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1. INTRODUÇÃO
A transsexualidade aparece como fenómeno radical de transformação de corpos
funcionais, contra atribuições de género à nascença e contra práticas socializadoras que,
ao longo do crescimento, vão reforçando essa pertença inicial1. Torna-se, assim, uma
problemática de difícil abordagem e compreensão que, em clínica, levou à busca de uma
etiologia centrada em dinâmicas parentais, as quais, em conjugação com outros factores
(e.g., um período crítico de desenvolvimento, o temperamento da criança), conduziriam
a discrepância entre sexo biológico e género (Coates, 1992; Levine & Lothstein, 1981;
Stoller, 1968, 1975; Zucker e Bradley, 1995). De acordo com a psicanálise, a
transsexualidade resultaria da construção de uma identidade de género
extraordinariamente resistente à evidência anatómica (Castel, 2001).
Com a distinção entre os conceitos de “género” e “sexo”, novas
conceptualizações se tornaram possíveis. Esta separação permitiu não só abordar a
transsexualidade como um problema de discrepância entre “sexo” e “género” – como
faz a perspectiva clínica, mas também conceber como legítima a possibilidade de,
simultaneamente, se possuir um sexo anatómico e se pertencer a outro género (como é
feito em ciências sociais). Ainda assim, a distinção entre os dois aspectos – sexo e
género – faz-se com dificuldade, tal é a forma como parecem interligados. Dozier
(2005), por exemplo, sublinha que mesmo os investigadores que se propõem tratar estes
dois aspectos de forma discreta e independente têm dificuldade em manter a distinção
entre ambos ao longo de todo o seu trabalho, devido ao facto de aparecerem associados
na maioria das dimensões da vida social. Nota também que, apesar de ser do consenso
geral que o género é socialmente construído, os investigadores tomam frequentemente o
sexo como ponto de partida para o género. Uma tal concepção não explica como se
forma uma identidade de género contrária ao esperado pela socialização2. Com base na
perspectiva de Dozier, pode dizer-se, pelo contrário, que o ponto de partida para a
transsexualidade não seria o sexo anatómico, mas sim o género. E, nesse caso, em
contraponto à psicanálise, a transsexualidade não resultaria da construção de uma
identidade de género extraordinariamente resistente à evidência anatómica, mas sim de
um aspecto anatómico extraordinariamente resistente à identidade de género.
O presente trabalho debruça-se sobre a formação desta identidade, que se cria
independentemente do sexo anatómico, para examinar os pontos sobre os quais se apoia
e assim contribuir para um maior entendimento do fenómeno da transsexualidade e
consequentemente, para uma adaptação mais eficaz dos contextos sócio-psíquico-
culturais a esta problemática.
2. MÉTODO
2.1 Participantes
Este estudo debruça-se sobre uma amostra de transsexuais que requereram
cirurgia de reconstrução genital para fazerem a transição para o sexo feminino
(transsexuais MF). Na altura do pedido de cirurgia, encontravam-se na casa dos 20 anos
de idade, altura em que também começaram a participar no estudo. Ao longo dos mais
de dois anos de participação, alguns entraram na casa dos 30 anos de idade. Todos os
casos em estudo foram educados pela família como rapazes, apenas um relatando
comentários, a si dirigidos durante a infância e adolescência, acerca dos seus modos
“femininos”.
2.2 Instrumentos
Este estudo baseia-se numa abordagem qualitativa que usa a observação e
entrevistas aprofundadas, largamente não estruturadas, conduzidas informalmente e em
2.3 Procedimentos
Entrevistas e observações conduzidas em vários encontros ao longo de meses
com as participantes foram gravadas e todos os dados transcritos, sendo depois
analisados num total de 21 documentos. A abordagem analítica utilizada esteve de
acordo com os procedimentos da teoria enraizada (grounded theory approach), seguindo
a estratégia indutiva de constante comparação à medida que se procede à recolha, codificação e
análise simultâneas de dados (Glaser e Strauss, 1967) no programa de computador
NUD*IST (QSR N6). A abordagem inicial aos dados revelou que, para os objectivos do
presente estudo, são pertinentes instâncias do presente (correspondendo à idade adulta
das participantes), ficando assim excluídos das análises acontecimentos e referências ao
passado (infância e adolescência). Foi feita uma excepção apenas no caso de um excerto
de entrevista que, apesar de pertencer à infância, foi incluído por se considerar que
facilita a compreensão da informação veiculada.
3. RESULTADOS
consciência, foi quando eu comecei a sair, começava a ver que gostava de cenas
como, como a maior parte das mulheres, que eu já gostava antes, só que a partir
daí é que comecei a associar, comecei a perceber as coisas e a dizer, “calma que
aqui há alguma coisa errada”.
… as coisas que eu gostava e a forma como eu me arranjava, isso tudo foi, foi
evoluindo até chegar ao ponto de dizer, “eu sou isto”.
