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OS MOVIMENTOS ESTUDANTIS NA AMERICA LATINA !

Ruy Mauro Marini

A participação dos estudantes na vida política não constitui um fenômeno novo na


America Latina. Há dez anos, chegou-se a considerar que esta atividade política distinguia
essencialmente os movimentos estudantis latino-americanos de seus homólogos europeus e
norte americanos, orientados principalmente para o sindicalismo. Alguns chegaram a
enxergá-lo como característica do subdesenvolvimento. Mas a crescente politização do
movimento estudantil francês durante a guerra da Argélia transformou tal situação, ao
passo que o fenômeno aparecia na Itália, na Alemanha e nos Estados Unidos. Enfim, a
revolução de Maio consagrara definitivamente a militância política como um dos aspectos
mais importantes dos movimentos estudantis modernos.
O fato de que este fenômeno exista há um século na America Latina não exclui a
aparição, no seio dos movimentos estudantis, de novas características que os aproximam
em numerosos pontos aos dos países capitalistas mais avançados. Para citar apenas dois
elementos, constata-se a crescente mobilização das massas estudantis, rompendo com a
ação das minorias vanguardistas de antigamente, e também uma definição ideológica mais
nítida, que, em vez de fundar a ação sobre os problemas sociais em geral traduzidos em
palavras de ordem abstratas e estranhas à consciência estudantil, dá lugar à militância
fundada sobre uma consciência revolucionaria do papel dos estudantes na luta de classes.
As formas nas quais se expressam as tendências variam consideravelmente segundo
os países da America Latina. Considerando, entretanto, as manifestações estudantis mais
notáveis dos últimos anos, percebemos que, apesar de suas singularidades – esquemas
organizativos, modos de ação, conteúdos programáticos –, estas se definem precisamente
pela mobilização massiva que provocaram e pelo papel que tentaram jogar na correlação de
forças sociais prevalecente em seus países. Conseqüentemente, podemos supor que, em
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Texto publicado em francês na revista Les temps modernes, n°219, Paris, 1970, pp. 718-731. Les temps modernes
foi fundada em 1945 por Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir e segue sendo editada até os dias atuais, sob
a direção de Claude Lanzmann. O texto foi originalmente escrito em espanhol e publicado, naquele mesmo
ano, na Revista Rocinante, editada entre 1968 e 1971 em Caracas, Venezuela; o número desta revista em que foi
publicado o artigo de Marini, no entanto, não consta na Biblioteca Nacional da Venezuela e é de impossível
acesso no Brasil. Este artigo foi posteriormente reproduzido em diferentes revistas da América Latina: em
1972, em Cuadernos Universitarios, revista de ciências sociais da Universidad Autónoma de Santa Domingo –
primeira universidade da América Latina –, e, mais recentemente, em 1997, na revista do Centro de Estudios
Miguel Enríquez, no Chile. É ilustrativo o fato de que, para a presente reprodução, foi mais fácil ter acesso à
versão francesa de Temps Modernes do que qualquer outra publicada na América Latina. A tradução do francês
ao português é de autoria de Jonathan Jaumont, com revisão de Fernando Correa Prado e Vitor Hugo Tonin.
seus aspectos gerais, estes movimentos obedecem a determinações que transcendem a
conjuntura do momento e se explicam naturalmente pelos fatores estruturais comuns a
estes países, de modo que as condições nacionais desenham apenas a forma particular de
cada movimento.
Convém tentar estabelecer um quadro geral de referências que permita analisar em
detalhe os movimentos estudantis existentes atualmente na America Latina. A própria
natureza do fenômeno nos conduziu, num primeiro momento, a examinar a situação da
educação, com a finalidade de determinar a origem precisa dos movimentos estudantis,
para então tentarmos extrair as razões que empurram os estudantes a superar a
problemática propriamente educativa e se colocar como uma força individualizada no
contexto mais geral da luta de classes. Para tanto, recorreremos a alguns exemplos que
refletirão as modalidades do fenômeno.
O traço mais marcante da recente evolução da situação do ensino na America Latina
é provavelmente o aumento continuo do número de matriculados. As estatísticas falam por
si mesmas: no período 1955-1965, registra-se um aumento de 60% no ensino fundamental,
de 111% no médio e de 92% no superior. Como o sistema não aumentou suas estruturas
proporcionalmente, este aumento traduziu-se pela diminuição da eficiência do ensino.
