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ENSINO DE HISTORIA ‘Ana Maria Monteiro Arlette Medeiros Gasparello Marcelo de Souza Magalhaes Organizadores ravens Mauad X NARRATIVA E NARRADORES: NO ENSINO DE HISTORIA Ana Maria Monteiro” [Na verdade, se dizer a palavra € tansformar 0 mundo, se dizer a palavra no ¢ prvilégio de alguns somente no mundo que deve ser transformado, § 0 didlogo em que a realidade concrets aparece como rmediadora de homens que dialogam. Paulo Freire Ao investigar 0 ‘que reconhece sua ‘emerge com fe aberes € suas pra ria no processo de dda Faculdade de Educagio e do Programa de Pés-graduasio em Educa- ersidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisadora do Niicleo de Estudos do Curriculo ~ NEC da FE/UFRI. Doutora em Educapdo pela PUC-Rio. quo oe Hisroua: Sunmos, SaNERES£ PrAnicns 119 ‘Ao responder a estas questdes, os professores falaram sobre seus modos de censinar e, indiretamente, sobre objetivos e fins do ensino: ae ele emenda o roces, a condizes hrc que pertiram ‘aquele processo... que os fats, acontecimentos, os movimentos, eles met sol, nets, lesen rear. e€ may di cilpara o aluno estabelecerrelagdes.. (Lucia) al, procurar trabalhar com as a questdo relacional para mim questio da A outra questdo & a questéo rela relagdes, sempre buscando as relaga é fundamental...Quando eu monto as minhas aula contextualizago para mim é fundamental, contextualizar os temas, no importa, tentar contextualizar ino mesmo... Quer diver, é.. eu ‘a questo do teocentrismo... Eu posso no contexto de hoje... Vises, concepgdes que articulam conteddo ¢ método, saberes © priticas, saberes a ensinar e saberes sobre 0 como ensinar, mesclados com a compreen- so sobre as finalidades do ensino que, por sua vez, expressam valores © a dimensfo educativa estruturante. Falas, expresses dos saberes dos docentes sobre os saberes ensinados, expressGes do saber escolar, contetidos pedagogizados?. [Em suas aulas, falas ¢ diélogos, questionamentos foram realizades dos. Narrativas foram construidas buscando atribuir sentido As experiéneias hu- ‘manas que ali eram objeto de estudo. ‘Suas narrativas possibilitaram novas leituras do mundo? Puderam ajudar a compreender ou transformar 0 mundo? Ou serviram para impor o siéncio, para calar alunos, memérias, histrias? Essas questdes, relacionadas com as construgbes discursivas elzboradas du- rante as aulas de Histéria, merecem atengao, na medida em que uma investigagdo focaliza a problemética do saber escolar e de sua mobilizagio pelos professores.” Como analisar 0 saber escolar implica, necessariamente, pensar suas relagbes ‘com o saber académico de referéncia, tomna-se possivel perguntar qual o papel ue 4 narrativa hist6riea desempenha nessa mobilizagio. Nesse sentido, ¢ im- portante recuperar alguns aspectos dos debates que tém sido travados em torno do significado da narrativa para a escrita da histéria. 120 PROFESSORES A MISTORIA ENSINADA: DIFERENTES APROPRAGOES. Este artigo, portanto, tem por objetivo discutir a utlizagio da narrativa hist6- rica no ensino de Hist6ria tendo por base a discussio te6rica sobre o saber histé- Fico escolar. O conceito de narrativa hist6rica € abordado de forma sucinta para investigar possibilidades de seu uso como categoria de andl ccompreensio dos processos envolvidos no ensino dessa disci 1. Hist6ria narrativa e narrativa histérica A hist6ria narrativa, forma de expresso encontrada para ac discurso historiogrifi cculo XIX, foi muito criticada e negada por historiadores da escola dos Annales, a partir dos anos 30 do século XX. Na defesa de uma histéria-problema, propunham o abandono da histéria-nar- rativa, vista como sindnimo de oposi Assim, as criticas & hist6ria narrativa se multiplicaram até a década de 1970, ppor parte daqueles que buscavam trabalhar com Hist6ria na perspectiva do tigor ‘metodoldgico cientifico e considerando aspectos de ordem estrutural. Quando 0 “retoro & narrativa’ foi anunciado, provocou grande impacto e questionamentos.