foi a inserção de recursos ou de ações que estavam fora do
parâmetro estabelecido na pesquisa, como Agravos Regimentais
ou Embargos – p. ex., no Supremo Tribunal Federal foram exclu-
ídos 13 julgados com incidência na palavra-chave ‘agravantes’,
que, por se tratarem de Agravos Regimentais, ingressaram na
seleção inicial em decorrência do termo ‘agravante(s)’ que quali-
ficava os proponentes do recurso.
Houve incidência de grande porte, mas que foi excluída
para a análise qualitativa, de Habeas Corpus ou Agravos interpos-
tos em questões como análise de critérios de prisões cautelares
(prisão preventiva, temporária ou provisória), aplicação do prin-
cípio da insignificância, nulidade de sentença e questões relati-
vas à execução da pena (p. ex., progressão de regime, livramento
condicional, regressão, detração e remição). No âmbito do STF,
p. ex., foram excluídos 33 julgados com incidência nos termos
‘aplicação da pena’, ‘culpabilidade’, ‘circunstâncias judiciais’ e
‘antecedentes’ por incurso nas questões acima expostas, sobretu-
do prisões preventivas, havendo, ainda, exclusão de um Recurso
Extraordinário que abordava tema relativo ao Estatuto da Criança
e do Adolescente. Ainda foi excluído um processo de extradição,
no qual constou o termo ‘culpabilidade do extraditando’.
Na busca pelo critério ‘cálculo da pena’, dois Habeas
Corpus selecionados no STF foram eliminados por tratarem de
vícios processuais e nulidade da sentença condenatória – falta

122
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

de motivação no juízo e não na aplicação da pena –, assuntos


não tratados na pesquisa.
Por fim, ainda no âmbito do Supremo Tribunal, todos os ar-
quivos capturados com a palavra-chave ‘periculosidade’ foram
excluídos: 02 por serem Agravos Regimentais sobre questões tra-
balhistas e 01 Agravo Regimental no Recurso Extraordinário sobre
o mesmo assunto. Ademais, o termo envolveu questões como pro-
gressão de regime e, sobretudo, Habeas Corpus em temas cautelares
(prisão preventiva), de tipicidade (princípio da insignificância) e de
nulidades (condenação indevidamente fundamentada).
Os mesmos filtros expostos acima foram aplicados no
Superior Tribunal de Justiça.
Outrossim, de forma a densificar a pesquisa na análise de
discurso para procurar compreender os critérios judiciais de
valoração das circunstâncias de aumento e de diminuição de
pena, foi estabelecido critério de corte dos dados selecionados
como ideais (julgados de referência). Isto porque o objetivo da
análise qualitativa é apontar os elementos mais significativos
das decisões de cada instância de julgamento, sobretudo STF,
5ª Turma do STJ e 6ª Turma do STJ.
O direcionamento da pesquisa buscou estabelecer critério
acerca das decisões mais rotineiras, dados que permitam indicar
a tendência de cada esfera de julgamento acerca da aplicação da
sanção penal e os efeitos (positivos ou negativos) sobre a pena.
Ademais, procura indicar quais decisões que fogem do padrão
ou, inclusive, se eventualmente não há padrão único, mas altera-
ção nos julgados a partir de variáveis determinadas ou indeter-
minadas (p. ex., tipo de crime, Relator, Corte etc.).
Neste sentido, foi elaborado instrumento no qual se pro-
cedeu ao preenchimento de formulário para cada decisão,
apontando as circunstâncias que mais interessavam do ponto
de vista dos objetivos da pesquisa.

123
CriminologiaS: Discursos para a Academia

A partir deste mapa quantitativo restou viável a análise quali-


tativa, selecionando, a partir da tabulação dos dados do formulário,
alguns acórdãos representativos de cada tipo de decisão. Somente
com o preenchimento do formulário foi possível ter ideia do con-
junto geral do material coletado no banco de dados.
Procurou-se, igualmente, estabelecer análises distintas
conforme as instâncias de julgamento, o que tornou a diferen-
ça da quantidade das decisões até certo ponto irrelevante e de
pouca influência no resultado geral.
Optou-se, pois, em face da impossibilidade de aplicação
do instrumento em todo material coletado, por trabalhar com
amostra proporcional de cada esfera de julgamento, elimi-
nando 50% do material a partir da eleição dos acórdãos por
data de julgamento, realizando avaliação cronológica de um
acórdão analisado para cada excluído.
O universo final de análise pode ser assim representado:

Tabela 07
Mapa da Pesquisa Qualitativa dos Julgados

Supremo Tribunal Federal – STF


Total de decisões selecionadas 181
Resultado discriminado (Excluídos os acórdãos repetidos) 108
Acórdãos que tratam especificamente da aplicação
da pena (Seleção e filtragem) 48
Acórdãos Analisados 27
Superior Tribunal de Justiça – STJ
Total de decisões selecionadas 1.365
Resultado discriminado (Excluídos os acórdãos repetidos) 621
Acórdãos que tratam especificamente da aplicação
da pena (Seleção e filtragem) 247
Acórdãos Analisados 148

124
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

Importante, antes de ingressar na análise qualitativa,


apontar alguns dados quantitativos preliminares, notada-
mente os tipos de crimes julgados e a média das penas aplica-
das, a partir dos acórdãos selecionados – 27 acórdãos no STF
e 148 no STJ, no total de 175 julgados analisados.
Em termos gerais, a quantificação das penas definitivas
em relação à pena mínima ficou representada da seguinte
forma: (a) pena aplicada aquém do mínimo (8,47%); (b) pena
aplicada no mínimo (10,16%); (c) pena aplicada acima do mí-
nimo (68,36%); (d) sem referência (12,99%).

Gráfico 10
Classificação dos Julgados conforme Cominação da Pena

140 121
120
100
80
60
40 23
15 18
20
0
Abaixo do Mínimo Mínimo Acima do Mínimo Não Menciona

Relevante salientar que a diferença entre o número de


acórdãos selecionados para pesquisa (175) e a quantidade
de penas expostas no gráfico acima (177) ocorreu em face de
existência, em dois julgados, de concurso de pessoas (art. 29,
Código Penal), havendo, nestes dois acórdãos dois processos
distintos de aplicaçção da pena.
De igual forma esta representação exposta no Gráfico
10 é indicativa da pena final (definitiva) aplicada, isto por-
que nas Cortes Superiores, diferentemente do que ocorre em

125
CriminologiaS: Discursos para a Academia

Tribunais isolados, sobretudo o Tribunal de Justiça do Rio


Grande do Sul (TJRS), não se concebe aplicação de pena-base
ou provisória aquém do mínimo. A existência de sanção do-
sada abaixo do mínimo decorre da incidência, na terceira fase,
de circunstância especial de diminuição de pena ou minoran-
te, conforme será demonstrado ao longo da pesquisa.
Quanto aos tipos de crimes analisados, é possível expor
da seguinte forma o universo de análise, divididos por Corte:

Tabela 08
Espécies de Crime Julgados pelo STF

Concussão (Art. 316 do Código Penal) 1


Crime contra a Ordem Tributária
1
(Art. 3, II, da Lei 8.137/90)
Extorsão (Art. 188, § 1, do Código Penal) 1
Furto Qualificado (Art. 155, § 4, IV, do Código Penal) 5
Furto Simples (Art. 155 do Código Penal) 1
Homicídio Qualificado (Art. 205, § 1 e 2, IV do Código
1
Penal Militar)
Homicídio Qualificado Tentado (Art. 121, § 2, c/c o art.14,
1
II do Código Penal)
Homicídio simples (Art. 121 do Código Penal) 1
Latrocínio (Art. 155, § 3, do Código Penal) 1
Peculato (Art. 312 do Código Penal) 1
Porte Ilegal de Arma de Uso Permitido (Art. 14 da
2
Lei 10.826/03)
Porte Ilegal de Arma de Uso Restrito/Proibido cometido
1
por Servidor Público (Art. 10, § 2 e 4 da Lei 9.437/97)
Quadrilha ou Bando (Art. 288, do Código Penal) 2
Roubo Qualificado (Art. 157, § 2, do Código Penal) 6
Roubo Simples (Art. 157 do Código Penal) 2
Tráfico de Drogas – Associação (Art. 14 da Lei 6.368/76) 2
Tráfico de Drogas (Art. 12 da Lei 6.368/76) 2
Total 31

126
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

Tabela 09
Espécies de Crime Julgados pelo STJ

Adulteração de Sinal Identificador de Veículo Automotor


2
(Art. 311 do Código Penal)
Apropriação Indébita (Art. 168 do Código Penal) 3
Apropriação Indébita Previdenciária (art. 168A do Código Penal) 4
Atentado Violento ao Pudor (Art. 214 do Código Penal) 3
Comunicação Falsa de Crime (Art. 340 do Código Penal) 1
Concussão (Art. 316 do Código Penal) 2
Contrabando ou Descaminho (Art. 334 do Código Penal) 1
Corrupção Ativa (Art. 333 do Código Penal) 1
Corrupção de Menores (Art. 1º da Lei 2252/54) 1
Crime Contra a Administração Pública (Art. 50 da Lei 6766/79) 1
Crime Contra a Ordem Econômica (Art. 4°, da Lei 8137/90) 1
Crime Contra a Ordem Tributária (Art. 1° e 2° da Lei 8137.90) 1
Crimes contra o Meio Ambiente (Art. 46, § único da Lei 9605/98) 1
Desacato (Art. 331 do Código Penal) 1
Dispensar Licitações (Art. 89 da Lei 8666/93) 1
Estelionato (Art. 171 do Código Penal) 6
Estelionato Tentado (Art. 171, caput, c/c o art. 14, II do Código
2
Penal)
Estupro (Art. 213 do Código Penal) 3
Evasão de Divisas (Art. 22 da Lei 7492/90) 2
Falsidade Ideológica (Art. 299 do Código Penal) 3
Falsificação de Documento Público (Art. 297 do Código Penal) 1
Fraude a Licitações (Art. 90 da Lei 8666/93) 1
Furto (Art. 155, caput, do Código Penal) 4
Furto Qualificado (Art. 155, § 4° do Código Penal) 7

127
CriminologiaS: Discursos para a Academia

Furto Qualificado Tentado (Art. 155, § 4°, c/c art. 14, II do


1
Código Penal)
Furto Simples Tentado (Art. 155, c/c art. 14, II do Código Penal) 3
Homicídio Culposo (Art. 121, § 3° do Código Penal) 1
Homicídio Culposo no Trânsito (Art. 302 da Lei 9503/93) 2
Homicídio Qualificado (Art. 121, § 2° do Código Penal) 12
Homicídio Simples (Art. 121, caput do Código Penal) 2
Homicídio Simples Tentado (Art. 121, caput, c/c art. 14, II do
1
Código Penal)
Incêndio (Art. 250, I do Código Penal) 1
Injúria Qualificada (Art. 140, § 3° do Código Penal) 1
Latrocínio (Art. 157, § 3° do Código Penal) 4
Lesão Corporal de Natureza Grave (Art. 129, § 2° do Código Penal) 1

Lesão Corporal de Natureza Leve (Art. 129, § 1° do Código Penal) 1


Ocultação de Cadáver (Art. 211 do Código Penal) 2
Peculato (Art. 312 do Código Penal) 1
Porte Ilegal de Arma de Uso Permitido (Art. 14 da Lei 10826
5
ou Art. 10 da Lei 9437/97)
Posse ou Porte Ilegal de Arma de Fogo de Uso Restrito (Art.
2
16 da Lei 10826/03)
Quadrilha ou Bando (Art. 288 do Código Penal) 2
Receptação (Art. 180, caput do Código Penal) 4
Receptação Qualificada (Art. 180, § 1° do Código Penal) 2
Resistência (Art. 329 do Código Penal) 1
Roubo Qualificado (Art. 157, § 2° do Código Penal) 35
Roubo Simples (Art. 157 do Código Penal) 4
Roubo Tentado (Art. 157, caput, c/c o art. 14, II do Código Penal) 3
Sequestro e Cárcere Privado (Art. 148 do Código Penal) 2
Subtração de Livro ou documento (Art. 338 do Código Penal) 1

128
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

Tráfico de Drogas (Art. 12, caput da Lei 6368/76 ou Art. 33 da


16
Lei 11343/06)
Tráfico de Drogas - Associação (Art. 12, caput, c/c art. 14 ou
11
art. 18, I da Lei 6368/76)
Uso de Documento Falso (Art. 304 do Código Penal) 3
Utilizar-se de Bens, Rendas ou Serviços Públicos (Art. 1° do
4
Dec. Lei 201/67)
Não Menciona 1
Total 182

Frise-se, novamente, que eventuais conflitos entre o uni-


verso de acórdãos e os tipos de crime decorrem da presença
de concurso de agentes (art. 29, Código Penal) ou concurso de
delitos (art. 69, Código Penal).
Em relação à média de penas (quantidade de tempo) impos-
tas pelas Cortes, foi constatado, dos dados colhidos na pesquisa
qualitativa, que o STF, dos 27 acórdãos analisados: em 04 deci-
sões (14,81%) aplicou pena até 02 anos de reclusão, em 03 acór-
dãos (11,11%) entre 02 e 04 anos, em 10 casos (37,04%) penas
acima de 04 e inferior a 08 anos de prisão, em 05 oportunidades
(18,52%) penas acima de 08 anos e em 05 casos (18,52%) dos jul-
gados não faziam referência à quantidade final imposta.

Gráfico 11
Média de Tempo de Pena Imposta – STF

18,52% 14,81%

11,11% Até 02 Anos


02 a 04 Anos
04 a 08 Anos

18,52% Acima de 08 Anos


Sem Referência

37,04%

129
CriminologiaS: Discursos para a Academia

Em relação ao STJ, os números globais podem ser expres-


sos da seguinte forma (158 acórdãos avaliados): 33 casos de
penas aplicadas até 02 anos (20,50%); 37 julgados com penas
aplicadas entre 02 e 04 anos (22,98%); 41 processos com pena
final acima de 04 e não superior a 08 anos (25,47%); 20 acima
de 08 anos (12,42%) e 30 casos sem referência à sanção final
(18,63%). Desdobrados os números por Turma, finalizam no
seguinte cálculo: (a) 5ª Turma (104 processos) – 19 casos com
penas aplicadas até 02 anos (18,26%); 18 processos com penas
entre 02 e 04 anos (17,30%); 31 julgados com pena final acima
de 04 e não superior a 08 anos (29,80%); 12 casos acima de 08
anos (11,53%) e 24 sem referência à sanção final (23,07%); e (b)
6ª Turma (57 decisões) – 14 julgados com penas até 02 anos
(24,56%); 19 processos com penas entre 02 e 04 anos (33,33%);
10 decisões com pena final acima de 04 e não superior a 08
anos (17,54%); 08 sentenças acima de 08 anos (14,03%) e 06
casos sem referência à sanção final (10,52%).

Gráfico 12
Média de Tempo de Pena Imposta – STJ

18,63% 20,50%

Até 02 Anos
02 a 04 Anos
04 a 08 Anos
12,42% Acima de 08 Anos
22,98% Sem Referência

25,47%

Realizados os primeiros cruzamentos das informa-


ções, a pesquisa procurou avaliar de forma global a apli-
cação da quantidade de pena por fase (método trifásico

130
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

do art. 68 do Código Penal), desde os critérios anterior-


mente analisados: pena aquém do mínimo, pena no mí-
nimo e pena acima do mínimo.
Importante dizer que aplicação de pena aquém do mí-
nimo é absolutamente possível no Brasil. A estrutura de
aplicação da quantidade de pena é dividida em três etapas,
conforme estabelece o art. 68 do Código Penal2, denominadas
pena-base, provisória e definitiva. E segundo as regras pretoria-
nas, está o juiz limitado ao mínimo apenas nas duas primeiras
etapas, conforme a Súmula 231 do STJ3. Todavia, na terceira
fase, se incidirem causas especiais de diminuição, há possibi-
lidade de fixar a quantidade da sanção aquém do mínimo le-
gal em inúmeras hipóteses, como, por exemplo, nos casos de
tentativa (art. 14, Código Penal4), arrependimento posterior
(art. 17, Código Penal5), erro sobre a ilicitude do fato (art. 21,
Código Penal6), semi-imputabilidade (art. 26, parágrafo úni-
co, Código Penal7), participação de menor importância (art.
29, § 1º, Código Penal8), além das circunstâncias minorantes

2 “A pena-base será fixada atendendo-se ao critério do Art. 59 deste Código; em


seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último,
as causas de diminuição e de aumento.”
3 “A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena
abaixo do mínimo legal.”
4 “Salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com a pena correspondente ao
crime consumado, diminuída de um a dois terços.”
5 “Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou
restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do
agente, a pena será reduzida de um a dois terços.”
6 “O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se
inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço.”
7 “A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação
de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era
inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo
com esse entendimento.”
8 “Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um sexto
a um terço.”

131
CriminologiaS: Discursos para a Academia

previstas na parte especial do Código Penal e na legislação


extravagante.
Para classificação dos julgados igualmente foi observa-
da existência de concurso material de crimes (art. 69, Código
Penal9), com análise individualizada da aplicação da pena
para cada delito e sua soma final. Nestes casos, a análise foi
realizada por crime, pois do contrário a pena ficaria sempre
acima dos mínimos legais estabelecidos.
Verificou-se, ainda, nesta etapa, se houve omissão da deci-
são no que diz respeito à fundamentação da aplicação da pena.
A primeira análise possibilitou a realização da avaliação
dos discursos dos julgados, orientada pela indagação do mo-
tivo pelo qual a pena havia sido fixada abaixo do mínimo, no
mínimo ou acima do mínimo, a partir de questões específicas
determinadas pelo art. 68, Código Penal.
Em relação à pena-base, a preocupação foi indicar as cir-
cunstâncias judiciais do caput do art. 59, do Código Penal10,
com maior utilização e quais os argumentos apontados para
sua valoração positiva, negativa ou neutra.
Conforme exposto, a jurisprudência e a doutrina não per-
mitem a aplicação de pena abaixo do mínimo na primeira fase
de aplicação de pena. Todavia estabelece critérios para fixação no

9 “Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais
crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de
liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de
reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela.”
10 “O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à
personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime,
bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e
suficiente para reprovação e prevenção do crime: I - as penas aplicáveis dentre as
cominadas; II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III - o
regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV - a substituição da
pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.”

132
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

mínimo (todas circunstâncias favoráveis) ou acima dele (quando


houver cumulação de circunstâncias desfavoráveis).
Apesar deste indicativo, três análises foram propostas:
(1ª) pena-base abaixo do mínimo; (2ª) pena-base no mínimo,
situação em que todas circunstâncias judiciais seriam favo-
ráveis; (3ª) pena-base acima do mínimo, situação na qual se
detectaria presença de circunstâncias desfavoráveis. O con-
teúdo da decisão que justificou aplicação acima do mínimo
consta na análise quantitativa e, quantitativamente, o número
de acórdãos pode ser representado da seguinte forma:

Gráfico 13
Classificação dos Julgados conforme Aplicação da Pena-Base

100 91

80
64
60
45
40

20
0
0
Abaixo do Mínimo Mínimo Acima do Mínimo Não Menciona

Importante destacar, novamente, que a soma das apli-


cações de pena nas três fases supera o número de acórdãos
selecionados no banco de dados em decorrência dos casos
de concurso material (art. 69, Código Penal) ou concurso de
agentes (art. 29, Código Penal), casos em que há mais de uma
aplicação de pena. O item ‘não menciona’ inclui, fundamen-
talmente, casos de (a) declaração nulidade da sentença por
parte do Tribunal Superior; (b) anulação parcial da sentença,

133
CriminologiaS: Discursos para a Academia

especificamente na dosimetria da pena; ou (c) exposição in-


completa de dados na decisão.
Na pena provisória foram observados os critérios de apli-
cação de agravantes11 e atenuantes12. Três análises seriam pos-
síveis: (1º) pena provisória abaixo do mínimo; (2º) pena pro-
visória aplicada no mínimo, quando a pena-base ficou acima
do mínimo e o juiz aplicou atenuante ou quando a pena-base
ficou no mínimo e inexiste atenuante e agravante; (3º) pena
provisória acima do mínimo nos casos em que há agravante
ou quando a pena-base ficou acima do mínimo e a provisória
não trouxe ao mínimo por força de mínima redução.
Todavia, em razão da Súmula 231 do STJ, há impediti-
vo pretoriano de aplicação de pena abaixo do mínimo nes-

11 “Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou
qualificam o crime: I - a reincidência; II - ter o agente cometido o crime: a) por motivo
fútil ou torpe; b) para facilitar ou assegurar a execução, a ocultação, a impunidade
ou vantagem de outro crime; c) à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação,
ou outro recurso que dificultou ou tornou impossível a defesa do ofendido; d) com
emprego de veneno, fogo, explosivo, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou
de que podia resultar perigo comum; e) contra ascendente, descendente, irmão ou
cônjuge; f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas,
de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da
lei específica; g) com abuso de poder ou violação de dever inerente a cargo, ofício,
ministério ou profissão; h) contra criança, maior de 60 (sessenta) anos, enfermo ou
mulher grávida; i) quando o ofendido estava sob a imediata proteção da autoridade;
j) em ocasião de incêndio, naufrágio, inundação ou qualquer calamidade pública, ou
de desgraça particular do ofendido; l) em estado de embriaguez preordenada.”
12 “Art. 65 - São circunstâncias que sempre atenuam a pena: I - ser o agente menor de
21 (vinte e um), na data do fato, ou maior de 70 (setenta) anos, na data da sentença;
II - o desconhecimento da lei; III - ter o agente: a) cometido o crime por motivo
de relevante valor social ou moral; b) procurado, por sua espontânea vontade e
com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as consequências, ou
ter, antes do julgamento, reparado o dano; c) cometido o crime sob coação a que
podia resistir, ou em cumprimento de ordem de autoridade superior, ou sob a
influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima; d) confessado
espontaneamente, perante a autoridade, a autoria do crime; e) cometido o crime sob
a influência de multidão em tumulto, se não o provocou.”
“Art. 66 - A pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante,
anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei.”

134
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

ta fase, embora isso não impeça que determinados Tribunais


deixem de aplicar a Súmula. No entanto, em sua totalidade,
decisões diversas do entendimento sumulado são revogadas
nas Cortes Superiores, motivo pelo qual não houve nenhuma
incidência, sendo o critério eliminado.

Gráfico 14
Classificação dos Julgados conforme Aplicação
da Pena Provisória

100 93

80
59
60 48

40

20
0
0
Abaixo do Mínimo Mínimo Acima do Mínimo Não Menciona

Observaram-se, nesta fase, os fundamentos e os critérios


de definição da quantidade de aumento ou de diminuição da
pena, bem como se houve concurso de atenuantes e agravan-
tes (02 ou mais agravantes; 02 ou mais atenuantes; ou atenu-
ante e agravante), bem como os critérios de resolução.
No que tange à aplicação da pena definitiva, foram avalia-
das as causas especiais de aumento e de diminuição de pena
(majorantes e minorantes).
Conforme a legislação pátria, as majorantes e minoran-
tes variam a pena independentemente dos marcos fixados
pelo Legislador, não havendo limites mínimos e máximos que
delimitem a pena definitiva.

135
CriminologiaS: Discursos para a Academia

Diante disso, três análises foram possíveis: (1ª) pena defi-


nitiva abaixo do mínimo legal, quando há incidência de mino-
rante da parte geral ou especial, (2ª) pena definitiva aplicada
no mínimo, quando nenhuma circunstância das três fases foi
desfavorável ou quando, pela aplicação de variáveis, o cálcu-
lo final resta no mínimo – p. ex., pena-base acima do mínimo
com aplicação de atenuante no mínimo e ausência de majo-
rante/minorante; pena provisória acima ou abaixo do mínimo
com aplicação de majorante ou minorante; e (3ª) pena defini-
tiva acima do mínimo, quando há aplicação da pena-base ou
provisória acima do mínimo sem majorante ou com minoran-
te que não diminui o suficiente ou quando a provisória fica no
mínimo ou abaixo com aplicação de majorante.

Gráfico 15
Classificação dos Julgados conforme Aplicação
da Pena Definitiva

140
117
120
100
80
60 48
40
17 18
20
0
Abaixo do Mínimo Mínimo Acima do Mínimo Não Menciona

Foram observados os fundamentos e os critérios de defi-


nição da quantidade de aumento ou de diminuição e se houve
concurso de majorantes ou minorantes (02 ou mais majoran-
tes; 02 ou mais minorantes; ou majorante e minorante) e quais
os critérios de resolução. Igualmente foi verificada a existên-
cia de critérios específicos para determinadas majorantes e

136
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

minorantes, p. ex., crime continuado (número de crimes), ten-


tativa (maior ou menor perigo ao bem jurídico) entre outras.

8.4. Levantamento da Jurisprudência Nacional e


Criação do Banco de Dados

A formação do banco de dados de pesquisa seguiu os


parâmetros estabelecidos na fase 02 do procedimento meto-
dológico, ou seja, a coleta do material ocorreu a partir das 25
palavras-chaves pré-fixadas, delimitada no período de 1° de
janeiro a 30 de junho de 2008.

8.4.1. Levantamento de Dados no Supremo Tribunal


Federal

As buscas no Supremo Tribunal Federal foram realizadas


no site do órgão durante o mês de setembro de 2008 (www.stf.
gov.br, link ‘consulta’, ‘jurisprudência’/’pesquisa’).
Do total dos documentos coletados, foram selecionados
108, salvos no banco de dados na pasta STF – Resultados.
A palavra-chave de maior incidência foi ‘mínimo legal’
com 34 resultados (STF/Mínimo legal). As palavras-chave
‘aplicação da pena’, ‘cálculo da pena’, ‘pena-base’, ‘circuns-
tâncias judiciais’, ‘agravantes’, ‘atenuantes’, ‘periculosidade’,
‘culpabilidade’, ‘antecedentes’ e ‘conduta social’ obtiveram,
respectivamente, as seguintes incidências: 08 (STF/Aplicação
da Pena), 02 (STF/Cálculo da pena), 21 (STF/Pena-Base), 19
(STF/Circunstâncias Judiciais), 17 (STF/Agravantes), 09 (STF/
Atenuantes), 21 (STF/Periculosidade), 10 (STF/Culpabilidade),
25 (STF/Antecedentes) e 05 (STF/Conduta Social).

137
CriminologiaS: Discursos para a Academia

Tabela 10
Resultado da Pesquisa por Incidência de
Palavra-Chave – STF

Agravantes 9
Antecedentes 25
Aplicação da Pena 8
Atenuantes 13
Cálculo da Pena 2
Circunstâncias Judiciais 19
Conduta Social 5
Culpabilidade 10
Dosimetria da Pena 14
Mínimo Legal 34
Pena-Base 21
Periculosidade 21
Demais Palavras-Chave 0
Resultado 181
Resultado Discriminado (excluídos os acórdão repetidos) 108

Os critérios de pesquisa ‘dosimetria da pena’, ‘súmula


231’, ‘fundamentação da pena’, ‘motivação da pena’, ‘propor-
cionalidade da pena’, ‘motivos do crime’, ‘pena abaixo do mí-
nimo’, ‘ pena aquém do mínimo’, ‘pena mínima’, ‘nulidade
da aplicação da pena’, ‘comportamento da vítima’, ‘persona-
lidade do agente’, ‘circunstâncias do crime’ e ‘pena acima do
mínimo’ não obtiveram nenhum resultado.

8.4.2. Levantamento de Dados Superior Tribunal de


Justiça

A pesquisa jurisprudencial no Superior Tribunal de


Justiça foi dividida em duas etapas devido ao volume de re-

138
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

sultados e a existência de duas Turmas responsáveis por jul-


gar a matéria criminal.
A coleta de dados na Quinta Turma foi realizada du-
rante o mês de setembro de 2008 (site www.stj.gov.br, link
‘consulta’, ‘jurisprudência’, ‘jurisprudência do STJ’). Foram
preenchidos os seguintes campos, na qualidade de parâ-
metros de pesquisa: ‘pesquisa livre’, com a palavra-chave
entre aspas, ‘data do julgamento’ (01/01/2008 a 30/06/2008),
‘órgão julgador’ (Quinta Turma) e ‘acórdão’ (decisão objeto
da pesquisa).
Foram selecionados e salvos no banco de dados 439 acór-
dãos (STJ/Quinta Turma/Resultados).
A palavra-chave de maior incidência foi ‘pena-base’ com
175 resultados (STJ/Quinta Turma/Pena-base). Os critérios de
pesquisa ‘aplicação da pena’, ‘agravantes’, ‘antecedentes’, ‘pena
mínima’, ‘cálculo da pena’, ‘pena abaixo/aquém do mínimo’,
‘súmula 231’, ‘atenuantes’, ‘periculosidade’, ‘personalidade do
agente’, ‘circunstâncias do crime’, ‘mínimo legal’ e ‘pena acima
do mínimo’ obtiveram como resultado, respectivamente, as se-
guintes incidências: 36 (STJ/Quinta Turma/Aplicação da pena),
7 (STJ/Quinta Turma/Agravantes), 142 (STJ/Quinta Turma/
Antecedentes), 11 (STJ/Quinta Turma/Pena Mínima), 9 (STJ/
Quinta Turma/Cálculo da Pena), 13 (STJ/Quinta Turma/Pena
Abaixo ou Aquém do Mínimo), 8 (STJ/Quinta Turma/Súmula
231), 11 (STJ/Quinta Turma/Atenuantes), 120 (STJ/Quinta
Turma/Periculosidade), 12 (STJ/Quinta Turma/Personalidade
do Agente), 17 (STJ/Quinta Turma/Circunstâncias do Crime),
145 (STJ/Quinta Turma/Mínimo Legal) e 10 (STJ/Quinta Turma/
Pena Acima do Mínimo).
As palavras-chave ‘dosimetria da pena’, ‘circunstân-
cias judiciais’, ‘culpabilidade’, ‘conduta social’ e ‘consequ-
ências do crime’ obtiveram, respectivamente, os seguintes

139
CriminologiaS: Discursos para a Academia

resultados: em 86 (STJ/Quinta Turma/Dosimetria da Pena),


123 (STJ/Quinta Turma/Circunstâncias Judiciais), 63 (STJ/
Quinta Turma/Culpabilidade), 15 (STJ/Quinta Turma/
Conduta Social) e 17 (STJ/Quinta Turma/ Consequências
do Crime).

