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CAMPINAS,
2017
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CAMPINAS,
2017
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Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem
Crisllene Queiroz Custódio – CRB 8/8624
Título em outro idioma: Function words in the so-called telegraphic speech in aphasic
subjects’ utterances.
Palavras-chave em inglês:
Neurolinguistics
Aphasia
Aphasiacs
Speech
Language disorders
Order (Grammar)
Área de Concentração: Linguística
Titulação: Mestre em Linguística
Banca Examinadora:
Rosana do Carmo Novaes Pinto [Orientador]
Marcus Vinícius Borges Oliveira
Mirian Cazarotti Pacheco
Data da defesa: 27-06-2017
Programa de Pós-Graduação: Linguística
4
BANCA EXAMINADORA:
IEL/UNICAMP
2017
DEDICATÓRIA
À minha mãe,
por eu tê-la deixado chorando na rodoviária quando
resolvi sair de casa para estudar e, segundo ela, “ganhar o
mundo”
Mãe, sem seu apoio teria sido impossível!
AGRADECIMENTOS
À minha mãe, que sempre me incentivou a continuar estudando. Mãe, aprendo muito com
você, nos mínimos detalhes. Obrigado por me ensinar a ser gente!
Aos meus irmãos, Mickaelly, Danielle e Juliano, que sempre se mostraram compreensivos
com a minha ausência. E aos meus pequenos, João Pedro e Maria Júlia, por não se
importarem de eu os estar vendo crescer por fotos e vídeo-chamadas. O tio ama vocês!
À Rosana pela orientação, cuidado e carinho. Enquanto tudo era não, você me presenteou
com o seu sim. Desde então, tenho aprendido com você a fazer pesquisa com paixão,
responsabilidade e ética.
Aos meus queridos amigos Ricardo Régis, Wanessa Oliveira e Weber Júnio, por sempre
terem me apoiado estando de alguma forma presentes na minha vida, apesar da distância.
À Enia Pereira, que tem sido meu anjo da guarda desde a primeira vez que eu coloquei os pés
em Campinas. Obrigado, por tudo!
Aos irmãos que a vida me deu – Sérgio Maciel e Lucas Allan. Sem vocês ao meu lado, toda
essa experiência teria sido bem mais dolorosa. Vocês tornaram tudo um pouco mais leve e
harmonioso. Obrigado por terem rido e chorado comigo.
Ao meu amigo Márcio Mesquita, que sempre me incentivou e apoiou no que foi preciso.
Ao meu amigo Bernardo Mendes Ribeiro, por ter sempre se preocupado com meu bem-estar e
tentado ao máximo que pôde minimizar os impactos da minha falta de grana. Obrigado por ter
me alimentado!
Às minhas queridas Ana Carolina, Déborah Rangel, Brenda Hada, Gisa, Tereza Rosa e
Marisa Araújo, por todos os momentos inesquecíveis que passamos juntos.
Ao meu amigo Felipe Nascimento, por compartilhar tanta coisa boa comigo e tornar tudo um
pedacinho do céu.
Ao meu grande amigo Sérgio Toledo, que como um irmão mais velho cuidou de mim sempre
estando a postos para me fazer companhia quando o medo, a solidão e a saudade de casa me
assolavam.
Aos amigos que o IEL me deu, Vinicius Castro, Ricardo Bezerra, Flávio Benayon, Júlia
Rosa, Mirielly Ferraça, Lilian Braga e Renata Ortiz-Brandão. Vocês farão parte das minhas
mais doces memórias.
Ao querido Alberto Fernando, o Bebetinho, por ser tão fofo, companheiro e presente na
minha vida.
7
Ao meu querido amigo Guilherme Rodrigues, o Gui, por todo companheirismo, carinho,
cuidado e atenção. Fico imensamente feliz que as nossas vidas tenham se cruzado.
À Angelina e Ananias, pelo imenso carinho e pelos conselhos. Vocês são indescritíveis!
Ao Lucas Lommez, por ter me ajudado tanto e por sempre ter me feito sentir melhor nos
momentos de angústia e incerteza.
Ao meu amigo Eduardo Barbosa, o Cajuru, por ter sido um dos meus portos fortes desde que
cheguei em Campinas.
Aos amigos que fiz na Alfredianes: Yeda Endrigo, Emerson Andrade, Felipe Nepomuceno, e
Igor Moraes por terem convivido com os meus livros espalhados na mesa da cozinha e por
me terem feito companhia madrugada adentro durante a escrita deste trabalho.
À professora Gláucia Vieira Cândido, por ter me convencido de que a UNICAMP era um
sonho possível – você não sabe o quanto me influenciou com o seu exemplo de professora!
Aos Profs. Drs. Mirian Cazarotti Pacheco e Marcus Vinícius Borges de Oliveira, por toda
contribuição para o desenvolvimento desta pesquisa, por ocasião do exame de qualificação.
Aos parceiros e amigos do GELEP, Thalita, Larissa, Mirian, Maira, Diana, Nívia e João
Pedro por sempre terem compartilhado comigo o que vocês têm de melhor.
A todos os sujeitos afásicos que frequentam o Grupo 3 do CCA, por terem despertado o meu
lado mais humano. Tenho aprendido muito com vocês e prometo continuar fazendo
cafezinhos.
Aos sujeitos GB, BM, BS e TR, por terem aceitado participar desta pesquisa.
À TR, por ter me dado seu sorriso todas às terças feiras de manhã.
À Francis, da Secretaria de Projetos, que sempre esteve disposta a me ajudar em tudo o que
foi necessário, com toda a burocracia envolvida nesta pesquisa.
À Rose – in memorian – por tantas vezes ter me recepcionado no corredor do pavilhão dos
docentes com o seu sereno e carinhoso “bom dia!” – Saudades e ótimas lembranças foi o que
me restou.
A menina não palavreava. Nenhuma vogal lhe saía, seus lábios se ocupavam
só em sons que não somavam dois nem quatro. Era uma língua só dela, um
dialecto pessoal e intransmissível? Por muito que se aplicassem, os pais não
conseguiam percepção da menina. Quando lembrava as palavras ela esquecia
o pensamento. Quando construía o raciocínio perdia o idioma. Não é que
fosse muda. Falava em língua que nem há nesta actual humanidade. Havia
quem pensasse que ela cantasse. Que se diga, sua voz era bela de encantar.
Mesmo sem entender nada as pessoas ficavam presas na entonação. E era tão
tocante que havia sempre quem chorasse.
Seu pai muito lhe dedicava afeição e aflição. Uma noite lhe apertou as
mãozinhas e implorou, certo que falava sozinho:
— “Mar”…
Mas a miúda estava tão imóvel que nem se dizia parada. Parecia a águia que
nem sobe nem desce: simplesmente, se perde do chão. Toda a terra entra no
olho da águia. E a retina da ave se converte no mais vasto céu. O pai se
admirava, feito tonto: por que razão minha filha me faz recordar a águia?
mãos nas axilas dela e puxou-a. Mas peso tão toneloso jamais se viu. A
miúda ganhara raiz, afloração de rocha?
Desistido e cansado, se sentou ao lado dela. Quem sabe cala, quem não sabe
fica calado? O mar enchia a noite de silêncios, as ondas pareciam já se
enrolar no peito assustado do homem. Foi quando lhe ocorreu: sua filha só
podia ser salva por uma história! E logo ali lhe inventou uma, assim:
Era uma vez uma menina que pediu ao pai que fosse apanhar a lua para ela.
O pai meteu-se num barco e remou para longe. Quando chegou à dobra do
horizonte pôs-se em bicos de sonhos para alcançar as alturas. Segurou o
astro com as duas mãos, com mil cuidados. O planeta era leve como um
baloa.
— “Pai!”
Então, se abriu uma fenda funda, a ferida de nascença da própria terra. Dos
lábios dessa cicatriz se derramava sangue. A água sangrava? O sangue se
aguava? E foi assim. Essa foi uma vez.
Chegado a este ponto, o pai perdeu voz e se calou. A história tinha perdido
fio e meada dentro da sua cabeça. Ou seria o frio da água já cobrindo os pés
dele, as pernas de sua filha? E ele, em desespero:
A menina, nesse repente, se ergueu e avançou por dentro das ondas. O pai a
seguiu, temedroso. Viu a filha apontar o mar. Então ele vislumbrou, em toda
extensão do oceano, uma fenda profunda. O pai se espantou com aquela
inesperada fractura, espelho fantástico da história que ele acabara de
inventar. Um medo fundo lhe estranhou as entranhas. Seria naquele abismo
que eles ambos se escoariam?
— “Filha, venha para trás. Se atrase, filha, por favor”…
RESUMO
Uma das razões para a Linguística se debruçar sobre as alterações de linguagem nas
patologias é que os dados advindos deste campo ajudam a corroborar e a refutar hipóteses
sobre seu funcionamento em estados normais. Dentre os tipos de afasia mais estudados está o
agramatismo – seja entendido como sintoma ou síndrome –, caracterizado pela presença da
fala telegráfica, objeto central desta pesquisa. Na literatura neuropsicológica, agramatismo e
fala telegráfica estão associados à afasia de Broca. Os estudos dessa categoria enfatizam as
perdas na linguagem verbal, relativas às categorias funcionais: preposições, artigos,
conjunções, bem como à morfologia flexional e derivacional. As classes abertas estariam
relativamente preservadas: substantivos, adjetivos, alguns advérbios e a forma infinitiva dos
verbos. Para Jakobson, o agramatismo se configura como um protótipo das afasias de
combinação, mas apontamos também que há dificuldades relativas à seleção das palavras
funcionais. Avaliamos, também, as hipóteses de Vygotsky, Luria, Leontiev e Akhutina sobre
o papel crucial da linguagem interna para a produção dos enunciados e, sobretudo, as
hipóteses desta autora sobre a relação entre a linguagem interna e a produção dos enunciados
telegráficos. A pesquisa foi desenvolvida integrando pressupostos teórico-metodológicos de
diferentes áreas (i) Neurolinguística enunciativo-discursiva, (ii) as abordagens
Neuropsicológicas sócio-histórico-culturais e (iii) a Gramática Funcional. O trabalho teve
como principal objetivo refletir sobre as dificuldades de sujeitos afásicos não-fluentes com as
palavras funcionais, visando compreender a fala telegráfica – que passamos a conceber como
enunciado de estilo telegráfico – e, também, avaliar as hipóteses explicativas acerca das
variações entre os casos e as que ocorrem nas produções de um mesmo sujeito. Para
atingirmos este objetivo, buscamos analisar, por meio da pesquisa qualitativa de cunho
microgenético, enunciados de estilo telegráfico produzidos por quatro sujeitos afásicos (BM,
BS, TR e GB) que participam das sessões coletivas e individuais do Grupo 3 do Centro de
Convivência de Afásicos (CCA/IEL/UNICAMP). Os episódios dialógicos entre afásicos e
não-afásicos foram vídeo-filmados, registrados em diário e discursivamente transcritos. Além
da observação dos episódios nas sessões coletivas do CCA. Outros dados foram obtidos por
meio do uso de expedientes de caráter metalinguístico. Nas análises nos interessou, sobretudo,
compreender as estratégias alternativas desses sujeitos nos processos de significação – isto é,
como lidam com a estruturação dos enunciados, face às dificuldades com a produção das
palavras funcionais. Concluímos que as abordagens dos autores da vertente sócio-histórico-
cultural acima referidos e, principalmente, a reflexão de Akhutina contribuem para a
compreensão dos processos envolvidos na produção dos enunciados telegráficos ao
considerarem tanto os aspectos neurofisiológicos e as áreas impactadas pela lesão quanto os
aspectos neuropsicológicos, com ênfase na linguagem – na produção de enunciados em
situações dialógicas e em seu papel mediador e organizador das demais funções cognitivas e
do desenvolvimento e organização do pensamento. Acreditamos que esta dissertação possa
contribuir também para a prática clínica com sujeitos afásicos, bem como para os estudos
sobre as dificuldades de encontrar palavras, tema central de projetos no âmbito do GELEP
(Grupo de Estudo da Linguagem no envelhecimento e nas patologias).
ABSTRACT
One of the reasons that explain the interest of Linguistics on language changes in pathologies is that
data from this field help either to corroborate or refute hypotheses about language functioning in the
so-called normal states. Agrammatism is one of the most studied types of aphasia, either if taken as a
symptom or as a syndrome. It has been described, more specifically, by the presence of a telegraphic
speech, which is the central object of analysis of this research. In neuropsychological literature,
agrammatism and telegraphic speech are associated with Broca's aphasia. The studies on this category
emphasize losses in verbal language, especially regarding the functional categories: prepositions,
articles, conjunctions and the inflectional and derivational morphology. Open classes are usually
relatively preserved: nouns, adjectives, adverbs and the infinitive form of the verbs. For Jakobson,
agrammatism is a prototype of aphasia involving difficulties of combining linguistic elements in the
structuring of an utterance. However, we question whether the most relevant difficulties would not be
with the selection of functional words. We also evaluated the hypotheses of Vygotsky, Luria, Leontiev
and Akhutina about the crucial role of the inner language to the construction of an utterance and,
especially, Akhutina’s hypothesis about the relation between the inner language and the telegraphic
utterances production. This research was developed articulating theoretical and methodological
assumptions of different fields (i) Enunciative-discursive Neurolinguistics, (ii) the socio-historical-
cultural neuropsychological approaches, and (iii) Functional Grammar. The work specially aims to
reflect on the non-fluent aphasic subjects difficulties with the functional words in order to understand
the telegraphic speech – which we began to refer as telegraphic style utterances – and, also, to
evaluate Akhutina’s explanatory hypotheses about the variations of this phenomenon among the
subjects and those that occur in the productions of each subject. In order to reach its goals, we
evaluated – through the microgenetic qualitative research paradigm – telegraphic style utterances
produced by four aphasic subjects (BM, BS, TR and GB) who attend both group meetings and
individual speech therapy sessions at Centro de Convivência de Afásicos (CCA/IEL/UNICAMP). All
the interactive episodes among aphasic and non-aphasic subjects were video-recorded, registered in
diaries and, subsequently, discursively transcribed. Besides observing events in the group sessions of
CCA, other data were obtained through metalinguistic instruments. In the analysis we were interested,
above all, in understanding the alternative strategies in meaning processes – that is, how they deal with
language structures in their utterances – given their difficulties with the functional words. We
concluded that the approaches of the socio-historical-cultural representatives and, mainly, the
reflections of Akhutina, contribute to the understanding of the processes involved in the production of
telegraphic utterances, once they consider both the physiological aspects and the brain areas impacted
by the lesions, as well as the neuropsychological aspects, with emphasis on language – in the
production of utterances in dialogical situations and its mediating role for the development of other
cognitive functions and for the development and organization of thought. We believe that this research
may also contribute to the clinic practice with aphasic subjects as well as for a broader study about the
Word Finding Difficulties, a central theme for the studies in the scope of GELEP (Study Group of
Language in Aging and in Pathologies).
SUMÁRIO
Introdução 15
Capítulo 1
Fala telegráfica: uma reflexão no campo da 18
Neurolinguística enunciativo-discursiva
1. A Neurolinguística enunciativo-discursiva.................................................................. 18
1.1 Sobre a indeterminação da linguagem e a subjetividade nos estudos das afasias.......... 21
2. A fala telegráfica no contexto da semiologia das afasias............................................. 22
2.1. A semiologia das afasias: produto da reflexão teórico-metodológica sobre a relação
cérebro-linguagem.............................................................................................................. 22
2.2. A relação entre fala telegráfica e agramatismo............................................................ 24
3. O agramatismo no contexto dos estudos neurolinguísticos de orientação
enunciativo-discursiva....................................................................................................... 31
4. Jakobson e a caracterização das alterações sintagmáticas: o agramatismo como
protótipo da afasia de combinação ou sintagmática........................................................ 33
Capítulo 2
A contribuição do paradigma funcionalista para o estudo dos 37
enunciados de estilo telegráfico
1. O paradigma funcional como opção teórico-metodológica de investigação do
enunciado de estilo telegráfico.......................................................................................... 37
1.1.A relação entre léxico e a sintaxe na Gramática Funcional.......................................... 46
1.1.1. Uma visão funcionalista do conceito de palavra e de suas classes........................ 46
2. As palavras funcionais e a fala telegráfica................................................................. 51
2.1.As preposições.............................................................................................................. 52
2.2.As conjunções............................................................................................................... 54
2.3.Os artigos...................................................................................................................... 56
2.4.As flexões verbais......................................................................................................... 56
3. O paradigma funcional e a Neurolinguística enunciativo-discursiva: pontos de
encontro.............................................................................................................................. 58
4. A contribuição dos conceitos bakhtinianos para a abordagem dos enunciados de
estilo telegráfico.................................................................................................................. 60
4.1. De fala telegráfica para enunciado de estilo telegráfico: uma movimentação
(semiológica) necessária...................................................................................................... 60
4.1.1. O conceito de dialogia............................................................................................... 61
4.1.2. Enunciado: a unidade de comunicação verbal........................................................... 61
4.1.3. O conceito de acabamento......................................................................................... 62
4.1.4. O conceito de querer-dizer........................................................................................ 63
13
Capítulo 3
A relação entre fala interna e a produção do 64
enunciado de estilo telegráfico
Capítulo 4 80
Aspetos metodológicos da pesquisa
Capítulo 5
O enunciado de estilo telegráfico interpretado via análise 91
qualitativa/microgenética dos episódios dialógicos
Anexos............................................................................................................................... 158
Anexo 1 - TCLE aprovado pelo CEP/UNICAMP e assinado pelos sujeitos da pesquisa.. 158
Anexo 2: Parecer de aprovação do CEP/UNICAMP para a realização desta pesquisa...... 161
15
Introdução
Esta dissertação foi desenvolvida articulando os pressupostos teórico-metodológicos
de diferentes áreas: (i) a Neurolinguística enunciativo-discursiva, (ii) as abordagens
neuropsicológicas sócio-histórico-culturais e (iii) a Gramática Funcional e integra uma
pesquisa mais ampla intitulada O funcionamento semântico-lexical: inferências a partir do
estudo das afasias1 desenvolvida no âmbito do Grupo de Estudos da Linguagem no
Envelhecimento e nas Patologias (GELEP)2.
O trabalho tem como principal objetivo refletir sobre as dificuldades de sujeitos
afásicos3 não-fluentes com as palavras funcionais, visando compreender a chamada “fala
telegráfica”, bem como avaliar as hipóteses explicativas acerca desse fenômeno. Buscamos
analisar, por meio da metodologia de cunho microgenético, enunciados de estilo telegráfico
produzidos por quatro sujeitos (GB, TR, BM e BS) que participam das sessões coletivas e
individuais do Grupo 3 do Centro de Convivência de Afásicos (CCA)4. Nos interessa,
também, compreender as estratégias alternativas desenvolvidas por esses sujeitos nos
processos de significação – isto é, como lidam com a estruturação dos enunciados, face às
dificuldades com a produção das palavras funcionais.
Novaes-Pinto, (1999) aponta que dentre as categorias clínicas mais estudadas no
campo das afasias está o agramatismo, cuja principal característica é a presença da fala
1
Projeto elaborado para concessão de Bolsa PQ, Processo 311777/2014-7, atribuída à Profa. Dra. Rosana do
Carmo Novaes Pinto.
2
O GELEP é cadastrado na Plataforma Lattes-CNPq desde 2010, liderado pela Profa. Dra Dra. Rosana do
Carmo Novaes-Pinto. O grupo “visa desenvolver pesquisas acerca dos fenômenos relativos à linguagem no
envelhecimento e nas patologias de origem neurológica (como afasias, demências, epilepsias, atrasos de
desenvolvimento etc) num esforço conjunto para promover discussões críticas que permitam avançar no
conhecimento do funcionamento linguístico-cognitivo. A maioria das pesquisas abrigadas pelo GELEP se
vincula à linha Cérebro, mente & linguagem da área Linguagem e Pensamento (subárea Neurolinguística), da
Pós-Graduação em Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas”. O
GELEP se propõe a abrigar pesquisadores com formações diversas, privilegiando abordagens multidisciplinares
dos fenômenos tematizados nos trabalhos (Novaes-Pinto, 2013).