* ia evenementielle, dos acontecimentos, em as propostas de construgdo cientifica do conhecimento histérico* (antincio desse retomo ocorreu no contexto do movimento de critica & concep 4c histéria-processo-progresso e as propostas de hist6rias totalizantes; da retomada de Jmportincia do historiador, da necessidade da identificago de suas premissas ¢instru- ‘mental te6rico, como produtor de um determinado conhecimento; e do impacto do “linguistic sum’, tendncias estas presentes no contexto do movimento pés-modemo. Se, por um lado, os historiadores estruturalistas mostravam que a narrative tradicional passava por cima de aspectos importantes, sendo incapaz de relacionar (8 acontecimentos com a estrutura econdmica e social e de considerar a experién- cia e os modos de pensar das pessoas comuns, do outro lado, os defensores da narrativa observavam que a andlise das estruturas € estticae, portanto,a-histérica® Na verdade, de acordo com Burke’, os historiadores dos dois campos diferem io apenas naquilo que consideram significativo, mas também no modo de reali- zar a explicagio hist6rica, Enquanto os estruturalistas denunciam a superficial dade da hist6ria narrativa dos acontecimentos, seus opositores denunciam a ané- lise estrutural como determinista ¢ reducionista Burke chama a atengo para o fato de que, primeito, seria preciso criticar ambos os lados, por acharem que distinguir acontecimento de estrutura seja uma uestéo ficil. Segundo, citando Ricoeur’, que afirma que toda histéria escrita, 121 Enso ne Histoma: Suravos, SANERES E PAC inclusive a hist6ria estrutural, assume algum tipo de forma narrativa, ele lembra que, na verdade, esse debate resulta da necessidade sentida por historiadores quanto ao tipo de namrativa a ser escrita, expresso do reconhecimento de que as vvelhas formas slo inadequadas aos novos propésitos. trabalhos de alguns historiadores ‘Avangando nesta diresdo, Burke ident que representam opgies distintas de realizar a explicagao histérica e que dio origem a formas narrativas que, ao buscar inspiragdo na literatura ena linguagem ccinematogrética, podem apresentar solugGes para problemas com os quais 0s his- toriadores vem lutando hd muito tempo. ‘Uma delas se baseia no uso da heteroglossia ~ conjugagio de vozes variadas e ‘opostas, No lugar da Voz da Histéria, apresenta os diferentes pontos de vista dos atores em confront, Aoutra prope que os historiadores, narradores histricos, deixem claro em suas narrativas que cles no esto ali reproduzindo “aquilo que verdadeiramente aconte- cou”, mas apresentando aquela que & a sua interpretago, havendo outras posstveis. Assim, muitos estudiovos consideram que a escrita da histéria foi empobrecida pelo abandono da narrativa, estando em andamento uma busca de novas formas de expressio que se mostrem adequadas &s novas hist6rias que os historiadores gostariam de contar. Estas novas formas incluem a micronarrativa, a narrativa “de frente para t entre os mundos piblico ¢ privado, ou apresentam os mesmos acontecimentos a partir de pontos de vista maitiplos? Nesse sentido, 6 possivel perceber que a narrativa emergiu como problema a partir do esgotamento da concepgio modema de histéria e da busca da forma textual mais adequada pare a escrita do conhecimento hist6rico, capaz de expres sar a racionalidade que sustenta a explicago nas diferentes formas propostas pelos historiadores. Da polémica deflagrada, algumas conclusGes podem ser tiradas, entre elas, as que nos levam a perceber que mais do que a narrativa em si, o que os hist res dos Annales crticavam era a concepeio de hist aconteci de uma re imanente, independente e exterior a0 historiador, manifestago do tempo de curta duragio, na dimensto cronol6gica, e que seria possfvel de ser recuperada pelo historiador na forma como verdadeiramente aconteceu. con- ceito de acontecimerto se modificou a0 longo do tempo. as historias que se movimentam para frente e para trés, Acor 122 imento nto € sempre, ou simplesmente, esse resplandecer bre do a0 erceiro nivel, onde 0 acantona, contude, Braudel. Com ProressonEs #4 HISTORIA ENSINADA: DIFERENTES APROPRIAGOES ia fangdes diversas, o acontecimento pertence a todos os niveis ¢ pode ser mais precisamente definido como uma variante do enredo.”” Portanto, o longo prazo, a longa duragdo, no exclui 0 acontecimento, que pode ser analisado como manifestagZo de uma dindmica social com origens es- turais © conjunturais. Assim, nem a longa durago nem 0 acontecimento si smpativeis com a narrativa Como afirma Hartog, autor em quem nos baseamos para apresentar essas con- sideragGes, na verdade, a narrativa nio deixou de existr. A hist6ria nfo cessou de dizer os fatos e gestos dos homens, de contar, io a mesma narrativa, mas