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Ménades: iconografia do corpo e origens da dança

Maria de Fátima Lambert

“Não, não as nossas palavras, demasiado agradáveis, demasiado brandas, elas nunca
poderão transpor aquilo que agora se abre entre nós…um abismo imenso…” 1
“Je ne pourrais croire qu’à un Dieu qui saurait danser.” 2
“Auf der ganzen Reise hatte ich eine kleine Angst vor alle den Großartigkeiten, die wir
sehen und die uns erdrücken würden.” 3

As seis representações figuradas de dançarinas – ménades, designadas por Alegorias


da Dança4 destacam‑se em placas escultóricas sobre um fundo branco em oval, nas
suas molduras de madeira dourada com formato octogonal. Cinco delas podem
ver‑se no Museu Romântico da Quinta da Macieirinha e uma sexta nas reservas
do Museu Nacional de Soares dos Reis. Todas integram o núcleo de peças tridi‑
mensionais [Escultura] da coleção de João Allen. A datação atribuída é do século
XIX. Após análise da iconografia de cada uma das peças, verifica‑se que uma das
figuras está repetida em duas peças/placas diferentes. Ou seja, na coleção veem‑se
cinco das seis figuras de pintura parietal da Casa de Cicerone – Pompeia, às quais

1. Sarraute 1987, 11.


2. “ Só poderia acreditar num deus que soubesse dançar” (Tradução minha). Nietzsche 2012, 61.
3. “Durante todo a via viagem esteve a sentir um certo temor das grandes obras de arte que íamos contemplar e de quão
pequenos nos íamos sentir perante elas” (Tradução minha). Hesse 1911, 117. In https://ia802600.us.archive.org/27/items/
bub_gb_bBwuAAAAYAAJ_2/bub_gb_bBwuAAAAYAAJ (consultado em setembro 2015)
4. Cf. Santos 2005, 121 e ss.
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remetem. Por motivo desconhecido, está em falta a figura que completaria o con‑
junto das seis poses distintas das ménades.5
As mais pequenas peças carregam em si tempos múltiplos e distâncias enor‑
mes. Convivem hoje connosco e proporcionam novas reflexões sobre as artes no
tempo presente. Através delas, testemunham‑se detalhes significativos do que
outrora foi o Grand Tour, propiciador de trajetos de exceção, périplo identitário.
Consolidaram‑se coleções e acervos, testemunhando a experiência, ambicionada
por tantos, numa Europa onde o conceito se impusera em seiscentos, consolidado
em setecentos e persistindo durante oitocentos.
O gosto estético era educado no contato presencial com as obras de arte – patri‑
mónio artístico e histórico da humanidade. As viagens demoravam‑se e a perma‑
nência em cada uma das etapas distendia‑se de acordo com a exigência do viajante.
O colecionador de ascendência ítalo‑inglesa, João Allen viveu o Grand Tour em
Itália. Estas viagens de longo curso eram o culminar da formação intelectual de
vertente humanista, completando – através deste ritual – sua educação, alcançando
um estádio superior – a educação estética, acresceria eu. Esta consideração arti‑
cula‑se ao denominado 3.º nível da educação, estabelecido por Schiller nas suas
Cartas sobre a Educação Estética do Homem (1795).

“Faites comme le vent quand il s’élance des cavernes de la montagne: il veut danser à
sa propre manière.” 6
“Nas sociedades arcaicas, a dança – colectiva ou individual – se bem que ligada a um
simbolismo, não implica a submissão rigorosa dos gestos aos imperativos do sentido.” 7

As origens da conceptualização de arte remetem para o período arcaico [século XII


a século V] da Grécia. Foram os pitagóricos quem se apercebeu que os rituais cele‑
brados afetavam tanto espectadores, como quem os protagonizava, devido ao próprio

5. Segundo Santos, na nota de rodapé 358, e em referência a estes seis Medalhões, lê‑se: “Compra documentada na remessa
de 1841, onde constam com o n.º 33, oito medalhas de biscuit de Herculano.”, Idem, 124.
6. “Fazei como o vento quando se lança nas cavernas da montanha: quer dançar à sua própria maneira” (Tradução minha).
Nietzsche 2012, 436.
7. Gil 1980, 67.
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espetáculo em si. A estruturação de tais rituais consistia num desempenho conver‑
gente, associando música, gesto e palavra. O que foi chamado por triunica choreia,
consubstanciado na mitologia, crenças e seus cultos. O termo choreia referia‑se ao
executante Aedo (cantor ou dançarino) que desempenhava a sua atuação no culto
dionisíaco.
O culto em torno a Dionísio expandiu a convicção no acesso ao segredo da imor‑
talidade, acrescendo novos tópicos e práticas. Por outro lado, o orfismo ponderava
um ideal de vida purificad[or]a, estabelecida a dualidade alma‑corpo, o que viria
a ser admitido e implicado na filosofia pitagórica e plasmado na sua estética que
requisitava um ideal purificador e virtuoso. Tal escopo enquadrava‑se nas artes
expressivas, providenciando a exteriorização de sentimentos – num comprome‑
timento atuante e não na ordem contemplativa, que estava inferida à arquitetura,
pintura e escultura, as ditas artes construtivas e/ou representativas.
A música possuiu desde sempre, em si e per se, um poder expressivo e psicológico
intenso sobre os indivíduos. Era um dom. Além da sua intimidade às palavras [poesia
enquanto canto], os gestos e movimentos [dança] acentuam essa vivência que permi‑
tia atingir tão ansiado estádio de libertação do corpo. Eis o que impulsionava o agir
dos humanos em via de transmigração, secundados pelo que o elemento órfico que
lhes acrescia. Ao constatar a embriaguez produzida pela música báquica, extraíram a
conclusão de que a alma, sob a sua influência, abandona momentaneamente o corpo.
Dançava‑se na Grécia para se erguer até ao divino, como ensinou Nietzsche.
A repetição das celebrações configurou‑se não exclusivamente em ritual, trans‑
pondo objetivos similares em contexto e nominação de artes expressivas: pela via
da triunica choreia. Ou seja, a definição consciencializada de arte inicia‑se pelas
artes expressivas e não pelas representativas. E, designadamente num primeiro
momento, o conceito de mimésis origina‑se e aplica‑se enquanto imitação que sub‑
jaz às primeiras e não à pintura e escultura. Imita‑se o que sejam as ações, os sons
e os movimentos de humanos e animais, da natureza, enfim. As expressões são
miméticas em termos de performance, do desempenho do ator, do dançarino, do
músico e do poeta. Pitágoras opôs a contemplação à ação, a atitude do espetador
induzida a uma atitude ativa. Para os antigos a atitude de contemplar, de observar
englobava tanto a beleza como a verdade; só mais tarde se estabeleceria a distinção
entre a contemplação epistemológica da verdade e a contemplação estética do belo.
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“On danse, le plus souvent, pour être ensemble. On se met à plusieurs.” 8
“ C’est la terre, le sol, le lieu solide, le plan sur lequel piétine la vie ordinaire, et
procède la marche, cette prose du mouvement humain. 9” 