3
Afasias são alterações de linguagem decorrentes de lesões cerebrais focais, como AVCs (derrames), tumores e
TCEs (traumas crânio-encefálicos) e, geralmente, comprometem a linguagem em todas as modalidades: oral
(produção e compreensão) e escrita (leitura e produção) e em todos os níveis linguísticos: fonético/fonológico,
sintático, semântico-lexical, pragmático-discursivo (Coudry, 1986/1988). Pelo fato dos Acidentes Vasculares
Cerebrais serem os principais fatores etiológicos das afasias, consideramos relevante destacar que, de acordo
com o relatório da PNS (Pesquisa Nacional em Saúde), publicado em 2014 – numa parceria com o IBGE
(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e o Ministério da Saúde; no Brasil –, 1,5% da população
brasileira foi diagnosticada com algum tipo de AVC, o que representa, aproximadamente, 2,2 milhões de pessoas
a partir dos 18 anos de idade. Para mais informações, acessar:
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/pns/2013/ e ftp://ftp.ibge.gov.br/PNS/2013/pns2013.pdf
4
O Grupo 3 do CCA é coordenado pela Profa. Dra. Rosana do C. Novaes Pinto, orientadora desta pesquisa.
16
5
Vale salientar que, embora os pronomes façam parte dessas categorias fechadas, eles não serão objeto desta
pesquisa. Esta decisão foi tomada considerando-se a especificidade que os pronomes têm nos enunciados.
Avaliamos que não seria possível dar conta dessas questões no período de desenvolvimento desta dissertação,
mas sem dúvida, trata-se de tema relevante para pesquisas futuras. .
17
desenvolvidas por Akhtutina, mais intimamente relacionadas às afasias, com destaque para o
agramatismo, termo que, para a autora, equivale à produção da fala telegráfica.
No Capítulo 4, apresentamos as questões referentes à metodologia da pesquisa,
apresentando os sujeitos GB, BM, BS e TR, bem como os expedientes metalinguísticos
desenvolvidos para abordar os enunciados telegráficos produzidos nas sessões coletivas e
individuais do Grupo 3 do CCA.
No Capítulo 5, propomos a análise dos enunciados de estilo telegráficos produzidos
pelos sujeitos, visando contribuir para a compreensão dos processos linguístico-cognitivos
envolvidos na sua produção, dentre os quais as dificuldades com as palavras funcionais e as
estratégias desses afásicos para se fazerem compreender.
Nas Considerações Finais da dissertação, buscamos avaliar criticamente a
contribuição desta pesquisa no âmbito dos trabalhos já produzidos na temática, na área de
Neurolinguística, tanto do ponto de vista das propostas teórico-metodológicas, bem como para
a prática clínica com sujeitos afásicos. Apontamos, também, para a necessidade de
aprofundamento futuro de algumas questões, sobretudo relativas aos modelos mais recentes
como os propostos por Akhutina.
18
Capítulo 1
Fala telegráfica: uma reflexão no campo da
Neurolinguística enunciativo-discursiva
BM Leite derramado6
Its Chorar ...
BM Chorar leite derramado
Its Pelo leite derramado ... O que
isso significa? Quando você usa
isso?
BM Leite derramado ... puta!
Nossa, faz tempo cara ...
Its Que que significa quando
alguém fala assim pra você...
Ah, não adianta chorar pelo
leite derramado!?
BM Não! ... Ah, tá! É:... tido o AVC,
mas vambora, vamo... vamo
seguir a frente
Introdução
1. A Neurolinguística enunciativo-discursiva
Entender as relações entre cérebro e linguagem é uma das questões mais desafiadoras
na área das neurociências e se tornou a preocupação central da neurolinguística, também
denominada em alguns centros de pesquisa como “neuropsicologia da linguagem”. Os
6
Trecho de um episódio dialógico entre a pesquisadora Its e o afásico BM, em atividade dialógica no Grupo 3 do
Centro de Convivência de afásicos (CCA)..
7
A literatura neuropsicológica, desde o princípio dos estudos sobre as dificuldades com as palavras funcionais
por sujeitos afásicos, tem se utilizado do termo fala telegráfica para se referir ao fenômeno. No entanto, pelos
pressupostos teórico-metodológicos que norteiam esta pesquisa propomos o termo enunciado de estilo
telegráfico. Nossa opção será justificada, mais adiante, no capítulo 2. Sendo assim, o termo fala telegráfica
deverá ser visto em nosso trabalho como uma moeda linguística, (Porter 1993), sobretudo, quando estamos
fazendo referência aos estudos que assim o definem.
19
primeiros trabalhos que mostram a preocupação com os distúrbios de linguagem são datados
de aproximadamente 1700 a.C., nos relatos do chamado Surgical Papyrus of Edwin Smith,
documento que já postulava o estabelecimento de correlações anátomo-funcionais (Priens &
Bastiaanse, 2006).
Apesar dessas correlações terem sido abordadas há tanto tempo, os termos
Neurolinguística e Afasiologia Linguística surgiram apenas nas décadas de 60 e 70 do século
XIX, referindo-se às áreas que se debruçam sobre questões voltadas tanto para a linguagem e
sua relação com o cérebro, quanto para a natureza específica dos déficits linguísticos nas
afasias (Caplan, 1998[1987]8).
Nos anos 80, Coudry (1988 [1986]) postulou uma abordagem neurolinguística de
orientação enunciativo-discursiva das afasias – também referida, atualmente, como
Neurolinguística Discursiva – respaldada nos estudos de Lordat, Vygotsky e Luria –
representantes do campo da Neurologia e da Neuropsicologia; em Benveniste, Jakobson,
Osakabe e Franchi, dentre outros, na Linguística. A esse respeito, Novaes-Pinto (2012)
esclarece:
One of the main features that differentiates our research from the work
developed in other centers in Brazil and abroad is its strong connection with
linguistic theories, especially the ones developed in the second half of the 20 th
century, such as Enunciative Semantics, Pragmatics and Discourse Analyses,
which strongly influence the way we approach theoretically and
methodologically the aphasia phenomena. From a unique locus, we believe
Linguistics may contribute to a better description and understanding of how
language and its several functions and speech genres can be impacted by brain
injuries, considering what has been learnt about normal functioning for almost
a century of development of this field as a Science (Novaes-Pinto, 2012, p.
219).
Coudry criticou a aplicação direta de modelos linguísticos formais aos estudos das
alterações da linguagem em estados patológicos e o fato de que a complexidade da linguagem
é geralmente reduzida à analise das estruturas da língua (aspectos fonético-fonológicos,
sintáticos e lexicais). Essa concepção formal deu origem aos protocolos de avaliação de
linguagem de natureza exclusivamente metalinguística, expedientes que visam não apenas
classificar as afasias e os afásicos, mas também orientar condutas terapêuticas. Segundo a
autora, esse tipo de tarefa objetiva “medir” a competência linguística de sujeitos afásicos e
revelar os sintomas ou as síndromes afasiológicas (o grupo de sintomas), mas não explicam os
processos subjacentes aos fenômenos (Coudry, 1988 [1986]).
8
Nesta dissertação, iremos utilizar os colchetes para nos referirmos à primeira data de publicação de uma obra.
20
Coudry (1988) afirma que o foco do trabalho com os sujeitos afásicos não deve ser o
déficit. O pesquisador e também o terapeuta devem estar sensíveis àquilo que os sujeitos
afásicos revelam nos processos de significação por meio da linguagem que lhes resta. A
autora chama a atenção para o fato de que nosso olhar deve alcançar um sujeito e não um
paciente.
Devo rejeitar uma concepção de teoria linguística que, por razões metodológicas,
exclua sejam os aspectos históricos e sociais da linguagem, seja a atividade do
sujeito na situação efetiva da fala. É necessário, portanto, superar dicotomias como
língua e fala, sistema e uso, competência e performance para integrar em uma
concepção abrangente de linguagem o seu funcionamento, na dimensão contextual e
social em que os homens, por ela, atuam sobre os outros, na dimensão subjetiva em
que, por ela, os homens se constituem como sujeito, na dimensão cognitiva em que,
por ela, os homens atuam sobre o mundo estruturando a realidade (COUDRY, 1988,
p. 47 grifo nosso).
A linguagem é concebida como uma práxis, uma atividade que integra o sujeito com o
seu meio, com a cultura e com a história. Conforme aponta Franchi (1986), é o lugar único de
realização e construção social, histórica, cultural e cognitiva de um sujeito, seja ele afásico ou
não, como vemos na seguinte passagem:
Como vimos no item anterior, a origem da semiologia das afasias é marcada pela
preocupação em correlacionar áreas cerebrais lesadas às alterações de linguagem, visando
agrupar os sintomas em síndromes e classificar as afasias e os afásicos. As primeiras
descrições das afasias foram feitas na segunda metade do século XIX. Em 1861, Broca
correlacionou as alterações de linguagem do sujeito Leborgne10 a uma lesão na terceira
9
A reflexão é feita por Franchi como prefácio para o livro Diário de Narciso: discurso e afasia, de Coudry,
publicado em 1988, e que deriva de sua tese de Doutorado homônima, defendida em 1986.
10
Leborgne tinha 51 anos de idade e ficou conhecido como Tan Tan, pois essa era a única forma de expressão
oral que produzia, repetidamente, embora variasse a entonação. Segundo Broca, era capaz de compreender tudo
23
circunvolução frontal do hemisfério esquerdo, que ficou conhecida como área de Broca,
responsável por transformar as imagens mentais em imagens motoras das palavras. O autor
utilizou o termo afemia para se referir à perda da linguagem articulada. Alguns anos após o
trabalho de Broca, Wernicke (1984) afirmou ter localizado o centro de processamento da
imagem sonora das palavras na primeira circunvolução temporal do hemisfério esquerdo,
posteriormente nomeada área de Wernicke.
O estudo das afasias só atingiu seu estatuto científico e sistemático a partir desses
trabalhos pioneiros, considerados divisores de águas nos estudos da relação entre cérebro e
linguagem. As alterações descritas por Broca e por Wernicke correspondem, respectivamente,
aos dois tipos clássicos de afasias – motoras e sensoriais (Novaes-Pinto, 1999; Novaes-Pinto e
Santana, 2009).
A visão clássica sobre essa relação trouxe, consequentemente, uma vasta nomenclatura
para os sintomas – ou sinais – das afasias. Na literatura neuropsicológica, cada alteração é
designada por um item semiológico, ou seja, um nome que a identifica, geralmente como um
déficit (Novaes-Pinto, 1999; Novaes-Pinto & Santana, 2009, p. 413). O termo semiologia,
segundo Novaes-Pinto e Santana, “abarca diferentes sistemas que priorizam aspectos
relacionados às ciências em que são criados; sistemas que se entrecruzam na busca de um
equilíbrio entre as abordagens de cunho orgânico e as de caráter social das funções
complexas, como a linguagem humana”, o que justifica nossa opção pela Neurolinguística de
orientação discursiva para fundamentar a análise de fenômenos afasiológicos.
Conforme aponta Novaes-Pinto (2013), uma das razões para a Linguística se debruçar
sobre as alterações de linguagem nas patologias é que os dados advindos desse campo ajudam
tanto a corroborar quanto a refutar hipóteses sobre o seu funcionamento em estados
considerados normais. Segundo Canguilhem (1995[1943], apud Novaes-Pinto, 2013), seria
impossível sabermos o que se sabe hoje a respeito do normal sem as lições da doença. Nessa
mesma perspectiva, Coudry (1988 [1986]) compara o funcionamento da linguagem nas
afasias a uma imagem exibida em “câmera lenta”, por meio da qual é possível observar
melhor os aspectos de sua composição e que não poderiam ser percebidos na sua dinâmica
natural.
que lhe era dito. O sujeito já apresentava problemas na produção da fala cerca de vinte anos antes de ter sido
examinado por Broca (Morato, 2001).
24
Novaes-Pinto (1999 p. 65) destaca que “dentre as categorias clínicas mais estudadas
no campo das afasias está o agramatismo, cuja principal característica é a presença da fala
telegráfica”, objeto central de análise desta pesquisa. Esse fenômeno foi inicialmente descrito
como uma característica marcante na fala de sujeitos afásicos, sobretudo por sua natureza
telegráfica. Novaes-Pinto (1999) sintetiza o que a neuropsicologia destaca como seus
principais “sinais”, desde o início de sua teorização:
agramatismo, nessa concepção, é tido como um Déficit Sintático Central e entendido como
síndrome.
Segundo Luzzatti &Whitaker (1996, apud Prins & Bastiaanse, 2006), o primeiro
registro de um caso de agramatismo foi feito por Johannes Wepfer, em 1683. As dificuldades
do paciente de Wepfer estavam relacionadas ao acesso das palavras (WFT – Word Finding
Difficiulties) e à estruturação sintáticas, mais especificamente com as palavras funcionais e
com as estruturas sintáticas da língua, conforme vemos na passagem a seguir:
[Pick assumes] that the schematic formulation of the sentence precedes the
choice of words, as well as the syntactic formulation and the portion of the
grammatical functions that corresponds to it, is shown by the fact that the
meaning of a single word, whatever it may be, is determined only by the
position it takes or interacts with; therefore the mental framework should in
principle to be ready in a grammatical sense as well: before the choice of
words ensues, the plan has to be determined before the different pieces are
put together (Friederici, 1994, p. 267).
11
Termo originário do alemão Telegrammstilagrammatismus. Como o alemão é uma língua aglutinadora, há três
palavras na formação desse termo: Telegramm – telegrama stil – estilo agrammatismus – agramático.
Corresponderia, então, em português à fala de estilo telegráfico, termo utilizado por Novaes-Pinto (1999), em
sua tese de doutorado, para explicar os enunciados de sujeitos considerados agramáticos em sua pesquisa.
28
metáfora por não verem uma correspondência direta entre a produção afásica e a escrita de um
telegrama (Tesak & Dittmann, 1991 Niemi et al. 1992 Menn & Obler, 1990a Tesak & Niemi,
1997 e Kleppa, 200812). Kleppa (2008), por exemplo, propõe o termo fala reduzida, pela
semelhança com as small clauses que caracterizam os enunciados de crianças em processo de
aquisição da linguagem e porque, com o advento das novas tecnologias, ninguém mais
escreve “telegramas”. Novaes-Pinto (1992; 1999) prefere o termo fala de estilo telegráfico
para se referir à dificuldade com esses morfemas funcionais na produção dos enunciados
pelos sujeitos afásicos, tal como o fez Pick.
Na literatura neuropsicológica, o agramatismo e a fala telegráfica estão associados à
afasia de Broca (ou afasia de expressão). Por conceber o agramatismo, em geral, como um
déficit sintático central, os estudos enfatizam as perdas na linguagem verbal, principalmente
relativas às classes gramaticais fechadas, sejam morfemas livres: preposições, artigos,
conjunções, seja a morfologia flexional e derivacional.
Na Neuropsicologia e na Linguística há uma diversidade de propostas para a
compreensão do que seja a fala telegráfica e sobre sua relação com o fenômeno do
agramatismo. A esse respeito, seguem algumas definições clássicas, a fim de demonstrar a
variedade de perspectivas teóricas subjacentes aos estudos:
Definição 1:
The deletion of function words in discourse, that is, the deletion of
conjunctions, prepositions, articles, pronouns, and auxiliary verbs, and
copulas (notable exceptions to this are the conjunctions and and because) 2.
The predominance of nouns, at the expense of verbs, in some forms of
agrammatic speech. 3. The loss of verb inflection, with substitution of the
infinitive for finite verb forms. 4. Loss of agreement of person, number, and
gender, most notable in inflected languages (Tissot et al 1973 apud
Goodglass & Menn, 1985, p. 2; grifos nossos).
Definição 2:
Agrammatism is hard to define other than by the essential fact which the
patient’s speech makes evident: reduction of the sentence to its skeleton,
relative abundance of substantives, almost invariable use of verbs in the
infinitive, with the suppression of the small words (the function words of
a language) and loss of grammatical differentiation of gender, number.
(Alajouanine, 1968, p. 84 apud Goodglass & Menn, 1985, p. 4; grifos
nossos).
12
O trabalho de Kleppa (2008), também desenvolvido no âmbito da Neurolinguística enunciativo-discursiva,
buscou entender o funcionamento das preposições ligadas a verbos na fala de sujeitos agramáticos, comparando
seus achados aos que foram obtidos por crianças em processo de aquisição de linguagem. Baseada nos resultados
do estudo, Kleppa (2008) questiona a hipótese do espelho invertido proposta por Jakobson (1954).
29
Definição 3:
Agramatic aphasia is an aspect of Broca’s aphasia, one of the classical
syndromes of aphasia, and it is the aspect which has been given the most
theoretical and experimental attention in recent years. Some variation is to
be found among definitions of agrammatism depending on the general
framework of individual investigators […] we will describe it
[agrammatism] as a language disorder due to acquired brain damage,
characterized by slow, halting speech, by short and/or fragmentary
sentences and by limited output use of the syntactic and morphological
resources of a language (Menn & Obler, 1985, p. 03; grifos nossos).
Definição 4:
Pierre Paul Broca (Broca, 1961) first described the prototype of nonfluent
aphasia characterized by impaired speech production, omission or misuse
of inflections and other closed-class morphemes and relatively intact
language comprehension. Studies in the 1970s showed that Broca’s area i.e.
the inferior frontal gyrus of the language dominant hemisphere, subserves
the computation of grammar at both the receptive and expressive levels
(Vandenborre & Marien, 2014, p. 18; grifos nossos).
Definição 5:
Damage to the left inferior frontal lobe frequently results in a pattern of
performance characterized by agrammatic production and asyntactic
comprehension so called Broca’s aphasia. Agrammatic speech is
characterized by the omission or misuse of free and bound grammatical
morphemes and the tendency to omit or nominalize verbs, resulting in
incomplete, fragmented sentences […] there is general agreement that a
morphosyntactic processing deficit is one of the major components in the
complex disorder clinically classified as Broca’s aphasia. This view is based
on the assumption that one of the functions of the left inferior frontal lobe is
to carry out morphosyntactic operations in sentence processing (Balaguer, et
al., 2004, p. 212; grifos nossos).
Tanto agramatismo quanto fala telegráfica são termos que sofreram alterações em
seus sentidos na literatura neurolinguística e neuropsicológica. A definição 1 pode ser
considerada como a mais clássica. Nela – mas também na definição 2 – vemos que os
fenômenos se confundem e o agramatismo é descrito, predominantemente pelas dificuldades
com as palavras funcionais, com uma relativa preservação das classes abertas. Já nas
definições 4 e 5, os autores buscam também estabelecer uma relação com as áreas cerebrais
lesadas, sobretudo com a área de Broca. Em 4, os autores concebem o agramatismo como um
déficit no processamento morfossintático. Em geral, entende-se que há dificuldades com o
funcionamento lógico-gramatical. A definição 3 nos parece a mais abrangente na explicação
do fenômeno, pois além de descrever a omissão das palavras funcionais e a produção sintática
30
reduzida, menciona outros aspectos subjacentes à produção oral do sujeito, como a presença
de fala laboriosa e cheia de hesitações.
A questão comum em todas essas definições, como vemos, é a presença do conceito de
déficit. A noção de perda de morfemas e/ou de competência é a principal característica
presente. Essa perspectiva se respalda, principalmente, em descrições gramaticais formais, nas
teorias linguísticas clássicas. É evidente que há perdas, mas a análise deve considerar,
também, a linguagem que resta aos sujeitos, como afirmou Coudry já em seu primeiro
trabalho. A aproximação entre fala telegráfica e agramatismo pode ser observada também nas
definições que diversos autores contemporâneos vem dando para esses fenômenos no decorrer
de sua teorização. Para sintetizar a discussão sobre a natureza dos fenômenos, citamos o
questionamento feito por Nespolous & Dordain (1993, apud Novaes-Pinto, 1992, 1997, 1999;
grifos nossos)13:
13
Tradução de Nespolous & Dordain (1993) feita por Novaes-Pinto (1999).