Tabela 11
Resultado por Incidência de Palavra-Chave - 5ª Turma STJ

Agravantes 7
Antecedentes 142
Aplicação da Pena 36
Atenuantes 11
Cálculo da Pena 9
Circunstâncias do Crime 17
Circunstâncias Judiciais 123
Conduta Social 15
Consequências do Crime 17
Culpabilidade 63
Dosimetria da Pena 86
Fundamentação da pena 0
Mínimo Legal 145
Pena Abaixo do Mínimo 13
Pena Acima do Mínimo 10
Pena Mínima 11
Pena-Base 175
Periculosidade 120
Personalidade do Agente 12
Súmula 231 8
Demais Critérios 0
Resultado 1011
Resultado Discriminado (excluídos os acórdãos repetidos) 427

140
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

Os critérios de pesquisa ‘fundamentação da pena’, ‘mo-


tivação da pena’, ‘proporcionalidade da pena’, ‘nulidade da
aplicação da pena’, ‘motivos do crime’ e ‘comportamento da
vítima’ não obtiveram nenhum resultado.
A investigação na Sexta Turma foi realizada nos meses de
setembro e outubro de 2008, sendo capturados 199 acórdãos
(STJ/Sexta Turma/Resultados).
A palavra-chave de maior incidência foi ‘anteceden-
tes’ com 65 resultados (STJ/Sexta Turma/Antecedentes). Os
critérios de pesquisa ‘aplicação da pena’, ‘agravantes’, ‘pe-
na-base’, ‘pena mínima’, ‘cálculo da pena’, ‘súmula 231’,
‘atenuantes’, ‘periculosidade’, ‘personalidade do agente’,
‘circunstâncias do crime’, ‘mínimo legal’ e ‘pena acima do
mínimo’ obtiveram como resultado, respectivamente, a se-
guinte incidência: 7 (STJ/Sexta Turma/Aplicação da Pena),
3 (STJ/Sexta Turma/Agravantes), 47 (STJ/Sexta Turma/
Pena-Base), 3 (STJ/Sexta Turma/Pena Mínima), 4 (STJ/Sexta
Turma/Cálculo da Pena), 2 (STJ/Sexta Turma/Súmula 231),
3 (STJ/Sexta Turma/Atenuantes), 49 (STJ/Sexta Turma/
Periculosidade), 7 (STJ/Sexta Turma/Personalidade do
Agente), 2 (STJ/Sexta Turma/Circunstâncias do Crime),
59 (STJ/Sexta Turma/Mínimo Legal) e 3 (STJ/Sexta Turma/
Pena Acima do Mínimo).
As palavras-chave ‘dosimetria da pena’, ‘circuns-
tâncias judiciais’, ‘culpabilidade’, ‘conduta social’, ‘con-
se quências do crime’ e ‘comportamento da vítima’ re-
sultaram, respectivamente, as seguintes incidências: 13
(STJ/Sexta Turma/Dosimetria da Pena), 49 (STJ/Sexta
Turma/Circunstâncias Judiciais), 31 (STJ/Sexta Turma/
Culpabilidade), 9 (STJ/Sexta Turma/Conduta Social),
1 (STJ/Sexta Turma/Consequências do Crime) e 2 (STJ/
Sexta Turma/Comportamento da vítima).

141
CriminologiaS: Discursos para a Academia

Tabela 12
Resultado por Incidência de Palavra-Chave - 6ª Turma STJ

Agravantes 3
Antecedentes 65
Aplicação da Pena 7
Atenuantes 3
Cálculo da Pena 4
Circunstâncias do Crime 2
Circunstâncias Judiciais 48
Comportamento da vítima 2
Conduta Social 9
Consequências do Crime 1
Culpabilidade 31
Dosimetria da Pena 13
Mínimo Legal 59
Pena Abaixo do Mínimo 0
Pena Acima do Mínimo 3
Pena Mínima 3
Pena-Base 47
Periculosidade 49
Personalidade do Agente 7
Súmula 231 2
Demais Critérios 0
Resultado 354
Resultado discriminado (excluídos os acórdãos repetidos) 194

Os critérios de pesquisa ‘fundamentação da pena’, ‘pena


abaixo/aquém do mínimo’, ‘motivação da pena’, ‘proporcio-
nalidade da pena’, ‘nulidade da aplicação da pena’, ‘motivos
do crime’ não obtiveram resultado.
O levantamento total da pesquisa no STJ pode ser assim
representado:

142
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

Tabela 13
Resultado Total da Pesquisa no Superior Tribunal de Justiça

Agravantes 10
Antecedentes 204
Aplicação da Pena 42
Atenuantes 14
Cálculo da Pena 13
Circunstâncias do Crime 19
Circunstâncias Judiciais 170
Comportamento da Vítima 2
Conduta Social 23
Consequências do Crime 17
Culpabilidade 92
Dosimetria da Pena 98
Fundamentação da Pena 0
Mínimo Legal 204
Motivação da Pena 0
Motivos do Crime 0
Nulidade da Aplicação da Pena 0
Pena Abaixo do Mínimo 13
Pena Acima do Mínimo 13
Pena Mínima 15
Pena-Base 220
Periculosidade 168
Personalidade do Agente 18
Proporcionalidade da Pena 0
Súmula 231 10
Resultado 1365
Resultado Discriminado (excluído os acórdãos repetidos) 621

143
9.
A Motivação Judicial
na Definição da Pena

O art. 93, IX, da Constituição Federal, estabelece que to-


dos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão pú-
blicos e todas as decisões serão fundamentadas, sob pena de
nulidade. A sanção processual penal de nulidade é prevista
na Constituição em apenas dois casos: ilicitude da prova – art.
5º, LVI, Constituição1 e, posteriormente, sua incorporação no
art. 157, CPP2 pela Lei nº 11.690, de 2008 – e ausência de motiva-
ção das decisões judiciais (art. 93, IX, Constituição3). A previsão
constitucional de nulidade, portanto, coloca estas duas ques-
tões no centro das investigações do processo penal.

1 “São inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.”


2 “Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas
ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou
legais. § 1o São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo
quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando
as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras. § 2o
Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos
e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir
ao fato objeto da prova. § 3o Preclusa a decisão de desentranhamento da prova
declarada inadmissível, esta será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes
acompanhar o incidente.”
3 “Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e
fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a
presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente
a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado
no sigilo não prejudique o interesse público à informação.” (Redação dada pela
Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

145
CriminologiaS: Discursos para a Academia

Embora os critérios de determinação da quantidade e da


qualidade da pena estejam definidos no Código Penal, sua
previsão no momento da sentença penal condenatória impõe
esteja adequada aos princípios constitucionais que regulam o
processo penal. Assim, necessariamente, a aplicação da pena
é vinculada ao princípio constitucional da fundamentação/
motivação dos atos judiciais.
Ensina Ney Fayet que é pela motivação que se aprecia
“se o juiz julgou com conhecimento de causa, se sua convicção é le-
gítima e não arbitrária”, tendo em vista que “interessa à sociedade
e, em particular, às partes saber se a decisão foi ou não acertada. E,
somente com a exigência da motivação, da fundamentação, se per-
mitiria à sociedade e às partes a fiscalização da atividade intelectual
do magistrado no caso decidido.”4
Trata-se, portanto, “(...) de uma imposição do princípio do
devido processo legal em que se busca a exteriorização das razões de
decidir, o revelar do prisma pelo qual o Poder Judiciário interpretou
a lei e os fatos da causa”, visto que, “do ponto de vista mais jurídi-
co, a motivação é importante, pois viabiliza aferir a vinculação do
juiz à prova (...).”5 Conforme leciona Nilo Bairros de Brum, “é
na forma de argumento que a prova aparece na fundamentação da
sentença, quando o juiz procura justificar sua decisão perante as
partes, os tribunais e a comunidade jurídica.”6 Lembram Rogério
Lauria Tucci e José Rogério Cruz e Tucci, que “(...) a motivação
da sentença tem por escopo imediato demonstrar ao próprio juiz,
antes mesmo do que às partes, a ‘ratio scripta’ que legitima o ato
decisório, cujo teor se encontrava em sua intuição.”7

4 Fayet, A Sentença Criminal e suas Nulidades, p. 49-50.


5 Portanova, Princípios do Processo Civil, p. 248-9.
6 Brum, Requisitos Retóricos da Sentença Penal, p. 70.
7 Tucci & Tucci, Constituição de 1988 e Processo, p. 74.

146
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

Conforme Ferrajoli, o valor fundamental do princípio


da motivação se expressa por sua natureza cognitiva, e não
potestativa (antigarantista), que vincula a decisão, na esfera
do direito, à estrita legalidade (motivo de direito) e, na esfera
fática, à prova das hipóteses acusatórias (motivo de fato): “a
motivação permite a fundamentação e o controle das decisões tanto
em direito, pela violação da lei ou defeitos de interpretação ou de sub-
sunção, como em fato, por defeito ou insuficiência de provas ou por
inadequada explicação do nexo entre convicção e provas.”8
A fundamentação deve cumprir, portanto, requisitos
materiais e processuais, a partir das noções de motivação fáti-
ca e legal do juízo de condenação ou absolvição, ou seja, cor-
respondência dos argumentos da sentença com a base legal
e o material probatório colhido em procedimento público e
contraditório.
A obrigatoriedade da dupla referência encontra amparo
no art. 381, III, do CPP, que impõe ao juiz o dever de indicar
na sentença os motivos de fato e de direito que fundam sua
decisão. Todavia este dever não obriga que apenas os juízos
absolutórios ou condenatórios estejam sustentados em prova
produzida (motivo de fato) admissível (legalidade da prova)
segundo a Constituição e as leis ordinárias (motivo de direi-
to). Vincula, igualmente, o processo de aplicação da pena, no
qual o Magistrado deve indicar as circunstâncias que entende ca-
bíveis para graduar a pena (motivo de direito) e apresentar o suporte
probatório que a sustenta (motivo de fato).
Note-se que, ao privilegiar a fundamentação das deci-
sões, a Reforma do Código Penal, em 1984, adotou modelo
escalonado de aplicação da pena, superando a tradicional po-

8 Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 640.

147
CriminologiaS: Discursos para a Academia

lêmica entre Nélson Hungria e Roberto Lyra9. O art. 68 esta-


beleceu, portanto, o método trifásico para a fixação da pena,
no qual “o juiz tem que dizer não somente por que razão condena,
mas também por que aplica determinada pena, especialmente no que
respeita à quantidade.”10
Se a forma é predeterminada no modelo trifásico, o con-
teúdo dos argumentos judiciais igualmente deve ser regrado,
fundamentalmente pela opção do Direito Penal da moderni-
dade em instituir modelo do fato-crime, excluindo valorações
de cunho eminentemente morais.11
O controle material-substantivo da decisão que aplica a
pena, referente àquilo que pode ou não ser objeto de valora-

9 No texto originário do Código Penal de 1940 (Decreto-Lei 2.848/40), o


processo de quantificação da sanção era distinto do atual. Previa o art. 42
que “compete ao juiz, atendendo aos antecedentes e à personalidade do agente, à
intensidade do dolo ou grau da culpa, aos motivos, às circunstâncias e consequências
do crime: I – determinar a pena aplicavel, dentre as cominadas alternativamente;
II – fixar, dentro dos limites legais, a quantidade da pena aplicavel.”
Em relação às atenuantes e agravantes e às majorante e minorantes, o Código
previa, apenas, o concurso de circunstâncias agravantes e atenuantes (“art.
49. no concurso de agravantes e atenuantes, a pena deve aproximar-se do limite
indicado pelas circunstâncias preponderantes, entendendo-se como tais as que
resultam dos motivos determinantes do crime, da personalidade do agente e da
reincidência”) e a existência de causas de aumento ou diminuição (“art 50.
A pena que tenha de ser aumentada ou diminuida, de quantidade fixa ou dentro de
determinados limites, é a que o juiz aplicaria se não existisse causa de aumento ou
de diminuição”), sem, contudo, escalonar o procedimento.
Assim, inexistindo previsão, Roberto Lyra advogava método dividido em
duas fases, segundo o qual a partir da análise das circunstâncias judiciais
do caput do art. 42 e em conjunto com ateniantes e agravantes, o juiz fixaria
a pena (base). Posteriormente, na segunda fase, incidirima as causas de
aumento e de diminuição, definitivizando a pena.
Contrariamente, posição que foi adotada no art. 68, na ocasião da Reforma
da Parte Geral de 1984, Nélson Hungria defendia sistema trifásico no qual,
a partir da pena-base, seriam aplicadas agravantes e atenuantes (pena
provisória) e, sobre este cálculo, incidiriam as causas de aumento e de
diminuição (pena definitiva).
10 Apud Schecaira, Cálculo da Pena e Dever de Motivar, p. 175.
11 Carvalho & Carvalho, Aplicação da Pena e Garantismo, pp. 5-19; 35-37.

148
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

ção, é imprescindível nos sistemas que primam pela motiva-


ção. Mesmo critérios subjetivos (referentes ao autor do fato)
devem ser demonstrados empiricamente, ou seja, objetivados
na prova, pois a subjetivação de hipóteses e argumentos “gera
uma perversão inquisitiva do processo, dirigindo-o não mais à com-
provação de fatos objetivos, mas para a análise da interioridade da
pessoa julgada”; obtendo, como corolário, a degradação “(...) da
verdade processual (empírica, pública e intersubjetivamente contro-
lável) em convencimento intimamente subjetivo e, portanto, irrefu-
tável do julgador.”12
Na estrutura do direito penal e processual penal roma-
no-germânico a única forma de controle do arbítrio judicial é
através da análise dos argumentos que fundamentam as deci-
sões. No caso específico da aplicação da pena, através da ava-
liação da forma pela qual o juiz justifica sua decisão, preenche
as lacunas (tipos penais abertos), soluciona as contradições e
define a quantidade e a qualidade de pena.
Se a motivação caracteriza as decisões judiciais nos siste-
mas garantistas, possível notar que na lógica inquisitiva a exi-
gência de fundamentação representará formalismo incômodo –
“o devido processo legal aplicado em sua integralidade passou a ser
considerado como um formalismo incômodo para o direito brasileiro,
esquecendo-se a lição de Hassemer, ao afirmar que as formalidades
do procedimento penal não são meras formalidades.”13 Não por ou-
tra razão Fauzi Choukr14 diagnosticará, na cultura processual
penal inquisitória e emergencial brasileira, a pauperização da
garantia da motivação das decisões, provocando, em relação
à aplicação da pena, incompreensão sobre o significado e o
alcance do princípio constitucional da individualização.

12 Ferrajoli, Diritto..., p. 15-6.


13 Choukr, Processo Penal de Emergência, p. 139.
14 Choukr, Processo..., pp. 157-161.

149
10.
Estrutura da Aplicação
da Pena no Brasil

Na legislação brasileira, os artigos 68 e 59, do Código


Penal, fixam os critérios e estabelecem o escalonamento de fa-
ses de aplicação da pena.
Em realidade, por força de complexa redação, a primei-
ra estruturação da aplicação da pena encontra-se nos incisos
do art. 59 do Código. De maneira didática, para compreender
a primeira formulação da técnica de dosimetria da pena, es-
tabelecida no art. 59 do Código Penal, modificado pela Lei
7.209/84, poderia ser lido da seguinte forma: “o juiz (...) es-
tabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e
prevenção do crime: I – as penas aplicáveis dentre as cominadas; II
– a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III – o
regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV
– a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra
espécie de pena, se cabível.”
Trata-se de sistema composto por quatro operações ne-
cessárias, preliminares uma da outra, quais sejam: 1ª eleição
da pena cabível entre as cominadas (pena privativa de liber-
dade, pena de multa ou pena restritiva de direito); 2ª determi-
nação da quantidade de pena (tempo); 3ª fixação da qualida-
de de pena (regime de cumprimento de pena); e 4ª avaliação
da possibilidade de aplicação de substitutivos penais (pena
de multa ou pena restritiva de direito).

151
CriminologiaS: Discursos para a Academia

Conforme apontam Zaffaroni e Pierangeli, a fórmula


da aplicação da pena (art. 59 c/c art. 68 do Código Penal) é
bastante complexa, exigindo “(...) uma ordenação sistemática de
critérios e regras, porque não se trata de uma síntese ordenada, mas
de elementos um tanto dispersos, e cuja ordem hierárquica se faz
necessário determinar.”1

10.1. Eleição da Pena Cabível

A primeira operação (eleição da pena cabível) ocorre


quando o preceito secundário do tipo penal incriminador
prevê duas ou mais modalidades distintas de penas, normal-
mente alternando a pena privativa de liberdade com a multa.
São casos esporádicos como, p. ex., no Código Penal, o
furto privilegiado2 e, na Legislação ordinária, as inúmeras
modalidades de crime contra a ordem econômica3, os vários

1 Zaffaroni & Pierangeli, Manual de Direito Penal Brasileiro, p. 829.


2 “Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena - reclusão, de
um a quatro anos, e multa. (...) § 2º - Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor
a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la
de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa” (grifou-se).
3 “Art. 4° Constitui crime contra a ordem econômica: I - abusar do poder econômico,
dominando o mercado ou eliminando, total ou parcialmente, a concorrência mediante:
a) ajuste ou acordo de empresas; b) aquisição de acervos de empresas ou cotas, ações,
títulos ou direitos; c) coalizão, incorporação, fusão ou integração de empresas; d)
concentração de ações, títulos, cotas, ou direitos em poder de empresa, empresas
coligadas ou controladas, ou pessoas físicas; e) cessação parcial ou total das atividades
da empresa; f) impedimento à constituição, funcionamento ou desenvolvimento de
empresa concorrente. II - formar acordo, convênio, ajuste ou aliança entre ofertantes,
visando: a) à fixação artificial de preços ou quantidades vendidas ou produzidas;
b) ao controle regionalizado do mercado por empresa ou grupo de empresas; c) ao
controle, em detrimento da concorrência, de rede de distribuição ou de fornecedores.
III - discriminar preços de bens ou de prestação de serviços por ajustes ou acordo
de grupo econômico, com o fim de estabelecer monopólio, ou de eliminar, total ou
parcialmente, a concorrência; IV - açambarcar, sonegar, destruir ou inutilizar bens
de produção ou de consumo, com o fim de estabelecer monopólio ou de eliminar, total
ou parcialmente, a concorrência; V - provocar oscilação de preços em detrimento
de empresa concorrente ou vendedor de matéria-prima, mediante ajuste ou acordo,

152
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

crimes ambientais4, os casos de porte de droga para consumo


pessoal na inovadora redação da Lei de Drogas5 ou, ainda,
os tipos previstos como contravenções penais6 eventualmente
recepcionados pela Constituição, não incorporados em Leis
ordinárias e que se mantêm como infrações de menor poten-
cial ofensivo (Lei 9.099/95).

10.2. Quantificação da Pena

Vencida a primeira etapa (eleição da pena), o segundo


passo é definir a quantificação da sanção, objeto privilegiado

ou por outro meio fraudulento; VI - vender mercadorias abaixo do preço de custo,


com o fim de impedir a concorrência; VII - elevar sem justa causa o preço de bem ou
serviço, valendo-se de posição dominante no mercado. Pena - reclusão, de 2 (dois)
a 5 (cinco) anos, ou multa.” (grifou-se)
4 “Art. 33. Provocar, pela emissão de efluentes ou carreamento de materiais, o
perecimento de espécimes da fauna aquática existentes em rios, lagos, açudes, lagoas,
baías ou águas jurisdicionais brasileiras: Pena - detenção, de um a três anos, ou
multa, ou ambas cumulativamente.” (grifou-se); “Art. 34. Pescar em período no
qual a pesca seja proibida ou em lugares interditados por órgão competente: Pena -
detenção de um ano a três anos ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.
Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem: I - pesca espécies que devam
ser preservadas ou espécimes com tamanhos inferiores aos permitidos; II - pesca
quantidades superiores às permitidas, ou mediante a utilização de aparelhos,
petrechos, técnicas e métodos não permitidos; III - transporta, comercializa, beneficia
ou industrializa espécimes provenientes da coleta, apanha e pesca proibidas”
(grifou-se); “Art. 38. Destruir ou danificar floresta considerada de preservação
permanente, mesmo que em formação, ou utilizá-la com infringência das normas
de proteção: Pena - detenção, de um a três anos, ou multa, ou ambas as penas
cumulativamente” (grifou-se), entre outros.
5 “Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo,
para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação
legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os
efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de
comparecimento a programa ou curso educativo. § 1º. Às mesmas medidas submete-
se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas
à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar
dependência física ou psíquica. (...) § 3º. As penas previstas nos incisos II e III do
caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.”
6 Neste sentido, conferir o Decreto-Lei 3.688/41, art. 18 ao art. 70.

153
CriminologiaS: Discursos para a Academia

da investigação, seja qual for a pena (privativa de liberdade,


restritiva de direito ou multa).
Todavia, como pode ser percebido, as possibilidades de
aplicação de pena não privativa de liberdade nesta primei-
ra fase são remotas, visto a centralidade da pena de prisão
no ordenamento jurídico brasileiro. A privação da liberdade,
desde a Modernidade penal, é a pedra angular dos sistemas
jurídicos. Embora a previsão de outras espécies de pena como
a restritiva de direitos e a multa, estas operam normalmen-
te como substitutivas do encarceramento, conforme regrado
pelo inciso IV do art. 59 (última fase do sistema de aplicação
da pena), após a quantificação da privação de liberdade e de-
finição de sua qualidade (regime).
No segundo momento, o art. 59, II, do Código Penal, re-
mete o aplicador do direito ao art. 68, no qual está fixado o
trifásico de cálculo da quantidade de pena: “a pena-base será
fixada atendendo-se ao critério do art. 59 deste Código; em seguida
serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por
último, as causas de diminuição e de aumento.”
A assistematicidade pode ser visualizada no fato de a fase
de quantificação, prevista no inciso II do art. 59 do Código,
remeter para a discriminação do modelo trifásico no art. 68,
e este, por sua vez, ao regular a primeira etapa (pena-base),
reenviar os critérios de valoração ao caput do mesmo art. 59.
Denota-se, no mínimo, emprego equivocado da técnica legis-
lativa, normalmente organizada a partir do escalonamento
dos artigos em caput, incisos, parágrafos e alíneas, tendo em
vista o maior ou menor grau de abstração das circunstâncias
do tipo penal. Ao contrário de estabelecer a especificação das
matérias na ordem do geral ao particular, o Legislador, nes-
te importante momento de incidência do sistema punitivo,

154
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

abdicou da técnica e pulverizou a estrutura em regramentos


dispersos.
No entanto, ao estabelecerem a fórmula trifásica de
quantificação das penas, lecionam Miguel Reale Jr., René
Ariel Dotti, Ricardo Andreucci e Sérgio de Moraes Pitombo
que “sendo as circunstâncias legais uma especificação de algumas
possíveis circunstâncias gerais, descritas de forma aberta no art. 59,
deve o processo de fixação da pena ser dividido: primeiramente as
circunstâncias judiciais sem se levar em conta fatos descritos nas
circunstâncias legais, depois as circunstâncias legais e por fim as
causas de aumento ou diminuição.”7

10.2.1. Pena-Base

O art. 63, do Código Penal de 1969, definia a pena-base


como aquela “que tenha de ser aumentada ou diminuída, de quan-
tidade fixa ou dentro de determinados limites, é a que o juiz aplica-
ria, se não existisse a circunstância ou causa que importe o aumento
ou diminuição da pena”.
Dessa forma, leciona Paganella Boschi que “pena-base,
enfim, é aquela que atua como ponto de partida, ou seja, como parâ-
metro para as operações que se seguirão. A pena-base corresponde,
então, à pena inicial fixada em concreto, dentro dos limites estabele-
cidos a priori na lei penal, para que, sobre ela, incidam, por cascata,
as diminuições e os aumentos decorrentes de agravantes, atenuan-
tes, majorantes ou minorantes.”8
Do que se pode notar, inclusive pela exposição da
Comissão de Reforma, ao predeterminar as fases e os pa-
râmetros para a aplicação da pena, o Código Penal intenta

7 Reale Jr. (et alii.), Penas e Medidas de Segurança no Novo Código, p. 188.
8 Boschi, Das Penas e seus Critérios de Aplicação, p. 187.

155
CriminologiaS: Discursos para a Academia

reduzir ao máximo o arbítrio, embora sejam ainda elevados


os espaços de discricionariedade, notadamente na fixação da
pena-base em decorrência dos tipos penais abertos previstos
no caput do art. 59 do Código Penal.
A caracterização da tipicidade aberta das circunstâncias
objetivas (circunstâncias e consequências do crime e compor-
tamento da vítima) e subjetivas (culpabilidade, antecedentes,
conduta social, personalidade do agente e motivos) expostas
no art. 59, caput, Código Penal, é em decorrência de não esta-
rem previamente conceituadas legislativamente e, sobretudo,
pelo fato de, diferentemente das circunstâncias previstas na
segunda e terceira fase, não estarem previamente definidas
em Lei como critérios de aumento ou de diminuição da pena.
Fica, pois, ao critério do juiz, se determinada circunstância
judicial objetiva ou subjetiva prevista no caput do art. 59 do
Código Penal, no caso concreto, será utilizada como critério
de aumento ou de diminuição, aproximando a pena-base do
mínimo ou do termo médio. Exatamente por este motivo são
chamadas circunstâncias judiciais.
Inegavelmente a amplitude das hipóteses (08 circunstân-
cias), notadamente de circunstâncias subjetivas (05 circuns-
tâncias), amplia os espaços de discricionaridade/arbitrarie-
dade, o que, invariavelmente, em direito penal, representa
aumento de punitividade.
Segundo estabelecido pela jurisprudência, após serem
demonstradas probatoriamente e valoradas as circunstân-
cias judiciais como favoráveis, desfavoráveis ou neutras, o
Magistrado quantificaria a pena-base. Para tanto, deve variar
a quantidade entre o mínimo legalmente previsto e o termo
médio, construção pretoriana que significa o ponto de equi-
líbrio entre o mínimo e o máximo da pena. Encontra-se o ter-
mo médio através do cálculo da soma simples das quantida-

156
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

des mínimas e máximas de pena divididas pela metade – p.


ex., no caso do homicídio, o termo médio será o resultado da
soma do mínimo (06 anos) com o máximo (20 anos) de pena
prevista, dividida por 02, ou seja, a pena-base deve variar en-
tre 06 e 13 anos de pena.
Estabelecidos os parâmetros mínimos e máximos, a ju-
risprudência orienta o julgador aos seguintes raciocínios: (1º)
havendo integralidade ou intensa preponderância de circuns-
tâncias favoráveis, a pena-base deve ser fixada ou se apro-
ximar do mínimo; (2º) em caso de integralidade ou intensa
preponderância de circunstâncias desfavoráveis, a pena-base
deve se aproximar do termo médio; e (3º) ocorrendo concurso
de causas favoráveis e desfavoráveis, o julgador deve aplicar
a quantidade de pena a partir da análise e da dosagem da in-
cidência das circunstâncias judiciais tendo como referência a
proporcionalidade e o grau de reprovabilidade indicado pela
ponderação das circunstâncias.
Em relação à forma de cálculo da pena-base, importante
dizer da impossibilidade de fixação matemática de quantida-
des de aumento ou de diminuição de pena a partir da iden-
tificação de incidência das circunstâncias judiciais do art. 59
do Código Penal. Isto porque, em vários casos, se percebe a
tentativa de produzir fórmula mecânica de cálculo da pena,
notadamente nesta primeira fase da pena-base. A ideia que
persegue certa corrente doutrinária e jurisprudencial é a de
produzir fórmula matemática a partir da interpretação exe-
gética das guias e dos indicativos jurisprudenciais, fato que,
objetivamente, induz ao seguinte método:

(1º) no caso do furto simples, p. ex., a pena-base deve


variar entre o mínimo (01 ano) e o termo médio de
02 anos e 06 meses (01 ano mais 04 anos previsto
no máximo dividido por 02);

157
CriminologiaS: Discursos para a Academia

(2º) conforme jurisprudência consolidada, se todas as


circunstâncias judiciais forem favoráveis a pena-
-base deve ser aplicada no mínimo; se todas des-
favoráveis deve aproximar-se do termo médio; se
houver incidência parcial deve haver cálculo pon-
derado;
(3º) em razão de haver 08 circunstâncias judiciais no
art. 59, do Código Penal, cada uma representaria o
valor de 1/8 da diferença entre o mínimo e o termo
médio, p. ex., no caso do furto simples (art. 155, do
Código Penal), cada vetor corresponderia à fração
de um oitavo de 01 ano e 06 meses (diferença entre
o mínimo 01 ano e o termo médio 02 anos e 06 me-
ses), correspondendo a 02 meses e 07 dias9; ou, no
caso de imputação por evasão de divisas (art. 22,
caput, da Lei 7.492/86) a pena-base variaria entre o
mínimo 02 e o termo médio 03 anos, visto o máxi-
mo ser 04 anos, e cada circunstância corresponde-
ria a 01 mês e 15 dias (12 meses da variação entre
mínimo e termo médio divididos pelas 08 circuns-
tâncias). Desta forma o juiz, realizado o cálculo, e
partindo sempre do mínimo em direção ao termo
médio, verificaria a quantidade de circunstâncias
negativas (as positivas mantém ancorada a pena
no mínimo e as ‘neutras’, sem valoração, atuam
favoravelmente), somaria, e calcularia a pena-base
– p. ex., no caso do furto, se apenas os antecedentes
fossem negativos, a pena-base ficaria em 01 ano,
02 meses e 07 dias; no caso da evasão de divisas, se
fossem negativos à culpabilidade, os motivos e as

9 Exclui-se do cálculo, por incidência do art. 11 do Código Penal, as frações de


dia em horas: “desprezam-se, nas penas privativas de liberdade e nas restritivas de
direitos, as frações de dia, e, na pena de multa, as frações de cruzeiro”.

158
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

consequências do delito, a pena-base ficaria apli-


cada em 02 anos, 04 meses e 15 dias.

