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Orlando Ribeiro
O fim da Segunda Guerra Mundial determinou a condenação do projeto de
hegemonia e pureza raciais da Alemanha nazi e a consciencialização de que a liberdade
e a independência não eram apanágio dos países europeus, tendo antes um alcance
universal. O princípio da autodeterminação dos povos colonizados foi consagrado na
Carta da Organização das Nações Unidas, criada em 1945. Na Declaração Universal dos
Direitos do Homem (1948) a autodeterminação foi consignada como direito fundamental
e a ONU passou a atribuir às potências coloniais a obrigação de prepararem os territórios
sob sua administração para a independência. Neste contexto, emergiu e consolidou-se o
movimento anticolonialista e teve início o processo de descolonização, primeiro na Ásia
e depois na África.
Portugal, confrontado a partir de 1945 com a pressão internacional favorável à
autodeterminação dos territórios coloniais, tentará delinear uma argumentação capaz de
legitimar a manutenção do status quo nas colónias portuguesas. Esse processo de
legitimação do colonialismo português exigirá alterações na legislação, uma
reformulação doutrinária e medidas inéditas de fomento económico em Angola e
Moçambique.
Em 1951, no quadro da revisão da Constituição Política da República Portuguesa,
o presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar, apresenta uma proposta de
revogação do Ato Colonial, que contempla a sua integração no texto constitucional, com
mudanças de terminologia e outros pequenos ajustes. Segundo o governo, a clara
afirmação da unidade nacional, apesar da dispersão geográfica de Portugal por vários
continentes, é o principal objetivo a atingir. O termo «Império Colonial Português», com
conotações negativas no novo contexto internacional, seria banido. O termo «colónias»
daria lugar à “antiga” designação de «províncias ultramarinas». Apesar das reações
negativas de alguns procuradores à Câmara Corporativa, nomeadamente do ex-ministro
das Colónias Armindo Monteiro, a proposta recebeu o apoio da maioria dos deputados da
Assembleia Nacional e foi aprovada. Na nova formulação, Portugal aparece como uma
«nação pluricontinental», composta por províncias europeias e ultramarinas, integradas
harmoniosamente no todo nacional uno e indivisível. Escudando-se no facto de
nominalmente não possuir «colónias», o Estado Novo considera que não tem que prestar
contas à comunidade internacional do que se passa no interior das suas fronteiras. A
tónica da política ultramarina seria, daí em diante, a «assimilação».
A lógica da assimilação não foi vertida para a política indígena. O Estatuto dos
Indígenas, revisto em 1954, continuava a negar a cidadania portuguesa à maioria da
população de Angola, Moçambique e Guiné. Os assimilados, isto é, aqueles que
provassem estar integrados na forma de vida e nos valores da civilização europeia, eram
uma ínfima minoria, porque nunca houvera vontade de criar elites no ultramar, através de
uma aposta consequente no alargamento do sistema de ensino aos africanos. As antigas
elites crioulas do século XIX há muito que haviam sido arredadas do sistema político
pelos colonos entretanto chegados e pela própria administração.
Dois meses depois da afirmação da unidade nacional na Constituição da República
Portuguesa, Gilberto Freyre inicia uma visita por “terras lusitanas”, a convite do ministro
do Ultramar Sarmento Rodrigues. O objetivo da viagem é dar a conhecer ao sociólogo
brasileiro o ultramar português, para que ele o percorra “com olhos de homem de estudo”
e, depois, produza um trabalho de reflexão sobre as realidades observadas. Será durante
esta viagem que o sociólogo brasileiro usará pela primeira vez a expressão «luso-tropical»
para caracterizar o modo de adaptação do português aos trópicos. Ora esta teoria era de
enorme utilidade para o fortalecimento da ideia de «unidade da nação pluricontinental
portuguesa» e para o programa de fixação de população originária da metrópole no
ultramar. O Estado Novo soube apropriar-se de algumas máximas luso-tropicalistas para
se defender das pressões da comunidade internacional, sobretudo no quadro da ONU
(Portugal integra esta organização em 1955), mas também em campanhas de propaganda
do país no exterior, nas declarações dos altos representantes da nação à imprensa
estrangeira e nos circuitos diplomáticos (vd. Castelo 1998: 96-101). Internamente,
assiste-se a um momento de amplo consenso em torno da integridade nacional e da
continuidade da missão histórica do país no mundo.