31
teóricos levaram pesquisadores a afirmarem que o estudo das categorias clínicas não poderia
revelar pistas sobre o funcionamento linguístico-cognitivo. Novaes-Pinto (1999, 2017)
considera que as variações sejam constitutivas do funcionamento da linguagem. Nas palavras
da autora:
Sobre a questão da variabilidade intra- e inter- casos, com relação aos sintomas do
agramatismo, a autora afirma:
14
P, nascido em 02-12-1935, era brasileiro, funcionário público e solteiro. Em 30-10-81, P foi encaminhado ao
Serviço de Neurologia e Neurocirurgia Dr. Nubor Facure, diagnosticado de aneurisma e submetido à cirurgia.
Em março de 1982 começou a ser acompanhado por um fonoaudiólogo a quem se manteve ligado até dezembro
de 1983. Em 14-12-82, apresentou novo episódio neurológico – Acidente Cerebral Vascular (AVC),
diagnosticado pela arteriografia cerebral como rotura de aneurisma arterial (artéria cerebral média esquerda –
ACM). O diagnóstico tomográfico revela área de enfarto cerebral têmporo-parieto-occipital esquerdo. P foi
encaminhado a nosso serviço de avaliação de linguagem em 15-12-83 e acompanhado até hoje. Descrição feita
por Coudry (1988, p. 95), em Diário de Narciso: discurso e afasia.
32
possível perceber uma grande variabilidade na linguagem de P, que ora produzia e ora omitia
os morfemas gramaticais. Mesmo com uma dificuldade marcante na estruturação sintática dos
enunciados, a autora chama a atenção para as sofisticadas estratégias meta- epilinguísticas
que o sujeito lança mão nos processos de significação.
Com o objetivo de ilustrar as análises feitas por Coudry sobre o trabalho linguístico
realizado por P, segue um dado do trabalho da autora:
contar ao grupo (CCA) um fato ocorrido durante as suas férias, em 2007, quando sofreu um
enfarte15. Irn é a mediadora da interação entre OJ e o grupo e orientava sua narrativa.
O autor afirma que toda descrição e classificação das perturbações afásicas devem
começar pela questão de saber quais aspectos da linguagem estão prejudicados. Segundo
Jakobson, entender qual operação foi principalmente afetada se torna fundamental para a
descrição, análise e classificação das afasias, como explicita no seguinte trecho:
É claro que os distúrbios da fala podem afetar, em graus diversos, a capacidade que
o indivíduo tem de combinar e selecionar as unidades linguísticas e, de fato, a
questão de saber qual das duas operações é principalmente afetada se revela ser de
primordial importância para a descrição, análise e classificação das diferentes
formas de afasia (Jakobson 1981 [1954], p. 66).
Assim, a análise dessas alterações não pode prescindir da participação dos linguistas.
Seus argumentos convenceram muitos pesquisadores a estudarem as afasias, sobretudo nas
últimas décadas do século XX e no início do século XXI (Novaes-Pinto, 1999).
Segundo Goodglass & Menn (1985), a teorização de Jakobson foi um importante
passo para o entendimento da natureza do fenômeno do agramatismo.
Jakobson’s interpretation goes beyond the mere renaming of the phenomena with a
term derived from a linguistic construct. Where many authors had seen the
agrammatic form as the patient’s adaptation to the great effort involved in speaking,
Jakobson felt that there was a basic change in the character of the patient’s
treatment of the relationship of the terms composing a sentence. For the agrammatic
speaker, not only syntactic relationships dissolved by disappearance of the
morphemes signaling these relationships, but the lexical elements were nominalized
(Goodglass & Menn, 1985, p. 5-6 grifo nosso)
No texto Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia, Jakobson (1954) divide
as afasias basicamente em dois polos: distúrbios envolvendo dificuldades de seleção – ou de
similaridade – e dificuldades de combinação dos elementos linguísticos na estruturação de um
enunciado – o distúrbio da contiguidade. Postula o agramatismo, cuja principal característica
seria a produção de fala telegráfica, como o protótipo da afasia de combinação, que deriva de
uma dificuldade de natureza sintagmática, ou seja, de dificuldades com a combinação dos
35
(Eixo paradigmático)
(Eixo sintagmático)
Figura 1: Modelo de Jakobson (1954) para ilustrar os dois eixos de funcionamento da linguagem
Jakobson’s explanation for aphasia has been useful for research in the field of
Neurolinguistics, mainly because it substitutes, most of the time, the classical
aphasia classifications and overcomes many classical dichotomies. It is possible
hence to understand phenomena as word finding difficulties […] It also allows us to
have a glimpse of how linguistics difficulties could be related to other functional
processes as attention, memory, perception, logical thinking, problem solving, etc.
36
All these variables are present, at the same time, when language is used in
communications contexts. This short explanation of Jakobson’s theory can justify
the fact that many aphasiology researchers have recurred at his model.” (Novaes-
Pinto,2012b, p. 236)
Capítulo 2
A contribuição do paradigma funcionalista para o estudo
dos enunciados de estilo telegráfico
A lua da língua
Existe uma língua para ser usada de dia, debaixo da luz forte do sentido.
Língua suada, ensopada de precisão. Que nós fabricamos especialmente
para levar ao escritório, e usar na feira ou ao telefone, e jogar fora no bar,
sabendo o estoque longe de se acabar. Língua clara e chã, ocupada com as
obrigações de expediente, onde trabalha sob a pressão exata e dicionária,
cumprimentando pessoas, conferindo o troco, desfazendo enganos, sendo
atenciosamente sem mais para o momento.
[...]
Mas no entardecer da linguagem, por volta das quatro e meia em nossa
alma, começa a surgir um veio leve de angústia. As coisas puxam uma longa
sombra na memória, e a própria palavra tarde fica mais triste e morna,
contrastando com o azul fresco e branco da palavra manhã. À tarde, a luz
da língua migalha. E, por ser já meio escuro, o mundo perde a nitidez.
Calar, a tarde não se cala, mas diz menos o que veio a dizer. Por isso,
poucas vezes se usa esta língua rouca do ciciar das cigarras, que cede à luz
minguante da sintaxe, mas meio bêbada de escuridão.
É a que frequenta os cartões de namoro, as confissões, as brigas e os gritos,
ou a atenção desajeitada de velórios, também os momentos relevantes em
vidas sem relevo, ou está nas palavras sussurradas entre os lençóis (ou ao
pé dos muros nos bairros mais distantes) sob o calor da noite. Mas noite
aqui, na face da Terra; que é bem diferente da noite nos breus de uma
língua. Pois quando a língua em si mesma anoitece, o escuro espatifa o
sentido. O sol, esfacelado, vira pó. E a linguagem se perde dos trilhos de
por onde ir. Tateia, titubeia e, com alguma sorte, tropeça, esbarrando em
regras, arrastando a mobília das normas, e deixando no carpete apenas as
marcas de onde um dia estiveram outros móveis. À noite sonha nossa língua.
projetam sobre objeto. O autor critica essa posição por trazer como resultado tanto um ideal
abstrato de língua, quanto o estabelecimento de diretrizes para o “verdadeiro saber-fazer
pesquisa” no campo da Linguística. Nesse contexto, para não se perder o status de ciência
autônoma, os diversos e complexos fatores imbricados nos fenômenos da linguagem verbal –
que não se encaixam dentro de uma proposta formal de análise – são, automaticamente,
descartados fazendo com que todos esses aspectos, imprescindíveis para o entendimento do
funcionamento da linguagem, extrapolem o escopo da Linguística Moderna. Segundo
Camacho,
O autor se baseia também nas críticas que Bakhtin (1979) faz sobre as teorias formais
da linguagem para afirmar que o paradigma funcionalista pode ser considerado uma
alternativa relevante para o problema metodológico que a Linguística vem enfrentando desde
a sua fundação, que é, basicamente, delimitar e identificar a natureza de seu objeto de estudo.
Nesse contexto, o autor destaca cinco pontos essenciais sobre a visão de Bakhtin sobre o
paradigma formal e que se relacionam às questões que a Linguística tem se colocado,
principalmente, a partir do questionamento das concepções teóricas que motivam os modelos
formais da linguagem. São eles, de acordo com o autor:
contexto social. Bakhtin afirma, a esse respeito, que “o essencial na tarefa de decodificação
não consiste em reconhecer a forma utilizada, mas em compreendê-la num contexto preciso,
compreender sua significação numa enunciação particular. Perceber em suma, seu caráter de
novidade e não de conformidade à norma” (Bakhtin, 1979, p. 79 apud Camacho, 1994, p. 31).
A partir dessa crítica aos modelos formais de linguagem, Camacho (1994) aponta a
necessidade de se eleger um objeto alternativo para a investigação linguística. Segundo o
autor, o uso efetivo da linguagem, num contexto determinado, por indivíduos socialmente
determinados, deveria ser o novo objeto de estudo da Linguística. Dessa forma, os caminhos
que foram apontados pelas críticas feitas por Bakhtin (1979) conduz a um ponto em comum
que é a necessidade de se investigar os fenômenos linguísticos a partir de uma estreita relação
entre o modelo cientifico adotado e a linguagem em seu uso efetivo, dentro de um contexto
social. A teoria saussureana, por um lado, esvazia totalmente a língua de qualquer influência
do contexto social e, por outro, a gramática gerativa concebe a linguagem como um sistema
independente que funciona sem a necessidade de fatores sociais. Para enfatizar a relevância
do paradigma funcionalista como uma alternativa para resolver esse impasse, citamos um
longo trecho do trabalho de Camacho (1994), a nosso ver relevante para justificar nossa opção
por esta proposta:
Para o autor, a prática (com a linguagem) é que vai revelar os vários fatos da
linguagem humana, de modo que a teoria precisa abrir mão de concepções e argumentos
metodológicos apriorísticos. Sendo assim, Camacho defende que “o modelo funcionalista é
uma alternativa teórica capaz de executar com êxito desejável um programa dessa natureza”
(Camacho, 1994, p. 34).
Em artigo mais recente, de 2006, Camacho afirma que a Gramática Funcional se
preocupa também com fenômenos inerentes ao funcionamento do discurso e, portanto,
focaliza unidades linguísticas que não se encerram no nível da oração. É importante destacar
que a gramática funcional não descarta fatores relacionados à estrutura. Camacho retoma as
ideias de Hengeveld (2004), quando este autor trata das razões pelas quais a análise
gramatical deve se expandir da sentença para o discurso e com base nessa discussão, afirma
que
Camacho (2006) aponta que, a partir dessa perspectiva, a análise das estruturas
gramaticais é organizada tanto horizontal como verticalmente. Isso significa dizer que sempre
levará em consideração dois níveis: o interpessoal e o representacional. Sobre essa
organização, o autor afirma que:
Cada uma das unidades relevantes da estrutura da oração pode ainda ser
modificada por operadores, que consistem em elementos abstratos
representando distinções semânticas e pragmáticas expressas por meios
gramaticais, e por satélites, que consistem em distinções semânticas
expressas por meios lexicais opcionalmente selecionados (Camacho, 2006,
p.169).
f) Aquisição da linguagem Faz-se com uso de propriedades Faz se com uma ajuda de um input
inatas, com base em um input extenso e estruturado de dados
restrito e não estruturado de dados apresentados no contexto natural
Quadro 1 – Diferenças entre as abordagens formais e funcionais no estudo da gramática (Neves, 1994a, p.
46,47).
17
Bakhtin (1997) criticou o fato de a Linguística Estrutural relegar a função comunicativa da linguagem a um
segundo plano.
45
A língua não é um sistema bem definido e não pode ser igualada ao conjunto
de todas as sentenças gramaticais. A língua não pode ser interpretada por
regras que definam tal conjunto. Ela é uma fonte sistêmica da significação.
As pessoas intercambiam sentidos através da língua e, por isso a língua não
pode ser definida por sua constituência, que é vista pela teoria sistêmica
como uma pequena parte do quadro geral, apesar de sua importância. Por
isso mesmo, os colchetes são pouco usados nessa teoria, pois eles impedem a
percepção de que um mesmo enunciado dispõe de diversos valores
(Halliday, 1985a, 1985b apud Castilho, 2010, p. 81 grifo nosso).
18
Vale mencionar que, atualmente, Castilho (1994) enfatiza essa noção multissistêmica, integrada, em uma
teoria denominada de Sistemas Complexos.
46
Tendo em vista que os objetos de análise desta pesquisa são as classes funcionais, por
sua vez subcategorias lexicais (em contraposição às classes abertas), é relevante apresentar
algumas considerações sobre a sua natureza e funcionamento.
Nunes (2010) aponta que olhar para o léxico é uma tomada de decisão imprescindível
para o linguista que tem como objetivo entender as afinidades entre gramática, morfologia e
semântica e, para isso, parte de uma perspectiva discursiva19.
Um aspecto importante do modelo multissistêmico da língua, acima delineado, é que
os sistemas e subsistemas não estabelecem relações de determinação entre si, ou seja, um não
se sobrepõe ao outro. Castilho (1994, 2010) afirma que é o léxico o responsável pela
integração e intermediação desses sistemas, o que justifica que questões relativas ao seu
funcionamento precisam estar presentes nas descrições gramaticais20.
Nunes (2010) chama a atenção para o fato de que a noção de palavra foi excluída do
campo teórico da Linguística Moderna – fundamentada no estruturalismo. Essa exclusão fez a
lexicologia se tornar uma disciplina “marginal” na teorização linguística e, consequentemente,
fez com que seu estatuto científico fosse questionado. O autor aponta que, apesar da
Linguística “pura” ter rejeitado se debruçar sobre as questões relacionadas ao léxico, outras
áreas das ciências da linguagem se ocuparam desse desafio. A esse respeito, afirma que
19
Ressaltamos que Novaes-Pinto (2009) foi quem propôs que a discussão sobre a relação léxico e gramática
fosse desenvolvida no campo da Neurolinguística enunciativo-discursiva e vem incorporando essas reflexões às
análises dos fenômenos linguísticos no envelhecimento e nas patologias, no âmbito das pesquisas desenvolvidas
pelo GELEP, sobretudo nos estudos acerca das dificuldades de encontrar palavras. Conferir em Novaes-Pinto
(2009, 2014).
20
Jakobson (1954) foi um dos primeiros teóricos a descrever as funções da linguagem, no âmbito da Escola
Linguística de Praga. Em seu texto de 1954, ao discutir sobre os processos de seleção e combinação na
formulação de um enunciado, o autor já chamava a atenção para o papel que o léxico tem no modelo da dupla
articulação da linguagem; é nele que se evidencia a sua complexidade.
47
Palavra pa-la-vra sf [co] 1 unidade léxica constituída por forma livre mínima, isto é,
que não se divide em outras formas do mesmo tipo; termo; vocábulo: Não pude
ouvir a última palavra 2 comunicação verbal; conversa: ter a palavra fácil, ter a
palavra mansa 3 direito à fala; manifestação; elocução; discurso: negar a palavra
ao estudante [Ab] 4 promessa verbal: Palavra de rei não volta atrás 5 doutrina;
ensinamento: Levar a todos a palavra de cristo 6 comunicação breve: Gostaria de
dar-lhe uma palavra. Interj 8 expressa exclamação ou afirmação categórica: Não
copiei de ninguém, professor. Palavra! p. por p. sem nada mudar; textualmente:
Repetiu palavra por palavra a resposta dada ao senador. numa p. em resumo; em
suma: Numa palavra, é urgentíssimo aprovar as reformas estruturais! (BORBA et
al, Dicionário UNESP, 2011, p. 1012-1013)
21
Nunes (2010) aponta que na teoria estruturalista a noção de morfema foi privilegiada, em detrimento da noção
de palavra.
48
A esse respeito, Biderman (1978) aponta que vários linguistas vêm fazendo, desde o
século XIX, diversas críticas ao modelo classificatório aplicado ao léxico. A autora afirma
que as concepções greco-latinas continuam a se manifestar nas gramaticas ocidentais atuais.
Aponta que em 1880 o neogramático Hermann Paul já fazia uma criteriosa análise sobre essa
questão:
Ilari (2014, 2015) reitera essa concepção e afirma que distinguir classes de
palavras e estudá-las de forma separada é um modo de se estudar a língua, desde a Grécia
Antiga. No entanto, devido ao complexo funcionamento que é característico das línguas
49
O autor adverte que a classificação não pode ser engessada, pois a partir de seu
funcionamento as línguas sempre transformam itens lexicais em itens gramaticais. Por isso, a
categorização de palavras em classes se torna problemática. No que diz respeito à
classificação de palavras em classes abertas ou fechadas, Ilari tenta estabelecer uma
categorização baseada no principio de uso da língua. Na definição que propõe, o autor marca
seu posicionamento teórico pautando sua classificação não apenas no critério de presença ou
de ausência de sentido:
As classes “abertas” [...] são aquelas que ganham novos itens o tempo todo,
servindo de exemplo a facilidade com que a língua dos últimos anos,
atendendo a necessidades tecnológicas ou outras, assimilou substantivos
como “rolezinho”, verbos como “deletar” e adjetivos como “plugado” As
classes “fechadas” [...] denominam-se “fechadas” porque nelas a formação
de novos itens é mais lenta (pense-se no tempo que foi necessário para que a
expressão de tratamento Vossa Mercê se tornasse você, hoje
indiscutivelmente um pronome de segunda pessoa) e porque contêm séries
de poucos elementos (como é o caso dos artigos, que, uma vez descontada a
flexão de gênero e número, se reduzem a dois ou três). [...] recuperando a
afirmação que já estava em Aristóteles, há uma diferença óbvia de função
entre as palavras de classe aberta e de classe fechada: as primeiras tem
conteúdo descritivo que remete à realidade extralinguística, ao mundo; as
segundas funcionam como “instrumentos gramaticais”, isto é, como
utensílios que estruturam as sentenças da língua (ILARI, 2015, p. 09 grifo
nosso).
Nesta definição, podemos ver que outros elementos foram considerados para além das
questões que perpassam o sentido e a autonomia das palavras no léxico de uma língua. Por
aderir a uma concepção funcionalista, o autor atribui as diferenças entre essas classes de
palavras ao uso da língua. Trata-se de um funcionamento dinâmico, conforme Neves (2010).
As funções sintáticas não devem imprimir nas palavras um rótulo de pertencimento definitivo
(e inerte) a uma determinada classe. Quando a língua está sendo usada, as palavras entram
num contínuo em que podem assumir funções diferentes: um substantivo pode funcionar
50
como adjetivo, por exemplo. Essa dinamicidade faz com que as margens categoriais fiquem
borradas. A autora afirma que para entender o funcionamento da língua, a questão da
categorização das palavras precisa ser observada tanto pela sua regularidade quanto em suas
questões marginais. Aponta que o apagamento dessas fronteiras, impostas às palavras pelas
categorias gramaticais, revela a característica da língua como um sistema que, apesar de sua
instabilidade, opera sempre em equilíbrio. Isso implica dizer que o sistema linguístico não
tem fissuras ou brechas não preenchidas ou mal preenchidas e chama atenção para o fato de
que os deslizamentos de categoria são mais visíveis nas palavras de classes abertas, mas no
âmbito das palavras funcionais a mesma questão aflora. Sintetizando sua posição teórica,
afirma que:
Apontar uma estreita relação entre classes e funções não significa pleitear
que a cada classe corresponda exatamente uma função, e vice-versa. Pelo
contrário, a indicação central é a de que não há relação biunívoca (um a um)
entre classes e funções, mas há fluidez de delimitações, há deslizamentos
categoriais e há superposições funcionais, tudo a compor um aparato aberto
à criação infinita de sentidos e de efeitos pelo uso da palavra [...]. O
importante é que o reconhecimento dessas “indefinições” na categorização,
longe de constituir ignorância dos fatos, constitui prova da compreensão de
que a língua não é uma entidade engessada e composta por compartimentos
que devam apenas ser rotulados sem atenção para seu funcionamento, que é
altamente sensível à necessidade de produção de sentido em interação. [...] A
língua é um instrumento vivo, para o cumprimento das funções da
linguagem (Neves, 2012, p 206-207 grifo nosso).