O privilégio de “ver” orienta a acuidade de uma pesquisa sobre as origens remotas


da dança, assinalando‑se as pinturas parietais pré‑históricas das cavernas, onde
se veem testemunhos de movimentos que a indiciam, de acordo com os padrões
culturais ocidentais. São sinais que consignam as danças adjetivadas como primi‑
tivas, talvez mais corretamente a dizerem‑se “primevas”. Essas representações de
dança na arte rupestre remetem ao Paleolítico. Surgiram em diferentes geografias
e estenderam‑se em estratos consecutivos, fruto de intencionalidades polissémicas,
por parte de quem fossem seus protagonistas e autores desconhecidos. Tais picto‑
gramas associam‑se a ideogramas e, com frequência, a psicogramas10.
Os movimentos dos corpos serviam como potenciais catalisadores mediante
atuações que serviriam para proteger, para intermediar nas lutas, estimulando
energias e coragem direcionadas para os devidos objetivos. Enfim, contribuiriam
para a sobrevivência. A dança primeva, pelo que se distingue em certos vestígios de
movimentos traçados ou pintados, propiciaria que as pessoas alcançassem estádios
de superação, como assinalou José Gil:

“A Dança, na minha perspectiva não se limita a ser um exercício, um divertimento,


uma arte ornamental e, às vezes, um jogo de sociedade; é algo de sério e, em certos
aspectos, algo de muito venerável.” 11

A dança – enquanto prática artística – terá surgido na Grécia cerca de 1400 A.C.,
por decorrência das civilizações de Creta, e muito provavelmente, influenciada
pelos egípcios. Apesar de, aparentemente, os gregos não terem contribuído muito
para a técnica da dança, concorreram de forma inquestionável para o estabele‑
cimento do vocabulário do teatro, em particular com o Koros, (coro), a Orkestra,
(o chão circular onde o coro dançava), a Skene, (a área coberta atrás da orkestra) e o
Proskenion, essa plataforma que se elevava entre a orkestra e a skene. Este desenho

8. Didi‑Huberman 2006, 9.
9. Valéry 1957, 1397.
10. Cf. Tipologia privilegiada por Annati 2003.
11. Valéry 1957, 1391.
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(layout) e vocabulário constituíram‑se como a base para a construção do proscénio
do teatro, onde o bailado erudito europeu ganharia forma posteriormente.
Analisando os pensamentos estéticos, implícitos na arte grega dos períodos
arcaico e clássico, antes dos normativos do helenístico, verifica‑se que a herança
grega se ramifica em indexações que determinaram os encaminhamentos da dança
na Europa. Acredita‑se que Sócrates apreciava a dança, entre outros filósofos e auto‑
res relevantes na cultura grega.
O apreço pela dança mede‑se nas inúmeras representações que lhe aludem.
As figuras dançantes foram persistindo através dos tempos, pela sua evocação nas
artes representativas, visuais e performativas – germinando em sucessos, ativações
intermédias e presentes nos entrecruzamentos artísticos que assim se percebe ante‑
cederem as práticas artísticas mais Contemporâneas.
Os gregos pensaram sobre dança na sua mitologia, quer protagonizada pelas
divindades em modo lúdico, quer sacrificial. Veja‑se: sob auspícios [provavel‑
mente] de Terpsichóre, Zeus o deus dos deuses foi mesmo representado “a mover‑se
graciosamente no meio da multidão a dançar”; o deus Pan, no Ajax de Sófocles, é
considerado como um mestre na dança; Febo é cognominado por Píndaro como “o
grande príncipe dos dançarinos”; Teseu, segundo a lenda, teria organizado danças
em que participavam os infelizes jovens – raparigas e rapazes indistintamente –
que seriam imolados pelo Minotauro. Os deuses dançavam: Hera, Athena, Apolo,
Hermes e muito em particular Dionísio.
Os romanos abordaram a dança, quer na mitologia, quer na literatura e arte, à
semelhança dos gregos, celebrando‑a. A dança foi‑se confirmando enquanto uma
arte que nitidamente mostrava quanto os códigos societários evoluíam, aferidos
pelo contexto sociopolítico e alvo objeto de registos quer viso, quer vérbico.

“As palavras são todas daquelas que ‘dizem perfeitamente aquilo que querem dizer’:
elas reproduzem fielmente aquilo que foram colher e apresentam‑no revestido da
sua forma, do trajo que o costume exige e que enverga em todas essas conversas
francas, confiantes, amigáveis…” 12

12. Sarraute 1987, 15‑16.


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“Quanto mais sobre ele [corpo] se fala, menos existe por si.” 13

O que se entende por corpo, de modo a conceber o que seja a dança? Qual é o corpo
que dança na Grécia e em Roma, quais as suas peculiaridades destacadas? Tobin
Siebers avisou que “Não existe perceção na ausência do corpo.” 14
A abordagem ao conceito de corpo é obsessiva, e inexoravelmente redundante. A
história do corpo pretendeu durante demasiado tempo, reafirmar a dicotomia entre
essa dupla natureza do homem: humano e sagrado. Humano e sagrado, corpo e
espírito, matéria e alma. Estas dualidades, instaladas no maniqueísmo judaico‑
‑cristão, são enquadradas e apreensíveis nas movimentações que o tempo e os seus
mentores lhes quiseram infligir.
No século XXI, pensar o corpo será caso de esgotamento ou de reabilitação. É
inevitável, reconhecer a emergência do conceito, em bases fenomenológicas que
remetem às origens da humanidade, a tomada de consciência do corpo próprio
individuado. O que nem sempre se percecionou de acordo aos parâmetros em que o
pensamos sobretudo depois de Merleau‑Ponty, e com David le Breton ou Umberto
Galimberti; sublinhando as proclamações de Antonin Artaud e as sistematizações
de Gilles Deleuze e Felix Gattari – Corpo sem órgãos [CsO].

“…o corpo constitui o suporte das permutações e correspondências simbólicas entre


os diferentes códigos em presença — de entre os quais é necessário não esquecer os
sociais… o permutador de códigos é o corpo (a propósito da doença)”.15

No domínio da comunicação dos signos, como no da sua apreensão e tradução, o


que permitia, que nos códigos fossem transmitidos e compreendidos, era uma deter‑
minada função do corpo: “A imagem do corpo é uma imagem de si, alimentada de
matérias‑primas que compõem a natureza, o cosmos, numa espécie de indistinção.” 16
“Corpo comunitário”, como laço que une todos os membros, fundamenta‑se
neste corpo que se oferece, em coesão à comunidade; que abre o espaço em que se
elabora cada singularidade, o espaço da individuação dos corpos, isto é, dos ritmos

13. Gil 1980, 7.


14. Siebers 2000, 1.
15. Gil 1980, 17.
16. Breton 1990, 22.
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singulares. Dele emanam os corpos autónomos”. A noção de corpo sozinho existe
em estádio pré‑percetivo da totalidade corpo‑eu, sob os termos de corpo habitual
e de corpo autónomo – os que são prévios à tomada de autoconsciência do “seu”
corpo como único ou seja, a noção percecionada e consciencializada de corpo pró‑
prio – seguindo Merleau‑Ponty.
As figuras representadas mostram corpos dançantes, cada um sozinho, cabendo a
uma idealização estética firme. O referente humano que possa ter originariamente
“inspirado” o autor das primeiras pinturas de Pompeia, terá existido ou não numa
única “pessoa” ou sendo exatamente isso: um corpo idealizado, a partir de uma
antropomorfia. Cada uma das ménades convoca um corpo dançante em postura e
atitude diferente.