As participantes “começa[m] a ver que [são] como a maior parte das mulheres” em
vários aspectos: em termos de gostos e preferências, de pensamentos e assuntos de
conversa, de relacionamentos romântico-sexuais, de planos de vida. Os seguintes
excertos de várias entrevistas ilustram estes aspectos.
Gostos e preferências:
… aí, vestia [de mulher], era um homem! Vestia sapato alto, vestia tudo, a
minha mãe, “Mas o que é isso? ‘Tás doido? Tu és um homem!” (voz zangada)
“Posso vestir de mulher? Eu gosto, mãe. Gosto de vestir de mulher.” (voz doce e
aguda).
Relacionamentos romântico-sexuais:
… desde o início, esse, esse meu namorado... ele sempre soube que eu queria ser
tratado como uma mulher. Nunca como um homem. … Em termos de
intimidades e isso.
… Esse namorado meu … não tinha nada... não tem nada a ver com o mundo
gay. É um homem heterossexual, não tem nada a ver com o mundo gay... Até
porque eu nunca andaria com um homem gay.
Planos de vida:
... Sempre quis ter daquelas coisas de mulher que é... sei lá... ter um namorado...
jantar fora com o namorado, ir p’rá praia com o namorado... jantar à luz de
velas, essas coisas simples que todas as mulheres fazem.
naquele sentido de... um dia casar, ter filhos... essas coisas, percebes? Que um
homem com homem não tem... pelo menos à partida... Não quer dizer que não
tenha... Mas à partida não tem esses, esses objectivos. E eu sempre me senti
diferente, mas como as pessoas me diziam que isso era ser gay (bate palma), eu
assumi que fosse e só em confronto com a realidade é que vi que não era...
Esta “percepção” de se ser “como a maior parte das mulheres” faz-se, então,
através de um concomitante processo de comparação, não só com mulheres e com
homens, mas também com outras configurações alternativas como, por exemplo,
homossexuais e travestis:
Conforme fui viv, convivendo com gays, também fui convivendo com mulheres,
percebes? E, conforme fui comparando, as minhas, aa, os meus pensamentos, as
minhas ideias e as minhas situações de vida... e vi que tinha tudo a ver com uma
mulher.
A gente descobre que gosta daquilo. Depois descobrimos que gostamos doutra
coisa qualquer e vamos chegando à conclusão “ ‘Pera lá! Eu gosto de tudo o que
é de mulher”.
… as pessoas diziam, de que pessoas como eu eram gays (pausa). Pronto. (bate
palma) E eu como não sabia de nada, eu identifiquei-me como uma pessoa desse
género. Pronto... pensei que era assim (pausa) ... as pessoas diziam-me que era...
que isso era... que gostar de homens era ser gay … Só que, no entanto, comecei a
sair à noite... isto já foi por volta dos meus 19 anos... Comecei a frequentar esse
mundo... o mundo das discotecas gays e não sei quê (pausa) e... comecei a olhar
e comecei a ver que aquilo não tinha nada a ver comigo...
Gostam de ser travestis. Gostam de vestir de mulher, mas são uns homens. Quer
dizer que vestem-se de mulher à noite e de dia são uns homens … são diferentes
Partindo de uma certa observação dos outros e de uma determinada caracterização das
“maneiras de ser” respectivas (por exemplo, gostos e preferências, nomeadamente nas
formas de apresentação pública, pensamentos e tópicos de conversa, modos de
relacionamento com os outros, designadamente romântico-sexuais, e planos para a
vida), as entrevistadas posicionam-se como mulheres. O papel do corpo físico próprio
nesta configuração é difuso (embora o corpo venha a assumir grande proeminência uma
vez configurada a identidade feminina – levando aos procedimentos cirúrgicos e
hormonais de “correcção”). Inicialmente, os ajustes corporais prendem-se com a
concordância pretendida, na apresentação de si como mulheres, entre o trajo envergado
e o físico correspondente – sendo esta a saliência inicial de que parece revestir-se o
corpo, como mostram os seguintes excertos das entrevistas (ênfase acrescentada):
… eu tomei, tomei consciência que tinha e não queria [o pénis], foi por volta dos
17, 18 anos. Quando comecei a sair … Quando uma pessoa olhava para mim,
olhava p’ra tudo. E comecei a não gostar daquilo, e comecei a tentar esconder e,
ee com, com, aa, cuecas mais apertadas, aa, esse tipo de coisas, p’a tentar
disfarçar … Quando começámos a esconder, tudo, aa, porque, tudo o que,
quando íamos p’ra fora … tentávamos parecer ao máximo uma mulher.
[Aa, notavas a discrepância que havia entre ti, como pessoa biológica, e as
modelos ou não? ...] Eu acho que não tinha consciência disso.
partir de 20 é que comecei a ter muito, comecei a ter mais barba, que eu, mesmo
assim, não tenho muita, pêlos também comecei a ter mais, até então isso não era
assim um grande problema.
… já tive orgasmos. Quando os homens estão a fazer sexo anal comigo ... Mas
agora tenho namorado, eee tenho orgasmos.
