Você está na página 1de 1278

De Tales a Dewey

© 2012, Editora Cultura Cristã. Do original


Thales to Dewey: A History of Philosophy
Copyright © 1957, 2007 John W. Robbins. All
rights reserved (Todos os direitos
são reservados). URL:
www.trinityfoundation.org. Translated and
printed by permission. (Traduzido e impresso
com permissão).

1a edição 2012 - 3000 exemplares

Conselho Editorial

Ageu Cirilo de Magalhães Jr.

Cláudio Marra (Presidente)

Fabiano de Almeida Oliveira

Francisco Solano Portela Neto


Heber Carlos de Campos Jr.

Mauro Fernando Meister

Tarcízio José de Freitas Carvalho

Valdeci da Silva Santos

Produção Editorial

Tradução:

Wadislau Gomes Revisão:

Davi Charles Gomes

Filipe Fontes

Edna Guimarães

Editoração:

Rissato

Capa:
Magno Paganelli

Clark, Gordon Haddon

De Tales a Dewey / Gordon Haddon Clark;


traduzido por Wadislau Gomes. _ São Paulo:
Cultura Cristã, 2012.

480 p.: 16x23 cm

Tradução Thales to Dewey: A History of


Philosophy

ISBN 978-85-7622-420-4

1. Cosmovisão 2. História da Filosofia I. Título

CDD 253

EDITORR CULTURA CRISTÃ

R. Miguel Teles Júnior, 394 - Cambuci - São


Paulo - SP - CEP 01540-040 Caixa Postal 15.136
- CEP 01599-970 - São Paulo - SP Fones 0800-
0141963 / (11) 3207-7099 - Fax (11) 3209-
1255 www.editoraculturacrista.com.br —
cep@cep.org.br Superintendente: Haveraldo
Ferreira Vargas Editor: Cláudio Antônio
Batista Marra
APRESENTAÇÃO DA QUARTA EDIÇÃO
Quando fez sua primeira aparição, em 1957,
publicado por uma grande editora acadêmica, Tales
a Dewey foi prontamente aclamado como Dnmante
ê “magistral”. Gordon H Clark, então diretor do
departamento de filosofia da Butler University, já
era reconhecido, em sua nação, como um dos mais
competentes intérpretes da filosofia antiga, e sua
exposição e análise da filosofia medieval e
moderna eram igualmente brilhantes. Tales a
Dewey rapidamente se tornou texto padrão para
instituições escolares cristãs e não cristãs.

Agora, esta quarta edição é lançada, na esperança


de que se torne, mais uma vez, um texto padrão
para estudantes universitários. Qualquer um que
abra o livro e leia a primeira e atrativa sentença
ficará encantado, tanto com Clark quanto com sua
filosofia.

Há poucos manuais de história da filosofia escritos


por cristãos e, é justo dizer que o livro que o leitor
tem em mãos é o único, em língua inglesa,
que escapa da corrosiva influência da filosofia
secular, especialmente do
empirismo. Recentemente, outros tentaram escrever
manuais de História da Filosofia, mas não estavam
tão familiarizados com o assunto como Clark, nem
eram suficientemente rigorosos em seu
entendimento do cristianismo. O resultado é que
Tales a Dewey permanece sendo o único tratado
sobre história da filosofia, em um só volume. É
uma obra de fácil leitura, cativante, acurada e
decididamente cristã. Merece ser continuadamente
consultada tanto pelo estudante de filosofia de
primeiro ano quanto pelo professor mais
experimentado.

Quando começou a publicar e republicar os livros


de Gordon Clark, em 1980, a Trinity Foundation
tinha a esperança de que sua obra seria usada
por Deus para despertar uma nova geração de
intelectuais cristãos que não tivesse medo de
estudar, debater e refutar as filosofias seculares —
filosofias que muitos de seus preceptores temiam
discutir ou, até mesmo, abraçavam. Certamente não
foi frustrada essa esperança.

A expressão “intelectual cristão” tem soado, já por


demasiado tempo, estranhamente, quase uma
contradição de termos, ou, pelo menos,
paradoxal. Agora, entretanto, pela graça de Deus, a
situação está mudando e está surgindo uma nova
geração de intelectuais — intelectuais cristãos. A
publicação desta quarta edição Tales a Deivey
atende à demanda de um guia confiável para o
estudo da história da filosofia.

No final deste volume há apenso, um ensaio sobre a


influência da filosofia na civilização: “A crise de
nosso tempo”. Adicionamos também uma lista
de outras obras de Clark, sobre filosofia e teologia,
as quais poderão ser de interesse para o leitor. Um
esboço da filosofia de Clark poderá ser visto em
Tales a Deivey, pois fornece o arcabouço para a sua
análise dos filósofos seculares, mas a
afirmação completa de sua filosofia pode ser
encontrada em seus outros livros. Esperamos que
Tales a Deivey não seja o objetivo final do interesse
do leitor com respeito à filosofia, mas, sim, o
começo. Contudo, seja o começo ou o fim,
nenhuma introdução melhor poderia ter sido
escolhida do que Tales a Deivey.

John W. Robbins 14 de fevereiro de 1989

PREFÁCIO À EDIÇÃO EM INGLÊS


Há bons livros sobre história da filosofia, mas nem
todos são igualmente bons para o mesmo propósito.
Obviamente, Grundrisse, de Uberweg, não é
adequado como livro texto em faculdades, visto
que excede toda noção normal dt
grundrisse} Outras obras de extenso e alto padrão,
completas, profundas e profissionalmente
admiráveis, falham quanto a motivar estudantes
universitários.

No campo universitário, os vários autores resolvem


seus problemas de maneiras diversas. Pode-se
decidir considerar cada filósofo, maior ou menor,
e o resultado será um tipo de enciclopédia. Este
livro poderia conter apreciações valiosas de uma ou
duas centenas de filósofos, mas a abrangência
aumentaria a profundidade da confusão, se o
estudante tivesse de cobrir o todo em um
ano. Outro autor, talvez tentasse um método
diferente. Não apenas reduziria o número de
nomes, mas também tentaria baixar o estudo da
filosofia ao nível do entendimento dos estudantes.
Esse processo de diluição poderia, como
tem ocorrido, acabar suprimindo o cerne da
matéria. Há coisas que podem ser baixadas ao nível
do estudante, mas não a filosofia — ou a educação
se torna fachada para diletantismo.

Este livro, em vez de tentar o impossível - baixar a


filosofia ao nível do estudante — se ocupa da
difícil tentativa de elevar o estudante ao nível da
filosofia. Dois princípios de restrição controlam o
procedimento. Para evitar confundir os estudantes
com profusão de nomes estranhos, o número de
filósofos discutidos é quase o mínimo. Assim
também, a matéria foi restringida. Sequer houve
a tentação de abranger todas as teorias de qualquer
um dos filósofos. Se, no caso de Aristóteles, por
exemplo, algumas linhas fossem dedicadas à
lógica, apenas um parágrafo à sua visão de física,
uma rápida explanação para De Anima, uma nota
de rodapé sobre Metafísica, uma breve menção
sobre ética e política, e tudo isso concluído com um
traço poético, o capítulo, se acurado, seria
impossível de ser lido e, se inexato, não valeria a
pena ser lido.

Em contraposição a essas possibilidades horríveis,


o objetivo, aqui, foi o de fornecer uma
compreensão substancial dos maiores temas.
Partindo do princípio de que a apreensão razoável
de um único problema é melhor do que uma
memorização vaga ou falha de uma centena deles,
deve ser dito que o presente trabalho diz respeito,
predominantemente, às questões relacionadas
ao conhecimento. Em certos pontos, é claro, como
no caso dos sofistas, de Agostinho e dos
pragmáticos modernos, a ética vem à tona porque a
epistemologia é, de uma forma ou de outra,
determinada por sua explanação sobre a ética.
Assim, diversos temas se entrelaçam com o tema
principal da epistemologia.
A supressão de nomes e de assuntos é coisa fácil.
Fornecer ao estudante a oportunidade para um
entendimento aprofundado é muito mais difícil.
Dando o melhor de minhas habilidades, usei
linguagem simples, clara, consistente e precisa; o
material ilustrativo usado para motivar o estudante
casual foi desenvolvido ao longo dos anos de
magistério; expressões de opinião foram incluídas
para provocar o professor; e, como qualquer autor,
espero que os resultados mostrem uma boa medida
de sucesso.

Especial menção deve ser feita ao Presidente e ao


Conselho de Diretores da Butler University pela
permissão para uma ausência sabática, durante a
qual este livro foi completado.

Gordon H. Clark
I - A FILOSOFIA GREGA
1 - Os PRÉ-SOCRÁTICOS
filosofia grega teve início em 28 de maio de 585
a.C., às 18h13.

O que é filosofia?

Por trás desta afirmação meio séria e meio jocosa,


espreitam diversos problemas intrincados que
requerem alguns comentários introdutórios.
Geralmente o aluno iniciante pergunta: O que é
filosofia? É verdadeiro que nada havia antes de 585
a.C.? E por que misteriosa razão tudo começou
precisamente às 18h13?

As duas primeiras questões estão intimamente


relacionadas. Certamente algo que não existia
previamente ficou em evidência depois de 585 a.C.;
contudo, se esse algo era ou não filosofia é uma
questão de definição. A opinião popular geralmente
conecta a palavra “filosofia” com uma maneira de
viver. A frase com a qual as pessoas quase sempre
se defrontam é “filosofia de vida”. Normalmente
a expressão significaria qualquer coisa, desde a
vida habitual e sem maiores pensamentos de
indivíduos menos inteligentes, passando pelos
princípios deliberadamente assumidos por homens
de negócios, até a convicção daqueles
que resolutamente tornam as costas para os
interesses deste mundo, retirando-se para os
monastérios ou ganhando a reputação de gurus pela
prática de ioga. Nesse sentido, Salomão e Abraão
tiveram uma filosofia - não era algo novo no ano
585 a.C.

Procurando lembrar-se de outros sentidos e


conceitos que ocorrem na literatura, alguém poderá
pensar sobre a pedra filosofal, alquimia, mágica
e segredos da natureza. Filósofos são reputados
como pessoas de grande saber. Eles conhecem
muita coisa. Contudo, aqueles que conhecem
bastante sobre plantas, são chamados de botânicos
e não de filósofos. Físicos também conhecem muita
coisa. Portanto, o conhecimento que caracteriza o
filósofo deve se referir a outros assuntos além de
botânica, química ou ciência política. Porém, se
alguém separar cada aspecto do conhecimento, o
que restará para a filosofia? A geologia é o estudo
das rochas. A teologia estuda Deus. Que objeto,
então, sobra para a filosofia? Seria a filosofia, o
conhecimento de nada? Uma vez que esse
pensamento parece desrespeitoso, se poderia dizer
que a filosofia é o conhecimento de tudo?

Não, ainda não; alguma coisa ainda parece errada.


Até mesmo, na Grécia antiga, quando ainda não
havia tanta coisa para saber como há agora, é
improvável que alguém conhecesse todas as coisas.
Certamente ninguém conhece tudo, agora,
e, mesmo assim, existem filósofos. Pelo menos, há
pessoas que escrevem livros sobre filosofia. Assim,
como é que fica?

Talvez, a definição menos distante seja a de que


filosofia é o que este livro discute. Inclui geologia,
astronomia, química e teologia. Em certo sentido,
o objeto da filosofia é, de fato, a totalidade das
coisas. Isso inclui também uma filosofia de vida.
Entretanto, um filósofo não tem de saber todos os
detalhes de cada coisa. Antes, ele estuda os
princípios gerais e relaciona cada ciência
específica uma às outras. Não é de se esperar que,
alguém que conheça tudo sobre plantas, saiba como
a botânica afeta a ciência política; o químico não
está interessado na relação da química com a
linguística; um bom psicólogo não precisa ser
perito em economia. Não obstante, todas essas
ciências estão relacionadas de alguma maneira com
cada uma das demais. Assim, temos, aqui, uma
forma preliminar para descrever a filosofia.

Outra maneira de ver a filosofia vem de Aristóteles.


Um dos maiores filósofos de todos os tempos,
Aristóteles discutiu sobre lógica, física,
psicologia, biologia, ética e política — e tinha
também um livro sobre Filosofia Primeira. Cada
ciência particular trata de certos objetos ou seres e
ignora outros; isto é, cada ciência específica estuda
o ser como este é qualificado de formas
particulares. Mas a Primeira Filosofia estuda o ser
como tal — de maneira não qualificada — como
simples ser. Os editores de Aristóteles, mais tarde,
mudaram o nome para Metafísica. Se definida tal
como discutida neste livro, a filosofia incluirá tanto
a metafísica quanto a astronomia, a psicologia, etc.

Outra questão introdutória é esta: se a filosofia tem


continuado, desde 585 a.C. até o presente, por que
não se parte da filosofia tal como é agora, ao invés
de utilizar tempo com teorias antiquadas? Por que
alguém deveria estudar história da filosofia, em vez
de estudar a própria filosofia? Se o objeto
da filosofia diz respeito a inter-relações entre as
varias ciências, por que não estudar suas relações,
como elas se apresentam hoje, em vez de
como costumavam ser há dois mil anos? A resposta
é que o estudo da história da filosofia não é uma
perda de tempo. De um ponto de vista cultural,
paralelo à sua utilidade para o estudante de
filosofia, há o fato de que uma visão geral de Platão
e de Aristóteles é algo prazeroso. De um ponto de
vista pedagógico, a história da filosofia habilita o
estudante a considerar os problemas em
suas formas mais simples. Tais problemas têm se
tornado, em tempos modernos, complexos demais
para as primeiras lições. Embora os alunos de
escolas de ensino fundamental e médio não atentem
para isso, eles aprendem matemática no contexto
do seu desenvolvimento histórico. A aritmética e
geometria foram as primeiras partes da matemática
a serem trabalhadas. Foram matérias desenvolvidas
por filósofos gregos. Geometria analítica e cálculo
surgiram no século 17. Muitos estudantes de
faculdade não chegam a conhecer a matemática
moderna; e, aqueles que a conhecem, não teriam
aprendido suas complexidades sem primeiro terem
estudado coisas que os gregos descobriram cinco
séculos antes de Cristo. Além disso, tal como
aritmética e geometria são assuntos bem atuais, a
despeito de sua origem grega antiga, os problemas
da filosofia, quer em sua forma moderna
extremamente complexa, quer revestida da
simplicidade grega, tratam das mesmas questões.
Dizer que o estudo da filosofia deveria
ter preferência em relação ao estudo da história da
filosofia é uma falsa disjunção. A história da
filosofia é filosofia.

Os MILESIANOS

O que é, então, que veio a existir depois de 585


a.C., mas não existia antes, e que teve sua origem
exatamente neste ridículo horário das 18h13? Nesse
dia e hora ocorreu um eclipse solar. Certamente
eclipses solares já ocorriam havia algum tempo,
mas a nova característica é que este foi predito por
Tales, um astrônomo de Mileto, na Jônia. Registros
de fenômenos celestes haviam sido compilados ao
longo de séculos por sábios do Oriente Médio, mas,
agora, pela primeira vez, Tales discerniu uma
regularidade em tais ocorrências, e formulou uma
lei e testou sua formulação por meio de
uma predição bem-sucedida.2 Com outras
especulações de Tales isto é chamado de filosofia, e
não existia previamente.

Unidade e multiplicidade

Muito tempo depois, na era de Johannes Kepler,


por exemplo, a formulação de uma lei astronômica
teria sido considerada como um triunfo da
astronomia, mas dificilmente teria sido chamada de
filosofia. Uma das razões para isso é que a filosofia
foi quem deu à luz as ciências particulares. Quando
alcançaram maturidade, tornaram-se especializadas,
cheias de detalhes, as ciências especiais deixaram a
casa parental e construíram casas próprias. No
tempo de Tales, entretanto, não havia ciências
particulares e, ele teve a sorte de iniciar a
ambas, tanto a ciência quanto a filosofia.

A própria lei, por meio da qual podem ser preditos


os eclipses solares, é um exemplo de ambas.
Enquanto diretamente aplicada ao Sol, à Lua e à
Terra, configura indubitavelmente astronomia; não
obstante, mais fundamentalmente, é uma lei que
tem instância universal. Esta é a característica que
confere à data a importância de maior evento da
era. Os sábios do Oriente Médio coletaram uma
profusão de informações astronômicas, mas jamais
reduziram os itens desconectados a uma forma
unitária ordenada. A filosofia começa com a
redução da multiplicidade, à unidade.

As ciências também reduzem suas multiplicidades,


à unidade. Kepler tinha dados sobre a posição de
todos os planetas, em tempos diferentes. Seu gênio
consistiu em reorganizar essa massa de detalhes de
maneira que emergisse uma uniformidade. Ele
demonstrou que todos os planetas se moviam da
mesma maneira — descrevendo elipses cujos raios
vetores varriam áreas iguais em tempos iguais. Esta
é uma unificação da multiplicidade. Se o objeto
está suficientemente destacado, é chamado de
ciência; se é muito geral em comparação com o
estado do conhecimento da época, é chamado de
filosofia. Portanto, Tales foi o iniciador de ambas.

Se Tales tivesse especulado apenas sobre eclipses,


talvez a História o tivesse alistado somente como
um astrônomo, ainda que a ideia da lei seja de
grande importância. Mas Tales também tentou
impor unidade à multiplicidade encontrada em todo
o universo. Além do Sol, há os planetas e as
estrelas; na Terra, há montanhas, mares e seres
humanos; há tempestades, terremotos e estações; há
vida, sensação e morte; e, ainda mais, há toda
variedade de qualidades comuns, desde o gosto
da azeitona até o alvorecer róseo raiado ou o peso
do escudo de Aquiles. Multiplicidade, sem dúvida.
Haveria alguma unidade nisto tudo?

A questão que pareceu tão óbvia, para Tales e seus


sucessores mais próximos, foi: Como tal
multiplicidade ordenada veio a ser? O mundo
parece feito de uma infinita variedade de coisas —
plantas, animais, nuvens e montanhas;
mas, obviamente muitas dessas coisas são similares
quanto à sua composição. Uma vez que os homens
comem plantas e animais, o corpo humano deve
conter os mesmos materiais dos quais as plantas
são feitas. Plantas e animais, tal como os homens,
bebem água; até mesmo, as madeiras das árvores
contêm 98% de água. Quando a água ferve, o vapor
é sentido como se fosse fogo; a faísca do raio que
põe a árvore em chamas, deve ser do mesmo tipo
que o fogo terrestre, que faz a água ferver. E, se
nossos corpos são quentes, também devem
conter fogo ou água quente. Seria possível que
todas as coisas sejam feitas de uma única coisa
elementar?

Na verdade, em princípio não parece assim. Mas


suponha que o universo fosse composto de diversos
elementos; talvez, 94. Nesse caso, haveria
qualquer razão para ser exatamente 94? Por que
não 61 ou 152? Não haveria uma razão? Se não
houvesse uma razão, o universo seria desarrazoado,
irracional e, nesse caso, impossível de ser
entendido. Somente aquilo que é racional pode
ser entendido - e entender é reduzir a
multiplicidade à unidade. Eclipses são
entendidos quando a lei é formulada, e a lei é a
unidade encontrada em todas as
instâncias. Conclui-se, portanto, que o universo
deve ou, racionalmente, tem de ser feito de uma só
coisa difusa.

O princípio de que a explanação reside na redução


da multiplicidade à unidade e à noção de que o
universo é composto de apenas um tipo de
elemento são posições abrangentes, gerais e
filosóficas. Porém, quando se trata da identificação
do elemento material, é difícil de dizer, no século
20, se a disciplina é filosofia ou física especulativa.
A antiga teoria dos 94 elementos costumava
ser ensinada sob o nome de química; mas, com o
advento da teoria quântica e a partição do átomo,
que nome se dará à suposição de que o universo
não é composto de partículas materiais discretas,
mas de energia ou campos de força?
Um bom nome à moda antiga é cosmologia. A
moderna cosmologia é bem semelhante à visão de
Tales, no sentido de que há uma única substância
difusa da qual vieram todas as coisas, mas a
identificação dessa substância é mais ingênua em
Tales do que em nosso século sofisticado. Tales
não selecionou energia ou eletricidade, acerca da
qual ele nada sabia, mas, sim, a água.

Embora seja difícil, se não impossível, traçar uma


linha entre a física especulativa e a filosofia, e
ainda que a história da filosofia seja filosofia,
a identificação de Tales, do mundo material com a
água, é um item de informação física e histórica
que alguém poderia considerar sem importância.
Alguns educadores dão a impressão de que todos os
fatos sejam sem importância. Eles depreciam a
transmissão da informação, do professor para o
aluno. O objetivo da educação não é aquisição de
fatos por meio da doutrinação e imposição, mas o
pensamento independente.

Ora, a habilidade para pensar é mais valiosa do que


uma coleção de desajuntados itens de informações
históricas. Especialmente o estudo da
filosofia deveria dar ao estudante, não apenas
memorização, mas o exercício do pensamento. A
melhor maneira para aprender filosofia é mediante
o debate; argumentar com o professor, em sala de
aula, e com os colegas, fora dela. Argumentar,
argumentar seriamente, é filosofar. Contudo,
permanece a questão se um estudante poderá pensar
ou argumentar seriamente, tendo a mente vazia.
Supondo que esteja claro que um leigo não poderá
argumentar inteligentemente sobre a causa e a cura
do câncer, não será menos claro que alguém,
ignorante das disposições militares e dos recursos
do inimigo, seja incapaz de argumentar
seriamente sobre táticas e estratégias
internacionais. Assim também, a maneira mais
rápida de introduzir alguém no estudo da filosofia é
a de municiá-lo com novos fatos. E é fato que Tales
pensou haver descoberto o fato de que todas as
coisas eram feitas de água.

Um princípio deve explanar


Conquanto o fato de que todas as coisas sejam
feitas de água não seja mais importante do que o
fato de que todas as coisas sejam feitas de energia,
as razões e os motivos por trás dessas asserções não
poderão ser desprezados. Tales estava tentando dar
uma explicação abrangente para o universo.
Qualquer que tenha sido o elemento escolhido, tal
teria de ser uma plausível fonte de todas as
forças mostradas no fenômeno natural. Poderia
qualquer pessoa que tivesse sido sacudida em um
bote pela fúria de uma tormenta no Mediterrâneo
negar que o oceano é grande fonte de poder? E, se a
água é um elemento subjacente a todas as
coisas, até mesmo, à terra, na escavação de poços,
sua movimentação tempestuosa subterrânea poderia
ser causa de terremotos. E ainda, se o universo e
todos os seus fenômenos são explicados com base
em um elemento, o elemento original deverá ser
capaz de se transformar em coisas visíveis da
experiência comum. A constatação de que a água
pode produzir terra é feita mediante a
consideração de que, quando a água evapora, um
pouco de terra é deixado na vasilha. A evaporação
mostra também como a água pode produzir ar. E no
relâmpago e na chuva há uma relação entre água e
fogo. Portanto, não há impossibilidade na hipótese
de que todas as coisas tenham vindo da água.
Contudo, visto assim, não somente física, química e
meteorologia teriam de ser explicadas com base na
água, mas, igualmente, botânica, zoologia e
psicologia teriam de ser passíveis do mesmo tipo de
explanação. A filosofia não pode ignorar nenhuma
parte do mundo.

Dessa maneira, como a água poderia explicar a


vida? Bem, em primeiro lugar, é óbvio que a vida
não pode existir sem a água: sem água as plantas
morrem, e, uma vez mortas, secam. Os homens,
também, podem viver um longo tempo somente
com água, e não vão muito longe sem ela. E parece
que a água pode produzir seres vivos, pois, quando
lagos começam a secar, pequenas larvas podem ser
encontradas na lama. Mais ainda, a água não
poderia manter a vida ou certamente nem produzir
vida, se ela mesma estivesse morta. Para reduzir
multiplicidade à unidade, alguém teria de mostrar
se aquilo que parece animado está
basicamente morto ou que todas as coisas estão
vivas. A última é, de longe, a tentativa
mais promissora. Um único elemento que
explicasse o mundo teria de ser um elemento vivo.
A distinção entre o animado e o inanimado é um
desenvolvimento posterior. Nos tempos modernos,
especialmente a partir do século 17, a ideia
do inanimado tem sido considerada como
inevitável. Alguns pensadores negaram a existência
da alma ou princípio de vida e tentaram explicar
plantas, animais e seres humanos em bases
materialistas. Outros criam que a alma seria algo
necessário e, porque não podiam negar a existência
da matéria inanimada, optaram por um dualismo.
Contudo, a filosofia milesiana reconhecia um único
elemento vivo e corpóreo - uma teoria que recebeu
o nome de hilozoísmo.

Essa visão pode ser expressa em termos mais


universais e fundamentais. Terremotos e a aparição
de larvas em lagos, assim como a revolução dos
planetas e estrelas, são exemplos especiais de
movimento. O movimento é, sem dúvida, o mais
universal de todos os fenômenos, e o hilozoísmo é
uma tentativa para explicá-lo. O original não pode
ser posto em movimento por algo mais
original; tem de mover a si mesmo. E, na
experiência comum, essas coisas que causam
o próprio movimento são, obviamente, vivas. A
transformação espontânea é o critério da vida.
Movimento, portanto, é uma característica original
do ser original. Buscar outro princípio seria negar a
motivação monista; levaria ao
dualismo. Espontaneidade, portanto, é uma
qualidade inata do corpo.

Esta é uma teoria importante. Os seguidores de


Tales, Anaximandro e Anaxímenes, também
cidadãos de Mileto, forneceram mais provas. Eles,
até mesmo, sugeriram princípios subsidiários,
porém, conservando a mesma visão fundamental.
Assim, os três foram agrupados em uma escola
chamada de filósofos naturais Jónicos ou
simplesmente escola milesiana.

Problemas dos discípulos de Tales

Esses dois discípulos de Tales, especialmente


Anaximandro, acrescentaram fatos sobre
astronomia. Diversas questões se mostravam
prementes, todas envolvendo a relação da Terra
com o Sol. A alternância de dia e noite pode
ser facilmente explicada mediante a suposição
daquilo que é evidente aos sentidos: o céu gira ao
redor da terra a cada 24 horas. Mas a sucessão e a
duração de estações, e a movimentação lateral do
Sol, para o norte e para o sul, são problemas mais
difíceis de serem explicados. Um grande número de
estudantes universitários não sabe, ainda hoje, se as
quatro estações têm a mesma duração ou não;
se indagados sobre como descobrir a resposta,
dizem que perguntariam a um astrônomo ou
procurariam em um livro. Os jónicos não tinham
astrônomos nem livros de referência. Sequer
tinham telescópios com espelhos de
duzentas polegadas. Como poderiam responder tal
questão? Obviamente, se fossem medir a duração
de cada estação, teriam de fazer uso de algum tipo
de instrumento para medida de tempo. De fato,
teriam de inventar um instrumento, caso
nenhum objeto comum de sua cultura se prestasse a
essa função. Qual o instrumento que poderiam ter
usado? Como poderiam determinar o início e o fim
de cada estação? A resposta será deixada para
exercitar a perspicácia do estudante, dada
a informação de que, em algum ponto, ele terá de
determinar a direção norte. (Não, a resposta não é
uma bússola.) Outro problema astronômico da
época se achava nos peculiares “vagantes”
celestiais, os planetas. Algumas vezes, eles
se movimentavam do leste para o oeste, como as
estrelas fixas, e, outras vezes, do oeste para o leste,
como o Sol. Como esses movimentos poderiam ser
explicados? Havia ainda outros problemas, e o
desenvolvimento da astronomia, na Grécia, foi
rápido. Sua história é interessante. Contudo, uma
vez que esta não é uma história da astronomia, o
estudante deverá escolher entre imitar um
filósofo grego e encontrar solução por si mesmo, ou
apelar para a sua fonte de todo conhecimento, os
livros, a fim de descobrir os fatos.

Anaximandro não se satisfez com a ideia da água


como o elemento primário do universo. Para ele, a
água parecia em grau de equiparação com a terra, o
ar e o fogo. Todos esses são resultados de
processos naturais, o desenvolvimento das coisas, e
não a fonte da qual procede todas as coisas. A fonte
não poderia ser nenhuma delas, mas deveria contê-
las ou, pelo menos, conter as qualidades das quais
elas poderiam ser desenvolvidas. Em conformidade
com isso, Anaximandro propôs um elemento que
chamou de apeíron, “sem limite” ou “ilimitado”.

Teofrasto, discípulo de Aristóteles, disse que o


termo “sem limite” indicava um elemento que seria
infinito em extensão. E junte-se a isso a noção de
que nosso sistema solar é apenas um dos infinitos
mundos espalhados pelo espaço infinito. Um século
e meio depois, de fato, os pluralistas propuseram
essa ideia; mas é duvidoso que o século 6° tenha
chegado sequer à noção de espaço infinito; e é
incongruente que a antiga ênfase na unidade tenha
resultado na afirmação de muitos mundos
simultâneos. Pelo menos, outra interpretação é
possível. Na Grécia, a expressão “sem limite” ou
“ilimitado” é aplicada a coisas que não têm divisão,
sem princípio e sem fim. Uma aliança de ouro, por
exemplo, não sofre solução de continuidade; da
mesma maneira, um círculo de mulheres ao
redor de um altar, uma túnica sem costura e uma
esfera, são todos ilimitados.3 Nesses casos, não há
sugestão de ser infinito em extensão. Assim, o
“sem limite”, de Anaximandro, não sendo infinito
em quantidade, ainda poderá ser a inexaurível fonte
do cosmos, porque é uma fonte suficiente para a
produção de todas as coisas. Assim como um
reservatório, ele poderá ser esvaziado a cada
emergência de uma coisa, mas será também
preenchido a cada vez que uma coisa se
dissolva nele novamente. Assim, ele seria infinito
no tempo, ainda que não necessariamente infinito
no espaço.

O elemento original, de Anaximandro, era


“ilimitado” também no sentido de que não era
limitado ou definido por nenhuma qualidade
particular. A água é úmida e o fogo é quente. Mas o
“ilimitado” é — talvez não devêssemos dizer
nem úmido nem quente, mas, sim, ambos: úmido e
quente, frio e seco. Estas quatro qualidades básicas
estão, de algum modo, completamente misturadas
no elemento original, pois, se não estivessem ali,
como a água, o fogo, o ar e a terra, poderiam surgir
dele? É claro que, um elemento que é frio, quente,
seco e úmido, desafia a imaginação; houve, porém,
filósofos posteriores, que, baseados mais
no pensamento do que na imaginação, também
propuseram seres originais bem estranhos à
experiência ordinária: Plotino excluiu todas as
qualidades de seu ser simples, inefável e perfeito,
do qual, de maneira misteriosa,
surgiram diferenciações; Spinoza, entretanto, não
apenas propôs um ser mental e material, quanto lhe
atribuiu um número infinito de qualidades
desconhecidas. Filósofos fazem coisas estranhas.
Porém, este é um mundo estranho.