“No dia em que uma estátua é acabada, começa, de certo modo, a sua vida.
Fechou‑se a primeira fase em que, pela mão do escultor, ela passou de bloco a
forma humana; numa outra fase, ao correr dos séculos, irão alternar‑se a adoração, a
admiração, o amor, o desprezo ou a indiferença, em graus…” 17
“N’est‑ce pas une douce folie que le langage: en parlant l’homme danse sur toutes les
choses.” 18

Eis que estas figuras das ménades19 dançantes parecem ludibriar o veredito de
Marguerite Yourcenar e que não foi o Tempo que as esculpiu, antes exerceram auto‑
ridade sobre o domínio de Kronos, para se manterem quase intactas. Na mitologia
grega, as denominadas ménades eram as ninfas do monte, encarregues por Hermes
de cuidarem Dionísio:

17. Yourcenar 1994, 49.


18. Nietzsche 2012, 323.
19. Cf. “O  menadismo, que é assunto de mulheres, comporta em seu paroxismo dois aspectos opostos. Para os fiéis, em
comunhão feliz com o deus, traz alegria sobrenatural de uma evasão momentânea para um mundo de idade doe ouro no qual
todas as criaturas vivas se vêem fraternalmente misturadas. Mas, para as mulheres e as cidades que rejeitam o deus e que ele
deve castigar a fim de coagi‑las, a mania resulta no horror e na loucura das mais atrozes máculas: um retorno ao caos num
mundo sem regra, no qual as mulheres enfurecidas devoram a carnes dos seus próprios filhos, cujo corpo elas dilaceram com
suas mãos como se se tratasse de animais selvagens. Deus dúplice, que une duas faces em sua pessoa, como ele mesmo
proclama em As Bacantes de Eurípedes, Dionísio é ao mesmo tempo, “o mais terrível e o mais doce.” Vernant 2006, 79.
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“Elles appartiennent à ce monde d’êtres mal définis qui ne sont ni dieux ni hommes. Elles
folâtrent avec les Silènes et les Satyres dont les entreprises galantes les effarouchent
peu. On les reconnaît à leurs couronnes de feuillage, tressées avec le lierre, le chêne ou
le smilax, à leur chevelure éparse, a la peau de faon (nébride) ou de panthère (pardalide)
négligemment jetée sur leurs épaules ou enroulée autour de leur bras.” 20

O nome passou depois a ser atribuído àquelas devotas que participavam das festas
dionisíacas e que o seguiram no seu périplo triunfal desde a Lídia até Roma. Criaturas
tremendas e possuídas mataram Penteu de Tebas e desmembraram Orpheu. Após o
que Dionísio as puniu, transformando‑as em árvores. Talvez por isso, sejam repre‑
sentadas segurando com a mão direita um tirso, bastão com uma pinha no topo.
Na mitologia romana, são as chamadas bacantes que celebravam Dionísio/Baco, e
as suas façanhas tinham ocupado Eurípedes, que as abordou na sua grande tragé‑
dia, circa 405 no século V AC., onde se celebrava os termos mais primitivos da reli‑
gião grega. As festas bacanais proliferaram em Roma até aos derradeiros tempos
do Império. As bacantes são muito frequentemente representadas com Centauros
e Zéfiros, entre outros seres mitológicos que as acompanham nos seus desvarios,
enquanto as ménades são representadas sozinhas e em posturas e movimentos
“moderados” e quase esvanecentes… As Bacantes inspiraram pintores relevantes do
século XIX, em poses de sedução e volúpia, bem diferentes das ménades que foram
tratadas pelos artistas neoclássicos e românticos, na sequência da tradição icono‑
gráfica e iconológica que os antecedeu, persistindo numa recriação estereotipada.
As figuras representadas neste alinhamento, que originariamente compunham
a assunção iconográfica de uma evocação mitológica específica, estabeleceram‑se
numa “identidade” temática per se. Ou seja, instauraram‑se de forma sincrética
enquanto Alegorias da Dança.
As imagens das “figuras visibilizam e contêm ideias como Persistência – Repercussão
– Permanência – Residualidade – Parecença – Similitude – Réplica – Reprodutibilidade
– Propagação… Estas e tantas mais ideias ilustram quanto pode expandir a noção
de gravura, afastando‑se da convencionalidade pragmática e semântica – pro‑
gredindo de uma panóplia de técnicas até aceções que concorrem para a incor‑
poração de metodologias e procedimentos diferenciados, organizados a partir

20. Emmanuel 1896, 293 e, mais adiante: “Les Ménades sont des êtres fabuleux. Aux fêtes célébrées par les populations
helléniques en l’honneur de Dionysos elles sont représentées, dans l’accomplissement des rites traditionnels, par des femmes
qui portent le nom général de Bacchantes, et auxquelles chaque contrée donnait une appellation spéciale”, 295.
260
de denominadores comuns21: gravuras ponta‑seca, placas de biscuit com relevo,
pequenas estatuetas em cerâmica, pinturas, todas se instituem enquanto vocabu‑
lários visuais ou quaisquer iconografias específicas e recorrentes simultaneamente.

“Gli scavi archeologici di Ercolano (1738), di Pompei (dal 1748) e di Stabia – odierna
Castellamare di Stabia (dal 1749) –portarono alla scoperta di dipinti, sculture ed altre
opere d’arte che nella seconda metà del Settecento e durante quasi tutto l’Ottocento
sarebbero stati ammirati in molte parti del mondo [2].” 22

As seis ménades da coleção Allen remetem para a iconografia de seis diferentes pin‑
turas parietais da Villa (ou Casa) de Cicerone23, próxima à Porta de Ercolano em
Pompeia. Essas pinturas parietais foram recuperadas no século XVIII, quando das
escavações realizadas e pertencem ao acervo do Museu Arqueológico de Nápoles.
Conhecem‑se outras representações – e réplicas – artísticas [originais, múltiplos
e cópias] de ménades, residindo em coleções de outros museus europeus. Transposta
a sua iconografia em estátuas e esculturas, quer do período clássico da Grécia, quer
helenísticas, quer em versões posteriores, usando técnicas e identificando‑se estilos
como nos casos de:
– Danzatrice di Tivoli, século II DC, no Palazzo Massimo, Roma; altos‑relevos
representando Dançarina no Templo de Dionísio, do século I AC., na Acrópole;
uma Ménade dançante de Skopas, século IV DC (mas também uma Ménade
adormecida, do século IV DC); um relevo em mármore com uma Ninfa a dan-
çar, século IV AC, no Museu Arqueológico de Atenas. Também uma significa‑
tiva figura feminina em terracota esboçando diferentes movimentos de dança,
datadas circa século II AC, no Palace of the Legion of Honor de São Francisco
(California);
– Cópias romanas de relevos em mármore figurando ménades, século II DC –
figura com nuca inclinada para a frente, olhando a mão que segura uma pan‑
deireta; figura com nuca inclinada para a frente, olhando para a própria mão
direita que segura o tirso. Mas também se vê um desenho modelado de Claude
Michel, representando três ménades a dançar, 1765;

21. Lambert 2010, s/p.


22. Miziolek 2012, S. 11‑31. In http://archiv.ub.uni‑heidelberg.de/artdok/4014/ (consultado em abril 2018)
23. Também pode ser mencionada como M. CRASSO FRUGI (CASA SUBURBANA DI), M. CRASSUS FRUGI (PRAEDIA DI),
M. CRASSUS FRUGI (THERMAE DI) – ID: 9038. Vide
261
– Estatuetas em porcelana Wedgwood da série Herculaneum dancers, ca. 1975–
1999 que são fabricadas desde circa 1767 até às reposições atuais das peças cons‑
tantes do catálogo online, pelo menos no respeitante a quatro das poses das seis
ménades correspondentes aos medalhões da coleção Allen/MNSR;
– Baixos‑relevos, medalhões e placas mencionadas no catálogo da Wedgwood de
1875, como segue:
24

25

– Pinturas, guaches e aguarelas representando as diferentes posturas e movi‑


mentos, realizadas nos inícios do século XIX, numa linguagem romântica, tal
como as existentes nas coleções do National Trust, no Reino Unido.