Considerações finais
O Estado Novo, nos anos 30 e 40, ignorou ou rejeitou a tese de Gilberto Freyre,
devido à importância que conferia à mestiçagem, à interpenetração de culturas, à herança
árabe e africana na génese do povo português e das sociedades criadas pela colonização
lusa. As ideias do pensador brasileiro tiveram que esperar pela década de 1950 para
conhecer uma recepção mais favorável no seio do regime salazarista. Nessa altura, o
regime adoptou uma versão simplificada e nacionalista do luso-tropicalismo como
discurso oficial, para ser utilizado na propaganda e na política externa. À mudança de
atitude não foi alheia a conjuntura internacional saída da Segunda Guerra Mundial e a
necessidade de o Governo português afirmar a unidade nacional perante as pressões
externas favoráveis à autodeterminação das colónias. Paralelamente, assistiu-se à
penetração do luso-tropicalismo no meio académico e científico, em particular o ligado à
formação dos quadros da administração ultramarina e à chamada ‘ocupação científica’
das colónias. Com o início da guerra em Angola, e a chegada de Adriano Moreira ao
Ministério do Ultramar, foi promulgado um pacote de medidas legislativas inspiradas no
luso-tropicalismo. No novo contexto, procurou-se igualmente incutir nos portugueses a
ideia da benignidade da colonização lusa ou, de forma mais eufemística, “do modo
português de estar no mundo”. A propaganda encarregou-se disso, de forma incansável:
era urgente moldar o pensamento para conformar a ação, sobretudo dos colonos e dos
agentes do poder colonial no terreno. Desde então, uma versão simplificada do luso-
tropicalismo foi entrando no imaginário nacional contribuindo para a consolidação da
autoimagem em que os portugueses melhor se reveem: a de um povo tolerante, fraterno,
plástico e de vocação ecuménica.
Na obra de Gilberto Freyre perpassa a sua concepção singular de tempo, fundindo
passado, presente e futuro. Essa concepção elucida-nos sobre as ambiguidades e as
contradições em que se envolve ao falar de comunidade luso-tropical. Umas vezes,
apresenta-a como realidade pretérita, que remonta aos séculos XV e XVI, outras como
realidade viva, presente, outras ainda como futuro, destino, idealização. É, sobretudo,
como projeto que a ideia de comunidade luso-tropical sobreviveu ao seu autor, após o fim
do império português. E vivifica agora na Comunidade de Países de Língua Portuguesa e
no discurso político e ideológico mais consensual sobre a posição de Portugal no mundo.
O risco atual está em continuar a ser usado como dispositivo retórico, numa perspectiva
acrítica e imobilista. Ontem, para legitimar o colonialismo português; hoje, para alimentar
o mito da tolerância racial dos portugueses e até de um nacionalismo português integrador
e universalista, em contraponto aos «maus» nacionalismos, fechados, etnocêntricos e
xenófobos.
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BIBLIOGRAFIA:
ALMEIDA, Miguel Vale de Almeida. 2000. Um mar cor da terra: “raça”, cultura e
política de identidade. Oeiras: Celta.
BURKE, Peter, PALLARES-BURKE, Maria Lúcia. 2008. Gilberto Freyre: Social theory
in the tropics. Oxfordshire: Peter Lang.
CARDOSO, Fernando Henrique. 1993. “Livros que inventaram o Brasil”. Novos Estudos
Cebrap, 37: 21-36.
CASTELO, Cláudia. 1998. «O modo português de estar no mundo»: o luso-tropicalismo
e a ideologia colonial portuguesa. Porto: Edições Afrontamento.
FREYRE, Gilberto. 1933. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o
regimen de economia patriarchal. Rio de Janeiro: Maia & Schmidt.
FREYRE, Gilberto. 1940. O mundo que o português criou. Rio de Janeiro: José Olympio.
1
.Formalmente instituído em 1933, depois de pelo golpe militar de 28 de Maio de 1926 ter sido derrubada a I República (1910-1926), o Estado
Novo foi uma ditadura conservadora, católica e colonialista. As suas figuras de proa foram os presidentes do Conselho, António de Oliveira
Salazar (até 1968) e Marcelo Caetano (de 1968 até ao 25 de Abril de 1974).
2
.Peter Burke e Maria Lúcia Pallares-Burke referem-se ao luso-tropicalismo como “quase-teoria”, “perhaps the closest thing to a theory that
Freyre ever enunciated” (Burke e Pallares-Burke 2006: 188-189). Já Adriano Moreira e José Carlos Venâncio, entre outros, consideram o luso-
tropicalismo uma teoria social (Moreira e Venâncio 2000). Por seu turno, Miguel Vale de Almeida reporta-se ao luso-tropicalismo enquanto
discurso (Almeida 2000: 183-184).
3
.Cf. Portugal, Arquivo Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros (AHD), PAA 308; e P. 2, A. 59, M. 351.
4.Circular n.º 3 do MNE, enviada às embaixadas, legações, consulados e delegações de Portugal. PT/AHD, PAA 308.
.Ofício n.º 102 da Comissão Executiva do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique – Congresso Internacional de História dos
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Descobrimentos, enviado ao diretor-geral dos Negócios Políticos e Consulares do MNE, em 16 de Janeiro de 1962. PT/AHD, PAA 308.