Anaximandro tentou tornar inteligível o processo


por meio do qual, terra, ar, fogo e água surgiram do
“ilimitado”. Aparentemente, ele tinha em mente
algo como uma centrífuga, um separador de creme:
o “ilimitado” girava ao redor e as qualidades foram
separadas, resultando que a água aparecesse em
alguns lugares e o fogo, em outros; e o cosmos, tal
como conhecemos, veio à forma. Uma vez que esse
giro está relacionado ao movimento das estrelas e
planetas, a astronomia e a cosmologia são
explicadas segundo o mesmo princípio.

Anaxímenes, o terceiro membro da escola


milesiana, achava difícil acreditar em um
imperceptível “ilimitado”. Como alguém poderia
conhecer tal coisa? Parecia-lhe mais razoável
aceitar uma substância empírica. E, dentre as
substâncias empíricas, o ar parecia mais razoável
do que a água. A razão era que a diferença mais
óbvia entre um animal vivo e um morto não seria a
quantidade de água no corpo, mas a quantidade de
ar. O ar, portanto, é o princípio de vida mais
plausível. E, se não for controlada, a água entorna e
derrama; a terra também não pode manter a si
mesma. Porém, se você puser um pé cúbico de ar
em um cômodo, ele permanece ali sem qualquer
suporte. Portanto, uma vez que é mais estável
do que a água, o ar é uma explicação melhor para o
fato de que os planetas não caem do céu. O ar os
mantém em cima, porque é capaz de manter a si
mesmo. “Assim como nossa alma, que é ar, nos
mantém agregados, assim, o fôlego e o ar abarcam
o universo.”
A escolha do ar, feita por Anaxímenes, é um fato
sem importância e, talvez, sem interesse. As razões
em favor do ar são especulações
modernas plausíveis, mas seu método para explicar
como água, terra e fogo vieram do ar é mais
importante e talvez constitua sua maior alegação de
originalidade. Uma centrífuga seria bastante
compreensível numa fazenda produtora de leite
e derivados, mas, é duvidoso que funcionasse em
um questionável “ilimitado”. O método de produzir
diferenças de qualidade a partir do ar é algo
indubitável. Abra a boca e sopre gentilmente a
palma de sua mão — o ar é morno; agora,
quase feche os lábios como se para assoviar, e
sopre forte — o ar é frio. Condensação e rarefação
explicam a geração de qualidades. Além disso, são
processos estritamente mecânicos. Temperatura e
densidade estão, assim, mecanicamente
conectadas. E a explicação mecânica, ainda que
pareça fora de lugar no hilozoísmo, desempenha
importante papel na história da filosofia.

Na avaliação desses primeiros filósofos, é


impossível determinar se devemos dar a eles maior
ou menor crédito. Quão profundamente eles
realmente entenderam os próprios princípios?
Predisseram o futuro? Ou nós estaríamos lendo
suas propostas a partir daquilo que aprendemos de
seus sucessores? O mecanismo filosófico não
estava claro e explicitamente enunciado até um
século depois. Entretanto, modernos escritores de
livros-texto com menor capacidade talvez lhes
neguem o crédito devido porque medem a mente
filosófica antiga com base em sua própria falta de
penetração. O risco de subestimar o fôlego e
a profundidade dos milesianos e outros pré-
socráticos é aumentado pelo acidente histórico da
perda dos seus livros. Cada peça do conhecimento
desse período tem de ser juntada de citações e
discussões da autoria de Platão, Aristóteles
e outros. Se Kant fosse conhecido apenas por meio
de uma página extraída de cada um dos cinco a oito
autores do século 20, poderíamos considerá-lo
maior filósofo do que Anaxímenes? Sem dúvida
estes homens tinham uma cosmovisão bem
integrada. Seus pontos essenciais foram todos
mencionados. Todos os fenômenos, de todo o
universo, sem exceção, podem ser explicados com
base em um único princípio corpóreo. Como esse
corpo é origem de todas as coisas, ele tem de ser
permanente, sem princípio nem fim. E o processo
pelo qual esse corpo toma a forma de objetos
comuns é, ao mesmo tempo, um processo vivo e
mecânico. Ele é mecânico quanto à sua descrição, e
vivo no sentido de que o elemento original causa o
próprio movimento; nada o inicia, ele se
move espontaneamente. A filosofia jônia, portanto,
não está tão distante do naturalismo do século 20.

Entretanto, conquanto o historiador moderno,


generosamente, possa lhes creditar maior insight,
há uma consideração que jamais lhes passou pela
mente.

Pelo menos, toda evidência e plausibilidade são


contra a ideia, O monismo corpóreo dominava o
pensamento milesiano. Eles consideraram e
descartaram a possibilidade de uma pluralidade de
elementos. Eles pensaram e consideraram absurda a
ideia de uma origem absoluta e de uma destruição
final de um elemento. Eles ponderaram as
alegações de um universo finito contra um universo
infinito. É possível até, que tenham considerado
uma alternativa para o movimento espontâneo.
Entretanto, se a explicação é, em certo sentido, a
redução da multiplicidade à unidade, eles
aparentemente jamais pensaram em nada mais
do que uma unidade corpórea.

Cultura em isolamento

O fato de que os jônios tenham, possivelmente,


tentado explicar o universo em termos corpóreos,
parece uma maneira natural de começar a filosofia.
Tal afirmação concorda com o senso comum de
que não se poderia esperar que os primeiros
filósofos pensassem sobre outra possibilidade.
Porém, além dessa psicologia individual, havia uma
cultura em isolamento, que escondia deles um tipo
de visão radicalmente diferente. Esse isolamento
cultural continuou por muitos séculos e não ficou
restrito aos jónicos mais antigos. Mesmo
aqueles, dentre os seus sucessores, que chegaram à
noção de uma realidade incorpórea, jamais
pensaram em reduzir a multiplicidade do universo
ao ato criativo de um Deus pessoal e Todo-
poderoso. Esse conceito judaico foi introduzido,
primeiramente, na civilização greco-romana, por
meio da expansão do cristianismo. É claro que os
gregos pensaram sobre deuses; de fato, Tales é
citado como tendo dito que todas as coisas estariam
cheias de deuses. Mas tais deuses, algumas
vezes, científica, mas não historicamente
interpretados como personificação de
poderes naturais, eram seres corpóreos que, tal
como para outros hilozoístas, teriam vindo à
existência, mediante processos naturais. Não seriam
eternos, mas teriam nascido; poderiam ser
sobrepujados e, possivelmente, destruídos. A ideia
de um Deus Todo-poderoso era completamente
estranha aos gregos, quanto mais o conceito de
criação. A ideia de um Deus Todo-poderoso que
pudesse chamar o mundo à existência não era uma
tese que os gregos rejeitassem: era algo que jamais
haviam pensado. Criação é uma ideia encontrada
somente no pensamento hebraico. Até mesmo
quando Lucrécio nega que qualquer coisa tenha
surgido mediante poder divino, não há indicação
que alguém, no mundo pagão, tenha ouvido sobre
criação. O que Lucrécio quis dizer é,
simplesmente, que os deuses dos gregos, ou dos
romanos, não produzem efeitos no
mundo. Certamente Lucrécio teria repudiado a
ideia judaica de criação, se a tivesse conhecido. O
ponto é simplesmente que os pagãos jamais haviam
pensado sobre tal ideia.

Essas coisas não são ditas com o propósito de


destratar Tales, Platão ou até mesmo Lucrécio, que,
com algum esforço poderia ter aprendido dos
judeus.

O propósito é duplo: pedagógico e lógico. Um


contraste entre duas visões radicalmente opostas
coloca ambas em realce. E, conquanto um apelo às
ideias judeu-cristãs antecipe, anacronicamente, o
capítulo sobre a Idade Média, a cultura Ocidental
de nosso tempo tem sido tão amplamente
impregnada com conceitos cristãos, que é razoável
presumir ao menos alguma familiaridade com os
mesmos. O propósito lógico é o de apontar que, em
qualquer sistema de filosofia, os axiomas e
métodos usados, determinam a natureza das
conclusões. Mais de uma vez, de Tales a John
Dewey, intrincadas dificuldades serão postas de
lado sob a alegação de inconsequência, uma vez
que o problema real reside no ponto de partida. A
aceitação inquestionável de uma posição original,
quer por causa da ignorância das alternativas, quer
por causa da recusa em considerá-las, não apenas
conduz a conclusões antecipadas - qualquer
conjunto de axiomas tem esse efeito - mas também
conduz à aceitação da totalidade de um sistema,
sem a devida ponderação das objeções que
deveriam ser enfrentadas. Embora determinado
método filosófico possa permitir algumas escolhas
e responder a algumas objeções, poderá, às vezes,
ignorar e prejudicar outras. Dessa
maneira, sistemas opostos não têm recebido uma
atenção adequada. O ponto de partida impede suas
considerações.

Entretanto, esta é, pelo menos, uma das vantagens


de estudar filosofias escritas em isolação cultural.
Poucas páginas atrás, o valor das antigas
filosofias foi defendido com base no fato de que
são mais simples e fáceis do que as filosofias
modernas. Séculos de profunda reflexão são
fadados a produzir complicações. Isto é verdadeiro,
até mesmo, no período grego, pois Aristóteles era
bem mais intrincado do que os jónicos. Mas a
civilização moderna, além dessa fonte de
complexidade, herdou a tradição hebraica com a
grega, consistindo de uma mistura das duas. Agora,
poderia ser plausivelmente sustentado que qualquer
mistura de pontos de vistas tão radicalmente
opostos resulta em confusão. Karl Marx e Friedrich
Nietzsche pretenderam remover a confusão,
restaurando a pureza do paganismo, enquanto os
cristãos fundamentalistas preferem a pureza da
outra tradição. Tomás de Aquino, o grande
pensador medieval, não cria que a mistura de ideias
pagãs e cristãs resultasse, necessariamente, em
confusão. Por isso ele objetivou integrar as
melhores conclusões das especulações gregas com
a cosmovisão cristã. Em Aristóteles, especialmente,
ele cria ver o que a mente humana era capaz de
aprender sem o auxílio da revelação divina.
Por exemplo, embora seja possível provar a
existência de Deus, a doutrina da providência está
além da sanidade da razão, pois, se pudesse ser
demonstrada, Aristóteles o teria feito. Bem, talvez
não seja necessário, hoje, ter Aristóteles em tão alta
estima nem supor que a filosofia grega em sua
totalidade tenha exaurido a habilidade humana.
Ainda assim - se existem conflitos entre
o paganismo e o cristianismo, e, se surgem dúvidas
quanto ao fato de o hegelianismo, o pragmatismo e
o humanismo contemporâneo incluírem em seus
sistemas as virtudes cristãs de amor, misericórdia e
justiça, as quais são baseadas no conceito de um
Deus Todo-poderoso, ou se, seguindo Spinoza e
Nietzsche, algumas ou todas essas virtudes
deveriam ser consideradas como sendo vícios - o
pensamento grego puro será um padrão útil de
julgamento para a avaliação de nossa época.

HERÁCLITO

Próximo dos jónicos, de uma visão geral, estava


Heráclito, que viveu em Éfeso, aproximadamente
no período de 525-475 a.C. Somente o
aspecto geográfico nos impede de chamá-lo de
milesiano: mas sua teoria é essencialmente a
mesma. De um ponto de vista científico, ele poderá
parecer inferior aos seus predecessores, pois
afirmava que haveria um novo Sol a cada dia e que
este teria um pé de diâmetro. Se esse notável
comentário não era para ser tomado literalmente, já
que o estilo oracular de Heráclito era cheio de
aforismos e de dizeres obscuros, a fim de mistificar
o público, ele certamente servia para escarnecer da
polimatia e da informação detalhada. Uma mente
abarrotada com fatos, tal como uma lista telefônica
e, talvez, nem mesmo organizada em
ordem alfabética, não era a sua noção de sabedoria.
Suas visões eram nobres e grandiosas, e que
diferença faz se o Sol nasce novo a cada dia ou se o
mesmo Sol reaparece? Em contraste, sua visão
mais ampla aparece na teoria do ciclo cósmico.
Assim como dia e noite se alternam, e assim como
as estações vêm e vão, assim também o processo
universal se repete num ciclo cósmico. Nosso
presente mundo, portanto, é como se fosse uma tira
de película cinematográfica em projeção circular;
quando chega o final, começa a mostrar tudo de
novo.

Ainda assim, Heráclito não se mostrava


completamente indiferente ao fenômeno natural. Se
o movimento dos planetas e do Sol é uma questão
muito detalhada e insignificante, o movimento, o
movimento em si, requer toda a nossa atenção.
Quando rejeita água e ar e identifica o único
elemento original como sendo o fogo, o mais
rápido de todos os corpos, ele, sem dúvida,
está motivado pelo desejo de selecionar uma base
adequada para o movimento. O fato de que havia
movimentos no mundo não era algo novo, mas
pertence a Heráclito a distinção de concentrar a
atenção no movimento em geral. Sem movimento,
sem alteração de qualidades, sem oposição e
equilíbrio de forças antagônicas, não poderia haver
o mundo. E a luta entre o quente e o frio que faz as
estações; são as pulsões do arco, para trás e para a
frente, que fazem a flecha voar; a tensão é
necessária para a lira; a doença torna a saúde
agradável; e a fadiga, o descanso. A vida é uma
luta, e a guerra é o pai de todas elas. Poetas talvez
lamentem a mudança e a decadência do tempo e o
passamento de uma era dourada; Homero desejou
que a rivalidade cessasse; e o homem velho
deseja que a mocidade perpetue. Tais gemidos ante
o tempo e as mudanças resultam de uma visão
humana limitada. Para Deus, todas as coisas são
justas e boas, mas os homens supõem que algumas
coisas são justas e outras, injustas. Neste mundo, e
em qualquer mundo, todas as coisas têm de mudar.

Do alto de uma colina, um rio flui para um vale e,


emoldurado por árvores, parece parado como que
numa pintura. Sabemos que o rio se move, mas
não contamos com seu movimento. Nossa sensação
é débil e rude demais para ver as coisas como elas
são e, por isso, a opinião comum assume que
algumas coisas não se movem. Ao contrário, todas
as coisas fluem. Nenhum homem jamais colocará o
pé duas vezes no mesmo rio. Como poderia? Da
segunda vez que tentasse, novas águas teriam
descido na corrente e o rio já não seria o
mesmo. Leito e margens não seriam mais os
mesmos, pois a constante erosão haveria mudado
suas qualidades. Assim, se o rio é sua água, seu
leito e suas margens, o rio já não é o mesmo rio.
Estritamente falando, não há um rio. Quando
nomeia um rio, a opinião comum supõe que nomeia
algo que permanecerá ali, pelo menos, por um
pouco de tempo. Mas o rio jamais permanece em
qualquer tempo. Ele já mudou enquanto seu nome
era pronunciado. Não há um rio. Pior co que isso,
um homem não poderá colocar o pé duas vezes no
mesmo rio porque ele mesmo não estará ali duas
vezes. Nós também mudamos, e a pessoa que pôs o
pé nas águas já não existe para pisar segunda vez.
Uma pessoa é como um rio, uma corrente de
consciência, como disse William James; e o fluxo
de consciência humana jamais tem os mesmos
conteúdos, o mesmo fundamento trem os mesmos
limites. Pessoas não existem.

Quando alguém diz que alguma coisa existe, o


significado é que alguma coisa não muda. Um
objeto que tenha realidade será um objeto que
permanece sendo sempre o mesmo. Suponha que
um escultor esperto tome uma porção de narro de
modelar e comece a trabalhá-la rapidamente. Em
breve o barro toma a inerência de um urso de
brinquedo. Mas o escultor não para; seus dedos
ágeis continuam trabalhando e tornam o
momentâneo urso em uma pequena estátua ce Zeus,
que logo desaparece para dar lugar à forma do
Empire State Building. O que é isso? —
perguntamos. A resposta não será um urso, um
deus ou um edifício. Nessas circunstâncias,
poderemos dizer que se trata de uma porção
de barro para modelagem. Chamamos de barro,
porque este é o que permanece «pesar das
mudanças. Porém, se o barro não for o mesmo, se
ele muda de barro para cera, de cera para papier
maebé, e não para de mudar, chamaríamos de nada;
isto é, que não existe, irreal.

Contudo, se tudo é irreal, se tudo muda, não há


possibilidade de dar nomes às coisas. Se nada
existe, nada há para conhecer. O
conhecimento, portanto, deve ser o correlato da
imutabilidade; e o imutável é aquilo que
queremos dizer com o termo realidade. Embora
tenha dito que todas as coisas fluem, Heráclito
admitiu haver algo que não sofria mudança: só que
esse algo não seria uma "coisa”. Isto seria a lei, a
lei da mudança. A palavra grega que Heráclito
usou foi Logos, um termo mais tarde assumido
pelos estoicos, depois adotado por Filo e com a
ajuda do Evangelho de João, utilizado pelos
cristãos do período patrístico. A palavra Logos
poderá ter o sentido próximo de qualquer expressão
de pensamento. Poderá descrever livro, palavra,
razão, proporção, teoria ou argumento.

Coerentemente, um dos fragmentos de Heráclito


poderá ser traduzido tanto: “esta teoria, ainda que
sempre verdadeira, não é entendida pelo homem”,
quanto: “este logos, ainda que...” Em ambas as
traduções há sempre algo que permanece, que não
muda, seja a verdade, seja a lei, seja um logos
misterioso. Sob qualquer avaliação, não se trata de
uma coisa em particular.

Entretanto, Heráclito continua sendo um hilozoísta,


e não poderia distinguir entre lei imaterial e fogo
corpóreo. Se o questionarmos bem de perto,
hoje, nossas questões tenderiam a ser anacrônicas.
Dentro das inadequadas categorias do século 19, o
logos é uma energia material inteligente — uma
ideia talvez não muito remota de algumas
especulações do século 20. À luz disso, algumas
frases de Heráclito adquirem sentido mais claro:
sabedoria é entender a inteligência que dirige todas
as coisas, uma inteligência que quer e não quer ser
chamada de Zeus; a ordem do universo sempre tem
estado aí, é agora, e sempre será um fogo perene,
aceso e extinto em razões matemáticas fixas.

Há muito mais informações sobre Heráclito que


poderiam ser detalhadas aqui; por exemplo, ele foi
um proibicionista, pois, uma vez que o fogo é
o elemento original, uma alma seca seria a melhor e
mais sábia. Contudo, Heráclito não estava
interessado em informações detalhadas. A menção
da mudança universal atuando em razões
matemáticas fixas é indicação da influência de
outra escola filosófica, além da jónica. Sem dúvida,
Anaximandro tinha uma tênue percepção da
necessidade da matemática na física teórica, mas
um estudo mais completo dos números foi
contribuição de Pitágoras.

Os PITAGÓRICOS

Uma vez que os homens estudados até aqui eram


expoentes do hilozoísmo e do monismo corpóreo,
um método comparativo tornaria tentador
colocar todos os primeiros pré-socráticos como
defensores dessas visões dominantes. Assim,
quando a análise de Parmênides expôs os absurdos
e as implicações de seus predecessores, os pré-
socráticos posteriores foram forçados a adotar
o pluralismo corpóreo. Tal é, sem dúvida, o curso
geral da História; os primeiros pitagóricos, que
certamente seriam corporalistas, talvez tenham
sido, também, monistas. Ainda que suas categorias
básicas fossem arranjadas em uma tábua de pares
contrários - o que parece favorecer o dualismo —
ímpar e par são, ambos, categorias de números, e
um é a fonte de número, de maneira que não se
pode excluir um possível monismo. Porém, visto
que os pitagóricos representam uma escola com
longa história, e não um único homem cuja vida
possa ser colocada entre o professor e seus alunos,
fica difícil inserir um relato deles na história
dos pré-socráticos e, ao mesmo tempo, manter a
fluidez do desenvolvimento cronológico.
Sobretudo, as informações que têm sido
preservadas vêm, em sua maior parte, de fontes
mais recentes, que poderiam não ter em mente
o pitagorismo mais antigo, ou talvez não tê-lo
registrado de forma acurada. Até mesmo com a
ajuda dos relatos de Aristóteles, fica difícil
distinguir entre pré e pós pitagorismo
parmenidiano.4 Contudo, uma vez que os próprios
pitagóricos antedataram Heráclito e, talvez, tenham
lhe atribuído a noção da razão matemática, é
possível discutir os pitagóricos, nesta conjuntura.

Religiões homéricas e de mistério

A escola pitagórica, com seu centro no sul da Itália,


localizava-se, tanto intelectual quanto
geograficamente, no outro lado do mundo de fala
grega. O pitagorismo não estava tão distante a
ponto de abandonar o ponto de vista grego nem de
abraçar o pensamento judaico de um Criador Todo-
poderoso, mas exibia uma motivação religiosa e
ansiava por salvação, o que estava ausente de todas
as demais filosofias. Se por um lado, a religião
grega comum, que os pitagóricos tentaram
implementar, não era naturalista no sentido
moderno do termo, virtualmente ateísta, por outro
ela diferia do sentido judaico, sendo ainda
uma religião natural. Os deuses poderiam ter falado
ocasionalmente aos homens e tais conversações
poderiam ser chamadas de revelação, mas os
gregos não tinham nada similar a uma Bíblia
autoritativa. Quando Homero é chamado de a
bíblia dos gregos, a expressão deve ser tomada em
um sentido abrangente. As histórias dos deuses não
deveriam ser tomadas como informações acuradas,
e, onde houvesse versões diferentes de uma
genealogia ou ato heroico, não parecia
haver insistência em que uma forma configurasse
ortodoxia e, outra, heresia. Em segundo lugar, a
religião grega pode ser chamada de natural porque
os deuses eram iguais aos homens. Eles eram
finitos em poder e, frequentemente, imorais na
conduta. Adorá-los, portanto, não punha restrições
às falhas humanas, e forneciam pouco incentivo à
vida moral. Os gregos, é claro, tinham alguma
noção de certo e errado, de uma vida boa e de uma
vida má; mas careciam da ideia judaica de pecado,
de depravação humana, e falhavam em ver
qualquer necessidade de regeneração. Eles não
admitiam ter um coração de pedra e, então, não
poderíam pedir a Deus um coração de carne. Seu
programa e seu ideal, em vez de ser um novo
nascimento ou implantação de uma nova natureza,
era o completo desenvolvimento das habilidades
humanas naturais. O conceito de Homero sobre a
vida futura era igualmente destituído de motivação
moral. Praticamente todo homem, bom, mau ou
indiferente, enfrentaria o mesmo destino.
Poucos criminosos excepcionalmente perversos,
que houvessem perpetrado crimes contra os deuses,
seriam torturados no Tártaro, tal como Tântalo e
Sísifo. Poucos heróis se tornariam semideuses. E
todos os demais passariam a eternidade no Hades.
O Hades não seria um lugar de punição, mas
simplesmente a habitação dos mortos onde adejam
as sombras dos homens abatidos. A memória
perduraria, mas a razão seria extinta. Trevas
sinistras substituiriam a luz do sol e a alegria
do mundo superior. A religião homérica é
frequentemente retratada como um vigoroso, alegre
e entusiasmado jogo da vida, mas que permanece
alegre somente pela ausência de pensamento. Se
alguém, por acaso, pensasse sobre o futuro, ou se
dificuldades, decadência nacional ou agressão
externa, interrompessem o jogo, a alegria se
evaporaria.

Tais calamidades todas realmente ocorreram. No


caso de dificuldades pessoais, a religião comum
tinha pouco para oferecer em termos de
consolação divina. Com os ritos assumindo a
natureza de função governamental, e tornando-se
mais uma questão de lealdade política, do que de
convicção pessoal, a deterioração das cidades
gregas, e a posterior agressão romana, tenderam
a tornar as observâncias homéricas vazias e
superficiais. Não é de surpreender, portanto, que
tantos indivíduos, até mesmo em séculos anteriores,
tivessem buscado algo melhor.

Essas deficiências forneceram oportunidade para as


religiões de mistério. Um mistério é um rito
secreto, no qual, objetos sagrados são exibidos e
as informações concedidas são aquelas que não
poderiam ser vistas ou conhecidas pelo adorador
antes que tivesse sido purificado numa cerimônia
de iniciação. Um dos mistérios era o da adoração
de Dionísio. Do lado de uma montanha, à noite, os
adoradores eram conduzidos, por si mesmos, ao
frenesi, mediante o uso de música agitada,
dançando ao redor de um boi - o seu deus. Quando
já haviam chegado ao delírio, jogavam-se sobre o
boi, cortavam-no e comiam sua carne crua. Dessa
maneira, tinham deus dentro de si. Esse era, de fato,
seu contato e comunhão com deus. Aos iniciantes,
prometia-se também a alegria na vida futura. O
orfismo era um mistério mais simples. Enfatizava a
educação em vez de a embriaguez e exibia um
melhor senso moral naquilo que pregava,
não somente a recompensa futura, mas também a
punição do iníquo. Havia também outras religiões
de mistério.

Todos esses mistérios, em contraste com a religião


homérica, eram meios para obtenção da felicidade e
da imortalidade. O senso de necessidade e o
desejo de salvação aumentaram ao longo dos
tempos e, de 200 a.C. a 100 d.C. houve grandes
ondas de propaganda religiosa.

Os pitagóricos reconheceram cedo a necessidade de


salvação e o desejo de uma eternidade abençoada.
Para assegurá-las, eles observavam certos tabus.
Por exemplo, não comiam feijão nem galos
brancos, e não usavam roupa de lã, mas somente de
linho. Também memorizavam um poema de
orientação sobre o que fazer quando chegassem ao
outro mundo. Além desses tabus curiosos,
insistiam em uma vida de virtudes, especialmente
de amizade. E do pitagorismo que vem a história de
Damião e Pítias. Eles também criam principalmente
que a salvação vinha do conhecimento, e essa busca
do conhecimento resultou na matemática.

Matemática

Um dos sólidos triunfos do pitagorismo é a


geometria. Pitágoras pessoalmente recebe o crédito
pela elaboração do Teorema de Pitágoras. Se um
estudante de faculdade que estudou geometria
plana, no ensino médio, não puder se lembrar
de como a prova é reproduzida, fica claro que a
descoberta da prova sem o apoio da instrução foi
um sucesso que apelou para o sacrifício do boi, aos
deuses.
Além da geometria, eles desenvolveram o que
chamamos de teoria dos "úmeros. Certas questões
os intrigavam. Primeiro, o que é um número?
Até mesmo a questão: o que são os números? — é
mais difícil de responder do que do que se poderia
supor. E claro, dois, três e quatro são números. Mas
o um é um número ou a fonte da qual se originam
os números? Felizmente, para eles, os gregos
jamais tiveram de enfrentar a questão: é, o
quadrado de menos um, um número? Uma vez
determinada uma série de números, há questões
sobre cada número em particular. Será que dois é
um número que simplesmente vem depois do um,
tal como, num jogo de beisebol, Jim segue Jack na
posse do bastão? Ou é um conceito abstrato que
inclui todas as instâncias de pares? Além da
questão de se cada número é um conceito de classe
ou não, há a questão de se existiriam classes de
números e quais seriam as suas várias propriedades.

A última questão não lhes foi tão difícil.


Obviamente há duas classes de números, os pares e
os ímpares. Uma vez que os números ímpares não
podem ser divididos ao meio, o conceito de
imparidade é relacionado ao conceito de limite,
enquanto o conceito de paridade é ilimitado. O
limitado ou definido é bom, direito e masculino, ao
passo que o ilimitado ou caótico é mau, esquerdo e
feminino. Dessa maneira, uma tábua de dez pares
de opostos estava formada, e essas oposições
básicas explicavam a conflitante multiplicidade que
é harmonizada em cada coisa.

Além dos números pares e ímpares, há os números


quadrados, obtidos por meio da adição sucessiva de
números ímpares. Isto é, um mais três são quatro,
um mais três mais cinco são nove, e daí em diante.
Há também os números oblongos, obtidos por meio
da adição sucessiva de números pares. Depois, há
os números primos, dos quais o único fator (além
do próprio número) é o um. Números perfeitos são
aqueles cujos fatores, quando adicionados, resultam
no próprio número. Seis pode ser dividido por um,
dois e três, a soma dos quais são seis. Com essas
classificações, os pitagóricos descobriram a
relação entre números primos e números perfeitos.
Observe o seguinte. Construa uma série, partindo
de um e dobrando cada número anterior: um, dois,
quatro, oito, dezesseis, etc. Comece a adicionar as
séries. Sempre que a soma for um número primo
(tal como um mais dois são três, e três é primo),
esse primo, multiplicado pelo último número
adicionado, será um número perfeito (tal como três,
a soma, multiplicado por dois, dá seis). Um mais
dois, mais quatro, são sete, um primo; e sete vezes
quatro, são 28, um número perfeito. Adicione oito,
e o total não será um primo. Adicione dezesseis e o
total será trinta e um, um primo; 31 vezes dezesseis
são 496. Confira os seus fatores.

Tudo isso já é bastante brilhante, mas os


pitagóricos foram além. A matemática se tornou a
chave para a cosmologia. Em nossa presente
era einsteiniana o valor da física matemática sequer
é discutido, mas os pitagóricos usaram a
matemática de maneiras que Einstein negligenciou.
Para eles, o mundo não é feito de água ou fogo,
mas de números. Os números não deveriam
ser considerados como conceitos de classe
abstratos, ou como meros símbolos
formais; números como entes espacialmente
estendidos, e os corpos, como misturas de números.
Fórmulas matemáticas ou químicas em relação a
corpos são coisas rotineiras, hoje em dia, mas nós
usamos os números para indicar a quantidade
de hidrogênio ou qualquer elemento em um
composto específico. Para os pitagóricos, os
números não indicam apenas proporções, mas são,
eles mesmos, a matéria. Eles se indulgenciaram
também na esperança de aplicar esse tipo de teoria
de números a problemas sociais, atribuindo à
justiça, o número quatro, um quadrado; ao
casamento, cinco, porque é uma união do primeiro
número ímpar, ou masculino, com o primeiro
número par, ou feminino.

Onde está a linha divisória entre a superstição da


numerologia e a sobriedade da matemática? Há
algum segredo profundo no fato de que harmonias
musicais são frações simples, tais como um meio,
um quarto, um quinto, enquanto que as
desarmonias são frações mais complicadas, tais
como oito nove avos, quinze dezesseis avos? E qual
seria sua reação, se a melhor estimativa da distância
entre planetas mostrasse a mesma proporção das
notas na escala musical? A harmonia das esferas
não lhe pareceria divina?

Como sempre, há muito material interessante que


será omitido. Seria instrutivo ver como o zero se
torna um número, e como, mais tarde, a
raiz quadrada de menos um se tornou um número.
Mas isso seria parte da história da matemática.
Alguém, ainda, poderia traçar o neopitagorismo, de
50 a.C. em diante, passando, possivelmente, pela
Idade Média, até Romola, o romance de George
Eliot. Contudo, esses interessantes meandros
deverão ser postos de lado a fim de estudarmos o
maior de todos os pré-socráticos, Parmênides.