A lista de imagens com afinidades representacionais às seis placas em análise é


acrescida de mais referências, estudo que se deixará para outra ocasião. Fica
manifesto que o impulso em registar o movimento antropomórfico é primor‑
dial, remonta a civilizações e culturas que primavam pela consignação poética do
divino, intermediado pela figura humana em ação. A cativação do movimento é
bem anterior à estética impressionista – tempus fugit – e à invenção dos dispositivos
que viriam preservar a memória das coisas reais, transportando‑as para a sua pró‑
pria ficionalidade constitutiva. Agarrar o movimento, em termos tridimensionais
foi uma aprendizagem de teor realista/naturalista suficientemente idealizada no
cânone clássico, que interessou em ciclos recorrentes gerações e culturas distantes
da Grécia. O “mito de um eterno retorno do gosto” é uma evidência consubstan‑
ciada em obras derivativas, impregnadas por impulso similares.

24. Meteyard 1875, 134.


25. Meteyard, op. cit. 138.
262
As seis pinturas foram desde logo destacadas por Johann Joachim Winckelmann,
quem igualmente cumpriu o Grand Tour26, por diferentes vezes, entre 1758 e 1767, em
tempos portanto muito próximos à descoberta de Pompeia27, nos termos que seguem:

“Così pure formati sono i puttini sulle pitture d’Ercolano, e specialmente su una di
fondo nero; e sono della stessa grandezza, come le belle figure delle danzatrici ivi
dipinte.” 28

E, ainda:

Les plus belles de ces peintures représentent des danseuses et des centaures: leur
proportion est d’environ un empan ; elles font peintes fur un fond noir, et ne peuvent
être attribuées qu’à un grand maître, car elles font suffi légères que la pensée, belles
comme fi elles avoient été tracées par la main des Grâces. Les peintures dignes
de tenir un fécond rang, et qui peuvent même marcher de pair avec celles des
danseuses, font deux morceaux qui faisaient pendant, et dont les figures font un peu
plus grandes que les précédentes.29

Efetivamente, das ruínas emanava uma carga simbólica, testemunhal, de uma


intensidade tremenda pelo que, desde o início das escavações oficiais, Herculano e
Pompeia30 passaram a integrar o traçado do Grand Tour, centrando em Roma o seu
eixo. J. W. Goethe foi um dos autores que sublinhou o seu magnetismo, agregando
as memórias da Roma do século VIII, herdeiras da tradição grega, e a sedução da
própria viagem em si, tudo a ser incorporado nos hábitos e afinidades eletivas de
setecentos, como relatou em sua Viagem a Itália:

“…Ele [Lord Hamilton] mandou fazer para ela uma túnica grega que lhe cai muito
bem; ela solta os cabelos, vale‑se ainda de um ou dois xales e põe‑se a fazer uma tal
série de poses, gestos, caras etc. que, por fim, acreditamos de fato estar sonhando.
O que se vê – pronto e acabado, em movimento e apresentando surpreendentes
variações – é algo que muitos milhares de artistas gostariam de ter conseguido
produzir.” 31

26. https://www.metmuseum.org/toah/hd/grtr/hd_grtr.htm (consultado em abril 2018)


27. A primeira escavação oficial a Herculano realizou‑se em 1738; em Pompeia aconteceu em 1743.
28. In OPERE DI G. G. WINCKELMANN. PRIMA Edizione ITALIANA COMPLETA. 1832.Tomo III – LlBRO VIII, Cap., II, 93‑94. In
https://books.google.pt/books/download/Opere_di_G_G_Winckelmann.pdf (PDF descarregado em abril 2018).
29. RECUEIL DE LETTRES D E M. VINCKELMANN, Sur les Découvertes faites à Herculanum, à Pompeii, à Stabia, à Caferte &
à Rome. Avec des Notes critiques. TRADUIT DE L’ALLEMAND, Paris, Barrois Libraire, 1894, 44.
30. Acerca da influência estética das descobertas das pinturas parietais de Pompeia e Herculano na decoração de interiores do
período Neoclássico no Porto, veja‑se Carneiro 2010, 163 e ss.
31. Goethe 1999, 249.
263
As seis pinturas parietais das ménades deslumbraram, igualmente de imediato quem
as viu, atendendo a que “Gli affreschi, di grande bellezza, disvelano l’immagina‑
zione e la finezza dei pittori antichi: la magia della danza, l’incanto della musica,
l’estasi del galoppo sottolineato qua e là da tirso e corone di vite.” 32 Vejam‑se os
registos fotográficos da autoria de Carlo Brogi33, com as legendas e correspon‑
dendo a sessões das pinturas murais:

· Brogi,_Carlo_(1850‑1925)_‑_n._11290_‑_Napoli_‑_Museo_Nazionale_‑_Danzatrici,_o_
baccanti,_in_varie_pose_(pitture_murali_di_Pompei)
· Brogi,_Carlo_(1850‑1925)_‑_n._11291_‑_Napoli_‑_Museo_Nazionale_‑_Danzatrici,_o_
baccanti,_in_varie_pose_(pitture_murali_di_Pompei)
· Brogi,_Carlo_(1850‑1925)_‑_n._11292_‑_Napoli_‑_Museo_Nazionale_‑_Danzatrici,_o_
baccanti,_in_varie_pose_(pitture_murali_di_Pompei). 34

As seis figuras das dançarinas de Pompeia, cada uma encenando um “petit tableau”
estereotipado (já então decalcada a partir da tradição iconográfica grega) revelava
uma simbologia específica, para ser lida em concatenação. As dançarinas perso‑
nificam o espírito da natureza, investidas por Dionísio e aparentando uma fúria
domesticada e convincente.35
As pinturas foram fotografadas por Carlo Brogi36 (1850‑1925), estando catalo‑
gadas como “affresco composito da Pompei, cd. Villa di Cicerone; III stile pom‑
peiano (15‑45 d.C.) – “Danzatrici, o baccanti, in varie pose (pitture murali di
Pompei)”. Numero di catalogo Brogi: 11291.”
Pode‑se verificar, por relação aos conjuntos de figuras fotografadas, que na totali‑
dade seriam dez figuras de dançarinas. Portanto, mais quatro figuras do que as seis
que integrariam o conjunto reproduzido em seis placas (respeitando apenas cinco
poses diferentes, como antes de assinalou) na coleção de João Allen. Os registos
de cinco poses, do conjunto de seis figuras, encontram‑se disponíveis no website
oficial de Pompeia37.