Olhar para esses (não) limites que as palavras têm no momento em que a língua está
sendo usada com um propósito comunicativo é, segundo Neves (2010), o maior desafio para o
linguista que se propõe a analisar estruturas gramaticais.
A fim de ilustrar como esses deslizes categoriais podem ocorrer, consideremos o
seguinte exemplo:
Enunciados
A João, quando você chega de Anápolis?
B Maria, chego em Anápolis hoje, ainda não
viajei!
quanto a preposição em, em B, estão estabelecendo uma relação sintagmática entre o verbo
(chegar) e o objeto (Anápolis). No entanto, o uso dessas preposições nesses enunciados
extrapolam a função “meramente” sintática e estabelece, sobretudo, uma relação semântico-
referencial22.
Finalizando, deve-se considerar a afirmação de Castilho (2007) de que as classes
de palavras não devem ser analisadas como se as estruturas linguísticas fossem abstratas. As
categorizações lexicais em determinadas classes não devem ser consideradas como uma
organização de “primitivos linguísticos”. Ou seja, o linguista deve recusar a ideia de que o
léxico de uma língua seja um compilado de itens estáveis e estáticos. Sendo assim, o léxico
nunca estará pronto para o uso. A linguagem se constitui a partir da capacidade de se
(re)organizar com a necessária diluição de fronteiras. Por isso, deve ser compreendida como
variável e, sobretudo, multifuncional.
Nesta pesquisa, nos propomos a analisar o funcionamento das classes fechadas nos
enunciados de sujeitos afásicos. Apresentaremos, a seguir, descrições dessas classes com as
características que nos ajudem a compreender o processo de produção e construção de
significação em enunciados de estilo telegráfico23.
A partir do que foi discutido até o momento, concluímos que entender a classe das
palavras funcionais nas estruturas gramaticais do Português Brasileiro pode fornecer pistas
para o melhor entendimento dos processos envolvidos na produção de enunciados de estilo
telegráfico. Para atingir este objetivo, é necessário que se abandone a concepção de que essas
palavras sejam meramente gramaticais. Precisamos enxergar nessas classes o seu estatuto
semântico, ao se analisar a língua em seu uso efetivo.
22
Exemplos e análise de minha responsabilidade.
23
Por uma questão de espaço, não apresentaremos, neste trabalho, uma descrição e análise ampla dos processos
gramaticais estabelecidos pelos diversos recursos multifuncionais e linguísticos dessas palavras. Nos deteremos
nas questões que se relacionam com o objetivo principal desta pesquisa que é o de compreender o funcionamento
dessas palavras, na construção de significação, em enunciados (de estilo telegráfico) de sujeitos afásicos. A esse
respeito, consultar Ilari et al (2015) e Kleppa (2008) para a classe das preposições; Ilari (2015) sobre
conjunções; Castilho et al (2015) para a classe dos artigos. Todos esses trabalhos apresentam análises guiadas
pela perspectiva funcional. Muitos dos dados analisados emergiram do projeto NURC e compõem as análises
desenvolvidas no âmbito do projeto Gramática do Português Culto falado no Brasil. Os trabalhos sugeridos,
com exceção de Kleppa (2008), compõem a publicação de um volume dedicado apenas à descrição das palavras
de classe fechada que foi organizada por Rodolfo Ilari e publicada em 2015, sob o título “Palavras de Classe
Fechada”.
52
2.1 As preposições25
Nessa perspectiva, Ilari et al afirmam “se a preposição servisse apenas para estabelecer
uma relação entre dois termos a língua poderia contentar-se com uma única preposição, já que
sua função seria sempre a mesma” (Ilari, et al, 2015, p. 170-171). Os autores afirmam que o
24
Serão apresentadas apenas as classes que são objeto de análise da fala telegráfica, nesta dissertação.
25
Do grego próthesis: palavra que se coloca antes em composição ou em construção. Do latim: praepositio (cf
Neves, 2010).
53
Mais gramaticalizadas:
por, com, a, em, de, para
Menos gramaticalizadas:
contra, sem, até, entre,
sobre, sob
Figura 1: Preposições mais e menos gramaticalizadas, de acordo com Ilari, at al (2008, 2015)
ainda que só elas podem sofrer o processo de amalgamação com outros elementos funcionais
como artigos, pronomes e advérbios para formar uma única palavra.
Apesar de serem bastante parecidas do ponto de vista de sua função sintática, como foi
apontado anteriormente, na análise linguística que visa compreender os processos de
construção de sentido é necessário um tratamento mais abrangente das preposições, que
considere suas funções nos enunciados, de forma mais especial nos enunciados telegráficos.
2.2 As conjunções26
26
Do grego Sýndesmos: que significa união, vínculo. Do latim: Coniunctio (cf Neves, 2010).
55
Bazzanella (1986 apud Castilho, 2010) propõe, ainda, uma outra subcategorização
para a classe das conjunções, dos conectivos metalinguísticos. Como exemplo, o autor dá o
seguinte enunciado: [Como te] falava sobre isso ontem.
Castilho (2010) afirma que qualquer palavra precisa ter algum valor fórico para que
desempenhe a função de conjunção. Ou seja, precisa retomar o que já foi dito e/ou apontar o
que segue no restante do enunciado; um valor dêitico que localize as proposições no tempo do
discurso que está sendo produzido. Considerando a língua como multissistêmica, o autor
afirma que é preciso considerar as conjunções a partir de mais de um sistema, o que
caracteriza um polifuncionalismo, característico das conjunções como qualquer outra classe
de palavras (Castilho 2010).
Para exemplificar a complexidade que as conjunções podem ter no uso efetivo da
língua, Castilho (2010) faz uma análise dos substantivos tipo e de repente que, a depender do
contexto, podem assumir função conjuncional. O autor dá os seguintes exemplos:
“Não sei mais como lidar com ela... já enjoei... tipo não tenho mais saco para essa amolação toda.”
“Vamos resolver logo de uma vez, pô, de repente cai uma chuvarada e a gente fica no prejuízo.”
2.3 Os artigos27
Castilho afirma que a seleção dos artigos, tanto definido quanto indefinido, é
perpassada pela interação discursiva, o que permite, por exemplo, que ao responder uma
pergunta seja possível imprimir um sentido específico a um substantivo precedido por um
artigo categorizado como indefinido. O autor afirma, ainda, que se as análises forem calcadas
apenas em níveis sintáticos ou semânticos essa riqueza plurifuncional pode passar
desapercebida. Por isso, o trabalho analítico não pode desprezar que a língua se realiza a partir
do resultado da integração de vários sistemas (Castilho, 2010; Castilho et al, 2015).
27 Do grego Árthon que significa articulação. Do latim Articulus: articulação (cf Neves, 2010).
57
questão, segundo os autores, se reflete na cristalização das categorizações dos morfemas que
se referem à pessoa, tempo, modo e voz. Neves (2005, 2012) aponta que o estudo dessas
categorias, agrupadas sob o rótulo de flexão, foi feito a partir de interesses filosóficos, ao
longo de toda a história do estudo gramatical. A esse respeito, Neves (2012) afirma
Ilari e Basso (2015) destacam que a palavra “verbo” vem do latim verbum que
significa palavra. Esse termo em latim era utilizado para fazer referência à qualquer palavra
existente na língua independente de qualquer classificação morfossintática. Segundo os
autores, isso pode ser indício de uma concepção clássica de que o verbo é a “palavra por
excelência”. Sobre essa questão, os autores concluem: “essa convicção assenta,
provavelmente, no fato de que, nas línguas clássicas (no latim, mas também em grego), o
verbo contava com um paradigma de flexões vasto e bem definido” (Ilari & Basso, 2015, p.
65).
Sobre as unidades linguísticas que compõem todo o processo de flexão estabelecendo
o paradigma verbal, os autores afirmam que essas unidades (as desinências) são consideradas
como elementos de nível inferior à palavra. Isso justificaria a concepção sintática de
indivisibilidade dessas unidades.
O verbo quando está conjugado, além de portar um sentido que está expresso em seu
radical, transmite informações que são incorporadas a ele por meio das desinências. Ilari e
Basso (2015) chamam a atenção para o fato de que essas informações só podem ser
transmitidas e compreendidas se considerarmos os verbos em atos de enunciação.
58
A partir do que foi discutido, podemos concluir que o verbo conjugado porta uma
complexidade que extrapola e, muito, os limites dos processos morfossintáticos. Esse
processo demanda uma categorização, seleção e combinação de unidades linguísticas que só
vai se tornar coerente e funcional se estiver sendo motivado por questões intersubjetivas,
semânticas e, principalmente, pragmáticas. Essa complexidade nos ajuda a compreender as
dificuldades que têm os sujeitos afásicos para selecionar e combinar essas unidades flexionais
ao produzirem seus enunciados.
Pelo fato de colocar a pragmática como uma questão central nas análises das
estruturas, a gramática funcional traz a possibilidade de tirar o foco do déficit e abre a
possibilidade para entender melhor os processos subjacentes à produção dos enunciados.
A concepção de linguagem como indeterminada, não transparente (Coudry, 1988
[1986]; Franchi, 1977) é um dos pontos em comum entre a Neurolinguística enunciativo-
discursiva e a Gramática Funcional. Retomando as implicações dessa perspectiva, Coudry
reafirma, a partir dos estudos de Franchi (1977), que “nenhum enunciado tem em si condições
necessárias e suficientes para permitir uma interpretação unívoca.” Afirma que isto significa,
em linhas gerais, que “a língua dispõe de múltiplos recursos expressivos que, associados a
fatores como contexto, a situação, a relação entre os interlocutores, as leis conversacionais,
etc., fornecerão condições de determinação de um dado enunciado” (Coudry, 1988. p. 65).
Ambas as teorias se preocupam com o modo como os sujeitos se comunicam eficientemente
em uma determinada língua e a despeito de suas dificuldades.
Acreditamos que a Gramática Funcional seja uma perspectiva teórica coerente para a
análise dos processos linguístico-cognitivos que estão, de alguma forma, impactados pela
patologia. A depender tanto do tipo de afasia, quanto das dificuldades específicas dos sujeitos,
a construção da significação só é possível a partir de elementos que extrapolam o nível da
oração – que é a instância máxima de análise nas perspectivas formais.
No campo dos estudos afasiológicos, Nespoulous também já alertava para a
necessidade de considerar questões pragmáticas na teorização dos fenômenos afasiológicos,
como o autor expõe na seguinte passagem:
Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão
sempre relacionadas com a utilização da língua. Não é de surpreender que o
caráter e os modos dessa utilização sejam tão variados como as próprias
esferas da atividade humana, o que não contradiz a unidade nacional de uma
língua. A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e
escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra
esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condições especificas e
as finalidades de cada uma das esferas, não só por seu conteúdo (temático) e
por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua –
recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais –, mas também, e sobretudo,
por sua construção composicional. Estes três elementos (conteúdo temático,
estilo e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do
enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de
comunicação. Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro,
individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos
relativamente estáveis de enunciados, sendo isso o que denominamos
gêneros do discurso (Bakhtin 2000[1925-1953]28, p. 279).
A questão da semiologia utilizada para designar o fenômeno que esta pesquisa discute
não pode ser compreendida como marginal. A necessidade de uma reflexão crítica sobre o
termo fala telegráfica já parecia evidente no início deste trabalho e que já estava indicada no
seu título, quando nos referimos à chamada fala telegráfica.
28
Segundo nota de tradução – Bakhtin teria escrito esse texto em (1952-1953).
61
De acordo com o que vimos no capítulo 1, a fala telegráfica pode ser vista como o
principal sinal do agramatismo e, ainda, a depender da teoria que a descreve, ser concebida
como o próprio agramatismo, enquanto síndrome. Foi apontado, também, que diversos
autores têm criticado o uso desse termo como metáfora da produção de um telegrama, pelo
fato de não identificarem semelhanças com este gênero e a produção linguística de sujeitos
afásicos, o que levou alguns autores a utilizarem termos como fala elíptica (Tesak &
Dittmann, 1991 Niemi et al. 1992; Menn & Obler, 1990a; Tesak & Niemi, 1997; Kolk 2001),
fala reduzida (Kleppa, 2008) ou fala de estilo telegráfico (Novaes-Pinto, 1999).
O termo “estilo”, nesse contexto, nos parece relevante para indicar que, apesar de não
haver uma estrutura típica como as que eram utilizadas nos telegramas, os enunciados dos
sujeitos afásicos prescindem de algumas estruturas – predominantemente as palavras
funcionais – em sua composição. A nosso ver, ao conceber tais enunciados com “estilo
telegráfico” estamos tirando o foco da análise dos déficits e garantindo que sejam analisados
em relação ao que está presente e que de fato significa.
A seguir, apresentaremos alguns dos conceitos bakhtinianos que são mais produtivos
para nossa reflexão, sobretudo porque os concebemos como categorias de análise dos
enunciados no campo das afasias e estarão implicados nas análises dos dados, no Capítulo 5.
Segundo Novaes-Pinto (1999) “esse conceito pode ser aplicado aos dados dos
sujeitos afásicos, mesmo àqueles com expressão bastante reduzida e que os modelos formais
não dão conta de explicar, já que muitos não podem ser subdivididos em enunciados ou em
níveis convencionais da língua” (Novaes-Pinto, 1999, p. 161). A esse respeito, a autora afirma
que até os jargões, as estereotipias, as expressões fisionômicas e os gestos devem ser
considerados enunciados. Considerar essas produções, segundo a autora, implica em
reconhecer o papel (subjetivo) dos sujeitos afásicos no processo de interlocução.
adotar uma atitude responsiva para com ele (por exemplo, executar
uma ordem) (...). É necessário o acabamento para tornar possível
uma reação ao enunciado. Não basta que o enunciado seja
inteligível no nível da língua. Uma oração totalmente inteligível e
acabada se for uma oração e não um enunciado não poderá suscitar
uma reação de resposta: é inteligível, está certo, mas ainda não é
um todo. Este indício da totalidade de um enunciado não se presta
a uma definição de ordem gramatical ou pertencente a uma
entidade do sentido (Bakhtin, 1995, p. 299).
O autor diz que “cada réplica, por mais breve e fragmentária que seja, possui um
acabamento específico, que expressa a posição do locutor sendo possível responder, sendo
possível tomar, com relação a essa réplica, uma posição responsiva” (Bakhtin, 1995, p. 299).
Uma das questões mais relevantes para Bakhtin é a da impossibilidade (ou maior dificuldade)
para se chegar ao tratamento exaustivo do tema, um dos fatores apontados por Bakhtin como
característica do acabamento. Isso é ainda mais difícil quando se trata de enunciados no
contexto da afasia.
Nas afasias, mesmo que os sujeitos não alcancem o todo do enunciado, tentam se
aproximar de seu querer-dizer. Bakhtin ressalta que os interlocutores, por conhecerem tanto a
situação quanto os enunciados que vieram antes de uma enunciação específica, são capazes de
captar facilmente o querer-dizer do locutor a partir das primeiras palavras de um determinado
enunciado em construção. Por isso, os conceitos de enunciado, acabamento e querer-dizer
estão em estreita relação. O autor afirma que “percebemos o quê o locutor quer dizer e é em
comparação a esse intuito comunicativo que mediremos o acabamento do enunciado”
(Bakhtin, [1952]1997, p. 301 apud Novaes-Pinto, 1999, p. 163).
Novaes-Pinto (1999) chama a atenção para o fato de que mesmo os sujeitos afásicos
que apresentam um grau de severidade considerado “leve” ou “moderado” relatam que têm
dificuldades para expressar tudo o que pretendem dizer e a partir disso considera que o
conceito de querer-dizer “parece ser bastante interessante para a questão da avaliação do grau
de severidade das afasias, que tradicionalmente só toma como parâmetros unidades de uma
gramática normativa de língua” (Novaes-Pinto, 1999, p. 165).
64
Capítulo 3
A relação entre fala interna
e a produção do enunciado de estilo telegráfico
Eu tenho à medida que designo - e este é o esplendor de se ter
uma linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não
consigo designar. A realidade é a matéria-prima, a linguagem é
o modo como vou buscá-la - e como não acho. Mas é do buscar
e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que
instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço
humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto
com as mãos vazias. Mas - volto com o indizível. O indizível só
me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem.
Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não
conseguiu.
(Clarice Lispector, 1964 p.119 )
Luria (1986) afirma que a consciência do homem sustenta sua atividade racional e isso
permite que ele adentre e opere em um sistema complexo e abstrato que só terá significação
em um meio histórico e social. Nesse contexto, a linguagem é a responsável por estabelecer a
66
mediação entre o sujeito, o outro e a cultura. Em outras palavras, a linguagem, por meio do
seu sofisticado sistema de códigos, é a base do pensamento abstrato do homem. De modo que,
pelo uso social e arbitrário do signo linguístico, o homem se tornou filogeneticamente
diferenciado das outras espécies.
Luria (1986), também fundamentando-se nas reflexões de Vygotsky, afirma que a
estruturação psicológica da linguagem e o seu papel na comunicação, na formação e
desenvolvimento da consciência é o problema central dos estudos da psicologia. Para o autor,
é imprescindível compreender a maneira como o homem reflete sobre o mundo em que vive.
O ser humano não se limita à impressão imediata de suas experiências sensíveis e pode
penetrar com mais profundidade na essência das coisas, abstraindo sobre um objeto ou fato, a
partir de características isoladas; estabelece enlaces e relações profundas e é capaz de
categorizar. Dentre outras operações complexas, a linguagem é, segundo o autor, a função
mais importante a ser estudada pela ciência psicológica.
Segundo Vygostsky (2009 [1934]), existe uma relação não estática entre pensamento e
linguagem, justamente pelo fato de ser mediada pela interação do homem com a história e a
cultura:
por ora, pode ser sintetizado como “um esquema verbal abreviado que precede o ato de fala e
que fornece a base para sua subsequente expansão”.
Baseado em Vygotsky, Luria (1986) afirma que todo enunciado verbal tem início a
partir de uma motivação – que, nos termos bakhtinianos nos remeteria à noção de querer-
dizer29. Luria enfatiza que um sujeito só produz algum enunciado quando sente a necessidade
de dizer algo para o outro, momento mais elementar para a formulação de qualquer
enunciado.
De acordo com Luria, o segundo estágio na produção de um enunciado está
diretamente relacionado ao primeiro – à motivação propriamente dita – e pode ser chamado
de “pensamento do enunciado”. O autor enfatiza que sempre existe um pensamento ou
sentido que o falante deseja comunicar ao seu interlocutor e isso precisa passar por uma
corporificação linguística para ser transformado em enunciado. Usa uma metáfora bastante
ilustrativa quando compara esse processo aos ossos que precisam ser revestidos de carne para
se tornarem corpo/enunciado, como vemos na seguinte citação:
29
Vygotsky propõe que o significado de um enunciado tem uma função interacional e inclui aparatos teóricos
como motivação, intenção e sentido. O autor distingue sentido [znachenie] de significado [smysl] o que, segundo
Wertsch faz lembrar as ideias de Frege sobre esta mesma distinção.
68
Para sintetizar a hipótese de Luria, inserimos abaixo um esquema que ilustra os três
estágios propostos pelo autor:
Motivação
Pensamento
Transformação em fala
interna
Enunciado Verbal
Fala externa
30
Akhutina chama atenção sobre o fato de que Luria usa as expressões “grammatical structure of active speech”
e “dynamic schema of a sentence” como sinônimas.