PARMÊNIDES

A escola ele ata tinha seu centro na cidade de Eleia,


na Itália meridional, Magna Grécia. Algumas das
motivações dessa escola, baseado nas
quais Parmênides desenvolveu seu imponente
sistema, eram originadas de Xenófanes que, tendo
nascido em Cólofon, na Ásia Menor, passou pelo
mundo grego, e chegou até Eleia. A preocupação
de seus poemas era atacar a estupidez e
a impiedade do politeísmo. “Aqueles que afirmam
que os deuses são nascidos, são tão iníquos quanto
os que dizem que eles morrem, pois uns e
outros concordam haver um tempo no qual os
deuses não existem.” Ele enfatizou o absurdo da
concepção dos deuses, de maneira tão pontual, que
Rupert Brooke tomou sua verve no poema Heaven
[Céu].5 Positivamente, Xenófanes ensinou que a
origem dos deuses é inconcebível e que haveria
somente um Deus. Se isso for simplificado ou
generalizado, surge a tese de Parmênides: a
origem é inconcebível e só existe o Um.

Xenófanes nasceu antes de 590 a.C., e viveu uma


longa vida, chegando, pelo menos, aos 90 anos; de
modo que é possível que Parmênides o tenha
conhecido, na infância. O principal trabalho de
Parmênides data de cerca de 480 a.C.

Lógica e contrassenso

Parmênides continuou e intensificou a ênfase de


Xenófanes sobre a unidade. Mas sua convicção
mais acentuada era a de que o filósofo não deveria
proferir disparates. Se o mundo é racional, uma
explicação do mundo também deve ser racional; se
as explicações forem irracionais e todas as teorias
forem absurdas, que esperança haverá para o
filósofo? Absurdos não descrevem coisas reais.
Tente pensar sobre um círculo perfeito que tenha
quatro cantos de noventa graus. Isso sequer pode
ser pensado. O pensamento requer um objeto, e
aquilo que não puder ser pensado não poderá
existir. Se alguém tenta pensar em algo que não
existe, por exemplo, um círculo quadrado, não
estará pensando em nada; e pensar em nada não é
pensar. A despeito de quão elaborada ou instruída
pareça uma teoria, se o seu objeto não existir, é um
pensamento sobre nada. A geometria de um círculo
quadrado é um contrassenso.

Assim, diz Parmênides, os filósofos que o


antecederam falaram disparates e tentaram pensar
sobre nada. Tales havia dito que o fogo e a terra
eram (realmente) água; e Heráclito disse que a terra
e a água eram fogo. Ambos falaram sobre a
quadratura do círculo. Considere a afirmação de
que o fogo é água. Um simples exame mostra que a
declaração é falsa: obviamente, fogo não é
água. Como a palavra fogo significa uma coisa e a
palavra água significa outra coisa, o que poderia
ser mais claro do que o fato de que elas não
significam a mesma coisa? E, se elas não são a
mesma coisa, como poderá alguém afirmar
sua identidade e dizer que água é fogo?

Motivado pelas dificuldades lógicas das filosofias


anteriores, Parmênides foi além. Parece que há,
pelo menos, um predicado que pode ser atribuído
tanto à agua quanto ao fogo. Não se poderia dizer
que a água é existente e que o fogo é existente?
Infelizmente a conclusão será a de que a água é
não-existente, pois, _ma vez que a palavra água
significa uma coisa e a palavra existente
significa outra, o que poderia ser mais claro do que
o fato de dizer que elas não significam mesma
coisa? E um contrassenso, portanto, dizer que a
água existe.

Contudo, não se poderia sustentar que a água é


água? Certamente água é água — quem poderá
negar? Parmênides pode, pois, embora, neste caso,
a primeira água e a segunda água, signifiquem a
mesma coisa, a atenção deve se concentrar no
verbo é. A afirmativa diz: a água é. Faz pouca
diferença o que a água é; se é rogo ou
simplesmente água. O problema reside na noção de
que a água é. A primeira parte do argumento
demonstrou que a água não existe; e, se a água
não é. então sequer a água é água.

Será que esse tipo de lógica nega a totalidade da


existência? De modo nenhum! Aquilo que é
existente realmente existe. O ser é. Ser é ser. Não é
claro como o cristal que aquilo que existe, existe?
De fato, somente aquilo que existe, existe. O que
não existe, não existe. O não-ser não é; somente o
ser é.

Unidade absoluta

Mais importante ainda, o Ser é um. Se o Ser não


fosse um, mas muitos, isto é, se houvesse diversos
seres, tais diversos seres teriam de diferir uns
dos outros. Se não diferissem, todos seriam o
mesmo Ser e não haveria diversos seres. Porém, se
eles são diversos e diferentes, eles diferirão com
respeito ao Ser ou com respeito ao não-ser. Não há
outro “a respeito” em que possam diferir. Mas eles
não poderiam diferir com respeito ao Ser, pois este
é o ponto de similaridade assumido - supõe-se que
todos eles sejam seres; portanto, eles não poderiam
diferir com respeito ao ser. E menos provável ainda
que pudessem diferir com respeito ao não-ser, pois
o não-ser não existe, Ele não é nada, e não pode
sustentar diferenças. Conclui-se, portanto,
inexoravelmente, que diversos seres não existem
em uma realidade diferente. Logo, não há muitos
seres, mas apenas um único Ser.

Consistentemente com isso, o Ser não pode ter sido


originado. Algo originado deve vir de outra coisa,
ou de si mesmo. O Ser não vem de outra coisa
porque outra coisa é não-ser; e o não-ser não existe
para que qualquer coisa venha dele. O Ser também
não pode vir de si mesmo, pois o Ser já é e não é
necessário que proceda de alguma coisa. De modo
que uma origem do Ser é inconcebível e o Ser é
eterno.

Se o Ser não pode surgir de nada, ele também não


pode vir a ser outra coisa, pois nada há em que ele
possa se transformar. E uma vez que não
há nenhum tipo de diferença, o Ser é totalmente
imóvel e sem mudança. O Ser é completamente
imutável.

A esta altura, os estudantes universitários modernos


e os gregos antigos começam a protestar dizendo
que o Ser de Parmênides não se parece muito
com um mundo. Nós observamos diferenças de cor;
ouvimos diferentes sons; e os planetas se movem.
Deve haver algo errado! Sim, concorda
Parmênides, algo está errado em algum lugar;
porém, é necessário indicar onde está o erro.
As objeções do senso comum repousam sobre as
sensações; o argumento deve se basear na razão.
Não obstante aquilo que imaginemos ver, não há
justificativa para proferir insensatez. Qualquer
teoria que diga que o não-existente existe tem de
ser considerada falsa; e o fato de que a teoria possa
estar colocada de maneira precisa e em
conformidade com a experiência sensível não a
torna menos absurda. Quando vemos coelhos
pulando de dentro de um chapéu ou um homem
subindo por uma corda atada ao nada, sabemos que
as coisas não são como vemos. Quando a razão e as
sensações conflitam, devemos abrir mão das
sensações.

A razão, entretanto — pelo menos a razão daqueles


que tomam contato com Parmênides pela primeira
vez - requer um pouco mais de descrição sobre o
Ser. O que ele é? Dizer que Ser é Ser e mais nada
parece reduzir o Ser a uma mera palavra, um som
sem sentido. Aparentemente, Parmênides também
pensou assim, pois fez uma tentativa desesperada
para descrevê-lo, até mesmo, correndo o risco de
contrassensos Devemos lembrar, neste ponto, que
Parmênides foi um pré-socrático, e não estava
completamente emancipado das opiniões dos
seus dias. Sob a influência do monismo corpóreo,
ele compartilhou a visão de que somente um corpo
poderia ser real. Assim, seu Ser teria um corpo
sólido, homogêneo e extenso. Para que não
houvesse nenhum tipo de diferença, ele teria de ser
homogêneo. Pela mesma razão, teria de ser
completamente simétrico; isto é, estender-se
igualmente para ambos os lados do próprio eixo.
Essa condição poderia ser preenchida por um corpo
infinitamente extenso, mas, para os
gregos, infinitude porta a desagradável conotação
de algo indefinido e inconcluso. Portanto,
Parmênides escolheu a outra única possibilidade, e
concebeu o Ser como uma esfera, um sólido e
impenetrável átomo de matéria. A maneira
como isso influenciou os pré-socráticos posteriores
será visto mais adiante. Antes disso, eis um breve
sumário.

O sentido de "é"

De todos os filósofos pré-socráticos, Parmênides é


indubitavelmente o mais importante. Ele foi o
primeiro a reconhecer que há questões básicas
de lógica envolvidas em todas as teorias físicas ou
cosmológicas. Ele foi levado pela questão da
predicação. Qual era a importância de atribuir um
predicado a um sujeito? Quando alguém diz que
uma coisa é outra, não estará dizendo que são
a mesma coisa? O verbo “é” não afirma identidade?
Não afirma também existência? Se, quando
dizemos que a água é fogo, ou que Tales é um
jônio, não queremos dizer que eles sejam, ou que
existam, não estaremos proferindo um
disparate? Em qualquer condição, descobrir e
defender outro significado para o verbo “é” exigirá
considerável ingenuidade. Esta matéria de lógica
forçou Parmênides a desconfiar das sensações e a
adotar um procedimento que talvez pudesse
ser chamado de racionalismo. Visão similar foi
antecipada por Heráclito e reaparece em Platão,
Spinoza, e Hegel. Parmênides, contudo, seguiu esse
caminho de maneira mais consistente do que os
filósofos mais antigos, e com maior singularidade
de propósito do que os mais recentes.

Monismo consistente

A excelência e a importância de Parmênides são


vistas também no fato de que sua atenção à lógica
levantou as necessárias implicações do monismo
corpóreo. Um universo feito de uma matéria que
seja realmente uma, será uma unidade como a
descrita por Parmênides. Uma vez que a unidade
seja um princípio filosófico de tamanha
importância, de fato, uma vez que a explanação foi
antes definida como declaração de unidade, uma
teoria racional poderia admitir a existência de
diferenças somente como confissão de falha. Acaso
os pré-socráticos não buscavam uma realidade
unitária? Seu erro foi supor que tal realidade
poderia mudar e continuar sendo a mesma. A água
se torna fogo e todos outros objetos visíveis,
continuando a ser água por todo o tempo. Até
mesmo Heráclito, que disse: “Todas as coisas
fluem”, sugeriu que aquilo que é real não poderia
mudar. A preeminência de Parmênides reside na
consistência de sua lógica. Ele viu
claramente aquilo que outros apenas sonharam
vagamente. Unidade exclui multiplicidade.

A pulsão para a unidade é forte, e filósofos


posteriores também tentaram penetrar o Uno.
Plotino, por exemplo, afirmou ter tido uma
experiência mística tão pura e simples com o Uno,
que excluía, até mesmo, a distinção entre sujeito e
predicado. Mas ele tentou, de uma maneira que
Parmênides não o fez, derivar dessa unidade pura
todos os intrincamentos do mundo comum. Desde
então, gerações sucessivas têm se perguntado,
como um simples Uno, desprovido de toda
diferença, poderia gerar pluralidade. Devemos
perguntar, portanto, se Parmênides não mostrou
para sempre que, se a unidade é básica, não
seria possível existir movimento, pluralidade ou
diferenças. Se alguém partir da unidade, porventura
não terminará com unidade, e unidade apenas?

OS PLURALISTAS

Para Parmênides, portanto, só o Ser é, e não


existem origem, movimento e diferenças. Mas para
os demais gregos, tal conclusão parecia tão
absurda, quanto parece para o senso comum
moderno. Entretanto, se a teoria de Parmênides é
resultado lógico do monismo corpóreo, então temos
de aceitar a conclusão ou rejeitar o monismo
corpóreo. Os gregos que vieram imediatamente
após Parmênides decidiram rejeitá-lo. Se o mundo
não poderia ser explicado com base em um único
corpo, obviamente seria necessário explicá-lo com
base em mais de um corpo. Ainda assim, o trabalho
de Parmênides não foi em vão. Ele mostrou
claramente (o que era inerente aos milesianos) que
origem era algo inconcebível; e, portanto, se houver
muitos corpos, cada um deles será eterno. Na
verdade, com exceção do movimento, cada um
desses corpos será uma pequena edição do Ser, de
Parmênides. Isto é, cada corpo será
impenetrável, sólido, eterno e imutável, exceto em
termos de lugar. Outra conclusão de Parmênides
também teve de ser preservada. Ele havia mostrado
que as diferenças não poderiam ser originadas.
Porém, afirmam os pluralistas, diferenças existem e
devem ser levadas em conta. De uma forma ou de
outra, a imensa variedade de experiências deve ser
racionalmente entendida. Foi essa tentativa de
explicar as distinções qualitativas do fenômeno que
requereu o surgimento do pluralismo em três, e
apenas três, formas. A história da filosofia não é
feita ao acaso e, sob as condições do período em
pauta, foi uma antecipação da conclusão de
que haveria exatamente três formas de pluralismo.
Empédocles

Empédocles deu ao pluralismo a sua primeira


forma. Ele cria que, se alguém começasse com
quatro tipos de corpos qualitativamente diferentes,
todas as coisas poderiam ser explicadas. É
essencialmente essa a precisa posição da química
do século 19. Se há quatro ou 94 tipos, é
teoricamente imaterial; em ambos os casos o
mundo terá sido explicado em termos de um
número finito de diferenças. Chumbo, ouro,
enxofre, hidrogênio, etc., são elementos
indestrutíveis, qualitativamente distintos. O átomo
não pode ser partido. Toda a grande variedade de
experiência comum são combinações derivadas da
combinação desses elementos. Sabores, cores,
odores e todas as qualidades particulares dos
elementos são produzidas por meio da variação de
fórmulas. O gosto de um peru assado procede da
combinação de hidrogênio, carbono e mais um
pouco de coisas; elementos que, separadamente,
não têm sabor de peru assado. O peso, a
consistência e as características físicas de materiais
comuns são resultados de outras
combinações. Empédocles, é claro, não tinha noção
de hidrogênio e carbono; ele tinha quatro elementos
— terra, ar, fogo e água. Mas a teoria é a mesma, e
ele tentou achar fórmulas para as coisas. O osso
tem duas partes de água, quatro partes de fogo
e (aparentemente) duas partes de terra: A F,T,.

Além dessa noção de que as coisas da experiência


com suas qualidades vêm a ser mediante um
processo de mistura de elementos, o pluralismo
foi forçado pela filosofia eleata a considerar outro
problema crucial. Os elementos, átomos ou raízes,
tal como Empédocles chamou, eram pequenas
edições do Ser de Parmênides. Cada átomo era
imutável. Porém, quanto mais era afirmada
a imutabilidade de cada átomo, menos se podia
explicar sua mistura e movimento. Como tais
coisas poderiam se mover?

Foi neste ponto que surgiu pela primeira vez a


distinção que nos é familiar. Os filósofos
predecessores eram, geralmente, hilozoístas. Isto é,
para eles, a matéria era viva. Mas os átomos pós
eleatas eram mortos ou, mais
precisamente, inanimados, pois seu movimento não
mais poderia ser espontâneo. O
pluralismo, portanto, precisou encontrar uma nova
maneira de explicar a vida. A vida
seria caracterizada por dois fenômenos: movimento
e sensações; e conquanto os pluralistas não
negligenciassem as sensações, a parte mais
importante de sua contribuição teve a ver com o
movimento. A luz da situação histórica, em vez das
sensações, o movimento se tornou o ponto crucial.
Isso, porque, antes da elaboração de qualquer
teoria, as sensações deveriam ser, possivelmente,
o resultado de misturas e combinações, tal como
ocorre com outras qualidades e funções; mas o
movimento não poderia ser o resultado — teria de
ser a causa das misturas. Portanto, se o mundo
fosse composto de átomos imutáveis, como
o movimento poderia ser tal causa?

A resposta pareceu óbvia para Empédocles. Se as


quatro raízes não podiam mover a si mesmas, deve
haver outra realidade no universo, algum princípio
ou poder. De fato, teria de haver dois princípios:
um para causar as misturas e um segundo para
causar as separações. A estes dois ele chamou de
Amor e Ódio. Em algum estágio do processo do
mundo, dominava o Amor, e todas as coisas se
misturavam completamente umas com as outras, de
maneira que nada permanecia distinto; não havia
cosmos. Então, o Ódio começou a exercer força e a
separar as partes da mistura, e as coisas que nós
conhecemos começaram a aparecer. Durante esse
estágio é que existe um cosmos. Quando o Ódio
se tornar todo-poderoso, todas as coisas serão
separadas umas das outras; a água em seu lugar, a
terra em outro, etc., de maneira que, de novo, não
haverá cosmos. Então o Amor gradualmente
readquirirá controle, e o ciclo universal segue para
sempre.

Entretanto, será que os filósofos podem inventar


novas realidades só porque suas teorias necessitam
delas? Será que amor e ódio explicam todas as
coisas? Amor e ódio entre seres humanos são
conceitos que nós podemos entender; mas nesse
caso, amor e ódio ocorrem no cosmos e são
resultados de forças anteriores. Mas amor e ódio
não podem explicar o movimento universal, e eles
mesmos requerem explicação. O que são amor e
ódio, que não requerem explicação e explicam o
movimento universal? Certamente os filósofos
antigos estão cedendo à mitologia, ao apelar para
palavras sem sentido. Talvez seja isso. Porém, se
os antigos se entregavam a palavras sem sentido,
parece que os modernos seguiram seu exemplo. Na
física, há declarações sobre atração e repulsão; a lei
da gravidade é expressa em termos de atração entre
duas partículas de matéria segundo
certas proporções. Contudo, atração é mais
inteligível do que amori?Quando uma partícula
atrai outra na razão direta do produto de suas
massas e no inverso do quadrado da distância,
deveríamos entender que um átomo passa batom
nos lábios para atrair outro átomo e que
proximidade aumenta a atração? Seria isso que
Isaac Newton quis dizer por atração da gravidade?
Indubitavelmente, alguns filósofos antigos,
algumas vezes, falaram contrassensos; mas alguns
cientistas modernos acabam fazendo o mesmo.
Anaxágoras

No sistema de Empédocles há duas falhas que seu


jovem contemporâneo, Anaxágoras, desejou
remover. Não que ele rejeitasse as posições básicas
do pluralismo. Ao contrário, ele concordava com a
ideia de que o mundo das aparências requeria a
postulação de muitos corpos, que tais corpos se
moviam, se misturavam e se separavam; que as
próprias realidades elementares tinham de ser
imutáveis, e que a origem absoluta é inconcebível.
No entanto, porque se apegou tão firmemente a tais
disposições, especialmente à última,
Anaxágoras não podia crer que essa surpreendente
variedade de qualidades no mundo seria derivada
de apenas quatro elementos. Pense sobre os tons de
cores nos céus e os matizes nas montanhas, nos
aromas e sons de uma frota pesqueira, nos
sabores dos vinhos, azeites e grãos. Supor que tal
infinito espectro de diferenças poderia resultar da
combinação de apenas quatro elementos equivale à
suposição de que algo surja do nada. A única
suposição adequada — já que não há
diferença teórica na química dos quatro elementos e
a química de 94 - é a existência original e universal
de um número de tipos de elementos
qualitativamente diferentes. Terra, ar, fogo e água
sequer são elementos. Eles parecem porque são
misturas tão homogêneas que seus ingredientes não
podem ser detectados. Os elementos reais são
cabelos, unhas, ossos, carne, etc. E há um pouco de
cada elemento em todas as coisas. Isso também
parece requerido pelo princípio de que a geração
absoluta é inconcebível. Se a água vira gelo e,
também, vapor, e, se aquilo que é não-existente não
pode vir a ser, então o gelo e o vapor
devem preexistir na água. Qualquer qualidade que
surja no processo de geração não pode ser
considerada como tendo surgido do nada; deve ter
estado ali durante todo o tempo e apenas então veio
à luz da forma como vemos. Uma vez que
a natureza é tão rica em seus processos gerativos,
uma vez que não há limite para as qualidades que
possam surgir em qualquer coisa, é mais razoável
assumir que haja algo de tudo em todas as coisas.
Dessa maneira, casa coisa em particular reproduz a
totalidade do universo em menor escala, conclusão
sobre a qual, mais tarde, Aristóteles fez marcantes
comentários. E, não importando como as coisas
possam se dividir, cada parte ainda reproduz o
universo. Não há grau mínimo para o que é
pequeno, pois sempre haverá um menor; e sempre
haverá algo maior do que é grande.

A segunda falha que Anaxágoras desejou remover


da formulação de Empédocles diz respeito ao
movimento. Naturalmente, esse novo conceito de
uma partícula de matéria inanimada requer a
existência de um princípio de movimento; mas não
requer dois princípios. Um é suficiente porque cada
mistura é, ao mesmo tempo, separação. A água da
bilha dourada é derramada na bacineta prateada de
mistura, e os bocados de pão e carne são separados
da porção da mesa, para, então, misturarem-se no
alforje do mendigo. Da mesma
maneira, geralmente, no universo, se uma parte de
uma matéria é misturada com uma parte de outra,
ela tem de primeiro ser separada de sua posição
inicial. Anaxágoras foi também mais claro do que
Empédocles na descrição dos princípios
do movimento. Em vez de usar metáforas e chamar
seu poder de amor ou ódio, ele o chamou de Mente.
Aparentemente a fonte de sua inspiração foi a
plausível analogia entre o universo posto em
movimento pela Mente suprema e o controle que
nossa mente exerce sobre nosso corpo. A razão
universal, necessariamente, é onisciente e
onipotente. Ela começou a rotação do sistema
estelar (embora consistentemente não devesse
haver um começo literal) mediante a produção
de um pequeno vórtice que aumentou e continua a
aumentar. Todas as coisas, passadas, presentes e
futuras, são arranjadas e ordenadas pela razão.
Infelizmente, tais ideias, especialmente a ideia de
uma ordem imposta pela razão, eram
muito estranhas e embrionárias para a época. O
próprio Anaxágoras não teria entendido bem tudo o
que disse e, como Platão e Aristóteles se
queixaram, falhou em desenvolver suas
implicações. Tendo em mente as ideias cristãs
posteriores, poderá ser que alguém veja aí um
cristianismo incipiente; mas tal teísmo seria
tão estranho ao contexto histórico que seria difícil
creditar tal intenção a Anaxágoras. Mais de acordo
com a filosofia dos séculos 5o e 4o a.C. seria um
despertar para a explicação teleológica; isto é, uma
explicação em termos de propósito. Em vez de
qualquer teologia teísta, foi a nascente teleologia
que captou a atenção de Platão e de Aristóteles;
nascente, porque a elaboração do sistema era
inteiramente mecânica. A razão pode ter iniciado o
vórtice original do qual o cosmos cresceu, mas este
cresceu por meio de uma rotação expansiva; e é
essa ação de rotação mecânica, seguindo o padrão
de Anaximandro e de Anaxímenes, que causou
a separação das qualidades. Não há um papel para
um propósito.

Entretanto, não é tanto a ausência de propósito, mas


a presença da razão, que se mostra inadequada na
cosmovisão pluralista. Até então, a realidade tinha
sido sempre concebida como sendo corpórea. Tinha
de ser viva, mas também tinha de ser corpórea.
Agora, a dialética da história forçava a
distinção entre os corpos movidos e a força que os
movia. As mesmas considerações que requeriam
um princípio motor requeriam também a conclusão
de que tal força não seria um corpo. Em
Empédocles, como é de esperar do primeiro
homem a ter tais concepções, a separação aguda
entre corpo e princípio motor não estava claramente
expressa. Ele descreveu Amor e Ódio em termos
que pudessem ser usados para corpos. Mas
Anaxágoras disse que, conquanto todos os corpos
fossem misturas de elementos, o princípio motor
continuava sendo imiscível. Ele existe só e por si
mesmo, pois, se ele não fosse por si mesmo, seu
poder sobre todas as demais coisas seria diminuído.
Tais frases, que por pouco deixam de afirmar que a
razão é incorpórea, seguem a lógica da
situação; pois, por mais inanimada e inerte que
sejam feitas as últimas partículas, menos o poder
motor pode ser um corpo. Ainda assim, o
pluralismo esperava explicar toda a realidade em
termos corpóreos. Uma terceira e última tentativa
de tornar o pluralismo consistente deve ser então
antecipada — ao mesmo tempo, será uma
implementação, se esta terceira tentativa também
puder se desfazer da fantasiosa ideia de que cabelo
e unha são elementos.
Demócrito

Em conformidade com a declaração mencionada,


ao invés de postar quatro tipos de elementos ou um
número infinito de tipos, alguém poderá dizer
que todos os átomos são qualitativamente idênticos.
Esta foi a visão de Leucipo e Demócrito.
Demócrito nasceu na Trácia, por volta de 460 a.C.,
e viveu quase um século. Ninguém, até mesmo em
tempos modernos, forneceu uma expressão mais
clássica ao atomismo ou mecanicismo. A
motivação dos sistemas materialistas ou
mecanicistas era a explicação de todos os
fenômenos em termos mecânicos; isto é, as únicas
diferenças permitidas aos elementos são
estritamente geométricas, além do movimento no
espaço, necessário para alterar suas posições.
Para Demócrito, portanto, dois princípios explicam
todas as coisas: átomos e espaço vazio. Os átomos
são infinitos em número e diferem em tamanho e
forma, mas são qualitativamente semelhantes. Ou,
seria mais acurado dizer que os
átomos, individualmente, não têm qualidades: suas
características são estritamente mecânicas ou
geométricas. Em primeiro lugar, cada átomo é
indivisível. A própria palavra átomo significa
indivisível. Por tal razão, Demócrito inventou o
termo átomo, aplicando-o aos seus elementos. Os
átomos não podem ser divididos pela simples razão
de que qualquer coisa que possa ser dividida não é
um átomo. Dessa maneira, a física nuclear recente
não teria sido bem-sucedida em dividir átomo, mas
apenas teria mostrado que aquilo que os químicos
do século 19 pensavam ser átomos não
eram átomos. Partículas de chumbo, ouro ou
hidrogênio, que até recentemente eram tidas como
indivisíveis, são, na verdade, compostos. Somente
compostos podem ser divididos. Demócrito fez
seus átomos indivisíveis, não por causa de sua
pequenez, mas por causa de sua solidez. No átomo
de Demócrito não há núcleo, não há elétrons, não
há prótons e não há espaço vazio. Conceitualmente,
tal como a teoria de Anaxágoras sugeriu, seria
possível dividir qualquer coisa, não importando
quão pequena seja. Conquanto um pedaço ce
matéria tenha extensão, será possível pensar em
uma metade dela. Dividir fisicamente, entretanto, é
uma tarefa bastante diferente - e a razão por que
os átomos de Demócrito não podiam ser divididos é
que eles eram sólidos. De faro, seus átomos não
eram necessariamente pequenos. Não apenas
variavam de tamanho, mas alguns deles eram
realmente grandes. Uma das fontes antigas diz que
Demócrito admitiu que alguns átomos poderiam ser
tão largos quanto o mundo. Tal surpreendente
declaração pode ser explicada com base em que, se
as únicas características originais forem o tamanho
e a forma, todas as variações tem de ser possíveis.
Poderia haver uma visão em que todos os átomos
fossem esferas de raios iguais. Contudo, para
explicar as qualidades sensíveis, Demócrito rrecisa
de diferenças de forma; não haveria razão para
negar diferenças de tamanho e, muito menos, para
restringir o montante de diferenças.

A característica distintiva da teoria de Demócrito é


que tais átomos, não zerivados, não perecíveis,
imutáveis, não possuem qualidades.
Anaxágoras pensava que o espectro das qualidades
sensoriais seria muito amplo para ser explicado
com base em um número infinito de diferentes
qualidades; nada menos do que uma infinita
variedade de diferenças tem de ser assumida para
evitar a impossibilidade de derivar algo, do nada.
Para Demócrito, porém, até mesmo um número
finito de diferenças originais já era demasiado.
Todos os átomos são iguais na sua ausência de
qualidades. Eles sequer possuem a qualidade do
peso.

Em princípio parece inacreditável que uma


partícula sólida não tenha peso, mas, quando
paramos para pensar, parece a única posição
razoável. O que é peso? Os estudantes modernos
estão familiarizados com a ideia de que
pesariam menos na Lua do que pesam na Terra.
Quanto menor o corpo sobre o qual alguém está,
menor o seu peso. Agora, suponha que uma pessoa
ou uma partícula se apoie sobre nada; não se
conclui que não haveria peso? Pesar é como ter
um irmão. Nenhuma pessoa poderá ser irmã de si
mesma. E preciso dois para fazer um. Peso,
portanto, é um tipo de relação tal, que um único
átomo não pode ter peso. Ou, para falar de maneira
mais acurada, peso é uma tendência para mover em
uma dada direção. Sobre a superfície da Terra, os
corpos tendem a se mover para baixo; sobre a Lua,
tenderiam a se mover para o centro do satélite.
Porém, para um único átomo no infinito, não há
“para baixo” — não há direção. Nem poderia
haver, para esse átomo solitário, qualquer distinção
entre descanso e movimento. Tal distinção requer
uma diferença de distância entre dois ou mais
corpos. O átomo democritia.no, portanto, não tem
tendência para o movimento. Se for batido, como
ocorre com bolas de bilhar, ele se moverá;
mas, deixado por si só, não haverá razão para ir a
uma ou outra direção. Sabendo que peso é uma
tendência para o movimento, conclui-se que um
único átomo não tem peso. Somente em
combinação o peso poderá aparecer.

Diferenças de peso entre dois corpos de igual


tamanho, tal como uma polegada cúbica de cortiça
e uma polegada cúbica de ferro, isto
é,densidades específicas, são explicadas pela
proporção de átomos em relação ao espaço
vazio nesses corpos. Se a proporção de átomos for
alta, o corpo é pesado; se houver relativamente
mais espaço vazio, o corpo é leve. Outras
qualidades também terão de ser reduzidas a bases
estritamente geométricas ou mecânicas. Para
explicar a diferença entre um corpo sólido e um
corpo líquido, alguém precisaria dizer que os
átomos do corpo sólido estão em relativo descanso,
enquanto que, os do líquido estão em movimento.
O descanso resiste ao movimento, de maneira que,
se alguém tentar forçar a passagem da mão através
de um pedaço de madeira, somente machucará a
mão; mas será fácil passar a mão pela água. Os
átomos da madeira estão em repouso; os átomos da
água estão em movimento e, por isso, permitem o
movimento da mão através deles. Observe,
também, que líquido e sólido não são as mesmas
coisas que pesado ou leve. Mercúrio é líquido e
é pesado; cortiça é sólida e é leve. Características
mecânicas ou geométricas têm de explicar também
a diferença entre frio e quente. Um corpo quente é
aquele em que as extremidades e pontas aguçadas
do átomo faceiam a superfície; e se os átomos
apresentam seus lados suaves, o corpo parece frio.