32. Miziolek 2012, 19.


33. Brogi – Catalogo immagini dell’archivio fotografico – ALINARI in
https://www.alinari.it/it/esplora‑immagini/immagini?list_fotografo[]=Brogi (consultado em abril 2018).
34. Imagens podem ser acedidas in https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Brogi,_Carlo_(1850‑1925)_‑_n._11292_‑_
Napoli_‑_Museo_Nazionale_‑_Danzatrici,_o_baccanti,_in_varie_pose_(pitture_murali_di_Pompei).jpg (consultado em março
2018).
35. “Le Danzatrici, tutte superbe; ma una in particolare, slanciata, con cembali e corona in testa, vestita di un leggiadro celeste,
magnifica, di una bellezza mozzafiato. Tutto qui è degno di attenzione. Anche i cembali. Al Museo Archeologico Nazionale di
Napoli ve ne sono di simili, in bronzo, congiunti con una catenella. Furono rinvenuti a Pompei, in diversi luoghi, tra cui la Casa di
Giulia Felice. Si notano anche in un dipinto raffigurante oggetti del culto dionisiaco. Forse, piuttosto che cembali, sono dei sonagli,
strumento dei culti orientali: di Iside, di Cibele, di Dioniso.” Miziolek 2012, 20.
36. Napoli – Museo Nazionale (inv. 9297 e,f,g).
37. http://pompei.sns.it/prado_front_end/index.php?page=Home&id=4425.
264
Cada registo, acompanhado por imagem dupla das gravuras respeitando duas
figurações de ménades, apresenta os seguintes elementos:
ID: GO0_0114_0018 Raffigura [1]
Villa di Cicerone, pitture murale – prospeto, incisione, Villa di Cicerone
acquaforte, mm 354 x 237 ID: 9038
Didascalle: in basso a sinistra: D’Anna del. in basso a Fuori Porta Ercolano, lato Ovest, cívico: 6
destra: R. Biondi sculp. 1824
Incisione: D’Anna Soggetti [15]
Incisore: R. Biondi abbigliamento‑decorazione
In: Goro Von Agyagfalva L., Wanderungen durch Pompeii, clamide‑raffigurazione
Vienna, 1825, Tav. XVIII figura femminile
figura umana
mantello‑raffigurazione
peplo‑raffigurazione
http://pompei.sns.it/prado_front_end/index. Pittura
php?page= Home&id=4425 Prospetto
Prospetto di pittura murale
Quarto stile
situla‑raffigurazione
soggetto antropomorfo‑decorazione
tunica‑raffigurazione
vaso‑raffigurazione
vassoio‑raffigurazione

Confronte‑se com a descrição registada no exemplar existente na ETH‑Bibliothek


Zürich, do volume Le Antichità di Ercolano esposte Le pitture antiche d’Ercolano, de
Ottavio Antonio Bayardi, Napoli, 175738 , respeitando a apresentação das figuras
das ménades num enquadramento que todavia as diferencia, acompanhadas pela
identificação de inventário.
A título exemplificativo, transcrevem‑se os dados relativos a 3. Tavola XVIII que
antecedem a publicação da gravura:

“TAVOLA XVIII.
On può ammirarsi a bastanza questa pittura. O si confideri la maestria del disegno, o la
gentilezza del colorito, o la leggiadria dell’atteggiamento: tutto sa riconoscere la finezza
dell’arte, e la perfezione dell’opera. Sembra questa bella e delicate figura essere in mossa di
ballare: e le accrescono oltre alle smaniglie d’oro e al, quell’ intreccio di perle e di bianchi nasiri,
onde há legati i biondi capelli; e la leggiera e e sotti veste di color giallo orlata di una sascetta a
color turchino; la qual veste svolazzando ricuopre piccola parte dell’ ignudo corpo.” 39

Análogos elementos de inventariação, catalogação e documentação (descritiva) são


apresentados, podendo ser consultados no relativo às outras imagens no arquivo
digital do website oficial de Pompeia, estando em falta a imagem correspondente à
Tavola XXII. No conjunto das seis ménades em consideração, curiosamente, trata‑se

38. Disponível no weblink http://dx.doi.org/10.3931/e‑rara‑1305 (consultado em março 2018)


39. Bayardi 1757, 97.
265
da mesma imagem que não consta mais na coleção de João Allen – uma vez que duas
das peças remetem para a mesma pose e figura, como foi possível constatar e verificar.
Percebe‑se que os desenhos das gravuras 1 e 2 são da autoria de “Disegnatore: D’Anna
e Incisore: R. Biondi”; não há referência a autores das reproduções 3, 4 e 5 constando
apenas: Incisione. Acquaforte.
Os frescos que correspondem aos registos fotográficos, realizados pelo fotógrafo
italiano Carlo Brogli, encontram‑se no referido Museu Arqueológico de Nápoles,
acompanhados pela seguinte legenda:
“Menadi danzanti, I d.C. affresco staccato, Museo Archeologico Nazionale,
Napoli. Provenienza: Villa detta di Cicerone, Pompei.”
Uma das fotografias de Carlo Brogli registou um conjunto que integra quatro
figuras femininas em movimentos de dança, sendo do lado esquerdo para a direita
a seguinte leitura iconográfica e coreográfica:
· Figura com corpo a ¾, fazendo menção de se dirigir da esquerda para a direita;
a mão direita levanta a túnica/véu deixando transparecer o corpo nu; o braço
esquerdo está avançado; os pés em 3.ª posição quase fechada;
· Figura com corpo a ¾, fazendo menção de se dirigir da esquerda para a direita40 ;
o braço direito segura um cesto pousado na cabeça que é orlada por uma coroa
de flores; a túnica é de tecido opaco, esvoaçando por impulso do movimento de
pernas e pé desenhado “en arrière”, com pé esquerdo apoiado em ½ ponta em
aproximação ao solo; a mão esquerda empunha um básculo;
· Figura com corpo a ¾ “en arrière”, fazendo menção de se dirigir da direita para
a esquerda; o braço direito levanta e segura a túnica, cujos bordos são sinuosos
e esvoaçantes; a cabeça em “cambré en arrière” 41; pés quase unidos posando em
½ ponta42 ;
·Figura com corpo a ¾ e inclinado (quase desafiando a gravidade), fazendo
menção de se dirigir da direita para a esquerda;cabeça “penchée en avant et de
côté”; braço direito fletido pelo cotovoelo abeirando‑se a mão do pescoço; braço
esquerdo ocultado pelo tecido da túnica cria volumetria assimétrica; pé direito
a quase aflorar o solo em ½ ponta e pé esquerdo suspenso em 4.ª posição aberta.

40. Cf. fig. 256 in Emmanuel 1896, 209.


41. Cf. fig. 193 in Emmanuel 1896, 101.
42. Cf. fig. 236 in Emmanuel 1896, 135.
266
Um outro conjunto de fotografias de Carlo Brogli reúne oito figuras de ménades.
Ao centro vê‑se a dupla figuração de ménades dançando, em pose de braços levan‑
tados, visíveis os rostos de ambas e corpos em torsão assimétrica:

“ La dissemblance des mouvements exécutes par les danseuses qui se font vis‑a‑vis
dans chacun de ces trois groupes est si évidente et si complète, qu’on pourrait attribuer
a la seule fantaisie du peintre céramiste la juxtaposition de ces figures deux à deux ”.43

A dupla figuração é ladeada – em simetria, por três figuras do lado esquerdo e três
figuras do lado direito.
Cada uma destas seis figuras de ménades tratadas a solo, correspondem portanto
às seis pinturas parietais e a cinco dos seis medalhões da coleção João Allen no
MNSR. A pintura central, fotografada neste conjunto de Brogli, é uma das ilus‑
trações alusivas aos Pas de deux no livro de Maurice Emmanuel, La danse grecque
antique d’aprés les monuments figures (1896), mais concretamente a figura 495, que
pode ver‑se na página 237 (Fig. 1).
As seis ménades constam das reproduções disponíveis na obra Antiquités d’Her-
culanum, Tome I, (Vol. 1 of 6), de Tommaso Piroli, Pietro Piranesi e Francesco
Piranesi44. Nesse volume, a apresentação iconográfica é acompanhada, sistemati‑
zada na tipologia e descrição, em cada uma das “Planches” diretamente associada
à respetiva gravura:

PLANCHE XVIII.
On ne peut assez admirer cette peinture; la sûreté du dessin, la pureté du coloris, une grâce
charmante dans l’agencement, tout fait reconnaître la finesse de l’art et la perfection de
l’exécution. Le mouvement de cette jolie figure annonce la Danse; ses charmes sont encore
relevés par les bracelets et le collier de perle; un ruban blanc lie ses cheveux blonds; son
vêtement fin et léger de couleur jaune, avec une bordure bleue, est abandonné au vent, et nous
dérobe à peine une partie de son corps.
“Les danseurs invitaient Vénus à se mêler à leurs jeux; elle conduit le choeur des Nymphes et
des Grâces; elle danse au banquet des Dieux; les perles nées dans son berceau font sa parure
chérie”.
C’est donc Vénus qui nous charme dans cette figure, ou c’est une jeune Danseuse ou
Bacchante qui la représente; nous la voyons exécuter dans un banquet l’une de ces trois parties

43. Emmanuel 1896, 237.


44. Title: Antiquités d’Herculanum, Tome I., (Vol. 1 of 6). Author: Tommaso Piroli, Pietro Piranesi, and Francesco Piranesi. Release
Date: December 5, 2005 [EBook #17231]; Language: French; Character set encoding: UTF‑8 *** START OF THIS PROJECT
GUTENBERG EBOOK ANTIQUITÉS D’HERCULANUM *** Produced by Carlo Traverso, Rénald Lévesque and Distributed.
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nationale de France (BnF/Gallica) In https://www.gutenberg.org/files/17231/17231‑h/17231‑h.htm (consultado em abril 2018).
267
Desenhos de Fátima Lambert.

de la danse, le mouvement, la figure et l’indication. Après un mouvement rapide, elle s’est


arrêtée, et, dans son attitude pleine de grâce, elle offre aux yeux des convives tous les charmes
de la Déesse même.
Hauteur, 11 p°.—Largeur, 1 P. 3 p°. 6 lig.

PLANCHE XIX.
Cette figure rivalise de beauté avec la précédente. Ses cheveux sont blonds; le tissu jaune et
transparent qui se joue en plis gracieux paraît plutôt voiler que couvrir une partie de son corps;
son front est ceint d’un ruban bleu‑céleste; de la main gauche elle soutient un disque couleur
d’argent, qui paraît avoir quelque rapport à sa danse et lui servir de caractère distinctif.
“Telle se montrait Vénus, vierge encore, exposant aux regards la beauté de ce corps parfait, et
laissant deviner ses charmes les plus secrets sous un léger tissu de lin, que soulève doucement
le zéphir; la blancheur de son corps s’unit à la lumière du ciel, et l’azur de son voile se confond
avec celui des flots”. Cette description voluptueuse d’Apulée (Métam. X) a beaucoup de rapport
avec notre Danseuse. Les Grâces, les Nymphes et les Heures étaient également représentées
dans les danses avec les attributs que leur donnaient l’imagination des peintres et des poètes;
et les danseuses ont pu servir à leur tour de modèles pour ces Divinités.
Les jolies frises à la suite de cette peinture et des cinq suivantes, n’ont aucune relation avec le
sujet.
Hauteur, 11 p°.—Largeur, 1 P. 3 p°. 6 lig.

PLANCHE XX.
Voici une autre Danseuse dans le caractère d’une Bacchante. À demi‑nue, les cheveux épars,
de la main gauche elle élève un tambour garni de grelots (tympanum) qu’elle est prête à
frapper de l’autre main pour marquer la mesure de sa danse; elle est parée d’un collier et de
bracelets à double rang, qui paraissent formés de perles; sa robe blanche et d’une grande
finesse est bordée de rouge, couleur consacrée Bacchus; les plis en sont élégans et bien
entendus; ses sandales sont attachées avec des rubans également rouges.
Parmi les personnages que les anciens aimaient à voir représenter par leurs danseuses au
milieu du festin, les Bacchantes offraient sans doute un attrait piquant à leur goût pour le
plaisir. Les poètes donnaient leur caractère. “Presque nues, à peine couvertes d’une peau de
tigre ou d’un vêtement léger, prêtes à se livrer aux orgies de Bacchus, on les voit détacher les
bandelettes de leur chevelure et l’abandonner aux vents, s’agiter vivement, et accompagner
leurs mouvemens du bruit du tambour; elles ne donnent pas moins l’image de l’ivresse de
Vénus que de Bacchus”.
Le mouvement de notre Danseuse est plus composé; ses cheveux dénoués ne sont pas
encore en désordre; elle vient de commencer la danse.
Hauteur, 11 p°.—Largeur, 1 P. 3 p°. 6 lig.
268
PLANCHE XXI.
Cette Danseuse se fait encore admirer par sa grâce et sa légèreté; ses cheveux ne sont point
épars, mais le lierre dont ils sont couronnés, la peau de tigre ou de panthère qui de l’épaule
gauche s’envole sous son bras, nous font reconnaître une Bacchante. Elle fait résonner
dans ses mains les cymbales, dont le bruit harmonieux doit accompagner les clameurs des
Prétresses de Bacchus; les bracelets à double rang sont de couleur d’or; son vêtement est
de cette couleur d’azur que le galant Ovide distingue parmi celles qui plaisaient le plus aux
femmes.
Les Bacchantes ne sont pas toujours caractérisées par le désordre de leur chevelure; on en
trouve souvent, dans les monumens antiques, dont les cheveux sont soigneusement arrangés.
Un poète latin (Corn. Gallus, l. IV) nous peint ainsi l›une de ces femmes voluptueuses: “Sa
beauté ingénue lui faisait donner le nom de Candide; les tresses de ses cheveux étaient
divisées avec art; les cymbales retentissaient entre ses mains agiles, et leur éclat se
réfléchissait sur tout son corps; je la vis danser et fus épris d›amour”.
Hauteur, 11 p°.—Largeur, 1 P. 3p°. 6 lig.

PLANCHE XXII.
Cette figure svelte et gracieuse est vêtue d’une robe violette longue et transparente; l’épaule
et le bras nus, elle semble avoir suivi le conseil du précepteur des amours, qui apprend à ses
écolières que la partie qui attire le plus les regards des amans est celle où ces belles formes
se confondent. (OVID. de art. III, v. 307.) Un voile léger jeté sur l›autre épaule passe sur son
sein, vient former un tour à son bras droit, et voltige agréablement par derrière; son poignet
est paré d›un bracelet d›or; de légères semelles forment sa chaussure; les feuilles de roseau
dont ses cheveux blonds sont couronnés, le vase qu›elle porte d›une main, le disque qu›elle
soutient de l›autre, et où l›on distingue trois figues, paraissent faire allusion à son caractère.
C›est une Naïade, suivante de Bacchus, ou une femme qui, sous ce personnage, fait au
Dieu l›offrande des prémices d›un fruit qui lui est consacré, ou l’une de celles qu’on appelait
pour servir dans les festins somptueux. La couleur violette qui distingue son vêtement était
très‑recherchée des femmes dans leur parure, et une profession en prenait à Rome le nom
de violarii.
Hauteur, 11 p°.—Largeur, 1 P. 3 p°.6 lig.

