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“Contra a Socialização”: A Identidade Transsexual

Irene Palmares Carvalho1


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Psicologia Médica, Faculdade de Medicina, Universidade do Porto

Na transsexualidade, destaca-se o foco na questão do género. Contra a atribuição


do género à nascença e contra as práticas socializadoras que, ao longo do
crescimento, reforçaram essa pertença inicial, o transsexual sente-se “do outro
género”, recorrendo a cirurgia de reconstrução genital para fazer corresponder a
sua biologia à vivência sentida.
A partir de uma abordagem qualitativa com transsexuais, baseada em observação,
entrevistas não-estruturadas, blogues, diários e fotografias pessoais, o presente
estudo investiga o processo através do qual se forma esta “identidade contrária”.
Os resultados sugerem que tal identidade se constrói dentro de parâmetros sociais
normativos, a partir do uso de determinados recursos disponíveis, e que estes
parâmetros são, eles próprios, estruturadores da mesma. O estudo futuro dos
processos que configuram outras identidades e outras identidades de género poderá
também contribuir para um melhor entendimento desta problemática e para a
promoção de uma adaptação mais eficaz dos contextos sócio-psíquico-culturais.

Palavras-chave: Identidade de género, Transsexualidade, Abordagem qualitativa.

1. INTRODUÇÃO
A transsexualidade aparece como fenómeno radical de transformação de corpos
funcionais, contra atribuições de género à nascença e contra práticas socializadoras que,
ao longo do crescimento, vão reforçando essa pertença inicial1. Torna-se, assim, uma
problemática de difícil abordagem e compreensão que, em clínica, levou à busca de uma
etiologia centrada em dinâmicas parentais, as quais, em conjugação com outros factores
(e.g., um período crítico de desenvolvimento, o temperamento da criança), conduziriam
a discrepância entre sexo biológico e género (Coates, 1992; Levine & Lothstein, 1981;
Stoller, 1968, 1975; Zucker e Bradley, 1995). De acordo com a psicanálise, a
transsexualidade resultaria da construção de uma identidade de género
extraordinariamente resistente à evidência anatómica (Castel, 2001).
Com a distinção entre os conceitos de “género” e “sexo”, novas
conceptualizações se tornaram possíveis. Esta separação permitiu não só abordar a
transsexualidade como um problema de discrepância entre “sexo” e “género” – como
faz a perspectiva clínica, mas também conceber como legítima a possibilidade de,
simultaneamente, se possuir um sexo anatómico e se pertencer a outro género (como é
feito em ciências sociais). Ainda assim, a distinção entre os dois aspectos – sexo e

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género – faz-se com dificuldade, tal é a forma como parecem interligados. Dozier
(2005), por exemplo, sublinha que mesmo os investigadores que se propõem tratar estes
dois aspectos de forma discreta e independente têm dificuldade em manter a distinção
entre ambos ao longo de todo o seu trabalho, devido ao facto de aparecerem associados
na maioria das dimensões da vida social. Nota também que, apesar de ser do consenso
geral que o género é socialmente construído, os investigadores tomam frequentemente o
sexo como ponto de partida para o género. Uma tal concepção não explica como se
forma uma identidade de género contrária ao esperado pela socialização2. Com base na
perspectiva de Dozier, pode dizer-se, pelo contrário, que o ponto de partida para a
transsexualidade não seria o sexo anatómico, mas sim o género. E, nesse caso, em
contraponto à psicanálise, a transsexualidade não resultaria da construção de uma
identidade de género extraordinariamente resistente à evidência anatómica, mas sim de
um aspecto anatómico extraordinariamente resistente à identidade de género.
O presente trabalho debruça-se sobre a formação desta identidade, que se cria
independentemente do sexo anatómico, para examinar os pontos sobre os quais se apoia
e assim contribuir para um maior entendimento do fenómeno da transsexualidade e
consequentemente, para uma adaptação mais eficaz dos contextos sócio-psíquico-
culturais a esta problemática.

2. MÉTODO

2.1 Participantes
Este estudo debruça-se sobre uma amostra de transsexuais que requereram
cirurgia de reconstrução genital para fazerem a transição para o sexo feminino
(transsexuais MF). Na altura do pedido de cirurgia, encontravam-se na casa dos 20 anos
de idade, altura em que também começaram a participar no estudo. Ao longo dos mais
de dois anos de participação, alguns entraram na casa dos 30 anos de idade. Todos os
casos em estudo foram educados pela família como rapazes, apenas um relatando
comentários, a si dirigidos durante a infância e adolescência, acerca dos seus modos
“femininos”.