O empenho do atomismo ou materialismo é reduzir


a pluralidade do universo ao menor número de
determinações mecânicas. Uma vez que não
há menos do que os geométricos especificados por
Demócrito, os materialistas posteriores não
puderam esperar nenhum acréscimo. Todas as
qualidades da experiência comum, ele afirma terem
sido reduzidas a arranjos quantitativos. Somente
átomos e espaço, são reais; outras coisas existem
somente por convenção, isto é, são meramente
imaginadas. Contudo, embora os materialistas
modernos não o possam superar, eles têm imitado
Demócrito. Desde o início da ciência moderna, no
século 17, vários pensadores têm declarado que
vida e sensação não são coisas reais: são
simplesmente movimentos particulares de
combinações de átomos. Visão é uma reação
química na retina associada a agitações no
córtex. A reação química é real ou natural; a visão é
um fenômeno, é ilusória, ou, pelo menos, não é tão
real quanto a reação química. Cor não existe, mas
existem vibrações no espaço; sons não existem,
mas são ondas no ar. Todas as qualidades tem de
ser reduzidas a quantidades. Água não é líquida ou
molhada: água é H2O.

Os simples fatos da química fornecem material,


tanto para o pensamento de materialistas, quanto
para o de não-materialistas. E ou não é verdadeiro
que qualidades podem ser reduzidas a quantidades?
Litargírio ou óxido de chumbo, Pbo é um pó
escuro, amarelo alaranjado; misturado com
glicerina forma um cimento. Porém, se uma
quantidade extra de chumbo ou de oxigênio é
acrescentada, surgem outras qualidades. Embora
Pbo2 e Pbo3, tenham simplesmente “mais”
da mesma substância, possuem qualidades
realmente diferentes. A comparação mais comum
seria entre a água e a água oxigenada, isto é, água
com acréscimo de um pouco mais de oxigênio.
Contudo, água oxigenada não tem o mesmo sabor
de água, e esta não tem o mesmo poder purificador
da água oxigenada. Mais intrigante ainda é que uma
única substância, um óxido de chumbo, enxofre,
ou carbono, aparecendo como grafite ou diamante,
possa existir em formas cristalina ou não cristalina;
e embora sejam a mesma substância química, suas
propriedades físicas são notadamente diferentes.
Tais diferenças dependem simplesmente
de arranjos geométricos de átomos ou íons. Isso
significa que suas qualidades foram reduzidas a
quantidades? O que significa o termo redução?
Significa que qualidades sensoriais não são reais?
O que significa ser real' E, se qualidades
são sensórias, será que sensações e vida são
meramente distinções quantitativas que ocorrem ser
um pouco mais complicadas do que outras? E,
finalmente, o que significa qualidade? Sessenta ou
setenta anos depois, Aristóteles tentou
responder algumas dessas questões.

Além de tais importantes problemas gerais,


Demócrito também estudou muitos fenômenos em
particular. O magnetismo o atraiu; a salinidade do
mar o atraiu; ele deu explicações sobre terremotos,
trovões e relâmpagos, flutuação de objetos de metal
sobre as águas, e a vários temas de botânica e
zoologia.

O movimento inexorável
Entretanto, há outro ponto, mais geral e mais
importante do que essas muitas particularidades. O
que quer que se diga sobre a realidade das
qualidades sensoriais, sua origem mediante a
combinação de variações mecânicas
requer movimento. Os átomos têm de se mover. E
como o movimento pode ser explicado? Por meio
do Amor e do Ódio? Ou pela razão? Sobre este
ponto, Demócrito está seguro de que os pluralistas
anteriores vagaram perdidos.

Parmênides mostrou que o universo não pode ser


explicado com base em um corpo. Logo, ele tem de
ser explicado com base em muitos corpos. Mas
a introdução de Amor e Ódio, ou da razão, é um
apelo a algo não corpóreo. Isso extrapola os limites
do princípio básico. Ora, se pudesse ser
demonstrado que o universo não pode ser explicado
com base em muitos corpos, seria possível falar de
algo não corpóreo. Ou, talvez, alguém seria forçado
a dizer que o universo é inexplicável, pois, aquilo
que uma realidade não corpórea deve ser, é
algo inimaginável. Contudo, será prematuro falar
sobre falha do pluralismo corpóreo, se Demócrito
for bem-sucedido dentro de seus limites
conceituais. Tudo o que resta fazer é mostrar a
causa do movimento. Discutindo sobre peso, foi
dito que os átomos, individualmente, não têm
tendência para se mover. E semelhante a bolas de
bilhar, se uma delas é atingida, ela move.

Para explicar o movimento desse átomo à nossa


frente, seria preciso apenas indicar que outro átomo
colidiu com ele. A explicação é o impacto. Porém,
se esse átomo à nossa frente foi atingido por outro
átomo, o que teria causado o movimento desse
segundo átomo? A resposta é simples: um terceiro
átomo. E o quarto átomo que se chocou com o
terceiro. E assim, para trás e sempre. Mas o que
teria causado o primeiro movimento? O que
ocorreu no início da série? Tais questões sugiram
somente em função da falha em entender o
que Demócrito estava dizendo. Não há um primeiro
movimento. O movimento é algo que sempre
existiu. Há uma infinidade de átomos e durante
todo o tempo alguns deles vêm colidindo com
outros. Portanto, não se requer nenhum
início misterioso princípio movimento. Não há
nenhuma mente divina que dirige o universo;
nenhuma finalidade ou propósito existe; todas as
coisas acontecem por necessidade, e o universo é
uma grande máquina.

ZENÃO

Entretanto, o que ocorre, se o movimento for


impossível? E se o conceito for absurdo? Como a
última metade do século 5o a.C. foi um tempo de
grande fermentação filosófica, e a vida dos
filósofos teve anos de sobreposição, é
difícil estabelecer um relato cronológico acurado
dessas décadas. Ainda que Demócrito tenha vivido
em meados do século 4o, é permissível concluir
esta seção, mencionando um homem que disse a
última palavra entre os pré-socráticos. Zenão, o
eleata, discípulo de Parmênides, não obstante a
falta de outra teoria positiva, atacou diretamente os
atomistas, com notáveis argumentos de sua
própria invenção. Na tentativa de defender a tese de
que o Ser é Um, Zenão procurou demonstrar que
movimento e sensação são impossíveis, e que o
espaço não existe. Aos olhos modernos, tal sistema
talvez pareça sem esperança, mas Zenão foi bem-
sucedido, pelo menos, em fazer toda a história
subsequente enfrentar e, muitas vezes, tropeçar em
seus argumentos.

O primeiro argumento contra o movimento foi


colocado em forma de uma história. Aquiles foi a
estrela das corridas da antiguidade, e a tartaruga,
o oposto. Mas aquilo que faltava em velocidade, a
tartaruga esbanjava em inteligência. Baseada,
portanto, no brilho do seu gênio, ela desafiou
Aquiles para uma corrida. A competição seria
realizada nos termos e condições que a
tartaruga sabia que poderia exigir o máximo de
Aquiles. Os termos eram, simplesmente, que a
tartaruga teria a vantagem inicial de certa distância
à frente e que Aquiles não seria declarado vencedor
a menos que ultrapassasse a tartaruga. Ao espocar a
pistola de Zenão, os dois corredores largaram.
Quando Aquiles rapidamente alcançava o ponto de
onde a tartaruga largara, é óbvio que ela já não
estava mais ali. Durante o tempo que passara, a
tartaruga havia se movido um pouco adiante; sem
dúvida, só um pouco adiante, mas inegavelmente
adiante. A corrida não parou, tal como nós teremos
de parar para explicar a situação. Os
corredores continuaram mantendo o mesmo padrão
de velocidade. Quando Aquiles, cujos pés ligeiros
não se equiparavam à inteligência da tartaruga,
chegou ao local em que a tartaruga havia estado
quando ele atingiu o ponto em que a tartaruga
havia largado, ela já não estava lá. Bem, para
encurtar uma longa história, cada vez que Aquiles
chegava ao lugar em que a tartaruga estava, ela
estava um pouco adiante. Assim, se Aquiles falhou,
a cada vez, quanto a alcançar a tartaruga, então
não houve um tempo em que o atomista Aquiles
conseguiu vencer sua rival eleata. A moral da
história, fora o fato de que é melhor ser uma
tartaruga inteligente do que um atleta estúpido, é
que o conceito de movimento leva ao absurdo.

O fato de que a derrota de Aquiles se deve aos


termos impostos pela tartaruga pode ser visto em
um segundo argumento que se despe de
ornamentos pitorescos e vai direto à matemática
envolvida. Em vez de atletas, considere um ponto
ou um átomo, e veja quão dificultoso será movê-lo
daqui para ali. Antes que possa cobrir toda a
distância, o átomo precisará alcançar a metade
dela; e antes que possa chegar à metade, terá de
atravessar um quarto da distância; e antes de lograr
um quarto, terá de vencer um oitavo. Esta também
é uma longa história, cuja moral também é simples.
Antes que possa deixar sua posição inicial, o átomo
terá de exaurir uma série infinita. Infelizmente, para
o conceito de movimento, uma série infinita é
inexaurível. O átomo sequer poderá partir. Não é de
admirar que Aquiles não conseguisse alcançar a
tartaruga. Uma vez que a tartaruga não se mova,
Aquiles também não poderá se mover; e a tartaruga
foi brilhante o bastante para fazer que Aquiles lhe
permitisse iniciar a corrida com vantagem de
distância.

Há um terceiro argumento. A definição de


Demócrito, de repouso e movimento, seria imatura.
Um passageiro em um trem está em repouso ou
em movimento? Um homem deitado em uma cama
está em repouso enquanto a Terra se move em
média a 29 quilômetros e 78 metros por segundo ao
redor do Sol? A opinião comum responderia
afirmativamente a essas questões. Isso significa que
um corpo está em repouso quando dois de seus
pontos estão fixos em relação ao cenário em redor.
Agora, considere o voo de uma flecha. Em
qualquer momento do voo da flecha seus pontos
extremos estão coincidentes com dois pontos
do espaço. Isto é, em qualquer momento do voo, a
flecha está em repouso. E, uma vez que isso é
verdadeiro com respeito a qualquer e todo
momento, conclui-se que a flecha está sempre em
repouso. Ela nunca se move. O movimento é
um absurdo. Sem dúvida, vemos coisas em
movimento, mas, até mesmo Demócrito admite que
a sensação e as qualidades sensoriais não são reais.
E, de qualquer modo, não deveria alguém confiar
mais na inteligência do que nos sentidos?

Entretanto, quando critica qualidades sensórias,


Demócrito lhes assegura realidade suficiente para
que precisem ser reduzidas a átomos em
movimento. Porém, Zenão replica que segundo a
teoria atomista não haveria nenhuma sensação, nem
mesmo uma partícula a ser reduzida. Suponha que
alguém se coloque em algum ponto da costa
rochosa de Ática ou Maine. Uma tempestade no
mar lança ondas que se chocam contra as rochas, e
é medonho o troar. É isso mesmo? E se alguém
estivesse ali e uma minúscula partícula de borrifo,
um mero átomo de onda, alcançasse a praia, que
som ele ouviría? Até mesmo coisas
relativamente gigantescas quanto pó de giz não
fazem barulho quando caem ao chão. Um borrão de
névoa sequer seria ouvido; não haveria som. E a
esse som-zero, a próxima mancha de bruma
acrescenta seu zero. De novo, para encurtar uma
longa história, a adição de zeros sempre totalizará
zero; entretanto, a onda é a soma dos átomos de
água. A teoria de Demócrito, portanto, se
consistentemente aplicada, acaba sendo o absurdo
da redução de qualidades sensórias a determinações
quantitativas porque qualidades, tal como o som,
sequer poderiam ser produzidas.

Assim também o espaço onde os átomos estão e se


movem, é um conceito impossível. Se for preciso
haver um espaço para os átomos existirem nele, e
se o espaço existir, então ele também deve existir
em algum lugar - um espaço primordial. E, se
existe um espaço primordial, deve existir em um
duplo espaço primordial; e aí vem outra dessas
longas histórias. A melhor maneira para encurtar a
história é nem começá-la. Portanto, o espaço não
existe.

Finalmente, o conceito de um universo pluralista é


contraditório. Se o Ser fosse muitos, teria de ser
tanto infinitamente pequeno quanto
infinitamente grande. Teria de ser infinitamente
pequeno porque cada pluralidade é uma coleção de
unidades; mas verdadeira unidade é indivisível; e o
que é indivisível não tem magnitude; portanto, uma
pluralidade de indivisíveis ou partículas
inextensíveis, quando somadas, produzem um
número sem extensão. Contudo, se o mundo e suas
partes têm extensão, cada parte deverá ser separada
da parte seguinte; e a parte que separa cada parte
deverá ser separada por outra parte, e assim
por diante, resultando que o mundo é infinitamente
grande. De fato, uma vez que esse argumento pode
ser aplicado a cada átomo, cada átomo é tanto
infinitamente pequeno quanto infinitamente grande.
E que conclusão mais absurda poderia se derivar de
tal teoria?

Com muita frequência, esses argumentos produzem


riso em vez de produzir mais pensamentos;
contudo, não são apenas histórias jocosas. Eles
apontam para os delicados problemas da infinidade
e da continuidade, matérias que ainda põem à prova
as habilidades de filósofos, físicos e matemáticos.
Mas poderá ser que, de fato, tais conclusões
absurdas sejam mantidas como válidas
derivações das premissas do pluralismo. Neste
caso, o eleatismo teria tido a última palavra, e a
filosofia pré-socrática atingido seu objetivo.
2 - Os Sofistas, Sócrates e Platão
O SURGIMENTO DO CETICISMO

O curso do pensamento científico ou cosmológico,


agora traçado até o final do século 5o a.C., parece
ter uma finalização clara e definida. A menos que o
racionalismo eleata seja considerado aceitável, as
primeiras tentativas para entender o universo em
termos de um corpo foram falhas. O grupo
seguinte de filósofos, confiando nos próprios
sentidos, e não na razão, tentou explicar o mundo
em termos de muitos corpos; mas Zenão foi capaz
de mostrar isso como uma falha ainda maior.
Assim, se nem um corpo, nem muitos corpos,
podem explicar o universo, e, se a sensação e o
movimento não podem ser abandonados, segue-se
rigorosamente que o universo não poderá ser
explicado. Todas as tentativas para chegar à
verdade têm se provado deficientes e, portanto, a
verdade é inalcançável.
Irracionalidade matemática

Neste ínterim, os pitagóricos tropeçaram em um


fator que reforçou a mesma conclusão, pois a
matemática, assim como a física, chegara a
absurdos. Platão transmite a informação, em seu
diálogo Mênon, relatando como
Sócrates argumentou com um jovem escravo,
desenhando um quadrado, na areia. O lado do
quadrado tinha duas unidades de medida, e, quando
Sócrates conectou os pontos intermediários do lado
oposto, o jovem viu claramente que tal
quadrado continha quatro unidades quadradas.
Posto que quadrados podem ser desenhados em
qualquer tamanho, é possível obter um quadrado
com exatamente o dobro da área do quadrado
original; isto é, pode haver um quadrado contendo
oito unidades quadradas. Depois de suscitar esta
informação, Sócrates perguntou ao jovem de que
tamanho precisaria ser o lado de um quadrado com
o dobro da área original. De pronto, o jovem
respondeu que, para o quadrado ter o dobro da área,
o lado teria de ser duas vezes maior. Quando
Sócrates estendeu os lados do quadrado original até
duas vezes seu tamanho, o jovem observou que o
quadrado não continha apenas oito, mas dezesseis
unidades quadradas. O novo quadrado não era duas,
mas quatro vezes maior do que o primeiro
quadrado.

Diante de tal demonstração, o jovem corrigiu sua


resposta: se o fato de dobrar o lado do primeiro
quadrado, para quatro unidades de medida, torna
o quadrado tão maior, a resposta terá de ser menor
do que quatro. E se o primeiro quadrado tem lados
com duas unidades de medida, a resposta terá de
ser maior do que dois. Assim, obviamente, o único
número menor do que quatro e maior do que dois é
três. Não poderia ser mais simples! Porém,
infelizmente, um quadrado com três unidades de
medida de um lado é maior que o dobro do
tamanho original do quadrado. Isso é um
infortúnio, não para o jovem escravo, mas para a
teoria pitagórica dos números, a qual havia
especificado os números como um, dois, três,
quatro, e assim por diante. Sócrates, por meio de
habilidoso questionamento, foi bem-sucedido na
demonstração de que um quadrado contendo oito
unidades quadradas pode ser construído na
diagonal de um quadrado de quatro unidades
quadradas. Isto é, o tamanho desejado é a raiz
quadrada de oito. Mas ninguém jamais ouviu falar
de um número chamado raiz quadrada de oito. Não
existe tal número - um número maior do que dois e
menor do que três. Ainda assim, tem de haver tal
número, pois é possível haver um quadrado de
tal tamanho. É um número, um número tão exato
como outro pode ser, e, ainda assim, um número
que não pode ser medido pela unidade. Três é
precisamente três unidades, e quatro, quatro
unidades. Mas a raiz quadrada de oito sequer é dois
e meio. É impossível ser expresso, até mesmo, em
fração, e parece não ter relação com a unidade. E
como poderia a matemática ser desenvolvida, se
o conceito de unidade foi violado? De fato, parece
que tanto a matemática quanto a física se
mostraram impossíveis.

A descoberta de medidas exatas incomensuráveis


decreta a derrota do atomismo quanto à
matemática, tal como os argumentos de Zenão o
fizeram em relação à física. Porém, conquanto a
matemática envolvida seja simples, a noção de
incomensurabilidade ainda intriga muitas pessoas.
Coisas tais como reforma de calendário esbarram
em números incomensuráveis. Se determinado dia
(rotação da Terra), e determinado mês (revolução
da Lua), e determinado ano (translação da Terra),
como três atletas numa pista, partissem no mesmo
instante, cada um em sua raia, certamente, eles
jamais, durante todo o tempo, correriam lado
a lado. Um dia, um mês e um ano jamais
começarão, de novo, no mesmo momento, pois não
há unidade que divida equitativamente tais
distâncias e velocidades. A descoberta da
incomensurabilidade, pelos pitagóricos, lançou a
aritmética e a geometria em confusão. Números
irracionais? A matemática deveria estar louca e, o
conhecimento, impossível.

História e política

Tal é o claro e fluido desenvolvimento da ciência e


da matemática, aqui traçado sem referência às
condições sociais e políticas que também
causaram levantes na Grécia. A ciência não é a
totalidade da filosofia. Em certas épocas, a filosofia
parece capaz de limitar seus interesses, se retirar
para uma torre de marfim, e deixar o restante do
mundo à própria sorte. Contudo, um filósofo
que tente entender as fases do mundo, não poderá
jamais evitar os problemas morais e políticos. Em
tempos de levante, quando todo o edifício da
civilização é ameaçado, filósofos, ou, se não
filósofos, políticos, são chamados para resolver os
problemas pertinentes. As virtudes tradicionais, os
procedimentos testados pelo tempo, os padrões de
vida confiáveis, os valores ideais e espirituais
da sociedade, tudo colapsa em conjunto. E, até que
alguém possa reconstruir, domina o caos. Assim
ocorreu que as condições culturais do século 5o
a.C. reforçaram as conclusões céticas de físicos e
de matemáticos.

Quanto mais alguém mantiver em mente a história


grega, tanto melhor poderá entender como o
levantamento do sofismo foi coisa necessária.
Poucos fatos, bem poucos, serão suficientes para
estimular estudos mais adiantados. No período
homérico, os governos dos Estados gregos eram
combinações em que o poder executivo estava nas
mãos de reis, que eram orientados por
conselhos, submetendo seus julgamentos a uma
assembleia de cidadãos. A história grega, então,
pode ser parcialmente descrita como a de uma luta
pelo poder entre esses três grupos. Na Macedônia,
o poder dos reis aumentou e, séculos mais
tarde, quando os Estados do sul foram reunidos,
Filipe e Alexandre estavam prontos para a
conquista do poder. Em Esparta, estabeleceu-se
uma forma de governo parecida com o original,
baseado em um Estado militar que reduziu os
vizinhos do oeste a uma escravidão cruel. Em
Atenas, entretanto, uma longa luta entre
a aristocracia e a classe de cidadãos livres é tida
como uma vitória da democracia e uma derrota do
Estado. Naturalmente, forças econômicas
desempenharam grande papel nessa luta. A
extensão do comércio e a colonização, a invenção
do dinheiro que substituiu o intercâmbio de bens, a
hipoteca de imóveis com altas taxas de lucro e a
escravização dos inadimplentes levaram à
exigência de um governo melhor. Draco (621 a.C.)
e Sólon (592 a.C.) tentaram conter a situação,
sendo que um dos resultados foi a introdução de
leis escritas fixas. E certo que as leis de
Draco tenham sido severas, mas o estabelecimento
de leis escritas significou um avanço tremendo.
Sólon implementou alguns direitos civis pra
proteger as classes de cidadãos inferiores e
preparou o terreno para o estabelecimento da
democracia.

Mais para o leste, na última metade do século 6o


a.C., ascendeu o poder da Pérsia à medida que Ciro
dominou as cidades gregas, na Ásia Menor. A
revolta e derrota das cidades gregas, ajudadas por
Atenas, provocaram a retaliação de Dario. Na
primeira metade do século 5o a.C., duas expedições
militares persas foram enviadas contra Atenas
resultando na derrota militar da Pérsia.
Contudo, houve outros resultados. A fim de
enfrentar os persas, Atenas formou uma liga
de Estados gregos, estabelecendo impostos para a
defesa comum. Quase no final das guerras, os
Estados já se estabeleciam como um império
ateniense. Atenas havia liderado a guerra e, então,
se arvorava em líder da paz à força de seu poder
naval democrático e imperialista. Tucídides se opôs
tanto à democracia quanto ao imperialismo em
favor de uma aristocracia conservadora e
isolacionista. Mas os planos grandiosos de Péricles
para estabelecer colônias, embelezar as cidades,
criar uma frota naval e abafar a nobreza, tudo pago
com impostos coletados dos Estados subjugados,
conquistou o aplauso das massas. Finalmente, as
cidades oprimidas apelaram para a ajuda de
Esparta, iniciando a Guerra do Peloponeso, em
431 a.C., a qual terminou com a derrota de Atenas,
em 404 a.C.

Guerras, impostos, economia, legislação, obras


públicas, rivalidade partidária, tudo significava
intensa atividade política - é exatamente sobre
esse fermento moral e político que a filosofia
incide. À medida que as aristocráticas virtudes
tradicionais de uma sociedade estável se
desintegraram sob a pressão das mudanças de
condições, e à medida que tais mudanças de
condições deram oportunidades para a ação
daqueles que gostavam de pescar em águas
turbulentas, todos os padrões até então aceitos
tiveram de ser reavaliados. Se as leis não
eram divinamente ordenadas ou honradas como
costumes de tempos imemoriais, mas seriam, antes,
produtos mutáveis originados de procedimentos
democráticos por meios dos quais líderes poderosos
operavam para atingir seus determinados fins, então
nada havia de sagrado nelas e não precisariam ser
obedecidas.

Trasímaco, cujos pontos de vista são colocados no


Livro I da República, de Platão, mantinha que as
leis eram os instrumentos de alguns governantes
fortes com vistas à exploração das massas. Se
algumas das legislações pareciam favorecer o povo,
isto seria semelhante à atividade de pastores que
engordam seus rebanhos para a matança.

A teoria de Cálicles, aparentemente bastante


distinta, relatada no Górgias, de Platão, dizia que as
leis eram feitas pelas massas medíocres para
controlar o poder de homens superiores. Ambas as
teorias, no entanto, produzem os
mesmos resultados. Se a lei for a vontade de
ditadores e tiranos, estes estarão justificados com
respeito à irresponsabilidade de seu curso de ação;
e, se a lei é uma tentativa amedrontada e invejosa
de o medíocre restringir o poder de homens
melhores e mais inteligentes, então os últimos
teriam o direito de sacudir dos ombros a vergonha
de tal desprezível coleira.

A lei, tanto como decreto civil quanto como dever


moral, havia sido considerada, no princípio, como
lei “natural”. As pessoas não questionavam, antes,
elas presumiam a autoridade da lei. Entretanto, a
política democrática e suas frequentes e súbitas
mudanças nas constituições das cidades, minaram
a noção de santidade da lei - da mesma maneira
como o contato com os persas revelou aos gregos
um novo conjunto de costumes sociais e levou
ao questionamento da moralidade. Em vez de
considerar a lei como natural, as pessoas passaram
a tomá-la como convencional; a lei é apenas o
decreto arbitrário de maiorias reunidas em
assembleias A lei moral, da mesma forma,
seria convencional, mas igualmente arbitrária e
acriticamente determinada pelos hábitos da
sociedade. Entretanto, se a lei for arbitrária em vez
de natural, universal e racional, onde fica a
obrigação de obedecer à lei civil ou de honrar o
costume moral? As tragédias do teatro, baseadas
em conflitos entre as virtudes
tradicionais, aumentaram a confusão popular; e no
arrastão dos argumentos, a mente comum perdeu o
rumo. A ambição e a concupiscência do poder
fizeram o restante.

Educadores

Em tais circunstâncias surgiram confiantes


educadores que afirmavam ensinar a virtude aos
jovens: não a antiga virtude, mas a nova — a
virtude ou o poder para alcançar sucesso nos
negócios da vida. Esses homens não
estavam interessados na ciência natural nem (com
exceção de Protágoras e Górgia) nos problemas
lógicos e epistemológicos levantados. Antes, eles
eram a contrapartida moderna dos sábios poetas
antigos, que ensinaram ao povo as máximas, às
vezes ingênuas, da sabedoria popular. Os novos
professores eram também homens sábios:
chamavam-se de sofistas. Sua sabedoria, no
entanto, não era uma composição de adágios
tradicionais e dignificados tais como os conselhos
dos almanaques de fazendeiros. Era atual e
relevante para as necessidades da época. Seus
ideais contavam com efetividade social e
integração de personalidade. Seus jovens
precisavam de treinamento vocacional. Os sofistas
poderiam instruir aspirantes à política nas
ferramentas da arte política, nos instrumentos da
oratória, nas habilidades para influenciar
audiências, nos segredos da conquista de votos
e em como fazer os piores argumentos parecerem
os melhores. Seu negócio era a educação; educação
progressiva, educação para a cidadania. O estudo
da natureza, dignificada pela atenção de filósofos
não práticos, havia negligenciado a vida, a vida
atual da cidade. Estrelas e átomos se distanciavam
igualmente da luta democrática. Conheça a si
mesmo; não presuma esquadrinhar Deus; o
estudo adequado à humanidade é o próprio homem.
O homem é a medida de todas as coisas: homem,
não como intelecto frio, nu e fútil, mas como
vontade livre e ativa. A vida é uma questão de
propósito, e o padrão da sabedoria é o sucesso.

À cata de estudantes aos quais instruir, muitos dos


sofistas perambulavam de cidade em cidade.
Platão, mais tarde, queixou-se, dizendo que isso
revelava falta de responsabilidade cívica. Os
sofistas também se jactavam dos altos honorários
que recebiam, o que era um escândalo para a
tradição aristocrática. Mas havia um “sofista” que,
mesmo que não viajasse pelas cidades nem
cobrasse honorário, era considerado o pior deles.
Os demais apresentavam lições compreensíveis.
Qualquer um, de módica inteligência, poderia
aprender como confundir um oponente, como
mudar o assunto quando forçado, e como
construir um discurso prazeroso. Sobretudo, ainda
que fossem agnósticos, eram confiantes em sua
linha de ação. Talvez tenham ensinado jovens
políticos a confundir seus oponentes, mas não
confundiram os próprios alunos. Entretanto, esse
outro "sofista” era falto de autoconfiança, jamais
sabia alguma coisa e, em vez de responder
questões, somente as colocava. Seu único alvo na
vida, parece, foi confundir seus interlocutores. Este
não é um jogo para pessoas frágeis. O
público votante é alvo válido, mas é claramente
indelicado atormentar seus amigos em praça
pública. E era exatamente o que Sócrates fazia.

Platão ouviu tais conversações nas quais Sócrates


espicaçava o orgulho dos políticos democratas,
razão pela qual, quando estava pronto para
escrever, Platão usou a forma do diálogo em que
Sócrates assume o papel principal.6 Ainda que
muitos acadêmicos discordem, não há problema em
assumir que os primeiros diálogos simples nos
deem um retrato justo de Sócrates, enquanto que,
nos diálogos posteriores e mais elaborados,
Sócrates se tornou apenas um porta-voz para a
filosofia de Platão.7

CONHECIMENTO E MORALIDADE

Um dos mais antigos e menos polidos dos diálogos,


o Minos, discute a questão da Lei. Do ponto de
vista filosófico ele é bem elementar, mas isso
se torna uma vantagem, pois revela certas ideias de
Sócrates, que, mais tarde, Platão usou em larga
escala.

Sócrates pergunta a um interlocutor anônimo: O


que é Lei? A primeira e vaga resposta é que Lei é
aquilo que é costumeiramente aceito como legal.
Sócrates, então, elabora uma analogia entre a lei e
os sentidos: A visão não são as coisas vistas, nem a
audição os sons escutados; igualmente a lei não
seriam as coisas costumeiramente aceitas, mas o
poder para a aceitação de tais coisas, um poder para
descobrir o que é legal. Aparentemente o
interlocutor pensa que o poder para descobrir a lei
deve ser o Estado e, assim, descreve a lei como o
decreto de assembleias Isto é, lei é a opinião do
Estado.

Então, Sócrates faz uso de uma linha de


argumentos que se tornaram, daí em diante, a linha
mestra da filosofia platônica; os sábios são sábios
por causa da sabedoria - sabedoria é algo que eles
têm, e que lhes torna sábios; igualmente, o justo é
justo em função da justiça - justiça é um ente real
que torna tais pessoas justas; portanto, a lei teria de
ser também um ente que causaria a legalidade.

Uma vez que sabedoria e justiça são nobres e boas,


e, que os decretos positivos dos Estados são
geralmente vis, conclui-se que tais decretos não
podem ser lei; deve haver alguma qualidade
inerente aos bons decretos para torná-los legais;
qualidade de que careceria o mau decreto. Decretos
positivos ou costumes tradicionais obviamente
variam de tempo para tempo e de lugar para lugar.
Os atenienses não ofereciam sacrifícios humanos,
mas os cartagineses tomavam isso como santo e
legal. Até mesmo, em Atenas, o costume quanto
a sepultamento foi mudado em relação ao que era
para as gerações passadas. Tais mudanças e
discordâncias mostram que as pessoas não
descobriram a realidade. Pessoas não mudam de
opinião em razão de coisas justas serem justas ou
de coisas pesadas pesarem mais, nem de que os
fundamentos não sejam nobres. Tais opiniões são
mantidas sempre, em todos os lugares e por todas
as pessoas; mas as mudanças de opiniões revelam
que elas não foram realmente apreendidas.

