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A APLICAÇÃO DISTANCIANDO-SE DA TEORIA: Uma analogia entre o Leviatã e o

Regime Militar Brasileiro de 1964.

Carlos Eduardo Farias Tenório

Thomas Hobbes foi um dos três grandes filósofos contratualistas e um grande


teórico político do século XVII na Inglaterra, durante a guerra civil instaurada entre o Rei e o
Parlamento e, durante esse período lançou uma das maiores obras acercado Estado, da
sociedade e da política, O Leviatã. Abordando o Estado como uma entidade necessária para a
manutenção da sociedade, postulando que, para manter racionalmente uma sociedade “unida”,
a mesma teria que se alinhar e aceitar um poder absoluto e centralizado, alocando o Estado e o
seu respectivo governante nesse posto de soberania e inatingibilidade perante o restante da
sociedade civil e política.

Hobbes, para introduzir o Leviatã, criou um conceito conhecido como Estado de


Natureza, um estado onde os indivíduos viveriam isolados e em conflito constante, sendo
aplicada a ideia da guerra de todos contra todos, surgindo daí uma das frases mais conhecidas
de Hobbes, “o homem é o lobo do homem”. Contudo, logo após a criação desse conceito por
Hobbes(1651), Locke(1689)1 acabou por também formular seu conceito de Estado de Natureza,
sendo este um mais pacifico que o postulado por Hobbes, como afirma a seguir:

Entretanto, ainda que se tratasse de um ‘estado de liberdade’, este não é um ‘estado


de permissividade’: o homem desfruta de uma liberdade total de dispor de si mesmo
ou de seus bens, mas não de destruir sua própria pessoa, nem qualquer criatura que se
encontre sob sua posse, salvo se assim o exigisse um objetivo mais nobre que a sua
própria conservação. O ‘estado de Natureza’ é regido por um direito natural que se
impõe a todos, e com respeito à razão, que é este direito, toda a humanidade aprende
que, sendo todos iguais e independentes, ninguém deve lesar o outro em sua vida, sua
saúde, sua liberdade ou seus bens.(1689, pág. 35)

Porém, segundo Hobbes, nesse primeiro estágio o ser humano realmente estaria em
um estado de natureza, e não em um estágio pré-social como Locke propõem, os atos violentos,
sejam necessários ou não, seriam aceitos e permitidos, não existiria justiça e nem injustiça,
tampouco um direito natural imposto a todos; o medo reinaria, principalmente o medo da morte
violenta, sendo assim, para se proteger uns dos outros, o homem acabaria por criar armas e
cercar as terras em que se encontra. Contudo, tais ações eram inúteis, pois sempre haveria

1
LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil, Petrópolis: Editora Vozes, 1994, pág 35.
alguém mais forte que venceria o mais fraco e tomaria suas terras e suas vidas. Ademais, todos
os indivíduos inseridos no Estado de Natureza para Hobbes são iguais, onde cada um tem suas
habilidades para se manter no controle de sua respectiva vida e propriedade. Consequentemente,
a vida não teria garantia; muito menos a propriedade, a única lei que vigoraria era a força do
mais forte e mais apto, sendo estes os únicos que teriam meios para conquistar e conservar suas
terras e suas vidas.

A sociedade para Hobbes precisava a todo custo superar o estado de natureza, e


com isso surgiu o contrato social e o Leviatã. O contrato social era um acordo de “cessar fogo”
entre dois ou mais indivíduos, criando um estado onde a autopreservação dos mesmos seria
maximizada, por conta do acordo onde os mesmos não se atacariam. Contudo, o estado de
natureza de Hobbes era um estado onde os indivíduos – baseados em seu egoísmo puro –
buscavam somente sua própria autoconservação, fazendo com que a outra parte não pudesse
confiar cegamente no contrato estabelecido, e ainda haveria a questão dos indivíduos fora do
acordo firmado entre ambos.

O contrato social, para ser celebrado entre os indivíduos, deveria ter como base a
abdicação da própria liberdade em prol de sua segurança. A transferência de seu autogoverno
para a entidade considerada o Estado e seu representante. Abordando o absolutismo do Estado
e de seu governante, não precisando ele ser necessariamente um rei, podendo ser também uma
assembleia, porém, tendo preferência ao absolutismo de um Rei. Com a criação do Estado por
meio do pacto social, o mesmo seria responsável por elevar a sociedade de um status de estado
de natureza, da guerra de todos contra todos, para um estado de sociedade civil. O absolutismo
do Governante e do Estado para Hobbes era um pequeno preço a se pagar para ter a sua
segurança e de seus bens garantida. E foi assim que surgiu a necessidade de uma entidade
soberana, do Estado, o Leviatã para Hobbes.