No entanto esta racionalidade simplificadora não pode


ser aplicada em direito penal e, sobretudo, no processo penal
moderno. Conforme demonstrado, a aplicação da pena inte-
gra a sentença criminal e está vinculada aos princípios consti-
tucionais do devido processo, notadamente aos princípios da
motivação fática e jurídica, nos quais se observam a vincula-
ção do juiz ao direito e à prova produzida.
O equívoco do raciocínio exposto é a geração de modelo
de prova tarifada, típico dos sistemas processuais inquisiti-
vos10, em total afronta ao sistema da livre apreciação delinea-
do pela Constituição (art. 5º, LV11) ao determinar a motivação
das decisões e o contraditório. Segundo o art. 155 do Código
de Processo Penal, “o juiz formará sua convicção pela livre apre-
ciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo
fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informati-
vos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não
repetíveis e antecipadas”.
Desta forma, o Magistrado, no caso concreto, tendo em
vista a peculiaridade das circunstâncias, pode estabelecer cri-
térios de preponderância, de valoração diferenciada de uma

10 Recorde-se que “no processo penal inquisitório a insuficiência de provas e sua


conseqüente dubiedade não gerava imperiosa absolvição; mas, ao contrário, o mero
indício equivalia a uma semi-prova, que comportava um juízo de semi-culpabilidade
e uma semi-condenação”, (Carvalho, Pena e Garantias, p. 33) próprio do sistema
de tabelamento probatório. Quanto ao regime probatório da Inquisição e
a formulação de juízos de semi-culpabilidade pelos indícios, verificar
Foucault, Vigiar e Punir, pp. 11-61; sobre o modelo de prova tarifada como
estruturante do sistema inquisitivo, conferir, dentre outros, Gomes Filho,
Direito à Prova no Processo Penal, pp. 22-25
11 “Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são
assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”

159
CriminologiaS: Discursos para a Academia

ou outra circunstância, sempre vinculada sua opção ao dever de


fundamentar.12 Note-se, inclusive, que o próprio Código Penal,
ao enfrentar o tema do conflito entre circunstâncias agravantes e
atenuantes, entende que as subjetivas devem preponderar sobre
as objetivas, deixando claro não haver paridade ou tarifa entre os
critérios de aumento ou diminuição da pena.13

10.2.2. Pena Provisória e Pena Definitiva

Assim, vencida a etapa de identificação, demonstração,


valoração e cálculo da pena-base, sobre esta o julgador incidi-
rá as circnstâncias legais atenuantes e agravantes (pena provi-
sória) e as causas especiais de aumento e de diminuição (pena
definitiva).
Atenuantes, agravantes, majorantes e minorantes, di-
ferentemente das circunstâncias judiciais, vêm previamente

12 Veja-se, p. ex., entendimento que prevaleceu no Tribunal Regional Federal


da 4ª Região no sentido de que apenas uma circunstância judicial negativa
não tem a possibilidade de elevar a pena-base acima do mínimo legal:
“OMISSÃO DE RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDEN-
CIÁRIAS. PENA-BASE FIXADA NO MÍNIMO LEGAL. PERCENTUAL DE
AUMENTO DA CONTINUIDADE DELITIVA MANTIDO. 1. A culpabilidade
dos réus é a normal ao delito em questão, cuja reprovabilidade social encontra resposta
adequada nas sanções previstas no tipo. 2. Os motivos do ilícito são os inerentes à
espécie de delito, não justificando o aumento da pena. 3. Ainda que as consequências
do crime tenham sido valoradas desfavoravelmente aos réus, na decisão recorrida,
entendo que tal circunstância não pode prejudicá-los, na medida em que o prejuízo
causado à Previdência Social é inerente ao tipo. 4. Penas-bases mantidas no
mínimo legal, ante o reconhecimento de apenas uma circunstância judicial
desfavorável. 5. Em razão do número de infrações praticadas, é razoável fixar-se
a majorante da continuidade delitiva em 1/4, razão pela qual mantém-se as penas
definitivas fixadas na sentença condenatória em 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de
reclusão. 6. Apelação improvida.” (TRF4, ACR 2002.04.01.042792-0, Sétima
Turma, Relator Fábio Bittencourt da Rosa, DJ 30/04/2003).
13 “Art. 67 - No concurso de agravantes e atenuantes, a pena deve aproximar-se do
limite indicado pelas circunstâncias preponderantes, entendendo-se como tais as
que resultam dos motivos determinantes do crime, da personalidade do agente e da
reincidência”.

160
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

valoradas (favoráveis ou desfavoráveis) pelo Legislador, ca-


bendo ao juiz identificá-las na prova produzida durante a
instrução e, posteriormente, aplicá-las conforme as regras de
cálculo das penas provisória e definitiva.
Segundo a jurisprudência, o quantum de aumento ou de
diminuição das atenuantes e agravantes deve girar em torno
de 1/6 da pena aplicada na primeira fase, em vista de ser este
valor o grau mínimo de aumento ou de diminuição previsto
na Legislação penal às majorantes e minorantes. Assim, para
que se estabeleça hierarquia entre as fases e as circunstâncias,
as atenuantes não poderiam diminuir mais que as minorantes
e as agravantes aumentar além do possível às majorantes.
Na terceira fase, além de estarem majorantes e minoran-
tes pré-valoradas, o próprio Legislador determina quantida-
des fixas ou variáveis de aumento ou diminuição, havendo
em alguns casos específicos regras próprias – p. ex., crime con-
tinuado (número de delitos), crime tentado (maior ou menor
probabilidade de dano ao bem jurídico tutelado) entre outras
–, que serão desenvolvidas na análise qualitativa.
Assim, tendo como norte as conclusões apresentadas, reali-
zou-se, segundo a metodologia proposta pelo Código, avaliação
dos critérios de definição da pena nas Cortes Superiores.

10.3. Qualidade de Pena (Regime) e Substitutivos Penais

As terceira e quarta etapas de aplicação da pena dispos-


tas nos incisos do art. 59 do Código Penal referem-se à fixação
da qualidade (regime) de pena (inciso III) e à possibilidade de
substituição da pena privativa de liberdade por outra espécie
de pena (inciso IV).
As regras de definição do regime e as distinções entre as
formas aberta, semi-aberta e fechada estão dispostas no art.

161
CriminologiaS: Discursos para a Academia

33, Código Penal14. O principal critério para definição do re-


gime inicial de cumprimento de pena, bem como a possibili-
dade de aplicação dos substitutivos penais, é objetivo: tempo
de pena fixado pelo juiz. Nota-se, pois, que a arquitetura da
aplicação da pena vincula o regime e os substitutos à quanti-
dade da sanção, motivo pelo qual o processo de dosimetria
ganha relevância. Quantificada pena e não ultrapassados 04
(quatro) anos, o regime inicial de cumprimento será o aberto;
determinada entre 04 (quatro) e 08 (oito) anos, o regime será o
semi-aberto; dosada acima de 08 (anos), o condenado iniciará
o cumprimento em regime fechado.
A exceção ao critério exclusivamente objetivo é a previ-
são de determinação de grau mais severo em caso de reinci-
dência. Assim, em caso de condenado reincidente, o regime
inicial aberto seria convertido para o semi-aberto e o semi-
-aberto para o fechado, conforme determinam as alíneas ‘b’ e
‘c’ do parágrafo segundo do art. 33, Código Penal15.
Em relação à possibilidade de substituição da pena pri-
vativa de liberdade por restritiva de direitos, a Lei 9.714/98
alterou o art. 44, Código Penal, ampliando o requisito objeti-

14 “Art. 33 – A pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semi-aberto


ou aberto. A de detenção, em regime semi-aberto, ou aberto, salvo necessidade de
transferência a regime fechado.
§ 1º - Considera-se: a) regime fechado a execução da pena em estabelecimento de segurança
máxima ou média; b) regime semi-aberto a execução da pena em colônia agrícola,
industrial ou estabelecimento similar; c) regime aberto a execução da pena em casa
de albergado ou estabelecimento adequado.”
15 “Art. 33 (...) § 2º - As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em
forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios
e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso: a) o condenado
a pena superior a 8 (oito) anos deverá começar a cumpri-la em regime fechado; b) o
condenado não reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda a
8 (oito), poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semi-aberto; c) o condenado
não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos, poderá, desde o
início, cumpri-la em regime aberto.”

162
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

vo para 04 (quatro) anos. Desta forma, (a) não sendo imposta


quantidade de pena superior a 04 (quatro) anos, (b) não tendo
sido o crime praticado com violência ou grave ameaça à pes-
soa – ou (c) qualquer que seja a pena, se o delito for culposo
– e (d) preenchendo o condenado os requisitos subjetivos (fa-
vorabilidade das circunstâncias judiciais – culpabilidade, an-
tecedentes, conduta social, personalidade, motivos e circuns-
tâncias), há possibilidade de a pena de prisão ser substituída
por restritivas de direito.
O inciso II do art. 44, Código Penal, exclui a possibili-
dade de substituição da pena aos casos de reincidência em
crime doloso. No entanto o parágrafo terceiro do referido
artigo relativiza esta regra, determinando que “se o conde-
nado for reincidente, o juiz poderá aplicar a substituição, desde
que, em face de condenação anterior, a medida seja socialmente
recomendável e a reincidência não se tenha operado em virtude da
prática do mesmo crime.”
Entende-se, inclusive, que a relativização acerca da favora-
bilidade social da medida atinge o instituto da reincidência e não
apenas sua aplicação residual no caso de penas alternativas.
Neste caso, a aplicação da agravante e a modificação do regime
igualmente poderiam ser excluídas em caso de a medida (não-
-aplicação da circunstãncia de aumento ou determinação de re-
gime mais benéfico) ser socialmente recomendável.
Vencidas as quatro etapas, finalizado o processo de apli-
cação da pena, projetando, em caso de trânsito em julgado da
decisão, sua execução.

163
11.
Critérios de Aplicação da
Pena-Base pelos Tribunais
Superiores no Brasil:
Análise Qualitativa

Conforme exposto, a análise do padrão e/ou da varia-


ção dos critérios de quantificação da pena (art. 59, II c/c art.
68, caput, Código Penal) pelas Cortes Superiores de Justiça no
Brasil seguirá o sistema trifásico delimitado no Código Penal.
O objetivo da investigação é o de verificar qual o conteúdo de
significados atribuídos pelos Tribunais para cada circunstân-
cia de graduação da sanção criminal, quais os conflitos con-
ceituais, quais as dúvidas doutrinárias e quais os eventuais
erros técnicos e os vícios processuais cometidos. A preocupa-
ção central, em face do tema central punitivismo, é a da aná-
lise dos argumentos que possibilitam aos Magistrados elevar
a pena acima do limite mínimo ou a não reduzi-la aquém dos
patamares fixados pelo Legislador.
Durante a apreciação dos julgados que compuseram o
banco de dados foi possível perceber a forma pela qual os
Tribunais entendem as circunstâncias e como preenchem os
conteúdos abertos de sua estrutura normativa. Foi possível,
também, notar importantes dificuldades dos julgadores, seja
nas Cortes em que foram selecionadas as decisões, seja nos
Tribunais Regionais Federais, nos Tribunais dos Estados ou

165
CriminologiaS: Discursos para a Academia

nos juízes singulares que suscitaram o recurso ou a ação de


impugnação.
As situações são bastante específicas e permitem diag-
nóstico preliminar:

(a) dificuldade em definir claramente o significado


(conceito) das circunstâncias;
(b) dificuldade em diferenciar o conteúdo das circuns-
tâncias com os elementos constitutivos do tipo;
(c) dificuldade em diferenciar o conteúdo das cir-
cunstâncias judiciais e das circunstâncias legais;
(d) dificuldade em distinguir argumentos próprios do
juízo de condenação e o grau de reprovabilidade
da conduta;
(e) dificuldade em concretizar as circunstâncias e vin-
cular o juízo às provas válidas produzidas na ins-
trução processual; e
(f) dificuldade em quantificar o peso das circunstân-
cias na dosimetria (cálculo) da pena.

As dificuldades provêm, fundamentalmente, de fatores


derivados da técnica legislativa empregada na elaboração do
sistema de aplicação da pena. O primeiro problema decorre da
assistematicidade da matéria, disposta disjuntivamente no Código.
O segundo é o da complexidade da operação para definição da quan-
tidade de pena – isso sem falar nas demais etapas de definição de
regime e de substituição da privação da liberdade por restrição
de direito ou multa (art. 59, III e IV, Código Penal).
Outrossim, agrega-se terceiro problema, que é o da falta de
harmonia entre a parte geral do Código Penal, reformado em 1984,
e as sanções penais estabelecidas em sua parte especial, originalmen-
te redigida em 1942, mas que, durante todo o século passado,
sofreu reformas pontuais, assistemáticas e não-metódicas. Esta

166
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

situação gera profunda disparidade entre as penas e os bens ju-


rídicos tutelados, dificultando ao intérprete a definição de cri-
térios claros e harmônicos, sobretudo se utilizada metodologia
comparativa entre tipos incriminadores e sanções.
Como quarto problema, enfatiza-se o emprego, desde o
ponto de vista legislativo, de estruturas normativas vagas, im-
precisas, sem definição semântica, de difícil apreensão empírica
e de tipos penais conceituais ou abertos. O emprego de circuns-
tâncias com estas características aumenta de forma superlativa
as possibilidades de equívocos interpretativos e, em última aná-
lise, a abertura dos espaços de discricionariedade judicial apro-
xima, quando não ultrapassa, a fronteira do arbítrio.
A somas de todas estas variáveis aponta processo de
densificação das penas, característico das políticas punitivis-
tas, a partir da violação de garantias penais materiais ou pro-
cessuais constitucionalizadas, como:

(a) violação do princípio da motivação mínima das


decisões, em razão de fundamentação deficiente
ou omissão de fundamentação;
(b) violação do princípio ne bis in idem, pela aplicação
cumulada de circunstâncias elementares do tipo
penal imputado na aplicação da pena, pela aplica-
ção dobrada de circunstâncias judiciais e legais ou
pela aplicação cumulada das próprias circunstân-
cias judiciais de forma que a anterior preencha o
juízo de reprovação da posterior.
(c) violação ao princípio do contraditório, pela utili-
zação de argumentos de impossível refutabilidade
pelas partes para dosar a pena;
(d) violação ao princípio da legalidade, através da uti-
lização de metarregras ou circunstâncias não pre-
vistas em lei para graduar juízo de reprovação;

167
CriminologiaS: Discursos para a Academia

(e) violação do princípio da livre apreciação da prova,


pela aplicação tarifada de circunstâncias a partir
de determinadas regras ou Súmulas;
(f) violação do princípio da isonomia, pela aplicação
tarifada de circunstâncias a partir de determina-
das regras ou Súmulas sem observar critérios sub-
jetivos de preponderâncias;
(g) violação do princípio da secularização, na aprecia-
ção eminentemente moral(ista) das circunstâncias
do delito ou do imputado, reproduzindo modelo
penal de autor.

Fundamental chamar atenção, no entanto, que o trabalho


não tem por objetivo criticar a atuação das Cortes Superiores
(STF e STJ) ou do Poder Judiciário, em geral. A propósito, o
que se aponta na pesquisa qualitativa é que normalmente o
próprio Judiciário intervém na correção das violações elen-
cadas, normalmente em decorrência de recursos ou de ações
de impugnação interpostos contra decisões dos Tribunais
Federais ou Tribunais de Justiça dos Estados, que mantiveram
sentenças de juizados singulares – fato que reforça a hipótese
apresentada sobre a diferença de graus de punitivismo entre
as instâncias do Poder Judiciário. Não obstante, registre-se,
haver forte tendência de as Cortes Superiores, em temas mui-
to específicos, manter tradição jurisprudencial de harmonia
constitucional criticável, como será demonstrado.
A questão é que se do ponto de vista dogmático penal
e processual penal o sistema de aplicação da pena é caracte-
rizado pela produção e proliferação de lacunas, de omissões
e de contradições entre as normas que delineiam a forma e o
conteúdo da dosimetria; desde o local da criminologia o diag-
nóstico a que se chega é o de que o resultado concreto deste
modelo produz ampliação das hipóteses criminalizadoras,

168
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

com a potencialização do punitivismo. Se poder é exercício


e os seus vazios são rapidamente preenchidos, os espaços em
branco (lacunas e omissões) e as zonas cinzentas (dúvida e
contradição) presentes no sistema de quantificação de penas,
ao invés de projetarem atuação parcimoniosa dos operadores
judiciais, baseada na cautela em relação à eventual violação
de direitos, geram, ao contrário, condições ideais para inci-
dência desproporcional do potestas puniendi.

11.1. Advertência: Sobre o Conteúdo dos Julgados e os


Critérios da Análise Qualitativa

Os julgados selecionados como decisões de referência para


delimitação dos critérios judiciais de aplicação da pena apre-
sentam conteúdo distinto que pode ser classificado em duas
linhas: (a) decisões que possuem equívocos conceituais des-
de o ponto de vista doutrinário do Direito Penal material ou
padecem de nulidades conforme a compreensão teórica do
Direito Processual Penal; e/ou (b) decisões que projetam conte-
údo conceitual para fixação de guias interpretativas às Cortes
inferiores, adquirindo notória substância doutrinária desde os
fundamentos configuradores da dogmática jurídico-penal.
Importante registrar, porém, que o equívoco conceitual
ou a nulidade processual não são necessariamente produtos
da decisão do Relator do julgado de referência apresentado.
Aliás, de forma oposta, normalmente os Tribunais Superiores
fixam as guias de interpretação a partir da correção das falhas
apresentadas nas decisões dos Tribunais regionais ou dos juí-
zes de primeiro grau de jurisdição.
Ocorre que em razão de a investigação ser direcionada
aos critérios judiciais de aplicação da pena, interessará à análi-
se qualititiva todas as valorações constantes nos acórdãos, ou

169
CriminologiaS: Discursos para a Academia

seja, além da decisão final da Corte Superior, serão expostos


os fundamentos dos juízes singulares ou dos Tribunais locais
que integram o relatório. Neste sentido, determinada referên-
cia das instâncias inferiores pode ser identificada em certo jul-
gado sem que necessariamente o seu conteúdo seja comparti-
lhado pelo Relator ou pela Corte de Julgamento. Constitui-se
como objeto de investigação, portanto, tanto o argumento da
decisão que define o posicionamento do Relator em relação
à matéria discutida como o conjunto de decisões expostas no
relatório do caso.
É possível, pois, que o argumento apresentado pela pes-
quisa indique apenas o conteúdo da sentença de primeiro
grau ou do julgado do Tribunal local que, posteriormente,
apreciado pela Corte Superior, foi mantido ou alterado.
A advertência é importante para que, em caso de leitu-
ra superficial das referências, não se atribua ao Relator(a) do
julgado o posicionamento que se pretende criticar, pois em
muitos casos revela tão-somente a motivação da decisão que
foi reformada.

11.2. Valoração e Conceituação das Circunstâncias


Judiciais

As circunstâncias judiciais estão estabelecidas no art. 59,


caput, do Código Penal, em duas ordens de valoração: circuns-
tâncias judiciais objetivas que dizem respeito aos elementos ex-
ternos do fato-crime (circunstâncias e consequências do crime
e comportamento da vítima) e as circunstâncias judiciais sub-
jetivas que dizem respeito ao autor responsável pela conduta
ilícita (culpabilidade, antecedentes, conduta social, personali-
dade e motivos).

170
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

A investigação permitiu concluir que, por ser esta fase a


de maior prevalência de categorias abertas (fase da quantifi-
cação da pena), na pena-base residem os maiores problemas e
dificuldades judiciais.
Optou-se, metodologicamente, por avaliar isoladamente
a categoria (a) culpabilidade e conjuntamente (b) personalidade
e conduta social e (c) circunstâncias, consequências e motivos. A
eleição das análises conjuntas ocorreu em face de as catego-
rias apresentarem problemas similares relativos à sua nature-
za, objetiva ou subjetiva.
Não houve nenhuma incidência da circunstância compor-
tamento da vítima nos julgados do STF. No STJ foram localizadas
apenas 04 referências sem qualquer relevância para a investi-
gação – “comportamento da vítima em nada contribuiu para a prá-
tica delituosa” (STJ – 5º Turma – Habeas Corpus 72024/DF – Rel.
Min. Laurita Vaz; STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus 92431/DF, Rel.
Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 19/06/2008; STJ – 6ª Turma
– Recurso Especial 658.512/GO, Rel. Min. Hamilton Carvalhido,
j. 25/02/2008; STJ – 6ª Turma - Habeas Corpus 67.710/PE, Rel. Min.
Maria Thereza de Assis Moura, j. 27/03/ 2008).

11.2.1. Dupla Valoração de Circunstâncias: Violação ao


Princípio Ne Bis in Idem

A principal nulidade em relação à fundamentação da


aplicação da pena foi diagnosticada a partir da sobreposição
de circunstâncias, fato caracterizador de bis in idem (dupla va-
loração).
A violação ao princípio da proibição da dupla valoração
(ne bis in idem) pode ser constatada em três planos. Primeiro,
em nível horizontal, entre as categorias de dosimetria, quan-
do ocorre a duplicação de efeitos entre as circunstâncias judi-

171
CriminologiaS: Discursos para a Academia

ciais do art. 59 do Código Penal, ou seja, quando uma circuns-


tância atua como conteúdo de outra e sustenta novo juízo de
reprovação. Segundo, em nível vertical, quando há aplicação
cumulada de circunstâncias judiciais, circunstâncias legais
agravantes ou majorantes e causas especiais de aumento e de
diminuição (majorantes e minorantes). Terceiro, igualmente
no plano vertical, quando ocorre a sobrevaloração de circuns-
tâncias elementares do tipo penal imputado em qualquer das
fases de quantificação da pena.
Os casos mais comuns de bis in idem ocorrem na primei-
ra fase (pena-base), seja pela sobrevalorização de elementares
do tipo (plano vertical) ou pela duplicação de conteúdo entre
as circunsâncias judiciais (plano horizontal).

§ 1º. Ação de Habeas Corpus julgada em abril de 2008 pela


2ª Turma do STF, Rel. Min. Eros Grau, exemplifica ambas as
hipóteses de bis in idem mencionadas acima.

HABEAS CORPUS. PENAL. TRÁFICO DE EN-


TORPECENTES. PENA-BASE. CIRCUNSTÂNCIAS
JUDICIAIS. GRANDE QUANTIDADE DE SUBSTÂN-
CIA ENTORPECENTE.
1. Paciente condenado pela prática do crime de tráfico
de entorpecentes. Grande quantidade de maconha (aproxi-
madamente duzentos quilos). Circunstância que, ao lado da
má conduta social e da propensão ao tráfico de entorpecentes,
justifica a imposição de pena-base acima do mínimo legal.
Ordem denegada. (STF, 2ª Turma, Habeas Corpus nº
93875-2, Min. Eros Grau, 15/04/2008).

No julgamento em primeiro grau, em caso de imputação


de tráfico de entorpecentes, o Magistrado valorou negativa-
mente 05 circunstâncias judiciais para graduar a pena-base
acima do mínimo: culpabilidade, conduta social, personali-

172
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

dade, consequência do crime e maus antecedentes. Valorou a


culpabilidade sustentando que “o acusado atuou com significati-
vo grau de culpabilidade, face ao longo iter que percorreu, revelador
de sua obstinação e insistência na prática do delito”. Ao funda-
mentar conduta social, antecedentes e personalidade afirmou:
“além disso possui péssima conduta social e personalidade voltada à
delinqüência, como aliás revelam seus péssimos antecedentes”. Por
fim, em relação às consequências do crime, sustentou: “não
pode passar despercebida, de outro lado, a significativa quantidade
de maconha apreendida, qual seja, 196kg e 700gr, a ensejar, tam-
bém por essa razão, à luz do art. 37 da Lei Antitóxicos, a elevação
da pena-base, máxime considerando que delitos desse jaez têm sido
responsáveis pela destruição de lares, famílias, bem como têm gera-
do a prática de tantos outros, tais como furto e roubo, constituindo
atualmente o flagelo da humanidade, notadamente na quantidade
acima mencionada, e considerando tratar-se de maconha, ou seja,
entorpecente sabidamente consumido em proporções ínfimas”.
A pena-base foi mantida pelo Tribunal de Justiça de
Mato Grosso do Sul (TJMS) acima do mínimo legal previsto
(03 anos), restando em 06 anos de reclusão e multa de 100
dias-multa. A Suprema Corte manteve a pena-base entenden-
do que esta se encontrava satisfatoriamente fundamentada
nas hipóteses do art. 59 do Código Penal.
Nota-se, no caso, que houve valoração redobrada dos maus
antecedentes criminais, os quais serviram para fundamentar o
juízo negativo da culpabilidade (“obstinação e insistência na
prática do delito”), a conduta social e a personalidade, além dos
próprios antecedentes (“possui péssima conduta social e perso-
nalidade voltada à delinquência, como aliás revelam seus péssimos
antecedentes”).
Outrossim, na análise das consequências do crime, a
decisão incorre em juízo de cunho essencialmente moral, em

173
CriminologiaS: Discursos para a Academia

afronta ao princípio da secularização, confundindo desdo-


bramentos naturais da conduta (elementares do tipo penal)
com as consequências do crime (“delitos desse jaez têm sido res-
ponsáveis pela destruição de lares, famílias, bem como têm gerado a
prática de tantos outros, tais como furto e roubo, constituindo atu-
almente o flagelo da humanidade”).

§ 2º. De forma análoga dois Recursos Ordinários Consti-


tucionais julgados pelo Supremo Tribunal Federal:

DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS


CORPUS. REGIME INICIAL FECHADO. CIRCUNS-
TÂNCIAS SUBJETIVAS DESFAVORÁVEIS. MAUS
ANTECEDENTES, PÉSSIMA CONDUTA SOCIAL.
DENEGAÇÃO.
1. Paciente condenado à pena corporal de 3 (três) anos,
de reclusão, em regime fechado, devido às circunstâncias ju-
diciais desfavoráveis (CP, art. 59).
2. Sentença fundamentada nos maus antecedentes
(condenações transitadas em julgado), personalidade volta-
da ao crime e péssima conduta social.
3. Recurso improvido. (STF, 2ª Turma, Recurso Or-
dinário em Habeas Corpus nº 89000-8/MS, Min. Ellen
Gracie, 24/06/2008).

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS COR-


PUS. EXTORSÃO MEDIANTE SEQUESTRO. DOSI-
METRIA DE PENA. PENA-BASE. MAJORAÇÃO.
FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. ORDEM DENEGADA.
PROGRESSÃO DE REGIME. CRIME HEDIONDO.
POSSIBILIDADE. HABEAS CORPUS DE OFÍCIO.
1. Não merece reparo a sentença na qual o juízo de
primeiro grau fundamenta, de maneira concreta e precisa,
as circunstâncias que ensejaram a fixação da pena-base do
paciente em patamar acima do mínimo legal.
2. Ordem denegada.

174
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

3. O plenário do Supremo Tribunal Federal pronun-


ciou, incidenter tantum, a inconstitucionalidade do óbice
legal à progressão de regime, contido na Lei dos Crimes
Hediondos (HC nº 82.959, Rel. Min. Marco Aurélio).
4. Conforme ficou consignado no mencionado prece-
dente, a declaração de inconstitucionalidade do dispositivo
não significa que o condenado tenha um direito subjetivo
ao ingresso em regime menos gravoso. Apenas se permite
que aquele que se encontre preso pela prática de crime he-
diondo tenha sua situação subjetiva analisada, cabendo ao
juízo competente avaliar se estão presentes os requisitos ne-
cessários à pretendida progressão. Habeas Corpus de ofício
concedido para essa finalidade. (STF, 2ª Turma, Recurso
Ordinário em Habeas Corpus nº 90223-5/RJ, Min.
Joaquim Barbosa, 08/04/2008)

No primeiro caso, o Magistrado de primeiro grau (decisão


mantida em todos os níveis de jurisdição), com base nos ante-
cedentes, fundamenta conduta social e personalidade: “sobre a
conduta social do réu, cumpre considerar seu comportamento junto à
comunidade, tratando-se de cidadão há muito vocacionado ao ilícito,
preferindo viver de rapinas ao labor honesto”; (...) “a sua personali-
dade demonstra ser de indivíduo com intensa inclinação à senda do
crime, com especial predisposição para os crimes contra o patrimônio,
posto que já condenado neste juízo por idêntica prática”.
No segundo, além de os antecedentes (re)fundamen-
tarem juízo sobre personalidade, a categoria periculosidade é
utilizada como metarregra de interpretação: “trata-se, portan-
to, de pessoa de acentuada periculosidade, de personalidade voltada
para o mundo do crime, ganhando a vida mediante a exploração de
uma das modalidades criminosas mais abomináveis que há”.

§ 3º. Nota-se, porém, que apesar de terem sido mantidas


as decisões dos juízes singulares nos casos acima expostoas,

175
CriminologiaS: Discursos para a Academia

os Tribunais têm plena compreensão da impossibilidade de


valorar mais de uma vez a mesma circunstância, como pode
ser visualizado nos seguintes acórdãos do STF e do STJ:

HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSUAL PE-


NAL. EXASPERAÇÃO DA PENA-BASE. GRAVIDADE
ABSTRATA DO DELITO. LESÃO AO ERÁRIO
PÚBLICO. IMPOSSIBILIDADE POR CONSTITUÍREM
ELEMENTARES DO TIPO. SANÇÃO CORPORAL
MITIGADA. REGIME INICIAL ABERTO, FIXADO
COM BASE NO ART. 33, § 2º, C. ORDEM CONCEDIDA.
I - A gravidade abstrata do delito já foi levada em con-
sideração pelo legislador para a cominação das penas míni-
ma e máxima.
II - Nos delitos materiais contra a ordem tributária, a
lesão ao erário público é elementar do tipo.
III- Imprestáveis ambas as circunstâncias, portanto,
para a exasperação da pena-base, que deve ser fixada no mí-
nimo legal.
IV- O regime inicial, à falta de qualquer consideração
desfavorável na sentença, é o aberto, com fundamento no
art. 33, §2°, c, do CP.
V - Ordem concedida. (STF, 1ª. Turma, Habeas
Corpus nº 92274-1/MS, Min. Ricardo Lewandowski,
19/02/2008)

HABEAS CORPUS. PRISÃO DOMICILIAR.


NÃO COMPROVAÇÃO DA IDADE (75 ANOS) DO
PACIENTE. DOENÇA. ALEGAÇÃO FORMULADA
ORIGINARIAMENTE NO PRESENTE HABEAS
CORPUS . SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. DO-
SIMETRIA DA PENA. CONSIDERAÇÃO IN-
DEVIDA DE CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS CO-
MO DESFAVORÁVEIS. AUSÊNCIA DE FUN-
DAMENTAÇÃO.
(...) 3. O julgador deve, ao individualizar a pena,
examinar com acuidade os elementos que dizem respeito ao

176
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

fato, obedecidos e sopesados todos os critérios estabelecidos


no art. 59 do Código Penal, para aplicar, de forma justa e
fundamentada, a reprimenda que seja, proporcionalmente,
necessária e suficiente para reprovação do crime.
4. Não é cabível a adoção de elementares concernentes
ao próprio tipo penal previsto no art. 50, inc. I, e parágrafo
único, incisos I e II, da Lei n.º 6.766/79 - promoção, durante
anos, de venda de frações do imóvel irregular, mesmo dian-
te dos diversos embargos promovidos pela Administração
Municipal ao seu empreendimento imobiliário, e dos even-
tuais prejuízos impostos aos diversos adquirentes dos lotes -,
para fundamentar a exacerbação da pena-base.
5. Habeas Corpus não conhecido. Ordem concedida, de
ofício, para determinar que o Juízo de primeiro grau, manti-
da a condenação, proceda à nova dosimetria das penas, com
a observância da devida fundamentação, e, por conseguinte,
proceda à análise da possibilidade de prisão domiciliar ao ora
Paciente. (STJ, 5ª. Turma, Habeas Corpus n° 95102/RJ,
Min. Laurita Vaz, 08/05/2008)

Desta forma, foi possível perceber, na pesquisa, que resta


demasiado dúbio aos Magistrados a extensão a ser dada ao prin-
cípio ne bis in idem, sobretudo em relação às estruturas típicas
abertas ou imprecisas. Nestes casos, em face do apelo punitivista
e da formação inquisitorial, verifica-se maior tendência à viola-
ção da garantia de proibição da dupla valoração.
§ 4º. Decisão altamente complexa proferida pelo STJ, de-
vido ao grau de profundidade exposto na valoração dos con-
ceitos das circunstâncias judiciais, merece especial destaque.
No julgado várias categorias da pena-base são analisa-
das, com especial cuidado para identificar e sanar as possi-
bilidades de bis in idem. Outrossim, a decisão se destaca pela
posição clara em relação à necessidade de exclusão de juízos
morais na aplicação da pena (argumentos inidôneos) que
acabam preenchendo as circunstâncias judiciais subjetivas,

177
CriminologiaS: Discursos para a Academia

sobretudo. Ademais, conforme o entendimento das Cortes


Superiores, a obrigatoriedade de fundamentação das circuns-
tâncias que agravam a pena é princípio processual configura-
dor de toda a decisão, inclusive no momento da dosimetria.

PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS COR-


PUS. HOMICÍDIO DUPLAMENTE QUALIFICADO. 1.
DOSIMETRIA DA PENA. DUPLA VALORAÇÃO DE
UMA DAS QUALIFICADORAS. UTILIZAÇÃO PARA
QUALIFICAR O DELITO E PARA FIXAR A PENA-BASE
ACIMA DO MÍNIMO LEGAL NA PRIMEIRA ETAPA DE
DOSIMETRIA DA PENA, COMO CIRCUNSTÂNCIA
JUDICIAL DESFAVORÁVEL. 2. CONDUTA SOCIAL.
DESFAVORÁVEL. COMETIMENTO DO PRÓPRIO
DELITO. IMPOSSIBILIDADE. AVALIAÇÃO ÉTICA
DA CONDUTA DO PACIENTE. IMPOSSIBILIDADE.
3. COMPORTAMENTO DA VÍTIMA NEUTRO. VA-
LORAÇÃO EM PREJUÍZO DO ACUSADO. IM-
POSSIBILIDADE. 4. ORDEM CONCEDIDA.
1. Inviável se torna a dupla valoração de qualifica-
doras, tanto para qualificar o delito, quanto para a fixação
da pena-base acima do mínimo legal, na primeira etapa de
dosimetria da pena, sob pena de incorrer-se em bis in idem.
2. A conduta social do agente não pode ser considera-
da desfavorável apenas por conta do cometimento do próprio
delito, assim como considerações de cunho ético e moral de-
vem ser excluídas da avaliação.
3. O comportamento da vítima tachado como neutro
não pode ser valorado como prejudicial ao acusado.
4. Ordem concedida para anular o acórdão que mante-
ve a sentença, de modo a excluir as circunstâncias judiciais
concernentes à culpabilidade, à conduta social e ao compor-
tamento da vítima, por entendê-las fundamentadas com base
em argumentos inidôneos, vedando qualquer consideração
desfavorável com relação a estas circunstâncias, bem como
para determinar ao tribunal a quo que proceda a nova in-
dividualização da pena, fundamentando adequadamente as

178
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

demais circunstâncias (motivo, circunstâncias e consequ-


ências), redimensionando-se a pena apenas de acordo com
estas. (STJ – 6ª Turma - HABEAS CORPUS Nº 67.710/
PE, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. em 27
de março de 2008)

11.2.2. Culpabilidade: Imprecisão Conceitual

§ 5º. Questão visualizada em inúmeros acórdãos e que


merece especial atenção é a forma de conceituação da circuns-
tância culpabilidade.
Em várias sentenças, em diversos níveis de jurisdição, foi
perceptível a utilização de conceitos totalmente distintos. Em
sua maioria os julgados analisados apresentavam a conceitu-
ação utilizada pelo juiz em primeiro grau, aderindo ou modi-
ficando o seu conteúdo.
A pluralidade de conceitos adotados indica claramente
a confusão conceitual sobre a categoria culpabilidade, fato que
requer avaliação específica.
Exemplificativamente são arroladas decisões que ex-
põem as argumentações dos juízes singulares, a partir da crí-
tica ou adesão realizada pelo Tribunal.

“Reprimenda fixada acima do mínimo legal em ra-


zão do modo intensamente reprovável de execução do deli-
to”. (STF, 1ª Turma, Habeas Corpus nº 92956-7/SP, Min.
Cármen Lúcia, 01/04/2008)
“O acusado atuou com significativo grau de culpabili-
dade, face ao longo iter que percorreu, revelador de sua obs-
tinação e insistência na prática do delito”. (STF, 2ª Turma,
Habeas Corpus nº 93875-2, Min. Eros Grau, 15/04/2008)
“Deve ser considerada também como desfavorável ao
réu a alta reprovabilidade da sua conduta” (STF, 2ª Turma,

179
CriminologiaS: Discursos para a Academia

Recurso Ordinário em Habeas Corpus, nº 93855-8/RJ,


Min. Eros Grau, 08/04/2008)

Com igual incidência nas Turmas do STJ:

“Demonstrou culpabilidade de elevado grau de repro-


vabilidade, pois se associou ao um grupo delituoso, tendo
o seu genitor como um dos membros (denunciado Silvio
Amadi), voltado para a prática do tráfico de drogas em
grande quantidade (654.350kg), proveniente do Estado do
Paraná, o que torna extremamente nociva a sua conduta.”
(STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus nº 94.549/DF, Rel. Min.
Felix Fischer, j. em 21/02/08)
“Aumentei a pena privativa de liberdade, em face do
dolo intenso do réu na prática delitiva, reveladora de insen-
sibilidade moral e exacerbada cupidez.” STJ – 5ª Turma –
Habeas Corpus nº 52.558/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, j. em
11/03/08)
“Quanto à culpabilidade, anoto que é alta, eis que
o crime foi cometido com violência contra a pessoa.” (STJ
– 5ª Turma – Habeas Corpus nº 84.050/DF, Rel. Min.
Napoleão Nunes Maia Filho, j. em 11/03/08)
“(...) foi intensa a sua culpabilidade, já que agiu inter-
na e externamente visando resultado final lucrativo (...)”.
(STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus nº 97.447/MG, Rel.
Min. Felix Fischer, j. em 01/04/08)

“A reprovabilidade de sua conduta é de grau intenso


porque subtraiu a vultuosa importância de R$ 356.379,50.”
(STJ – 6ª Turma – AgRg no Agravo de Instrumento nº
916.884/PR, Rel. Min. Nilson Naves, j. em 27 de março
de 2008)
“(...) reconheço alta a culpabilidade do sentenciado,
que, no veredicto do Júri, ceifou a vida da vítima por ‘motivo
torpe’ (visando ao recebimento da recompensa) e sem lhe dei-
xar possibilidades de defesa, pela ação surpreendente.” (STJ

180
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

– 6ª Turma - Habeas Corpus 67.710/PE, Rel. Min. Maria


Thereza de Assis Moura, j. em 27 de março de 2008)
“A culpabilidade é acentuada, tendo em vista a instru-
ção do réu (2o grau completo).” (STJ – 6ª Turma – AgRg
no Recurso Especial 753.419/RS, Rel. Min. Jane Silva
(Desembargadora Convocada do TJ/MG), j. em 29 de
abril de 2008)
“Não resta dúvida que o delinqüir de um policial se
reveste de maior culpabilidade, na medida em que é a mais
crassa quebra da confiança que lhe fora depositada pela
sociedade, que lhe destinou a tão nobre missão de comba-
te ao crime, investindo-o de poder para tanto.” (STJ – 6ª
Turma – Habeas Corpus 37.107/SP – Rel. Min. Hamilton
Carvalhido, j. em 1º de abril de 2008).

A ausência de critérios precisos para valorar a categoria


culpabilidade gera inúmeros vícios (lacunas, contradições,
imprecisões, confusões conceituais), dentre os quais valora-
ções de modus operandi do delito, iter crime, reprovabilidade
intrínseca à conduta, coautoria, dolo, bem jurídico, fim econô-
mico, expressividade da lesão, grau de instrução e atividade
profissional, respectivamente.
Na maioria dos casos há fundamentação da culpabilida-
de com elementos diretamente vinculados à tipicidade (ele-
mentares). Referência expressa a qualificadoras igualmente
emerge da apreciação.

§ 6º. Julgado da 6ª Turma do STJ merece especial destaque:

RECURSO ESPECIAL. CRIME DE SEQÜESTRO.


CONHECIMENTO PELA ALÍNEA “B”. ATO DE GO-
VERNO LOCAL. INEXISTÊNCIA. DIVERGÊNCIA JU-
RISPRUDENCIAL NÃO DEMONSTRADA. OFENSA
AO ARTIGO 619 DO CÓDIGO DE PROCESSO PE-
NAL. OMISSÃO NÃO APONTADA. SÚMULA Nº

181
CriminologiaS: Discursos para a Academia

284/STF. NÃO-CONHECIMENTO. ATIPICIDADE DA


CONDUTA. INEXISTÊNCIA DE DOLO. REEXAME DO
MATERIAL FÁTICO-PROBATÓRIO. VIOLAÇÃO DO
PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL. INOCORRÊNCIA.
AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. COISA
JULGADA. INOCORRÊNCIA. INDIVIDUALIZAÇÃO
DA PENA.
(...) 8. A consciência da ilicitude, a exigibilidade maior
da conduta conforme ao direito e o dolo intenso são induvi-
dosas circunstâncias judiciais, nos próprios da culpabilida-
de, não existindo ilegalidade qualquer a gravar, no particu-
lar, a individualização da pena.
9. A investigação temerária, confessada como motivo
do agir criminoso, diversamente do que entendem os recor-
rentes, é expressão manifesta do autoritarismo que ofende
os valores essenciais do Estado Democrático de Direito,
mormente na perspectiva da liberdade individual, não tendo
cabida sequer cogitar de bons serviços prestados à sociedade.
10. Recurso parcialmente conhecido e improvido. (STJ
– 6ª Turma - Recurso Especial Nº 864.163/RS, Rel. Min.
Hamilton Carvalhido, j. em 1º de abril de 2008)

No relatório são expostos os argumentos que embasam a


circunstância culpabilidade, com especial referência ao dolo:
“no tocante às circunstâncias judiciais de aplicação da pena, leva-
-se em conta a culpabilidade dos acusados, principalmente ao que
se refere a Jackson e Marcelo, os quais tinham plena consciência da
ilicitude do ato praticado, sendo que lhes eram exigidas condutas
bem diversas, principalmente pelo fato de ser o primeiro policial civil
e o segundo ter sido policial militar, tendo agido todos os três de-
nunciados com dolo intenso, ao apanhar a vítima em casa e ficar na
companhia da mesma por horas, ostentando arma de fogo.”

§ 7º. Em julgamento na mesma Turma, decisão explora


com profundidade acadêmica o conceito de culpabilidade,

182
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

em oposição direta à noção empregada anteriormente: “(...)


tida na reforma penal como o fundamento e a medida da responsabi-
lidade penal. Substituiu-se na lei as expressões ‘intensidade do dolo’
e ‘grau de culpa’, com a justificativa de que ‘graduável é a censura
cujo índice, maior ou menor, incide na quantidade da pena’, confor-
me se vê no item 50 da ‘Exposição de Motivos da Lei nº 7.209/84’. O
exame da culpabilidade, quando da dosimetria, constitui, hoje, um
juízo de reprovabilidade da conduta praticada, ou seja, a sua medida,
sendo que alguns autores entendem que ela integra o próprio delito,
não podendo ser considerada como critério de majoração da pena
pelo juízo de censura.” (STJ – 6ª Turma – Habeas Corpus 43.930/
RJ – Rel. Ministra Jane Silva (Desembargadora Convocada do
TJ/MG), j. em 22 de abril de 2008).
De forma análoga descrição encontrada em julgado da
5ª Turma: “como circunstância judicial, a culpabilidade deve ser
analisada em sentido lato, entendida como a reprovação social que o
crime e a autora merecem. Diferente, pois, da culpabilidade elemento
constitutivo do delito, cujos requisitos são a imputabilidade do agen-
te, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta
diversa. Nesta fase da dosimetria, cabe ao juiz avaliar, não mais
a presença dos pressupostos acima declinados, sem os quais não
há crime, mas o grau de censura social que incide sobre a agente
e sobre o fato cometido. Assim é que, nesta oportunidade, classifi-
ca-se a culpabilidade entre intensa, média ou reduzida.” (STJ – 5ª
Turma – Habeas Corpus 64.903/PE, Rel. Min. Laurita Vaz, j.
em 07/02/08)
Nos casos expostos e contrapostos, percebe-se que gran-
de parte da jurisprudência resiste à Reforma de 1984, enten-
dendo, como se o Código Penal ainda adotasse o sistema
causalista, estar dolo localizado na culpabilidade. Com a in-
corporação do finalismo e o deslocamento do dolo (e da ne-
gligência) para a tipicidade, na qualidade de elementares sub-

183
CriminologiaS: Discursos para a Academia

jetivas do tipo sua revaloração na aplicação da pena implica,


necessariamente, bis in idem.

11.2.3. Volatilidade dos Conceitos de Personalidade e


Conduta Social

§ 8º. A volatilidade dos conceitos personalidade e con-


duta social – diferentemente do conceito culpabilidade que,
embora de conteúdo dúbio na jurisprudência, possui defini-
ção precisa na dogmática – possibilita os mais diversos tipos
de interpretação. Exatamente por isso são os conceitos que
mais ampliam o punitivismo judicial, atuando como espaços
abertos para valorações morais e impressões pessoais sobre o
estilo de vida dos réus, ilações acerca dos seus deveres e res-
ponsabilidades éticos, entre outros.
Seguindo a metodologia utilizada em relação ao conceito
de culpabilidade, na sequência são expostas decisões que, no
relatório ou no voto, há tentativa de conceituar a circunstân-
cia personalidade:

“Tendo em vista o modo de execução do delito, pre-


viamente ajustado entre quatro pessoas, com o uso de duas
armas - revólver e faca - e, ainda, utilizando-se do estímulo
à lascívia para atrair a vítima, atitude veemente imoral, de-
monstrando grave falha na formação do seu caráter.” (STF,
1ª. Turma, Habeas Corpus n° 92956-7/SP, Min. Cármen
Lúcia, 01/04/2008)
“Considerando ter o réu personalidade perigo-
sa, atuando conforme já apontado em diferentes Estados
da Federação.” (STF, 2ª. Turma, Recurso Ordinário
em Habeas Corpus n° 92295-3/RJ, Min. Ellen Gracie,
24/06/2008)
“(...) a sua personalidade demonstra ser de indivíduo
com intensa inclinação à senda do crime, com especial pre-

184
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

disposição para os crimes contra o patrimônio, posto que


já condenado neste juízo por idêntica prática”. (STF, 2ª.
Turma, Recurso Ordinário em Habeas Corpus n° 89000-
8/MS, Min. Ellen Gracie, 24/06/2008)
“Trata-se, portanto, de pessoa de acentuada periculo-
sidade, de personalidade voltada para o mundo do crime, ga-
nhando a vida mediante a exploração de uma das modalida-
des criminosas mais abomináveis que há”. (STF, 2ª. Turma,
Recurso Ordinário em Habeas Corpus n° 90223-5/RJ,
Min. Joaquim Barbosa, 08/04/2008)

De igual forma decisões no STJ:

“(...) apresentarem personalidades distorcidas e com-


prometidas com os valores deletérios da continuidade do
comportamento punível” (STF, 5ª. Turma, Habeas Corpus
n° 92956-7/SP, Min. Cármen Lúcia, 01/04/2008).
“(...) a sua personalidade, com tenra idade é de índo-
le destemida e ousada, em face da quantidade de droga que
transportou e escoltou, passando por quatro Estados da
Federação (Paraná, São Paulo, Minas Gerais e Goiás) com
desdém para com as instituições públicas legalmente consti-
tuídas.” (STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus nº 94.549/DF,
Rel. Min. Felix Fischer, j. em 21/02/08)
“Pelo fato de já ter sido condenado, responder a outras
ações penais e voltar a delinqüir demonstra personalidade com-
prometida com o ilícito” (STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus nº
90.513/DF, Rel. Min. Laurita Vaz, j. em 26/02/08)
“(...) devem ser lembradas as qualidades morais do ape-
nado, a sua boa ou a má índole, o sentido moral do crimino-
so, bem como sua agressividade e o antagonismo em relação
à ordem social e seu temperamento. Também não devem ser
desprezadas as oportunidades que o réu teve ao longo de sua
vida e consideradas em seu favor uma vida miserável, redu-
zida instrução e deficiências pessoais que tenham impedido
o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade. Cabe
lembrar que não se pode considerar de má personalidade

185
CriminologiaS: Discursos para a Academia

quem possui inquéritos e processos em andamento, conforme


iterativas decisões dos Tribunais.” (STJ – 6ª Turma – Habeas
Corpus 43.930/RJ – Rel. Min. Jane Silva (Desembargadora
Convocada do TJ/MG), j. 22/04/ 2008).
“(...) personalidade voltada à prática de condutas deli-
tivas, conforme se infere da folha de antecedentes criminais
(fls. 97/105).” (STJ – 6ª Turma - Habeas Corpus 54.616/RJ,
Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 22/04/2008)
“(...) que demonstra o réu a personalidade violenta,
haja vista o seu especial apreço por armas de fogo” (STJ –
6ª Turma - Recurso Especial 658.512/GO, Rel. Min.
Hamilton Carvalhido, j. 25/02/2008)

Na maioria dos casos a valoração negativa é derivada de


juízos essencialmente morais ou possui notória vinculação
aos antecedentes e/ou habitualidade delitiva. Em casos extre-
mos, as decisões imputam graus de periculosidade, dado que,
tecnicamente, determinaria a ausência de reprovabilidade do
agente, por ser este elemento (periculosidade) fundamento de
aplicação de medida de segurança – diferentemente da culpa-
bilidade, fundamento de aplicação das penas.
Em inúmeros casos foi perceptível nos relatórios das de-
cisões a fusão das circunstâncias personalidade e conduta so-
cial ou destas com os antecedentes, reforçando a hipótese de
alta incidência de dupla valoração dos elementos de aplicação
da pena:

“(...) além disso possui péssima conduta social e per-


sonalidade voltada à delinqüência, como aliás revelam seus
péssimos antecedentes.” (STF, 2ª. Turma, Habeas Corpus
n° 93875-2, Min. Eros Grau, 15/04/2008)
“No que diz respeito à sua conduta social e personali-
dade, verifica-se a contumácia na prática de delitos contra o
patrimônio – especificamente envolvendo aparelhos de som
de veículos –, afeição à criminalidade para produzir o seu

186
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

sustento, vivência em completo descaso com a Justiça; igno-


ra o comando legal e não valoriza o sagrado direito à liberda-
de.” (STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus nº 95.022/MS, Rel.
Min. Arnaldo Esteves Lima, j. em 11/03/08)

Neste aspecto, recente súmula do STJ impede, igualmen-


te, que inquéritos policiais e processos penais sem trânsito em
julgado sejam valorados na pena-base como personalidade
negativa, conforme alguns Tribunais locais estavam susten-
tando: “é vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais
em curso para agravar a pena-base” (Súmula 444).

§ 9º. Não diferem as valorações relativas à conduta social.

“(...) condutas sociais marginais, mas sem prejuízo


de exibirem uma audácia e uma agressividade ímpares.”
(STJ – 5ª Turma – Agravo Regimental em Agravo de
Instrumento nº 87.896/RJ, Rel. Min. Arnaldo Esteves
de Lima, j. em 10/06/08)
“(...) a sua conduta social sofre restrição na prova
colhida, haja vista que teve diversas passagens pela polícia
e respondeu a processos em outras Varas (...)”. (STJ – 5ª
Turma – Habeas Corpus nº 97.447/MG, Rel. Min. Felix
Fischer, j. em 01/04/08)

§ 10º. No entanto duas decisões do STJ merecem desta-


que em face do seu caráter didático e da séria discussão acerca
da ilegitimidade de o Judiciário realizar valorações eminente-
mente morais sobre os denunciados:

PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS COR-


PUS. HOMICÍDIO DUPLAMENTE QUALIFICADO. 1.
DOSIMETRIA DA PENA. DUPLA VALORAÇÃO DE
UMA DAS QUALIFICADORAS. UTILIZAÇÃO PARA
QUALIFICAR O DELITO E PARA FIXAR A PENA-BASE

187
CriminologiaS: Discursos para a Academia

ACIMA DO MÍNIMO LEGAL NA PRIMEIRA ETAPA DE


DOSIMETRIA DA PENA, COMO CIRCUNSTÂNCIA
JUDICIAL DESFAVORÁVEL. 2. CONDUTA SOCIAL.
DESFAVORÁVEL. COMETIMENTO DO PRÓPRIO
DELITO. IMPOSSIBILIDADE. AVALIAÇÃO ÉTICA
DA CONDUTA DO PACIENTE. IMPOSSIBILIDADE.
3. COMPORTAMENTO DA VÍTIMA NEUTRO. VA-
LORAÇÃO EM PREJUÍZO DO ACUSADO. IM-
POSSIBILIDADE. 4. ORDEM CONCEDIDA.
1. Inviável se torna a dupla valoração de qualifica-
doras, tanto para qualificar o delito, quanto para a fixação
da pena-base acima do mínimo legal, na primeira etapa de
dosimetria da pena, sob pena de incorrer-se em bis in idem.
2. A conduta social do agente não pode ser considera-
da desfavorável apenas por conta do cometimento do próprio
delito, assim como considerações de cunho ético e moral de-
vem ser excluídas da avaliação.
3. O comportamento da vítima tachado como neutro
não pode ser valorado como prejudicial ao acusado.
4. Ordem concedida para anular o acórdão que mante-
ve a sentença, de modo a excluir as circunstâncias judiciais
concernentes à culpabilidade, à conduta social e ao compor-
tamento da vítima, por entendê-las fundamentadas com base
em argumentos inidôneos, vedando qualquer consideração
desfavorável com relação a estas circunstâncias, bem como
para determinar ao tribunal a quo que proceda a nova in-
dividualização da pena, fundamentando adequadamente as
demais circunstâncias (motivo, circunstâncias e consequ-
ências), redimensionando-se a pena apenas de acordo com
estas. (STJ – 6ª Turma – Habeas Corpus 67.710/PE, Rel.
Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. em 27/03/2008)

Na declaração de voto, a Relatora argumenta: “(...) enten-


do que a atribuição de conduta social desfavorável ao paciente em
razão de ter esta sido ‘manchada pelo evento que gerou o processo,
dando péssimo exemplo à sociedade’ não procede, dado que a condu-
ta social deve ser avaliada fora do contexto do próprio delito, já que,

188
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

do contrário, toda conduta social seria avaliada desfavoravelmente


em caso de condenação, o que não é intuito do legislador, que pro-
curou avaliar se o paciente tinha à época do cometimento do delito
uma conduta social boa, como se portava no ambiente de trabalho,
e sua relação com a família, etc. (...) Pelo mesmo motivo, o ‘péssimo
exemplo dado à sociedade’ não constitui argumento idôneo para ava-
liar a conduta social do paciente como sendo ruim. Aliás, qualquer
avaliação ética ou moral deve ser afastada deste processo de fixação
da pena, pois não se pode exigir de qualquer pessoa que dê um bom
exemplo à sociedade, cobrando-se do cidadão em geral apenas que se
omita do cometimento de condutas criminosas.”
Sobre a diferença conceitual entre conduta social e ante-
cedentes criminais:

PENAL – HABEAS CORPUS – PENA BASE


EXACERBADA – CONSIDERAÇÃO DE UM MESMO
FATO PARA ANALISAR CIRCUNSTÂNCIAS JUDI-
CIAIS DIVERSAS – ATENUANTE DA CONFISSÃO
ESPONTÂNEA CONSIDERADA PARA A CONDE-
NAÇÃO – NECESSIDADE DA REDUÇÃO DA PENA
PELA ATENUANTE GENÉRICA – REGIME DE
CUMPRIMENTO DE PENA – RÉU REINCIDENTE
– ALGUMAS CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS DES-
FAVORÁVEIS – ORDEM CONCEDIDA PARA RE-
CONHECER A CONFISSÃO ESPONTÂNEA E, DE
OFÍCIO MODIFICAR A PENA BASE E A FINAL.
1- A conduta social não se confunde com os antece-
dentes criminais; a primeira se refere aos antecedentes so-
ciais e o segundo se refere a condenações referentes a fatos
criminais anteriores ao que se examina e resultantes de deci-
são transitada em julgado.
2- Não se pode tomar um mesmo fato mais de uma vez
para considerá-lo em diversas circunstâncias judiciais.

189
CriminologiaS: Discursos para a Academia

3- Se a sentença considera as declarações do réu para


a condenação, impõe-se à redução da pena pela atenuante
genérica.
4- Ordem concedida para reconhecer a atenuante da
confissão espontânea e, de ofício para reestruturar a pena
base e a final. (STJ – 6ª Turma – Habeas Corpus nº 98.284/
SP, Rel. Min. Jane Silva, j. em 17/04/08)

Ambos os acórdãos estabelecem importantes parâme-


tros para o fechamento das lacunas existentes nos critérios
utilizados para valoração de antecedentes e conduta social.
§ 11º. Em relação à necessidade de demonstrabilidade
empírica da circunstância personalidade, a partir de referên-
cia à prova colhida na instrução, recente decisão do STF é pa-
radigmática:

DIREITO PENAL. INDIVIDUALIZAÇÃO DA


PENA. FIXAÇÃO DA PENA. CONDUTA SOCIAL.
PERSONALIDADE DO RÉU. CONSEQUÊNCIAS DO
CRIME. NECESSIDADE DE MOTIVAÇÃO.
1. Ação Penal. Condenação. Sentença condenatória.
Pena. Individualização. Circunstâncias judiciais desfavo-
ráveis. Conduta social negativa. Passagens pela polícia.
Processos penais sem condenação. Não caracterização. A
existência de inquéritos ou processos em andamento não
constitui circunstância judicial desfavorável.
2. Ação Penal. Condenação. Sentença condenatória.
Pena. Individualização. Circunstâncias judiciais desfavo-
ráveis. Personalidade do agente voltada para o crime. Base
empírica. Inexistência. Não caracterização. Desajudada ou
carente de base factual, é ilegal a majoração da pena-base
pelo reconhecimento da personalidade negativa do agente.
3. Ação Penal. Condenação. Sentença condenatória. Pena.
Individualização. Circunstâncias judiciais. Conseqüências
do delito. Elevação da pena-base. Idoneidade. Fixação no aci-
ma do dobro do mínimo legal. Abuso do poder discricionário

190
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

do magistrado. Inteligência do art. 59 do CP. HC concedido,


em parte, para redimensionar a pena aplicada ao paciente. É
desproporcional o aumento da pena-base acima do dobro do
mínimo legal tão-só pelas conseqüências do delito.” (STF –
2ª Turma – Habeas Corpus nº 97.400 - Rel. Min. Cezar
Peluso, j. em 02/02/10).

191
12.
Problemas na Aplicação da
Pena Provisória (Atenuantes
e Agravantes) pelos Tribunais
Superiores no Brasil:
Análise Qualitativa

Na fase de aplicação da pena provisória, dois temas obti-


veram especial relevância: aplicação de atenuantes abaixo do
mínimo legal e (in)constitucionalidade da agravante da rein-
cidência.
As ações e os recursos que foram propostos ao STF e STJ
advieram, em sua integralidade, do Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul (TJRS), mais especificamente da 5ª Câmara
Criminal, reconhecida nacionalmente pela postura garantista
de resistência ao punitivismo.

12.1. Aplicação de Atenuantes Abaixo do Mínimo


Legal

§ 12º. O tema, pacificado na jurisprudência nacional após


a edição da Súmula 231 do STJ (“a incidência da circunstância
atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo
legal”), retorna ao debate nacional após constantes manifesta-
ções do TJRS.

193
CriminologiaS: Discursos para a Academia

Interessantes decisões do STJ apontam os motivos pelos


quais haveria impossibilidade de aplicação de pena abaixo do
mínimo legal.

HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSUAL PENAL.


APRECIAÇÃO DE CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS
QUE DEPENDE DE EXAME APROFUNDADO DE
PROVAS. NÃO CONHECIMENTO. CIRCUNSTÂNCIA
ATENUANTE. ALEGAÇÃO DE QUE A PENA PODE
SER FIXADA ABAIXO DO MÍNIMO COMINADO.
TESE CONTRÁRIA À JURISPRUDÊNCIA DESTE
SUPREMO TRIBUNAL. PRECEDENTES. HABEAS
CORPUS INDEFERIDO.
1. A análise das circunstâncias judiciais, no caso, de-
pende de exame aprofundado do contexto probatório, o que é
vedado na estreita via do Habeas Corpus.
2. Impossibilidade de que a pena venha a ser fixada,
por conta de reconhecimento de circunstância atenuante, em
patamar inferior ao mínimo legal.
3. A segurança jurídica penal não se revela apenas na
segura descrição típica, mas também na previsibilidade das
sanções.
4. Função preventiva da sanção que vem expressa no
art. 59, caput, in fine, do Código Penal.
5. Impetração conhecida em parte e indeferida na parte
conhecida. (STF, 1ª Turma, Habeas Corpus n° 93455-2/RS,
Min. Ricardo Lewandowski, 13/05/2008)

Na decisão os Ministros adotam o entendimento acerca


da impossibilidade de aplicação da pena abaixo do mínimo
na segunda fase do método de dosimetria sob dois argumen-
tos: (a) ruptura com a segurança jurídica; (b) enfraquecimento
da função de prevenção geral da pena criminal.

194
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

Sustentam que “a fixação da pena em limite abaixo do mínimo


legal, tendo em conta a simples apreciação de circunstâncias, cumpre
ressaltar, colocaria também em xeque a segurança jurídica. É que, no
Direito Penal, este princípio exterioriza uma dupla garantia: de um
lado coloca-se a inequívoca descrição típica, a qual permite que toda
a sociedade tenha conhecimento da conduta vedada pela lei penal. De
outro, ela se completa mediante a clara descrição da sanção que deve
ser aplicada àquele que pratica um delito. Acrescento, ademais que,
presentes todos os elementos típicos na conduta, a aplicação de uma
sanção abaixo do mínimo legal poderia levar ao enfraquecimento de
uma de suas principais funções, qual seja, a da prevenção da prática
de condutas criminosas.”
No mesmo sentido: STF, 1ª Turma, Habeas Corpus n°
92742-4/RS, Min. Menezes Direito, 04/03/2008; STF, 2ª. Turma,
Habeas Corpus nº 93908-2/RS, Min. Eros Grau, 01/04/2008;
STF, 1ª Turma, Habeas Corpus nº 94234-2/RS, Min. Ricardo
Lewandowski, 20/05/2008; STF, 2ª Turma, Habeas Corpus nº
92926-5/RS, Min. Ellen Gracie, 27/05/2008; STF, 1ª Turma,
Habeas Corpus nº 94684-4/RS, Min. Carlos Britto, 17/06/2008;
STF, 1ª Turma, Habeas Corpus nº 94365-9/RS, Min. Menezes
Direito, 17/06/2008STF, 2ª Turma, Habeas Corpus nº 93141-3/
RS, Min. Ellen Gracie, 24/06/2008.
No STJ, corte de origem da Súmula 231, o argumento
acerca da possibilidade de aplicação da pena provisória abai-
xo do mínimo é naturalmente rechaçado, sendo a integralida-
de dos julgados que admitem esta possibilidade reformada.

§ 13º. Em julgados sobre o mesmo tema, além dos argu-


mentos expostos acima, é invocado terceiro motivo, segundo
o qual se admitida pena provisória aquém do mínimo restaria
aberta a possibilidade para que o Juiz aplicasse sanções além

195
CriminologiaS: Discursos para a Academia

do máximo, situação que na concepção dos julgadores viola-


ria a legalidade penal.