narrativas de formas diversas. Da historia ret6rica a histria-Geschichte e para além, as exigéncias, os pressupostos «as formas de empregé-los variaram sem dévida amplamente, mas a interrogagio acerca da narrativa (a narrativa enquanto tal), esta é recente, ‘Tormaram-na possfvel a saida ou o abandono da hist6ria-Geschichte, pro- ccesso e progresso, ¢ a reintroducio do historiador na histéria; mas, tam- bbém, a partir do papel preponderante ocupado pela linguistica nos anos 1960, as interrogagies voltadas para o signo e a representagdo. Também aahistéria pode ser tratada como (¢ nfo reduzida a) um texto, ‘A Hist6ria como um conhecimento, acrescento eu,* No processo de consttigto do conhecimento hi ulados por diferent representagdes de suj 08, que estabelecem relagdes entre si e com a natureza, e que sio registradas em documentos de diversos tipos, sendo percebidas através de diferentes dimensBes Da relagao entre o real e ia, criando a historiografia, © escrita, expressando o paradoxo do relacionamento de dois termos antindmicos ~o real e 0 discurso."® 2. Narrativa hist6riea no ensino de Histéria ‘Como essa construgio se dé no conhecimento hist6rico escolar? escolar é uma configuragio propria da cultura escolar, oriunda de ‘com dinamica ¢ expressées diferenci stualidade, telagbes de didlogo e interpelagio com 0 conhecimento histérico stricto sensu € com a histéria vi 0 contexto das préticas e representacdes sociais. Fonte de 123, Sams u Paéricas saberes ¢ de legitimagio, o conhecimento hist6rico “académico” permanece como a referéncia daquilo que € dito na escola, embera sua produglo siga trajet6rias ficas, com uma dindmica que responde a interesses ¢ demandas do ico ¢ que sio diferentes daquelas oriundas da escola, onde a dimen- slo educativa expressa as mediagbes com 0 contexto social O conhecimento de aspecios estruturais, prinefpios da organizagio conceitual investigagao dos saberes disciplinares, que permitem identificar as principais - habitidades © paradigmas que orientam 4 produgo de conhecimento no portante para a realizag#o da prética pedagégica com autonomia, possibilitando romper com o senso comum e propor alternativas ética camente fundamentadas, Quando da andlise das construgdes realizadas para 0 ensino, é possivel identi- ficar mareas, refer€ncias do saber académico. Na pesquisa realizada foi possivel articular aspectos estruturais com conjunturas ¢ acontecimentos; a localizago temporal dos fatos abordados que ia a es sucesso linear para explo- rar as possibilidades da articulagdo passado-presente-passado na explicag contetidos selecionados que resultavam da orientagio paradigmética predomi- nante e na qual se destacavam andlises referenciadas & hist6ria econémico-social cultural, em detrimento da historia Quanto a utilizago da narrativa, questées podem ser levantadas: os professores, ao desenvolver suas aulas, agian como narradores? Construiram narativas para “contar” a hist6ria que ensinaram? Qu trabalharam na perspectiva da hist6ria-problema, problematizando e argumentando, criando oportunidades para que seus alunos desenvolvessem suas argumentagées?"* A construgio discursiva elaborada pode ser considerada narrativa’? (Como as aulas de Histéria foram construidas? Elas expressavam a concepctio da historia evenementielle do século XIX? Qual o dominio que os professores tiveram. sobre sua elaboracdo? Ela resultou de uma problematizagio? Ou as aulas foram a ‘expressio da hist6ria processo-progresso cujos nexos de causalidade so dados pela dimensio temporal, pela cronologia, de forma aparentemente naturalizada? Qual 0 uso feito dos relatos ficcionais ¢ literérios? Foram complementares ou constitutes do discurso? Como exemplos, analogias foram uilizadas em sua cons- trugo? Qual otratamento dado a elaborago textual e & dimensGo do real? Como foi bordada a questio da verdade? E das diferentes concepgdes a respeito de um 124 ‘mesmo tema? A aula se configurou em uma narrativa ou se constituiu num discur- ‘80 dissertativo ao longo do qual questdes foram levantadas, defendidas ou nepadas? 