Portanto, deveria haver uma ciência da


jurisprudência (tal como há a geometria), com
especialistas cujas opiniões não mudassem. Assim
como um engenheiro agrícola é uma autoridade em
questões de exploração de propriedades naturais o
rei ou governante deve ser uma autoridade em
questões relativas à lei. Mino, de Creta, seria esse
estadista especializado, e os demais, atenienses —
conclui Sócrates — deveriam se envergonhar de
não conhecer os benefícios que um rei pode prover,
não apenas para os corpos, mas também para a
alma dos seus vassalos.

Nesse mesmo diálogo, há, pelo menos, três temas,


dos quais Platão faz largo uso. Primeiro, a ética se
torna um objeto do estudo filosófico. Isso não quer
dizer que os pré-socráticos jamais dedicaram
nenhum pensamento à ética, mas é verdadeiro que
forneceram pouco pensamento sistemático ao
tema. Segundo, há um vislumbre de um novo tipo
de realidade: justiça e lei, e outras coisas discutidas
em seus diálogos. E, terceiro, tanto a conduta
pessoal, quanto a governamental, deveriam ser
controladas pelo conhecimento, em vez de serem
manipuladas pela vontade arbitrária de uma
assembleia democrática ou de um ditador. Contudo,
exatamente aqui está o erro. O conhecimento ainda
parece impossível.

Hípias Menor

Os diálogos socráticos mais antigos não resolvem o


problema do conhecimento, mas, neles, pela
primeira vez, no pensamento grego, surgem
exames cuidadosos da relação do conhecimento
com a ética, cujas consequências
são surpreendentes. Um dos mais famosos de tais
breves diálogos é Hípias Menor. Hípias, um sofista
confiante, pronto para ensinar qualquer coisa a
qualquer um, tem como seu equivalente moderno
alguém que tenha todos os cursos na área
de educação, mas que jamais se preocupou com o
conteúdo da matéria. Sócrates, pobre homem, não é
apenas totalmente ignorante, quanto amaldiçoado
com ideias esquisitas. Ele pensa que qualquer que
erre de maneira espontânea e intencional é melhor
homem do que aquele que erra involuntariamente.
Por exemplo, o astuto Odisseu, que se engajou em
enganos deliberados, jamais pretendendo cumprir
suas promessas, era melhor do que o correto
Aquiles, que voltou atrás em sua petulante ameaça
de abandonar o exército. Hípias defende a opinião
comum e adianta que a lei pune de maneira mais
severa o transgressor voluntário do que o ofensor
inadvertido.

Então, por meio de uma série de questões, Sócrates


força Hípias a admitir que, no mundo dos esportes,
a imperfeição voluntária pode ser achada
somente nos melhores atletas. Um corredor que
voluntariamente diminui a velocidade é melhor do
que um corredor que não pode evitar correr mais
devagar. Um lutador que permite ser vencido é
melhor do que um lutador vencido contra o
próprio querer. O mesmo é verdadeiro quanto aos
anseios intelectuais. O contador
que voluntariamente lida com os números de
maneira incorreta é melhor do que aquele que erra
nas contas contra a própria vontade. De fato, o
último poderá, involuntariamente, obter o total
correto sem sequer saber que acertou. Ou,
usando uma ilustração moderna, um professor
universitário poderá, com segurança, prometer a
nota máxima para os alunos que tirarem zero em
um teste de falso ou verdadeiro. Estudantes que
consigam errar todas as questões nesse tipo de
teste serão, obviamente, os melhores alunos.
Portanto, se esta linha de raciocínio puder ser
levada a todas as demais atividades, “aquele que
voluntariamente comete erros e injustiças, no caso,
o próprio Hípias — se é que existe tal homem —
seria o homem bom”. Hípias, renitente, nega a
inferência, sem poder, no entanto, dar nenhuma
razão para a recusa. Simplesmente diz: “Quanto a
isso, não posso concordar com você, Sócrates”. Ao
que Sócrates conclui: “Nem eu desejo
isso, Hípias... mas fico a considerar tais coisas e,
para mim, elas jamais parecem as mesmas;
contudo, não é de surpreender que eu, ou outra
pessoa comum, fique confuso; mas se você, que é
um homem sábio (sofista), está confuso, quão
pior será para todos nós”.
Tal tipo de conversa foi bem planejado para dar a
Sócrates a reputação de o pior dos sofistas e de o
grande corruptor da juventude ateniense. Sua
conduta certamente não é exemplo de como fazer
amigos e influenciar pessoas em benefício próprio.
Não é de admirar que ele tenha chegado a um triste
fim. Inteligências superiores sempre provocam os
democratas igualitários. De fato, Sócrates era
superior. A despeito de sua irônica admissão de
confusão, Sócrates jamais esteve tão confuso
quanto Hípias e aqueles que foram por ele
educados de maneira tão confiante.

A chave para o diálogo, encontrada na citação


acima, é a expressão “se é que existe tal homem”.
A frase de Sócrates é o véu que encobre a
profunda convicção de que esse homem não existe.
Deixe que Trasímaco e Cálicles afirmem que
moralidade seja apenas convenção social a ser
descartada por aqueles que desejem o sucesso.
Sócrates e Platão tentaram provar que a justiça é
intrinsecamente boa e que a vítima de injustiça é
menos miserável do que o perpetrador. Políticos
ambiciosos tentam parecer justos diante do público
a fim de enganá-lo, mas, conquanto prefiram a
aparência de justiça à realidade, ninguém prefere a
mera aparência do bem a aquilo que é verdadeiro.
Quem escolheria a aparência de saúde quando
tomado de varíola, à aparência de varíola, gozando
de boa saúde? Todos querem aquilo que é
realmente bom. Daí, conclui-se que, quando
alguém não obtém o bem, deve ser por causa
da ignorância. Se ele sabe o que é o bem, busca
alcançá-lo. Talvez aquele que voluntariamente
comete o pior crime seja o melhor homem;
contudo, embora possa praticá-lo, não o faz porque
sabe que a injustiça não é realmente boa. O
transgressor voluntário não existe. A ignorância,
sim, é a causa do crime, e o conhecimento assegura
a virtude. Os homens têm de ser ensinados.
Entretanto, infelizmente para os gregos, os
professores eram abrangentes quanto à
educação, mas faltos de conhecimento e clareza.

A ridícula posição dos sofistas é retratada com


esmero no último, maior e mais artístico dos
diálogos socráticos, o Protágoras. Abre-se a cena
nas primeiras horas do dia, com um jovem,
Hipócrates, batendo à porta de Sócrates para dizer-
lhe que Protágoras está na cidade. Hipócrates
jamais havia visto ou ouvido Protágoras, mas
deseja estudar sob sua orientação. Sócrates,
restringindo o ânimo exuberante do jovem e
aguardando até que Protágoras tenha tempo de se
levantar da cama, inquiri Hipócrates sobre o que ele
esperava aprender. Se estudasse sob seu
homônimo, Hipócrates de Cós, aprenderia medicina
e se tornaria um médico. Se escolhesse Fídias como
professor, estudaria arte e se tornaria um
escultor. Ora, Protágoras é um sofista. Isso
significa que Hipócrates quer ser um
sofista? Hipócrates põe um pé atrás a essa sugestão,
pois tem vergonha de ser considerado um sofista.
Contudo, com a ajuda de Sócrates, ele se lembra de
que, quando tomou lições de música, não tinha o
objetivo de se tornar um músico profissional, mas,
meramente aumentar sua cultura. Ainda assim, um
músico ensina música — o que um sofista ensina?
Quando Hipócrates elabora a suposição de que
os sofistas ensinam seus alunos a falar de maneira
eficaz e persuasiva, Sócrates indica que o mestre de
música ensina seus alunos a falar sobre música - e
repete a questão sobre o que falam os sofistas.
Assim, Hipócrates é levado a admitir que deseja
estudar algo sem conhecer qual seja o conteúdo da
matéria. Isso não é apenas ridículo, mas também
perigoso tal como Sócrates adverte. O discípulo de
um sofista acabará tendo de mudar, pelo menos em
alguns aspectos, o próprio caráter, e o caráter ou a
alma é a coisa mais importante que a pessoa
tem. Hipócrates parece objetivar uma mudança de
caráter sem saber se para melhor ou para pior.
Diante de tal situação, a única coisa certa a ser feita
é indagar a Protágoras sobre o que ele diz sobre o
próprio ensino.

Sócrates e Hipócrates vão à casa em que estão


alojados Protágoras e diversos proeminentes
sofistas. A cena se passa no átrio e no jardim da
casa, retratando vividamente a fama e a honra
desses professores itinerantes como somente
o gênio dramático e literário de Platão poderia ter
feito. Depois de polidos cumprimentos e
apresentações, é feita a pergunta sobre o que
Hipócrates poderia esperar ao se tornar discípulo de
Protágoras. Quando Protágoras percebe que não
basta dizer que Hipócrates será uma pessoa mais
bem educada, pois, como já visto, ele não será um
músico melhor, ele passa a dizer que ensina
a virtude cívica.

Poderia a virtude ser ensinada?

Diante de tal declaração, Sócrates professa aceitar a


opinião grega comum de que a virtude cívica não
pode ser ensinada. Ora, os atenienses, que são,
é claro, altamente sábios, quando ficam perplexos
com questões de medicina ou navegação, não
permitem que qualquer um lhes fale, mas buscam o
conselho de técnicos que foram educados nos
devidos conhecimentos. Entretanto, na Assembleia,
quando o debate versa sobre política pública,
moral, justiça e administração do Estado, em vez de
buscar o conselho de um especialista,
eles permitem que qualquer um lhes fale. Isso
implica que não haja especialistas em virtude cívica
e que virtude não é coisa que possa ser ensinada.
Se, de fato, virtude pudesse ser ensinada, bons pais
poriam seus filhos sob a tutela de bons mestres de
virtude tal como os colocam sob competentes
mestres de música. Entretanto, Péricles, tão bem-
sucedido na vida pública, não ensinou nem
permitiu que outros ensinassem tais virtudes aos
seus filhos. Antes, eles foram deixados à solta,
como vacas sagradas no pasto, apanhando o que
estivesse ao alcance. Aparentemente, virtude não é
algo que possa ser ensinado.

A resposta de Protágoras é um discurso longo, belo,


e persuasivo, que perde completamente o ponto.
Primeiro, ele explica por que alguém pode
ensinar na Assembleia. Epimeteu, como diz o mito,
deu força, agilidade, e meios de proteção aos
animais em abundância, tal que pouco restou para
os homens. Para remediar tal infortúnio, Prometeu
deu aos homens o fogo e as habilidades
técnicas; mas, como os homens não tinham senso
de justiça, eles permaneciam engajados em guerras
constantes, uns contra os outros. Não era possível
haver nenhuma cooperação. Então, Zeus enviou
Hermes para dar aos homens um senso de justiça. E
uma vez que tal senso foi dado a todos os homens,
qualquer um, e não somente um especialista, tem
permissão para falar na Assembleia.

Em segundo lugar, e a despeito do fato de que


todos os homens são imanentemente dotados de um
senso de justiça, Protágoras declara que a
virtude pode ser ensinada. Defeitos naturais, feiura,
e resultados de acidentes, não sujeitam uma pessoa
à condenação; mas a ausência de qualidades que ela
pudesse adquirir, isso a condena. Portanto, uma vez
que responsabilizamos o homem pela falta de
virtude, a virtude será algo passível de ser ensinada.
De fato, criminosos são punidos, não em função de
vingança irracional, mas para torná-los pessoas
melhores e para advertência dos demais. Isso é
ensinar virtude.

Em terceiro lugar, não apenas os pais ensinam a


virtude a seus filhos, como também as babás, os
tutores e os mestres escolares ensinam a virtude
às crianças; e toda a sociedade ensina a virtude aos
adultos. O fato de que filhos de homens eminentes
são, às vezes, viciosos, não deveria ser motivo de
surpresa, pois o filho de um flautista nem sempre é
um especialista em música. Cada filho aprende
segundo a própria habilidade. A confusão na
opinião comum com respeito à possibilidade do
ensino da virtude reside no fato de que tal tipo
de ensino é processado de maneira tão paulatina e
constante que acaba passando despercebido. Todo
mundo é professor de virtude da mesma maneira
que todo mundo é professor de grego; naturalmente
alguns são melhores do que outros, e eu,
Protágoras, o melhor de todos.

Assim, o argumento inicia com Sócrates negando e,


Protágoras, afirmando que a virtude possa ser
ensinada. Lendo até o final, se poderia descobrir
que ambos teriam mudado de posição. Sócrates
acaba afirmando e, Protágoras, negando a
possibilidade de a virtude ser ensinada. Esse toque
humorístico da habilidade de Platão depende do
sentido do termo virtude, té o sentido de virtude
que torna a fala inicial de Protágoras, uma resposta
irrelevante à questão original de Sócrates. Sócrates
usou música e navegação como exemplos de
temas que poderiam ser ensinados. Estes eram
corpos de conhecimento definidos; seus
especialistas ou mestres eram reconhecidos; e seus
métodos poderiam ser explicados a qualquer pessoa
inteligente. Sócrates, portanto, em sua
questão original, requeria que Protágoras ensinasse
virtude da mesma maneira como alguém ensinaria
navegação ou geometria. A ética, se passível de ser
ensinada, deveria ser definida como um corpo de
conhecimento que não apenas os
atenienses pudessem aprender, mas que os trácios,
os persas e outros com suficiente -inteligência para
apreender navegação, pudessem aprender.

Contudo, Protágoras não poderia satisfazer tal


exigência. Na primeira parte de sua exposição, em
que fala de Prometeu e Hermes, ele admite o
argumento de Sócrates, de que não há especialistas
em virtude tal como há em relação à musica. Zeus
deu a todos os homens um senso de justiça
suficiente para habilitá-los a falar na Assembleia;
mas qualquer que seja o senso que tenha
nascido, música, navegação ou geometria, a pessoa
terá de estudar junto de mestres reconhecidos, antes
que outros deem ouvidos às suas opiniões sobre tais
assuntos. Sim, a virtude pode ser ensinada, insiste
ele, na segunda parte do discurso, pois babás,
tutores e toda a sociedade estão constantemente
ensinando virtudes, da mesma maneira como
ensinam grego.

Aqui se vê mais claramente o que Protágoras


entende por virtude. Uma criança nasce com
capacidade para falar, tal como se tivesse recebido
um dom de Zeus; mas, se a criança falará grego, ou
persa, depende de qual sociedade ela é criada. A
habilidade para falar e o senso de justiça talvez
sejam naturais e comuns a todos os homens; mas tal
como regras de gramática mudam de lugar para
lugar, assim também, seguindo a analogia, regras
morais particulares dependem dos costumes de
diferentes sociedades. No grego, é correto o uso
de um verbo no singular com um sujeito neutro
plural. Na Grécia, é legalmente correto abandonar
um recém-nascido à morte. Sócrates, entretanto,
busca um sistema de moral que, tal como os
teoremas da geometria ou as leis da navegação, não
sejam mutáveis, mas, sim, que sejam naturais e
comuns a todos os homens. Se a virtude for
conhecimento, então poderá ser ensinada. Costume
não é conhecimento, é uma habilidade; e o
chamado de um mestre estrangeiro para ensinar
costumes atenienses de maneira melhor do que os
próprios atenienses é de sabida impertinência.

Porém, o que acontece, se o conhecimento for


impossível? Obviamente, se não houver
conhecimento, e se uma obrigação moral universal
for questão de conhecimento, não poderá haver
virtude. Uma vez mais, o argumento deriva para a
epistemologia.

Comentário antecipatório

Antes, porém, que o problema da epistemologia


seja esboçado, devemos antecipar alguma coisa do
período medieval. Da mesma maneira como
a especulação cosmológica pré-socrática se
desenvolveu sem uma referência a um Criador
Todo-poderoso, assim também, com respeito à
moralidade, a antítese entre teorias convencionais e
naturais foi enquadrada sem referência a
um Legislador moral soberano. No diálogo
Eutífron, discute-se, se atos piedosos são pios
porque os deuses os apreciam ou se os deuses os
apreciam porque são pios. Aqui, o poder ofuscante
da isolação cultural é visto em sua apresentação
máxima. O fato de que os pré-socráticos não
poderíam ter antecipado os conceitos cristãos era
coisa esperada; mas é de admirar que Platão, o
grande gênio filosófico de todos os tempos, tenha
permanecido cego. Para fazer justiça, ele notou
a possibilidade lógica de que atos piedosos
pudessem ser pios porque os deuses
os apreciassem; mas, em vez de argumentar contra
tal opinião, ele a rechaçou como sendo indigna de
consideração. Para a sua mente totalmente grega,
parecia um óbvio absurdo. No entanto, se os deuses
apreciam os atos piedosos porque são pios, segue-
se que há um padrão, uma norma, ou qualidade de
piedade superior à vontade dos deuses. A existência
de tal padrão independente da vontade dos deuses é
claramente consoante com as pressuposições
gregas. Os deuses gregos eram seres limitados e,
uma vez que eles não criaram o universo,
seria incongruente atribuir-lhes um poder legislador
soberano. Ainda que Platão, de maneira tão
brilhante, transcendesse os conceitos gregos
vigentes, tal como veremos, ele jamais se livrou da
ideia de que um autor pessoal estaria subordinado a
leis existentes independentemente dele. Conclui-se,
portanto, que a antítese entre a moralidade
convencional e a lei moral natural talvez esteja em
completa disjunção, e que uma terceira
possibilidade esteja mais próxima da verdade.
Em especial, será útil lembrar que ninguém é
obrigado a aceitar o platonismo a fim de defender
uma obrigação universal em detrimento do
humanismo contemporâneo. Uma vez que o
moderno século 20 rejeitou largamente o
platonismo, considerando-o magnificente, sim, mas
um sonho desconfortavelmente enganoso, e
aceitou, em grande parte, a teoria da moralidade
social proposta por Protágoras, ainda há
a pressuposição de que um Legislador soberano
apresente uma alternativa que não deveria ser
descartada sem exame.

EPISTEMOLOGIA SOFISTA

Seria, o conhecimento, possível? Aqui, não existe


uma terceira possibilidade. Mesmo se alguém
desejasse basear a moralidade em um
Legislador, ainda teria de fornecer base para a
possibilidade do conhecimento. E os
sofistas, confrontados pelas falhas da ciência e da
matemática, motivados pelas recompensas dos
políticos, livres de escrúpulos, em função dos
paradoxos da moralidade, e intoxicados com a
argumentação lógica, ainda que confusos quanto às
conclusões, declararam que nada poderia ser
conhecido. Todo pretenso conhecimento, isto í-
cada proposição, é composta de um sujeito e um
predicado; mas Parmênides havia demonstrado que
seria impossível haver predicação. Embora
Protágoras cão se comparasse ao nobre Parmênides,
o tema parmenidiano é colocado na roca dos
sofistas, que estão muito abaixo de Protágoras. Em
Eutidemos, Platão ridiculariza os astutos e
medíocres sofistas, que aprendem rapidamente suas
lições, mas que são faltos de seriedade e
profundidade. Contrastando a fragilidade ca
esperteza sofista, com a honestidade proposital de
Sócrates, Platão atribui aos sofistas, até mesmo,
alguns temas socráticos e platônicos, que não
podemos crer que ele quisesse repudiar. O que os
sofistas fazem com tais temas é lamentável. O
conteúdo de seus argumentos é tão ridículo, que a
enorme importância do problema da predicação
pode facilmente ser perdida, e o diálogo pode se
tornar, meramente, uma exposição da chicanice
sofista.

Lógica esquisita

A certa altura do diálogo, os sofistas discutem a


possibilidade de proferir uma mentira. Falar uma
mentira significa, é claro, dizer aquilo que não é; e
falar uma verdade é dizer aquilo que é. Quando
alguém apresenta a coisa sobre a qual está falando,
fala de uma coisa única e distinta de todas as
coisas; em outras palavras, diz algo que é, e não
alguma coisa que não é; portanto, ele tem de
estar talando a verdade. Contar uma mentira é dizer
algo que não é; e as coisas que não são, não podem
ser, em nenhum lugar e de nenhuma maneira. Uma
pessoa que fala está contando ou fazendo algo; e,
porque alguém não pode falar ou fazer algo
inexistente, pois, nesse caso, nada estaria fazendo,
conclui-se que ele está falando coisas que são, ou,
em outras palavras, a verdade.

O argumento misturado com deslavada comédia


começa a ficar quente, e alguém da audiência se
aventura a contradizer os sofistas. Então, eles
questionam a possibilidade de contradição. Cada
coisa tem a própria descrição, e ninguém pode falar
de uma coisa que não é. Portanto, se dois homens
falam sobre a mesma descrição de uma coisa,
obviamente não estariam se contradizendo,
uma vez que, nesse caso, nenhum deles teria tocado
o assunto. Finalmente, se um deles descreve uma
coisa e o outro descreve algo diferente, também não
estarão se contradizendo, pois não estariam falando
sobre a mesma coisa. De modo que é impossível
haver contradição.

Já no final do diálogo, vem um argumento dos mais


extravagantes. A situação diz respeito ao fato de
que Pátrocles era irmão de Sócrates, pelo lado da
mãe, mas não pelo lado do pai. Isso significa que
Pátrocles era irmão e não-irmão. Semelhantemente,
o pai de Pátrocles era Queredemo; o de
Sócrates, Sofronisco. Uma vez que Sofronisco é
pai, e Queredemo é outro que não
Sofronisco, segue-se que ele é outro que não pai,
pois, se outra coisa que não seja pedra é não-pedra,
qualquer coisa que não seja pai é não-pai.
Entretanto, uma pedra é uma pedra, sempre e em
todo lugar. Segue-se, portanto, que um pai deveria
ser pai sempre e em todo lugar. Em conformidade,
se for verdadeiramente pai, Queredemo teria de ser
pai de peixes, cães e porcos. Ou o reverso: se
um cachorro é um pai, e se o cachorro é o cachorro
do ouvinte, o cachorro será seu pai.

Em Eutidemos e em todos os diálogos socráticos


mais antigos, nos quais Platão ataca o sofismo,
aparecem simples problemas de lógica. O
próprio Protágoras, no diálogo de mesmo nome,
presume estar cônscio do caráter imutável do
julgamento afirmativo universal. Ele havia dito que
“todo a é b” e que isso não significava que “todo b
é a . O fato de tal declaração ser presunçosa mostra
o débil desenvolvimento da lógica da época; e o
fato de ser uma hipótese sofista, revela que algum
progresso elementar havia se tornado
conhecimento comum. Entretanto, nem sempre são
os sofistas que argumentam de maneira inválida; às
vezes, Sócrates comete semelhantes ratas. Com
isso, somos deixados a pensar se Sócrates também
não entendia melhor do que eles, se nós
não entendemos o significado, ou se Platão
pretendia se divertir às nossas custas. Subjacente a
tudo isso está o problema da predicação. Como
uma coisa poderia ser outra? Ela não tem de ser o
que é? Uma pedra é uma pedra, um pai é um pai, e,
para recordar pensamentos, água é água. Água não
pode ser fogo, uma pedra não pode ser outra coisa e
um pai não pode ser não-pai. A dificuldade
inerente a esse problema, para os gregos, torna-se
clara quando é enfatizado o corporalismo, ou, o
materialismo predominante. Se toda a realidade é
corpórea, como podería um corpo ser outro corpo
que ele não é? A dificuldade se torna mais
acentuada quando a predicação negativa é
examinada. Se dissermos que um pai é não-pai, não
estaremos, na realidade, negando a existência do
objeto? Tal argumento foi apontado por
Parmênides e preocupou Platão durante a maior
parte de sua vida, até que chegasse à solução
relatada em um diálogo posterior. Contudo,
ainda não havia sido feita completa justiça aos
sofistas. Em Eutidemos, Platão faz os sofistas
parecerem estultos; em Protágoras, eles foram
retratados como confusos; mas, no Teeteto, Platão
reconhece que Protágoras, a despeito das faltas que
tenha cometido - e Platão pretendia expô-las - tinha
uma teoria bem desenvolvida que merecia análise
mais completa.

TEORIA DO HOMEM-MEDIDA

Diferente de outros sofistas, cuja inspiração era


derivada de Parmênides, Protágoras havia adotado
a perspectiva de Heráclito. Uma de suas
suposições primárias era o fluxo universal: todas as
coisas estão em constante mudança. Não querendo
abrir mão da palavra conhecimento, Protágoras
buscou algo no fluxo universal ao qual ela pudesse
ser aplicada; e plausivelmente identificou-a com
percepção. Agora, quando a percepção de constante
mudança é tomada como conhecimento, torna-se
forçoso aceitar a teoria do Homo-Mensura ou
do Homem-medida: O homem, cada homem, “é a
medida de todas as coisas, da existência de todas as
coisas que são e da não existência das coisas que
não são”.

Ninguém pode estar errado

O exemplo que Platão atribui a Protágoras, em


Teeteto, é o do vento. Quando o vento sopra, pode
ser percebido por um homem febril, como
frio, mas, para outro homem, o mesmo vento
parecerá ameno. Uma vez que pode ser aplicado a
todos os casos de percepção sensível - percepção de
marrom ou vermelho, amargo ou doce, áspero ou
polido - esse exemplo levanta o problema da
relação de atributos, ou qualidades, com as coisas
reais às quais elas pertencem; ou, pode-se dizer,
levanta a questão da real pertença de qualidades às
coisas reais. Se o vento parece frio a uma pessoa e
ameno para outra, que qualidade é pertinente ao
próprio vento? Esta é uma questão intrigante e será
discutida a partir de diversos pontos de vista por
filósofos posteriores. Em princípio, Protágoras não
pretende dizer mais, nem menos, do que isto: a
percepção é infalível. Ninguém pode estar errado.
Isso não apenas está de acordo com
a impossibilidade de contradizer alguém, tal como
foi questionado em Eutidemos, mas torna qualquer
percepção altamente plausível. Não é verdadeiro
que o homem febril é realmente refrescado pelo
vento? Certamente ele não estará errado a
esse respeito. E, se ostras e azeitonas têm gosto
agradável a mim, mas desagradam ao leitor, poderá
ser que um de nós dois esteja errado? Da mesma
forma, se eu vejo que a grama é verde, mas um
artista a vê púrpura, não estaremos ambos vendo o
que vemos? Finalmente, não é prazerosa, tolerante
e democrática a adoção de uma teoria segundo a
qual todas as pessoas são igualmente infalíveis?

Todos estão errados

Contudo, é possível apresentar outra interpretação


para o fenômeno. Platão sugere que a construção de
fachada seria a que Protágoras mostrou à
sua audiência, lisonjeando-os com a conclusão de
que ninguém poderia estar errado. Entretanto, ele
teria uma doutrina secreta reservada para os seus
discípulos mais íntimos. A referência ao secretismo
pode ser uma indicação de que esta
segunda interpretação iria além daquilo que o
Protágoras histórico teria dito.

De qualquer maneira, não iria além da lógica da


questão. Suponha que um oponente de Heráclito e
Anaxágoras negasse a possibilidade de
qualidades contrárias serem inerentes ao mesmo
objeto. O vento, real e em si, não poderia ser, ao
mesmo tempo, agradável e desagradável. Uma
moeda, não importando o que pareça de diferentes
perspectivas, não poderia ser, ao mesmo tempo,
circular e oval. A grama pareceria verde somente
para mim e roxa, somente para o artista. O vento
pode parecer frio para o homem febril. Mas o
próprio vento não é frio. Por acaso o vento vestiria
um casaco porque sente frio? Frio ou ameno, verde
ou púrpura, oval ou circular são efeitos produzidos
no organismo sensível, e não qualidades
objetivamente existentes nas coisas. Há certos
movimentos de fora do órgão sensorial que colidem
ou combinam com outros movimentos originados
dentro do órgão, formando combinações que
consistem na qualidade percebida. Obviamente,
portanto, a combinação formada por meu órgão
sensorial com os movimentos externos e a
combinação formada por seu órgão sensorial e os
movimentos externos não serão as mesmas
combinações. Isso explica por que o vento é frio
para uma pessoa e a grama é púrpura para
outra. Dois homens não têm o mesmo tipo de
sensação, pois a sensação existe somente no órgão
sensível. Portanto, por esta razão, a qualidade não
pode pertencer a uma coisa externa. O vento, em si
mesmo, não é frio. A qualidade existe somente no
receptor.

Entretanto, uma vez que a primeira interpretação


torna todo mundo democraticamente infalível, tal
entendimento da questão mostra também que todo
mundo está democraticamente errado. Nenhuma
predicação é verdadeira. O vento não é frio; a
grama não é verde, a moeda não é redonda. De fato,
o vento não é coisa nenhuma; o próprio vento não
é; isto é, o vento não existe. Nada existe.
Esta conclusão não é tão artificial como parece em
princípio. Como poderia existir algo, se tudo está
em constante mudança? Ainda que o vento não
seja, ele se torna, e se torna frio caso eu o perceba
assim. Eu também não sou, mas me torno. Pessoas
e coisas não existem em si mesmas: elas se tornam
e vêm a ser apenas em relação. Portanto, a sensação
de uma pessoa é tão honesta quanto a de outra;
cada pessoa é o único juiz da própria percepção. O
leitor sabe qual é, para mim, o gosto de ostras ou de
empadas? Já sentiu minha dor de dente?8 Poderá
julgar minha sensação? Não, eu sou o único juiz de
minha condição, e você, da sua. Portanto, como
todas as coisas mudam, o homem é a medida, e o
conhecimento é a percepção.

Percepção, para Protágoras, é uma palavra de


maior extensão do que o sentido comum da
sensação. Além dos cinco sentidos ordinários,
Protágoras inclui não apenas as percepções de
prazer, dor, calor, desejo, medo e outras, mas
também opiniões de todos os tipos. Estas também
podem ser explicadas pelo mesmo princípio. Se as
qualidades sensórias de verde, ou oval, são
relativas, conceitos tais como equidade, mais ou
menos, justiça e moralidade, também são tais como
parecem a uma pessoa, e ninguém pode contestá-la.
A verdade de uma opinião jamais será de
importância, nem em política nem em
medicina pois todas as opiniões são igualmente
verdadeiras em relação a cada um que as mantenha.

Objeções e respostas

Quando um estudante, antigo ou moderno, lê pela


primeira vez uma teoria, várias objeções lhe vêm à
mente. Uma segunda leitura do livro talvez revele
que tais objeções não se aplicam. Ou, se tivesse
oportunidade de discutir as objeções com o autor da
teoria, as respostas dariam ao estudante um
entendimento mais profundo do que o livro queria
dizer. Nos diálogos, Platão dá a impressão
ilusória de conversar com tais autores. Assim,
certas críticas são levantadas contra a teoria do
Homem-Medida, não porque os autores a rejeitem,
mas porque eles entram numa discussão aberta
sobre o sentido de Protágoras.
Por exemplo, homens têm sonhos e, quando
insanos, têm alucinações; certamente estes não
constituem conhecimento. A isto, Protágoras pode
responder que a situação não é essencialmente
diferente daquela em que um homem percebe verde
e, o outro, púrpura. O ponto é que há dois homens,
e o insano percebe suas alucinações de maneira tão
verdadeira como o artista percebe sua
púrpura. Naturalmente diferentes pessoas têm
diferentes percepções; e quanto mais diferentes
sejam as pessoas, tanto maiores as diferenças entre
as percepções. Sonhos e alucinações, portanto, não
reprovam a teoria.