O soberano poderia ser um rei, um grupo de aristocratas ou uma assembleia


democrática. O fundamental não é o número de governantes, mas a determinação de quem
possui o poder e a soberania. Esta pertencente de modo absoluto ao Estado, que, por meio das
instituições públicas, tem o poder para promulgar e aplicar as leis, definir e garantir a
propriedade privada e exigir obediência incondicional dos governados, desde que respeite dois
direitos naturais intransferíveis: o direito à vida e à paz, pois foi por eles que o soberano foi
criado. O soberano detém a espada e a lei; os governados, a vida e a propriedade dos bens.
Hobbes dizia que, por mais tirano e ditador que o governante fosse, aceitar esse
modelo de governo e se alinhar com o mesmo seria infinitamente melhor que promulgar a vida
em sociedade dentro do Estado de Natureza que antes se fazia presente. Abdicando de parte de
sua liberdade política e civil para manter seus bens e sua segurança. Acreditando que, apesar
do claro apoio ao autoritarismo e a um governo tirano, tal modo era o único meio para a
sobrevivência de uma sociedade com segurança e sem guerras.

Contudo, Hobbes, apesar de defender o absolutismo do Estado e do governante,


abordava subjetivamente que o poder dos Reis era advindo de um contrato celebrado pelo povo,
indo contra o absolutismo da Igreja que pregava que Deus dava poder aos Reis para governar o
povo, sendo considerado um dos primeiros autores a lidar, mesmo que indiretamente, com o
conceito de Democracia. Afirmando que a existência do Estado servia unicamente para garantir
a segurança dos indivíduos que abdicaram de sua respectiva liberdade para a formação do
mesmo. Hobbes tinha como objetivo criar um Estado onde a segurança à vida e aos bens fosse
muito mais importante que a liberdade civil e principalmente a política. Convergindo em um
modelo ditatorial, onde o governante teria poderes para combater o que ele, em sua própria
concepção, consideraria perigo ao Estado, como Hobbes (1651)2 afirma:

Mas infligir qualquer dano a um inocente que não é súdito se for para benefício da
república, e sem violação de nenhum pacto anterior, não constitui desrespeito à lei de
natureza. Por que todos os homens que não são súditos ou são inimigos ou deixaram
de sê-lo em virtude de algum pacto anterior. E contra os inimigos a quem a república
julgue capaz de lhe causar dano é legítimo fazer guerra, em virtude do direito de
natureza original, no qual a espada não julga, nem o vencedor faz distinção entre
culpado e inocente, como acontecia nos tempos antigos, nem tem outro respeito ou
clemência senão o que contribui para o bem do seu povo. É também com este
fundamento que, no caso dos súditos que deliberadamente negam a autoridade da
república, a vingança se estende legitimamente, não apenas aos pais, mas também a
terceira e quarta gerações ainda não existentes, que consequentemente são inocentes
do ato em virtude do qual vão sofrer (1651, pág. 269).

Avançando alguns séculos na história, o Regime Militar Brasileiro foi instaurado e


acabou por adotar práticas não tão distantes do que Hobbes pregava no Leviatã, com um
absolutismo do Estado e de seu governante. Tendo início no Golpe de 1964, este que foi o
estopim para a instauração de uma ditadura militar no Brasil, que se sucedeu após um grande
descontentamento para com o então presidente, eleito por eleições democráticas, João Goulart,

2
HOBBES, Thomas. Leviatã. Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil (1651). (Tradução de João
Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva). São Paulo: Martins Fontes, 2003, p 269.
havendo uma grande movimentação por parte das Forças Armadas, do Alto Clero da Igreja e
de algumas sociedade civis; e juntamente ao grande acúmulo de problemas políticos e sociais
de governos anteriores ao seu, Jango foi deposto em Abril de 1964, iniciando assim aquele
período em que o governo ficaria somente nas mãos das forças armadas.

A principal promessa daqueles que cometeram o golpe em 1964 era ligada somente
a uma área, a política; tinha como objetivo majoritário acabar com a corrupção e com os
problemas políticos deixados por governos anteriores ao Regime Militar. Entretanto, como nem
tudo são flores, com o passar dos anos, foi evidenciando-se que o principal objetivo do governo
militar era a criação de uma nação onde o nacionalismo seria implantado juntamente com um
leve gancho para o liberalismo, graças ao alinhamento dos militares brasileiros com os EUA e
onde o Presidente não pudesse ser questionado e/ou tão pouco pressionado pelo povo ou pela
imprensa brasileira.

O então presidente do Congresso Nacional, Ranieri Mazzili, foi o primeiro


“responsável” pelo comando do governo após o golpe de 1964 – por estar na linha de sucessão
da presidência –, o mesmo acabou por dar início à implantação dos Atos Institucionais, que
tinham como objetivo principal justificar a tomada do poder do Estado pelos militares.