HABEAS CORPUS. PENAL. APLICAÇÃO DA


PENA. CIRCUNSTÂNCIA ATENUANTE. IMPOS-
SIBILIDADE DE FIXAÇÃO DA PENA ABAIXO DO
MÍNIMO LEGAL. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO
CRITÉRIO DE EXASPERAÇÃO DA PENA PREVISTO
NO ROUBO CIRCUNSTANCIADO PELO CONCURSO
DE AGENTES PARA O FURTO QUALIFICADO.
IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES.
1. Como assentado em precedentes da Suprema Corte,
a presença de atenuantes não pode levar a pena a ficar abaixo
do mínimo, e a de agravantes também não pode levar a pena
a ficar acima do máximo previsto no tipo penal básico ou
qualificado.
2. Não é possível a aplicação, por analogia, do critério
de exasperação da pena previsto no roubo circunstanciado pelo
concurso de agentes (1/3 sobre a pena de roubo simples) para
o furto qualificado em razão da norma expressa no §4° do art.
155 do Código Penal. A analogia pressupõe, para o seu uso,
uma lacuna involuntária (art. 4° da LICC), ausente no caso.
3. Habeas Corpus denegado. (STF, 1ª Turma, Habeas
Corpus nº 93071-9/RS, Min. Menezes Direito, 18/03/2008)

Na declaração de voto o argumento aparece em toda sua


intensidade: “uma característica fundamental das circunstâncias
judiciais, atenuantes e agravantes, é a de que sua aplicação deve
estar sempre dentro dos limites mínimo e máximo da pena abstrata-
mente cominada. Assim, a presença de atenuantes não pode levar a
pena a ficar abaixo do mínimo, e a de agravantes também não pode
levar a pena a ficar acima do máximo previsto no tipo penal básico
ou qualificado.” Decisão idêntica: STF, 1ª Turma, Habeas Corpus
nº 90659-1/SP, Min. Menezes Direito, 12/02/2008.

196
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

Em julgamento de outro Habeas Corpus, é invocado o ar-


gumento da sensação de impunidade se houvesse a possibi-
lidade de o Magistrado diminuir a pena abaixo do mínimo
fixado legislativamente: (...) A tese sustentada pela defensoria
Pública, caso seja acolhida, possibilitará o surgimento de situações
esdrúxulas. Dela poderia resultar, por exemplo, a imposição de pena
irrisória para condenados por crimes graves, o que conduziria à sen-
sação de impunidade.” (STF, 2ª Turma, Habeas Corpus n° 94354-
3/RS, Min. Eros Grau, 29/04/2008)

12.2. (In)Constitucionalidade da Agravante da


Reincidência

Embora haja referência histórica1 e a temática sobre a in-


constitucionalidade da agravante ter espaço privilegiado na
doutrina penal latino-americana de inspiração criminológica
crítica,2 o debate nunca havia sido proposto no espaço juris-
dicional.
A partir da posição fixada em 1999 pela 5ª Câmara Cri-
minal do TJRS,3 compartilhada posteriormente pela 6ª Câmara

1 Na história do Direito Penal, o estatuto penal decorrente da Riforma della


Legislazione Criminale Toscana de 1786 estabelecia, em seu parágrafo 57, que,
após executada a sanção imposta pela prática de conduta descrita como
crime, as pessoas “não poderão ser consideradas como infames, para nenhum
efeito, nem ninguém poderá jamais reprovar-lhes por seu delito passado, que deverá
se considerar plenamente purgado e expiado com a pena sofrida”.
2 Carvalho & Carvalho, Aplicação da Pena e Garantismo, pp. 61-70; Cernicchiaro,
Questões Penais, p. 221/2; Copetti, Direito Penal e Estado Democrático de Direito,
p. 194; Karam, Aplicação da Pena: por uma nova atuação da justiça criminal, p. 125;
Streck, Tribunal do Júri: simbolos e rituais, p. 66; Maia Neto, Direitos Humanos
do Preso, p. 147; Santos, Direito Penal: a nova parte geral, p. 245; Maier, Derecho
Procesal Penal: fundamentos, p. 644; Zaffaroni, Sistemas Penales y Derechos Humanos
en América Latina, p. 89; Zaffaroni, Tratado de Derecho Penal, p. 360; Zaffaroni,
Reincidência: um conceito do direito penal autoritário, p. 53.
3 “FURTO. CIRCUNSTÂNCIA AGRAVANTE. REINCIDÊNCIA – INCONSTI-
TUCIONALIDADE POR REPRESENTAR ‘BIS IN IDEM’. VOTO VENCIDO.

197
CriminologiaS: Discursos para a Academia

e 3ª Turma da mesma Corte,4 o debate atingiu os Tribunais


Superiores.

§ 14º. No STF a questão tem sido discutida e os posicio-


namentos são pela constitucionalidade do instituto.

HABEAS CORPUS. PENAL. ROUBO CONSU-


MADO OU TENTADO. CONTROVÉRSIA. AUSÊNCIA
DE IDENTIDADE DE SITUAÇÃO FÁTICA COM
PRECEDENTE DESTA CORTE. REINCIDÊNCIA BIS
IN IDEM. NÃO CONFIGURAÇÃO. FIXAÇÃO DA
PENA ABAIXO DO MÍNIMO LEGAL. VEDAÇÃO. 1.
O crime de roubo consuma-se com a verificação de que, ces-
sada a clandestinidade ou a violência, o agente tenha tido a
posso da coisa subtraída, ainda que esta tenha sido retomada
logo em seguida por perseguição imediata.
2. Invocação de precedente desta Corte, firmado no
HC n. 88.259, em que foi reconhecido o crime de roubo
tentado e não o delito de roubo consumado. Inocorrência
de identidade de situação fática: no HC invocado o agente
subtraiu um passe de ônibus utilizando-se de arma de brin-
quedo. Considerou-se a particularidade de ter sido ele todo o
tempo monitorado por policiais que se encontravam no local
do crime. No caso sob exame os bens subtraídos permanece-
ram com o paciente, ainda que por pouco tempo. As vítimas
chamaram policiais que passavam pelo local, quando já ocor-
rido o roubo. A ação policial foi concomitante ao roubo, no
primeiro caso; posterior, no segundo.

NEGARAM PROVIMENTO AO APELO DA ACUSAÇÃO POR MAIORIA”


(Apelação Crime no. 699291050, 5a. Câmara Criminal TJRS, Rel. Amilton
Bueno de Carvalho, j. em 11.09.1999)
4 Julgados nº 70001004530 e 70001014810 (Apelação-Criminal, 6ª Câmara
Criminal TJRS, Rel. Des. Sylvio Baptista) e nº 70000916197 (Embargos
Infringentes, 3º Grupo Criminal TJRS, Rel. Des. Paulo Moacir Aguiar Vieira)

198
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

3. O reconhecimento de reincidência não configura


bis in idem. O recrudescimento da pena imposta resulta da
opção do paciente em continuar delinqüindo. Precedentes.
4. A pena cominada para o tipo penal não pode ficar
aquém do mínimo legal.
5. Ordem denegada. (STF, 2ª Turma, Habeas Corpus
nº 92203-1/RS, Min. Eros Grau, 20/05/2008)

Em caso análogo, contra a alegação de ilegalidade do re-


conhecimento da reincidência, por traduzir bis in idem, o STF
decidiu que “o recrudescimento da reprimenda imposta resulta da
opção do paciente em continuar delinqüindo”. (STF, 2ª. Turma,
Habeas Corpus n° 93620-2/RS, Min. Eros Grau, 08/04/2008)

§ 15º. Embora o entendimento seja de aplicação unâni-


me, foi possível verificar tendência à adesão da tese da in-
constitucionalidade pela Min. Carmen Lúcia: “não desconheço
a crítica acirrada de parte da doutrina, que inspirada por alguns dos
princípios orientadores do Direito Penal, notadamente pelo repúdio
do denominado direito penal do autor, defende ser inadmissível o
agravamento obrigatório da pena em razão da reincidência. A tese
de ineludível fascínio, jamais obteve, contudo, o beneplácito da ju-
risprudência deste Supremo Tribunal, que sempre reputou válida a
fixação daquela agravante, reconhecendo, inclusive, que, ao contrá-
rio do que decido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, se
justificaria o ‘recrudescimento da pena imposta ao paciente’ em ra-
zão da reincidência, pois isto resultaria de sua ‘opção por continuar
a delinqüir’ (...) Assim, rendo-me, por ora, à jurisprudência consoli-
dada neste Supremo Tribunal.” (STF, 1ª Turma, Habeas Corpus n°
93969-4/RS, Min. Cármen Lúcia, 22/04/2008)

199
13.
Aplicação da Pena Definitiva pelos
Tribunais Superiores no Brasil:
Análise Qualitativa

Foi possível perceber na pesquisa que conforme o pro-


cesso de aplicação da pena vai se aproximando da quanti-
ficação final, os temas de confronto e lacuna vão diminuin-
do. Este fato fornece importantes elementos para compre-
ensão dos problemas causados pelas tipificações abertas na
vida cotidiana dos operadores do direito, cujos efeitos são
diretamente projetados nas pessoas que respondem os pro-
cessos criminais.
Dentre os principais debates avaliados destacam-se: (a)
quantificação da tentativa; (b) quantificação e reconhecimento
de continuidade delitiva ou concurso material; e (c) (des)pro-
porcionalidade do § 4º, art. 155 do Código Penal.

13.1. Quantificação da Minorante da Tentativa

§ 16º. A 5ª Turma do STJ em dois casos analisou a ques-


tão da quantidade de pena a ser aplicada quando houvesse
incidência da tentativa, causa especial de diminuição de pena
prevista no parágrafo único do art. 14 do Código Penal. A
propósito, importante frisar que a definição de critérios para
quantificação é tema fundamental nos casos de majorantes ou
minorantes variáveis.

201
CriminologiaS: Discursos para a Academia

PENAL. RECURSO ESPECIAL. ESTELIONATO.


DOSIMETRIA DA PENA. VIOLAÇÃO DO CRITÉRIO
TRIFÁSICO. TENTATIVA. REDUÇÃO MÍNIMA SEM
FUNDAMENTAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO
PROVIDO.
1. É nula a dosimetria da pena que não atende ao dis-
posto nos arts. 59 e 68 do Código Penal, sendo a fixação
da pena-base realizada em desacordo com o critério trifásico,
em virtude da consideração da agravante da reincidência em
momento inadequado.
2. Na ocorrência de crime tentado, a lei penal faculta
ao julgador aplicar uma redução maior ou menor da pena, a
depender do iter criminins percorrido. Assim, quanto mais
a ação delituosa se aproximar da consumação, menor será a
redução imposta e vice-versa.
3. Hipótese em que o Tribunal de origem não se pro-
nunciou de forma clara e precisa sobre o iter criminis percor-
rido e sua relação com a redução operada pelo reconhecimen-
to da tentativa, asseverando apenas que a pena seria dimi-
nuída de 1/3 em razão da forma tentada do delito, em franca
violação ao art. 14, II, do Código Penal e aos postulados da
individualização da pena e da motivação dos atos decisórios.
4. Recurso provido para anular a sentença e o acórdão
impugnado no tocante à dosimetria da pena, a fim de que
outra seja realizada, com observância do disposto nos arts.
14, II, 59 e 68 do Código Penal. (STJ - 5ª Turma – Recurso
Especial 564858/RO, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima,
J. em 08/05/2008).

RECURSO ESPECIAL. PENAL. CRIME DE FUR-


TO. TENTATIVA. CONTRADIÇÃO INEXISTENTE.
ITER CRIMINIS PERCORRIDO. CIRCUNSTÂNCIAS
JUDICIAIS DESFAVORÁVEIS DO ART. 59 DO CÓ-
DIGO PENAL. AUSÊNCIA DE MOTIVAÇÃO. DE-
CLARAÇÃO DE OFÍCIO DA EXTINÇÃO DA PU-

202
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

NIBILIDADE ESTATAL. OCORRÊNCIA DA PRES-


CRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA.
1. A contradição, sanável por aclaratórios, é a incoe-
rência entre afirmações atuais e anteriores dentro da mesma
decisão.
2. A redução prevista no art. 14, inciso II, do Código
Penal deve corresponder ao trecho do iter criminis percorri-
do pelo Réu.
3. As circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do
Código Penal devem ser fundamentadas para a fixação da
pena-base, o que não ocorreu no caso em apreço.
4. Recurso parcialmente conhecido e, nessa parte,
provido. Concedido Habeas Corpus de ofício para declarar
a extinção da punibilidade estatal pela ocorrência da pres-
crição da pretensão punitiva. (STJ - 5ª Turma – Recurso
Especial 870630/PR, Rel. Min. Laurita Vaz, J. em
26/02/2008).

Duas questões relevantes são debatidas nos julgados: a


exposição do motivo de diminuição mínima e a graduação da
quantidade de pena.
No primeiro caso nota-se a determinação da necessidade
de fundamentação da pena em todas as fases de aplicação,
inclusive na pena definitiva. Assim, tanto em níveis mínimos
de diminuição quanto nos patamares máximos de aumento,
torna-se imprescindível a demonstração dos motivos que le-
varam o juiz ao cálculo final.
O segundo debate é acerca da consolidação do entendi-
mento jurisprudencial e doutrinário que vincula o maior ou
menor aumento ou diminuição à proximidade da lesão ao
bem jurídico provocada pela conduta. Como o fundamento
da punição do crime tentado é o perigo de dano ao bem jurí-
dico, a graduação da pena estaria vinculada ao grau de pro-
babilidade de ofensa.

203
CriminologiaS: Discursos para a Academia

13.2. Critério de Aplicação e de Aumento da Pena do


Crime Continuado

Em relação ao crime continuado, dois temas foram deba-


tidos em acórdãos da 5ª Turma do STJ: (a) aplicação ou não da
regra do art. 71 do Código Penal nos casos de concurso entre
estupro e atentado violento ao pudor; (b) critérios de aumen-
to da majorante, em razão de ser a causa de aumento com
maior variabilidade de pena existente na legislação nacional –
o art. 71 do Código Penal prevê aumento de 1/6 a 2/3 da pena
provisória, diferentemente das demais causas especiais que,
em sua grande maioria, operam variação entre 1/3 a 2/3.

§ 17º. No primeiro caso, em julgamento de caso relativo


aos crimes sexuais, a 5ª Turma admitiu a inexistência do crime
continuado e aplicou a regra do concurso material, impondo
duas penas, uma por cada imputação:

AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ES-


PECIAL. REINCIDÊNCIA. APLICAÇÃO OBRIGATÓRIA.
CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL. ES-
TUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR.
CONTINUIDADE DELITIVA. INADMISSIBILIDADE.
DELITOS DE ESPÉCIES DISTINTAS. CRIMES HE-
DIONDOS, AINDA QUE PRATICADOS SEM
VIOLÊNCIA OU GRAVE AMEAÇA ÀS VÍTIMAS.
PRECEDENTES DESTA CORTE SUPERIOR. AGRAVO
REGIMENTAL DESPROVIDO.
1. As agravantes são de aplicação obrigatória, de sorte
que o Julgador não pode deixar de majorar a pena, existindo
discricionariedade tão-somente no tocante ao quantum a ser
aplicado. Ora, se nem com base nas circunstâncias do caso
concreto e nos elementos inerentes à pessoa do agente pode

204
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

a agravante ser repelida, menos admissível ainda o seu afas-


tamento calcado em considerações de lege ferenda, como o
alegado fracasso teleológico do Estado.
2. A jurisprudência desta Corte fixou que são hedion-
das todas as modalidades de estupro, ainda que simples ou
com violência presumida.
3. Em diversas oportunidades, este Superior Tribunal
já se manifestou pela inexistência de continuidade delitiva
entre os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, pois,
apesar de serem do mesmo gênero, não são da mesma espécie,
possuindo elementos objetivos e subjetivos distintos, não ha-
vendo, dessa forma, homogeneidade de execução, ainda que
praticados contra a mesma vítima.
4. Agravo Regimental desprovido. (STJ – 5ª Turma –
Agravo Regimental em Recurso Especial nº 984.726/RS,
Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. em 03/06/08)

No entanto, em razão da alteração provocada pela Lei


12.015/09, que unificou no mesmo tipo penal (art. 213, Código
Penal) as antigas modalidades de estupro e de atentado vio-
lento ao pudor1, o STF, alterando posição histórica, afastou o
concurso material e admitiu a continuidade delitiva2.

1 “Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção
carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.”
2 “1. O Plenário desta Corte, no julgamento do HC nº 86.238 (Rel. p/ac. Min.
Ricardo Lewandowski, j. 18/06/2009) assentou, contra meu voto, que se não admite
reconhecimento de crime continuado entre os delitos de estupro e de atentado
violento ao pudor, ainda que presentes os requisitos conceptuais que se devem extrair
do art. 71 do Código Penal …”. “Entendo, contudo, que o debate adquiriu nova
relevância com o advento da Lei nº 12.015/2009, que, entre outras alterações no
Título VI do Código Penal, lhe unificou as redações dos antigos arts. 213 e 214 em
um tipo único, verbis: ‘Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave
ameaça, a ter conjunção ‘carnal’ ou a praticar ou permitir que com ele se pratique
outro ato libidinoso. Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos’”.
“Conquanto mantenha o nomen juris, a redação do novo tipo penal ‘descreve e
estabelece uma única ação ou conduta do sujeito ativo, ainda que mediante uma
pluralidade de movimentos. Há somente a conduta do agente de constranger

205
CriminologiaS: Discursos para a Academia

§ 18º. Em relação ao debate sobre a possibilidade de ha-


ver configuração da continuidade delitiva nos casos de crimes
contra a vida, definiu a Corte:

alguém, mediante violência ou grave ameaça’. Ademais, ‘é de vital importância


observar que o constrangimento é dirigido a que a vítima pratique ou deixe que
com ela se pratique atos libidinosos, sejam eles de qualquer espécie, seja através
de conjunção carnal, seja através de coito anal, seja através de felação etc., já que
tais modalidades nada mais são do que espécies do gênero ato libidinoso, e, tanto
isso é verdade, que o tipo penal em questão é explícito ao mencionar conjunção
carnal ou outro ato libidinoso, a confirmar, pois, tal afirmação’”. Como se vê, a
alteração legislativa repercute decisivamente no debate. Ora, se o impedimento para
reconhecer a continuidade delitiva entre o estupro e o atentado violento ao pudor
residia tão-somente no fato de não serem crimes da mesma espécie, entendidos, pela
ilustrada maioria, como fatos descritos pelo mesmo tipo penal, tal óbice foi removido
pela edição da nova lei”.
“Pode-se extrair, daí, que o novo tipo penal vai além da mera junção dos tipos
anteriores, na medida em que integra todas as espécies de atos libidinosos praticados
num mesmo contexto fático, sob mesmas circunstâncias e contra a mesma vítima.
Isso significa que a nova lei torna possível o reconhecimento da continuidade delitiva
entre os antigos delitos de estupro e atentado violento ao pudor, quando praticados
nas mesmas circunstâncias, sem prejuízo do entendimento da Corte de reduzir
conceitualmente a figura à identidade de espécie dos crimes.
Nesse sentido, entende Matheus Silveira Pupo, em recentíssimo artigo: ‘[A]
glutinando aqueles dois crimes em um único dispositivo, certamente se terá como
repercussão prática a mudança no entendimento quase pacífico no âmbito dos
Tribunais Superiores, não reconhecendo a existência de crime continuado entre
o antigo estupro e o atentado violento ao pudor, afora as hipóteses de praeludia
coiti, sob o argumento de que não seriam crimes da mesma espécie, ainda que
praticados nas mesmas condições de tempo, lugar e maneira de execução. Afinal,
doravante, o óbice intransponível apontado por esta corrente - tratar-se de
crimes antevistos em tipos diferentes - deixou de existir, pois as duas condutas,
antes autônomas, estão agora tratadas na mesma figura penal. Por ser assim,
quando perpetrados nas mesmas condições de locus, tempus e modus operandi,
nos termos do artigo 71 do Código Penal, deverá ser reconhecida a existência
de crime continuado, quanto às condutas que antes recebiam o nomen iuris de
estupro e de atentado violento ao pudor, hoje contempladas no artigo 213, caput,
da Lei Penal.’”
“2. Está claro, pois, que a Lei nº 12.015/09 constitui lei penal mais benéfica, donde
aplicar-se retroativamente, nos termos do art. 5º, XL, da Constituição Federal, e
art. 2º, parágrafo único, do Código Penal. E, como visto, é incontroverso que os
fatos imputados ao ora paciente foram cometidos nas mesmas circunstâncias de
tempo, modo e local e contra a mesma vítima, razão por que, aliás, a continuidade já
havia sido reconhecida pelo Tribunal local. Afastada, pois, a base legal da decisão ora
impugnada, deve restabelecida a decisão do Tribunal de Justiça”.

206
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS


CORPUS. HOMICÍDIOS QUALIFICADOS. ROU-
BOS MAJORADOS. OCULTAÇÃO DE CADÁVER
E QUADRILHA. JÚRI. ALEGAÇÃO DE ERRO
NA FIXAÇÃO DA PENA-BASE. MATÉRIA NÃO
SUSCITADA PERANTE O E. TRIBUNAL A QUO.
SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. RECONHECIMENTO
DA CONTINUIDADE DELITIVA ESPECÍFICA DES-
FAVORÁVEL AO RÉU. CONCURSO MATERIAL.
QUESITO. ALEGAÇÃO DE NULIDADE A DES-
TEMPO. PRECLUSÃO. ALEGAÇÃO DE DECISÃO
MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS
AUTOS. REEXAME DE PROVA. INADEQUAÇÃO DA
VIA ELEITA.
(...) II - A ofensa a bens personalíssimos, com violên-
cia ou grave ameaça à pessoa, no caso dos crimes da mesma
espécie (homicídios qualificados consumados), pode ensejar
o crime continuado na forma preconizada no parágrafo úni-
co do art. 71 do Código Penal. O que, in casu, entretanto,
poderia acarretar o aumento de uma das penas até o triplo.
Assim, a aplicação da regra do concurso material mostra-

“3. Quanto ao regime de cumprimento de pena também lhe assiste razão ao paciente.
Como já asseverei em sede liminar, o Plenário, no julgamento do HC nº 82.959
(Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 01/09/2006), declarou ‘a inconstitucionalidade do §
1º do artigo 2º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990’, o que afasta, para efeito de
progressão de regime, o obstáculo representado por essa norma tida por inválida.
E, como os fatos ocorreram antes da entrada em vigor da Lei nº 11.464/07, incide a
regra do art. 112 da Lei de Execução Penal (HC nº 91.631, Rel. Min. Cármen Lúcia,
DJ 09.11.2007; HC nº 92.410, Rel. Min. Menezes Direito, DJ 01.02.2008; HC nº
89.699, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 09/05/2008), sem prejuízo da apreciação, pelo
magistrado competente, nos termos do art. 66, inc. III, alínea b, da LEP, dos demais
requisitos de admissibilidade de progressão de regime prisional”.
“4. Diante do exposto, concedo a ordem para restabelecer o acórdão proferido pelo
Tribunal local, que fixou a pena do paciente em 7 (sete) anos de reclusão, em regime
inicialmente fechado”. (STF – 2ª Turma – Habeas Corpus nº 86.110, Rel. Min.
Cezar Peluso, j. em 02/03/10)

207
CriminologiaS: Discursos para a Academia

-se mais benéfica ao paciente (Precedentes desta Corte e do


Pretório Excelso).
III - Para a exacerbação da pena, em razão do crime
continuado previsto no parágrafo único, do art. 71, do CP,
considera-se não apenas o número de infrações cometidas,
mas também as mesmas circunstâncias do art. 59 do estatu-
to repressivo (Precedentes do STJ).
(...) Ordem parcialmente conhecida e, nesta parte, de-
negada. (STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus nº 87.676/RJ,
Rel. Min. Feliz Fischer, j. em 04/03/08)

Outrossim, além do debate acerca da aplicação da regra


do art. 71, Código Penal, nos crimes contra a pessoa, neste jul-
gado a 5ª Turma do STJ agregou ao critério do número de de-
litos o grau de culpabilidade (sentido amplo) auferido na pri-
meira fase da aplicação da pena (art. 59, caput, Código Penal).

13.3. (Des)Proporcionalidade do § 4º, Art. 155 do


Código Penal

§ 19º. Questão igualmente tematizada pelas Câmaras


da referida Corte gaúcha foi a do confronto entre os crité-
rios de majoração da pena nos crimes de furto e roubo a
partir da análise de proporcionalidade das penas previstas
no Código Penal.
O Código estabelece para o crime de furto (art. 155),
pena de 01 a 04 anos de reclusão e multa. Todavia impõe pena
de dois a oito anos e multa, se o crime é cometido nas se-
guintes circunstâncias: I - com destruição ou rompimento de
obstáculo à subtração da coisa; II - com abuso de confiança, ou
mediante fraude, escalada ou destreza; III - com emprego de
chave falsa; IV - mediante concurso de duas ou mais pessoas
(art. 155, § 4º, Código Penal).

208
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

Ao regrar o crime de roubo, o art. 157 fixa pena reclusi-


va de 04 a 10 anos e multa, prevendo aumento de um terço
até metade nos seguintes casos: I - se a violência ou ameaça é
exercida com emprego de arma; II - se há o concurso de duas
ou mais pessoas; III - se a vítima está em serviço de transporte
de valores e o agente conhece tal circunstância; IV - se a sub-
tração for de veículo automotor que venha a ser transportado
para outro Estado ou para o exterior; V - se o agente mantém
a vítima em seu poder, restringindo sua liberdade.
Alguns julgados do TJRS entendiam, pois, desproporcio-
nal majoração distinta das penas para as mesmas circunstân-
cias especiais de aumento, fundamentalmente por se tratar de
condutas similares contra o mesmo bem jurídico,
O STF, em vários julgados, decidiu ser incabível a po-
sição de ausência de proporcionalidade entre as sanções
dos tipos penais, entendendo serem possíveis aumentos
díspares:

HABEAS CORPUS. PENAL. PRESSUPOSTOS


DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO ESPECIAL.
REAPRECIAÇÃO, VEDAÇÃO. FURTO. ART. 157, § 2°,
DO CP. APLICAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. FIXAÇÃO
DA PENA ABAIXO DO MÍNIMO.
1. Não compete ao Supremo Tribunal Federal re-
apreciar os pressupostos de admissibilidade do recurso
especial.
2. A causa de aumento de pena pelo concurso de pes-
soa no crime de roubo (art. 157, § 2°, do CP) não se aplica
ao crime de furto; há, para este, idêntica previsão legal de
aumento de pena (art. 155, §4°, IV do CP).
3. A pena relativa ao tipo penal não pode ficar aquém
do mínimo cominado.

209
CriminologiaS: Discursos para a Academia

4. Ordem denegada. (STF, 2ª Turma, Habeas Corpus


nº 94362-4/RS, Min. Eros Grau, 13/05/2008)

HABEAS CORPUS. DOSIMETRIA DA PENA.


FURTO QUALIFICADO. INTERGRAÇÃO DA NOR-
MA. MAJORANTE DO CRIME DE ROUBO COM
CONCURSO DE AGENTES. INADMISSIBILIDADE.
CIRCUNSTÂNCIA ATENUANTE. PENA AQUÉM
DO MÍNIMO LEGAL. IMPOSSIBILIDADE. JURIS-
PRUDÊNCIA CONSOLIDADA.
1. As questões controvertidas neste writ - acerca da
alegada inconstitucionalidade da majorante do § 4º, do art.
155, CP (quando cotejada com a causa de aumento de pena
do § 2º, do art. 157, CP) e da possibilidade (ou não) da fi-
xação da pena abaixo do mínimo legal devido à presença de
circunstância atenuante - já foram objeto de vários pronun-
ciamentos desta Corte.
2. No que tange à primeira questão, não existe lacuna
a respeito do quantum de aumento da pena no crime de furto
qualificado (art. 155, § 4º, CP), o que inviabiliza o emprego
da analogia.
3. Os tipos penais referentes aos crimes de furto e
roubo recebem tratamento diferenciado, iniciando-se pelos
limites mínimo e máximo relativos às penas-base. Por opção
legal (critério de política legislativa), considerou-se necessá-
rio estabelecer diferentes fatores de aumento das penas.
4. A jurisprudência desta Corte é tranqüila no que
tange à aplicação da forma qualificada do furto em que
há concurso de agentes mesmo após a promulgação da
Constituição Federal de 1988 (HC nº 73.236-SP, rel. Min.
Sidney Sanches, 1ª Turma, DJ 17.05.1996).
5. Quanto à segunda questão, na exegese do art. 65,
do Código Penal, “descabe falar dos efeitos da atenuante se a
sanção penal foi fixada no mínimo legal previsto para o tipo”
(HC nº 75.726, rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 06.12.1998).

210
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

6. De acordo com a interpretação sistemática e teleoló-


gica decorrente do Código Penal e das leis especiais, somente
ma terceira fase da dosimetria da pena é possível alcançar
pena final aquém do mínimo cominado para o tipo simples
ou além do máximo previsto.
7. Há diferença quanto ao tratamento normativo entre
as circunstâncias atenuantes/agravantes e as causas de di-
minuição/aumento da pena no que se refere à possibilidade
de estabelecimento da pena abaixo do mínimo legal - ou mes-
mo acima do máximo legal.
8. O fato de o art. 65, do Código Penal, utilizar o ad-
vérbio sempre, em matéria de aplicação das circunstâncias
ali previstas, para redução da pena-base em patamar inferior
ao mínimo legal, deve ser interpretado para as hipóteses em
que a pena-base tenha sido fixada em quantum superior ao
mínimo cominado no tipo penal.
9. É pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal no sentido da impossibilidade de redução da pena
aquém do mínimo legal quando houver a presença de algu-
ma circunstância atenuante.
10. Ordem denegada. (STF, 2ª Turma, Habeas Corpus
nº 92926-5/RS, Min. Ellen Gracie, 27/05/2008)

O último acórdão – que, a propósito, igualmente rea-


liza amplo debate sobre a questão da possibilidade de as
atenuantes estabelecerem pena abaixo do mínimo legal co-
minado –, limita-se a negar o argumento remetendo a jus-
tificativa à opção político-legislativa. Não aprecia, porém,
se efetivamente houve recepção constitucional dos disposi-
tivos em questão.
O posicionamento contrário ao entendimento do TJRS
foi recentemente sumulado pelo STJ: “é inadmissível aplicar, no
furto qualificado pelo concurso de agentes, a majorante do roubo”
(Súmula 441).

211
CriminologiaS: Discursos para a Academia

13.4. Motivo de Valor Social, Intensidade da Emoção


e Provocação da Vítima: Critério de Diminuição
de Pena

§ 20º. O regramento do homicídio pelo Código Penal


(art. 121) prevê como causa especial de diminuição da pena
(minorante), quando “o agente comete o crime impelido por moti-
vo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta
emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima” (art. 121,
§1º). Em tais circunstâncias, o juiz pode reduzir a pena, no
patamar de um sexto a um terço, daquela prevista no caput
(reclusão de 06 a 20 anos).
Com a mesma natureza das circunstâncias judiciais do
art. 59, caput, e de grande parte daquelas previstas no Código
Penal como qualificadoras do delito de homicídio (motivo
torpe, motivo fútil, meio insidioso ou cruel, recurso que im-
possibilite ou dificulte a defesa da vítima)3, a minorante cons-
titui-se como tipo penal aberto, deixando amplo espaço de
discricionaridade judicial.