Basta lembrar que, apesar das boas intenções expressas repetidamente pelos governos, o
orçamento da educação pública está longe de atingir os 4% do Produto Nacional Bruto, e
que há casos, como o do Brasil, onde esta taxa diminuiu ao longo dos últimos anos. Por
outro lado, a estrutura do gasto educativo mostra que, para o período 1955-1960, 90% do
orçamento da escola fundamental foram consagrados a despesas de custeio (administração
geral, salários, etc.) e 10% a despesas de investimentos (prédios, equipamentos, etc.); no
nível médio, onde a expansão foi mais nítida, a proporção de tais despesas foi,
respectivamente, de 95% e 5%, enquanto a do nível superior iguala a do nível fundamental
(90% e 10%), pese a diferença na quantidade absoluta de matrículas entre ambos os níveis1.
A contradição é evidente demais para não chamar a atenção. Não podemos explicá-la
sem lembrar que a educação teve tradicionalmente na vida dos povos o papel de
mecanismo de regulação entre as aspirações individuais e as formas de organizações sociais.
Sem voltar muito no tempo, a sociedade feudal, fundada sobre formas de produção
primitivas e dominada pelos guerreiros e o clero, havia criado instituições educativas
militares e teológicas para as classes dominantes. Ao mesmo tempo, em relação ao
movimento das nascentes cidades, fornecia às classes burguesas um sistema de formação

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1 UNESCO, World Survey on Education, tomos II (1950), III (1961) e IV (1966).
profissional relativamente elaborado. Na sociedade burguesa, submetida às leis de
produção e troca de mercadorias, e dirigida por uma classe que funda seu poder sobre o
papel diretor da burguesia frente a outras classes sociais, a prática educativa deu lugar pela
primeira vez a um sistema nacional, aberto a princípio a todos os cidadãos e tendendo cada
vez mais a tornar-se um instrumento regulador do mercado de trabalho.
A análise da evolução dos sistemas educativos europeus mostra claramente como a
burguesia, tendo eliminado em grande parte a formação profissional após a mecanização
que tornava inútil a qualificação profissional, edificou um sistema adaptado às necessidades
da economia capitalista. Por um lado, a estreita correlação que se pode observar entre
expansão e diversificação do sistema educativo e, por outro, o processo de industrialização
e de urbanização, refletem um desenvolvimento capitalista em si coerente.
O fenômeno latino-americano é muito diferente. Em regra geral, pode-se afirmar que
a formação e o aumento do sistema educativo estão em estreita relação com o processo de
urbanização, mas, na medida em que esta urbanização se desenvolve de uma maneira
nitidamente autônoma em relação à industrialização, a evolução do sistema educativo tende
a se tornar uma variável independente no quadro do desenvolvimento das forças de
produção. O século passado nos fornece o exemplo da Argentina e do Chile, que
conheceram então uma urbanização desproporcionada em relação ao seu desenvolvimento
econômico; urbanização resultante, por um lado, de uma tendência natural das economias
mineiras e pecuárias, e, por outro, do impacto da imigração européia sobre o crescimento
demográfico. É de se notar que a Argentina e o Chile viram crescer seus setores educativos
a um ritmo muito superior se comparados a países como o Brasil e o México, onde a
urbanização era menos acentuada.
A aceleração do processo de industrialização na America Latina a partir dos anos
1930, longe de corrigir este descompasso, torna mais grave a situação. Isso se deve,
primeiramente, às novas condições do setor agrícola. Com efeito, o declínio da demanda
mundial de matérias primas atravancava o crescimento das atividades ligadas à exportação,
limitando assim a absorção de mão-de-obra2. De outra parte, o monopólio da propriedade
fundiária que reina na maioria dos países e os poucos casos de implantação de pequenas
propriedades retiram do setor que produz para o mercado interno a flexibilidade necessária
para aumentar sua oferta a um ritmo compatível com o mercado urbano em expansão,

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2Isto se deve também, ainda que em menor medida, e durante o período posterior, à introdução de técnicas
de produção destinadas a defender a capacidade competitiva da produção latino-americana no mercado
mundial.
tornando-o incapaz de enfrentar o crescimento demográfico rural, enquanto que este tende
mesmo a expulsar uma quantidade crescente de mão-de-obra.