31
Segundo Akhutina, Luria retomou de Tsvetkova conceitos como os de intenção, esquema interno de uma
sentença e expansão de um enunciado verbal. Entretanto, diz a pesquisadora que, nem ele e nem seus
69
acordo com Akhutina (2003), na proposta de Luria e Tsvetkova, os vários estágios da fala
interna incorporam todos os aspectos estruturais internos e também todas as funções da fala.
Vygotsky, entretanto, já havia criticado essa noção mais abrangente de fala interna proposta
por Luria e Tsvetkova, também oposta à visão de Goldstein, que considerava como fala
interna tudo o que precede o ato motor, ou seja, todos os aspectos internos da fala (Vygotsky,
1956, p. 339).
Segundo Akhutina (2003), o projeto teórico de Vygotsky tinha como central a relação
entre pensamento e linguagem, em oposição tanto à ideia de que pensamento e linguagem são
uma mesma coisa, idênticos, ou como dois processos independentes. Sobre a fala interna, o
autor a considera um aspecto particular do pensamento verbal que carrega todas as relações
dinâmicas entre pensamento e palavra. Compreender essa relação é extremamente importante,
pois, no modelo de Vygotsky, a produção de um enunciado é o resultado de uma reelaboração
dos diversos sentidos que as palavras podem ter em uma sintaxe convencional e partilhada
entre os falantes de uma mesma língua. Ou seja, na fala interna a palavra adquire nuances que
se fundem de forma gradual até se transformarem em um novo significado. Esses significados
são sempre individuais, compreensíveis apenas no discurso interior. Os enunciados verbais
são, então, o resultado de um processo em que o sujeito transforma o discurso interior em
discurso inteligível para o outro. Nas palavras do autor:
É importante destacar que nessa relação, fala interna e fala externa não estão em
oposição, mas são características constituintes de um processo que vai do pensamento ao
enunciado verbal, externalizado para o outro, culminando em uma sintaxe do enunciado,
enquanto unidade da comunicação verbal (cf. Bakhtin, 1997). Akhutina retoma de Vygotsky
um trecho central para esclarecer acerca do processo:
antecessores explicaram o que esses termos significavam e tampouco forneciam uma descrição geral do processo
de construção de um enunciado.
70
A relação entre o pensamento e a palavra é, antes de tudo, não uma coisa, mas um
processo, é um movimento do pensamento à palavra e da palavra ao pensamento. À
luz da análise psicológica, essa relação é vista como um processo em
desenvolvimento, que passa por uma série de fases e estágios, sofrendo todas as
mudanças que, por todos os seus traços essenciais, podem ser suscitadas pelo
desenvolvimento no verdadeiro sentido desta palavra. Naturalmente não se trata de
um desenvolvimento etário e sim funcional, mas o movimento do próprio processo
de pensamento da ideia à palavra é um desenvolvimento. O pensamento não se
exprime na palavra, mas nela se realiza. (Vygotsky, 2001 [1934], p. 409).
Assim, a transição da fala interna para a fala externa não é apenas vocalização da fala
interna, mas sua reestruturação, a transformação de uma sintaxe especial, das estruturas
semânticas e fonéticas da fala interna, para formas estruturais próprias da fala externa e social.
Assim, como já foi apontado anteriormente, a fala interna não é composta por significados
linguísticos convencionais, pois estão no plano da subjetividade, do sentido. Esta formulação
é, como pretende-se defender mais adiante, fundamental para a compreensão das dificuldades
dos afásico que poderiam resultar na produção de fala telegráfica, dentre outros fenômenos
também presentes.
Vygotsky, de acordo com Akhtutina (1975), fez uma distinção de cinco diferentes
aspectos funcionais que compõem o processo único de transição do pensamento para o
enunciado verbal: (i) motivação (ii) pensamento (iii) fala interna (iv) plano semântico e,
finalmente, (v) fala externa ou enunciado. Como vemos no modelo, há um plano externo e
um plano interno da fala, muito próximos pela sua natureza semântica, razão pela qual
Vygotsky denomina de “plano semântico”. O autor considera que toda a sentença contém um
sujeito e um predicado psicológico. No nível do pensamento, o sujeito coloca a ênfase em
uma dessas palavras, mais relacionadas ainda ao pensamento. Seria, para usar uma metáfora
de Vygotsky já referida anteriormente neste capítulo, a “nuvem parada, que descarrega uma
chuva de palavras”. Sobre esse modelo, vejamos o esquema a seguir:
71
O plano semântico, que tem uma sintaxe especial e que depende do pensamento, é
apenas o primeiro nível mais central da fala, antes mesmo da formulação da chamada “fala
interna” que, para o autor, é “o aspecto particular e independente do pensamento verbal no
qual todas as relações dinâmicas entre pensamento e palavras estão concentradas” (Akhutina,
2003, p. 59-60). A fala interna é a fala para si mesmo. Ela emerge da fala externa, uma vez
que é formulada por palavras e por seus significados sociais e compartilhados. Akhutina
lembra que Vygotsky postulou o conceito de fala interna a partir de seus estudos e
experimentos com crianças ao longo do desenvolvimento, mais especificamente sobre a fala
egocêntrica. Para Akhutina (2003), o método utilizado por Vygotsky possibilitou que o autor
depreendesse as principais características da fala interna, que reproduzimos a seguir.
Não concordamos com aqueles que consideram a linguagem interior como algo que
precede a exterior, como seu aspecto interior. Se a linguagem exterior é um
processo de transformação do pensamento em palavras, a materialização e a
objetivação do pensamento, então aqui observamos um processo de sentido inverso,
que parece caminhar de fora para dentro, um processo de evaporação da linguagem
no pensamento. Mas o discurso não desaparece de maneira nenhuma na sua forma
interior. A consciência não evapora nem se dilui no espírito puro. A despeito de
tudo, a linguagem interior é uma linguagem, isto é, um pensamento vinculado à
palavra. Mas se o pensamento se materializa em palavras na linguagem exterior, a
palavra morre na linguagem interior, gerando o pensamento. (...). A linguagem
interior é o momento dinâmico, instável, fluido, que se insinua entre os polos
extremos melhor enformados e estáveis do nosso estudo do pensamento verbal: entre
a palavra e o pensamento”. (Vygotsky, 2001 [1934], p. 474).
32
Além de Luria e Vygotsky, Akhutina ‘traz também o modelo proposto por Anan’ev (1946, 1960) que se
assemelha aos de Luria e Vygotsky, mas que se diferencia no aspecto de propor uma divisão funcional da fala
interna em três níveis. Embora interessante, a discussão feita pelo autor não contribui para esta pesquisa.
33
Akhutina é uma das pesquisadoras da escola luriana de neurolinguística e tem sido apontada como um nome
relevante nas neurociências atuais. Foi aluna de Luria e desenvolveu pesquisas também com Leontiev.
73
A partir de tudo o que foi exposto até este momento, um dos postulados de Vygotsky
relativos à relação entre linguagem e pensamento é que há duas sintaxes – uma do sentido,
ligada à fala interna, e outra da fala externa, ligada ao significado. Outro ponto importante é
que as estruturas das falas interna e externa não coincidem, uma vez que na primeira a palavra
é como um coágulo de sentidos compreensíveis apenas para o próprio sujeito e na segunda
precisa ser estruturada em significados que são sociais e compartilhados.
Leontiev, de acordo com Akhutina, apontou que os dados empíricos podem ser
explicados a partir do modelo de Vygotsky. O autor postula um estágio de organização pré-
gramatical em relação ao enunciado produzido (fala externa), que corresponderia à fala
interna, de Vygotsky. Leontiev vê o enunciado verbal como um ato de fala, que constitui uma
abordagem mais ampla de atividade, apresentando características como motivação, propósito,
em uma estrutura de três estágios (formulação de um plano, implementação do plano e
comparação do resultado com o plano), o que nos faz lembrar das funções do lobo frontal (ou
Bloco I), na teoria luriana sobre o cérebro, em uma organização hierárquica. Segundo o autor,
“the phenomenon often referred to as inner speech and preceding an external utterance
corresponds to the stage we call the plan (programming) of a speech act”. De acordo com
Akhutina, para Leontiev, este estágio – comparado ao de fala interna proposto por Vygotsky –
74
é central em sua teoria para explicar a estrutura de um ato de fala. O esquema a seguir
sintetiza o modelo proposto pelo autor:
Assim como nos modelos de Luria e de Vygotsky, o primeiro estágio proposto por
Leontiev também é o de motivação, que por sua vez gera a intenção, conceitos que o autor
divide em dois componentes ou em dois estágios. No primeiro estágio (motivação), o sujeito
tem uma ideia abstrata, geral, do que quer comunicar, mas ainda não tem um plano de ação
que ele tem que colocar em prática para comunicar essa ideia ou pensamento; seu “querer-
dizer” (cf. Bakhtin). O próximo estágio é chamado de programa-interno. Relacionando com
Vygotsky, este estágio corresponde à síntese da ideia em uma palavra, saturada de sentido.
Neste estágio, a intenção é veiculada por um código de sentidos pessoais, embora a palavra
seja resultante de ações objetivas externas. O resultado dessas operações, para Leontiev,
também constitui um sistema de caráter predicativo, codificado na fala interna. Leontiev
75
34
A autora cita o modelo postulado por Chomsky (1957), relativo à gramatica gerativa transformacional, que
também prevê a existência de uma estrutura profunda e outra de superfície. A estrutura profunda é constituída
por regras básicas (princípios) de uma língua na “mente do falante”, transformadas e sujeitas às regras
fonológicas na estrutura de superfície, já que se destina à comunicação entre os falantes de uma mesma língua.
76
uma teoria abrangente, ao relacionar aspectos sintáticos e semânticos que geram tanto o
pensamento verbal quanto a linguagem social e compartilhada.
Nesse ponto de suas articulações, Akhutina, no texto de 2003, originalmente publicado
em 197535, passa a apontar para a relevância desses postulados teóricos nas análises dos
distúrbios da fala, mais especificamente no campo das afasias e formula as seguintes
hipóteses, baseadas na teoria luriana de funcionamento cerebral e em sua semiologia das
afasias:
35
Essa reflexão de Akhutina sobre a importância da fala interna na produção de um enunciado foi primeiramente
publicada, originalmente em Russo, no ano de 1975 e traduzida para o inglês e publicado em versão online no
ano de 2014.
36
Lembramos que a afasia dinâmica, Segundo Luria, está relacionada a lesões no lobo frontal, mais
especificamente nas regiões pré-frontais, responsáveis pela chamada “função executiva”.
37
Na proposta de Luria, estariam impactadas as áreas secundárias do lobo frontal, responsáveis pelos programas
de ação.
77
38
Publicado online em 2014 no Journal of Russian & East European Psychology.
78
Novaes-Pinto (1992; 1997; 1999; 2017), desprezados pelos estudos científicos (quantitativos e
estatísticos) da relação cérebro-linguagem.
No Capítulo 5, traremos dados produzidos pelos quatro sujeitos acompanhados ao
longo desta pesquisa, analisando seus enunciados telegráficos à luz dos pressupostos teóricos
discutidos ao longo dos capítulos 2 e 3, sobretudo com o respaldo da Gramática Funcional,
dos conceitos bakhtinianos e de acordo com as reflexões articuladas por Akhutina
80
Capítulo 4
Todas as atividades desenvolvidas nas interações com sujeitos afásicos nas sessões do
CCA (coletivas e individuais) são vídeo-filmadas e registradas em diário. As transcrições são
discursivas e adaptadas do projeto NURC (Norma Urbana Culta)39.
A seguir, sintetizamos as principais regras de transcrição adaptadas pelos membros do
GELEP (Grupo de Estudos da Linguagem no Envelhecimento e nas Patologias)40:
Sigla/Símbolo Correspondência
I(xx) Interlocutores não afásicos
IEf Estagiário(a) da Fonoaudiologia
XX Duas letras maiúsculas – sujeito afásico
Letras maiúsculas Mudança de entonação, ênfase
, Pausa de curta duração
... Pausa de longa duração
* Imprecisão articulatória
(EI) Enunciado Ininteligível
[[ Sobreposição de vozes
- Silabação
“ “ Discurso direto
/ Interrupção da fala, truncamento
:: Alongamento de vogal
:::: Maior alongamento de vogal
( ) Observações e comentários quanto às condições de produção
------------- Interrupção externa
[ ] Descrição de enunciado não verbal
39
As normas de transcrição do NURC são apresentadas por Castilho & Preti (1986).
40
Adaptado do quadro elaborado por Cazarotti-Pacheco, em sua tese de doutorado (Cazarotti-Pacheco, 2012, p.
42) A legenda foi também adaptada para as necessidades especificas desta dissertação.
83
afásicos que frequentam os grupos do CCA41, em geral, são encaminhados por profissionais
do Hospital das Clínicas (FCM/UNICAMP): neurologistas, neuropsicólogos, fonoaudiólogos
e psicólogos ou por profissionais de outras instituições que conhecem o trabalho desenvolvido
no IEL. Muitos, entretanto, nos procuram por indicação das famílias ou dos amigos de
afásicos que frequentam ou já frequentaram o centro de convivência (Coudry, 1986, Novaes-
Pinto, 2014, 2015).
O grupo 342 promove, desde 2006, encontros entre afásicos e não-afásicos,
propiciando a interação e o estabelecimento de laços interpessoais, visando dar novos sentidos
à linguagem. São desenvolvidas, conjuntamente, estratégias para lidar com as dificuldades,
privilegiando, sobretudo, o que ainda está presente e não apenas o que falta na língua(gem)
impactada pela patologia. As atividades se organizam em três momentos: (i) com todo o
grupo, para a discussão de notícias, fatos importantes da vida dos sujeitos, realização de jogos
e tarefas interativas; (ii) intervalo para o café, um momento de descontração, em que as
interações se dão de modo mais natural e (iii) acompanhamento individual ou em duplas,
durante os quais linguistas e fonoaudiólogos (além de estudantes de graduação e estagiários
de ambas as áreas) propõem práticas ligadas às necessidades mais específicas dos sujeitos
(Novaes-Pinto, 2009; 2014; 2015).
4. Sujeitos da pesquisa
4.1. O sujeito BM
41
Existem, no momento, três grupos em atividade. Os dados apresentados neste trabalho se referem ao Grupo 3,
que teve início em 2006, e funciona às terças-feiras, das 8 às 12 horas, abrigando também o Estágio em Afasia,
disciplina do curso de Fonoaudiologia (FCM/UNICAMP).
42
Coordenado pela Profa. Rosana Novaes-Pinto, orientadora desta pesquisa.
84
4.2. O sujeito BS
4.3. O sujeito TR
4.5. O sujeito GB
43
Descrição feita no projeto de extensão CCA: o trabalho realizado por uma equipe multidisciplinar (Novaes-
Pinto et al., 2015), com base na dissertação de Mestrado que vem sendo desenvolvida por Diana Boccato.
85
(i) garantir um certo “controle” nas variáveis das ocorrências de falas telegráficas
e
(ii) obter uma quantidade razoável de registros dos fenômenos relativos à produção
e à compreensão das palavras funcionais
Resposta esperada
Número Charada: O que é, o que é?44
01 ... o céu que não possui estrelas? Céu da boca
02 ... que dá muitas voltas e não sai do lugar? Relógio
03 ... que é surdo e mudo, mas conta tudo? Livro
04 ... que sobe quando a chuva desce? Guarda-chuva
05 ... que cai em pé e corre deitado? Chuva/enxurrada
06 ... que anda com os pés na cabeça? Piolho
07 ... que sempre se quebra quando se fala? Segredo
08 ... que tem mais de 10 cabeças, mas não sabe pensar? Caixa de fósforos
09 ... que quanto mais cresce, mais baixo fica? Cabelo
10 ... que corre na casa inteira e depois vai dormir no canto? Vassoura
11 ... que tem pernas, mas não anda, tem braço, mas não abraça? Poltrona
12 ... que é feito para andar, mas não anda? Rua
13 ... que caminha sem pé, voa sem asa e pousa onde quiser? Pensamento
14 ... que fica cheio durante o dia e vazio à noite? Sapato
Quadro 2: Charadas utilizadas com os sujeitos afásicos
44
Em negrito encontram-se as palavras funcionais que estavam sendo avaliadas no jogo.
45
Cartões da K2 Publisher que, ao ilustrarem um mesmo personagem, objetivam focar a descrição na ação
realizada.
87
(i) as figuras ficam viradas para baixo e o sujeito afásico escolhe um dos cartões,
analisa a imagem e descreve, por meio de gestos, a atividade representada. O
objetivo nessa parte da atividade é identificar se o sujeito estava compreendendo
as figuras e também permitir que se avalie a ocorrência de enunciados não-verbais
que, com os verbais, permitem a compreensão. A partir da descrição não verbal
sobre a figura, o pesquisador deve “adivinhar” sobre qual ação a figura se refere;
(ii) em seguida, o pesquisador tira um cartão, mostra para o afásico e pergunta “o que
ele/ela está fazendo?” Desta vez, espera-se que o afásico produza enunciados
verbais para que se avalie a produção de elementos como o verbo e em que forma
(modalidade, tempo e aspecto) ele se apresenta. Vale ressaltar que para cada
momento dessa atividade foram usados cartões com imagens diferentes.
Neste experimento, o pesquisador mostra para o sujeito um cartão com uma imagem que
ilustra uma expressão cristalizada e metafórica da língua, como por exemplo, Não adianta
chorar pelo leite derramado!. Em seguida, é esperado que o sujeito diga a expressão que está
sendo representada.
Acreditamos ser possível avaliar, por meio desta atividade, a produção e a compreensão
das palavras funcionais nos enunciados dos sujeitos e, também, a interpretação de estruturas
sintáticas que contenham essas palavras. O fato de serem expressões cristalizadas garante um
88
certo controle com relação às palavras que devem ser enunciadas. A seguir, algumas imagens
usadas na atividade46.
Algumas das atividades desenvolvidas com BS têm um foco mais direcionado para a
leitura47, já que depois do AVC, BS relata ter muitas dificuldades com essa atividade e realiza
muitas trocas (parafasias fonético-fonológicas e semântico-lexicais). Por esse motivo,
desenvolvemos com ele a leitura de diversos gêneros textuais (notícias, charges, contos etc)48
ao longo de suas sessões individuais. Para esta dissertação, entretanto, traremos um episódio
em que se desenvolve uma atividade com a leitura de uma notícia.
46
As imagens usadas nesse experimento foram retiradas do site Metamorfose Digital
http://www.mdig.com.br/index.php?catid=23. Esse expediente foi desenvolvido por Souza-Cruz (2013)
47
BS sempre foi leitor voraz de livros de ficção e, à época de ocorrência do AVC, estava lendo Anjos e
Demônios, de Dan Brown. Já havia lido outros romances do mesmo autor e, também, diversas estórias sobre
Sherlock Holmes. Além disso, o sujeito lia autores brasileiros consagrados, como Machado de Assis, Lima
Barreto, Carlos Drummond de Andrade, dentre outros. Também é músico e fazia parte de uma banda de rock,
tocando baixo. No CCA, temos buscado desenvolver com ele muitas atividades de leitura e com música. Como
não consegue mais tocar baixo, por seus limites de natureza motora, tem participado das atividades tocando
instrumentos de percussão (carron, pandeiro etc)
48
As atividades foram realizadas em parceria com Boccato (2015), pesquisadora que investiga as trocas que BS
faz na leitura, fenômeno referido na literatura neuropsicológica como paralexia.