3. Narrativas na histéria escolar | observar, os professores iniciavam as aulas a partirde um tema que era explicado baseado numa estrutura temporal linear ou que articulava diferentes temporalidades. Para desenvolverem seu trabalho, os professores se basearam em duas orien- tagies pedagégicas principais: as professoras Alice e Lana'” pautaram seu traba- a aprender", como no caso da pesquisa cujo projeto estavam auxiliando seus alunos a elaborar, Suas aulas eram estruturadas a partir da perspectiva da hist6ria-problema — 0 estado rea diferentes contetidos abordados a partir doeino temitico dos PCNs para 3 ciclo: Histéria das relagées soci, da cultura e do trabalho. importante destacar aqui que nfo foi por acaso que essas duas profssoras optaram por trabalhar com os eixostemiticos dos PCNS, proposta curricular que busca atualizar o saber escolar aproximando-o do saber académico. Esse tipo de organizasio cuticular vom a0 encontro das tendéncias dominantes no campo, aque negam a histria linear dos acontecimentos em favor das alterativas propos- tas pela histria-problema e pela Nova Histria,em que questdesfocalizam cam- pos a ser investigados por diferentes perspectivas de abordagem. Assim, dentro do eixo temstico do 3 ciclo dos PCNs, Alice e Lana organiza- ram atividades que possibilitavam aos alunos constr os conceitos de escravo € de eseravidio. Foram oferecidos subsidis com informagies sobre a ser antiga e modema ~formas de obtengao do escravo, trabalho realizado, 0 10, 8 relagio com os senhores, punigdes ete. ~ num trabalho 4 «que Lev chama de contextalizaglofuncionalistae que p cescravidao, Busca-se compreender o significado desta reluglo em diferentes Ensno oe Histon: Suiros, SARBRES & PRATICAS 125 ‘ets e sociedades, identficando semelhangas e diferengas para reunir caracteristi- ‘cas comuns ¢ compreender 0 conceito, Cabe ressaltar que esta forma de contextualizagto, no entanto, foi usada com © objetivo de ensino, ¢ nfo para produzit conhecimento novo no campo, a partir de hip6teses que 0 pesquisador pode confirmar ou nfo, gerando uma produgio ue precisa ser validada em uma comunidade cientifica a pattr de critétios tebri= para ensinar © saber que foi selecionado, num ‘momento dado e num determinado contexto, como aquele que € itil A formagio das novas geragbes, de acordo com metodologia considerada mais adequada, mas {ue apresenta marcas do saber académico, Foi utilizada uma de suas formas como arcabougo explicativo para o ensino. ir que as professoras ndo traballharam com a his- ‘historia evenementielle,Criaram situagGes de apren- dizagem a partir das quais os alunos, com os subsidios por elas apresentados, laboraram narrativas nas quais articulavam os varios elementos em jogo ~ as. Pectos estruturais com conjunturas e acontecimentos -, recontextualizando-os a partir das finalidades educativas. A dimensio temporal foi rabalhada em movimentos de idas e vindas, passa- do-presente-passado, articulando os diferentes momentos do passado com o pre- sente: atualidade/Roma Antiga/ decadéncia de Roma/séculos XVUXVI Europa feudaV/atualidade. Buscavam, assim, romper a naturalizaco da hist6ria que emerge do trabalho com a cronologia linear. Cocrentemente com a abordagem ad problematizaglo, além de ‘Go: “Brasil, que pats € esse’ Essas professoras nio contavam historias, nem utilizaram “hist6rias para ilustrar suas aula. A narr cstava para ser construida pelos alunos com 08 subsidios obtidos através das tarefas propostas, possibilitando a configuragiio de um texto heterogléssico, pol ‘es sujeitos hist6ricos estudados com as vores ¢ falas dos alunos, das professoras do autor do livro diditico. Marcos ¢ Pedro desenvolyiam suas aulas a partir de suas falas, do discurso ue iam construindo. Marcos perguntava e explicava, apresentava exemplos, 1¢- lacionava pasado e pres ‘g6es para que os alunos a ele atribufssem um sentido, o que muitas veres se cconfigurava na compreensio dos conceitos em estudo, 126 ‘PRoFESSOmtW ASTORIA ENSINADA: UFCRENTES APROPRAGOES Pedro procurava problematizar todos os aspectos mencionados. A critica e a superagio do senso comum eram seus principais objetivos, sendo a Historia um instrumento para possibilitar uma inseredo cidada dos alunos de forma critica e consciente de sua O trabalho com a dimensio temporal seguia uma ordenagao linear mais clara, les se movimentassem entre passado e presente na busca de retacionar as questdes em estudo com as vivéncias dos alunos e, tam= bém, no trabalho com analogias, quando comparavam situages em diferentes €pocas do passado. Foi 0 caso, por exemplo, quando Marcos contrastou a servi-

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