PLANCHE XXIII.
Cette jolie figure a beaucoup de rapport avec la précédente par l’expression, quoique ses
attributs lui donnent un caractère différent. Sa couronne formée de tiges de blé, et sa robe
blanche, ont quelque rapport aux fêtes de Cérès, célébrées très‑souvent par les anciens avec
celles de Bacchus. C’est encore une Danseuse appelée dans un festin; elle porte un panier
de la main droite, et de l’autre un disque; comme sa compagne, elle est sans ceinture, et son
vêtement flottant laisse découvert le sein et le bras droit; au‑lieu de sandales, elle porte des
chaussons. Cette figure rappelle la danse religieuse des Cernophores; l›imitation des usages
religieux embellit souvent les fêtes consacrées aux plaisirs. La tunique flottante était une
recherche des femmes voluptueuses et des hommes qui s›en rapprochaient par leur goût;
elle prêtait à la grâce des mouvemens, et les ondulations produites par le zéphir donnaient un
attrait plus piquant aux formes que décélait la transparence du vêtement.
Hauteur, 11 p°.—Largeur, 1 P. 3 p°. 6 lig.45

45. Transcrição de Title: Antiquités d’Herculanum, Tome I., (Vol. 1 of 6) Author: Tommaso Piroli, Pietro Piranesi, and Francesco
Piranesi in https://www.gutenberg.org/files/17231/17231‑h/17231‑h.htm.
269
XXI –
Cabeça a ¾ para a direita;
Torsão do corpo a partir do tronco – [corps presque en cambré]
com os braços elevados na lateral ao nível da cabeça; Mãos
seguram címbalos em atitude de desempenho; Túnica lançada
em sentido oposto ao sentido da torsão do tronco; Pés com
sandálias: pé esquerdo avançado e pé direito quase a tocar o solo
– [pés cruzados em ½ ponta, 4.ª posição aberta].

XVIII –
Cabeça a ¾ para a direita; Tronco ligeiramente voltado para a
esquerda; braço esquerdo levanta o tecido permitindo fluidez e
suspensão ondulante; mão direita prende levemente o tecido ao
nível da anca – [gesto da mão túnica é recorrente; braços em 4.ª
posição, parecem assumir a posição que acompanha atittude];
Pés descalços: pé esquerdo avançado; pé direito a tocar solo –
[pés cruzados em ½ ponta, 4.ª posição, croisé devant].

XX –
Cabeça a ¾ para a esquerda;
Tronco ligeiramente voltado para a esquerda – [corpo ligeira‑
mente épaulé]; o braço esquerdo segura, elevando, o tamboril;
braço direito quase em paralelo, semi‑fletido no cotovelo. Pés
descalços: pé direito, muito ligeiramente avançado, “em 2.ª”; pé
esquerdo a tocar o solo em ½ ponta, ligeiramente recuado – [pés
quase paralelos, em 2.ª posição aberta]; movimento descendente,
quase acusando receção no solo.

XXII –
Cabeça a ¾ para a direita;
Corpo a ¾ em ação de caminhar para a direita – [corps épaulé];
Mão esquerda segura uma phiale com frutos, levantado à altura
da cinta; mão direita segura pela asa a ânfora/vasilha num movi‑
mento de ligeireza; Pé direito levantado, em passo, pé direito toca
o solo quase eem ponta‑ [4.ª posição em ½ ponta].

XIX –
Cabeça a ¾ para a esquerda – [c
tête penchée en avant]; Colocação de corpo quase frontal
ligeiramente para a esquerda; Mão direita levantada acima da
cabeça em 5.ª posição, segura o tecido suspenso sobre a cabeça,
descendo em concha, sendo agarrado pela mão esquerda que,
por sua vez, segura uma phiale; Pés em paralelo, frontais a tocar
o solo em ½ ponta; Movimento descendente, quase acusando
receção no solo.
Cf. fig. 259 in Maurice Emmanuel, La danse grecque antique d’aprés
les monuments figurés, Paris, Librairie Hachette, 1896, p. 210.

XXIII –
Cabeça a ¾ para a direita;
Colocação de corpo quase frontal – [corps épaulé] ligeiramente
para a direita;
Tecido esvoaçante do lado direito, sobrepondo‑se‑lhe o braço que
segura uma sítula; braço esquerdo ocultado pelo tecido, aperce‑
bendo‑se a mão que segura uma phiale;
Pé direito avançado, semi‑ tapado pela base da túnica, pé
esquerdo recuado – [4.ª posição em ½ ponta] vislumbrando‑se
apenas em sombreado.
270
“Ne cessez pas vos danses, charmantes jeunes filles ! Ce n’est point un trouble‑fête au
mauvais oeil qui est venu parmi vous, ce n’est point un ennemi des jeunes filles! (…)
Mais lorsque la danse fut finie, les jeunes filles s’étant éloignées, il devint triste.” 46

Procurou‑se o acesso a elementos que permitissem caracterizar as tipologias dos


movimentos fixados, salvaguardando os estereótipos representacionais – alusivos
à iconografia das ménades/bacantes. Assim, no volume La danse grecque antique
d’aprés les monuments figurés de Maurice Emmanuel (1896), pode ler‑se acerca da
técnica, da coreografia, das posturas, das tipologias de movimentos que se sabe da
dança grega antiga.
Nas placas desta coleção as figuras remetem para as entidades imaginárias ména-
des/bacantes. Eis como Maurice Emmanuel as identifica e distingue das bacantes em
termos de representação:

“Les Ménades sont des êtres fabuleux. Aux fêtes célébrées par les populations
helléniques en l’honneur de Dionysos elles sont représentées, dans l’accomplissement
des rites traditionnels, par des femmes qui portent le nom général de Bacchantes,
et auxquelles chaque contrée donnait une appellation spéciale. (…)Tandis que les
Ménades sont toujours mêlées aux Satyres, les Bacchantes n’admettent aucun
danseur masculin parmi elles : la célébration des fêtes orgiaques était exclusivement
confiée à des femmes. Mais il n’est pas douteux que les artistes n’aient emprunté à
des modèles vivants tous les types de danseurs bachiques qu’ils ont fixés. ” 47

As dançarinas representadas nas placas da coleção de João Allen evocam as ménades,


relacionando‑se às figuras como que esvoaçando das pinturas parietais na Casa de
Cicerone. Cumprem, visionariamente, o ideal de beleza romântico que Théophile
Gautier tanto celebrou, a sua admiração extrema ao Bailado Romântico, através
das musas oitocentistas, as quatro grandes solistas celebrizadas no famoso Pas de
Quatre: Carlota Grisi, Maria Taglioni, Fanny Cerrito e Lucile Grahn – coreografia
de Jules Perrot e música de Cesare Pugni (1845). Gautier pensava o bailado num
enredo fantasista, num enquadramento ficcional, focado obsessivamente na convo‑
cação idealizada das “suas” bailarinas em palco, sobretudo a sua preferida Carlota
Grisi: “Sans être un spécialiste au se s moderne du terme, il sut saisir et rendre

46. Nietzsche 2012, 159 e 162.


47. Emmanuel 1896, 294.
271
sensible la maîtrise technique qui, seule, autorise la transfiguration de la femme en
syphide, et du corps en oeuvre d’art.” 48 Gautier foi um dos pioneiros ao desenvolver
as suas reflexões sobre dança, no que seria secundado por Paul Valéry, mais tarde.