89
[...] não é micro porque se refere à curta duração dos eventos, mas sim por
ser orientada para minúcias indiciais – daí resulta a necessidade de recortes
num tempo que tende a ser restrito. É genética no sentido de ser histórica,
por focalizar o movimento durante processos e relacionar condições
passadas e presentes, tentando explorar aquilo que, no presente, está
impregnado de projeção futura. É genética, como sociogenética, por buscar
relacionar os eventos singulares com outros planos da cultura, das práticas
sociais, dos discursos circulantes, das esferas institucionais (Góes, 2000,
p.15).
49
Destacamos, a esse respeito, as pesquisas que são desenvolvidas no âmbito do GELEP (Grupo de Estudos da
Linguagem no Envelhecimento e nas Patologias).
50
Relatório Científico da pesquisa Análise comparativa dos paradigmas microgenético e indiciário: reflexões
sobre a metodologia no campo da Neurolinguística (FAPESP, 2015).
90
51
O anexo I apresenta o TCLE, que foi assinado por todos os sujeitos da pesquisa.
52
A autorização desta pesquisa pode ser consultada no endereço eletrônico da Plataforma Brasil pelo link
http://aplicacao.saude.gov.br/plataformabrasil/login.jsf Nos dados da consulta, basta informar o número do
parecer ou então o número do CAAE: 50827515.6.0000.5404.
91
Capítulo 5
O enunciado de estilo telegráfico interpretado via
análise qualitativa/microgenética dos episódios
dialógicos
As ciências exatas são uma forma monológica de
conhecimento: o intelecto contempla uma coisa e
pronuncia-se sobre ela. Há um único sujeito: aquele que
pratica o ato de cognição (de contemplação) e fala
(pronuncia-se). Diante dele, há a coisa muda. Qualquer
objeto do conhecimento (incluindo o homem) pode ser
percebido e estudado a título de coisa. Mas, o sujeito
como tal não pode ser percebido e estudado a título de
coisa porque, como sujeito, não pode, permanecendo
sujeito, ficar mudo; consequentemente, o conhecimento
que se tem dele só pode ser dialógico (Bakhtin,
2000[1974], p. 403).
Este capítulo visa apresentar dados selecionados dos quatro sujeitos desta pesquisa –
BM, BS, GB e TR – que se caracterizam, predominantemente, por seu estilo telegráfico,
apesar de suas singularidades, dentre as quais citamos: o grau de severidade na produção, as
dificuldades com as palavras funcionais e morfemas flexionais e, principalmente, as
estratégias alternativas de significação das quais lançam mão para driblar suas dificuldades,
sendo que todos esses fatores influenciam as mudanças observadas longitudinalmente, em
cada um dos casos.
As análises foram orientadas pelo paradigma microgenético, descrito no capítulo 4,
articulando os pressupostos teórico-metodológicos da neurolinguística enunciativo-discursiva
e da gramática funcional, apresentados nos capítulos 1 e 2. Além disso, recorremos às
categorias bakhtinianas nas descrições e para as explicações dos fenômenos, e discutimos as
hipóteses sobre a produção do estilo telegráfico com respaldo nos trabalhos de Luria,
Vygotsky, Leontiev e Akhutina, tendo esta se ocupado exatamente da produção da “fala
telegráfica” nas afasias.
Esclarecemos que algumas das análises serão feitas após a apresentação de um ou mais
dados, de acordo com os argumentos que buscamos defender. Após as análises de dados de
cada sujeito, faremos uma síntese dos principais pontos observados.
92
1. Dados do sujeito BM
53
Este dado foi transcrito e primeiramente analisado por Brandão (2016), em sua pesquisa de mestrado
intitulada: O papel do outro na estruturação da fala na afasia. BM frequentava as reuniões Grupo 2 do Centro
de Convivência de Afásicos que ocorrem semanalmente às sextas-feiras e é coordenado pela Profa. Dra. Maria
Irma Hadler Coudry. Em junho de 2016, quando soube do Grupo 3 do CCA, o sujeito começou a participar
também das nossas reuniões. Nos remetemos a este dado para ilustrar como se organizava a fala de BM,
caracterizada como telegráfica, mas que já à época, apresentava algumas palavras funcionais na formulação dos
enunciados. A transcrição do dado para esta dissertação foi adaptada por mim, a partir do trabalho de Brandão
(2016).
93
Referindo-se à charge. BM já
BM, qual que você leu aí? tinha discutido a charge com Idb
01 Idb Você vai ter que descrever, como você fez e, neste momento, compartilhava
pra mim. sua interpretação com o Grupo 2
do CCA.
É::... Nordeste... falta de água... TUDO!
Aí... aí... é:: da urna... da urna... dois A palavra tudo é pronunciada com
02 BM
moço, um nordeste e um jeep. ênfase.
palavras. O falante se apoia nos aspectos sintáticos de cada palavra e isso o leva a produzir
enunciados reduzidos e cheios de elipses.
Para a autora, tanto a sintaxe interna quanto a sintaxe semântica, apesar de terem
características específicas, fazem parte de um mesmo processo; estão intimamente
relacionadas. A partir das hipóteses formuladas por Akhutina, é possível apontar que BM
ainda tem bastante dificuldade para transformar essas estruturas “internas” em “sintaxe
convencional”, esta formulada para o outro, produzindo as estruturas e significados que
viabilizam a comunicação.
Passemos a outros dados de BM, no qual já notamos grande mudança com relação
a essa capacidade comunicativa, apontando também para as dificuldades que permanecem. O
intervalo de produção deste dado em relação aos próximos foi de um ano.
Era a segunda vez que BM participava de uma sessão coletiva do Grupo 3 do CCA,
em 03/05/2016. A interlocutora Imp pediu para que ele se apresentasse novamente para o
grupo, porque havia pessoas que ainda não o conheciam. Pediu, também, para que explicasse
que ele já participava das atividades desenvolvidas pelo Grupo 2 do CCA.
– “ah:: é::?”
17 BM – “é:: terça-feira” BM passa a reproduzir
– “No CCA também? Como enunciados em discurso direto,
assim, cara?” Não sabia do... remetendo às falas de um
do... outro... dos outros interlocutor
grupos.
Então, quem que coordena o grupo que
18 Imp
você vai?
19 BM A Maza, Maza.
1.2.2. Romaneio
Este dado também foi produzido em uma sessão coletiva do CCA, em 21/03/2017,
quase um ano depois que BM passou a frequentar as sessões do Grupo 3. Nessa ocasião, a
interlocutora Irn pediu a todos os afásicos para se apresentarem para as novas estagiárias, que
ainda não os conheciam. Vejamos, agora, um de nossos mais belos e intrigantes dados,
quando BM se apresenta e conta ao grupo uma novidade muito relevante para ele.
54
A sigla visa garantir o anonimato do afásico, como foi acordado no TCLE aprovado pelo CEP-UNICAMP.
96
A interlocutora dá um acabamento
05 Imp Mora, né?
para o enunciado “em Valinhos”.
06 BM Mora em Valinhos... Mas Não sei.
Nós não perguntamos a idade da SS porque
é uma indelicadeza perguntar a idade de Irn disse isso em tom de
07 Irn
mulher, mas você pode falar quantos anos brincadeira.
você tem.
Vinte e oito... faz tido o AVC fa::z cinco
08 BM
anos. Fazem.
É FAZ mesmo. Está certo do jeito que você
falou mesmo. “Faz cinco anos”. Não é
09 Irn “fazem”. É “faz” mesmo. Está certo! Você
falou e se corrigiu, mas é “faz”.
Faz cinco anos já?
[Balança a cabeça positivamente] Sim!...
10 BM
Que mais?
Você tava em outro Grupo, né? Tá indo
11 Irn
ainda no Grupo da Maza, na sexta-feira?
12 BM Sim!
13 Irn Tá indo de vez em quando?
Não. A mesma coisa. Ah! Vou trabalhar
agora. Então... seguinte é:: no:: no
14 BM
INSS... eu vou trabalhar. Mas é::.
por BS.
Não lembrou. Tipo falei: “ca::ra, não sei!”
34 BM
Tipo não mais.
Por que isso, BM? Porque eles acham que a
afasia é só um problema de fala, né? E que
não interfere com as outras coisas. Então
assim eles não têm muito conhecimento de
35 Irn fato das dificuldades das pessoas. Não é só
a questão de falar. Você mesmo está
dizendo que não está conseguindo fazer o
que você fazia antes. Ou você não
conseguia fazer?
36 BM Não, sim... normal.
37 Irn Mas a médica não entendeu isso!
Não, não. Aí... aí falei “puta! Não vou
lembrar mesmo!” Então tá. Fazer o seguinte
é:: os curso, muitos cursos é: muitos cursos,
38 BM
praticando de logística até conceito de
logística, excel, word, power point, outlook
De tudo assim.
Você pode usar esse tempo fazendo esse
39 Irn
cursos?
Não! [faz gesto de continuidade com a
40 BM
mão]
41 Imp Cê tá fazendo?
42 BM Tá fazendo, tá fazendo!
43 Irn Entendi. A faculdade, como está a situação?
44 BM É::... ainda tá trancado ainda.
Fala para todo mundo que não te conhece o
45 Irn
que você fazia... onde que você tava.
Eu fazia é:: administração e faltava seis
46 BM
meses, só. Faltava o curso.
47 Imp Pra terminar, né?
48 BM Terminar.
E você tem contato com o pessoal da tua
49 Irn
turma?
50 BM Sim!
Mas, e daí você está esperando para
51 Imp
começar, para voltar para empresa?
Vou... Vou cinco de abril retorno,
retorno... e agora concluiu de tudo...
52 BM
então acho que vou... acho que... tomara!
– “ah:: é::?”
– “é:: terça-feira”
– “No CCA também? Como
assim, cara? Não sabia do...
do... outro... dos outros
grupos.
Ressaltamos que o primeiro diálogo (dado 1.2.1) transcorreu como uma entrevista
semi-estruturada e não como uma narrativa livre, o que nos leva a interpretar que a relativa
facilidade de BM no processo dialógico se deve muito às ações colaborativas de seus
parceiros da comunicação verbal (cf. Bakhtin); em outras palavras, aos acabamentos que
foram sendo dados aos enunciados, durante a interação.
No segundo dado (1.2.2) podemos perceber a dificuldade marcante de BM para
selecionar os morfemas de tempo e aspecto para os verbos que desejava produzir.
Acreditamos que esta dificuldade com a seleção de morfemas flexionais – para produzir a
sintaxe convencional – levou BM a se apoiar nos enunciados produzidos por seus
interlocutores, como observamos nos turnos 03/04, 05/06, 31/32, 33/34, 41/42 e 47/48, que
reproduzimos em seguida, por julgarmos relevantes para nossas análises e também porque
dizem respeito ao trabalho do sujeito sobre os recursos da língua (Franchi, 1976; Bakhtin,
2010), ao longo do processo dialógico:
41 Imp Cê tá fazendo?
42 BM Tá fazendo, tá fazendo!
55
A sigla visa garantir o anonimato do afásico, como foi acordado no TCLE aprovado pelo CEP-UNICAMP.
100
Turno 14: BM Não. A mesma coisa. Ah! Vou trabalhar agora. Então... seguinte é:: no:: no
INSS... eu vou trabalhar. Mas é::.
56
Uma das características da narrativa é o desejo do sujeito de contar sobre algo que lhe seja relevante. Notamos
que a partir do desejo de BM contar que voltaria ao trabalho, a narrativa toma outros rumos, tanto por parte de
BM, quanto de seus interlocutores. Para mais detalhes sobre as narrativas nas afasias e a retomada de trabalhos
de Labov e Hanke a esse respeito, ver Cazarotti-Pacheco (2012).
101
Pudemos, enfim, depreender que ele teria que voltar ao INSS em 5 de abril e não ao
trabalho. BS também interage com BM e lhe pergunta se em 5 de abril voltará para a empresa
e ele nega, afirmando que nessa data vai ao INSS. Se o INSS liberar porque está tudo ok, BM
volta ao trabalho.
102
Vamos, em seguida, ao último dado de BS, que emergiu em uma situação dialógica
com uma atividade metalinguística. Trata-se de um dado em contexto de trabalho
experimental com Its.
57
Nota-se, portanto, que foi produzida um ano antes do dado 1.2.2 (Romaneio). Como trata-se de uma atividade
de cunho metalinguístico, optamos por deixar este dado para o final.
103
completar o provérbio.
16 BM Leite derramado.
17 Its Chorar.
18 BM Chorar leite derramado.
Pelo leite derramado... O que isso
29 Its Its fala o provérbio completo
significa? Quando você usa isso?
20 BM BM não consegue responder
Você usa porque é um cara tranquilão.
21 Its
Dá um exemplo de uma situação.
Leite derramado... puta! Nossa faz
22 BM
tempo cara...
Quê que significa quando alguém fala
23 Its assim pra você... Ah, não adianta chorar
pelo leite derramado!
Não! ... Ah, tá! É:: tido o AVC, mas
24 BM
vambora, vamo... vamo seguir a frente.
25 Its Um exemplo muito bom!
26 BM Muito bom, né?!
Não adianta chorar pelo leite derramado,
27 Its
exatamente!
Na expressão não adianta chorar pelo leite derramado, a preposição é o termo que
estabelece a relação de sentido entre os sintagmas [não adianta chorar] e [leite derramado].
BM parece ter dificuldades para apreender o sentido da expressão, o todo do enunciado (cf.
Bakhtin), muito provavelmente tanto em função da falta desse elemento funcional quanto por
estar operando com os sentidos isolados que compõem a metáfora, em especial porque a
expressão está representada literalmente na figura. Essa dificuldade pode ser melhor
observada nos turnos 02, 17 e 23, quando BM reduz a construção da expressão ao sintagma
nominal [leite derramado]. No turno 19 [chorar leite derramado] é quando BM mais se
aproxima da expressão cristalizada, ainda que não utilize a preposição. Sua dificuldade com o
todo do enunciado foi resolvida apenas quando sua interlocutora disse a expressão completa
(no turno 24), incluindo a preposição, e dando a BM um contexto para seu uso. Até esse
momento, BM parecia estar operando apenas com os sentidos literais das palavras
isoladamente.
Nas formulações de Akhutina (2003), BM estaria ainda no nível da estrutura
sintático- semântica e, portanto, operando com os seus sentidos próprios e subjetivos (sense).
No entanto, com o apoio de Its, BM consegue se engajar no processo de ida e volta entre o
pensamento e a linguagem, ou seja, da intenção à produção do enunciado convencional,
embora este apresente características que mais se aproximam da estrutura interna sintático-
semântica, formulada pragmaticamente. BM conseguiu apreender, assim, o significado
104
BM, aparentemente, lida bem com as condições em que se encontra atualmente como
afásico. Com a melhora significativa de aspectos motores relacionados ao seu quadro,
voltou a dirigir e, mais recentemente, retornou ao trabalho. Continua também atuando
como modelo fotográfico. Chama a atenção a foto que ele ainda usa no seu perfil do
whatsapp, tocando baixo. Essa questão impacta os sujeitos de diferentes maneiras,
podendo tanto estar relacionada à tentativa de BM em preservar sua face, como se
105
2. Dados do sujeito BS
Irmã de BS completa a
07 Iib Levanto... sentença com o verbo
“levanto”.
09 BS Eu levantou...
10 Irn Eu LEVANTO... Irn produz o enunciado.
Eu levanto... ah... oito, oito e meia. Aí
11 BS
depois eu vou... é::... tomá... é::... ai...
12 Irn Você tinha falado antes “banho”.
13 BS Não, não!
107
05 Irn Fala pra mim assim... usando verbo. Irn dá o prompting sintático para
Tenta falar pra mim a frase. Não só “Eu levanto”
oito e pouco... Como é a sua rotina?
Fala pra mim com os verbos. Assim:
Eu...
58
Notas de orientação e de supervisão do estágio do CCA, na disciplina FN 461, conduzida pela Profa. Rosana
Novaes Pinto.
59
O trecho da notícia era “Várias atrações internacionais do Rock in Rio aproveitam a viagem ao Brasil para
fazer shows em outras cidades. Katy Perry, Queen, Slipknot, System of a Down, Rod Stewart e Faith no More
estão entre os músicos que também passam por mais locais do Brasil”.
60
Essa imagem é o print que demos na tela do site de notícias da G1.com com a finalidade de desenvolvermos a
atividade de leitura com o sujeito BS. Essa matéria está disponível em: http://g1.globo.com/musica/rock-in-
rio/2015/noticia/2015/09/rock-rio-queen-katy-perry-e-outros-tocam-no-brasil-fora-do-festival.html e foi
acessada em: 02/06/16 às 13:00h
109
61
Neste dado os enunciados sublinhados referem-se àqueles que foram lidos por BS.
110
Este dado nos revela interessantes aspectos sobre o processo de combinação e seleção
das palavras funcionais por BS. Grande parte do diálogo gira em torno da identificação e dos
significados das preposições “do” e “no”, logo no primeiro turno. A substituição de “do” por
“no” desencadeia uma discussão não só com BS, mas também entre os
interlocutores/pesquisadores linguistas. BS estava correto ao afirmar que naquele contexto
não havia diferença entre os sentidos produzidos pelas preposições e participa ativamente da
111
interação, como podemos perceber, principalmente, no turno 29, quando confirma o que é dito
por Iga: “Nessa sentença não tem diferença” (turno 28). BS diz: É:: não tem.
Sua maior dificuldade foi “ler” a preposição “do”, sempre substituindo por “no”, assim
como também substituiu a palavra “locais” por “cidades”. Como vimos no capítulo 2, quando
apresentamos alguns pressupostos da Gramática Funcional, essas preposições estão dentre as
mais gramaticalizadas, o que significa, por outro lado, que são menos distintivas
semanticamente. O sujeito BS compreende bem os exemplos dados por Idb, Iga e Iar e
confirma que em sua “cabeça”, ele sabe a distinção, mas que o “falar é outra coisa” (turno
37).
Nos parece possível articular as dificuldades de BS aos postulados propostos por
Luria, Leontiev, Vygotsky e Akhutina, no que diz respeito ao fato de a estrutura sintático-
semântica estar relativamente preservada, o que pode indicar um problema na passagem da
linguagem interna para a externa, da estruturação sintático-semântica para a sintaxe
convencional, externa e compartilhada.
O que é comum no agramatismo – ou mais especificamente na produção da fala
telegráfica – é que as palavras funcionais não sejam produzidas. BS, entretanto, já nesta etapa
de sua reabilitação, produz muitas preposições e morfemas flexionais, revelando que se trata
mais de uma dificuldade de seleção. Conforme já foi apontado, no capítulo 02, todas as
estruturas gramaticais são utilizadas pelo falante visando produzir significação e, por isso, as
palavras funcionais sempre estabelecerão relações semântico-referenciais nos enunciados.
Também vale notar que, apesar de não se constituírem como enunciados de estilo
telegráfico, há uma visível relação entre a dificuldade de encontrar palavras e as dificuldades
com a estruturação sintática, como observamos nos turnos 41, 42 e 43, quando BS não
consegue selecionar o verbo indicar [por que “no”..., digamos é pra pra:: pra], ou seja, quando
BS esbarra na falta da palavra, acaba se apoiando na seleção feita por sua interlocutora. Ao
112
Este dado nos mostra que BS, o tempo todo, para enfrentar suas dificuldades, atua
metalinguisticamente sobre seus próprios enunciados. Essa constatação leva Idb, no turno
final, concluir: Oh, já é um linguista, gente?
Interessante ainda mencionar que BS, no turno 24, em tom de brincadeira, também diz
que nós linguistas é que víamos a diferença entre as preposições, não ele, que achava que
tanto “do” quanto “no” produziam o mesmo sentido no enunciado que havia lido.
Voltando a um turno de BS em um dado de BM (dado 1.2.2.), vemos que essa
característica de BS em refletir metalinguisticamente sobre seus enunciados também ocorre
sobre os enunciados dos outros sujeitos.
62
Oliveira (2015) trata dessas questões em sua tese de doutorado, quando discute a relação linguagem-memória,
numa perspectiva sócio-histórico-cultural.
113
63
O nome da esposa de FS foi modificado para preservar sua identidade.