A migração do campo para a cidade, que se produz a um ritmo acelerado, vai se
chocar, entretanto, com a incapacidade da indústria de criar empregos suficientes e com
uma expansão nitidamente anormal do setor terciário. Em relação à indústria, é preciso
distinguir duas fases: a primeira – que vai até o final da década de 1940 –, durante a qual o
aumento da demanda interna é atendido primordialmente mediante a utilização intensiva da
maquinaria existente e o emprego extensivo da mão-de-obra, o que levou a um
desenvolvimento moderado, ainda que sustentado, do emprego industrial; e a segunda,
posterior a 1950, em que se eleva o nível tecnológico do setor industrial e, nos setores mais
avançados da indústria, passa-se da utilização extensiva à utilização intensiva da mão-de-
obra. Com isso, apesar do aumento da população, assiste-se, no setor industrial, a uma
diminuição da mão-de-obra, que passa de 14,4 milhões de pessoas em 1950 a 14,3 em
19603.
Naturalmente, a redução da mão-de-obra industrial não constitui em si um traço
especifico dos países latino-americanos. Esta se apresenta, na realidade, como uma
característica geral do sistema capitalista das ultimas décadas. A singularidade da situação
latino-americana se expressa por dois traços: primeiro pela redução da quantidade de
trabalho por unidade de produto – causada pelo progresso tecnológico – não corresponder
a um amento de massa de trabalho na empresa, aumento que seria a prova de uma relação
estável entre mais-valia produzida e investimento produzido4; o segundo traço se refere ao
que já dissemos sobre o setor terciário.
Os serviços ocupam uma população crescente na maioria dos países capitalistas, com
uma particularidade para a América Latina: nos países centrais, o setor terciário cresce a
partir de um dado ponto de industrialização e guarda certa proporção em relação à
população; na América Latina, o mesmo não acontece5, visto que o crescimento do setor
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3 “Les changements structuraux de l’emploi et du developement em Amérique latine”, de Z. Slawinski, Bulletin
Economique d’Amerique latine, X, 2, outubro 1965, p. 164.
4 Se entre 1940 e 1950 a massa dos trabalhadores não diminuiu em números absolutos, sua participação

baixou proporcionalmente, passando de 32,5% em 1940 a 26,8% em 1960. Ver os estudos feitos pela CEPAL
sobre Argentina, Brasil, Colômbia, Chile, Equador, Honduras, México, Uruguai e a Venezuela. Entretanto, a
CEPAL nota que a baixa de participação proporcional do emprego não teria ocorrido se a produção
industrial, ao invés de aumentar de a uma taxa de crescimento acumulado de 3,8%, tivesse crescido de 4,9%,
taxa mínima necessária para o aumento do nível proporcional do emprego, permitindo assim ao setor
absorver dois milhões de pessoas a mais. CEPAL, Le processus d’industrialisation en Amérique latine, vol. I, pp. 78-
79.
5 Um estudo comparado das estruturas de emprego mostra que as porcentagens da população dos setores

secundários e terciários significavam respectivamente nos Estados-Unidos de 25-25 em 1880, 27-35 em 1900
e 37-50 em 1960; na Inglaterra, de 50-37 em 1881, de 51-40 em 1900 e de 49-46 em 1951; na França de 29-20
em 1886 e de 37-35 em 1954; enquanto isso, em 1960 a relação era de 21-57 na Argentina, 17-58 no Chile,
terciário tende a torná-lo independente da industrialização, a tal ponto que chega a
descolar-se do processo de desenvolvimento das forças produtivas. Se a este fator
consideramos as estruturas marcadamente monopolistas de distribuição da renda,
concluiremos que aquele setor, além de se expandir de forma desproporcional ao aumento
da riqueza nacional, não expressa a redistribuição de uma parte significativa da renda às
atividades do setor terciário. A população deste setor tende, pois, a se marginalizar, tanto
do ponto de vista produtivo, como do ponto de vista distributivo, isto é, em termos de
emprego e de consumo.
Nessa perspectiva, é difícil ligar de maneira rigorosa a expansão quantitativa da
educação na América Latina às necessidades reais de recursos humanos e de qualificação
que exige o desenvolvimento econômico. Esta expansão parece, na realidade, corresponder
ao processo de urbanização que, como vimos, não marcha ao ritmo da industrialização, e,
muito menos, do crescimento do setor agrícola. Desta análise sumária destacamos a
hipótese segundo a qual na América Latina o progresso da educação se dá na contracorrente do
desenvolvimento das forças produtivas; ademais, a contradição existente entre os dois fenômenos, longe de se
atenuar, tende a se agravar.