“Une des premières, on le sait, dans cette ‘féerie’ à laquelle s’apparente le ballet, est
la danseuse, et sa ‘beauté physique’ (p. 105), et voilà Gautier campant les portraits
et assurant le ‘suivi critique’ de la carrière (p. 139) des principales ballerines du
siècle, de Taglioni et Elssler à Carlotta Grisi, objet de prédilection, de Fanny Cerrito à
Amalia Ferraris ou Emma Livry, sans oublier Dolorès Serral ou les autres danseuses
exotiques.” 49

Eis como as bailarinas de Pompeia, representadas nos medalhões Wedgwood de


Herculano, oscilam entre uma radicação estética, que como se sabe, veio a inspirar o
vocabulário balético e a libertação que Isadora Duncan e outros viriam a promover
enquanto detratores do ballet dito clássico, ao pretender reinterpretar uma assun‑
ção dionisíaca e naturalista da dança – na sua verdade mítica e mitológica, campos
férteis de uma nova Cosmogonia.
O foco incide sobre a representação da dança, em duas perspetivas (pelo menos):
remissão mitológico‑religiosa; remissão artística e estética, denotativas de um gosto
primário que convertido em “intemporal” e demonstrativo de uma validade mais
ampla e generalizada do que talvez se pensasse fosse expetável: desde a estética
grega, pela estética romana e até às estéticas neoclássica e romântica (repercutindo
uma estética creográfica canónica, curiosamente demonstrativa de afinidades eleti‑
vas notáveis). Onde pode ainda vir a convergir para o ressurgimento da estética da
dança grega, nas primeiras décadas do século XX, casos de Isadora Duncan, Mary
Wigman ou Ruth Saint‑Denis.

48. Dayar‑Perrin 2009, 14.


49. Colombo 2014, 171.
272
“ On ne décrit pas ce qu›on voit tous les jours ; on ne juge pas à propos de mettre en
relief des moeurs, des usages, des aspects que l’on connaît depuis l’enfance.” 50

“People do not improve, singly, by travelling, but by the observations they make, and by
keeping good company where they do travel.” 51

O que implica ponderar acerca de duas questões, imbrincadas entre si e outras


mais anunciadas: quais as consequências reguladoras, quanto à definição de “norma
de gosto” que readquire atualidade, por conta de revisitação histórica absorvida
nas estéticas posteriores, àquela que foi emissora primeira; que padrões se eviden‑
ciam para adesão, por parte de um público restrito, educado esteticamente – Grand
Tour – e que adquiria esta tipologia de objetos simbólicos para ulterior revisitação
mítico‑poética; como atingem, seduzem “gostos” mais alargados e menos artistica‑
mente formados, em termos societários; como motivaram diferentes desenhistas,
gravadores e artistas a celebrarem – mediante a sua execução – uma representação
que de mítica se converte em alegórica e que não necessariamente implica uma
perspetivação participada em termos subjetivistas.

“Nada melhora tanto o carácter como o estudo das belezas, quer se trate da poesia,
da eloquência, da música, ou da pintura…” 52

No século XVIII, em que filósofos como Edmund Burke, Madame de Lambert,


Montesquieu, Diderot, Baumgarten, Hutcheson, David Hume, John Locke ou
Emmanuel Kant, entre outros, procuravam esclarecer o que poderemos genericamente
designar por “Antinomia do Gosto” 53, de terminologia Kantiana; como se entendem
estes fenómenos de recorrência para plasmar um “gosto” que hoje, qualificaríamos
como atávico, autofágico… Será um dos aspetos de sedução enigmática (ambivalente)
de peças de tipologias análogas a estas – e não somente estas – que se verificou serem
objetos incontornáveis nas coleções que assim se originaram, um pouco por toda a
época, a partir das escavações oficiais de Herculano e Pompeia. Para além da vontade

50. Babeau 1928, 9 in ftp://ftp.bnf.fr/551/N5516086_PDF_1_‑1.pdf (descarregado em agosto 2014)


51. Chesterfield 1845, 132.
52. Hume 1974, 95.
53. Lambert 1993,171‑194.
273
de posse, o “mito de posse”, como habitualmente o designo, a preocupação em docu‑
mentar as imagens destas e outras figuras é notável e lúcida: fascinante!
Afinal, está‑se [apenas] perante cinco [mais um repetido] medalhões conciliá‑
veis com a ideia de Alegorias à dança, pois celebram indubitavelmente as origens
fundantes do conceito de arte, sublinhe‑se datável do período arcaico da Grécia
– numa contextualização mítico‑poética. Pretendeu‑se refletir, não tanto sobre
quem, como ou quando foram produzidas, antes analisar e interpretar conteúdos
iconográficos que reavaliam a obsessiva busca autognósica e identitário‑cultural,
para além de reconhecer um gosto prevalecente em distintas épocas.
A representação das ménades plasma‑as, uma a uma, em atitudes de dança, todas
elas esboçando movimento que possui uma anterioridade e uma consecutividade
quase cinematográficas.
Traçam posturas que se reconhecem análogas em pinturas de vasos de cerâmica
grega mas não na escultura do mesmo período, pois a fluidez e naturalismo de figu‑
ração pictural era por demais superior do que no tridimensional. Apenas no período
clássico a escultura e estatuária dominaria a representação de movimento e a assun‑
ção de poses antropomórficas derivadas do cinético. O corpo assumia colocações
que embora naturais eram virtuosísticas, denotativas de corpos flexíveis e treinados.
Marcados os ângulos dos membros superiores e, no caso das ménades, os membros
inferiores estão alinhados, com pequenas flexões de joelho quase impercetíveis. As
cabeças, nunca estão totalmente frontais, revelam torções mais ou menos acentuadas
e servem para evidenciar cruzamentos de seções do corpo, impulsionando movimen‑
tos breves mas afirmativos. Podem elevar‑se e quase revirar‑se para trás, num êxtase
ou descer sobre um dos lados. Dissociam‑se, por vezes, daquilo que parece ser a fun‑
ção do corpo em complementaridade do ato de dança. Os braços são posicionados em
termos assimétricos, podendo induzir duas direções de movimento em curso, confli‑
tuando o sentido do olhar. As mãos estão sempre em ação, ou seja, agarram, pren‑
dem ou seguram algum objeto, as próprias roupagens ou acessórios. Os pés afloram
o solo em ½ ponta, em posições cruzadas, afastados ligeiramente ou sublinhando a
deslocação, pelo afastamento entre si. As vestes são de tecidos fluídos, quer propor‑
cionando transparência que revelam os contornos do corpo, quer tornando‑se opacas.
A volumetria desce para o solo, em contornos sinuosos e barroquistas que, contudo,
adensam a leveza quer do corpo, quer da atuação em causa. Estas ménades apresen‑
tam‑se contidas, refreando os estados anímicos que todavia lhe foram atribuídos por
274
natureza. Assim, correspondem a gostos estéticos que se coadunam com as axiolo‑
gias vigentes na sociedade, arte e cultura.
Os gestos quotidianos converteram‑se em gestos decorativos (expostos nas pin‑
turas que decoram os vasos gregos) que eram reproduzidos na dança. Foram sis‑
tematizados, estabelecidos e integrando um vocabulário que derivaria mesmo no
balético europeu, muitos séculos depois.
O corpo real que dança atinge a razão de mistério, como advertiu Paul Valéry:
“Ce corps semble s’être détaché de ses equilibres ordinaires.” 54 Pareceria que
aquele que dança, ignora o mundo que o rodeia, aquilo que acontece: “Il semble
bien qu’il n’ait affaire qu? À soi‑même et à un autre objet, un objet capital, duquel
il se détache ou se délivre, auquel il revient, mais seulement pour y reprendre de
quoi le fuir encore…” 55
Entre tantas e tantas peças valiosas e extremamente requintadas, os medalhões
que aludem às ménades são uma pequena fenda no iceberg que é constituído pela
acumulação dos items artísticos elegidos. São pequenas afinidades eletivas que os
viajantes e colecionadores enquadrados no Grand Tour pretendiam memorizar,
dando “corpo” plasmado em forma escultórica, mas eivado de espessura que as
camadas dos tempos sedimentaram.

Corpos dançantes, anónimos e alegóricos, sem identidade ou individuação mas


portadores de um valor que se verificou ser intemporal – ménades.

54. Valéry 1957, 1397.


55. Valéry op. cit. 1397.
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