2.2 Instrumentos
Este estudo baseia-se numa abordagem qualitativa que usa a observação e
entrevistas aprofundadas, largamente não estruturadas, conduzidas informalmente e em

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estilo conversacional. Informação obtida a partir de fotografias pessoais, blogues e


diários complementam os dados das entrevistas e da observação.

2.3 Procedimentos
Entrevistas e observações conduzidas em vários encontros ao longo de meses
com as participantes foram gravadas e todos os dados transcritos, sendo depois
analisados num total de 21 documentos. A abordagem analítica utilizada esteve de
acordo com os procedimentos da teoria enraizada (grounded theory approach), seguindo
a estratégia indutiva de constante comparação à medida que se procede à recolha, codificação e
análise simultâneas de dados (Glaser e Strauss, 1967) no programa de computador
NUD*IST (QSR N6). A abordagem inicial aos dados revelou que, para os objectivos do
presente estudo, são pertinentes instâncias do presente (correspondendo à idade adulta
das participantes), ficando assim excluídos das análises acontecimentos e referências ao
passado (infância e adolescência). Foi feita uma excepção apenas no caso de um excerto
de entrevista que, apesar de pertencer à infância, foi incluído por se considerar que
facilita a compreensão da informação veiculada.

3. RESULTADOS

Os resultados revelam os temas a partir dos quais uma identidade feminina se


configura independentemente do sexo anatómico, e contra a socialização. Na amostra
em estudo, a configuração de uma identidade feminina fez-se, em todos os casos, em
idade adulta. Os sujeitos não só foram educados como rapazes mas também se pensaram
rapazes durante toda a infância e adolescência. Apesar de identificarem,
retrospectivamente, a presença de comportamentos considerados femininos, sublinham
o momento em que se começaram a pensar mulheres, como mostra o excerto de
entrevista seguinte (ênfase acrescentada):

Como é que eu descobri se era mulher? Descobri quando começámos a sair,


comecei, comecei a descobrir que adorava... isso já... é um bocado difícil,
porque isto, se calhar, começa um bocadinho, muito mais cedo, há vários factos
que, que na altura não, não... não me apercebia, mas já dizem, porque eu, quando
era pequenina, gostava de fazer roupa p’ra bonecas, eu quando, quando era com
os meus primos, eu ficava sempre primeiro com o, um namorado, esse tipo de
coisas, essas pequeninas coisas já contribuíam, mas quando eu comecei a tomar

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consciência, foi quando eu comecei a sair, começava a ver que gostava de cenas
como, como a maior parte das mulheres, que eu já gostava antes, só que a partir
daí é que comecei a associar, comecei a perceber as coisas e a dizer, “calma que
aqui há alguma coisa errada”.

… as coisas que eu gostava e a forma como eu me arranjava, isso tudo foi, foi
evoluindo até chegar ao ponto de dizer, “eu sou isto”.

As participantes “começa[m] a ver que [são] como a maior parte das mulheres” em
vários aspectos: em termos de gostos e preferências, de pensamentos e assuntos de
conversa, de relacionamentos romântico-sexuais, de planos de vida. Os seguintes
excertos de várias entrevistas ilustram estes aspectos.

Gostos e preferências:

… aí, vestia [de mulher], era um homem! Vestia sapato alto, vestia tudo, a
minha mãe, “Mas o que é isso? ‘Tás doido? Tu és um homem!” (voz zangada)
“Posso vestir de mulher? Eu gosto, mãe. Gosto de vestir de mulher.” (voz doce e
aguda).

… depois começámo-nos a maquiar... saíamos, sempre que saíamos à noite


íamo-nos maquiar... depois começámos a introduzir... peças de vestuário
femininas...

… começava a descobrir que gostava, que gostava de vestir de mulher, …


usávamos sapatos super-altos … Começámo-nos a maquilhar, depois a misturar
roupas, depois completamente roupas. Depois usávamos coisas muuuito à
travesti. Depois começámos a ver que, que realmente aquilo não tinha nada a
ver. Então começámos a usar, tipo, uma maquilhagem (bate uma palma), aa,
sapatinhos baixos, aa, roupas normais, que se compra nas lojas... foi a partir daí.

Pensamentos e assuntos de conversa:

O meu pensamento é de mulher, digam o que disserem. Eu penso exactamente


como uma mulher.

[As raparigas] falavam comigo como se eu fosse uma rapariga. Ou seja,


confessavam-me tudo... sobre os rapazes, sobre... o que é que tinha acontecido
com os rapazes, gostavam dos rapazes, essas coisas que as raparigas só dizem
umas às outras.