Outra objeção ocorre quando uma pessoa iletrada


vê uma página escrita ou ouve um idioma que não
lhe seja conhecido. Se conhecimento é
percepção, deveríamos dizer que, uma vez vista a
página ou ouvido o idioma, tal pessoa entende e
sabe? Ou deveríamos dizer que, visto que ela
obviamente não entende nem sabe, provavelmente
é cega ou surda? Esta objeção não é difícil de
ser respondida. A pessoa em questão conhece o
desenho das letras que vê e os sons que ouve, mas
não conhece tudo o que os gramáticos dizem sobre
a linguagem, pois jamais aprendeu a gramática.
Tivesse ela algum dia percebido a gramática e teria
entendido a linguagem. Tal resposta, contudo,
provoca outra questão. Se conhecer é idêntico a ver
e, se os objetos da memória não estão presentes
nem vistos, então ninguém conhece as coisas das
quais se lembra. Ou, se as pessoas, ainda que não
vejam, conhecem as coisas das quais se lembram,
conclui-se que, se ver é conhecer, elas conhecem e
não conhecem a mesma coisa. Mas como alguém
poderá conhecer e não conhecer alguma coisa?

Embora essa objeção pareça impressionar aqueles


que não a consideraram suficientemente,
Protágoras resolveu o quebra-cabeça de maneira
bem fácil. Em primeiro lugar, ver é realmente
conhecer; mas tal é verdadeiro também em
relação a toda percepção. A teoria não limita o
conhecimento à sensação. Lembrar é também um
tipo de percepção. Pode-se concluir daí que não há
grande dificuldade em conhecer e não conhecer a
mesma coisa. Dentro dos limites da sensação, uma
pessoa pode conhecer e não conhecer, ver e não
ver, a mesma coisa no mesmo momento por meio
do simples ato de fechar um olho. Fora dos
limites da sensação, o caso se torna mais
complicado. Permanece sendo verdadeiro
que alguém pode conhecer e não conhecer a mesma
coisa. Isto é, uma pessoa poderá conhecer
Protágoras, a quem não tem visto por anos, porque
se lembra dele, mas, ao mesmo tempo, poderá não
conhecer Protágoras, pois não o vê agora. Além
disso, deveria ser observado que a memória, a
imagem lembrada que é uma experiência presente,
não é a mesma coisa que a experiência passada,
a sensação, que era a imagem de Protágoras quando
foi visto. E mais, as bases sobre as quais se
colocam essas objeções superficiais poderão ser
retiradas, deixando claro que, assim como o vento
não é, mas se torna, assim também aqueles que
percebem não são, mas se tornam. A pessoa que viu
Protágoras há algum tempo não é a mesma pessoa
que vê Protágoras agora. Pessoas e coisas estão
constantemente mudando; e qualquer objeção
baseada na noção de que a mesma pessoa não pode
fazer isto ou aquilo, falha, pois nenhuma
pessoa permanece sendo a mesma em dois
momentos consecutivos.

Há, contudo, outra objeção. Se uma “pessoa” nada


mais é do que um fluxo de consciência e jamais
permanece sendo a mesma, e, se toda percepção,
memória, opinião, é verdade infalível no momento
em que ocorre para a pessoa momentânea que a
experimenta, então por que deveria alguém pagar
honorários a Protágoras? Ele já sabe tanto quanto
Protágoras e não poderá aprender nada mais
verdadeiro do que aquilo que já sabe. Uma vez que
essa perspectiva coloca todos os homens em nível
de igualdade, por que Protágoras deveria ser visto
como alguém mais sábio do que outra pessoa ou,
até mesmo, ser chamado de sofista?

Respondendo a esta objeção que parece realmente


ter peso, Protágoras faz uma declaração final sobre
sua filosofia. Ele reafirma que todo homem é a
medida de todas as coisas que são e das que não
são; mas, longe de erradicar todas as diferenças e
de nivelar todos os homens, sua perspectiva
mantém que há grandes diferenças entre pessoas.
Um homem poderá pensar que o vento é
congelante, outro que é revigorante, etc. Ora, o
vento congelante é uma percepção
equivocada, como o próprio homem poderá
admitir, e um médico é sábio e merece
seus honorários porque faz coisas boas
acontecerem ao homem que sofre das
percepções equivocadas. Na educação, também, um
mestre hábil, ainda que não possa mover um aluno
que antes pensava o que é falso a pensar o que é
verdadeiro — pois não é possível pensar o que é
falso — poderá, não obstante, substituir, na mente
do aluno, os pensamentos anteriormente entretidos,
por melhores pensamentos. E o aluno, depois de
experimentá-los, presumivelmente admitirá que os
novos pensamentos são melhores.
Semelhantemente, um político sábio, embora
não possa defender políticas mais justas do que
aquelas que a sociedade já mantém — pois todas as
políticas são igualmente justas — poderá persuadir
os cidadãos a ter opiniões melhores e mais
vantajosas. Dessa maneira, alguns homens são
melhores do que outros e merecedores de maiores
honorários, mesmo que ninguém jamais pense
falsidades e todos sejam a medida das coisas.
A filosofia de Protágoras não se confinou à
antiguidade; antes, tem se tornado proeminente no
pensamento contemporâneo. O último capítulo
desta historia examinara a matéria mais uma vez.
Desta vez, o leitor poderá rever a argumentação de
Platão, refutando a versão antiga.

A réplica de Platão

Se o homem é realmente a medida de todas as


coisas, então, toda opinião é verdadeira; na
verdade, Protágoras diz explicitamente que aquilo
que parece verdadeiro a alguém é verdadeiro para
aquele a quem isso parece verdadeiro. Ora, todos,
até mesmo Protágoras, creem que alguns homens
são mais sábios do que outros; mas a diferença
entre a maioria dos homens e Protágoras reside no
fato de que, a maioria dos homens crê que os sábios
sejam sábios, em função da veracidade de suas
opiniões, e que os não sábios sejam ignorantes, em
função da falsidade de suas opiniões. Porém, se
todas as opiniões são verdadeiras, como diz
Protágoras, e, se a maioria mantém a opinião que
lhe é agora atribuída, então tal opinião — a saber,
que algumas crenças são falsas - é uma
opinião verdadeira. Assim, Protágoras é culpado de
contradizer a si mesmo. Mais embaraçoso ainda:
muitas pessoas creem que a teoria de Protágoras
seja falsa, e, uma vez que ele admite a veracidade
de tal opinião, admite assim que sua teoria é falsa.
E ainda, conquanto Protágoras admita que a
opinião de tais pessoas seja verdadeira, ainda que
somente para elas, elas não admitem que sua
teoria seja verdadeira nem mesmo para ele; e, se
todas as opiniões são verdadeiras, então a teoria de
Protágoras não será verdadeira nem mesmo para
ele.

O passo seguinte, na refutação de Platão a


Protágoras diz respeito ao médico ou político que
transforma ocorrências más em boas. Assumamos
que uma teoria médica ou política seja tão
verdadeira quanto outra. Ainda assim, onde
houver uma predição de que um tratamento
produzirá ocorrências saudáveis, ou que uma
política produzirá ocorrências de prosperidade,
quem poderá afirmar que um prognóstico médico
ou um decreto governamental será efetivamente
vantajoso? Se a opinião pode realizá-las, então todo
mundo deveria ser saudável e próspero. Nenhum
plano poderia falhar. Certamente o próprio
Protágoras afirmava que seus procedimentos para
fazer do jovem uma pessoa melhor eram predições
tão verdadeiras como os reclamos dos mestres
menos distintos. Contudo, nisso, ele assumiu ser
uma medida mais confiável do que a de todos os
demais.

Esses dois passos, a absurdidade lógica de


Protágoras ao admitir a falsidade de sua tese, e a
réplica ad hominem, baseada na proposta de
Protágoras quanto à maior exatidão na predição,
podem ser tomados como refutação suficiente, não
apenas da doutrina antiga de que todas as opiniões
são verdadeiras, mas também do moderno
relativismo diletante, que despreza controvérsias
importantes como se fossem simples questões de
opinião. Mentes superficiais ainda pensam que uma
proposição possa ser despida da “veracidade
autoritativa” e reduzida ao nível inócuo de todas as
crenças não descritíveis, mediante a acusação
de ser mera opinião pessoal. E, é claro, em uma
sociedade democrática, uma opinião é tão boa
quanto outra.

Entretanto, há uma segunda maneira pela qual


Protágoras explicou sua teoria. Aos seus discípulos,
ele disse que toda opinião era falsa; e esta
interpretação se baseava na doutrina heraclitiana do
fluxo universal. Platão, de modo cáustico, descreve
os discípulos de Heráclito como sendo fiéis à
própria teoria e, portanto, em movimento perpétuo.
Eles não podem parar durante tempo bastante
para ouvir uma objeção, para responder uma
questão ou para engajar em um debate ordeiro.
Tomam cuidado para não deixar nada assentado
quer no discurso quer em suas próprias mentes,
temendo admitir a presença de algo fixo no
universo. Esta descrição contém as principais
refutações ao heraclitianismo, mas Platão está
disposto a dignificar a discussão em seus detalhes.

Primeiro, Platão distingue entre movimento de um


lugar para outro e movimento no sentido de
mudança de qualidade. Os heraclitianos têm de
ser entendidos como afirmando que as mudanças
ocorrem em ambos os sentidos e em outros mais, se
houver; de outro modo, alguma coisa, talvez uma
qualidade, permaneceria fixa e estável. Segue daí
que coisas brancas, quentes, ventos gelados e
gramas verdes não permanecem brancas, quentes,
gelados ou verdes. Uma vez que as qualidades
estão constantemente mudando, será impossível
nomeá-las com precisão. A grama não é verde nem
de outra cor. E impossível nomear qualquer
qualidade ou estado. O que dizer de ver e ouvir?
Uma vez que ambos não podem permanecer os
mesmos, a condição de ouvir, nada mais é do
que não-ouvir, e a de ver, é igual a não-ver.
Portanto, percepção é também não-percepção, e
conhecimento é não-conhecimento. Se todas as
coisas estão em contínua mudança, qualquer
resposta poderá ser dada a qualquer questão. É
assim e não é assim.

Para entender o desenvolvimento do pensamento de


Platão, será preciso ver que ele não está tentando
provar que as qualidades sensoriais
permanecem fixas ou que a percepção não sofre
constante mudança. De fato, Platão aceita o ponto
de vista de que o mundo físico permanece em fluxo
constante. O ponto que Platão está afirmando - para
posterior aplicação - é que, se o mundo
físico mutável for a totalidade da realidade, então o
conhecimento será uma coisa impossível. Tem de
haver algo que permaneça fixo, mesmo que essa
coisa não seja verde, quente ou sequer seja visível.

Mais respostas de Platão

Subjacente a algumas das asserções de Protágoras


havia a noção de que o homem poderia, ao mesmo
tempo, ver e não ver, se mantivesse um olho
aberto e o outro fechado. Isso é bem consistente
com a filosofia geral de Protágoras, mas envolve
uma visão do homem que Platão deseja mostrar que
é falsa.

Aquilo que Protágoras chama de homem faz Platão


se lembrar do cavalo de Troia. Dentro dele se
esconderam diversos soldados e um deles talvez
tivesse olhado através do olho esquerdo do cavalo
de madeira, enquanto outro poderia ter olhado
através do buraco no ouvido direito do cavalo.
Quando o último soldado não estava olhando,
Protágoras poderia dizer que o cavalo viu e
conheceu por meio do olho esquerdo, mas que, ao
mesmo tempo, não viu nem conheceu por meio do
ouvido direito. Platão argumenta que o cavalo, de
fato, nada viu. Igualmente, em relação ao homem,
se é o olho que vê e o ouvido que escuta, então o
homem nem vê nem escuta — ele não é mais do
que um cavalo de madeira com sentidos dispersos
aqui e ali.

Para Platão, o próprio homem é quem vê e escuta.


Ele vê através de seus olhos ou de um só olho, e
escuta através dos seus ouvidos; mas é o homem e
não os seus órgãos sensíveis que vê, sente ou
conhece. Em outras palavras, além dos órgãos ou
instrumentos, há algo mais, um sujeito conhecedor,
um homem, uma alma, uma razão. E é essa razão
coordenadora que escapava completamente à
atenção de Protágoras.
Forçando um pouco mais este ponto: é claro que o
olho não é o instrumento da audição, nem o ouvido
o órgão da visão. Porém, se o olho não pode sentir
o som nem o ouvido pode perceber a cor, qual será
o órgão, se é que existe um, capaz de apreender um
pensamento sobre som e cor ao mesmo tempo?
Tais pensamentos existem. Por exemplo, ver e
ouvir são sensações; ambos usam órgãos; ambos os
órgãos existem. Existência é uma qualidade comum
à cor e ao som. Qual é, então, o órgão que capta o
pensamento sobre a existência? E há ainda
as noções sobre aquilo que é diferente e aquilo que
é o mesmo; há pensamentos sobre pares e ímpares,
unidade e número. Nenhuma parte do corpo, isto
é, nenhum órgão, apreende tais pensamentos; mas a
própria razão é o próprio instrumento para
contemplar esses termos comuns que se aplicam a
todas as coisas. Esses itens, portanto, mostram
claramente que o conhecimento não pode estar
restrito a, ou equiparado com, a percepção. A
dureza de uma coisa dura e a maciez de algo macio
são percebidas pela razão por meio do sentido do
tato; mas a existência de algo duro e sua
inconsistência com, ou diferença de algo macio são
noções da razão que não vêm por meio de
percepções, mas da reflexão sobre tais percepções.
A percepção começa com o nascimento e é achada
nos homens e nos animais, mas a reflexão requer
um longo processo de educação. A menos que
alcance existência, esse processo não atingirá a
verdade; e, uma vez que a percepção não pode
alcançar a existência — e quanto a este ponto,
Platão e Protágoras concordam — fica claro que
jamais atingirá a verdade; e, se jamais atinge a
verdade, então a própria teoria não será verdadeira.

Este é o destino de todas as teorias relativistas,


antigas ou modernas. Elas são autodestrutivas
porque são contraditórias. Quando um pragmático
afirma a impossibilidade de obter o absoluto, e um
instrumentalista, com sua ênfase na mudança,
deplora o dogmatismo da verdade imutável, ou
quando um freudiano despreza a razão consciente à
guisa de racionalização hipócrita, eles
sempre entendem que suas perspectivas são
exceções. É absolutamente verdadeiro que nós
perdemos de vista o absoluto; é uma verdade fixa
que nada é fixo; é válido o raciocínio de que toda
razão é hipócrita. Objeções ao dogmatismo são
sempre dogmáticas, e o relativismo é sempre
afirmado de maneira absoluta. Por isso, a teoria do
homem-medida deve ser rejeitada, e o
conhecimento, definido como algo mais do que
percepção.

A realidade incorpórea

A totalidade do desenvolvimento pré-socrático,


com exceção da filosofia eleata, recai sobre a teoria
do homem-medida. O sofismo, talvez de
maneira mais clara do que Zenão, mostrou que o
pluralismo havia localizado a causa
das dificuldades anteriores. Os pluralistas haviam
pensado que o problema do monismo corpóreo
residisse no monismo; e desenvolveram o
pluralismo corpóreo.

Porém, agora que este também está desacreditado,


fica claro que o problema reside na ênfase corpórea
e seu consequente, o sensacionalismo ou
percepcionismo. Se todas as coisas existentes são
objetos sensoriais, o universo está sujeito ao fluxo
universal, e o conhecimento será impossível.

Nesse ponto foi que Platão teve a brilhante ideia de


fazer uma simples dedução lógica. Contrastando e
alterando premissa e conclusão, conclui-se que, se
o conhecimento é possível, deverão existir
realidades imutáveis suprassensíveis. Por
intermédio da maioria dos seus diálogos, Platão
tenta dizer o que são tais realidades incorpóreas e
como podemos conhecê-las. Não há sequer um
diálogo em que essa teoria seja sistematicamente
explicada, mas ela pode ser presumida, referida e
aplicada para resolver os problemas mais práticos
da política, da ética ou da vida em geral. Para
preservar algo do sabor platônico original - ainda
que nada possa tomar o lugar da leitura dos
próprios diálogos com seus comentários incidentais
e suas reflexões penetrantes sobre os objetos
relacionados — o argumento pode ser desenvolvido
por meio de um sumário do Fédon.

O FÉDON
Na manhã da sua execução, enquanto seus amigos
vinham visitá-lo na cadeia, Sócrates esfregava as
pernas onde as correntes removidas haviam
deixado profundas marcas. Isso deu oportunidade
para alguns comentários sobre o prazer e a dor, e a
proximidade de sua execução conduziu a discussão
para os temas da morte e da imortalidade da alma.

O cuidado da alma

Sócrates, calmo e certo de que está para entrar em


um mundo melhor, contrasta o medo comum da
morte, com a prática filosófica contínua da
morte. Para entender esta declaração paradoxal, a
morte deve ser definida como a separação da alma
do corpo. Quanto a isto, no Fédon não há
argumento para demonstrar a existência da alma;
algumas considerações podem ser obtidas
da refutação de Protágoras, em que Platão indica
que deve haver algo, como uma mente ou alma,
distinta dos sentidos corpóreos, por meio da qual
temos pensamentos relativos a sensações
diferentes. Outros diálogos fornecem
outras considerações, e o próprio Fédon enfatizará
pensamentos que não configuram percepção. Há,
então, um corpo e uma alma, e a morte é a
separação dos dois. O filósofo, em contraste com o
homem comum, preocupa-se mais com sua alma do
que com seu corpo; ele não está ansioso quanto aos
prazeres de comer e beber, ou com vestes e
ornamentos luxuosos. Ao contrário, ele se preocupa
com a sabedoria. Mas a sabedoria considera o
corpo um impedimento, pois os sentidos corpóreos
não são acurados nem claros; e, quando tenta
apreender a verdade em junção com o corpo, a
alma é desviada de seu intento. O conhecimento
de realidades tem de se ater à razão, não à
sensação. E a alma raciocina melhor quando não é
perturbada pelo contato com o corpo, com ver ou
ouvir, ou pela distração do prazer.

Depois de uma pausa, Sócrates formula a seguinte


questão: Dizemos que a justiça é alguma coisa ou
que é nada? No pensamento pré-socrático, a
realidade era algo que ocupava lugar no espaço. A
questão, porém, mostra que na discussão entre
Sócrates (ou, pelo menos, Platão) e seus
companheiros havia o entendimento de que a
própria justiça era uma coisa. A justiça existe; e a
sua existência é a existência de uma realidade não
discernível por meio dos sentidos.
Imediatamente, Sócrates acrescenta outros
exemplos: beleza, magnitude e saúde, e a essência
ou realidade de todas as coisas. Se estivermos
procurando realidades não corpóreas, aí estão elas.
Pois, conquanto já tenhamos visto magnitudes,
jamais vimos a magnitude, ou, tal como explicou
um acadêmico, podemos traçar
linhas aproximadamente elípticas, mas jamais
poderemos, nem mesmo aproximadamente, traçar o
cone universal ou perfeito.

Incidentalmente, esta seção sugere a natureza da


filosofia e marca um avanço9 em relação aos
diálogos mais antigos. Na filosofia de Amantes
Rivais havia um tipo de conhecimento descrito de
maneira velada; em Alcebíades, a filosofia
foi definida pelo conceito socrático de
autoconhecimento, cujo sentido não é bem preciso;
aqui no Fédon a filosofia é o conhecimento da
realidade - das realidades chamadas Ideias ou
Formas, obtidas mediante o abrandamento dos
sentidos. Consequentemente, o conhecimento está
intimamente relacionado, diferentemente do
período pré-socrático, com a moralidade.

A conexão entre epistemologia e moralidade é vista


no fato de que o corpo está sujeito a uma série de
impedimentos. Doenças, desejos, medos e
fantasias perturbam a reflexão calma; o amor à
luxúria e à reputação conduz nossa atenção às
riquezas, não deixando espaço para o pensamento.
Segue, portanto, que se houvermos de conhecer
qualquer coisa pura, nossa tarefa moral será a de
dividir a nós mesmos, isto é, separar alma e corpo a
fim de contemplar as realidades puras apenas com
o concurso da alma. Isso é sabedoria, no sentido
daquilo que dissemos anteriormente: que o filósofo
pratica a morte durante toda a sua vida.

Esta é a razão pela qual Sócrates se sente confiante


e sem medo na expectativa de sua execução. A
coragem popular considera a morte como um mal, e
somente se põe a enfrentar a morte, em função do
medo de maiores males. Entretanto, é um absurdo
ser bravo por meio da covardia. Igualmente, a
temperança comum evita os prazeres, em função do
medo das dores consequentes, como um tipo
de autoindulgência A verdadeira virtude,
entretanto, somente existe junto à sabedoria; e,
onde faltar sabedoria, como ocorre com a maior
parte da humanidade, não poderá haver virtude
verdadeira. Sócrates, ao longo de sua vida, não
deixou de utilizar todos os recursos e habilidades
para buscar sabedoria e purificação. “Se tenho
procedido corretamente”, conclui Sócrates, “e se
qualquer sucesso que eu tenha obtido agradou a
Deus, saberei claramente depois de minha
chegada ao outro lado, o que não me parece muito
distante.”

Imortalidade

Obviamente, a confiança de Sócrates só poderá ser


justificada se a alma sobrevive à morte. Mas Cebes,
um dos companheiros de Sócrates, está preocupado
com a possibilidade de que após a morte, a alma
desvaneça como fumaça, e não mais exista em
lugar algum, tal como muitos creem.
Sócrates prontamente aceita o convite para discutir
o assunto.

Em todos os casos de geração, começa Sócrates,


aquilo que vem a ser procede de um estado oposto.
Quando qualquer coisa se torna maior, tem de
primeiro ter sido menor; o mais fraco é gerado pelo
mais forte; se um homem se torna justo, antes terá
sido injusto. Tal processo entre contrários opera em
ambas as direções; o quente se torna frio e o frio se
torna quente. Ora, é óbvio que a morte é o contrário
da vida, e ninguém poderá negar que é o vivo que
morre. Não se conclui, pois, que é o morto que vem
à vida? Se não fosse assim, as pessoas acordadas
logo dormiriam sem que nenhuma pessoa jamais
acordasse, e logo todo mundo estaria dormindo.
Isto é, se a geração de opostos ocorresse em uma só
direção, em breve toda geração cessaria. A
conclusão é que o vivo procede do morto, e isso
implica que a alma sobrevive à parte do corpo,
aguardando renascer.

Reminiscência
Outro argumento para provar a preexistência e,
assim, a imortalidade da alma, está mais
intimamente ligado à questão do conhecimento. No
Mênon, como foi exposto no início deste capítulo,
um jovem escravo, sob o questionamento de
Sócrates, foi capaz de construir um quadrado de
duas vezes o tamanho sua área. À parte do
significado matemático anteriormente levado em
conta, a ilustração mostra que uma pessoa de baixo
nível de educação poderá, por si mesma, sem
receber informação, suscitar a verdade do recôndito
de sua alma. O conhecimento é inato e repousa
dormente, aguardando um estímulo que produza
um estado mental descrito como recordação ou
reminiscência.

A comprovação de que o uso do termo


reminiscência é adequado pode ser verificada na
experiência ordinária. Por exemplo, em um dia feliz
na praça pública, Sócrates poderia não estar
pensando sobre Símias até que visse Cebes, o qual
o faria se lembrar dele. Ele teria pensado sobre
quanto Cebes se assemelhava a Símias, e sobre
quão diferentes eles eram. Não seria apenas a visão
de Cebes que poderia fazer Sócrates se lembrar de
Símias, mas, até mesmo, uma visão da lira que
Símias tocava — objeto de aparência bem diferente
da do músico -poderia causar a mesma recordação.
Tais lembranças e comparações seriam impossíveis
a menos que Sócrates tivesse conhecimento
anterior de Símias.

Agora, apliquemos a ilustração: Igualdade existe,


não apenas a igualdade de uma pedra com outra,
mas a igualdade propriamente dita, abstrata,
igualdade absoluta. Tal coisa existe e nós a
conhecemos. De certa maneira, aprendemos sobre
igualdade vendo pedaços de madeira ou pedras que
são aproximadamente

iguais; mais ou menos iguais; iguais em alguns


aspectos, mas não em outros. A Igualdade
propriamente dita, entretanto, jamais parece mais
ou menos igual, ou igual apenas em alguns
aspectos. É absolutamente igual e, portanto, a
Igualdade não é o mesmo que coisas iguais. Porém,
se não é o mesmo, então as coisas iguais, têm de ter
nos lembrado da Igualdade tal como a lira poderia
ter lembrado Sócrates a respeito de Símias.
Conclusivamente, uma vez que reconhecemos que
as coisas podem ser apenas aproximadamente
iguais, e que tal reconhecimento depende do
julgamento das coisas mediante um padrão
absoluto, havemos de ter conhecido o padrão
absoluto antes do tempo em que primeiro vimos
coisas iguais e julgamos suas semelhanças e
diferenças. O conhecimento original da Igualdade
não poderia ter vindo da experiência, porque a
Igualdade jamais aparece na experiência. A
experiência contém apenas coisas
aproximadamente iguais. Uma vez que
apreendemos tais aproximações por meio das
sensações, e uma vez que as sensações começam no
nascimento, temos de ter obtido conhecimento da
Igualdade, antes de nosso nascimento. Como nós
não temos consciência do conhecimento na
infância, é evidente que o esquecemos, e que,
portanto, aprendizado é uma recordação.

O argumento se aplica não somente à Igualdade,


mas, com a mesma força, à Beleza, ao Bem, à
Justiça e à Santidade, e todas as demais coisas que
selamos com o termo de absoluta existência.
Devemos ter conhecido todas estas coisas antes que
nascêssemos.

Os objetos do conhecimento

A teoria da recordação, especialmente a noção de


que o conhecimento é inato, é extremamente
importante; mas a afirmação de que existem
ideias absolutas que são objetos do conhecimento é
ainda mais importante. Já foi mencionado que
Platão aceitava o fluxo heraclitiano como
característica do mundo sensível. E dentro deste
mundo, tudo o que Protágoras disse sobre
a aparência das qualidades sensoriais, e a não
permanência da percepção, é verdadeiro. Daí, segue
que, tal como Teeteto deixou bastante claro, não
pode haver conhecimento de coisas perceptíveis.
Elas são transitórias e fugidias; não têm
estabilidade que possa fazer delas objetos definidos
de nenhum tipo. Declarações sobre objetos
sensoriais, como: Esta árvore tem exatamente
10,58m de altura; ou: Este menino pesa 38 quilos e
302 gramas - são falsas antes mesmo de serem
completadas.

Entretanto, se o conhecimento for possível, deve


haver um objeto a ser conhecido, um objeto
definido sobre o qual algo definido possa ser dito.
Platão aprendeu de Sócrates acerca de algo
imutável. Nessa conversa em praça pública ficou
claro que, conquanto particulares exemplos de
coragem, de beleza ou de igualdade variam
indefinidamente, a própria Coragem, a Beleza em si
mesma e a Igualdade absoluta permanecem sempre
as mesmas. Tais itens imutáveis eram as definições
buscadas pela dialética socrática.

Platão vai além deste resultado aparentemente


simples. Para ele, as definições socráticas não
deveriam ser consideradas como fantasiosas ou
fabricadas por uma razão em particular. Os homens
não elaboraram ou formularam as definições: eles
as descobriram. Platão lhes deu
um statusontológico. Elas eram reais.
Essas definições de Ideias são realidades que
compõem o mundo real. Ou, ao contrário, o mundo
real, em contraste com o mundo irreal da
percepção, é composto de entes fixos, imutáveis e
absolutos, chamados Formas ou Ideias. A menos
que tais entes existam, o conhecimento será
impossível. Esta teoria das Ideias é a maior
contribuição de Platão à história da filosofia, e cada
passagem do Fédon, ou de qualquer diálogo em que
as Ideias são mencionadas, deveria ser
estudada com cuidado.

Almas similares a Ideias

O tópico imediato, entretanto, era o da


reminiscência e da imortalidade da alma. Cebes,
professando satisfação com o fato de a teoria da
reminiscência ser bem fundada, e trazendo consigo
a ideia da preexistência da alma, duvida,
entretanto, se a preexistência da alma assegura a
sua imortalidade. Ainda que possa existir antes do
nosso nascimento, talvez a alma, após a morte, se
desvaneça como fumaça.

A tal objeção, Sócrates replica que o argumento da


geração de opostos já havia coberto esse ponto. Se,
na morte, as almas forem dispersas, a fonte
das almas rapidamente seria exaurida, e os
nascimentos não mais ocorreriam. Porém, se
alguém quiser se assegurar, há ainda outro
argumento em favor da imortalidade da alma.
Obviamente, aquilo que pode ser disperso ou
desintegrado é uma composição ou um composto.
Aquilo que não é formado de partes ou de
elementos certamente não poderá ser disperso.
Inversamente, qualquer coisa que esteja sujeita ao
fluxo universal tem de ser um composto. Este é o
princípio que os pluralistas foram forçados a
aceitar, desde Parmênides. Ora, a
realidade propriamente dita é imutável. A
igualdadeem si, por exemplo, nunca muda;
o mesmo ocorre com a Beleza e com outras
realidades que são sempre as mesmas e jamais
sofrem nenhuma variação. Mas coisas iguais e
belas jamais são as mesmas de momento a
momento. As últimas são visíveis e tangíveis, ou
sensíveis, mas as primeiras, as realidades, são
suprassensíveis O corpo, como todas as coisas
visíveis ou sensíveis, está em constante mudança.
Mas a alma não é visível nem sensível; do que se
depreende que a alma não é composta, mas uma
substância simples, imutável e, portanto,
indestrutível.

Entretanto, antes de esboçar uma conclusão,


Sócrates lembra seus companheiros de que, quando
a alma examina coisas sensíveis, mediante o
corpo, ela se torna confusa; ao passo que, quando
ela considera as coisas em si mesmas, o Puro, o
Imortal, o Imutável, ela evita a confusão e alcança a
sabedoria. Parece, assim, que a alma é mais afeita
ao suprassensível, ao imutável e,
consequentemente, imortal, do que ao visível e
passível de desintegração. A afirmação de que a
alma é mais divina do que o corpo é corroborada
também pelo fato de que, durante nossa existência
terrena, a alma rege o corpo e o corpo lhe é
subserviente. Se todas essas considerações não
provam a imortalidade da alma, pelo menos
mostram que a alma está mais próxima da
indissolubilidade do que o corpo; e uma vez que o
corpo continua intacto por um tempo após a morte,
partes dele por longo período, e, no Egito, mediante
o embalsamamento, permanece por tempo
incrível, a alma deve continuar quase que
indefmidamente.