Convém sinalizar que o fator que determina esta situação existe no conjunto dos
países capitalistas e constitui um traço inerente ao sistema, com formas específicas na
América Latina. De fato, a aceleração do desenvolvimento tecnológico, que caracteriza o
sistema capitalista mundial, atualmente acentua cada vez mais a tendência de deslocamento
de massas crescentes de trabalhadores em benefício da máquina. Os progressos realizados
no campo da eletrônica e da automação produzem o efeito inverso ao da tecnologia em
seus primórdios: da substituição das operações do artesanato pela máquina, que poderia ser
confiada a trabalhadores não-qualificados, passou-se ao agrupamento das operações em um
conjunto de máquinas automatizadas cuja aparição reduz a mão-de-obra e a manipulação
exige alta especialização. O impulso atual do ensino técnico representa, portanto, a
contrapartida rigorosa da supressão da formação profissional – obra da burguesia em sua
fase de ascensão. Por outro lado, a exigência de um corpo técnico sempre melhor
preparado para encarar as freqüentes mudanças tecnológicas e os desdobramentos dos
níveis de ensino, com as carreiras pré-profissionais e os cursos “post-graduate”, mostram
que os sistemas educativos tentam satisfazer as duas vias pelas quais a sociedade burguesa
procura seus “talentos”: a seleção e a sofisticação. Estas características se estendem igualmente
às carreiras não-técnicas, onde se formam o corpo administrativo, os assistentes
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12-56 na Venezuela, 13-35 no Brasil, 17-30 no Mexico e 15-31 no Peru. F.H.Cardoso e J.H.Reyna,
Industrialisation, structure de l’emploi et stratification sociale en Amérique latine, versão preliminar, 1966, pp. 15-7.
psicotécnicos, os sociólogos industriais e os especialistas em economia exigidos pela
empresa capitalista moderna.
Entretanto, a capacidade de absorção das crescentes quantidades de mão-de-obra
qualificada que sai das Universidades, dos institutos tecnológicos e das escolas técnicas, nas
economias mais avançadas, depende de certo número de fatores entre os quais convém
citar:
a) A alta produtividade da mão-de-obra, ou seja, a dimensão da mais-valia extraída;
b) A exploração dos países subdesenvolvidos, cuja mais-valia gera lucros
substanciais;
c) A capacidade de reivindicação e de discussão das massas para as questões de
salário e de emprego. A este respeito, é significativo perceber que a proporção de
três técnicos médios por um engenheiro – o que corresponde aproximadamente
às normas da indústria, com variantes segundo os setores – não se observa em
nenhum país latino-americano, chegando ao ponto, como no México, em que
esta proporção é rigorosamente inversa, de modo que o engenheiro é reduzido à
função e ao salário do técnico médio.

Frente a este quadro, podemos nos perguntar como se mantém a tendência expansiva
do sistema educativo latino-americano. Esta se explica pela pressão das massas urbanas –
principalmente a classe média – que lutam para obter a qualificação necessária à sua
integração no sistema de produção; trata-se, em suma, de uma solução política sem relação
direta com as exigências próprias do sistema econômico. Entretanto, já podemos observar,
sobretudo nos países mais desenvolvidos economicamente, tentativas de mudança na
política educacional.