114
04 BS A:: minha mãe... Diz ela que falou... Não! Que... que falou não...
É:: falou não. [faz gesto circular, com a mão apontando para
frente] O futuro do falou... Que... que...
Assim como nos dados anteriores, vemos que há uma intensa atividade epi- e
metalinguística no curso da produção de seu enunciado. Esse processo, como vimos,
caracteriza-se pelo vai e volta do pensamento à linguagem externa, passando pelas fases
intermediárias de organização da estrutura sintático-semântica do seu querer-dizer.
No mesmo enunciado, ao fazer o gesto circular, com a mão apontando para frente, BS
compõe a significação enquanto produz a expressão metalinguística: “O futuro do falou”.
Vemos que BS não decompõe a estrutura lexical do verbo “falou” para produzir, por exemplo,
“o futuro de falar”. Sua dificuldade com os morfemas flexionais fica evidente, pois ele usa a
mesma forma neste enunciado o tempo todo. Ao solicitar ajuda de sua interlocutora, mantém
a forma que lhe veio à tona e explicita qual o tempo verbal que gostaria de usar, já que sua
mãe ainda falaria com a esposa de FS. BS só consegue reorganizar seu enunciado quando se
apoiou na construção e na reflexão metalinguística de sua interlocutora, no turno 05:
ele por meio das desinências, considerados em atos de enunciação – o “aqui e agora” da
enunciação em curso.
Vimos que tanto Neves (1994), quanto Camacho (1994) enfatizam a natureza
intrínseca da relação entre forma e significado. Dizer que um sistema é funcional significa que
os sujeitos dele se utilizam para produzir significação. Considerando que BS não é, de fato,
um linguista, vemos que ele adequadamente busca traduzir a “nuvem de sentido” em sintaxe
convencional e não desiste de chegar ao seu querer-dizer, mesmo com todo o esforço
demandado, por sua condição de sujeito afásico. Esse esforço nos remete também à noção de
“trabalho” que respalda a neurolinguística enunciativo-discursiva, que concebe a linguagem
como o resultado do trabalho do falante sobre/com/na linguagem.
Isso nos faz lembrar das primeiras descrições do agramatismo nas quais os autores reportam
uma fala laboriosa e hesitativa. Neste dado, é como se BS estivesse mostrando, em câmera-
lenta (Coudry, 1988 [1986]), a construção de seu enunciado, passo-a-passo, e as várias etapas
de sua elaboração: “Você... não é:... Você não... Você pode não... não... não...”. Novamente
pede tempo antes de completar o enunciado “levantar da cama”.
Usa o discurso direto para dizer o que aconselhou para sua mãe – não fazer muito
esforço físico, porque senão sentiria dor. Novamente, em estrutura de discurso direto, refere-
se ao enunciado da mãe, como se ela tivesse lhe respondido “Não, eu tô bem... tô bem... Tá
tudo bem”.
Esses fatos evidenciam que BS ainda tem dificuldades de organização sintática,
embora já não produza enunciados tipicamente de estilo telegráfico. Na maioria dos casos, ele
consegue reelaborar e reorganizar sua fala, tanto quando se depara com a dificuldade de
seleção lexical, quanto com as dificuldades com as palavras funcionais – principalmente a
morfologia flexional.
Isso fica claro no turno 25:
Entretanto, vemos que na maioria dos seus turnos (12, 19, 21, 32), BS produz
enunciados completos, sintaticamente bem organizados, o que demonstra que ele vem
desenvolvendo de forma bastante adequada as atividades linguístico-discursivas, embora
muitas vezes se utilize de estratégias que visam mascarar suas dificuldades perante seus
interlocutores, como quando diz a expressão “digamos”, objetivando também ganhar tempo
para reorganizar seus enunciados.
Vale destacar outra questão interessante que observamos nos dados e que não estão
diretamente relacionados à produção de enunciados de estilo telegráfico. Novamente BS se
refere ao fato de que sua “cabeça” está melhorando e que para “pensar” precisa segurar um
cigarro. Para ele, o vício não é a nicotina, mas o hábito de segurar o cigarro enquanto pensa.
Ou seja, é mais uma forma de expressar que precisa de mais tempo para desenvolver as
atividades linguístico-cognitivas complexas. Isso nos faz voltar à hipótese de Kolk et al.
(1985) acerca da fala telegráfica como uma adaptação do sujeito com dificuldades sintáticas
(agramatismo). Para os autores, a produção da fala telegráfica se relaciona com essa
capacidade dos sujeitos produzirem os enunciados sem as palavras funcionais que
119
demandariam muito tempo para serem produzidas. Talvez o caso de BS possa corroborar essa
hipótese de Kolk et al. Entretanto, veremos que isso não pode ser generalizado para todos os
sujeitos. Os próximos dois casos que veremos – de TR e GB – nos mostram que esta visão, de
fato, pode ser considerada “simplista”, uma vez que mesmo se tivessem todo o tempo
disponível, não conseguiriam produzir as palavras funcionais e morfemas flexionais.
A partir do modelo proposto por Akhutina, esse episódio evidencia que as estruturas
elípticas são resultantes de uma dificuldade de operar com a sintaxe convencional da língua.
Ou seja, o sujeito consegue transpor os níveis da sintaxe interna e da sintaxe-semântica, mas,
no entanto, a sua maior dificuldade está na expansão sintática – na direção de uma sintaxe
convencional. Segundo Akhutina (2003), um caso como o de BS, em sua fase atual,
corresponderia ao nível menos severo de agramatismo.
No início do quadro, logo após o AVC, BS não produzia palavras funcionais e tinha
evidente dificuldade tanto com a produção do verbo, como com as flexões verbais.
Considerando sua condição atual, observamos que, apesar de ainda ter relativa
dificuldade com a estruturação sintática, BS atua epi- e metalinguisticamente o tempo
todo, usando adequadamente palavras funcionais e a morfologia flexional adequada,
apesar de produzir os enunciados mais devagar. Ainda faz algumas parafasias na fala,
envolvendo palavras funcionais, assim como na leitura produz paralexias.
Trabalha o tempo todo sobre sua produção, voltando ao seu dizer e reformulando-o.
BS é um sujeito afásico que reflete muito sobre as dificuldades linguísticas que lhe
foram impostas pela afasia.
Frequentemente fala sobre “o que acontece na sua cabeça”, quando se depara com
alguma dificuldade e como busca resolver o problema. Refere-se sempre à sua
melhora no processo e a atribui ao fato de participar do CCA.
BS tem se mostrado muito colaborativo com os outros sujeitos afásicos e sempre que
tem oportunidade fornece dicas sobre como driblar as dificuldades com a estruturação
dos enunciados.
3. Dados do sujeito TR
Apresentaremos, a seguir, quatro dados de TR. Os dados transcritos seguem a ordem
cronológica de produção, sendo os dois primeiros resultantes de episódios dialógicos em
sessões do CCA – coletiva e individual – e os dois últimos ao longo do desenvolvimento de
atividades de caráter metalinguístico, descritas no capítulo 4.
121
64
Profa. Dra. Ivone Panhoca, que desenvolveu pós-doutorado no IEL, e que havia conhecido TR na clínica
fonoaudiológica da PUCC, onde lecionava.
65
Esta transcrição foi adaptada da dissertação de Mestrado de Nandin (2013), que buscou investigar a relevância
dos enunciados não-verbais para o alcance do “querer-dizer”, intitulada Possibilidades narrativas de sujeitos
com afasias severas de produção: o papel dos signos não-verbais para alcançar o “querer-dizer” (2013, p. 48-
50), que pode ser acessado em http://repositorio.unicamp.br/
122
positivamente]
28 Iip Âhh? No meu tempo não tinha!
29 Irn Não tinha no seu tempo!
30 TR [continua gargalhando e aponta para Iip]
31 Iip No meu tempo ela não tinha namorado. Pergunta olhando para TR.
Tem um genro, agora?
32 TR Isso! Um, dois.
33 Irn Mas não tem... Olhando para TR.
34 TR Não, não [faz gesto negativo com o
indicador]
35 Irn Não... Eu ia falar se ia casar, mas não.
Namorado, tá. E ela trabalha?
36 TR Isso. [acena positivamente com a
cabeça]
37 Irn E ela estuda também ou só trabalha?
38 TR [acena com a cabeça positivamente]
Não, não! Tudo, tudo!
39 Irn Estuda também?
40 TR Isso! [acena positivamente com a
cabeça]
41 Irn E o seu marido, o quê ele faz?
42 TR Ai, ai... [olha para Iip].
43 Irn Óh, não olha para a Iip não, que a Iip
sabe tudo da sua vida; nós é que não
sabemos.
44 TR Iip [gargalha]
45 Irn O quê que ele faz?
46 Iip Deixa eu lembrar o que ele faz...
47 TR Osvaldo... [olha para Iip e começa a
elevar a mão esquerda].
48 Iip Quê que ele faz?
49 Irn Quê que ele faz? Dá uma pista pra
gente, quê ele faz?
50 TR Ai, ai [continua olhando para Iip]
51 Iip Ele tá aposentado?
52 TR Isso, isso [acena positivamente com a
cabeça].
53 Irn Ah, é aposentado?
54 TR Isso, isso [aponta para Iip].
55 Iip Então fala... a-po-sen-ta-do. Fala silabando para TR
56 TR [[TA-DO
57 Irn E onde você conheceu Iip?
58 TR [olha para Iip]
59 Iip Na...
60 TR Priscila, Priscila.
61 Irn Priscila?
62 Iip Foi a Priscila, mas como que chama o
lugar que você ia?
63 Irn Mas o quê é Priscila? Tem alguma coisa
a ver?
64 Iip [faz sinal de positivo para Irn].
65 Irn Tem?
66 Iip Vai, o que é Priscila? [olha para TR e
aponta para Irn].
67 Irn O que é Priscila?
123
Neste dado, primeiramente, gostaríamos de destacar que TR, a todo momento, deu
acabamento adequado a todos os enunciados de suas interlocutoras, o que demonstra uma
compreensão relativamente preservada, apesar da severidade na produção, e que permite o
desenrolar do processo dialógico.
Seus enunciados são bastante telegráficos e caracterizam-se, sobretudo, pela produção
de algumas estereotipias: “isso... isso” e “um, dois... obrigada”, ou “tudo... tudo...”. Um
exemplo típico de seu enunciado é o que se encontra no turno 32: “Isso! Um, dois!”; outro é
o turno 38: “Não, não... Tudo, tudo! As palavras produzidas são predominantemente nomes
próprios, relativos às pessoas de sua convivência – o nome do marido, da filha, do genro e da
estagiária que trabalhava com ela no momento.
124
23 TR Marcelo... homem.
Vale destacar, entretanto, que na maioria dos turnos, TR produz enunciados não-
verbais, seja para concordar ou discordar de suas interlocutoras. Quando Irn e Iip afirmavam
algo relativo ao seu querer-dizer, ela logo diz: “isso”, acenando a cabeça positivamente –
recurso do qual lança mão até hoje de forma muito produtiva. Do contrário, produz “não”, ou
“não... não”.
Vemos, neste primeiro dado, que alguns gestos de TR dão pistas sobre o que ela
quer/precisa dizer. Entretanto, ela mais acena a cabeça concordando ou olha para Iip, que a
conhecia, solicitando auxílio para responder a Irn. Apenas no turno 86 temos um enunciado
não-verbal que estabelece a significação pretendida por ela: [Sorri e aponta para as pesquisadoras
bem na sua frente], para afirmar que Priscila era uma estagiária do ambulatório de fonoaudiologia.
É importante destacar que as produções de TR – muitas delas não-verbais – só podem
ser consideradas “enunciados” em uma perspectiva enunciativa. Da mesma forma,
compreender os enunciados monolexemáticos de TR como estruturas significativas é coerente
com as concepções da Gramática Funcional, já que esta considera que a principal função da
língua é a de estabelecer comunicação e que, para atingir o querer-dizer, o falante pode
manipular recursos maiores ou menores que a sentença (Camacho, 2006).
O modo como as significações foram construídas, no episódio acima descrito, dá
visibilidade, também, para o fato de que o sistema sintático da língua não pode ser separado
de características semânticas e, primordialmente, pragmáticas.
A respeito da dificuldade com as questões sintáticas, este dado permite
compreendermos uma fase do processo de elaboração de um enunciado. TR parece estar
operando adequadamente com os recursos da sintaxe interna ou sintaxe pragmática
(Akhutina, 2003), com sujeitos e predicados psicológicos. Ao se fixar em um elemento
lexical (em geral um nome), TR consegue chamar a atenção de seus interlocutores para o que
ela considera novo. Nas formulações de Vygotsky e, posteriormente, de Akhutina, TR estaria
lidando com a sintaxe dos sentidos subjetivos. O que TR traz à tona em sintaxe convencional
ainda se assemelha ao coágulo de sentidos que precisa ser transformado em significação
externa, por meio de estruturas sintáticas convencionais da língua. Nesta fase, entretanto, TR
ainda conta substancialmente com a ajuda de suas interlocutoras para que a ajudem a externar
os sentidos pretendidos.
125
Este dado demonstra já uma grande diferença com relação aos enunciados de TR no
dado anterior – tanto verbais, quanto não verbais. Sem dúvida, são os enunciados não-verbais
que mais auxiliam TR para que chegue em seu querer-dizer.
O tema desenvolvido com TR, sobre cuidar da saúde, veio à tona porque nesse dia,
durante a sessão coletiva, o sujeito BS contou ao grupo que um de seus amigos, muito jovem,
havia falecido em decorrência de um infarto. Iar chama a atenção de TR para a importância de
se manter os exames em dia, ter uma alimentação saudável etc, quando ela começa a narrar
uma situação que havia acontecido há mais de um ano.
TR produz um enunciado composto por signos verbais e um signo não-verbal no turno
04 [Oh! Hoje, hoje, hoje... homem, homem [faz sinal mostrando os cabelos balançando]]
para chamar a atenção sobre quem ela desejava falar. Ao perceber que não havia sido
compreendida, TR reformula seu enunciado, apontando para a sala onde acontecem as sessões
coletivas do grupo, com o intuito de reforçar a ideia de que ela estava falando sobre alguém
que estava presente na sessão daquele dia. Quando ela aponta para a sala de reuniões e faz
sinal com as mãos mostrando os cabelos balançando, foi possível compreender que TR estava
se referindo ao sujeito BS, que é homem e tem os cabelos compridos. TR começou a contar
sobre o que aconteceu quando o sujeito BS foi ao grupo pela primeira vez.
Na primeira vez em que foi ao CCA, o jovem afásico BS entrou na sala acompanhado
de seus pais66. TR então contou – usando apenas palavras de classes abertas – que ficou
bastante surpresa ao perceber que um rapaz tão jovem estava afásico em decorrência de um
AVC. BS sofreu um AVC com 24 anos de idade, assim como BM. TR diz, no turno 23
[Mamãe? Papai? Não? [faz gesto que demonstra que ela está indignada, quando põe as
66
Sempre que um novo integrante chega ao nosso grupo no CCA, fazermos uma interação com o sujeito e seus
acompanhantes, com o objetivo de apresentá-lo ao grupo, com a eventual ajuda de seu(s) acompanhantes(s).
127
mãos na cabeça] homem, homem! Ah, Deus! Tudo, tudo... homem, homem. Onde? Onde?
Olha!]
Essas estruturas gramaticalmente fragmentadas, nesse caso de apenas três palavras e
sem a produção de palavras funcionais, constituem-se como enunciados inteiros. TR, além de
se utilizar do contexto, do tópico discursivo e de toda a situação pragmática que estavam
imbricadas nesse episódio dialógico, também se apoia nos enunciados de Iar para ir
estabelecendo as relações de sentido. Um aspecto importante na construção de significação
nos enunciados de estilo telegráfico é a ordem das palavras selecionadas. Vemos que TR
combina, de forma competente, os poucos elementos lexicais de seu enunciado em uma
ordem que possibilita que o seu interlocutor a compreenda.
Este dado emergiu de uma atividade desenvolvida em uma sessão individual com TR
em 27/10/2015. A atividade consistia em tentar resolver algumas charadas, com o objetivo de
observar se o sujeito compreendia as palavras funcionais e estabelecia relações entre os
elementos linguísticos presentes. Participaram dessa atividade o interlocutor Iar e duas
estagiárias da Fonoaudiologia. Apresentaremos, a seguir, um quadro com as charadas que
foram feitas, bem como as respostas dadas por TR67.
Resposta
esperada
Resposta
Charada
(TR)
01 ... o céu que não possui estrelas? Céu da boca Céu da boca
02 ... que dá muitas voltas e não sai do lugar? Relógio Ventilador
03 ... que é surdo e mudo, mas conta tudo? Livro Telefone
04 ... que sobe quando a chuva desce? Guarda-chuva Guarda-chuva
05 ... que cai em pé e corre deitado? Chuva/enxurrada chuva
67
Este jogo: “O que é o que é...?” foi descrito no capítulo 4.
128
12 ... que é feito para andar, mas não anda? Rua Moleta
13 ... que caminha sem pé, voa sem asa e pousa onde quiser? Pensamento TR não conseguiu
responder
14 ... que fica cheio durante o dia e vazio à noite? Sapato Sapato
Apesar de TR não ter conseguido responder à charada 13, é interessante destacar que
ela conseguiu compreender todas as perguntas feitas. Em muitas delas, a relação de sentido é
estabelecida pelo uso de palavras funcionais, como a charada 12 [... que é feito para andar,
mas não anda?], que expressa uma contradição estabelecida pelo uso da preposição para (que
indica finalidade) e a conjunção adversativa mas. Algumas das respostas dadas por TR não
eram as esperadas por nós, pesquisadores, mas foram coerentes para resolver as charadas. As
respostas nos dão pistas sobre as dificuldades (ou não) para TR compreender o papel das
palavras funcionais nos enunciados. É preciso também esclarecer que TR não deu as repostas
diretamente, sem construir os sentidos junto com o interlocutor. Um exemplo do processo
dialógico que levou TR a “matar a charada” é dado em seguida:
Charada 2 “O que é o que é ... que dá muitas voltas e não sai do lugar”?
Este trecho nos mostra como TR lida com sua dificuldade para encontrar palavras. O
intrigante é que ela parece escolher um “caminho mais longo” para chegar ao seu querer-
129
dizer. No turno 06 [Hoje, água não [faz gesto de chuva com a mão]], TR elabora um
enunciado inteiro para falar sobre as condições climáticas, com o objetivo de estabelecer uma
relação entre o clima e o objeto que ela deseja nomear, ao invés de tentar fazer o gesto que
lembre um ventilador.. Aponta para o teto e para o ar condicionado [Não, não... nada, nada!
[aponta para o casaco de frio] e [aponta para o teto] não, não].
Já no turno 10, TR parece mudar de estratégia e tenta estabelecer a relação entre os
objetos (ventilador e ar-condicionado), utilizando-se de recursos não-verbais [Não, não
[aponta para o teto e para o ar condicionado]]. Quando o interlocutor pergunta se ela está
falando sobre o relógio (que é a resposta esperada para a charada), TR enfatiza que não e,
mais uma vez, muda de estratégia. Desta vez, TR faz o gesto para remeter ao objeto que
pretendia nomear: ventilador.
Mais uma vez, chamamos a atenção para a ordem dos elementos selecionados por ela,
que é um aspecto fundamental para a (re)construção de sentidos nos momentos de interação
verbal. TR busca combinar os elementos lexicais, de forma que o interlocutor compreenda o
seu querer-dizer. Ao dizer [Hoje, água não [faz gesto de chuva com a mão]], quando usa a
estrutura de tópico com [Hoje], TR chama a atenção de seus interlocutores para o fato de que
ela está falando daquele dia em específico e que naquele dia não iria chover.