Filosofia para a vida e a morte

Tal teoria, certamente, tem implicações éticas, pois


a doutrina da imortalidade fornece confiança em
face da morte, mas apenas para o homem que vive
a vida de um filósofo. As almas de outros homens
se tornam presas aos corpos, como que por
arrebites, por causa dos prazeres, dores, ódios,
medos, erros e desejos. Essas almas se arraigam aos
corpos de tal maneira que, após a morte, vagueiam
como fantasmas, estando sujeitas a reencarnações
em animais que possuem os mesmos hábitos
baixos. As boas almas também experimentam
a reencarnação, mas em animais limpos e pacíficos
ou, até mesmo, novamente, em seres humanos mais
gentis. E a filosofia que nos ensina a abster-nos
dos desejos carnais, a conter as honras e desgraças
populares, e a nada mais nos atentar senão àquilo
que existe em si mesmo, de modo absoluto, real e
único. Isso significa verdadeira virtude e garante
um futuro abençoado.

Desde o início, Platão teve sério interesse na


moralidade. Para ele, a filosofia era primariamente
um modo de viver. E depois que ele veio a crer na
imortalidade da alma, nada seria mais natural do
que a junção dos dois temas. Contudo, a despeito
de o assunto do Fédon ser a imortalidade da alma, a
base de toda a sua argumentação é o fato de que a
existência real de objetos incorpóreos e
imutáveis pode ser conhecida. Pois, uma vez que
nenhuma questão sobre qualquer assunto, quer
astronomia, quer medicina, quer moralidade,
poderá ser levantada a menos que o conhecimento
seja possível, o fator crucial em todo sistema
filosófico é a epistemologia.

Depois do poderoso discurso de Sócrates, o grupo


se queda por um bom tempo em um silêncio
pensativo; então, continuando o diálogo, Símias,
que havia começado a conversar com Cebes,
expressa sua hesitação, dado às circunstâncias,
quanto a adiantar qualquer dúvida. Com o
encorajamento de Sócrates, entretanto, ele enfatiza
a importância do problema e espera que ele seja
examinado por todos os ângulos. Infelizmente, uma
vez que não há revelação divina da verdade, temos
de nos satisfazer com aquilo que é provável e que
flutua pela vida tal como num bote. Duas objeções,
como rochas e corredeiras, tornam a jornada
turbulenta.

Harmonia

A primeira objeção é o fato de que o argumento da


invisibilidade se aplicaria também às cordas e
harmonias de uma lira. A música é invisível,
incorpórea e, de fato, divina; mas a própria lira é
um corpo que, quando quebrado, vê morrer sua
música. Ora, a teoria de vida que mantém que a
alma é o funcionamento do complexo organismo
corporal, é algo bem provável. Assim como a
digestão é a função do estômago, e a visão é a
atividade do olho, assim a vida, ou a alma, não é
uma coisa ou substância, mas simplesmente a
atividade da totalidade do corpo. Neste caso, é
claro, a alma, ou função, cessa com a dissolução do
corpo.

A casaca do tecelão

Cebes não concorda com Símias em que o corpo


produz a alma; antes, é a alma que produz o corpo.
Assim, ele tem uma segunda objeção à
imortalidade, semelhante a essa que foi proposta. A
alma talvez não seja uma função do corpo; talvez
tenha existido antes do nascimento. Talvez seja
mais forte, superior e mais durável do que o corpo;
de fato, como um tecelão tecendo um casaco, a
alma talvez manufature e controle o corpo. Não
obstante, conquanto o tecelão talvez dure mais do
que muitos dos casacos que tece, e conquanto
possamos produzir muitos corpos — há quem diga
que temos um corpo completamente diferente
a cada sete anos - ainda assim haverá um tempo em
que o tecelão vestirá seu último casaco.
Semelhantemente, o corpo talvez permaneça por
um longo período, tal como as múmias egípcias,
mas a alma não mais existirá. Confiança em face da
morte não requer simplesmente que a alma
sobreviva a uma, duas ou diversas mortes, mas que
seja absolutamente imortal e sobreviva sempre.

Tais objeções produzem grande desconforto no


grupo. Não apenas o destino pessoal de Sócrates é
posto em dúvida, mas, se os argumentos anteriores
de Sócrates, que pareciam tão convincentes quando
formulados, podem ser derrubados por tais
objeções igualmente convincentes, então não
haverá possibilidade de confiar em nenhum
argumento, qualquer que seja o assunto. Sócrates,
entretanto, permanece calmo e adverte o grupo que
não se torne tão misólogo, como outros se tornam
misantropos. A aversão aos homens é engendrada
pela confiança frustrada em função de ter sido
depositada no homem errado e, daí, generalizada na
crença de que nenhum homem é confiável. A
aversão à razão advém da confiança colocada em
argumentos inválidos que, quando frustrada,
conclui que nenhum argumento seja sadio. Este é
um perigo a ser evitado. Assim, Sócrates prossegue
para refutar as objeções.
Epifenomenalismo

A primeira objeção, de que a alma seja uma


harmonia — na terminologia moderna,
epifenomenalismo - é desmentida pelo argumento
da reminiscência e da preexistência da alma. Símias
admite que a teoria do conhecimento é
bem fundada, firmemente estabelecida; mas a teoria
da harmonia émeramente provável e, portanto,
deve ser descartada. Além disso, a teoria da
harmonia esvaziaria de significado todas as
distinções morais, sendo inconsistente com o fato
óbvio de que a alma controla o corpo em vez de o
corpo controlar a alma.

Ciência natural

A segunda objeção, entretanto, a de Cebes, não é


tão fácil de refutar, pois requer uma completa
investigação das causas da geração e da dissolução:
nada menos, de fato, do que uma teoria da natureza
e da ciência. Quando jovem, Sócrates tinha muita
curiosidade quanto a tais questões e, agora, ele
conta sua experiência em benefício de seus amigos
e para reforçar o argumento. Presumivelmente as
questões aqui enumeradas refletem os interesses da
ciência em meados do século 5o a.C. Sócrates havia
tentado descobrir se as combinações químicas
explicariam a vida; se seria o sangue que produziria
pensamentos ou se seria o cérebro que produziria
percepções, memória e opinião. Mas seus estudos o
intrigaram tanto que ele não apenas ficou
convencido da própria ignorância sobre tais pontos,
mas também sobre outros pontos que jamais
haviam sido questionados. Ele pensava saber que o
crescimento seria resultado de comer e beber, e que
uma pessoa se tornava maior como resultado da
adição de massa. Também pensava saber que um
homem ou um cavalo alto, lado a lado com
um menor, seria cerca de uma cabeça mais alto, e
jamais havia duvidado de que dez seria maior do
que oito, por exatamente dois números.

Contudo, quando foi forçado a considerar tais


questões, elas lhe pareceram realmente duvidosas.
Considere uma coisa das mais simples: quando se
adiciona um mais um, é o um adicionado que se
torna o número dois, ou é o um ao qual se
adicionou e o um adicionado que, juntamente, se
tornam dois? Porque quando separados, cada um
era um; mas quando aproximados parece terem sido
feitos dois por intermédio de sua união. Porém, se a
união é a causa do dois, como pode ser que a
divisão seja a causa do dois. Pois, se uma vara é
quebrada, uma vara se torna duas, mediante a
divisão e a separação de si mesma. Como
poderá união e separação ser a causa do mesmo
resultado? Como matéria de fato, Sócrates estava
incapacitado para explicar por que um é um ou por
que algo é produzido ou perece ou existe. Ele
estava completamente atônito.

Explicação mecânica e teleológica

Subjacente a tais dificuldades está o problema da


natureza da explicação. Qual seria o tipo de relato
que satisfaria um inquiridor? Os pré-socráticos
eram deficientes, não apenas porque suas
particulares descrições mecânicas
fossem factualmente incorretas, mas porque eles
haviam falhado quanto ao entendimento da
natureza da explanação e faziam declarações que,
mesmo verdadeiras, não seriam consideradas
explicação.

Um dia, Sócrates soube que Anaxágoras teria


fornecido um novo tipo de explicação. A causa do
universo, assim foi dito, e a ordem especial de cada
coisa no universo são inteligentemente controladas
por uma Razão. Fosse esse o caso, se uma Razão
controla cada coisa, quando alguém quer descobrir
a causa de alguma existência, ou descobrir por que
algo é produzido ou perece, teria de mostrar que
seria o melhor para essa coisa existir ou perecer ou
outra coisa qualquer. A Terra seria plana ou
redonda porque esta seria a sua melhor forma. A
posição e a velocidade do Sol, da Lua e dos
planetas seriam explicadas por meio
da demonstração de que esses seriam os melhores
arranjos. Pois, se as partes do universo estão
ajustadas em ordem por uma Inteligência, nenhuma
outra causa poderia ser atribuída do que a melhor
para que as coisas sejam como são. A Inteligência
certamente não escolheria o pior nem atuaria sem
razão; e a única razão que motivaria a Inteligência
seria o que é melhor.

Para grande desapontamento de Sócrates, à medida


que avidamente lia o livro, descobria que
Anaxágoras não havia usado de Inteligência. Era o
mesmo velho tema pré-socrático, do ar, água, éter e
outros absurdos.

Quis parecer-me que com ele acontecia como com


quem começasse por declarar que tudo o que
Sócrates faz é determinado pela inteligência, para
depois, ao tentar apresentar a causa de cada um dos
meus atos, afirmar, de início, que a razão
de encontrar-me sentado agora neste lugar é ter o
corpo composto de ossos e músculos, por serem os
ossos duros e separados uns dos outros pelas
articulações, e os músculos de tal modo
constituídos que podem contrair-se ou relaxar-se, e
por cobrirem os ossos, com a carne e a pele que os
envolvem. Sendo móveis os ossos em suas
articulações, pela contração ou relaxamento dos
músculos fico em condições de dobrar
neste momento os membros, razão de estar agora
sentado aqui com as pernas flectidas. A mesma
coisa se daria, se a respeito de nossa conversação
indicasse como causa a voz, o ar, os sons, e mil
outras particularidades do mesmo tipo, porém se
esquecesse de mencionar as verdadeiras causas, a
saber: pelo fato de haverem acordado os
atenienses em condenar-me, pareceu-me, também,
melhor ficar sentado aqui, e mais justo submeter-se
neste local à pena cominada. Sim, é isso, pelo cão!
Pois de muito, quero crer, estes músculos e estes
ossos estariam em Mégara ou entre o Beócios,
movidos pela ideia do melhor, se não me parecesse
muito mais justo e belo, em vez de evadir-me e
fugir, submeter-me à pena que a cidade me
impusera. E o cúmulo do absurdo dar o nome de
causa a coisas semelhantes. Se alguém dissesse que
sem ossos e músculos e tudo o mais que tenho no
corpo eu não seria capaz de pôr em
prática nenhuma resolução, só falaria verdade.
Porém afirmar que é por causa disso que eu faço o
que eu faço, e que, assim procedendo, me valho da
inteligência, porém não em virtude da escolha do
melhor, é levar ao extremo a imprecisão da
linguagem e revelar-se incapaz de compreender que
uma coisa é a verdadeira causa, e outra,
muito diferente, aquilo que sem a causa jamais
poderá ser causa.10

A maneira como as Ideias, ou causas reais, devem


ser relacionadas a esta avaliação da natureza da
explanação, é algo que ainda tem de ser
determinado, mas o significado dessas páginas
referentes à teoria da causalidade, requer ênfase. Os
pré-socráticos propuseram causas mecânicas para
todas as coisas: o universo foi feito da água; a Terra
permanece em posição porque é o centro de um
vórtice; e a sensação é a passagem de influxos, de
partículas através dos poros para os órgãos
sensoriais ou, até mesmo, a impressão de uma
imagem no cérebro, tal como que em cera.

No século 19 de nossa era, o mecanicismo era


também uma filosofia popular: uma alavanca
levanta grandes pesos porque o produto da massa e
a distância de um lado do fulcro é igual ao produto
da massa e a distância do outro lado; ou: um corpo
cai na direção da Terra e a Terra gira em torno do
Sol porque duas partículas de matéria atraem uma à
outra na razão direta de suas massas e no inverso
do quadrado da distância. Na seção sobre
Empédocles, foi considerada a falta de sentido da
atração; ali, o próprio princípio da explanação
mecânica foi considerado insatisfatório.

Platão observa que Sócrates não poderia estar


assentado, na prisão, sem que tivesse ossos e
tendões, etc. As condições físicas são inegáveis;
mas, em vez de serem a explicação para todas as
coisas, elas configuram precisamente o
material que precisa de explicações.
Consequentemente, é necessário um tipo diferente
de explanação ou causalidade - uma causalidade no
sentido de inteligência e do que é melhor. Uma
terminologia teleológica tem de substituir a
mecanicista. Quando se diz que uma mente atua por
meio da razão, a razão é o propósito; e é somente
em termos de propósito que qualquer coisa poderá
ser entendida.

O método da hipótese
Infelizmente, a despeito de ter visto a deficiência de
Anaxágoras, Sócrates foi incapaz de fornecer a
teleologia necessária, mas foi forçado a elaborar
uma segunda explanação melhor. Seu método de
investigação foi o de tomar a razão, ou a causa, ou
a explanação, ou a hipótese que parecesse mais
satisfatória. Geralmente, tal hipótese era a
existência de alguma realidade: Beleza em
si, Magnitude em si, ou qualquer que seja o tópico
requerido. Por exemplo, se estivermos estudando
triângulos, o assunto de nossa ciência não será o
triângulo particular que Sócrates desenhou na areia
diante do jovem escravo. O objeto da
ciência jamais é um objeto particular percebido,
mas, antes, um tópico universal
imutável. Estritamente, Sócrates não desenhou um
triângulo na areia, pois suas linhas eram tortas e
tinha alguma projeção espacial; o triângulo real,
porém, tem linhas retas e é plano. Os objetos
particulares são mutáveis, irreais e
indeterminados; os objetos de todas as ciências
possuem as características opostas. Suponha que eu
queira explicar a beleza de uma mulher ou de uma
estátua. Obviamente, a causa da beleza não poderá
ser sua estatura alta ou complexão leve, pois se
tais qualidades fossem a causa da beleza, toda
mulher com tais qualidades seria bela. Entretanto,
há muitas mulheres altas e de complexão leve que
não são bonitas. Ao contrário, a causa da beleza,
qualquer que seja a aparência, será somente
a presença no objeto, ou a comunicação a ele, da
Beleza em si;do mesmo modo que as coisas
grandes, são grandes, por participarem da
Magnitude.

É impossível que um homem seja uma cabeça mais


alto e o outro uma cabeça mais baixo. A mesma
causa ou explicação não pode ser aplicada a
efeitos opostos. Dez não é mais do que oito mais
dois; e, quando um é adicionado a um não é a
adição que causa dois. Antes, assim como a Beleza
explica o objeto belo, assim dois são dois porque
participam da Dualidade, e um é um por causa da
Unidade. Certamente, essas respostas são
insuficientes, pois tal é apenas uma segunda
explanação melhor. Contudo, ainda que
insuficientes, são respostas verdadeiras e
pertinentes; e, até que respostas teleológicas mais
completas sejam desenvolvidas, elas são as mais
seguras às quais devemos aquiescer.

Quando qualquer hipótese é aceita, a primeira coisa


a fazer é não considerar os ataques diretos a ela;
antes, será preciso primeiro deduzir dela a maior
quantidade possível de consequências. Se tais
consequências forem incompatíveis entre si,
a hipótese deve ser rejeitada; se, entretanto, elas
forem mutuamente consistentes, será o momento de
fornecer uma razão ou uma explanação para a
hipótese. Isto é feito assumindo uma hipótese
superior da qual a anterior é uma implicação. Tal
processo é repetido até que se chegue a um
princípio superior suficiente.

No Fédon, Platão não diz o que seja esse princípio


suficiente, e as interpretações talvez difiram, mas é
plausível supor que, na investigação da beleza de
uma estátua, a primeira hipótese é a da existência
da própria Beleza. A existência dessa realidade é
uma implicação da teoria geral das Ideias - isto é, a
Beleza em si é uma das muitas realidades absolutas.
Porém, se a teoria das Ideias é apenas uma segunda
tentativa melhor, tem de haver uma ou
diversas hipóteses superiores. A mais elevada de
todas, assim parece, é a distinção entre o verdadeiro
e o falso, ou, melhor dizendo, a possibilidade de
conhecimento. Se o conhecimento é impossível,
então nada mais poderá ser afirmado ou
negado; todas as opiniões são de igual valor e o
valor é zero. Nessa base, qualquer objeção à teoria
das Ideias seria sem sentido. Contudo, se a
possibilidade do conhecimento implica a existência
de realidades suprassensíveis, não poderá haver
demonstração mais convincente da sua existência.

A resolução do problema

Sócrates, portanto, tendo estabelecido


satisfatoriamente a existência das Ideias, aos seus
companheiros, explica que Símias é uma cabeça
mais alto do que ele próprio, Sócrates, não por
causa da cabeça nem porque ele mesmo é Símias,
mas por causa da presença da Altura nele.
Também, Símias é uma cabeça mais baixo do que
Fédon não por causa da cabeça, mas em função da
Baixeza. Não há contradição na declaração
coloquial de que Símias é tanto mais baixo quanto
mais alto. Atributos contrários aparecem,
frequentemente, naquilo que as pessoas chamam de
“a mesma coisa”. Tais juízos empíricos contrários,
que formam muito da arte sofista, são possíveis
porque uma coisa não é estritamente a mesma
coisa: os predicados contrários não são
simultâneos, ou o julgamento é concebido sob
diferentes relações. As coisas sensíveis mudam
constantemente, mas as predicações são imutáveis.
Símias pode ser ambos, alto e baixo, mas Baixo não
pode ser Alto, nem Alto pode ser Baixo. Símias
pode ser alto e baixo, mas não ao mesmo tempo
nem na mesma relação. Quando perto de
Sócrates, Símias participa da Magnitude; mas
quando a pequenez aparece, a Magnitude se retira.
Isso é consistente com a teoria da geração de
opostos: o alto Símias se torna baixo. Mas a Altura
jamais se torna baixa.

Além disso, há algumas coisas sensíveis que não


podem admitir os contrários. Por exemplo, a neve é
fria e não pode se tornar quente. Calor e frio são
um par de opostos entre os quais a geração da neve
é impossível. Se o calor se aproxima, não somente
afasta o frio, mas também desfaz a neve. A
branca neve talvez se torne em lama suja no contato
com a terra, mas a neve fria jamais se torna quente.
Igualmente, o número três é sempre ímpar, e jamais
poderá ser par; no entanto, o número três não é
idêntico a ímpar. Tais exemplos mostram que não
apenas os contrários se excluem, mas também que
há coisas que excluem certos predicados.

A conclusão final está agora preparada. Uma vez


que o calor é atributo inseparável e necessário do
fogo, podemos dizer que um corpo é quente
não apenas porque ele participa da Ideia Calor, mas
também porque há fogo nele. E um corpo está vivo
não meramente porque participa da Vida, mas
porque há uma alma nele. O atributo da alma é a
vida, da mesma maneira que o atributo da neve é o
frio. Ora, o contrário da vida é a morte, tal como o
contrário de frio é quente. Entretanto, assim como a
neve não suporta a proximidade do calor, assim
também a alma se retira ante a presença da morte,
preservando sempre o predicado da vida. Porém, se
o predicado da vida está sempre fixado, a alma
não morre e é, portanto, imortal.

A teoria da reencarnação, pelo menos a noção de


que pessoas renascem em corpos de animais,
poderá ser entendida como sendo apenas um mito,
ainda que seja mencionada em outros diálogos —
Platão frequentemente condescendia no uso de
fantasias pitorescas - mas não há razão para duvidar
da seriedade de sua aceitação da imortalidade da
alma. Não obstante, recompensas e
punições futuras fazem parte essencial de sua teoria
moral. Embora os primeiros
diálogos, incluído Protágoras, não contenham
sinais de menção à imortalidade, a partir
de Górgias ela se torna um tema recorrente e
dominante. Por mais sério que pretenda ser, a
validade ou não do argumento é outra questão.
Justino, o Mártir, em meados do século 2o da era
cristã, foi convertido ao cristianismo depois de
estar convencido de que os argumentos em favor da
imortalidade natural da alma eram inválidos.
Entretanto, por mais interessante que seja a questão
da imortalidade e qualquer que seja o peso que isso
tenha sobre a teoria da moral, o material mais
importante, noFédon, diz respeito à possibilidade
do conhecimento e da natureza dos objetos
conhecidos.

O PARMÊNIDES

A teoria platônica das Ideias, uma vez que é um


trabalho de um homem genial refletindo sobre os
mais profundos problemas da fdosofia, não é
uma teoria simples nem de fácil entendimento.
Desde os tempos de sua declaração original até o
nosso século, ela tem não apenas encontrado
amigos, mas inimigos também. Objeções difíceis
de serem respondidas têm sido levantadas contra
ela. Contudo, estranho dizer - ou, em vista da
profundidade de Platão, nem tão estranho assim —
que o próprio Platão anteviu todo tipo de objeção
que já foi levantado contra ele. Platão fez um
sumário de tais objeções em um
diálogo tremendamente difícil: Parmênides.

Ideias de barro?
Em primeiro lugar, se a teoria das ideias for
completamente explicitada, será necessário
estabelecer a extensão do mundo Ideal. Platão já
havia admitido Formas ou Ideias como de Beleza,
Bem e de outros conceitos igualmente nobres, mas,
nesse diálogo, o venerável Parmênides pergunta ao
jovem Sócrates se há Ideias como de Homem, Fogo
e Agua. E ainda mais embaraçosa é a questão de se
há Ideias como de Cabelo, Barro, Imundice e outras
coisas desprezíveis. Embora um aristocrata grego e
filósofo aclamado devesse desdenhar de
tais dificuldades de quintal, Parmênides aponta as
inconsistências da recusa de postular Ideias para
cada tipo de coisa. Neste ponto, Parmênides não
menciona o problema de postular Ideias para
instâncias de relação. Um homem é uma “coisa”,
um objeto visível; mas “pai” é uma relação, não
uma “coisa”. Haveria também Ideias de
relacionamento? Há uma Ideia de Negação? De
Privação? Estas são questões difíceis.11

Participação
Um segundo enigma é o da conexão precisa entre a
Ideia e os objetos sensíveis. Será que cada objeto
sensível compartilha, participa, recebe (ou
qualquer termo que pareça melhor) a Forma
completa, total e indivisível, ou apenas uma parte
dela?

Uma vez que um cavalo é um cavalo completo,


pareceria mais razoável supor que cada objeto
sensível possui a totalidade da Ideia e não apenas
meia Ideia. Além disso, a Ideia é uma unidade e
não pode ser dividida ao meio ou separada de si
mesma.

Entretanto, se cada objeto sensível tem a Ideia total,


a Ideia em um lugar estará separada da Ideia em
outro lugar. Ou, parafraseando Aristóteles, o
qual tirou sua objeção contra Platão do próprio
Platão, se a Ideia animal é singular, e é a mesma
tanto na espécie homem quanto na espécie cavalo,
como poderia essa Ideia singular estar em ambos,
no homem e no cavalo, sem que fosse
fragmentada ou separada de si mesma?
A esse tipo de questão, o jovem Sócrates do
diálogo replica que o dia, ou a luz do dia, é uma e é
singular, e ainda assim cobre todos os homens sem
que seja separada de si mesmo. Mas tal resposta é
insatisfatória. Parmênides mostra que isso é
essencialmente o mesmo que cobrir um grupo de
homens com uma tenda. Todos os homens estão
sob a tenda, certamente; mas, de modo estrito, cada
um está sob uma parte da tenda; e tal analogia nos
levaria de volta à insustentável posição de que cada
homem participa de uma fração da Ideia de homem
— o que significa que um homem não é um homem
completo, mas apenas uma fração.

A razão pela qual Platão escolheu construir um


diálogo entre o venerável Parmênides e o jovem
Sócrates, que fornece respostas impensadas, é algo
que poderá ser apenas conjeturado. Talvez Platão
quisesse indicar que ele próprio não conhecia as
respostas corretas. Ou, entretanto, talvez pensasse
que as respostas seriam tão facilmente descobertas
que nem seria necessário explicitá-las.
Uma coisa é certa: Platão estava plenamente
cônscio de todas as objeções à teoria das Ideias, e
elas não o levaram a abandoná-la. De qualquer
forma, uma resposta satisfatória a esta segunda
objeção é mais facilmente elaborada do que para
outras, pois a objeção se baseia em uma analogia
espacial, materialista. Um único corpo não poderá
estar em diversos lugares ao mesmo tempo, mas um
número de homens ao redor do mundo pode ter o
mesmo pensamento ao mesmo tempo; e se, como é
o caso, as Ideias dizem respeito mais à natureza do
pensamento do que do corpo, a objeção é culpada
de uma falsa analogia.

O Terceiro Homem

A objeção seguinte tem sido dado o nome de


Argumento do Terceiro Homem. O motivo, ou um
dos motivos para se aceitar a teoria das Ideias é
o fato de haver qualidades comuns. Há um número
de objetos, bastante similares, aos quais chamamos
de homens-, outra multidão de objetos nós
agrupamos sob o único nome de cavalos — e assim
por diante. Fazemos assim porque cada
indivíduo nesses grupos tem a mesma qualidade
que qualquer outro. Qual seria tal
qualidade comum? Obviamente não poderia ser um
dos indivíduos do grupo, pois, se Platão for
identificado como Homem, então Sócrates e Zenão,
uma vez que não são Platão, não seriam homens;
não poderia ser também a totalidade do grupo, pois
Platão, Sócrates ou Zenão, nenhum deles, é essa
totalidade. Terá de ser, portanto, algo mais, em si,
e, a isso, Platão deu o nome de Forma ou
Ideia. Entretanto, é exatamente aí que surge a
dificuldade. Se a semelhança entre Platão, Sócrates
e Zenão faz necessária a colocação da Ideia
Homem, a similaridade entre homens e a Ideia
Homem necessitaria a colocação de uma Super
Ideia Homem (o Terceiro Homem) e assim ad
infinitum. Oponentes da teoria Ideal diriam que é
melhor nem começar tal processo interminável.

Parenteticamente, deve-se chamar a atenção para a


discussão na lógica moderna, que é essencialmente
a mesma. Alguns lógicos identificam e
outros lógicos distinguem entre a “inclusão” de um
indivíduo em uma classe, como Sócrates na classe
homem, e a “inclusão” de uma classe em uma
classe superior, tal como homens na classe de seres
viventes. A discussão, naturalmente, envolve o
problema da definição de “classe”, e o argumento
se torna ainda mais complicado.

Nominalismo

A quarta objeção — na realidade, um tipo


totalmente diferente de filosofia sugerida como
substituto para o platonismo - é introduzida pelo
jovem e não tão brilhante Sócrates do diálogo, em
uma tentativa para fugir ao argumento do
Terceiro Homem. O infinito regresso seria evitado,
defende Sócrates, se as Ideias ou Formas fossem
pensamentos na mente de alguém. Se a Ideia
Homem não existisse em nenhum lugar senão na
mente da pessoa que estivesse pensando sobre o
homem, ela reteria uma unidade indivisível e
estaria imune a todas as dificuldades.

Visto que o tipo de filosofia prevista no comentário


chamou a atenção de muitos dos filósofos
medievais, e que o nominalismo, tal como é
chamado, é, de uma forma ou outra, largamente
aceito hoje, tal objeção, prevista por Platão, talvez
seja a mais importante das sete. Se assim for,
somos afortunados por termos acesso à réplica do
próprio Platão, pois esta é a única que Platão
não deixa sem resposta explícita. A porção do
diálogo (Parmênides, 132b-c) é a seguinte:

- Como assim? — perguntou - cada pensamento


seria uno, porém pensamento de nada?

- Impossível - respondeu.

- Então, pensamento de alguma coisa?

- Sim.

- Que é ou que não é?

- Que é.

- De certa coisa una que aquele pensamento pensa


como presente em todas as coisas, sob determinada
forma?
- Sim.

- E não será uma ideia o que é assim pensado


como presente a todas as coisas e sempre igual a si
mesmo?

- É a conclusão que se impõe.

- E, então — Parmênides teria acrescentado; se


todas as coisas participam necessariamente das
ideias, conforme disseste, não será também forçoso
admitires, ou que tudo consiste em pensamento e
tudo pensa, ou que, apesar de ser pensamento, não
pensa nada?12

A primeira parte desta seção está relativamente


clara. Quando os homens se engajam na atividade
do pensamento, certamente estão pensando algo; e
esse algo é diferente da mera atividade em si. Se,
por exemplo, eu penso sobre igualdade, a igualdade
não deve ser identificada com minha cerebração
individual subjetiva. Visto que a qualidade, ou
qualquer que seja o objeto do pensamento, é uma
qualidade comum, uma norma imperfeitamente
realizada na sensação, um objeto imutável,
as Formas ou Ideias têm de ser reconhecidas como
realidades independentemente existentes. Até este
ponto, Platão, o autor, não deixou o nominalismo
sem resposta. Porém, então, Parmênides acrescenta
uma declaração curiosa quanto à intenção, que
parece reverter toda a teoria de Platão.

A participação das coisas nas Ideias implica que


todas as coisas são compostas de pensamentos;
mas, se for assim, segue-se uma de duas
alternativas. Primeiro, assume-se naturalmente que
uma coisa composta de pensamentos seja uma coisa
pensante e, assim, todas as coisas pensariam;
contudo, parece impossível sustentar que até
mesmo as pedras pensem. A alternativa é a de que
as coisas não pensam, mesmo que sejam
pensamentos. Mas que insensatez é pensar
em pensamentos não pensantes! O jovem Sócrates
fica intrigado.

A previsão de Platão
Longe esteja de um intérprete moderno ler mais do
que pretendem dizer as linhas de Platão; mas seja
poupado também do grande risco de
entender menos do que elas dizem. As alternativas
propostas por Parmênides não são tão absurdas que
não tenham defensores. Plotino, o neoplatônico que
levou a filosofia grega ao seu fim, adotou algo que
era essencialmente a primeira visão, embora as
próprias qualificações não possam ser colocadas
numa única sentença. Em tempos modernos,
Leibniz, Fichte (e talvez pudéssemos acrescentar
Hegel?) também disseram que todas as coisas
pensam. David Hume aceitou a alternativa: que
todas as coisas são compostas de pensamentos,
impressões e ideias, mas que nada pensa.

Um oracular professor de lógica, uma vez, disse em


classe, enquanto os alunos abriam na primeira
página de um livro texto, que eles não
poderiam entender o primeiro capítulo até que
tivessem entendido o último. Os
estudantes, indulgentemente, consideraram essa
declaração como prerrogativa de filósofo meio
idiossincrático. Mas isso é sobriamente verdadeiro
na lógica, e inescapavelmente verdadeiro na
história da filosofia. Será necessário também saber
algo sobre o Instrumentalismo do século 20, pois,
omitindo a quinta dificuldade, a sexta e a sétima,
sendo mutuamente complementares, são temas que
F. C. S. Schiller usou contra Platão, em
seus Estudos acerca do humanismo.

