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Como é habitual nas odes de Ricardo Reis, o «eu» dirige-se a um «tu», fazendo uso da
segunda pessoa e do modo imperativo (“tenhas”), a quem aconselha uma vida estoica,
desapegada de bens materiais e de afetos, isto é, uma vida vivida racionalmente em apatia: “Não
tenhas nada nas mãos / Nem uma memória na alma” (vv. 1 e 2).
O objetivo dessa renúncia surge explicitado nos versos seguintes: aceitar e encarar a
morte sem sofrimento, pois não se está apegado à vida terrena. Está aqui presente uma ideia
cara a este heterónimo: o princípio estoico da resistência do homem ao sofrimento, à dor,
nomeadamente o que resulta da morte, que deve ser encarada a frio, “sem nada nas mãos”
(vazio). Note-se, porém, que esse conselho nada mais é do que uma tentativa ilusória para
combater a dor e a perturbação causadas pela passagem do tempo e a proximidade da morte.
Por outro lado, nenhum poder («trono»), nenhum triunfo ou glória terrena, impedirão a
chegada da morte e de nada valerão nesse momento. Mais: nesse momento, o da morte, todas
as conquistas em vida, todas as emoções e sentimentos experimentados, todas as glórias e bens
pessoais serão “fanados” no momento fatal. Por isso, o ser humano deve renunciar em vida a
tudo para, no final do caminho, nada perder. Nesse sentido, são usadas as interrogações
retóricas das estrofes 4 e 5, que retratam essa inutilidade das “conquistas” terrenas e a
efemeridade da vida. Se o ser humano nada possuir, nada lhe podem tirar. A interrogação da
estrofe 4 questiona, basicamente, o seguinte: que coisas pode o homem possuir em vida –
posição social, poder, riqueza material, etc. – que a morte não retire? Dito de outra forma, a
morte é certa e o poder, o mérito, a grandeza e a glória que o homem possa possuir nada valem
perante Átropos (a morte) e não a evitam. Minos é o juiz que implacável que nos conduzirá aso
infernos. Tudo isso é, com efeito, vão, efémero e está condenado à fatalidade, acabando no
momento da morte, quando a moira decide cortar o fio da vida. Com a morte, o homem torna-se
uma lembrança, uma mera sombra (note-se a oposição a “sol”). A noite e o fim da estrada são
representações simbólicas da morte, o apagamento do ser e o fim da vida.
Nos versos finais, regressam os conselhos de índole comportamental e moral:
1.º) aproveitar o momento presente, de forma serena e contida (para evitar qualquer perturbação)
(“carpe diem”): “Colhe as flores” (v. 15);
2.º) recusar qualquer emoção intensa, de modo a obter a tranquilidade: “Larga-as / Das mãos” (vv. 15
e 16);
3.º) seguir os ideais da apatia e da ataraxia (convite a uma vida em que seja mero espetador,
semelhante ao feito a Lídia para que se sentem junto ao rio e contemplem o seu curso): “Senta-
te ao sol” (v. 17);
4.º) Abdicar / renunciar: “Abdica” (v. 17).
Assim, fazendo uso do imperativo, o sujeito poético aconselha o «tu» a quem se dirige à
renúncia, à abdicação. Ele apela à moderação dos prazeres (“Colhe as flores mas larga-as / Das
mãos mal as olhaste”), baseado nos ensinamentos da filosofia epicurista: aproveitar, de forma
moderada, o momento presente evitando perturbações.
Por sua vez, a metáfora “senta-te ao sol” contém o conselho dirigido ao «tu» no sentido
de viver a vida em plenitude, a partir de uma atitude contemplativa e, simultaneamente, passiva.
Os dois versos finais sintetizam o estoicismo de Reis: porque tudo se perde no momento da
morte, o ser humano deve aprender a renunciar e a ver nessa opção um ato nobre da sua parte.
Se renunciar, nada vai perder quando morrer e, se tudo acaba por perder, o melhor é renunciar
já, voluntariamente, uma forma de autodomínio de base estoica que leva a que o ser humano se
torne senhor de si próprio. Só é possível evitar a dor e a perturbação através da aceitação lúcida
e resignada das leis da vida, no limitado espaço de que dispomos.