§ 21º. Em caso de referência julgado pelo STF, entende-


ram os Ministros ser cabível a minorante, reconhecendo sua
incidência em razão de o homicídio ter sido cometido contra
esposa adúltera.

3 “§ 2º Se o homicídio é cometido: - mediante paga ou promessa de recompensa, ou


por outro motivo torpe; II - por motivo fútil; III - com emprego de veneno, fogo,
explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar
perigo comum; IV - à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro
recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido; V - para assegurar a
execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime: Pena - reclusão,
de doze a trinta anos.”

212
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

HABEAS CORPUS. PENAL. CAUSA DE DI-


MINUIÇÃO DA PENA REFERENTE AO HO-
MICÍDIO PRVILEGIADO E REDUÇÃO FACE AO
RECONHECIMENTO DE CIRCUNSTÂNCIAS JU-
DICIAIS FAVORÁVEIS. VALORAÇÃO INDEPEN-
DENTE.
1. Pena-base fixada no mínimo legal à consideração de
circunstâncias judiciais desfavoráveis.
2. Diminuição de um sexto em virtude do reconheci-
mento da causa de diminuição referente ao homicídio privi-
legiado (art. 121, § 1º do CP).
3. Improcedência da alegação de constrangimento
ilegal fundada em que a diminuição pelo reconhecimento
do homicídio privilegiado deveria ser de um terço. Isso
porque o Juiz reconheceu circunstâncias judiciais favorá-
veis ao paciente.
4. A diminuição da pena em virtude do reconhecimen-
to do homicídio privilegiado nada tem a ver com a redução
operada face às circunstâncias judiciais favoráveis.
5. O juiz, ao aplicar a causa de diminuição do § 1º do
art. 121 do Código Penal, valorou a relevância do motivo de
valor social, a intensidade da emoção e o grau de provocação
da vítima, concluindo, fundamentadamente, pela diminui-
ção da pena em apenas um sexto.
6. Ordem denegada. (STF, 2ª. Turma, Habeas Corpus
nº 93242-8/SP, Min. Eros Grau, 26/02/2008)

O Magistrado da causa reconheceu a minorante, manti-


da pelos Tribunais Superiores, sob o seguinte argumento: “o
privilégio sufragado neste plenário impõe redução da reprimenda em
1/6, consolidando, na ausência de outras causas modificadoras, pena
corporal de 05 (cinco) anos de reclusão. Optei pela redução mínima
da pena face às circunstâncias que ladearam o ensejo. Efetivamente,
decidindo lavar com sangue sua desonra pessoal o acusado entre-

213
CriminologiaS: Discursos para a Academia

mostrou, para todos os efeitos, que o contexto não foi ocasional. Pelo
contrário, foi por si decisivamente precipitado - até porque não apre-
sentou prova contrariando essa inferição, o que, tenho para mim,
contrapõe-se ao trato mais benevolente do enredo. Veja-se que o acu-
sado foi ao encontro da vítima, ceifando-a nas imediações de sua
residência. E o fez, segundo alegou, um dia após flagrar sua adúltera
esposa com o amante. Para corroborar a preordenação de sua ira,
impossível olvidar o descarregamento da arma que levou proposi-
talmente consigo e com a qual crivou o tronco da vítima de tiros.
Poderá descontar essa reprimenda em regime inicial semi-aberto
(nos termos do artigo 33, § 2°, letra b, do Código Penal), de qual-
quer modo, adequado para refletir sobre o desvalor de sua conduta”.

13.5. Arma de Fogo Desmuniciada e § 2º, Inciso I,


Art. 157, Código Penal

§ 22º. No julgamento do Recurso Especial 213.054-SP, na


sessão de 24/10/2001, a Terceira Seção do STJ deliberou pela
revogação da Súmula 174, que enunciava que “no crime de rou-
bo, a intimidação feita com arma de brinquedo autoriza o aumento
da pena” prevista no § 2º, inciso I, art. 157, Código Penal. Ou
seja, o uso de arma não letal operaria a reclassificação do de-
lito de furto para roubo, contudo não autorizaria a aplicação
da majorante.
Avançando na matéria, a 5ª Turma ampliou a negativa
da majorante aos casos de arma desmuniciada.

HABEAS CORPUS. PENAL. TENTATIVA DE


ROUBO. ARMA DE FOGO DESMUNICIADA. CAUSA
DE AUMENTO DE PENA NÃO APLICÁVEL. REGIME
PRISIONAL FECHADO. IMPOSSIBILIDADE. CIR-
CUNSTÂNCIAS JUDICIAIS FAVORÁVEIS. RÉU

214
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

PRIMÁRIO. PENA-BASE FIXADA NO MÍNIMO.


ART. 33, § 2º, ALÍNEA C, e § 3º DO CÓDIGO PENAL.
1. A inclusão da majorante prevista no art. 157, §
2º, inciso I, do Código Penal, diverge da posição adota-
da pelo Superior Tribunal de Justiça, porquanto o uso
de arma de fogo desmuniciada no crime de roubo não
configura causa especial de aumento da pena.
2. Fixada a pena-base no mínimo legal, porquan-
to reconhecidas as circunstâncias judiciais favoráveis
ao réu primário e de bons antecedentes, não é cabí-
vel infligir regime prisional mais gravoso apenas com
base na gravidade genérica do delito. Inteligência do
art. 33, §§ 2º e 3º, c.c. art. 59, ambos do Código Penal.
3. Habeas Corpus concedido para restabelecer a
sentença de primeiro grau. (STJ – 5ª Turma – Habeas
Corpus nº 96.388/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, j. em
27/03/08)

O precedente é importante em face da grande incidência


de casos desta natureza nos Tribunais.

13.6. Concurso de Causas Especiais de Aumento de


Pena

§ 23º. O acórdão de referência que discute a quantidade de


aumento no caso de concurso de majorantes é bastante comple-
to, com várias tematizações acerca da aplicação da pena.

HABEAS CORPUS. APLICAÇÃO DA PENA.


REINCIDÊNCIA. AUMENTO DA SANÇÃO. ALE-
GAÇÃO DE DESPROPORCIONALIDADE. QUESTÃO
NÃO APRECIADA PELO TRIBUNAL IMPETRADO.
IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE. SUPRESSÃO DE
INSTÂNCIA. NÃO CONHECIMENTO.

215
CriminologiaS: Discursos para a Academia

1. A questão aventada na impetração, relativa ao au-


mento desproporcional da pena em virtude do reconhecimen-
to da reincidência, por não ter sido debatida pelo Tribunal
de origem, não pode ser apreciada nesta Corte Superior, sob
pena de indevida supressão de instância.
DOSIMETRIA. PENA-BASE FIXADA POUCO
ACIMA DO MÍNIMO LEGAL. POSSIBILIDADE. PRE-
SENÇA DE CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS CON-
SIDERADAS DESFAVORÁVEIS. PERSONALIDADE
VOLTADA À CRIMINALIDADE E CONSEQUÊNCIAS
DO CRIME. JUSTIFICATIVA IDÔNEA. COAÇÃO
ILEGAL NÃO DEMONSTRADA.
1. Não há como se acoimar de flagrantemente ilegal ou
abusivo, ou mesmo desproporcional, o pequeno aumento de
sanção procedido na primeira fase da dosimetria, se a eleva-
ção foi devidamente motivada, em razão do reconhecimento
de mais de uma circunstância judicial desfavorável, no caso,
a personalidade do agente, inclinada à criminalidade, e as
consequências do crime sofridas pelas vítimas, justificativas
que se mostram idôneas para a majoração.
REPRIMENDA. ROUBO. CONCURSO DE
AGENTES. MENOR INIMPUTÁVEL. IRRELEVÂNCIA.
CAUSA DE ESPECIAL AUMENTO DEVIDAMENTE
RECONHECIDA. CONSTRANGIMENTO NÃO EVI-
DENCIADO.
1. Configura-se como majorado o crime de roubo pelo
concurso de duas ou mais pessoas, ainda que uma delas seja
menor inimputável, pois este integra o número de agentes e,
com isso, contribui para uma maior intimidação da vítima,
elevando, via de consequência, a gravidade da ação crimino-
sa. Precedentes deste
PENA. TERCEIRA ETAPA DA DOSIMETRIA.
PRESENÇA DE TRÊS CIRCUNSTÂNCIAS AGRA-
VADORAS DO DELITO. EXASPERAÇÃO À ME-
TADE. CRITÉRIO OBJETIVO. IMPOSSIBILIDADE.

216
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO QUALITATIVA.


COAÇÃO ILEGAL PATENTEADA.
1. Caracteriza-se constrangimento ilegal o acréscimo
da pena, considerado na terceira fase da dosimetria, por ter o
julgador levado em conta, em sua fundamentação, apenas a
quantidade de majorantes elencadas. Precedentes deste STJ.
2. Writ parcialmente conhecido e, nessa extensão, em
parte concedido para reformar o acórdão recorrido, apenas
no tocante ao aumento procedido na terceira etapa da dosi-
metria, que se fixa em 1/3, em razão da presença das majo-
rantes previstas nos incisos I, II e V do § 2º do art. 157 do
Código Penal, restando a pena definitiva em 8 anos de reclu-
são, mantida, no mais, a sentença condenatória. (STJ – 5ª
Turma – Habeas Corpus nº 91.702/DF, Rel. Min. Miguel
José Mussi, j. em 27/03/08)

Na decisão supra, a 5ª Turma do STJ anulou sentença


que aumentara, em face do concurso de majorantes do art.
157, Código Penal, na metade a pena provisória, situação que
impunha, no caso, pena de 09 anos de reclusão.
Por força da fundamentação do quantum de aumento,
anulou parcialmente impondo o mínimo previsto no Código
Penal, ou seja, um terço.
Em caso similar, a mesma Turma manteve o entendimen-
to do aumento mínimo em razão de não ter sido demonstrada
nenhuma excepcionalidade no fato julgado.

HABEAS CORPUS. ROUBO CIRCUNSTANCIA-


DO PELO USO DE ARMA DE FOGO E CONCURSO
DE AGENTES. PENA-BASE FIXADA NO MÍNIMO
LEGAL (4 ANOS), AUMENTADA DE 3/8 PELA DU-
PLICIDADE DE CAUSAS DE AUMENTO. TOTAL
CONCRETIZADO: 5 ANOS E 6 MESES DE RECLUSÃO.

217
CriminologiaS: Discursos para a Academia

ELEVAÇÃO NÃO JUSTIFICADA. REGIME INICIAL


SEMI-ABERTO. ORDEM CONCEDIDA.
1. Segundo iterativa jurisprudência desta Corte, a
presença de mais de uma circunstância de aumento de pena
no crime de roubo não é causa obrigatória de majoração da
punição em percentual acima do mínimo previsto, a menos
que seja constatada a existência de circunstâncias que indi-
quem a necessidade da exasperação.
2. No caso concreto, as instâncias ordinárias decidi-
ram aplicar o aumento de 3/8 na pena-base em razão, tão-só,
da existência das duas causas de aumento de pena, quais
sejam, concurso de agentes e emprego de arma de fogo. Não
registraram qualquer excepcionalidade que ensejasse a ma-
joração acima de um terço, não sendo, para tanto, suficiente
a gravidade em abstrato do crime ou a mera constatação da
existência das referidas causas de aumento, motivo pelo qual
a exasperação da reprimenda deve ser reduzida para 1/3.
3. As doutas Cortes Superiores do País (STF e STJ) já
assentaram, em inúmeros precedentes, que, fixada a pena-
-base no mínimo legal e reconhecidas as circunstâncias ju-
diciais favoráveis ao réu, é incabível o regime prisional mais
gravoso (Súmulas 718 e 719 do STF).
4. Ressalva do entendimento pessoal do Relator, de
que o Magistrado não está vinculado, de forma absoluta, à
pena-base aplicada ao crime, quando opera a fixação do regi-
me inicial de cumprimento da sanção penal, podendo impor
regime diverso do aberto ou semi-aberto, pois os propósitos
da pena e do regime prisional são distintos e inconfundíveis.
(STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus nº 90.497/SP, Rel. Min.
Napoleão Nunes Maia Filho, j. em 07/02/08)

218
14. Questões Processuais na
Aplicação da Pena pelos Tribunais
Superiores no Brasil:
Análise Qualitativa

A investigação permitiu detectar importantes diretrizes


no sentido de densificar a tentativa de controle e o fechamen-
to dos espaços que potencializam a ruptura com as garantias
fundamentais na aplicação da pena. importante registrar,
contudo, que posturas garantistas não são constantes nos jul-
gamentos do STF e STJ, sendo possível visualizar clara polí-
tica judicial de controle do arbítrio, notadamente porque as
próprias Cortes Superiores incorrem em inúmeros vícios e
equívocos, conforme apontado.
Em sua grande maioria, porém, a tutela do direito ma-
terial vem amparada por avanços na interpretação das regras
processuais penais.

14.1. Dever de Fundamentar a Aplicação da Pena

§ 24º. A principal garantia visualizada na pesquisa é a do


submetimento da decisão judicial, em geral, e das razões da
aplicação da pena, no caso, ao princípio da motivação, confor-
me o art. 93, IX da Constituição.
Vigente durante longo período a ideia de que a funda-
mentação seria suficiente apenas em relação aos juízos mate-
riais acerca do crime (absolutórios e condenatórios), ficando a

219
CriminologiaS: Discursos para a Academia

questão da pena isolada na sentença, como se fosse apêndice


administrativo, vinculado à execução de ato decisório.
Contudo, superada esta fase – e a jurisdicionalização da
execução da pena na Reforma de 1984 teve importante pa-
pel neste processo –, nota-se a consolidação do alcance do
princípio da fundamentação da aplicação da pena nas Cortes
Superiores, em que pese muitas vezes os próprios Tribunais
não atribuírem ao referido princípio toda a extensão possível.
Neste sentido manifestou-se a 6ª Turma do STJ ao anu-
lar decisão e fixar novo apenamento, com específica valoração
das circunstâncias:

PENAL. HABEAS CORPUS. CONCUSSÃO.


POLICIAIS. DOSIMETRIA DA REPRIMENDA. NE-
CESSIDADE DE MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES.
AUSÊNCIA DE CONSIDERAÇÃO DE TODAS AS
CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS. REINCIDÊNCIA
NÃO-COMPROVADA POR CERTIDÃO CARTORÁRIA
JUDICIAL. ORDEM PARCIALMENTE CONHECIDA E
PARCIALMENTE CONCEDIDA.
1. As decisões judiciais devem ser cuidadosamente
fundamentadas, principalmente na dosimetria da pena, em
que se concede ao Juiz um maior arbítrio, de modo que se
permita às partes o exame do exercício de tal poder.
2. Reincidência não-comprovada por certidão carto-
rária judicial não pode ser considerada para fins de fixa-
ção da pena.
3. Ordem parcialmente conhecida e nesta extensão
concedida para anular parcialmente o acórdão e a decisão
de primeiro grau, no que se refere à dosimetria das penas,
fixando-se novo regime de cumprimento; e para excluir a
agravante da reincidência aplicada a um dos pacientes. (STJ
– 6ª Turma - Habeas Corpus Nº 43.930/RJ – Rel. Ministra

220
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

Jane Silva (Desembargadora Convocada do TJ/MG), j.


22/04/2008).

§ 25º. De forma mais clara e apontando para a necessida-


de de embasar os juízos sobre aplicação da pena em prova re-
futável produzida sob contraditório, duas decisões da 6ª Turma
merecem destaque:

PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. 1.


HOMICÍDIO QUALIFICADO PRIVILEGIADO. DO-
SIMETRIA. PENA-BASE. EXACERBAÇÃO. 2. ELE-
MENTOS DO TIPO CONSIDERADOS COMO
CIRCUNSTÂNCIAS DO CRIME. INVIABILIDADE. 3.
ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA.
1. Para a majoração da pena-base é necessário que se
explicite, de modo concreto, os fatos que dão azo à incidência
das circunstâncias judiciais.
2. Os elementos inerentes à conduta típica não podem
ser considerados para se valorar negativamente as circuns-
tâncias do delito.
3. Ordem parcialmente concedida. (STJ – 6ª Turma
- Habeas Corpus Nº 54.616/RJ, Rel. Min. Maria Thereza
de Assis Moura, j. 22/04/ 2008)

PENAL – LESÃO CORPORAL DE NATUREZA


GRAVE – DOSIMETRIA DA REPRIMENDA –
NECESSIDADE DE MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES
– AUSÊNCIA DE CONSIDERAÇÃO DE TODAS AS
CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS – CULPABILIDADE
DESFAVORÁVEL – PENA DE MULTA APLICADA –
AUSÊNCIA DE COMINAÇÃO NA LEI – EXCLUSÃO
- ORDEM CONCEDIDA, INCLUSIVE DE OFÍCIO.
1. As decisões judiciais devem ser cuidadosamente
fundamentadas, principalmente na dosimetria da pena, em

221
CriminologiaS: Discursos para a Academia

que se concede ao Juiz um maior arbítrio, de modo que se


permita às partes o exame do exercício de tal poder.
2. Se apenas a circunstância judicial da culpabilida-
de resulta desfavorável ao condenado, sua pena base deve se
aproximar do mínimo legal.
3. A pena de multa, se aplicada ao réu condenado por
lesões corporais de natureza grave, deve ser excluída, pois o
legislador cominou somente a pena privativa de liberdade
na Lei Penal.
4. Ordem parcialmente concedida para reduzir as pe-
nas privativas de liberdade, e, de ofício, excluir as penas de
multa. (STJ – 6ª Turma - HABEAS CORPUS Nº 106.491/
MG, Rel. Min. Jane Silva, j. 24/06/2008)

No julgado exposto, além da sustentação do dever de


motivar, nota-se a vedação ao bis in idem: “no que diz respeito às
circunstâncias do delito, negativamente valoradas pelo magistrado
sentenciante, sob o argumento do paciente ter atingido a vítima em
área letal, razão assiste à douta defensora, tendo em vista que ao ma-
gistrado é vedado proceder tal valoração utilizando-se de elementos
próprios do tipo, como ocorreu no caso em apreço.”
Em sentido similar decisões da 5ª Turma do STJ:

HABEAS CORPUS . PENAL. CRIME DE ROUBO


QUALIFICADO. FIXAÇÃO DA PENA. NULIDADE.
ART. 59 DO CÓDIGO PENAL. INEXISTÊNCIA DE
MOTIVAÇÃO CONCRETA. INOBSERVÂNCIA DO
CRITÉRIO TRIFÁSICO. REGIME INICIAL FECHADO
PARA CUMPRIMENTO DA PENA. IMPROPRIEDADE.
PRECEDENTES.
1. Não pode o magistrado sentenciante majorar a
pena fundando-se, tão-somente, em referências vagas, sem
a indicação de qualquer circunstância concreta que justifi-
que o aumento, e inobservando o critério trifásico, de forma

222
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

desordenada e em fases aleatórias. Precedentes desta Corte


Superior.
2. Inexistindo circunstâncias judiciais válidas desfa-
voráveis ao réu – primário e com bons antecedentes, não é
possível infligir regime prisional mais gravoso apenas com
base na gravidade genérica do delito. Inteligência do art. 33,
§§ 2.º e 3.º, c.c. o art. 59, do Código Penal. Incidência das
Súmulas n.º 718 e 719 do Supremo Tribunal Federal.
3. Ordem concedida, e em parte de ofício, para, manti-
da a condenação, anular a sentença e o acórdão que a mante-
ve na parte relativa à dosimetria da pena e, por conseguinte,
ao regime prisional, fixando a pena definitiva do ora Paciente
em 05 (cinco) anos e 04 (quatro) meses de reclusão, em re-
gime semi-aberto, além de 12 (doze) dias-multa. (STJ – 5ª
Turma – Habeas Corpus nº 96.395/SP, Rel. Min. Laurita
Vaz, j. em 11/03/08)

PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 171, CAPUT,


DO CP. DOSIMETRIA DA PENA. FIXAÇÃO DA
PENA-BASE. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO.
EXASPERAÇÃO NÃO JUSTIFICADA.
I - A pena deve ser fixada com fundamentação concreta
e vinculada, tal como exige o próprio princípio do livre con-
vencimento fundamentado (arts. 157, 381 e 387 do CPP c/c
o art. 93, inciso IX, segunda parte da Lex Maxima). Dessa
maneira, considerações genéricas, abstrações ou dados inte-
grantes da própria conduta tipificada não podem supedanear
a elevação da reprimenda (Precedentes do STF e STJ).
II - In casu, verifica-se que o v. acórdão recorrido
apresenta em sua fundamentação incerteza denotativa ou
vagueza, utilizando-se, entre outras, de expressões como:
“manifesta periculosidade, materializada na prática de atos
preparatórios e de execução, muito bem pensados e deter-
minados”; “dolo intenso”; “delito bem pensado, bem me-
ditado, bem planejado, que se consumou justamente por

223
CriminologiaS: Discursos para a Academia

isso”. Dessa forma, não existem argumentos suficientes a


justificar, no caso concreto, a exacerbação da reprimenda ao
máximo legal previsto para o delito de estelionato (art. 171,
caput, CP), a exceção de uma condenação passada em jul-
gado pelo delito de apropriação indébita. Ordem concedida.
(STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus nº 96.395/SP, Rel. Min.
Laurita Vaz, j. em 11/03/08). Em idêntico sentido: STJ –
5ª Turma – Habeas Corpus nº 97.796/SP, Rel. Min. Felix
Fischer, j. em 27/03/08.

PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 157, § 2º, I


E II, DO CP. MAJORANTE. EMPREGO DE ARMA.
CONFIGURAÇÃO. NÃO APREENSÃO. ART. 167
DO CPP. DOSIMETRIA DA PENA. INCIDÊNCIA
DE DUAS MAJORANTES. FUNDAMENTAÇÃO.
INOCORRÊNCIA. REGIME PRISIONAL. CIRCUNS-
TÂNCIA JUDICIAIS TOTALMENTE FAVORÁVEIS.
SEMI-ABERTO.
I - O exame de corpo de delito direto, por expressa de-
terminação legal, é indispensável nas infrações que deixam
vestígios, podendo apenas supletivamente ser suprido pela
prova testemunhal quando tenham estes desaparecido, ex vi
do art. 167 do Código de Processo Penal.
II – Esse entendimento deve ser aplicado no que con-
cerne à verificação de ocorrência ou não da majorante do
emprego de arma no crime de roubo, caso contrário o cance-
lamento da Súmula 174 do STJ seria, em boa parte, inócuo.
III - No caso concreto, há dúvida relevante sobre o
motivo da não apreensão da arma de fogo, o que atrai a
incidência do disposto no art. 167 do CPP. Dessa forma,
existindo nos autos depoimentos testemunhais que com-
provam a sua efetiva utilização, não há como afastar a
aplicação da majorante.
IV - Tendo em vista o disposto no parágrafo único do
art. 68 e no § 2º do art. 157, ambos do CP, o aumento de

224
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

pena, acima do patamar mínimo, pela ocorrência de duas


majorantes específicas, não pode se dar pela simples cons-
tatação da existência das mesmas, como in casu, mas deve
ser feito com base nos dados concretos em que se eviden-
ciou o fato criminoso (Precedentes desta Corte e do Pretório
Excelso).
V - Uma vez atendidos os requisitos constantes do art.
33, § 2º, “b”, e § 3º, c/c o art. 59 do CP, quais sejam, a ausên-
cia de reincidência, a condenação por um período superior
a 4 (quatro) anos e não excedente a 8 (oito) e a existência
de circunstâncias judiciais totalmente favoráveis, devem os
pacientes cumprir a pena privativa de liberdade no regime
inicial semi-aberto. (Precedentes).
VI - A gravidade genérica do delito, por si só, é insu-
ficiente para justificar a imposição do regime inicial fechado
para o cumprimento de pena. Faz-se indispensável a crite-
riosa observação dos preceitos inscritos nos arts. 33, § 2º,
“b”, e § 3º, do CP. (Precedentes).
VII - “A opinião do julgador sobre a gravidade em
abstrato do crime não constitui motivação idônea para a im-
posição de regime mais severo do que o permitido segundo a
pena aplicada.” (Enunciado nº 718 da Súmula do Pretório
Excelso, DJU de 09/10/2003). Ordem parcialmente conce-
dida. (STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus nº 97.348/SP, Rel.
Min. Felix Fischer, j. em 17/04/08)

§ 26º. O tema da motivação atinge, inclusive, via princípio


da proporcionalidade, os critérios de dosimetria e quantificação
(cálculo) da pena, conforme importante decisão do STJ.

PENAL. HABEAS CORPUS. PECULATO. DO-


SIMETRIA DA PENA. MAJORAÇÃO EXACERBADA.
CONSTRANGIMENTO CARACTERIZADO. ORDEM
CONCEDIDA.

225
CriminologiaS: Discursos para a Academia

1. Eventual constrangimento ilegal na aplicação da


pena, passível de ser sanado por meio de Habeas Corpus ,
depende, necessariamente, da demonstração inequívoca de
ofensa aos critérios legais que regem a dosimetria da res-
posta penal, de ausência de fundamentação ou de flagrante
injustiça.
2. Embora não fique o sentenciante adstrito, simples-
mente, à quantidade de circunstâncias judiciais desfavorá-
veis na fixação da pena-base, é necessário que a fundamenta-
ção utilizada seja suficiente para justificar o quantum apli-
cado, observando-se o princípio da proporcionalidade, o que
não ocorreu na espécie.
3. Ordem concedida para redimensionar a pena do pa-
ciente, fixando-a em 2 anos de reclusão, em regime aberto,
substituída por pena restritiva de direitos, e a 10 (dez) dias-
multa, com o valor unitário descrito na sentença. (STJ – 5ª
Turma – Habeas Corpus 77.822/DF, Arnaldo Esteves Lima,
j. em 09/05/08)

Os julgados são paradigmáticos em razão de vincularem


a valoração da aplicação da pena à prova produzida, indepen-
dente da fase, isto é, pena-base (circunstâncias judiciais) ou
penas provisória e definitiva (circunstâncias legais). Ademais,
na própria dosimetria (cálculo), é imposta a necessidade de
demonstração pelo juiz de dados processuais idôneos para
amparar o cálculo.
Recente súmula do STJ reforça o argumento: “o au-
mento na terceira fase de aplicação da pena no crime de roubo
circunstanciado exige fundamentação concreta, não sendo sufi-
ciente para a sua exasperação a mera indicação do número de
majorantes” (Súmula 443).

226
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

14.2. Questão Probatória: Confissão. Fundamentação


de Juízo Condenatório e Não-Aplicação da
Atenuante

§ 27º. Se os Tribunais, do ponto de vista abstrato, im-


põem a demonstração probatória de todas as circunstâncias
que fundamentaram aumento de pena, redobrada a obriga-
toriedade de motivação quando valoradas negativamente de-
terminadas circunstâncias para fundar juízo condenatório, p.
ex., a confissão.
No caso de referência, ao estabelecer a pena provisória,
foram reconhecidas duas agravantes (ter o agente cometido
crime por motivo fútil ou torpe e mediante recurso que di-
ficultou ou tornou impossível a defesa do ofendido – alíne-
as ‘a’ e ‘c’, inciso II, art. 61 do Código Penal) e uma circuns-
tância atenuante (menoridade – art. 65, I do Código Penal).
Entendidas como equivalentes, não surtiram efeito no dimen-
sionamento da pena.
O Tribunal de origem, em face de Apelação, foi provocado
a se manifestar quanto ao reconhecimento da atenuante da con-
fissão espontânea. Julgou que a atenuante havia sido reconhe-
cida na sentença, embora a fundamentação da pena provisória
tivesse ocorrido em sentido contrário (“a confissão qualificada foi
sim, efetivamente levada em consideração no caso em tela, mesmo que,
contraditoriamente, tenha a Mma. Dra. Juíza a quo, a seguir, referido
que doutrinariamente entendia que não haveria a atenuante da confis-
são, porquanto o réu ofereceu versão diversa da realidade da prova, a
qual, obviamente, lhe geraria maior benefício”).
Em sede de Habeas Corpus, o Min. Relator demonstrou
que a sentença aplicou apenas a atenuante da menoridade,
reconhecendo a confissão espontânea por ter sido argumento
para legitimar condenação – “(...) observa-se que a juíza conside-

227
CriminologiaS: Discursos para a Academia

rou a confissão do réu, para fins de confirmação da autoria do crime,


ao concluir que ‘o próprio acusado confessa seu atuar, tanto no inter-
rogatório de fls. 110/111, como no interrogatório prestado na presente
sessão plenária’. (...) Ora, se a juíza sentenciante utilizou a confissão
para condenar o réu pela prática de lesão corporal de natureza gravís-
sima – art. 129, § 2º, inc. IV, do CP –, não poderia ter desconsiderado a
referida circunstância atenuante na fixação da pena. (...)
O julgado recebeu a seguinte ementa:

HABEAS CORPUS. LESÃO CORPORAL DE


NATUREZA GRAVÍSSIMA. ATENUANTE DA
CONFISSÃO ESPONTÂNEA. FUNDAMENTO
PARA A CONDENAÇÃO. NÃO-INCIDÊNCIA NO
CÁLCULO DA PENA. NULIDADE DO ACÓRDÃO
RECORRIDO. ORDEM CONCEDIDA.
1. A interpretação dada pelo réu ao fato típico
por ele confessado não afasta a incidência da corres-
pondente atenuante (art. 65, I, d, do Código Penal).
2. Se o juiz sentenciante utilizou a confissão para
condenar o réu pela prática de lesão corporal de na-
tureza gravíssima, não poderia ter desconsiderado tal
circunstância atenuante na fixação da pena.
3. Habeas Corpus concedido para declarar a nu-
lidade do acórdão recorrido, devendo o Tribunal de
origem redimensionar a pena do paciente, levando-se
em consideração a atenuante da confissão espontânea.
(STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus nº 37.150/RJ, Rel. Min.
Arnaldo Esteves Lima, j. 21/02/08)

228
Conclusões
15.
As Reformas Penais e o Papel dos
Atores do Sistema Penal na Era do
Encarceramento em Massa

A necessidade atual – mas sempre constante – de re-


forma dos sistemas penais, conforme destaca Boaventura
de Souza Santos, surge de forma paralela em diferentes pa-
íses, “(...) para dar resposta a problemas que se têm apresentado de
forma mais ou menos semelhante em todos eles: não só a questão
do já mencionado equilíbrio entre os princípios garantísticos (com
fundamento no respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos)
e a necessidade de responder de forma rápida e eficaz ao crime; mas
também a necessidade de dar resposta à sobrelotação das cadeias e à
reincidência, associada ao reconhecimento da urgência de encontrar
alternativas à pena de prisão.”1
Possível notar que o principal reflexo do punitivismo, o
encarceramento em massa, é tratado como problema central
pelas agências internacionais – v.g. o debate temático sobre su-
perlotação carcerária na 18ª sessão da Comissão de Prevenção
do Crime e Justiça Penal da ONU, 2009. O gradual aumento
dos níveis de encarceramento nos países europeus nas duas
últimas décadas tornou a questão carcerária um dos pontos
centrais das principais reformas do sistema penal.