Estes dois episódios, transcritos acima, nos revelam a interdependência dos níveis
sintáticos, assim como propôs Akhutina. TR, para chegar à forma do gerúndio – tanto do
verbo dirigir, quanto do verbo fumar – precisou operar metalinguisticamente sobre os
recursos convencionais da língua.
Essa operação metalinguística pode ser observada entre os turnos 12 e 17 na
transcrição referente à primeira imagem. Quando TR responde a pergunta do interlocutor
usando apenas a palavra carro, carro ela não estava operando no nível da sintaxe
convencional, mas no nível da sintaxe interna, onde uma palavra é saturada de sentido. Em
termos vigotskyanos, como vimos, pode significar uma sentença inteira. No entanto, quando é
dado o prompting [então ele vem di::...], o interlocutor lhe fornece elementos da estrutura da
sintaxe convencional, possibilitando que TR tenha condições de trabalhar
metalinguisticamente para produzir o verbo com a flexão adequada. Nesse mesmo contexto,
podemos perceber também a intrínseca relação da produção de enunciados de estilo
telegráfico com os processos de encontrar palavras. Podemos inferir que TR teve dificuldades
de encontrar a palavra dirigir para responder a pergunta de seu interlocutor e, por isso, usou a
palavra carro. Isso nos parece evidente porque quando Iar, em extensão do prompting
132
Embora TR tenha uma afasia de produção que pode ser considerada bastante severa,
sempre expõe a sua opinião e tenta responder a tudo o que lhe é perguntado.
Dificilmente desiste de dizer o que pretende e quando esbarra em alguma dificuldade
trabalha com todos os recursos que têm disponíveis para driblar e se fazer entender.
Vale salientar que TR é uma senhora muito alegre, que contagia a todos no CCA.
Muitas vezes, entretanto, nos parece que sua gargalhada é mais um recurso para
driblar as dificuldades comunicativas ou o constrangimento de não conseguir
responder a alguém ou explicitar uma ideia ou um ponto-de-vista.
4. Dados do sujeito GB
Apresentaremos, a seguir, três dados da mais jovem afásica que participa das sessões
do grupo 3 do CCA.
GB, como poderá ser observado nos dados, reflete muito sobre as dificuldades
linguísticas que a afasia lhe impôs e vem tentando superá-las, sobretudo com a leitura, com o
principal objetivo de prestar o vestibular novamente e voltar a estudar.
Os dados que agora apresentamos de GB emergiram em situações dialógicas – na
ocasião da entrevista de avaliação e, a partir do desenvolvimento de uma atividade de cunho
metalinguístico – em uma sessão de acompanhamento individual. Esses dados foram
registrados em diário.
Era a primeira vez que GB participava no CCA. Esta sessão de avaliação acontece em
forma de entrevista semiestruturada, que tem a finalidade de conhecermos melhor os sujeitos
afásicos que frequentarão o grupo. Participaram da sessão as pesquisadoras Imp e Iab.
16 GB Aham.
17 Iab Dirigindo?
18 GB Eu... ãh... também .
19 Imp Ah, você também. Vocês dividiram...
você e seu pai.
20 GB [balança a cabeça positivamente]
21 Imp Então, foram você e seu pai dirigindo. Imp dá prompting para Recife.
Então, primeiro vocês para o Ceará e
depois foram para Reci:: ...
22 GB Refife*
23 Imp Ah, então vocês foram viajando
bastante... E daí? Você chegou em
Recife...
24 GB Praia... ãh... Não... ó: ... Mar...
25 Imp Uhum...
26 GB [escreve sábado na folha de papel]
27 Imp Ah, sábado!
28 GB Ahãm... cedo...
29 Imp Uhum...
30 GB Cedo... comeu [faz gesto de comer com
a mão, próximo à boca].
31 Imp Ah, então acordou cedo... comeu... E
daí?
32 GB Ahãm... “Mãe... ã:h... dormir... Tá bom,
né?”
33 Imp É. Acordou cedo... E então voltou pra
cama?
34 GB Tevisão*... ãh ... Por favor, ó:: [faz gesto Imprecisão articulatória para a
de apertar teclas no controle remoto]. palavra televisão.
35 Imp Ligar?
36 GB Ahãm... Pega... Não... [faz gesto como Narrando o momento em que ”se
se estivesse tentando pegar o controle sentiu afásica”. O momento do
remoto]. Boca [com o dedo indicador AVC.
aponta para si] não... [faz gesto de
negação com a mão]. Fala [faz gesto de
negação com a mão].
37 Imp Do nada? Você não sentiu nada?
38 GB Não... ó::... cabeça [faz gesto
sinalizando dor]
39 Imp Dor de cabeça?
40 GB Uhum... Gorda!
41 Imp Você estava com mais peso?
42 GB [balança a cabeça positivamente].
43 Imp Hu::m tá... E aí... Mas, a dor de cabeça
já tava? [faz gesto por cima do ombro
com a mão sinalizando passado] .
44 GB Ahãm... [balança a cabeça
positivamente].
45 Imc Do dia anterior?
46 GB Nossa! Muito!
47 Imc Muito, doeu muito?
48 GB Uhum... [balança a cabeça
positivamente].
49 Imp Você acordou normal... tomou café... e
quando foi ligar a televisão...
136
50 GB Aham.
51 Imp Aí não conseguia mais movimentar?
52 GB [balança a cabeça positivamente]
53 Imp E na verdade foi esse? [pegando no
braço esquerdo de GB] ou foi esse?
[pegando no braço direito de GB].
54 GB Não... ó: [aponta para o braço direito].
55 Imp Esse aqui? [pegando no braço direito de
GB]
56 GB Aham...
57 Imc E daí... você percebeu...
58 GB Aham...
59 Imp Foi só o braço?
60 GB Não... ó:... perna.
61 Imp Perna também... E daí você não
conseguia falar?
62 GB Falar... [oh::::::::::::::] GB tenta reproduzir o som que
ela emitia ao tentar falar .
63 Imp E daí rapidinho vocês foram para o
hospital?
64 GB Aham [balança a cabeça positivamente].
65 Imp E quando chegou lá?
66 GB I::xi... perguntas [faz gesto sinalizando
muitas perguntas]... ó::... Mãe [aponta
para o lado de fora da sala].
67 Imp E eles desconfiaram que você estava
tendo um AVC?
68 GB Não [balança a cabeça negativamente]
69 Imp Aí você foi ficando lá...
70 GB Depois... ãh... Outro... [faz gesto por
cima do ombro sinalizando movimento]
hospital.
71 Imp Ah, você mudou de hospital... Foi pra
um, depois pro outro hospital...
72 GB Aham... Posto!
73 Imp Ah, primeiro foi no posto?
74 GB Aham... [balança a cabeça
positivamente].
75 Imp Mas, no hospital eles perceberam?
76 GB Não... ó::... [faz gesto circular com a
mão indicando demora].
77 Imp E também demorou?
78 GB Aham... [balança a cabeça
positivamente]
79 Imp Mas, você ficou internada?
80 GB Ixi! Aham...
81 Imp Mas, daí... no sábado mesmo?
82 GB Aham...
83 Imp Foram investigando e chegaram a
conclusão do que você tinha?
84 GB Aham... [aponta para a pasta com os
exames e para a cabeça]
85 Imp Fizeram a tomografia? Foi tomografia,
né... que fizeram?
86 GB Aham...
137
36 GB Ahãm... Pega... Não... [faz gesto como Narrando o momento em que “se
se estivesse tentando pegar o controle sentiu afásica”. O momento do
remoto]. Boca [com o dedo indicador AVC.
aponta para si] não... [faz gesto de
negação com a mão]. Fala [faz gesto
de negação com a mão].
Notamos que GB, ao construir suas narrativas, se utiliza dos poucos recursos lexicais
de que dispõe para construir a significação, o que é de extrema importância para que ela possa
atingir seu quer-dizer.
Embora exista compartilhamento de sentidos entre GB e suas interlocutoras Imc e Iab,
a significação só pode ser alcançada pelo fato de que as estruturas sintáticas da língua são
convencionais e, portanto, socioculturalmente compartilhadas.
Dizendo de outra forma, a significação, com recursos lexicais tão escassos quantos os
produzidos por GB entre os turnos 23-44, só pode ser atingida pela existência de um mútuo
compartilhamento e, sobretudo, negociação de sentidos. Podemos perceber que tanto GB
quanto Imp negociam os sentidos, uma dando acabamento ao enunciado da outra e essa
atividade conjunta estrutura, inclusive, os enunciados de GB – tanto o que ela produz, quando
o que ela omite já que espera que sua interlocutora preencha as lacunas de seus enunciados.
138
Este dado é uma anotação de diário. Antes de começar a sessão coletiva do CCA,
estava conversando com GB e sua mãe sobre as dificuldades de linguagem nas afasias. GB,
então, me contou que estava fazendo Kumon para trabalhar a sua dificuldade com o processo
de leitura e escrita. Quando olhei os livros, percebi que tinha várias palavras circuladas.
Perguntei o porquê daquelas palavras estarem destacadas e GB respondeu que havia circulado
as palavras que ela não conseguia entender. Disse também que as figuras a ajudavam a
compreender melhor o que estava escrito. A seguir, a anotação desse episódio registrada em
diário.
139
68
As palavras em itálico são as palavras lidas por GB.
141
69
Todos os nomes próprios foram tocados para garantia de sigilo dos sujeitos.
142
A partir desses dois dados (4.2 e 4.3), percebemos a evidente dificuldade de GB com
as palavras funcionais, sobretudo com as preposições. Aqui já vale destacar que as
preposições que GB apresenta maiores dificuldades são aquelas que Castilho (2010) e Ilari, et
al (2008; 2015) consideram as mais gramaticalizadas e portadoras de valores semânticos mais
complexos. Devido ao processo de gramaticalização, essas preposições dependem mais do
contexto e das relações sintáticas que dos enunciados.
GB, ao tentar ler e compreender o enunciado “filho de peixe”, parece estar operando
ainda no nível da sintaxe interna. Apesar de sentidos isolados – tanto de filho quanto de peixe
– GB parecia não estabelecer uma relação sintática e, consequentemente, de sentidos entre os
termos70. GB repetiu a preposição “de”, logo após ter sido lida a ela. Entretanto, quando lhe
foi solicitado para ler novamente o enunciado, GB continuou não estabelecendo relação entre
as palavras. Essa dificuldade pode ser observada nos turnos que retomamos a seguir:
70
Da mesma forma que ocorreu com BM para interpretar o enunciado metafórico: chorar pelo leite derramado.
143
palavra peixe]
18 GB Peixe [balança a cabeça positivamente].
19 Iar Aqui é::? [apontando para a palavra
“filho”]. Fi::
20 GB [[-lho.
21 Iar E aqui?
22 GB [Balança a cabeça negativamente]
23 Iar /d/ Prompting fonético para “de”
24 GB De
25 Iar Então vamos ler...
26 GB Filho... [balança cabeça negativamente]
27 Iar Não vai?
28 GB [Balança a cabeça negativamente].
GB é uma jovem bastante tímida e, na maioria das vezes, prefere não utilizar
gestos como recurso alternativo. Prefere, sempre que possível, dar alguma pista
escrita. Quando está sem um papel e lápis, ela faz o gesto da escrita da palavra
no ar ou então sobre a mesa.
GB se apoia muito nos enunciados dos seus interlocutores.
Como ela produz mais palavras de classe aberta e as ordena adequadamente,
sem dificuldades articulatórias, é a que produz enunciados com características
mais telegráficas dentre todos os sujeitos desta pesquisa.
Na maioria das vezes, GB consegue compreender o que está sendo dito dando
respostas adequadas àquilo que lhe foi perguntado.
GB teve uma lesão têmporo-fronto-parietal à esquerda e não possui
dificuldades articulatórias. Provavelmente seu caso seja muito semelhante ao
de BM. As análises nos levam a pensar que também ela esteja ainda operando
no nível da sintaxe semântica, externalizando seus enunciados nas formas
internas, com dificuldade para organizar as estruturas sintáticas convencionais,
para a comunicação. O caso se assemelha ao que Akhutina designa como
“segundo tipo de afasia dinâmica”, baseada em Luria.
146
Considerações Finais:
“Eu tô aqui!”
71
Trecho de uma interação entre os sujeitos BM, BS e Imp em uma sessão coletiva do CCA no dia 28/03/2017.
A discussão sobre as dificuldades após um AVC foi motivada a partir da leitura de uma reportagem que falava
sobre as causas e tratamentos para o AVC.
147
terminologia sugerida pela autora, de fala de estilo telegráfico, e dos postulados bakhtinianos
que fundamentam nossas pesquisas, reformulamos a semiologia, a partir deste trabalho,
passando a nos referir aos enunciados de estilo telegráfico.
A contribuição inédita deste trabalho, a nosso ver, foi a de articular as reflexões
desenvolvidas no âmbito da neuropsicologia soviética sobre a relação entre pensamento e
linguagem, retomando autores como Vygotsky, Luria, Leontiev e, mais recentemente,
Akhutina. Os modelos explicativos, desenvolvidos nesta perspectiva, principalmente sobre o
papel da linguagem interna (inner speach), em suas diversas fases, no processo de
transformação do pensamento em linguagem externa, social, com objetivos comunicativos.
Isso nos abriu uma nova possibilidade de interpretação e compreensão da produção de
enunciados de estilo telegráfico. Essa concepção teórica pode ser sintetizada a partir das
formulações de Vygotsky (1934), quando postula que a sintaxe interna é uma sintaxe em que
os sentidos são subjetivos e adquiridos ao longo do desenvolvimento ontogenético do homem.
A palavra é, portanto, um coágulo de sentidos, uma generalização de conceitos que, por sua
vez, é ampliada ao longo do desenvolvimento do sujeito e da sua relação com a cultura. Nesse
contexto, uma única palavra pode significar enunciados inteiros. No momento de construção
de um enunciado comunicativo, entretanto, o sujeito precisa sair do plano do sentido
subjetivo, ou seja, é necessário construir significação para o outro. Por isso, é necessário uma
reestruturação, a reelaboração do querer-dizer para a construção de um enunciado que seja
compreensível para o interlocutor. A partir dessa concepção, Akhutina abre a possibilidade
para explicar as variações intra- e inter casos, o que tem sido um desafio para os
pesquisadores, como vem chamando a atenção Novaes-Pinto (2011, 2017). O modelo
proposto pela autora considera que os enunciados sejam resultados de um processo uno e
dinâmico em que o sujeito opera entre diferentes sintaxes, num movimento de ida e volta
entre o pensamento e a linguagem.
Os dados dos quatro sujeitos acompanhados ao longo desta pesquisa deram
visibilidade para os aspectos desse processo de construção dos enunciados. As diferentes
dificuldades com as estruturas sintáticas nos revelaram a natureza dinâmica e interdependente
dos três níveis de sintaxe propostos por Akhutina (2003). As análises revelaram que todos os
sujeitos têm dificuldades com a sintaxe convencional da língua e que essas dificuldades se
revelam tanto nas ausências quanto nas substituições de morfemas funcionais, nas marcas
hesitativas enquanto epi- e metalinguisticamente trabalham sobre essas sintaxes para
produzirem seus enunciados, nas interações sociais.
149
72
Novaes-Pinto estava fazendo considerações a respeito do trabalho de Miceli at al (1989).
151
Concordamos, portanto, com a autora quando ela afirma que a produção de enunciados
de estilo telegráfico não é suficiente para rotular um sujeito afásico como agramático.
Segundo, Novaes-Pinto (1999), essa concepção deriva de estudos neuropsicológicos calcados
em teorias generalizantes e fundadas nos resultados de metodologias exclusivamente
quantitativas. Em contrapartida, o estudo discursivo tem nos permitido, cada vez mais,
concluir que não existe sujeito sem gramática ou que tenha perdido aspectos da gramática,
como a literatura tradicional insiste em afirmar.
Consideramos que esta pesquisa pode contribuir, também, para refletir acerca do
acompanhamento clínico de sujeitos afásicos. O que se buscou evidenciar é que, apesar de a
linguagem estar impactada pela afasia, ainda existe um sujeito que se constitui e interage por
ela. Se tornar afásico não significa perder a subjetividade e, por isso, sempre haverá um
querer-dizer que pode ser reelaborado com o desenvolvimento de estratégias que extrapolam
os recursos verbais. Essa é a justificativa para o subtítulo deste texto de considerações finais,
retomando o que BS diz quando falam sobre ele, a respeito do AVC, que não estava acamado,
mas que estava ali: Não, eu tô aqui.
O terapeuta deve estar sensível para o esforço e trabalho que os sujeitos afásicos
operam para se (re)constituírem como sujeitos de discurso e para serem compreendidos. Para
isso, precisa compreender que a função principal da linguagem é a de produzir significação
(Coudry, 1988 [1986], Fiorin, 2011). Por isso, todos os recursos linguísticos são mobilizados
para a criação de sentido. Franchi (1992) aponta que a natureza da linguagem “não é física,
nem fisiológica, nem psíquica, mas semântica, o que quer dizer histórica, já que os sentidos
não refletem a ordem do mundo” (Fiorin, 2011, p. 15 grifo nosso). Desta forma, a linguagem
só pode ser compreendida como uma práxis; uma atividade que integra o sujeito com seu
meio, com a sua cultura e com a sua história. Franchi (1988) afirma que a linguagem é o lugar
único de realização e construção social, histórica, cultural e cognitiva. Por isso, devemos
sempre estar inseridos em um processo dialético em que todos fazem parte, constituindo os
elementos necessários em uma interação. O terapeuta deve atuar conjuntamente com o sujeito
152
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(Doutorado em Linguística. Área de concentração: Neurolinguística) – Instituto de Estudos da
Linguagem. Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
Anexos
Anexo 1
Termo de consentimento livre esclarecido aprovado pelo CEP/UNICAMP e assinado pelos
sujeitos da pesquisa
Eu, __________________________________________________________________,
portador do RG nº ________________________, estou sendo convidado para participar como
voluntário da pesquisa: “As palavras funcionais na chamada “fala telegráfica” em enunciados
de sujeitos afásicos”, sob responsabilidade de Arnaldo Rodrigues de Lima, estudante do
Programa de Pós-Graduação do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) – Unicamp e
pesquisador no GELEP (Grupo de Estudos da Linguagem no Envelhecimento e nas
Patologias).
O presente Termo é elaborado em duas vias, sendo que uma ficará comigo, participante da
pesquisa, enquanto outra ficará com o pesquisador responsável.
Gravação em vídeo:
( ) Autorizo gravação em áudio e/ou vídeo.
( ) Não autorizo gravação em áudio e/ou vídeo
Fui esclarecido(a) que pelo pesquisador responsável e tenho ciência de que:
Os objetivos mais gerais desta pesquisa são (i) o de refletir sobre o funcionamento das
palavras funcionais em enunciados de sujeitos afásicos, visando compreender a
chamada “fala telegráfica” ou “fala de estilo telegráfico”; (ii) contribuir, com este
estudo, para a pesquisa desenvolvida no GELEP (Grupo de Estudos da Linguagem no
Posso solicitar, a qualquer momento, que minhas dúvidas sejam esclarecidas, bem
como negar-me a participar de qualquer atividade e/ou sessões que me cause
constrangimento ou desconforto ou ainda retirar-me da pesquisa, se julgar
conveniente. Em caso de dúvidas sobre o estudo, você poderá entrar em contato com o
pesquisador no Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem,
situado à Rua Sérgio Buarque de Holanda, nº 571 Campinas – SP CEP 13083-859, ou
pelo fone (19) 98298-1439 e, ainda, pelo e-mail limaarnaldo@outlook.com
____________________________________________
Assinatura do participante
____________________________________________
Responsável pela pesquisa
Arnaldo Rodrigues de Lima
limaarnaldo@outlook.com
(19) 98298-xxxx
_______________________________________
Rosana do Carmo Novaes-Pinto
Orientadora/Supervisora da pesquisa
ronovaes@terra.com.br
(19) 99684-xxxx
Anexo 2