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Porque eu via os outros rapazes ... interessavam-se por raparigas, só queriam


saber de raparigas e não sei quê... e isso a mim não.

… certas conversas daquele mundo [homossexual] (pausa) que... só queria


conhecer homens e depois... homens com homens... eu abstraía-me dessas
conversas. Só ouvia. E se calhar as outras pessoas ficavam a pensar... que eu
concordava com tudo. E eu não concordava.

Relacionamentos romântico-sexuais:

Comecei a descobrir que, realmente, gostava de homens heterossexuais... Não de


homossexuais... fora de questão completamente.

… eu gosto de homens que gostam de mulheres. E eu sou uma mulher.

O facto de eu não me poder relacionar com um homem como homem fez-me


dizer, “não, eu não sou gay. Eu sou mulher”.

… desde o início, esse, esse meu namorado... ele sempre soube que eu queria ser
tratado como uma mulher. Nunca como um homem. … Em termos de
intimidades e isso.

… Esse namorado meu … não tinha nada... não tem nada a ver com o mundo
gay. É um homem heterossexual, não tem nada a ver com o mundo gay... Até
porque eu nunca andaria com um homem gay.

… eu via homens a beijarem, homens a beijarem-se... e aquilo... soava-me mal ...


Porque eu não era assim ... E eu não me via como gay. Aquilo não... não me
caracterizava naquele mundo.

Planos de vida:

... Sempre quis ter daquelas coisas de mulher que é... sei lá... ter um namorado...
jantar fora com o namorado, ir p’rá praia com o namorado... jantar à luz de
velas, essas coisas simples que todas as mulheres fazem.

… eu fui descobrindo em mim que... realmente, eu sempre quis ser mulher. …


Foi mais o confronto com a realidade. Porque até aí eu acreditava... que era gay,
embora... as pessoas dissessem-me que eu era gay, ‘tás-me a entender? E eu...
embora olhasse para um homem, nunca senti da mesma maneira que um homem
sente por um homem... percebes? Porque eu sempre senti atracção por homens

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naquele sentido de... um dia casar, ter filhos... essas coisas, percebes? Que um
homem com homem não tem... pelo menos à partida... Não quer dizer que não
tenha... Mas à partida não tem esses, esses objectivos. E eu sempre me senti
diferente, mas como as pessoas me diziam que isso era ser gay (bate palma), eu
assumi que fosse e só em confronto com a realidade é que vi que não era...

Esta “percepção” de se ser “como a maior parte das mulheres” faz-se, então,
através de um concomitante processo de comparação, não só com mulheres e com
homens, mas também com outras configurações alternativas como, por exemplo,
homossexuais e travestis:

Conforme fui viv, convivendo com gays, também fui convivendo com mulheres,
percebes? E, conforme fui comparando, as minhas, aa, os meus pensamentos, as
minhas ideias e as minhas situações de vida... e vi que tinha tudo a ver com uma
mulher.

A gente descobre que gosta daquilo. Depois descobrimos que gostamos doutra
coisa qualquer e vamos chegando à conclusão “ ‘Pera lá! Eu gosto de tudo o que
é de mulher”.

… as pessoas diziam, de que pessoas como eu eram gays (pausa). Pronto. (bate
palma) E eu como não sabia de nada, eu identifiquei-me como uma pessoa desse
género. Pronto... pensei que era assim (pausa) ... as pessoas diziam-me que era...
que isso era... que gostar de homens era ser gay … Só que, no entanto, comecei a
sair à noite... isto já foi por volta dos meus 19 anos... Comecei a frequentar esse
mundo... o mundo das discotecas gays e não sei quê (pausa) e... comecei a olhar
e comecei a ver que aquilo não tinha nada a ver comigo...

Os homossexuais … são um bocado... como é que eu hei-de dizer?...


Extrovertidos demais. Escandalosos, mesmo. Eu sou uma pessoa que, quanto
mais despercebida passar, melhor. Não gosto de dar nas vistas, não gosto nada ...
por exemplo, há, há... há homens que se vestem de mulher e não sei quê e
exageram e não sei quê... e th th. Põem muita maquilhagem... e... ‘tão sempre
com aqueles tiques, e não sei quê... Eu, o que sou aqui, sou o que sou quando
estou vestido de mulher. É... super normal.

Gostam de ser travestis. Gostam de vestir de mulher, mas são uns homens. Quer
dizer que vestem-se de mulher à noite e de dia são uns homens … são diferentes

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… a maneira de ser. Vestia à travesti. Eu visto-me de feminina. Aí está a


maneira de ser! A maneira de ser é importante! São extravagantes.