Posteriormente à nomeação de Ranieri Mazzili, no dia 11 de abril de 1964, o


marechal Castelo Branco foi “eleito” indiretamente por eleições, para ocupar o cargo de
presidente da república. Durante seu governo, algumas atitudes tomadas por Castelo Branco
eram de um autoritarismo grotesco que acabava por se mascarar de democracia, apesar de que
o mesmo afirmava que o governo militar era somente temporário e com o intuito de corrigir a
política, certos atos que foram tomados demonstram que o governo pretendia se manter no
poder à longo prazo, seja graças à cassação dos mandatos de políticos da esquerda – que eram
considerados um perigo contra o governo e contra o Presidente, a intervenção em greves, em
associações e o início da utilização dos Atos Institucionais como meios para reprimir inimigos
políticos e uma certa parcela da população que resistia duramente ao governo e à ditadura.
Violando um dos princípios da formação do Estado para Hobbes e da celebração do contrato
social entre o povo e governante, o qual afirmava que o Estado tinha o dever de garantir a
segurança e a vida do indivíduo e de seus bens, podendo violar tal conceito somente se o mesmo
não estivesse dentro do contrato social antes celebrado, ou em vigência entre o povo e o Estado.

Não bastando somente a direção totalmente contrária ao que Hobbes afirmava no


Leviatã, o Estado brasileiro a partir de 1964, continuou tornando-se cada vez mais “linha dura”
e violento com a população e com a oposição, culminando, anos mais tarde, no AI-5, este que
deliberava plenos poderes ao presidente para cassar mandatos, direitos civis e políticos, o auge
do autoritarismo que um dia Hobbes pregou ser necessário para que um Estado fosse
considerado um lugar seguro onde um indivíduo poderia viver “livremente” e em segurança.
Entretanto, o governo militar a partir de 1969, começou uma verdadeira empreitada política que
chegou a ameaçar até mesmo a segurança da sociedade como um todo, eliminando ali, o único
possível alicerce que ligaria a Ditadura Militar Brasileira ao Leviatã.

Após ultrapassar tal ponto, o governo militar passou a enfrentar cada vez mais a
rejeição e a resistência por grande parte da população, culminando na “extinção” do regime
militar em 1985, sendo convocada uma assembleia constituinte que buscava a todo custo uma
redemocratização no sistema político e jurídico brasileiro, implantando um modelo de
democracia no qual o povo participaria das decisões por meio de seus representantes no
congresso e no senado, tendo uma participação muito mais “ativa” nas decisões referentes ao
governo no Brasil, recusando veementemente o modelo absolutista de Hobbes e o autoritarismo
do Regime Militar, buscando as liberdades antes retiradas pelo mesmo. Popper(1974)3 afirmava
que nenhuma liberdade poderia ser garantida sem o Estado; já sem a participação do povo, o
Estado não poderia oferecer uma boa segurança, como afirma a seguir:

Liberalismo e interferência do estado não se opõem mutuamente. Ao contrário,


qualquer espécie de liberdade será claramente impossível se não for assegurada pelo
estado… De facto, não há liberdade se não for assegurada pelo estado; e inversamente
só um estado controlado por cidadãos livres pode oferecer alguma segurança razoável.
(1974, pág. 126)

Contudo, apesar dos avanços na questão democrática no Brasil, principalmente com


a implantação da Constituição de 1988, ainda existem diversos vestígios do regime militar que
estão enraizados no sistema jurídico e político brasileiro, dentre eles, podemos citar
principalmente a grande quantidade de políticos hoje presentes e no exercício de seus cargos
dentro do congresso e do senado, sendo estes apoiadores explícitos acerca da volta do regime
militar, políticos não só presentes no poder Legislativo, mas também no Executivo, tendo como
exemplo mais gritante o atual presidente da república, Jair Messias Bolsonaro, um verdadeiro
retrocesso dentro da democracia brasileira, mesmo após praticamente 34 anos do final do

3
POPPER, Karl. R. A Sociedade Aberta e seus Inimigos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974, p.126.
regime militar, um político que apoia o mesmo, foi eleito por meio de eleições democráticas,
em um movimento contra a esquerda brasileira, assemelhando-se muito com o ano de 1964.

Ademais, apesar de todas as controvérsias envolvendo a democracia brasileira –


deslocando-se a passos de tartaruga –, o recente regime “democrático” brasileiro caminha em
direção àquilo que um dia almeja ser, um regime democrático onde a representatividade da
sociedade seja realmente cumprida por aqueles que a representam no meio político. Onde seus
próprios objetivos pessoais sejam suprimidos pelo seu dever maior, o de manter a manutenção
da sociedade e do Brasil como um todo.

REFERÊNCIAS

HOBBES, Thomas. Leviatã. Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil (1651).
(Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva). São Paulo: Martins Fontes,
2003.

LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil(1689). Petrópolis: Editora Vozes,
1994, pág 35.

POPPER, Karl. R. A Sociedade Aberta e seus Inimigos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974, pág
126.

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