6
.Amílcar Cabral referia que “uma poderosa máquina de propaganda foi posta a trabalhar no sentido de convencer a opinião pública mundial
de que os nossos povos viviam no melhor dos mundos possíveis […]. E, como acontece com tantos mitos, especialmente os que dizem respeito
à sujeição e exploração das gentes, não faltaram «homens de ciência», incluindo um sociólogo de nomeada, par lhe garantir uma base teorética
– neste caso, o luso-tropicalismo. […] E não sem algum êxito, como mostra um incidente ocorrido na Conferência dos Povos Africanos
realizada em Túnis, em 1960, durante a qual tivemos certa dificuldade em ser ouvidos. Um delegado africano a quem tentávamos explicar a
nossa situação replicou com toda a simpatia: «Oh, mas para vocês é diferente. Vocês não têm problemas – com os Portugueses vocês estão
bem».” (Amílcar Cabral. 1975. “Prefácio”. In Basil Davidson. A libertação da Guiné. Lisboa: Livraria Sá da Costa. p. 3).
7
.“Entrevista à revista Life, de Nova Iorque, 4 de Maio de 1962” (Salazar 1967: 84).
8
.“Entrevista ao semanário U. S. News and World Report, de Nova Iorque, 9 de Junho de 1962” (Salazar 1967: 125).
9
.“Entrevista concedida à cadeia de jornais Southam, do Canadá, dezembro de 1962” (Salazar 1967: 156).
.Apontamento n.º 72 - “Projeto de normas de carácter permanente para uso interno da Direção dos Serviços de Censura com relação ao
10
Ultramar” – de Eduardo Freitas da Costa (Julho de 1960). Portugal, Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), PT/AHU/MU/GNP/158/cx. 1.
.Comentário n.º 263, datado de 5.9.1961, assinado por Eduardo Freitas da Costa, intitulado “Caminhos de grandeza”.
11
PT/AHU/MU/GNP/161/cx. 1.
.Comentário n.º 201, datado de 21.6.1961, assinado por Eduardo Freitas da Costa, intitulado “Fundamentação do portuguesismo”.
12
PT/AHU/MU/GNP/161/cx. 1.
.Comentário n.º 183, datado de 5.8.1964, assinado por Carlos Maria Alexandrino da Silva, intitulado “A verdadeira sociedade plurirracial:
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14
.“Tenho a convicção que foi nos meus cursos da disciplina então chamada Política Ultramarina que o lusotropicalismo passou a ser
sistematicamente ensinado e tratado, inspirando numerosos trabalhos de campo e teóricos” (Adriano Moreira. 1987. “Em lembrança de Gilberto
Freyre”. Ciência & Trópico. 15(2): 191).
15
.A propalada “tradição portuguesa” não era nada de inato ao povo português, como se quis fazer crer, mas antes um modelo geográfica e
historicamente situado, reportando-se à situação política e social das elites locais que até à segunda metade do século XIX serviram de suporte
ao poder colonial em pontos precisos da África, isto é, antes da implantação do Estado colonial moderno e do estabelecimento de correntes
migratórias da metrópole em direção ao império (vd. Alexandre 1998: 207-208).
16
.Portugal, Arquivo Nacional da Torre do Tombo (TT), PT/TT/AOS/CO/UL-37, Pt. 1.
17
.PT/TT/AOS/CO/UL-37, Pt. 2.
18
.Relatório datado de 7 de Julho de 1958. Foi enviada cópia ao governador-geral de Moçambique pelo diretor-geral de Administração Política
e Civil, em 31.1.1959. PT/AHU/MU/GNP/084/pt. 33.
19
.Adriano Moreira, a 7 de Setembro de 1961, envia a Gilberto Freyre o Diário do Governo do dia anterior, com a seguinte missiva: “Meu
Ex.mo Amigo: / Creio que terá interesse em conhecer a legislação que consta do Diário do Governo que lhe envio. Chamo a sua atenção para
a página 1129. Desculpe não escrever mais longamente, mas o tempo parece escoar-se”. Brasil, Arquivo Documental Gilberto Freyre,
Correspondentes Portugueses.
20
.Instruções de APSIC (1970-1971), Conselho Provincial de Ação Psicológica de Moçambique, PT/AHU/MU/GNP/061/cx. 1.
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.Cópia da Ata n.º 11/971 da reunião realizada em 10.11.1971 do Conselho Provincial de Ação Psicológica, Governo-geral de Moçambique,
enviada pelo chefe de gabinete do Governo-geral de Moçambique, Custódio Augusto Nunes, para o chefe de gabinete do Ministro do
Ultramar, em 7.1.1972. O despacho do ministro, J. Silva Cunha, foi transcrito e remetido pelo diretor do Gabinete de Negócios Políticos,
Ângelo Ferreira, ao governador-geral de Moçambique, em ofício de 9.2.1972. PT/AHU/MU/GNP/061/pt. 1.