Sou diferente de todos os travestis, lá está. (pausa) E não se importam de andar


com o sexo. Nem metem p’ra trás. O truque, aquele truque que fazem. “‘Tou
com o sexo p’rá frente.” Não, eu ‘tou, tenho aqui as calças, tenho que esconder o
sexo.

Partindo de uma certa observação dos outros e de uma determinada caracterização das
“maneiras de ser” respectivas (por exemplo, gostos e preferências, nomeadamente nas
formas de apresentação pública, pensamentos e tópicos de conversa, modos de
relacionamento com os outros, designadamente romântico-sexuais, e planos para a
vida), as entrevistadas posicionam-se como mulheres. O papel do corpo físico próprio
nesta configuração é difuso (embora o corpo venha a assumir grande proeminência uma
vez configurada a identidade feminina – levando aos procedimentos cirúrgicos e
hormonais de “correcção”). Inicialmente, os ajustes corporais prendem-se com a
concordância pretendida, na apresentação de si como mulheres, entre o trajo envergado
e o físico correspondente – sendo esta a saliência inicial de que parece revestir-se o
corpo, como mostram os seguintes excertos das entrevistas (ênfase acrescentada):

… eu tomei, tomei consciência que tinha e não queria [o pénis], foi por volta dos
17, 18 anos. Quando comecei a sair … Quando uma pessoa olhava para mim,
olhava p’ra tudo. E comecei a não gostar daquilo, e comecei a tentar esconder e,
ee com, com, aa, cuecas mais apertadas, aa, esse tipo de coisas, p’a tentar
disfarçar … Quando começámos a esconder, tudo, aa, porque, tudo o que,
quando íamos p’ra fora … tentávamos parecer ao máximo uma mulher.

[Aa, notavas a discrepância que havia entre ti, como pessoa biológica, e as
modelos ou não? ...] Eu acho que não tinha consciência disso.

… eu sinceramente nunca me olhei muito ao espelho nua, percebes? … eu nessa


altura não tinha bem consciência...

… as características masculinas que eu, que eu começava a detestar e começava


a querer esconder, porque até a uma certa idade, elas não são muito visíveis, não
há barba, não há pêlos nas pernas, não há pêlos nos braços, não há pêlo em lado
nenhum, a partir de uma certa idade é que se começa a evidenciar as tais
características … p’ra aí aos 18-19, porque eu nunca tive grande... só mais a

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partir de 20 é que comecei a ter muito, comecei a ter mais barba, que eu, mesmo
assim, não tenho muita, pêlos também comecei a ter mais, até então isso não era
assim um grande problema.

O corpo assume grande importância após a configuração da identidade feminina:

Ao princípio preocupava-me. Aah, ao princípio, quando eu me olhava ao


espelho, quando eu me comecei a sentir verdadeiramente mulher.

E se, a partir do momento desta configuração, as características sexuais masculinas são


recusadas, passando o pénis a ser tratado como inexistente, rejeitado como órgão sexual
(masculino) e usado apenas para funções urinárias, anteriormente, pode, em alguns
casos, ter sido utilizado em relacionamentos amorosos e sexuais como fonte de prazer
pessoal.

… já tive orgasmos. Quando os homens estão a fazer sexo anal comigo ... Mas
agora tenho namorado, eee tenho orgasmos.

E após a identificação no feminino:

… eu não deixava, com qualquer pessoa que eu fosse p’rá cama, curtir, não
deixava ninguém ver o meu sexo. ‘Tava sempre lá com, com a mão ou não tirava
a roupa toda, era sempre assim.

… até escondo, o sexo … Tenho uma cueca, própria, apertada e faço sexo anal e
não mostro ... Eles: “Não gostas do sexo que tens?” “Não, não gosto. Se
gostasse, deixava mexer. Não gosto” … faz conta que ele não está aqui. Não
existe. Não existe, p’ra mim.

Já me disseram assim: “Porque é que não fazes um filho? Depois não podes ter
filhos, faz um filho homem.” Não, eu não faço filhos que eu não me sinto
homem. Eu sou mulher.

4. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS


Os resultados sugerem que, nesta amostra, trata-se de dar o nome correcto às
coisas. Por exemplo, “homens que gostam de homens são gay”; pessoas de apresentação
discreta, com certas preferências e objectivos de vida (namorar, constituir família, etc.),
descentradas do puro prazer sexual, são mulheres. Observa-se, portanto, nas
participantes, uma adesão a categorias sociais pré-existentes (com a respectiva

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definição) que toma como ponto de partida aspectos que não o sexo anatómico. Este
vem a integrar uma definição de si já constituída, enquanto aspecto discrepante a ser
corrigido. A definição de si, por sua vez, baseia-se nos chamados papel de género e
identidade de género – referindo-se àquilo que, discursivamente, caracteriza uma
mulher ou um homem em dada sociedade, e que as entrevistadas adoptam. Neste
estudo, aspectos que entraram na constituição das identidades femininas das
participantes foram: preferências e inclinações, modos de pensar e tópicos de conversa,
relacionamentos romântico-sexuais e planos de vida. A anatomia pessoal parece assumir
um papel pouco relevante no dia-a-dia das participantes e na constituição da sua
identidade de género, tornando-se especialmente saliente após a construção de tal
identidade.
Em termos dos resultados, este é um estudo qualitativo que se debruça
intensivamente sobre uma amostra pequena que é também homogénea (os sujeitos são
adultos, MF e procuram cirurgia de reconstrução genital). A extrapolação dos resultados
para além desta amostra merece precaução e não constitui um objectivo deste estudo. A
restrição ao presente dos dados incluídos nas análises (correspondendo à idade adulta
das participantes), por outro lado, permite ultrapassar as dificuldades dos estudos
retrospectivos e seus vieses a nível da memória e evocação, contribuindo para aumentar
a validade do presente estudo.

5. CONCLUSÕES
Ainda que aparentemente contrária à socialização, a configuração de identidades
femininas em indivíduos com anatomias masculinas faz-se dentro de parâmetros sociais
normativos, a partir do uso de categorias disponíveis (por exemplo, a categoria
“mulher”) e de recursos discursivos à volta das mesmas, que as estruturam. É assim que
um género se faz discursivamente corresponder a uma destas categorias (e não a outras)
e que assume características específicas (por exemplo, uma mulher não tem barba nem
pénis). E é então a partir desta construção de género (e não a partir do seu sexo
anatómico) que as participantes se vão posicionar como mulheres, procurando depois
corresponder as suas características anatómicas àquelas que são discursivamente
adequadas a esse género.
Uma perspectiva sobre a transsexualidade que toma como ponto de partida o
género, não o sexo, contribui não só para a compreensão deste fenómeno de aparência
contraditória, mas também para uma adaptação mais eficaz das abordagens dirigidas a

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esta problemática. O estudo futuro dos processos que configuram outras identidades, e
outras identidades de género, poderá ajudar a aprofundar o conhecimento nesta área e
assim contribuir para aqueles dois propósitos, de compreensão do fenómeno e de
adaptação das abordagens a ele dirigidas.

AGRADECIMENTOS
Agradeço a Joana Parada Lima, a Sara Rocha e às participantes neste estudo os valiosos
contributos que deram para a realização do trabalho.

NOTAS
1 - Embora haja correntes que defendem a ideia de que a transsexualidade pode resultar
justamente do reforço de comportamentos de género cruzado.
2 - A emergência de uma “consciência” feminina ou masculina é frequentemente
explicada por recurso à interacção social: ser tratado como homem ou como mulher cria
uma consciência masculina ou feminina (Lorber, 1994); ou, por um processo de
recrutamento, as crianças vêem-se forçadas a escolher identidades fornecidas por
adultos, entre a desacreditada identidade de “bebés” e a de “menino (ou menina)
crescido”, isto é, a fornecida pelo sexo que as determina anatomicamente (Cahill, 1986).

CONTACTO PARA CORRESPONDÊNCIA


Irene Palmares Carvalho
Psicologia Médica, Faculdade de Medicina, Universidade do Porto
Al. Prof. Hernâni Monteiro, 4200-319 Porto, Portugal
irenec@med.up.pt

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Teresa Malatian)
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Dozier, R. (2005). Beards, breasts, and bodies: Doing sex in a gendered world. Gender
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Glaser, B., & Strauss, A. L. (1967). The discovery of grounded theory: Strategies for
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Levine, S. B., & Lothstein, L. (1981). Transsexualism or the gender dysphoria
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Lorber, J. (1994). Paradoxes of gender. New Haven, CT: Yale University Press.
Stoller, R. (1968). Sex and gender: On the development of masculinity and femininity.
New York: Science House.
Stoller, R. (1975). Sex and gender, Vol. II: The transsexual experiment. London:
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Zucker, K. J., & Bradley, S. J. (1995). Gender identity disorder and psychosexual
problems in children and adolescents. New York: Guilford Press.

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