1 Santos, A Justiça..., p. 38.

231
CriminologiaS: Discursos para a Academia

No entanto percebe-se que dentre os principais elemen-


tos facilitadores do avanço do punitivismo está a formação
cultural dos operadores do direito que, em decorrência da men-
talidade inquisitória, veem a prisão como resposta natural ao cri-
me. Se este diagnóstico é possível ser realizado nos países euro-
peus2, sobretudo os de tradição jurídica romano-germânica, de
igual modo o será no Brasil, conforme apresentado.
Assim, o debate político-criminal não pode ficar restrito
à criminalização primária, como se todos os problemas do pu-
nitivismo estivessem centralizados na figura do Legislador.
Inclusive porque é notório que são os atores do sistema pe-
nal que possuem as ferramentas para resistir ou aderir às
políticas criminais populistas. Outrossim, de forma alguma
estão alheios ao problema os pensadores das ciências crimi-
nais, pois não esporadicamente criam, através dos discursos
de justificação, condições de legitimidade para o incremento
da legislação penal e do uso da pena carcerária. Veja-se, por
exemplo, toda a construção teórico-dogmática para legitima-
ção de novos tipos penais aos denominados bens jurídicos de-
correntes da sociedade do risco – são criados novos tipos pe-
nais, a pena de prisão é relegitimada com a ênfase na proteção

2 A título de exemplificação, Boaventura de Souza Santos, ao analisar as


reformas penais na Espanha, assinala que “a cultura jurídico-penal espanhola
tende a considerar a pena de prisão como a reacção normal face à criminalidade.
As penas alternativas aparecem como reacções aceitáveis quando ocorrem certas
circunstâncias muito específicas que permitem renunciar à pena de prisão, tais como
a gravidade diminuta do crime e a ausência de antecedentes criminais. Reconhece-
se, no entanto, que a prisão é pouco eficaz, dessocializadora, criminógena e que
representa um custo desproporcionado face aos resultados. Daí que, nos últimos
anos, se tenha assistido a um esforço legislativo no sentido de diversificar o sistema
sancionatório através de penas alternativas, às quais se apontam as vantagens
de apresentarem uma maior facilidade de individualizar a sanção atendendo às
circunstâncias pessoais do delinquente, favorecendo a reabilitação do condenado com
menor custo” (Santos, A Justiça..., p. 47).

232
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

aos novos bens jurídicos, mas o perfil da população carcerária


segue inalterado.
O problema, portanto, é global: atinge todos os níveis
dos saberes criminais e todos os atores da política e da dog-
mática criminal – atores do processo legislativo, atores das
agências de punitividade, atores das ciências criminais. É,
pois, esta rede de atores que torna legítima ou ilegítima a inter-
venção punitivo-carcerária, fornecendo condições de possibi-
lidade de resistência ou adesão ao cenário punitivista. A repeti-
ção parece necessária: são os atores da rede político-criminal
que legitimam ou resistem ao populismo punitivo, conforme
o maior ou menor grau de identificação com as formas jurídi-
cas criminalizadoras.
Desta forma, se os atores da rede político-criminal incor-
poram o papel inquisitivo, instrumentalizarão formas puniti-
vistas de protagonizar a cena processual e potencializarão o
populismo transposto em Lei.
Neste quadro, a figura do Juiz é central. Se o Magistrado
perceber sua atividade como fundamental para o combate ao
crime, seu papel de garante imparcial dos direitos será substi-
tuído pela figura de agente de segurança pública, conforme apon-
tado por Geraldo Prado3, estabelecendo perigoso protagonismo
na arquitetura processual. E nesta possibilidade de mutação da
figura do juiz em agente de segurança pública reside a preocupa-
ção com o ativismo judicial que, em regra – e o exercício histórico
permite que esta conclusão seja colocada como argumento – é
direcionado à maximização dos poderes estatais em detrimento
dos direitos e das garantias individuais.
Indiscutível, portanto, que a efetivação da reformas
penais punitivistas ou garantista depende da postura da

3 Prado, Sistema Acusatório, p. 105.

233
CriminologiaS: Discursos para a Academia

Magistratura, pois “não podendo o poder judicial propor formal-


mente reformas, pode influenciá-las ou condicioná-las à sua pers-
pectiva corporativa porque o êxito da sua execução depende muito
da acção dos operadores. Aliás, neste processo, o maior ou menor ac-
tivismo judicial, seja no combate à corrupção ou na defesa das liber-
dades cívicas e dos direitos humanos, tem um forte impacto e pode
interferir, de forma decisiva, no processo e no sentido das reformas.”4
Ocorre que os estudos sobre a formação cultural in-
quisitória dos operadores da Justiça criminal no Brasil têm
diagnosticado, na atividade judicial, a realização de dupla
seletividade: “seletividade na aplicação da lei, com maior proba-
bilidade de punição para os setores sociais desfavorecidos econômica
e culturalmente e de favorecimento para as classes superiores; e se-
letividade na interpretação da lei, com a utilização pelo juiz de seu
poder discricionário segundo suas opções políticas e ideológicas.”5
A tendência que se percebe historicamente e que se consoli-
da na atualidade é a de os operadores do direito, sobretudo
os juízes, legitimarem as reformas punitivistas e resistirem às
mudanças garantistas.
O produto da adesão política e jurídica ao punitivismo,
conforme destacado na primeira parte da investigação, é o da
hipercriminalização da juventude pobre e analfabeta, confor-
me indicam os dados oficiais de encarceramento no país.6

4 Santos, A Justiça..., p. 528.


5 Azevedo, Justiça..., p. 104.
6 Importante destacar, novamente, os dados do DEPEN referentes ao primeiro
semestre de 2009. Dos 409.287 presos(as) que informaram escolaridade e
instrução, 31.575 (7,71%) eram analfabetos, 50.502 (12,33%) declararam
alfabetizados sem escolaridade, 186.949 (46,47%) possuíam ensino funda-
mental incompleto, 48.372 (11,81%) possuíam ensino fundamental com-
pleto, 40.894 (9,99%) possuíam ensino médio incompleto, 27.920 (6,82%)
possuíram ensino médio completo, sendo irrisórias as taxas de ensino
superior (completo ou incompleto) que atingiam 4.486 (1,09%).
Quanto ao item faixa etária, a partir da mesma quantidade de informantes,

234
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

O cotidiano forense experimentado no Brasil revela, via


de regra, postura judicial condescendente com o punitivismo,
mormente nos momentos processuais decisivos, fenômeno
que se materializa na jurisprudência através do “desvirtua-
mento da prática”, nos termos apresentados por Fauzi Choukr.7
Dentre os inúmeros momentos-chave de atuação judicial, é
possível visualizar esta prática desvirtuada dos preceitos
constitucionais, exemplificativamente, na facilidade no de-
ferimento e na manutenção de prisões cautelares8; na distri-
buição não paritária da prova, em detrimento dos direitos
dos acusados9; na utilização de metarregras para acentuar a
quantidade de pena nas sentenças condenatórias10; na resis-
tência em aplicar alternativas à prisão11; e na dificuldade em

obtêm-se os seguintes dados: 127.386 (31,12%) presos entre 18 e 24 anos,


105.471 (25,76%) entre 25 e 29 anos, 69.384 (16,95%) entre 30 e 34 anos, 60.000
(14,65%) entre 35 e 45 anos e 26.597 (6,49%) acima de 46 anos.
7 Choukr, Processo Penal de Emergência, pp. 147-162.
8 Neste sentido, conferir dissertação sobre os discursos dos acórdãos judiciais
provenientes das Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul, referentes a julgamentos de Habeas Corpus em casos de prisão preventiva
nos anos de 2005 e 2006, Vasconcellos, A Prisão Preventiva como Mecanismo de
Controle e Legitimação do Campo Jurídico, pp. 129-169. De igual forma, Vasconcelos
& Azevedo, O Campo Jurídico e a Demanda Punitiva: uma análise sociológica
das decisões sobre prisão preventiva no Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul, pp. 01-14. De igual forma, Choukr, Processo..., pp. 147-157.
9 Neste sentido, conferir dissertação sobre os discursos dos acórdãos judiciais
provenientes das Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul, referentes aos casos de argumentação de nulidade nos anos de 2005
e 2006, Tovo, Nulidades e Limitação do Poder de Punir: Análise de Discurso de
Acórdãos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, pp. 43-80. De igual forma,
Tovo & Carvalho, Nulidades do Processo Penal e Constituição, pp. 511-533.
10 Neste sentido, conferir dissertação sobre os discursos judiciais na aplicação
da pena nos crimes do roubo no Rio Grande do Sul, Rodrigues, As Fontes do
Imaginário Judicial: Motivação das Decisões nos Crimes de Roubo no Rio Grande do
Sul, pp. 48-71; e o resultado parcial da investigação sobre aplicação da pena
nos Tribunais Superiores, Carvalho et al., Notas sobre os Critérios de Aplicação
da Pena no Brasil, pp. 363-392.
11 Neste sentido, conferir Carvalho, Substitutivos Penais na Era do Grande
Encarceramento, pp. 01-24.

235
CriminologiaS: Discursos para a Academia

deferir os direitos dos apenados em sede de execução penal12.


As atuações no sentido da imposição de limites à hipercrimi-
nalização e ao encarceramento em massa, no ambiente políti-
co-criminal atravessado pelo populismo punitivo, tornam-se
episódicas e, frequentemente, rejeitadas pela opinião pública
e pelo senso comum prático-teórico da rede de atores do sis-
tema judicial.
Desta forma, o controle da ampliação dos processos de
criminalização acaba sendo realizado pelas Cortes Superiores,
cujo atuar, apesar de oscilatório entre tendências garantistas e
punitivistas, ainda permite fixar alguns parâmetros mínimos
ao excesso encarcerador.
A imersão histórica dos atores processuais na cultura
inquisitória produz, inclusive, a inviabilização de eventuais
mudanças legislativas direcionadas à diminuição dos níveis
de encarceramento. Destacou Boaventura de Souza Santos, na
análise da reforma do sistema judicial penal em Portugal, que
“não há reformas que resolvam os problemas se não houver uma
cultura judiciária que as sustente (...). Só a mudança cultural - que
para que ocorra “amanhã” exige que se definam e comecem a execu-
tar, desde já, os instrumentos dessa mudança – é que pode impedir
atitudes de resistência a alterações legais, mais chocantes naquelas,
cujo objectivo principal é o aprofundamento de direitos e garantias
constitucionalmente consagrados. O trabalho de campo realizado

12 Neste sentido, conferir as dissertações sobre as decisões judiciais nos


incidentes de execução penal, Larruscahin, Práticas Institucionais Violentas
no Processo de Execução Penal, pp. 59-120; Conti, A (I)Legitimidade dos Laudos
Periciais na Execução Penal, pp. 95-108; e Bujes, Entre Sagrados e Profanos:
Ensaio sobre as Práticas Jurídicas e a Produção de Sentidos em Processos de
Execução Criminal, pp. 98-159. De igual forma, Bujes & Azevedo, Os Reflexos
do Discurso Penal Repressivo nas Decisões Judiciais de Concessão de Progressão de
Regime Prisional da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre/RS, pp. 01-03.

236
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

permitiu identificar vários casos emblemáticos dessa resistência, al-


guns com sérios efeitos perversos.”13
Os efeitos perversos produzidos pelos atores, ao des-
naturalizar normas que ampliam liberdade através de inter-
pretações punitivistas, caracterizam, em realidade, processos
hermenêuticos de inversão ideológica no sentido garantista
de determinados estatutos, expondo, em toda sua extensão, a
forma mentis inquisitória, que caracteriza a postura dos opera-
dores do direito.
Neste aspecto, apesar da postura pessimista (ou radical-
mente realista), importante o diagnóstico de Hulsman sobre
os projetos de reforma do sistema penal: “as intenções de re-
forma, como mostra a história recente, produzem, geralmente, re-
sultados opostos aos esperados.”14 Isto porque, segundo o autor,
inexiste coesão no interior do sistema, atuando os operadores
de forma totalmente autônoma em seus sub-sistemas em re-
lação aos seus deveres e responsabilidades, de forma a tornar
incontrolável o poder punitivo.15
A questão parece indicar, conforme apontou o estudo lu-
sitano, que, se o Poder Judiciário pretende ser efetivamente
legítimo, não pode ser passivo e transferir suas responsabili-
dades16, como ocorre em inúmeros casos no Brasil em relação
à postura dos juízes frente ao caos penitenciário. Pelo contrá-
rio, deve enfrentar estes problemas e, por mais difícil que seja
romper o ciclo de violência institucional no interior do siste-
ma penal, projetar postura de radicalização no enfrentamento
às violações dos direitos humanos das pessoas.

13 Santos, A Justiça..., p. 549.


14 Hulsman, Criminologia Critica y Concepto de Delito, p. 88.
15 Hulsman, Criminologia..., p. 88.
16 Santos, A Justiça..., pp. 550-551.

237
16.
O Estado Penal e os Atores
das Ciências Criminais

Na formulação teórica do modelo garantista, Ferrajoli es-


tabelece os critérios para definição da democracia substancial
e as formas de intervenção estatal para concretizar o Estado
constitucional de direito. Alia o absenteísmo do Estado liberal
com o intervencionismo do Estado social para forjar a máxi-
ma que resumiria o tipo ideal de Estado de direito nas demo-
cracias ocidentais: “direito penal mínimo, direito social máximo.”1
Intervenção subsidiária do Estado para limitação dos direitos
individuais, preponderância da atuação estatal para efetiva-
ção dos direitos sociais.
No entanto, na fase do desenvolvimento do capitalis-
mo mundial, com a gradual ruptura com as bases do Estado
de bem-estar a partir da efetivação das políticas econômicas
neoliberais, percebe-se a inversão da máxima proposta por
Ferrajoli, com a ampliação do direito penal e a redução dos
direitos sociais.
A patologia punitivista que atinge grande parte dos
países ocidentais reforça a ideia de consolidação de Estados
Penais (Carceral State), nos quais a prisão adquire importante
função de gestão das massas excluídas e vulneráveis, percebi-
das como riscos sociais a serem neutralizados e incapacitados.

1 Ferrajoli, Diritto..., pp. 901-904.

239
CriminologiaS: Discursos para a Academia

Não por outra razão Larrauri aponta que dentre os prin-


cipais fatores de resistência e de proteção da sociedade contra
o populismo punitivo estão a integração e a diminuição das de-
sigualdades sociais – “os seguintes fatores se associam com a ma-
nutenção de castigos limitados e orientados à ressocialização, são por
assim dizer ‘fatores protetores’ do populismo punitivo: o grau de in-
tegração da sociedade; menores cotas de desigualdade; não utilização
eleitoral da questão penal; alta contenção dos meios de comunicação;
e a existência de um corpo técnico para assessorar sobre a eficácia e o
impacto das reformas penais e que atuem como instituição ‘interme-
diária’ entre a opinião pública e os políticos.”2 Segundo a autora,
é possível afirmar a existência de importante relação entre os
índices de encarceramento, o modelo político-econômico (re-
lação entre Estado social, delito e prisionalização) e a cultura
política (relação entre participação social e legitimidade go-
vernamental, demanda punitiva e prisionalização).3
Estados democráticos e sociais nos quais há intervenção
para efetivação dos direitos coletivos e diminuição da desi-
gualdade; governos com níveis adequados de legitimidade; e
sociedades participativas nas decisões das políticas governa-
mentais, são fatores que tendem a direcionar diagnóstico de
estruturas sociais e políticas menos punitivistas e, em conse-
quência, com reduzidos índices de encarceramento.
Nos países centrais que assumem o papel de gestores do
neoliberalismo e nas sociedades periféricas que consomem
tais políticas econômicas – mesmo sem haver efetivado em
sua história a integralidade das políticas públicas do Estado
de Bem-Estar –, inegavelmente o alto grau de punitivismo
será realidade inquestionável.

2 Larrauri, Populismo..., p. 17.


3 Larrauri, Economia..., pp. 08-14.

240
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

O caso brasileiro torna-se, pois, exemplar.


A questão que se coloca na investigação, portanto, é so-
bre o papel dos atores do sistema penal neste cenário político-
-econômico e político-criminal. Sobretudo o papel do juiz. A
possibilidade de ação resistente ou a adesão ao punitivismo
pelo operador do direito passa, conforme destacado, pela per-
cepção da política populista punitiva como (i)legítima.
Conforme demonstrado ao longo da pesquisa, a tradi-
ção jurídica brasileira tem como referência uma cultura de inter-
venção na qual predominam práticas inquisitórias. O Delegado
de Polícia, no inquérito policial, e o Juiz, no processo criminal,
tornaram-se, por força desta tradição, os principais atores, os
protagonistas para a resolução do desvio criminalizado. O papel
de protagonistas, localizado no centro do poder punitivo, pro-
duz mentalidade e forma de atuar punitivista (inquisitória), nas
quais o investigado e o réu são percebidos como fonte de prova
e objeto de intervenção (punição) e não como sujeitos de direitos
em situação processual paritária.
A mentalidade inquisitória estabelece relação verti-
calizada na qual o juiz, apesar das regras penais protetivas
vinculadas ao devido processo, extravasa o potesta puniendi
concretizando-o em forma de punitividade. A formação de
quadros mentais paranóicos e a atuação regida pelo primado
das hipóteses sobre os fatos (Cordero) marca a forma de agir
do inquisidor.
Desta maneira, aliando o cenário político-criminal e a
cultura inquisitória, é possível compreender a tendência dos
atores do sistema punitivo nacional em aderir naturalmente
ao populismo punitivo, transformando as demandas repres-
sivas em concretude prisional. A propósito, as pesquisa reali-
zadas pelas Instituições, Institutos e Associações expostas ao

241
CriminologiaS: Discursos para a Academia

longo do texto permitem perceber que, em alguns casos, há


adesão explícita à lógica punitivista-inquisitorial.
No campo da aplicação da pena, conforme demons-
trado na pesquisa empírica, as amarras legais fornecem
importantes barreiras de contenção à vontade de punir. No
entanto, em determinados casos, o processo de interpreta-
ção judicial permite realizar, na redação da sentença penal
condenatória, inversão do sentido garantista dos institutos
de tutela dos direitos fundamentais – reversibilidade do di-
reito (Herrera Flores e Sanchez Rúbio) –, fazendo com que
normas ampliadoras da liberdade sejam utilizadas como
fundamento para a sua limitação. Outrossim, leis lacuna-
res e porosas, como os tipos penais abertos que compõem
grande parte da arquitetura legal de aplicação da pena,
tornam-se, em meio à lógica inquisitorial, instrumentos de
legitimação do punitivismo.
Fundamental notar, contudo, que as conclusões extraí-
das da pesquisa empírica não estão isoladas. Pelo contrário,
ao agregar às investigações sobre o pensamento político-
-criminal dos atores processuais penais desenvolvidas pelas
Instituições, Institutos e Associações, as inúmeras teses e dis-
sertações sobre a forma de interpretação judicial em situações
determinantes para a redução do encarceramento (v.g. estudo
sobre decretos de prisões preventivas, sobre a forma de decla-
rar nulidades, sobre os critérios de progressão de regime na
execução penal), confirma-se a hipótese de adesão dos opera-
dores do sistema penal brasileiro ao punitivismo.
Logicamente existem focos de resistência. Nota-se, po-
rém, que estas zonas de resistência configuram exceção.
Outrossim, possível perceber através da pesquisa sobre
aplicação da pena que o maior grau de punitivismo está locali-
zado nos julgamentos monocráticos, adquirindo os Tribunais,

242
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

sobretudo o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal


de Justiça, fundamental papel de contenção dos excessos ine-
rentes à lógica punitivista. E, além disso, em momentos im-
portantes, direcionar a jurisprudência no sentido garantista
da interpretação das normas penais e processuais penais.

243
17.
Resistências (Im)Possíveis

No entanto à hipótese da incorporação do punitivismo


pelos atores do sistema penal no Brasil devem ser confronta-
das as possibilidades de sua alteração.
Inúmeros trabalhos têm como ideia central que o esclareci-
mento dos consumidores leigos sobre os princípios que regem
o sistema penal, seus procedimentos e a exposição de situações
concretas, provocaria sensível diminuição na vontade de punir.
Larrauri sustenta que é possível convencer o legisla-
dor de que ele não está determinado pelo populismo puni-
tivo, que inclusive há suficiente base social para resistência.
Segundo a autora, o processo de esclarecimento permitiria
demonstrar para as pessoas que o número de delitos é menor
do que se imagina, que a maioria não possui a gravidade que
é noticiada, que o número de condenações não é baixo e que
as penas impostas não são tão benevolentes como parecem
ser. Apresentar o delito em seu contexto, iluminar o proble-
ma, permitiria diminuir a ansiedade, o medo, a tensão sobre
a questão criminal.1
Inegavelmente, apresentar o problema criminal e pe-
nitenciário como realmente se manifesta auxilia na compre-
ensão da questão criminal e tende a diminuir os fatores que
potencializam repressivismo. Neste aspecto, o trabalho dos
investigadores das ciências criminais é extremamente neces-

1 Larrauri, Populismo..., p. 18.

245
CriminologiaS: Discursos para a Academia

sário, inclusive para contrapor a espetacularização do crime


realizada por grande parte da imprensa. Encontrar mecanis-
mos de diálogo com o público consumidor do sistema penal
parece, portanto, fundamental. Não apenas porque há indí-
cios suficientes na literatura criminológica para afirmar que
a demanda emotiva do leigo é minimizada no momento da
confrontação com casos concretos, mas, sobretudo, porque é
democrático e necessário que as pessoas (opinião pública) se
envolvam com a questão criminal e participem ativamente da
tomada de decisões.
Outra questão importante é a falsa percepção, exposta
por inúmeros experts, de que a racionalidade das decisões
político-criminais é mantida com a exclusão da opinião públi-
ca do debate. Loader reputa como elitista o modelo que opta
pela delegação da definição das políticas criminais aos dou-
tos em detrimento da participação da sociedade, consideran-
do equivocada a presunção de que os especialistas são liberais
ilustrados e o povo emotivo e punitivo.2
Gertner, avaliando o papel dos juízes na construção de
alternativas ao Estado penal, agrega elementos que permitem
concluir que a opinião pública não seria tão punitiva, como
sugerem a mídia e os políticos, se lhes fossem fornecidos os fatos.
No entanto a má notícia seria a de que os Tribunais, que efeti-
vamente conhecem os fatos individuais, têm sofrido extraor-
dinárias pressões, independente do delito cometido. Assim,
“a conclusão é irônica: aqueles que possuem a informação sobre os
infratores – os juízes – enfrentam extraordinária pressão por aqueles
que não possuem – o público.”3

2 Apud Larrauri, Economia..., p. 17.


3 Gertner, Alternatives to the Carceral State: the Judge’s Role, p. 664.

246
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

Novamente o problema se direciona ao papel dos atores


do sistema penal no cenário de hiperencarceramento provo-
cado pelo populismo punitivo. A questão que resta, portanto,
é se os operadores do direito possuem mecanismos protetivos contra
as demandas punitivistas que lhes permita julgar sob a orientação
da proteção dos direitos e garantias individuais.
Do contrário, poderia ser colocada a seguinte aporia: como
explicar a expectativa (teórica) de que se a opinião pública conhe-
cesse os casos reais teria postura menos punitivista, se atores judi-
ciais, que efetivamente dominam a realidade concreta do sistema
e o caso concreto, incorporam o populismo punitivo?
Os diagnósticos apresentados pelas pesquisas de campo
apontam, porém, para a ampla proliferação da ideia puniti-
vista, independente do grau de esclarecimento das pessoas
sobre a questão criminal. E em revisão da literatura, possível
perceber que o fenômeno não atinge apenas o Brasil.
Em importante análise das formas de gestão administra-
tiva e judicial que se desenvolveram nos Estados Unidos a
partir da denominada guerra contra o crime (war on crime4),
Jonathan Simon conclui que o fenômeno punitivista modifi-
cou as mentalidades e a lógica da justiça criminal. Destaca,
inclusive, que o populismo punitivo foi especialmente árduo
com os juízes, em decorrência da cobrança por resultados
pragmáticos, notadamente o encarceramento. Nota que “des-

4 Wacquant considera inadequado utilizar a expressão guerra contra o crime. Em


primeiro lugar porque os processos de criminalização não são operados por
militares contra inimigos externos da nação, mas por órgãos civis que lidam
com cidadãos detentos que, ao invés de serem expulsos ou aniquilados, são
reintroduzidos na sociedade; em segundo, porque a declarada guerra não
teria sido empreendida contra o crime em geral, mas, basicamente, contra os
crimes de rua cometidos em bairros de classes desfavorecidas e segregadas
das metrópoles norte-americanas; em terceiro, porque o acionamento da
luta contra o crime serviu tão-somente como pretexto para a reformulação
das funções do Estado (Wacquant, O Lugar..., p. 10).

247
CriminologiaS: Discursos para a Academia

de os anos 60, notavelmente com poucas alterações nos últimos 40


anos, os juízes têm sido amplamente responsabilizados pelos políti-
cos por serem ‘indulgentes com a criminalidade’.”5 A indulgência
refere-se, fundamentalmente, à individualização e limitação
das penas – sobretudo no sistema anterior às guidelines senten-
cing – e diminuição das prisões (preventivas). O efeito deste
processo foi o desenvolvimento de “(...) jurisprudência pouco
identificada com o liberalismo ou o conservadorismo, mas cada vez
mais complicada, orientada aos fins e defensivista.”6 Outrossim,
“conduzida pela Suprema Corte, os Tribunais americanos produzi-
ram uma postura judicial reativa em relação à guerra contra o crime
que se traduz em ampla gama de teorias jurídicas (...).” Conclui,
apoiado em Bilionis, que “os elementos chave desta jurisprudên-
cia inclui antipatia em relação às posturas liberais, formuladas por
um conjunto de ideias políticas conservadoras sobre o crime, enfa-
tizando principalmente a dissuasão e o potencial incapacitante da
punição severa e a estratégia de distinguir o núcleo dos direitos libe-
rais, enquanto os mesmos direitos são reduzidos em sua periferia.”7
Parafraseando o próprio Simon, é possível dizer que o fe-
nômeno da guerra ao crime produziu nos atores do Judiciário
norte-americano mentalidade regida pela lógica de julgar
através do crime, o que implica sempre decidir de acordo com
as expectativas da repercussão que a decisão produzirá na
opinião pública.
A dúvida acerca do impacto neutralizador que o esclare-
cimento provocaria nos índices de punitivismo, a partir das
hipóteses trabalhadas em relação à opinião pública e ao tra-
balho dos experts, parece direcionar o problema para resposta
inconclusa. Todavia os fundamentos de filosofia política que

5 Simon, Governing Through Crime, p. 113.


6 Simon, Governing… p. 113.
7 Simon, Governing… p. 130-131.

248
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

sustentam a teoria do garantismo penal e a perspectiva crítica


que a ruptura provocada pelo paradigma do etiquetamen-
to produziu na criminologia possibilitam compreender esta
aparente aporia.
A teoria garantista, ao interpretar o atuar dos operado-
res processuais e as formas de produção da decisão, procura
encontrar mecanismos para potencializar o sistema acusató-
rio, opondo-se aos efeitos altamente deletérios decorrentes
da lógica inquisitória que configurou historicamente o sis-
tema penal. A criminologia (crítica), ao analisar a incidência
das agências penais sobre as pessoas e os grupos vulneráveis
(processos de criminalização), percebe que a inquisitorialida-
de é ínsita e molda as práticas punitivas.
A convergência de ambas as perspectivas permite con-
cluir que o exercício do poder punitivo, independente da boa
ou da má intenção dos seus titulares, é potencialmente viola-
dor dos direitos fundamentais, ou seja, tende à proliferação do
punitivismo e da lógica encarceradora. Não por outra razão
o desenvolvimento de perspectiva teórica garantista estrutu-
rada nos ensinamentos da criminologia crítica impõe que seja
pressuposta concepção pessimista (ou trágica) sobre os pode-
res, sobretudo os punitivos, de forma a entender seu exercício
como naturalmente voltado à violação (e não à defesa) dos
direitos das pessoas.
Assim, a lógica inquisitorial e punitivista passa a ser per-
cebida como variável constante na configuração da estrutura
penal repressiva. Conforme proposto em outro momento,8
seria mais coerente identificar graus (baixo ou alto) de inten-
sidade do inquisitorialismo do sistema penal presentes nos
distintos momentos históricos, nos diversos discursos de legi-

8 Carvalho, Antimanual de Criminologia, pp. 73-78.

249
CriminologiaS: Discursos para a Academia

timação e nas diferentes leis penais, do que dicotomizar com


modelos garantistas.
A questão não seria, portanto, se o esclarecimento das pes-
soas permite diminuir os níveis de punitivismo. Esta dúvida a
criminologia contemporânea respondeu, satisfatoriamente, de
forma positiva. O problema parece não estar radicado nas pes-
soas que, apesar de suas perspectivas político-ideológicas mais
ou menos punitivistas, tendem a ser mais racionais em suas res-
postas quando obtêm informações menos confusas e sensacio-
nalistas sobre a questão criminal. O problema parece radicar nas
formas pelas quais os locais do poder punitivo capturam seus atores
e desenvolvem mentalidade inquisitória.
Possível compreender, portanto, o garantismo penal como
discurso e como prática voltada para a instrumentalização do con-
trole e da limitação dos poderes punitivos. Desde esta perspectiva,
entende-se que a forma de diminuir punitivismo na atividade
dos atores (administrativos e jurisdicionais) do sistema pu-
nitivo passa, fundamentalmente, pelo estabelecimento de re-
gras claras e precisas, diminuindo ao máximo os espaços de
discricionariedade. No caso do estudo da aplicação da pena,
possível perceber claramente como os tipos penais abertos
são preenchidos pela lógica inquisitorial, motivo pelo qual a
limitação da discricionariedade judicial é fundamental para a
inversão do atual direcionamento hipercarcerizador.
No entanto este controle interno que seria possibilitado
em decorrência de emprego de melhor técnica legislativa na
redação dos tipos penais e/ou de orientações jurisprudenciais
claras e precisas, diz respeito aos mecanismos de interpreta-
ção da Lei, estando restrito aos horizontes dogmáticos da ati-
vidade dos próprios atores judiciais. E por esta razão enten-
de-se limitada sua eficácia para a mudança da cultura judicial

250
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

inquisitória que se desdobra em punitivismo e se efetiva em


encarceramento.
Embora tenha sido defendida em momento anterior
postura conservadora em relação aos riscos que a abertura do
procedimento judicial pode acarretar aos direitos e garantias
fundamentais,9 após a investigação sobre o papel dos atores
do sistema penal, foi possível perceber a necessidade de que
os envolvidos diretamente no conflito tenham possibilidade
de fala e possam intervir e opinar sobre as alternativas para
resolução do seu caso.
A abertura do espaço público não pode implicar, logi-
camente, limitação aos direitos e às garantias do réu. No en-
tanto, torna-se inconcebível para um modelo de Justiça, que
se pretenda democrático, que a única fala legítima no pro-
cesso seja aquela emitida pela autoridade judicial, como se
todo o rito tivesse como único interessado o representante
do Estado. Não apenas porque esta concentração de poder
tende a supervalorizar o papel do juiz e, consequentemente,
reforçar sua (auto)imagem como principal sujeito do ritual
processual, mas, sobretudo, porque o conflito pertence às pes-
soas, devendo ser o processo mecanismo voltado à tentativa
de resolução do caso que envolve o(s) autor(es) do fato e a(s)
vítima(s). Do contrário, o processo judicial transforma-se em
mera burocracia, fim em si mesmo, forma pela forma.
A possibilidade de que no espaço público sejam criadas
condições para que as pessoas possam realizar encontro, con-
frontar as circunstâncias que causaram o conflito e discutir alterna-
tivas é fundamental para que o trauma do delito seja supera-
do. Aos poderes públicos, neste caso, cabe o exclusivo papel

9 Neste sentido, conferir Carvalho, Considerações sobre as Incongruências da


Justiça Penal Consensual, pp. 129-159; e Carvalho, Cinco Teses para Entender a
Desjudicialização Material do Processo Penal Brasileiro, pp. 89-106.