O caso que mais se destaca é o do Brasil, onde desde o golpe militar de 1964 o
governo passou a assinar com a U.S.A.I.D. (Agência dos Estados Unidos para o
Desenvolvimento Internacional) acordos destinados a assentar as bases da reforma
universitária. Os estudos efetuados pela comissão mista criada para tal não foram
oficialmente divulgados, mas influenciaram a política do governo, que não somente reduziu
o orçamento do ensino público, mas enveredou-se por esquemas de financiamentos do
ensino superior pelo setor privado – de modo que as instituições de ensino público devam
ser convertidas em fundações privadas e a gratuidade da matricula suprimida. Este plano
foi concebido por Rudolph Atcon, especialista da UNESCO, antigo assessor das
universidades brasileiras (após ter exercido funções similares no Chile e em outros países da
América Latina), cujo livro Rumo à reformulação estrutural da universidade brasileira defende
abertamente a tese segundo a qual “a Universidade é uma grande empresa e não uma
administração pública”. A oposição a tais planos e às medidas oficiais de restrição foi um
dos fatores de mobilização dos estudantes brasileiros, cujas violentas manifestações de rua
em 1968 levaram o governo a não renovar seu acordo com a U.S.A.I.D. – acordo que se
havia findado no mês de junho do mesmo ano. Esta tendência não se limitou ao Brasil. Em
seu relatório ao Congresso de 1966, o presidente do México, Gustavo Díaz Ordaz,
declarou que “por causa do desenvolvimento intensivo de nosso sistema educativo, a
demanda tende a ultrapassar consideravelmente as possibilidades orçamentárias dos
governos a nível federal, estadual e municipal”, e que, por esta razão, “o ensino superior
não poderia manter sua quase-gratuidade”, julgando oportuno que “esforços privados”
venham somar-se, nesta esfera, aos governamentais. Na Argentina, berço da reforma
universitária latino-americana, o governo militar do general Juan Carlos Ongania suprimiu a
autonomia universitária e a co-gestão estudantil. Em setembro de 1968, a Federação
Universitária Argentina (FUA) denunciou o projeto governamental que reduziria a
população universitária de 70.000 a 15.000 estudantes e, mesmo após nota oficial do
governo desmentindo este projeto, houve um aumento nos níveis dos exames de entrada;
citemos o caso da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade de Buenos Aires,
onde 75% dos candidatos não passaram, sendo que o nível dos exames esteve, na opinião
dos pais, muito superior aos conhecimentos de estudantes secundaristas. Enfim,
lembremos que, no Peru, depois do golpe de estado militar que derrubou o presidente
Belaunde Terry, o general Alfredo Arrisueno, novo ministro da Educação, anunciou um
corte de 30 a 40% no orçamento da educação superior.
Não podemos atribuir estes fatos a uma tendência obscurantista que teria prevalecido
na América Latina. Em certa medida é o efeito de preocupações de ordem política. Ou seja,
a diminuição orçamentária e a restrição dos matriculados representam, na América Latina,
uma manifestação da luta de classes e, mais concretamente, traduzem uma tentativa de
desarticular um dos setores melhor organizados e mais combativos da população. Estas
preocupações se revelam principalmente na intervenção norte-americana na vida
universitária, canalizada pela U.S.A.I.D., B.I.D. (Agencia para o Desenvolvimento
Internacional), O.E.A. (Organização dos Estados Americanos), Pentágono e as fundações
privadas. A orientação predominante, no entanto, segue sendo a adequação do ensino às
necessidades de recursos humanos do sistema, negligenciando completamente, dessa
maneira, a inadequação em relação às necessidades da massa, tanto do ponto de vista do
emprego quanto do consumo. Sem a análise precedente não podemos compreender porque
o movimento estudantil tende a se definir politicamente contra o sistema. Se o aumento das
matrículas nos últimos anos, principalmente no nível médio e superior, permite mobilizar
contingentes sempre maiores de estudantes, conferindo ao movimento o caráter massivo que
o distingue na década atual, a contradição entre esta expansão e a tendência do mercado de
trabalho constitui a base objetiva desta definição política. Engajados em um processo de
formação que ameaça fazê-lo desembocar na proletarização e no desemprego, o estudante
latino-americano aos poucos toma consciência do fato de que suas reivindicações
universitárias não podem encontrar soluções no quadro econômico em que vive e que,
mesmo se satisfeitas algumas demandas, não resolveriam sua problemática profissional. A
luta por uma mudança estrutural se impõe ao estudante como uma necessidade e o leva a
ocupar cada vez mais firmemente o terreno da luta de classes.
Em conseqüência, por mais imprecisa que seja a formulação de seus objetivos, os
movimentos estudantis latino-americanos não podem mais ser considerados como uma
simples massa de manobra mobilizável como no passado por tal ou qual setor das classes
dominantes em função de problemas sociais gerais e de diretrizes reformistas abstratas.
Estes movimentos têm dado a prova, ao contrário, de uma autonomia crescente em sua
estruturação e sua motivação ideológica, e buscam transformações que recolocariam em
questão a validade do sistema. A amplitude das tarefas que se fixaram os leva a medir os
limites de suas ações e a procurar o apoio de forças capazes de aceitar, e mesmo de realizar
efetivamente, a grande transformação a que aspiram: as massas trabalhadoras urbanas e
rurais, outro pólo da sociedade à qual estes se identificam. Ao mesmo tempo em que se
definem como uma força organizada autônoma, fazem de um ideal – a aliança obreiro-
camponesa – um imperativo estratégico.