… eu não deixava, com qualquer pessoa que eu fosse p’rá cama, curtir, não
deixava ninguém ver o meu sexo. ‘Tava sempre lá com, com a mão ou não tirava
a roupa toda, era sempre assim.
… até escondo, o sexo … Tenho uma cueca, própria, apertada e faço sexo anal e
não mostro ... Eles: “Não gostas do sexo que tens?” “Não, não gosto. Se
gostasse, deixava mexer. Não gosto” … faz conta que ele não está aqui. Não
existe. Não existe, p’ra mim.
Já me disseram assim: “Porque é que não fazes um filho? Depois não podes ter
filhos, faz um filho homem.” Não, eu não faço filhos que eu não me sinto
homem. Eu sou mulher.
definição) que toma como ponto de partida aspectos que não o sexo anatómico. Este
vem a integrar uma definição de si já constituída, enquanto aspecto discrepante a ser
corrigido. A definição de si, por sua vez, baseia-se nos chamados papel de género e
identidade de género – referindo-se àquilo que, discursivamente, caracteriza uma
mulher ou um homem em dada sociedade, e que as entrevistadas adoptam. Neste
estudo, aspectos que entraram na constituição das identidades femininas das
participantes foram: preferências e inclinações, modos de pensar e tópicos de conversa,
relacionamentos romântico-sexuais e planos de vida. A anatomia pessoal parece assumir
um papel pouco relevante no dia-a-dia das participantes e na constituição da sua
identidade de género, tornando-se especialmente saliente após a construção de tal
identidade.
Em termos dos resultados, este é um estudo qualitativo que se debruça
intensivamente sobre uma amostra pequena que é também homogénea (os sujeitos são
adultos, MF e procuram cirurgia de reconstrução genital). A extrapolação dos resultados
para além desta amostra merece precaução e não constitui um objectivo deste estudo. A
restrição ao presente dos dados incluídos nas análises (correspondendo à idade adulta
das participantes), por outro lado, permite ultrapassar as dificuldades dos estudos
retrospectivos e seus vieses a nível da memória e evocação, contribuindo para aumentar
a validade do presente estudo.
5. CONCLUSÕES
Ainda que aparentemente contrária à socialização, a configuração de identidades
femininas em indivíduos com anatomias masculinas faz-se dentro de parâmetros sociais
normativos, a partir do uso de categorias disponíveis (por exemplo, a categoria
“mulher”) e de recursos discursivos à volta das mesmas, que as estruturam. É assim que
um género se faz discursivamente corresponder a uma destas categorias (e não a outras)
e que assume características específicas (por exemplo, uma mulher não tem barba nem
pénis). E é então a partir desta construção de género (e não a partir do seu sexo
anatómico) que as participantes se vão posicionar como mulheres, procurando depois
corresponder as suas características anatómicas àquelas que são discursivamente
adequadas a esse género.
Uma perspectiva sobre a transsexualidade que toma como ponto de partida o
género, não o sexo, contribui não só para a compreensão deste fenómeno de aparência
contraditória, mas também para uma adaptação mais eficaz das abordagens dirigidas a
esta problemática. O estudo futuro dos processos que configuram outras identidades, e
outras identidades de género, poderá ajudar a aprofundar o conhecimento nesta área e
assim contribuir para aqueles dois propósitos, de compreensão do fenómeno e de
adaptação das abordagens a ele dirigidas.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Joana Parada Lima, a Sara Rocha e às participantes neste estudo os valiosos
contributos que deram para a realização do trabalho.
NOTAS
1 - Embora haja correntes que defendem a ideia de que a transsexualidade pode resultar
justamente do reforço de comportamentos de género cruzado.
2 - A emergência de uma “consciência” feminina ou masculina é frequentemente
explicada por recurso à interacção social: ser tratado como homem ou como mulher cria
uma consciência masculina ou feminina (Lorber, 1994); ou, por um processo de
recrutamento, as crianças vêem-se forçadas a escolher identidades fornecidas por
adultos, entre a desacreditada identidade de “bebés” e a de “menino (ou menina)
crescido”, isto é, a fornecida pelo sexo que as determina anatomicamente (Cahill, 1986).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Glaser, B., & Strauss, A. L. (1967). The discovery of grounded theory: Strategies for
qualitative research. New York: Aldine.
Levine, S. B., & Lothstein, L. (1981). Transsexualism or the gender dysphoria
syndromes. Journal of Sex & Marital Therapy, 7, 85-113.
Lorber, J. (1994). Paradoxes of gender. New Haven, CT: Yale University Press.
Stoller, R. (1968). Sex and gender: On the development of masculinity and femininity.
New York: Science House.
Stoller, R. (1975). Sex and gender, Vol. II: The transsexual experiment. London:
Hogarth Press.
Zucker, K. J., & Bradley, S. J. (1995). Gender identity disorder and psychosexual
problems in children and adolescents. New York: Guilford Press.