251
CriminologiaS: Discursos para a Academia

de intermediador e facilitador do encontro e das resoluções. Aliás,


provavelmente os atores do processo, pela cultura inquisitória,
sejam as figuras menos indicadas para atuar neste momento.
As condições para realização deste encontro – o momen-
to, o local, a forma de intermediação e as alternativas propos-
tas – e os efeitos na esfera processual, podem ser vislumbra-
dos nos atuais procedimentos da Justiça Restaurativa e con-
duzem à conclusão de que a intervenção e a adjetivação do
conflito como penal normalmente cria maiores problemas do
que proporciona soluções.
No entanto, para além das práticas restaurativas, mesmo
os casos que sobram à Justiça Penal, entende-se fundamental a
abertura do espaço para os envolvidos, de forma que possam
ser efetivamente ouvidos e possam intervir realmente na sua
resolução. A abertura do procedimento com a ênfase em falas
não-tecnocráticas pode contribuir positivamente para a rup-
tura, a mudança e, quem sabe, a superação da mentalidade
inquisitória que configura a lógica do sistema penal.

252
18.
Conclusão Específica: Reformas
Penais, Punitivismo e
Responsabilidade
Político-Criminal:
Duas Propostas Legislativas

Na atual situação político-criminal de ampliação super-


lativa da criminalização, parece não haver possibilidade outra
senão radicalizar o discurso na defesa de significativa mudan-
ça do cenário de encarceramento.
O projeto, no plano legislativo, estaria inexoravelmente
vinculado à proposta abolicionista de moratória no processo
de construção de novos presídios ou de novas vagas prisio-
nais. No entanto igualmente requer efetiva alteração nos cri-
térios legais e judiciais de decisão que fomentam o aprisiona-
mento em massa, como destacado na análise dos critérios de
aplicação da pena.
Questão outra e de fundamental necessidade de análise é
a da possibilidade de criação de instrumentos de responsabi-
lização dos atores da política criminal nos planos Legislativo,
Executivo e, inclusive, Judiciário.
Ambas as ações, porém, não podem prescindir de ver-
dadeira alteração na cultura punitivista que as sociedades de
controle contemporâneas estão submersas, e que no Brasil,

253
CriminologiaS: Discursos para a Academia

em virtude da formação histórica dos atores, se confunde com


a própria construção das agências do sistema penal.

18.1. Vedação Expressa ao Encarceramento

O art. 5º, XLVI da Constituição, determina que a lei re-


gulará a individualização da pena e aplicará, entre outras, (a)
privação ou restrição da liberdade; (b) perda de bens; (c) pres-
tação social alternativa; (de) multa; e (e) suspensão ou interdi-
ção de direitos. Do rol constitucional referente às espécies de
penas conclui-se que sua previsão é meramente exemplificati-
va, sendo, portanto, abertas possibilidades de outras sanções,
desde que respeitados os limites do art. 5º, XLVII.
As penas previstas na Constituição permitem não ape-
nas deslocar a centralidade da privativa de liberdade como
perceber que a própria privação de liberdade não implica em
reclusão carcerária, apesar da histórica associação. Não por
outro motivo a Lei 9.714/98, ao alterar o Código Penal, regu-
lamentou as penas restritivas de direito e criou modalidades
sancionatórias distintas daquelas arroladas na Constituição.
Caso exemplar, porém, é o da nova Lei de Drogas. Ao
seguir o processo de diversificação e de descentralização da
prisão, ao regulamentar a sanção do delito de porte de drogas
para uso pessoal (art. 28, Lei 11.343/06), inovou em algumas
importantes questões, possibilitando novas compreensões so-
bre a relação entre delito e sanção. Em primeiro lugar, rom-
peu com o histórico vínculo entre crime e pena privativa de li-
berdade, fato que levou, inclusive, alguns doutrinadores mais
apressados a sugerir a descriminalização da conduta. A Lei
11.343/06 inovou ao fixar diretamente no preceito secundário
penas não-privativas de liberdade. A segunda alteração foi
no que diz respeito à incorporação ao ordenamento jurídico

254
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

brasileiro da pena de admoestação (art. 28, I), na modalidade


advertência sobre os efeitos das drogas. Em terceiro, estabelece
vedação expressa de qualquer tipo de encarceramento (caute-
lar ou definitivo) ao usuário de drogas (art. 28, caput §§ 3º, 4º
e 6 e art. 48, caput, §§ 2º, 3º e 4º1).
A técnica utilizada parece ser absolutamente adequada e
define novo estilo legislativo, orientado à redução dos danos
produzidos pela prisionalização a partir da constatação do
alto poder de atração que exerce o carcerário. Pelos resulta-
dos produzidos nas últimas décadas e vislumbrados na pes-
quisa, parece notório que as cláusulas abertas e genéricas que
facultam ao Judiciário o aprisionamento são, invariavelmen-

1 “Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo,
para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação
legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os
efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a
programa ou curso educativo. (...)
§ 3º. As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo
prazo máximo de 5 (cinco) meses.
§ 4º. Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste
artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.
§ 6º. Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput,
nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz
submetê-lo, sucessivamente a: I - admoestação verbal; II - multa.”
“Art. 48. O procedimento relativo aos processos por crimes definidos neste Título
rege-se pelo disposto neste Capítulo, aplicando-se, subsidiariamente, as disposições
do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal.(...)
§ 2º. Tratando-se da conduta prevista no art. 28 desta Lei, não se imporá
prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao
juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer,
lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e
perícias necessários.
§ 3º. Se ausente a autoridade judicial, as providências previstas no § 2o deste artigo
serão tomadas de imediato pela autoridade policial, no local em que se encontrar,
vedada a detenção do agente.
§ 4º. Concluídos os procedimentos de que trata o § 2o deste artigo, o agente será
submetido a exame de corpo de delito, se o requerer ou se a autoridade de polícia
judiciária entender conveniente, e em seguida liberado.” (grifou-se)

255
CriminologiaS: Discursos para a Academia

te, mandatos em branco que geram como resultado concreto


ampliação do encarceramento.
Em decorrência deste alto poder de atração exercido pela
instituição carcerária, Leis que vedam expressamente sua aplica-
ção são as únicas ferramentas adequadas para sua contenção do
punitivismo no plano da criminalização secundária, embora seja
imprescindível, de igual forma, projetar possibilidades reais de
responsabilização dos atores do sistema penal por ações temerá-
rias e que desrespeitem os Direitos Humanos.
O necessário processo de autorresponsabilização pelo atual
estado do sistema penal-carcerário brasileiro impõe a percepção
de que as prisões que constituem o arquipélago punitivo são efe-
tivamente as nossas prisões – e não outras, idealizadas, como se
percebe nos discursos punitivistas e nas construções da dogmá-
tica ascética. E esta realidade prisional da vida crua é o reflexo da
assustadora competência inquisitória dos atores da rede política
e jurídica em sempre (e cada vez mais) fomentar criminalização
e impor sofrimento através da pena.
O estado atual dos cárceres diz da forma como a socie-
dade brasileira resolveu historicamente suas questões sociais,
étnicas, culturais, ou seja, pela via da exclusão, da neutrali-
zação, da anulação da alteridade. Diz da violência hiperbó-
lica das instituições, criadas no projeto Moderno para trazer
felicidade às pessoas (discurso oficial), mas que reproduzem
– artificialmente, mas com inserção no real – a barbárie que
a civilização tentou anular. Diz da falácia dos discursos polí-
ticos, dos operadores do direito e da ciência (criminológica),
sempre perplexos com a realidade e ao mesmo tempo rece-
osos, temerosos, contidos, parcimoniosos frente às soluções
radicais (anticarcerárias), pois protegidos pela repetição da
máxima da prisão como solução necessária.

256
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

Se a opção político-criminal produz como único resul-


tado a ampliação do encarceramento, o ciclo de violência
inerente às estratégias de legitimação do arquipélago carce-
rário dificilmente será minimizado com o acréscimo de redes
alternativas. Neste quadro, aliado à necessidade de vedação
expressa do encarceramento, imprescindível a responsabili-
zação dos atores das agências punitivas pelo uso abusivo do
sistema penal-carcerário, para poder minimizar os impactos
decorrentes da cultura do encarceramento em massa.

18.2. Responsabilidade Político-Criminal

O ordenamento jurídico brasileiro fornece algumas di-


cas sobre mecanismos que poderiam obstruir a interferência
episódica e contingencial da agência Legislativa no campo
político-criminal, sem obstaculizar legítima intervenção em
casos relevantes.
Nas últimas décadas, é possível perceber certa patologia
nas reformas penais (direito penal, processo penal e execução
penal) que atinge não apenas o Brasil, mas grande parte dos
países ocidentais de tradição romano-germânica: absoluta au-
sência de estudo prévio dos efeitos da legislação penal. Não apenas
nos casos de normas penais que direta ou indiretamente am-
pliam hipóteses de incriminação, mas inclusive nas normas
que ampliam direitos individuais, há total ausência de contro-
labilidade e planejamento.2
Invariavelmente as reformas penais punitivas ocorrem a
partir de dois eixos centrais: (a) projetos para responder casos
emergenciais (v.g. Lei dos Crimes Hediondos) ou (b) projetos

2 Importante estudo sobre a ausência de controlabilidade no sistema de penas


é verificado em Machado & Machado, Sispenas..., p. 04-06.

257
CriminologiaS: Discursos para a Academia

baseados em sistemas dogmáticos idealizados por notáveis


(v.g. Lei dos Juizados Especiais Criminais, reformas parciais
do Código de Processo Penal).
No primeiro caso, o Legislativo, impulsionado pela
pressão da opinião pública, realiza alterações com objetivo de
responder contingencialmente casos de grande repercussão.
Nestes episódios, as leis normalmente são impulsionadas pela
demanda midiática, representando claramente o fenômeno
político-criminal do populismo punitivo. No segundo caso, a
tendência é a elaboração de projetos com maior coerência em
termos dogmáticos, ou seja, Leis harmônicas com a estrutura
e a principiologia penal e processual penal.
Em ambas as situações, porém, nota-se absoluta ausência
de investigações empíricas prévias que possibilitem projetar
minimamente os impactos da nova Lei no âmbito judicial e ad-
ministrativo. Assim, a tradição legislativa brasileira tem oscilado
entre o populismo e o idealismo punitivo, ou seja, entre Leis penais
de cunho meramente populistas e Leis penais voltadas à preser-
vação do ideal de harmonia e coerência do sistema jurídico-pe-
nal – normalmente a partir de definidas concepções ideológicas
que se refletem na dogmática e na política criminal. Lógico que
o encontro de ambos os idealismos pode ocorrer, notadamente
durante o debate parlamentar, quando o discurso populista in-
sere elementos estranhos nos projetos ideais originários, retiran-
do a pretensa coerência auferida pelos notáveis.
Ocorre que, na maioria dos casos, os textos legais pro-
vocam alterações significativas no perfil do sistema punitivo
sem que tenham sido projetados seus resultados. Em relação
aos substitutivos penais, p. ex., as Leis 9.099/95 e 9.714/98, que
teriam importantes efeitos na minimização dos níveis de pri-
sionalização, foram abruptamente incorporadas no sistema
sem qualquer preparação dos operadores do sistema e, ao in-

258
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

vés de alcançar a meta descarcerizadora, aumentou a rede de


controle punitivo.
Em termos macropolíticos, portanto, importante apontar
para a necessidade de incorporação na cultura legislativa de
estudos prévios de impacto político-criminal nos projetos de Lei
que versam sobre matéria penal. A pesquisa preliminar de
impacto não apenas vincularia o projeto à necessidade de in-
vestigação das consequências da nova Lei no âmbito da admi-
nistração da Justiça Criminal (esferas Judiciais e Executivas),
mas poderia exigir, inclusive, a exposição da dotação orça-
mentária para sua implementação. Assim, exemplificativa-
mente, em casos de Leis com proposta de criação de novos
tipos penais ou aumento de penas, tornar-se-ia imprescindí-
vel, para aprovação do projeto na Casa Legislativa, exposição
de motivos que apresentasse (a) o número estimado de novos
processos criminais que seriam levados a julgamento pelo
Judiciário, (b) os números de novas vagas necessárias nos es-
tabelecimentos penais, (c) o volume e a origem dos recursos
para efetiva implementação da Lei.
Se a opção político-criminal dos Poderes Públicos é o au-
mento das penas e o recrudescimento das formas de execução,
imperativo que imponha deveres e implique responsabilida-
des. Na esfera das finanças públicas, p. ex., existem importan-
tes precedentes, como é o caso da Lei Complementar 101/00
(Lei de Responsabilidade Fiscal), que estabelece normas de
finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão
fiscal, com amparo na Constituição.
À exigência de responsabilidade fiscal dos gestores pú-
blicos deve estar agregado o dever de responsabilidade políti-
co-criminal, notadamente pelo caos que vive o sistema carce-
rário brasileiro. Ação planejada e transparente, prevenção de
riscos e desvios para que sejam cumpridos os ditames cons-

259
CriminologiaS: Discursos para a Academia

titucionais e legais referentes à dignidade do réu e do conde-


nado é o mínimo que se espera quando se tem como primeira
opção política o encarceramento. Do contrário, inexiste legiti-
midade possível na punição.
Ademais, além da necessidade de estudo do impacto das
novas Leis no sistema punitivo (Judiciário e Executivo) – com
a indicação dos recursos necessários para instrumentalizar o
processamento e o julgamento dos casos, a ampla defesa dos
acusados e a execução das penas e/ou medidas –, fundamen-
tal prever formas de aplicação localizada do novo instrumen-
to Legislativo, de modo a permitir análise laboratorial.
Neste sentido, interessante o procedimento adotado na
reforma da Justiça Criminal chilena.
Após longa vigência do Código de Processo Penal, o
Chile reformulou, em sentido estrito, sua legislação pro-
cessual penal, e, de forma ampla, a estrutura judiciária. Em
face do profundo impacto da alteração, sobretudo em razão
da cultura inquisitiva que formou os atores do sistema pe-
nal chileno, a reforma foi estruturada em distintas dimen-
sões. A estratégia de instrumentalizar e de dar efetividade ao
câmbio estrutural foi a de implementação gradual do novo
Código, com apoio na observação empírica por especialistas.
Assim, a reforma inaugurada no final de 2001 iniciou-se em
dois setores específicos do país, locais de menor densidade
populacional. Após 14 meses foi implementada nas regiões
intermediárias, atingindo, por final, a região metropolitana e
a capital Santiago. Ao longo do período de incorporação da
reforma pelo sistema jurídico-político, projeto envolvendo as
Universidades e o Centro de Estudos da Justiça das Américas
designou observadores para analisar os pontos problemáticos
e sugerir adequações.

260
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

Conforme indicam Baytelman & Duce, ao expor as técnicas


de análise dos observadores, a “metodologia radica na observação
in loco e descrição das práticas cotidianas dos operadores do novo sis-
tema de justiça criminal (...)” que permitiu “ter uma imagem geral
do funcionamento da reforma e que se baseiam, em grande medida, em
profundas entrevistas realizadas com mais de 90 atores do sistema, a
compilação e análise de diversos documentos e estudos empíricos acerca
da reforma, a revisão da imprensa nacional e regional.”3
O modelo de reforma gradual, com constante e ininter-
rupta (auto)crítica sobre o impacto das novas estruturas na
vida real das pessoas às quais o sistema é dirigido (atores
processuais, réus, vítimas e colaboradores), permite desen-
volver práticas facilitadoras, além de envolver, através do di-
álogo e da escuta, os diretamente implicados, diminuindo a
resistência ao novo. Outrossim, facilita detectar problemas e
efeitos perversos típicos das políticas institucionais e fomen-
tar a profissionalização dos serviços a partir de boas práticas
administrativas. No caso chileno, segundo os observadores,
a reforma permitiu a efetivação do sistema acusatório, com
gradual assunção dos novos papéis pelos atores das agências
do sistema penal.

3 Baytelman & Duce, Evaluación de la Reforma Procesal Penal: Estado de una


Reforma en Marcha, p. 07.

261
19.
Atuação no Campo Punitivo
e Redução de Danos

A alteração no rumo das políticas econômicas internacio-


nais, a partir da década de 80, delineou nova forma de inter-
venção punitiva na qual a prisão exerce importante papel de
neutralização das pessoas e dos grupos incômodos. A pesquisa
pretendeu analisar as circunstâncias normativas e culturais
que fomentaram o fenômeno punitivista no Brasil, pois, na
realidade marginal, a (re)significação do sentido retributivo
e incapacitador da prisão, aliada à carência das políticas do
modelo penal welfare, potencializa a violência das agências de
execução penal.
Embora seja evidente que o fenômeno do punitivismo
foi transnacionalizado com as políticas econômicas neolibe-
rais, as especificidades locais não permitem que o fenômeno
seja percebido como universal. Inclusive porque em muitas
sociedades ocidentais foram impostos freios que limitaram de
forma consistente a consolidação do Estado Penal.
Torna-se fundamental, pois, em nossa realidade, com-
preender, ao mesmo tempo, o processo global de expansão
do punitivismo e o impacto do fenômeno. Desde esta com-
preensão, elaborar pautas de atuação objetivando a redução
dos danos causados pela constante e redundante intervenção
legislativa no recrudescimento do direito penal e pelas omis-

263
CriminologiaS: Discursos para a Academia

sões dos órgãos administrativos em garantir condições míni-


mas de sobrevivência dos condenados nos cárceres.
Assim, para além da necessidade de racionalização e de
ressistematização do quadro geral dos delitos, das sanções,
dos procedimentos e da execução – atuação na esfera do
Poder Legislativo –, é imprescindível atuação de resistência
junto aos operadores do direito, de forma a provocar ranhu-
ras na cultura jurídica inquisitória que tende a perceber como
legítimas as políticas punitivistas derivadas da assunção do
populismo pela política criminal oficial. Conforme sustenta-
do, durante o processo de construção da política de encarce-
ramento, hipóteses concretas de limitação de prisionalização
foram e são disponibilizadas. No entanto os filtros ao encar-
ceramento acabam sendo obstaculizados ou simplesmente es-
quecidos pelos operadores do direito.
Neste quadro, a hipótese que guiou a investigação foi a
de que o fenômeno do grande encarceramento que caracteriza a po-
lítica criminal nacional não está limitado à incorporação do populis-
mo punitivo pelo Poder Legislativo, visto que para sua consolidação
é necessário que os sujeitos processuais assumam como legítima a
intervenção punitivista e a vivifiquem durante a persecução penal.
A sintonia entre os sujeitos processuais (agência
Judiciária) e os atores das agências Legislativa e Executiva de-
corre do compartilhamento da vontade de punir, presente na
formação inquisitória dos operadores do direito e nas expec-
tativas publicitárias (eleitorais) dos agentes públicos.
No campo do sistema penal, o inquisitorialismo cria regi-
me de produção de verdade que exclui os envolvidos no caso pe-
nal, reforçando o papel de império do julgador (decisionismo
judicial) – protagonista da cena processual, incapaz de ouvir
o drama das pessoas envolvidas e mediar resolução. O efeito,
em termos processuais penais, é obstaculizar a efetivação do

264
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

sistema acusatório delineado na Constituição, impedindo que


se realize democracia processual.
No entanto possível perceber que apesar do senso comum
prático-teórico inquisitório que orienta as ações dos sujeitos
processuais, as Cortes Superiores brasileiras ainda exercem, de
forma tímida e esporádica, controle dos excessos punitivos, em
atuar que oscila tendências garantistas e punitivistas.
Ao vislumbrar possibilidades de ação resistente, foi
questionado o papel dos atores do sistema penal no cenário
político-econômico e político-criminal, sobretudo do juiz. Se
ao aliar o cenário político-criminal e a cultura inquisitória
é possível compreender a tendência dos atores do sistema
punitivo em aderir ao punitivismo, igualmente possível es-
tabelecer formas de atuação crítica com objetivo de reduzir
os danos provocados pelo encarceramento massivo. Desde
o plano intradogmático, através da utilização das lacunas e
contradições da Lei penal para ampliar os espaços de liberda-
de; e desde o plano extradogmático, com o incentivo da par-
ticipação cada vez mais efetiva dos envolvidos na resolução
dos conflitos (justiça dialogal).
Por mais que o discurso da dogmática penal seja poroso
e predisposto a produzir inversões ideológicas nas normas
que garantem liberdade, é na racionalidade jurídica que se
encontram as ferramentas que possibilitam atuação resistente
dos operadores.

265
20.
Conclusão Específica:
Limites e Critérios de Aplicação
da Pena e Punitivismo no Brasil

Através da análise quantitativa e qualitativa dos jul-


gados foi possível verificar uma das hipóteses iniciais da
investigação, qual seja, a de que existe forte tendência de os
Tribunais (em praticamente todos os graus de jurisdição)
manterem estáveis e pouco flexíveis suas posições jurispru-
denciais, situação que solidifica a tradição jurídica inqui-
sitorial arraigada no senso comum teórico dos juristas, no
preciso diagnóstico de Warat.1
A compreensão da formação cultural inquisitiva é fun-
damental para que se possam estabelecer parâmetros razoa-
velmente viáveis para qualquer reforma do sistema penal que
vise minimizar os efeitos das políticas criminais punitivistas,
sobretudo no que tange à dosimetria da pena. Isto porque
mudanças que não observem esta tradição tendem a tornar-
se estéreis e ineficazes, quando não produzem efeitos perver-
sos, como foi a alteração provocada pela Lei 9.714/98 (Lei das
Penas Alternativas).2

1 Warat, Saber Crítico e Senso Comum Teórico dos Juristas, pp. 27-35.
2 Importantes críticas à Lei em Reale Jr., Mens Legis Insana: Corpo Estranho,
pp. 23-25. Sobre os efeitos perversos da Lei 9.714/98, conferir Carvalho,
Substitutivos Penais na Era do Grande Encarceramento (prelo).

267
CriminologiaS: Discursos para a Academia

Neste sentido, é possível apresentar algumas conclusões


específicas em relação aos critérios de aplicação da pena a
partir do diagnóstico prático-teórico. A pesquisa na jurispru-
dência dos Tribunais e na doutrina especializada possibilitou
confrontar os critérios de aplicação e vincular sua (falta de)
instrumentalidade à cultura jurídico-criminal brasileira.
Outrossim, em relação aos projetos de reforma no sis-
tema de penas, as recentes experiências – não apenas as Leis
9.099/95 e 9.714/98, mas, inclusive, as reformas no Código de
Processo Penal – permitem traçar alguns importantes diag-
nósticos e prognósticos.

1º. O atual quadro de penas no Brasil padece de


profunda assistematicidade em todos os níveis: penas
cominadas legalmente, critérios judiciais de aplicação
e forma judicial-administrativa de execução. O proble-
ma é gerado pela ausência de reforma geral que re-
alize adequação ao postulado da proporcionalidade
das sanções. Assim, a manutenção da parte especial,
mutilada por reformas ocasionais e na maioria das ve-
zes populistas; a gradual descodificação; e a mudança
metodológica da parte geral com a Lei 9.714/98 gerou
sistema altamente complexo e aberto ao punitivismo.

2º. O esforço legislativo, portanto, deveria ser


o de recodificação, objetivando a redação de novo
Código Penal, na linha do trabalho da atual Comissão
de redação do Novo Código de Processo Penal (PLS
156/2009).

3º. A existência de Comissão para redigir novo


Código de Processo Penal, logo após a aprovação de inú-
meras reformas no processo, expõe os equívocos das re-
formas parciais. No campo das penas, projeta a necessi-

268
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

dade de reforma geral na estrutura das penas, sobretudo


nos crimes em espécie e na legislação ordinária, de forma
a adequar aos comandos constitucionais.

Conforme demonstrado anteriormente, o atual quadro


de penas, imerso em complexo e assistemático modelo, apre-
senta quadro preocupante, sobretudo em relação à falta de
guias claras sobre a aplicação da pena, situação que, na atual
conjuntura político-criminal, potencializa o encarceramento
massivo.
Na análise dos acórdãos foi possível perceber o emara-
nhado no qual estão inseridos os aplicadores do direito, per-
didos em conceitos vagos, lacunosos, contradições legais e
imprecisas fórmulas jurisprudenciais. A ausência de critérios
que permita ao julgador realizar de forma razoável e propor-
cional a individualização da pena – como, p. ex., para decifrar
o significado das circunstâncias judiciais, para diferenciar as
circunstâncias e os elementos do tipo, para diferenciar o con-
teúdo de circunstâncias judiciais e legais, para distinguir ar-
gumentos condenatórios e valoração da reprovabilidade, para
concretizar as circunstâncias e vincular a aplicação da pena às
provas produzidas na instrução processual, para quantificar
o peso das circunstâncias na dosimetria da pena – fomenta o
descontrole neste momento crucial de incidência do sistema
punitivo na sociedade, produzindo as inúmeras lesões nos di-
reitos individuais expostas na análise da pesquisa empírica –
violação dos princípios da fundamentação das decisões, do ne
bis in idem, do contraditório, da legalidade, da livre apreciação
da prova, da isonomia e da secularização.
Frise-se novamente, porém, que a crítica não é dirigida
exclusivamente ao Poder Judiciário. A pesquisa qualitativa
demonstra, inclusive, que normalmente o próprio Judiciário
intervém na correção das violações elencadas, revelando dis-

269
CriminologiaS: Discursos para a Academia

tintos graus de punitivismo entre as esferas. Todavia, como


igualmente foi percebido, o respeito sacral à tradição juris-
prudencial também produz efeitos negativos que devem ser
enfrentados.
Em termos político-criminais, com objetivo de redução
dos danos do punitivismo e diminuição dos índices de en-
carceramento, entende-se que eventual reforma (parcial ou
global) no sistema de aplicação de penas deveria primar por
alguns valores.

4º. Para efetivar reforma no sistema de aplicação


das penas é imprescindível o aprimoramento da técni-
ca legislativa, com redação clara e objetiva e demons-
tração exaustiva dos critérios de valoração da reprova-
ção pessoal pelo ilícito.

5º. Em relação à graduação (cálculo) da pena,


referência importante seria a metodologia prevista no
Código Eleitoral, que, em razão da não-fixação de mí-
nimo, estabelece piso sancionatório comum a todos os
crimes3 e critérios específicos de quantificação de ate-
nuantes e agravantes4 – o que permitiria, inclusive, a
rediscussão da Súmula 231 do STJ.

6º. Como forma de valorizar experiências im-


portantes e não esquecer nosso presente, interessan-
te a possibilidade de retomar projetos que antecipam
em muito as conclusões apresentadas, notadamen-
te o Projeto Reale Jr. Conforme destacado em outro

3 “Art. 284. Sempre que este Código não indicar o grau mínimo, entende-se que será
ele de quinze dias para a pena de detenção e de um ano para a de reclusão.”
4 “Art. 285. Quando a lei determina a agravação ou atenuação da pena sem mencionar
o quantum, deve o Juiz fixá-lo entre um quinto e um terço, guardados os limites da
pena cominada ao crime.”

270
Salo de Carvalho
O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

momento,5 o projeto Reale Jr. atingia pontos efetiva-


mente problemáticos do nosso sistema, diminuindo
a abertura das normas de aplicação da pena que, na
pesquisa, demonstrou ser a principal potencializadora
de punitividade.

7º. Na redação do art. 59, caput, do Código Penal,


proposta pelo Projeto Reale Jr., são excluídas as circuns-
tâncias personalidade e conduta social (substituídas por
condições pessoais do acusado), e é acrescida a circunstância
de coculpabilidade intitulada oportunidades sociais ofereci-
das. Ademais, há o deslocamento, para a primeira fase,
da agravante da reincidência. Verbis: “o juiz, atendendo à
culpabilidade, antecedentes, reincidência e condições pessoais
do acusado, bem como as oportunidades sociais a ele oferecidas,
aos motivos, circunstâncias e consequências do crime e ao com-
portamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e
suficiente à individualização da pena”.

8º. Em nosso sistema, conforme constatado, nas


circunstâncias personalidade e conduta social proliferam
inúmeras contradições e indeterminações. De igual
forma, é notório o fato de que a quantidade das penas
é severamente acrescida pela agravante da reincidência.
A alteração proposta indica soluções interessantes que
merecem ser debatidas. Inclusive porque na exposição
de motivos é justificada a exclusão da personalidade e
da conduta social, a partir da percepção de sua inde-
monstrabilidade e irrefutabilidade empíricas, situação
que ofende o princípio do contraditório.

5 Carvalho & Carvalho, Aplicação da Pena e Garantismo, p. 78/9.

271
CriminologiaS: Discursos para a Academia

Outrossim, sustenta-se que qualquer reforma no sistema


deve prescindir não apenas de investigações acadêmicas e de
diálogo com os operadores, mas de laboratórios de testagem
empírica.

9º. Adequado, portanto, na esfera das reformas


legislativas, criação de instrumentos de estudo de
impacto político-criminal6 como forma de projetar
eventuais efeitos perversos e de criar condições de im-
plementação de boas práticas. Assim, para além das
análises laboratoriais, a testagem empírica torna-se
altamente salutar no quadro político-criminal e carce-
rário brasileiro.

Para finalizar, mister ressaltar que qualquer reforma no


sistema puntivo, seja de maior ou de menor impacto, deve
criar condições efetivas de aplicabilidade das normas e deve
ser orientada, político-criminalmente, para diminuir ao máxi-
mo o encarceramento. Ademais, dentro dos limites do possí-
vel, deve evitar, ao máximo, os riscos e os efeitos perversos,
sobretudo aqueles de ampliação da rede de punição.
Assim, sem olvidar a tendência sempre presente nas prá-
ticas penais de ampliação da violência, olhar realista sobre o
problema pode auxiliar no processo de vivificação do texto
constitucional e de tutela dos direitos humanos das pessoas.

6 Carvalho, Em Defesa da Lei de Responsabilidade Político Criminal, pp. 08-09.

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ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de Derecho Penal: Parte


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