As formas que toma este processo de autonomização e de identificação variam
consideravelmente em função do estágio de desenvolvimento das forças de produção e do
acirramento das contradições de classe. Estas são cada vez mais condicionadas pelos níveis
de organização atingidos pelas forças em conflito. Assim, na Venezuela ou na Colômbia, o
movimento estudantil inclina-se mais francamente para a aliança com os camponeses, as
classes medias e o sub-proletariado urbano do que com o proletariado fabril, e, portanto
toma a frente das lutas populares. Na Argentina ou no Uruguai, países mais
industrializados, cuja classe obreira aparece necessariamente como o ponto de
convergência da luta de classes, é a aliança obreiro-estudantil que se estabelece antes. Esta
escolha caminha unida a uma concepção mais realista do papel do estudante na luta de
classes: o de agitador, que aponta os problemas, e o de força auxiliar na organização das
massas para as grandes batalhas.
Até que ponto a correlação de forças no quadro da luta de classes nacional determina
o caráter do movimento estudantil? Analisemos brevemente tal questão nos países mais
industrializados como o Brasil, a Argentina e o México. Neste ultimo caso, a repressão
sistemática e por vezes brutal dos movimentos de massa, em particular da classe obreira,
privou os estudantes de qualquer referência durante o movimento de 1968. As
manifestações de rua, reprimidas abruptamente pelo massacre de 2 de Outubro em
Tlatelolco, e a ação das brigadas estudantis, mobilizaram massivamente a opinião publica
contra o regime, sem contudo conseguir a estruturação de um movimento de massa capaz
de resistir à repressão.
Mesmo que certos dirigentes lúcidos estivessem conscientes de que somente a
intervenção da classe operária poderia permitir a continuação da luta e a repercussão do
movimento em escala nacional, estes não conseguiram elaborar um esquema ideológico e
organizativo capaz de atrair as bases obreiras, que por falta de direção própria não tomaram
a iniciativa. Na prática, os estudantes se concentraram menos na transformação radical que
na reforma do regime e empreenderam a mobilização das classes médias e da população
marginal urbana, tomando a liderança do o processo. Nestas condições, não puderam
resistir ao contra-ataque governamental e o movimento, por ser inviável, retornou ao início.
No Brasil, a eliminação das lideranças de massas pela ditadura militar de 1964
golpeou mais o movimento operário, cuja autonomia era relativamente recente, que o setor
estudantil, que dispunha de um organismo independente que já tinha dado suas provas: a
União Nacional dos Estudantes do Brasil (UNEB). No quadro do movimento popular, os
estudantes foram a primeira força a se recompor e a retomar a ação política, culminando
nas manifestações de 1968. A existência de um importante setor operário, que já se
reorganizava a partir de suas bases, levou os dirigentes a assumirem a diretriz da aliança
operário-estudantil; a defasagem entre a organização das duas forças os levou a se reservar,
por algum tempo, o papel mais dinâmico. Isto aparece claramente nas declarações de um
dos mais prestigiosos dirigentes, Vladimir Palmeira: no apogeu do movimento, ele
sinalizava como objetivo a derrubada da ditadura militar e o estabelecimento de “um
governo popular que poderia assemelhar-se ao regime cubano”, e, após ter insistido na
necessidade de contar com a classe trabalhadora, ele adiciona: “a organização das massas
trabalhadoras demandará numerosos anos de trabalho para que possam agir eficazmente
quando o momento chegar.”6
O movimento estudantil argentino, por sua vez, foi o único setor nitidamente hostil
ao governo militar de 1966 desde o início: os sindicatos obreiros já o tinham aceitado,
conservando no essencial suas possibilidades de organização. A FUA (Federação
Universitária Argentina), não tendo a solidez estrutural nem a combatividade da UNEB,
teve que procurar uma saída e a encontrou no seio dos setores operários mais duramente
golpeados pela política econômica do regime, tais como os trabalhadores da cana-de-açúcar
de Tucumán; ao mesmo tempo, os estudantes estruturavam organismos de base para
remediar a ineficácia da FUA, que, no melhor dos casos, tinha um quadro provincial. As
duas tendências apareceram nas manifestações de 1969, um ano depois das manifestações
brasileiras e mexicanas. A FUA viu-se completamente ultrapassada pelos acontecimentos,
dada a autoridade conquistada pelos organismos locais, que, entretanto, por causa de suas
limitações, faziam com que a extensão do movimento dependesse da mobilização operária
nacional. É significativo que a partir do momento em que esta mobilização se efetivou,
engendrando uma ação obreira-estudantil sem precedentes em nenhum outro país, a
dinâmica do processo continuou totalmente nas mãos dos trabalhadores.
As experiências variadas que resumimos têm em comum as características já
assinaladas a respeito do atual movimento estudantil na América Latina – mobilização
massiva e radicalização ideológica –, mas mostram claramente que, assim como estas
características não independem da forma de desenvolvimento econômico destes países, o
comportamento dos estudantes é uma variável que se inclui no quadro concreto da luta de
classes nacional. Em ultima instância, OS PROBLEMAS DO MOVIMENTO
ESTUDANTIL, QUE QUER SE TORNAR UM FATOR DE TRANSFORMAÇÃO
SOCIAL, SÓ PODEM SE RESOLVER FORA DO MOVIMENTO – OU SEJA, A
PARTIR DAS CONDIÇÕES DE ORGANIZAÇÃO E DE AÇÃO QUE
PREVALECEM NO SEIO DO MOVIMENTO OPERÁRIO.
É na medida em que este se estrutura e se radicaliza que o setor estudantil se adapta
à função que lhe é reservada na luta política e adquire o grau de eficiência ao qual aspira.
Afirmar que a realização histórica do movimento ultrapassa sua situação particular
não implica a subestimação da importância de seu papel político, menos ainda que lhe
estejamos atribuindo tarefas particulares ligadas ao seu próprio subdesenvolvimento; ao
contrario, isto nos conduz a precisar o sentido de sua ação enquanto setor específico do

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6 Entrevista A.F.P., II junho 1968.
movimento revolucionário e a ligar as tarefas que lhe incumbem às características afirmadas
por sua recente evolução analisada acima.
O caráter massivo do movimento estudantil traz então uma problemática organizativa
mais complexa que no passado, e pede uma mudança radical nas relações entre a vanguarda
e as bases. As velhas formas de organização, adotadas pelos dirigentes estudantis durante a
fase em que eles representavam os interesses de bases limitadas, tornam-se inevitavelmente
caducas quando estas aumentam e mudam em virtude da diferenciação dos grupos sociais
onde são recrutadas. Nesta etapa torna-se indispensável elaborar esquemas organizativos
capazes de integrar as massas enormes dos colégios e universidades para levá-las a
participar da ação prática. Em conseqüência, a responsabilidade da vanguarda não é mais
agir em nome do movimento, mas de mobilizá-lo e de dar-lhe uma direção política.
O conteúdo desta direção política, que age dialeticamente na sua capacidade em
mobilizar suas bases, não se define abstratamente, mas se estabelece em função dos fatores que
conduziram a radicalização dos estudantes ao longo dos últimos anos. É neste sentido que a
questão universitária ocupa uma função decisiva. É nela que esta radicalização tem origem.
Ela se cristaliza na contradição existente entre a reivindicação das classes médias e
populares, que pressionam pela amplificação e melhoria do sistema educativo, e os
interesses dos grupos dominantes, que visam a seleção e a limitação orçamentária. Isso
revela uma contradição mais geral, a saber, o divórcio entre a tendência natural do sistema
econômico, que marginaliza progressivamente setores crescentes da população, e as
necessidades das grandes massas no que toca ao emprego e ao consumo, contradição que
explica o porquê dos estudantes terem orientado sua ação para o terreno da luta de classe.
Se trouxer uma resposta válida aos problemas de organização e de ideologia que estão
colocados, o movimento estudantil poderá levar a cabo uma política correta, evitando que
as lutas populares fiquem subordinadas ao azar das circunstancias e submetidas ao grau de
espontaneidade imperante nos diversos setores que as integram. Orientando suas forças
para uma perspectiva claramente revolucionária e forjando uma frente unida com as classes
trabalhadoras, os estudantes responderão a sua tarefa: abrir aos trabalhadores suas
possibilidades de triunfo que as lutas atuais, de fato, contribuem a criar, mas que estes ainda
não conseguem consolidar.

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