Ideias podem ser conhecidas?

A primeira parte dessa dupla objeção é que os


homens seriam incapazes de conhecer Ideias.
Considere Ideias de relações. O jovem escravo não
é escravo da Ideia de Senhor de escravos, e seu
senhor não é senhor da Ideia de Escravo. O homem
e o jovem são senhor e escravo. Mas senhorio e
escravidão existem, como relações, somente entre
duas Ideias. Ora, há outra Ideia de relação em que
tais condições também têm de ser mantidas.
Conhecimento é uma relação entre um conhecedor
e um conhecido. Mas se a Ideia Conhecimento
existe em relação apenas à Ideia Conhecido, e, se
nosso humano conhecimento diz respeito somente a
atuações humanas, então as Ideias não são
conhecidas por nós. Para evitar tal dificuldade,
Schiller pretendeu “humanizar” o conhecimento.
Embora outros diálogos ensinem que antes do
nascimento a alma contemplaria as Ideias e,
portanto, nasceria com um conhecimento inato a
seu respeito, aqui, o jovem Sócrates admite, pelo
menos três vezes, que as Ideias não estão em nós,
que não podemos obtê-las e que as diversas Ideias
são conhecidas apenas pelo
Conhecimento Absoluto, que nós não possuímos.

A segunda parte da objeção, diz Parmênides, é


ainda mais formidável. Se existe o Conhecimento
Absoluto, então, visto que este é tão imensamente
superior ao conhecimento humano, ninguém mais
do que Deus terá possibilidade de possuí-lo. Porém,
se Deus tem Conhecimento Absoluto, ele será
ignorante com respeito às atuações humanas. As
Ideias não são relativas ao nosso mundo e nosso
mundo não é relativo às Ideias. Consequentemente,
se Deus habita no mundo superior, ele não tem
relação conosco: ele não pode ser nosso senhor e
nós não podemos ser seus escravos; ele não pode
nos conhecer e nós não podemos conhecê-lo.

Tais dificuldades, e muitas outras, podem ser


levantadas contra as Formas; no entanto, à primeira
vista muitos as julgam convincentes. Ainda assim,
conclui Parmênides, “uma pessoa brilhante será
capaz de entender que há uma gênese para cada
coisa e uma realidade absoluta em si... Contudo, se
alguém nega a existência da Ideia das coisas em
função da objeção que descrevemos e de outras
semelhantes, e recusa dar lugar a uma Forma para
cada coisa em particular, tal pessoa não
sabe conduzir seus pensamentos, pois estará
negando que uma Ideia de cada realidade é sempre
a mesma e, assim, destrói a possibilidade de
argumentação”.

Fica claro, portanto, que Platão estava consciente


de todas as objeções contra a teoria das Ideias; fica
em dúvida se ele teria respondido
satisfatoriamente a todas elas. Contudo, não há
dúvida sobre sua convicção de que a única
alternativa às Ideias seria o ceticismo.
O TIMEU

Presumamos que a teoria das Ideias tivesse sido


estabelecida com sucesso. Certamente Platão a
desenvolveu com muito mais detalhes do que
tratamos. Especialmente, o Mundo das Ideias não
foi uma agregação ao acaso. Trata-se de um cosmos
organizado. Suprema entre as realidades eternas
estava a Ideia do Bem. No Credo, Sócrates se
queixou de que Anaxágoras teria falhado
no cumprimento de suas promessas quanto a uma
explanação teleológica da natureza; e ele próprio,
igualmente incapaz de desenvolver uma teleologia,
fornece a teoria das Ideias apenas como uma
segunda melhor opção.
Na República, entretanto, Platão afirma que todas
as demais Ideias são conhecidas mediante a Ideia
do Bem. Para conhecer um cavalo ou o que é um
cavalo, é preciso saber para que um cavalo é bom.
Isso quer dizer que todas as classes devem ser
definidas em termos de propósito. Definições
mecânicas são impossíveis. Por exemplo,
o conceito de classe dos cronômetros não pode ser
definido mecanicamente porque nem todos os
relógios têm um mecanismo comum, nenhum
desenho técnico descreve a todos: um relógio de
corda, o Big Ben, um relógio eletrônico e
um relógio solar. Mas uma declaração de propósito
poderá abranger a todos: eles são instrumentos para
marcar o tempo. Portanto, conhecemos a Ideia
Cronômetro por meio da Ideia do Bem. Não
somente o conhecimento é dependente da Ideia do
Bem, mas também a existência. Assim, um cavalo e
um relógio existem somente enquanto cumprem
seu propósito. Quando um relógio se quebra,
não podemos dizer, corretamente, que ele ainda é
um relógio. Um relógio marca o tempo; mas tal
coisa não pode ser um relógio porque não marca o
tempo; o relógio não existe. Certamente a caixa do
relógio e seu mecanismo podem ser úteis para
algumas coisas, sendo exatamente estas, as coisas
para as quais são bons. Algo que não seja bom para
alguma coisa, nada é. A suprema Ideia do Bem,
portanto, é a causa tanto do conhecimento, quanto
da existência.

Entretanto, o mecanismo e o relógio, nessas


ilustrações, são tomados como conceitos de classe
ou Ideias e, conquanto estejam relacionados de
alguma maneira às coisas sensíveis, ainda
precisamos de um relato mais particular do
mundo físico. Foram dificuldades concernentes ao
mundo físico que, em primeiro lugar, motivaram os
sofistas e voltaram a atenção da ciência para a
epistemologia. Platão, não querendo passar sobre
os antigos problemas da ciência e da
cosmologia, caminhando para o final de sua
carreira, julgou que ele mesmo estava pronto para
discuti-los, no diálogo Timeu.

Ser e Tornar-se

Baseando seu relato da ciência sobre aquilo que


havia constantemenre reiterado, Platão começa
dividindo a soma total das coisas em duas
classes. Há o Ser que sempre é e nunca se torna e
há aquele que está sempre se tornando e jamais é. A
primeira parte, Ser, é apreendida pela razão e pode
ser expressa por declarações definidas porque é
sempre a mesma; entretanto, a segunda
parte, Tornar-se, é o objeto da opinião da sensação
irracional ou inexpressível, pois está em constante
mudança.

A segunda parte é a esfera da ciência - no sentido


moderno de investigação física, não ciência no
sentido platônico de conhecimento absoluto das
Ideias. O reconhecimento de que hipóteses físicas
não sejam absolutas, mas meras opiniões sujeitas a
revisões continuadas, distingue Platão de
Aristóteles e de muitos outros cientistas através das
épocas. As teorias da ciência no século 20
começaram a retornar à visão de Platão. Os
sentidos, mesmo com o auxílio de
instrumentos, não podem perceber as pequenas
diferenças; eles são fontes de frequentes
erros, especialmente erros de observação; e há
sempre a possibilidade da descoberta de novas
informações que poderão derrubar resultados
estabelecidos. Tais fatores previnem a ciência de
obter a verdade absoluta. Contudo, o fator mais
importante, segundo Platão, é o fluxo do próprio
material. As coisas estão constantemente mudando
e não podem ser apreendidas por uma fórmula fixa.
Consequentemente, o estudante terá de reconhecer
dois estados de mente, adequados, cada um, ao
seu objeto: absoluto conhecimento das Ideias
imutáveis e opinião científica relativa à esfera
do Tomar-se.

Nesta esfera baixa, a primeira coisa a ser observada


é que qualquer coisa que se torne requer uma
causa. Sócrates, no Fédon, distinguiu entre
causas secundárias ou concomitantes e causas reais.
Ele estava assentado, na prisão, não por causa de
seus ossos, músculos e tendões, mas por causa de
sua decisão com respeito ao Bem. Para Platão,
causalidade não é encontrada em
condições mecânicas ou em eventos precedentes. A
causa é um agente vivo operando com propósito, e
todas as explanações são teleológicas.

Como Platão se prepara para identificar a causa do


mundo visível, ele tem de classificar este mundo
sob a categoria de tornar-se. Ao fazê-lo, entretanto,
ele formula uma questão que, mais tarde, seria mal-
entendida por pessoas sob influência do
cristianismo. As palavras de Platão são: “Primeiro
precisamos ver se o mundo sempre foi, não
havendo princípio de geração, ou se foi
gerado, tendo início num ponto de partida”. Para os
pensadores cristãos, tal fraseologia sobre um ponto
de partida poderá parecer indicação de que Platão
considerasse uma teoria da criação mediante a qual
o mundo tivesse seu primeiro momento. Para
muitos dos gregos, tal poderia ter sugerido a ideia
de uma série de mundos, cada qual com seu
primeiro momento, mas sem um princípio temporal
da série. Aristóteles assumiu alguma coisa da
intenção de Platão, mas a tradição preponderante na
Academia era oposta à ideia de um início temporal
para o mundo. As expressões começo e ponto de
partida são mais bem traduzidas
pelo termo princípio; e a questão de Platão
simplesmente indaga: “Deve, o universo físico, ser
classificado sob Ser ou Tornar-se?” A breve
resposta de Platão, obviamente inadequada no caso
de uma série de mundos ou uma criação estar sob
consideração, é suficiente o bastante para o seu
atual argumento. Ele escreveu: “O mundo se
tornou, pois ele é visível, tangível e corpóreo; tais
coisas são sensíveis, e objetos sensíveis,
apreendidos pela opinião com sensações, são
obviamente objetos que se tornaram, foram
gerados”.13 Dessa maneira, o mundo deverá ter um
Criador.

Há, entretanto, uma questão anterior. Por que o


Criador, Deus ou Demiurgo, teria feito um mundo,
qualquer que seja? As Ideias existem em pureza e
perfeição - qual a necessidade de trazer à existência
uma cópia imperfeita? Para um mecanicista, tal
como Demócrito, a questão é tola. O mundo apenas
é; sua existência é um fato bruto; nenhum Criador
ou explicação são necessários. Mas uma filosofia
de fatos brutos e de pluralidade última terá outros
problemas preocupantes. O cristianismo, mais
tarde, enfrentou uma dupla irracionalidade: o fato
de que Deus criou o mundo parece uma escolha
sem motivos, e o fato de que o tenha criado em
determinado momento, em vez de antes ou depois,
também intrigou os pensadores cristãos.

Entretanto, o problema, para Platão, é, pelo menos,


superficialmente cômodo. Além de o Mundo das
Ideias ser uma realidade eternamente existente que
serve como modelo para um universo físico, o
Criador ou Demiurgo, também uma existência
independente e eterna, é confrontado com outro
princípio: a matéria caótica. Platão, portanto,
propõe uma cosmovisão com três princípios eternos
e independentes. Estes talvez não sejam igualmente
supremos, pois as Ideias são superiores, o
Demiurgo é secundário, e a matéria é a mais
baixa. Porém, ainda que não sejam igualmente
supremos, eles são independentes. Nenhum deles é
a causa de outro. Ora, se a existência da matéria
caótica for tomada como princípio ou fato bruto,
sem explanação, então a resposta de Platão à
questão de por que Deus criou o mundo, é cômoda
e adequada. Deus seria bom e livre de cobiça; ele
desejou trazer a matéria caótica ao maior grau
possível de perfeição; portanto, usando as Ideias
como modelo ou projeto, ele modelou a matéria em
um belo universo físico.

Contudo, não seria a pluralidade última dos três


princípios tão filosoficamente objetável como os
átomos de Demócrito? O que Parmênides teria
dito? Tal problema foi cuidadosamente considerado
por Plotino, o neoplatônico.

Detalhe científico

Seguir Platão através dos interessantes detalhes de


sua cosmologia requereria uma longa exposição.
Ele explica que o mundo é um ser vivo, tal como
seu modelo. A alma do mundo foi composta com
cuidado matemático, de maneira que, por mais
surpreendente que seja, a escala de oito notas -
provavelmente uma notável invenção de Platão -
corresponde às astronômicas distâncias entre os
planetas. Uma intrigante teoria geocêntrica do
sistema solar foi elaborada e, pelo menos, dois
modelos de sistema planetário foram construídos. A
esse respeito, é também essencial lembrar que
Platão, em idade extremamente avançada,
descobriu a possibilidade de um sistema
heliocêntrico, trazida a fino grau de perfeição por
Aristarco, e esquecido até que Copérnico o
redescobrisse e tentasse fazê-lo acreditado.

O Timeu continuou com uma breve conversa sobre


o tempo, o que provocou maior discussão à medida
que a história prosseguiu. Então - com a análise
dos quatro elementos comuns (terra, ar, fogo e
água) em triângulos elementares, de maneira que o
fogo, por exemplo, seria composto de quatro
triângulos equiláteros em forma de pirâmide —
Platão, examinando mais de perto a matéria sobre
a qual o Demiurgo impôs ordem, afirma que o
terceiro princípio do universo é o espaço. O espaço,
tal como o tempo, continuou sendo um tópico
padrão para os debates filosóficos até o tempo
presente. A isso, segue uma seção adicional
sobre fisiologia e medicina.

Entretanto, toda essa ciência é apenas uma


tentativa. Baseado na observação do mundo do
fluxo, dependente do enganoso processo da
percepção, a ciência não pode transcender as
próprias bases a fim de atingir as Ideias. Pode,
no máximo, aproximar-se da verdade, mas jamais
conhecer realmente a verdade. A relação entre
ciência e verdade, entre o mundo sensível e o
Mundo Ideal, e, de certa forma, a motivação e o
resumo da filosofia platônica, são encontrados em
três breves citações, que são adequadas à conclusão
deste capítulo. No Timeu (51 d), Platão diz: “Se a
razão (intuição intelectual) e a opinião verdadeira
são genericamente diferentes, então, certamente
existem realidades absolutas, Formas que não
podemos apreender por meio da sensação, mas
apenas por intermédio da razão. Se, entretanto,
como muita gente crê, a verdadeira opinião, em
nada difere da mente, tudo o que percebemos
mediante o corpo é admitido como certo”.
Da República (477), estas frases podem ser
escolhidas: “Será que, quanto ao que realmente é,
então, não há conhecimento, e, quanto ao
que é completamente não-existente não há
necessariamente ignorância? E quanto ao que há
entre estes, deveremos procurar algo entre
conhecimento e ignorância... Diremos, então, que
esta opinião é alguma coisa? ...E certo que
descobrimos que opinião é algo diferente de
conhecimento”. O diálogo posterior, Timeu,
e República, de meados da produtiva carreira de
Platão, apenas ecoam o princípio orientador que
ele estabeleceu no, relativamente
antigo, Mênon (98b): “O fato de haver uma
diferença entre opinião certa e conhecimento não é,
para mim, uma total conjectura, mas algo que eu
particularmente afirmo que conheço”. E, sobre esta
base, a grande filosofia platônica foi construída.
3 - ARISTÓTELES
É uma surpreendente coincidência da História que
Platão e Aristóteles (384-323 a.C.) vivessem no
mesmo século e que o último fosse discípulo do
primeiro. Nenhum século poderá se orgulhar de tal
quantidade de gênios; nenhum discípulo teve tal
mestre e nenhum mestre teve tal discípulo.
Extremo entusiasmo com Kant ou Hegel poderá
colocar um ou outro em um grau próximo ao de
Platão ou Aristóteles, mas um julgamento sóbrio
jamais descobrirá combinação igual em lugar
algum. Coincidências históricas, entretanto,
talvez sejam de pouca importância. O embate de
ideias é que importa.

No capítulo anterior, na seção sobre o diálogo


Parmênides, foi declarado que Aristóteles aceitava
as objeções levantadas por Platão contra a
própria teoria. Na verdade, Aristóteles considerava
o mundo das Ideias como uma inútil duplicação
deste mundo; sem utilidade, pois, diferente das
aparentemente intoleráveis dificuldades envolvidas
no platonismo, o ceticismo e todos os problemas
herdados dos pré-socráticos poderiam ser
resolvidos satisfatoriamente sem tal dúbio auxílio.
O estudante deverá estar advertido de que
Aristóteles não construirá sobre fundações
platônicas inalteradas, mas que, aquilo que
Aristóteles aceita ou rejeita de Platão, e o modo
como ele combina e modifica os diversos fatores, é
uma longa e intrincada história que torna
Aristóteles um dos filósofos mais difíceis de serem
entendidos. Além disso, o estilo metódico e
maçante não anima o espírito abatido. Platão era
um escritor vigoroso e estimulante; ele podia
combinar as sutilezas da epistemologia, a
empolgação da política e o assombro matemático
da astronomia, em um mesmo diálogo. As inter-
relações dos assuntos são constantemente trazidas
aos nossos olhos. Aristóteles, ao contrário,
cuidadosamente dedica um livro à Lógica, outro à
Física, outro à Psicologia, e assim por diante. Tal
método tem indubitáveis vantagens, mas as inter-
relações, que ainda existem em Aristóteles, ficam
ocultas à vista e devem ser procuradas.
Será mais adequado iniciar um relato sobre
Aristóteles com alguma referência às suas
perspectivas da lógica, pois seus escritos são
lógicos e logicamente arranjados no corpo da sua
obra; também porque sua discussão sobre as leis
fundamentais da lógica — a lei da não-contradição
e a lei do terceiro excluído — apesar de tomados da
Metafísica, Livro Gama, forma uma conexão firme
entre a filosofia antiga e o corpo do pensamento
aristotélico. Ora, visto que Aristóteles rejeita os
princípios essenciais do platonismo, deveríamos, de
início, verificar como ele evita o ceticismo de
Protágoras. Também nesta altura a conexão entre a
lógica e a filosofia natural poderá ser vista mais
claramente. Embora objetive a descoberta
de princípios, dos quais dependem todos os juízos
verdadeiros, a lógica não é simplesmente uma
ciência formal; antes, uma vez que a verdade requer
uma relação com a realidade, as leis da lógica terão
de ser não apenas leis do pensamento, mas também
leis da própria realidade.

Lógica e Realidade
Aristóteles introduz a tratativa, questionando se a
lógica e a realidade são objetos da mesma ciência,
ou de duas ciências diferentes. Em vista do fato
de que as verdades da lógica e os princípios da
realidade aplicarem-se universalmente e que não
estão restritos a nenhum campo de estudo em
especial, Aristóteles conclui que elas pertencem à
mesma ciência. As verdades da botânica
ou geometria, entretanto, não se aplicam
universalmente; a geometria diz respeito ao ser
enquanto ocupa lugar no espaço, e a botânica
limita-se ao ser enquanto exibe nutrição e
crescimento. Ainda assim, todas as ciências
específicas fazem uso comum das leis da lógica,
porque estas leis compreendem a totalidade
da realidade e não apenas a parte estudada por uma
ciência específica. Contudo, as ciências específicas
usam a lógica sem discuti-la. Seria incongruente,
para um botânico ou astrônomo, discutir a natureza
da verdade e a lei da não-contradição. Sem dúvida,
alguns dos pré-socráticos o fizeram, e a
inclusão desse material no pensamento pré-
socrático talvez seja defensável com base em que
eles julgavam discutir sobre a totalidade da
realidade. Entretanto, estavam enganados, pois a
natureza é apenas um gênero da realidade, e
a física, conquanto seja um tipo de sabedoria, não
pertence ao primeiro tipo. Portanto, tem de haver
ainda, outro tipo mais universal de ciência que
lide com o ser primário, e a tal ciência Aristóteles
chamou, algumas vezes, de Filosofia Primeira. O
botânico ou o físico é responsável pelos princípios
mais gerais dentro de sua esfera especial, que se
aplicam ao tipo particular de ser que forma o objeto
de sua ciência. Assim também o filósofo deve
expressar e explicar os princípios que se aplicam ao
ser sem qualificação, a todos os seres sem exceção,
o ser enquanto ser — princípios que sejam
absolutamente universais sem nenhuma restrição.
É, portanto, prerrogativa da filosofia, e não da
botânica ou outra ciência em particular, estudar os
princípios gerais da totalidade da existência.

O mais certo de todos os princípios é a lei da não-


contradição, pois é impossível haver engano a seu
respeito. Não é uma hipótese, uma tentativa
de chegar a algo mais geral, pois um princípio que
todos os que conhecem alguma coisa sobre o ser
têm de ter, não poder ser caracterizado. O princípio
é este: o mesmo atributo não poder ser vinculado e
não-vinculado à mesma coisa, no mesmo sentido.
Ou o inverso: atributos contrários não podem
pertencer ao mesmo objeto, ao mesmo tempo. Tal
princípio, repito, é declarado não apenas como lei
do pensamento, mas, primariamente, como lei do
ser. A forma ontológica é básica; a pureza lógica é
derivativa: torna-se lei do pensamento porque
é, primeiro, lei do ser. Se alguém se opusesse à lei
da não-contradição e afirmasse, como Heráclito
supostamente fez, que atributos contrários
designam a mesma coisa, seria necessário concluir
que ele mesmo não pôde crer naquilo que
disse. Pois, se temos mostrado que o número três
não pode ser, ao mesmo tempo, par e ímpar, e que
uma pedra não pode ser pesada e leve, e assim por
diante, ninguém poderá pensar tais incongruências,
ainda que as expresse verbalmente. Quem quer que
alegasse crer que atributos contrários designassem
um mesmo objeto estaria afirmando duas opiniões
contrárias ao mesmo tempo; essas duas opiniões
seriam como que se dois atributos contrários
estivessem conectados à essa pessoa como sujeito.
Contudo, é exatamente isso que a lei da não-
contradição torna impossível.

Axiomas indemonstráveis

Não apenas a coexistência de contrários


heraclitiana tem sido mantida, mas há alguns
autores que, pensando que a derivação do
pensamento a partir de uma impossibilidade
ontológica, já descrita, seja circular, requerem que
a lei da não-contradição seja formalmente
demonstrada. Tal exigência, entretanto,
revela ignorância. A demonstração de uma
proposição, tal como de qualquer teorema da
geometria, estará completa somente quando for
referida ao axioma. Se o axioma, por sua vez,
requereu demonstração, a demonstração da
proposição com a qual começamos, permaneceria
incompleta, pelo menos, até que o axioma pudesse
ser demonstrado. Porém, se o axioma se baseia em
princípios anteriores, e se tal precisa ser também
demonstrado — assumindo que toda
proposição requeira demonstração - a prova de
nosso teorema original jamais seria completada.
Isso significa que seria impossível demonstrar
qualquer coisa, pois toda demonstração depende de
primeiros princípios indemonstráveis. Cada tipo de
filosofia precisa construir alguma hipótese original.
E, se a lei da não-contradição não for satisfatória,
tais heraclitianos falham, pelo menos, em
declarar qual seja o princípio que mais consideram.
Não obstante, ainda que a lei da não-contradição
seja evidente e não sujeita a demonstração, há um
argumento contraditório, ou negativo, que reduzirá
a oposição ao silêncio.

Discurso significante

O método negativo evita o peso de ter de iniciar a


questão, pois será o oponente quem terá de fazer a
asserção. Certamente dependerá de que o
oponente esteja disposto a dizer alguma coisa. A
prova objetiva mostra ao oponente que ataca a lei
da não-contradição, que tão logo ele diga alguma
coisa, estará reconhecendo o princípio. Se ele nada
disser, não teremos oposição nem objeção a
enfrentar. Sequer precisaremos insistir que ele faça
alguma admissão difícil, que o deixe entregue às
nossas mãos. Tudo o que é requerido é que ele diga
algo que tenha significado, para si mesmo e para
nós, pois esta é a pressuposição de todo
entendimento entre duas pessoas ou, até mesmo,
para o autoentendimento. Deixe, então, que o
oponente diga alguma coisa: esta árvore é um
número ímpar ou Sócrates é um homem. Será
sempre a fórmula: x é y. Ora, em primeiro lugar, a
palavra é tem um sentido definido e não significa
não-é. Portanto, Protágoras estava enganado
quando disse que tudo é e não-é.''' Talvez o
argumento se torne mais claro, se considerarmos x
e y.

Em qualquer sentença, o predicado (y), tem de ter


um sentido único definido; e, quando dizemos que
x éy, ou que Sócrates é um homem, estamos
afirmando, sobre Sócrates, o sentido de homem,
qualquer que ele seja — talvez, um animal bípede.
Assim, afirmamos algo definido. A observação de
que palavras tenham vários sentidos não
prejudicam a argumentação, visto que os sentidos
são limitados em número. Suponha que a palavra
homem tenha dez sentidos diferentes: seria possível
inventar dez termos diferentes a fim de que cada
termo se prestasse a um único sentido; e, uma vez
mais, a totalidade do predicado e da asserção seria
definida. Se, entretanto, os termos tiverem um
número infinito de sentidos, será o fim do
raciocínio. Pois, se uma palavra deve transmitir um
significado, não apenas terá de ter um sentido, mas
também de não ter outro. Se ela tivesse todos os
sentidos dos termos do dicionário, seria
completamente inútil na conversa ou discurso.
Portanto, se os termos tiverem um número infinito
de sentidos, nenhum termo terá sentido; e não ter
sentido definido é o mesmo que não ter nenhum
sentido. Porém, se as palavras não têm sentido, é
impossível argumentar com qualquer pessoa, nem
mesmo racionar de maneira privada. Se não
pensamos algo, nada pensamos; mas se podemos
pensar em alguma coisa, então podemos atribuir a
tal coisa um termo único e não ambíguo. Nessa
base, é impossível que ser um homem significasse
exatamente não-ser um homem ou que percepção
seja não-percepção, ou que o vento poderia ser
ambos, y e não-y. Esta é uma prova da lei da não-
contradição.

Os sofistas, tanto da antiguidade quanto do


presente, ignorando a base ontológica deste
argumento, tentam replicar que aquilo a que uma
pessoa chama de homem, outro poderia chamar de
rato e não de homem. Entretanto, esta é uma
ambiguidade elementar. A questão não é se um
objeto poderá ser homem e não-homem quanto ao
nome, mas se poderá ser ambos em termos reais
ou ontológicos. Se homem e não-homem significam
duas coisas diferentes, tal como já indicado, e se
homem é um animal bípede, conclui-se que
qualquer coisa que seja um homem, será um
bípede. Porém, se for assim, isto é, se isso for
necessário, o contrário será impossível: é
impossível que o objeto não seja um animal
bípede, e, consequentemente, não é possível que o
mesmo objeto seja ambos, homem e não-homem.

Negação de substância
Adiante, a fim de refutar seus oponentes,
Aristóteles imerge em complexidades lógicas e
ontológicas que testam o mais ambicioso dos
estudantes. Aqueles que argumentam contra a lei da
não-contradição terão também de negar substância
e realidade. Explicar como isso ocorre, e porque é
absurdo, requer referência à teoria das categorias, a
ser explicada mais tarde. Em antecipação,
entretanto, podemos afirmar brevemente que uma
categoria é um predicado; ou, precisamente, as dez
categorias são dez tipos de predicados possíveis.
Sobre Sócrates, pode-se dizer, por exemplo, que ele
é um homem, que é feio, que é sábio, que é
baixo, que é pesado, e, talvez, que seja músico.
Contudo, de todas essas coisas, o predicado homem
ocupa uma posição favorecida. Pesado e musical
são predicados acidentais; isto é, não é necessário
ou essencial ao fato de ser homem, que este seja
pesado ou músico; há homens leves e sem
habilidade musical. Tais predicados e outros
predicados acidentais recaem sob as categorias de
qualidade, quantidade, relação e outras. Mas
quando se diz que Sócrates é um homem, isto não
é acidental: homem é o que Sócrates é
essencialmente. O predicado homem recai sob a
categoria de substância e realidade. E a categoria de
substância é básica, pois não poderá haver
qualidade ou quantidade a menos que haja uma
substância caracterizada por tal qualidade ou
quantidade.

Os sofistas oponentes da lógica, entretanto, abrem


mão da substância, pois têm de dizer que todos os
atributos são acidentais, e que nenhum objeto
é essencialmente homem. A linha de raciocínio por
trás disso é a seguinte: ser essencial, e
substancialmente, homem, é incompatível com ser
não-homem, ou não ser homem. Assim, quando
dizemos que Sócrates é essencialmente
homem, estamos designando sua substância; e
designar a substância, essência ou realidade de uma
coisa é negar que ela seja essencial ou realmente
outra coisa. Os relativistas céticos dirão, no
entanto, que nada pode ser definido, e que todos os
atributos são acidentais. Entretanto, se toda
predicação for acidental, não haverá a realidade da
qual a predicação é feita, e a predicação não terá
fim. No entanto, isso é impossível, porque, longe
de ser infindável, não mais do que dois termos
podem ser juntados em uma predicação acidental.
Podemos dizer que o músico é loiro ou que o loiro
é músico; mas a conjunção acidental de loiro e
musical somente é possível porque são ambos
acidentes da mesma realidade — Sócrates,
talvez. Na ausência de um objeto subjacente do
qual ambos sejam predicado, loiro não poderia ser
predicado de musical, nem musical predicado de
loiro. Ora, quando dizemos que Sócrates é musical
ou que Sócrates é loiro, o predicado não está
relacionado ao seu objeto tal como na predição
anterior, pois, conquanto loiro e musical sejam
igualmente atributos de uma realidade subjacente,
Sócrates e musical não estão no mesmo nível como
acidentes de um mesmo terceiro objeto. Sócrates
não é um predicado e, portanto, não poderia haver
uma infinita série de predicados: cada série tem de
findar com uma realidade.

Como esta seção sobre Aristóteles é um tanto


quanto delicada, e sua importância foi vista na
refutação de Platão a Protágoras, será bom que
a elaboremos um pouco. Aristóteles talvez esteja
disposto a admitir que a lei da não-contradição, tal
como declarada, não suporta predicação acidental.
O músico pode ser branco; e ainda assim, mesmo
que branco seja “não-musical”, o músico pode ser
“não-musical”. Mas com a predicação substancial o
caso é diferente. Suponha que indaguemos ao
oponente se A é homem. Ele poderia
responder: Sim, mas ele é também branco e
musical, e estes são não-homem. A resposta
é correta no sentido de que um objeto tem um
número indefinido de acidentes; mas, entendida
assim, a resposta está fora do ponto. A questão
original foi: A é essencialmente um homem? Se
ignorar o termo “essencialmente”, como fez
na resposta citada, o oponente terá de alistar todos
os acidentes — todos, incluindo negativos e
positivos. Ele diria: A é homem, musical, branco,
não-verde e, portanto, azul, não-navio e portanto
casa. Pois, se é verdadeiro que homem é não-
homem, tal como o oponente acabou de dizer, é
ainda mais verdadeiro que homem é não-navio;
mas, uma vez que casa é não-navio e uma vez que,
nesta teoria contrária, os acidentes se vinculam, o
homem deve ser tanto casa quanto navio. Essa lista
de acidentes será infinita. E, se o oponente iniciar a
lista de acidentes, terá de continuar arrolando os
itens. Ou todos, ou nenhum. Não há razão para
especificar apenas três ou quatro. Daí, segue que, se
começa e continua, ele tomará tanto tempo que nos
poupará respostas. Em outras palavras, se o
oponente depende de predicações acidentais, se
repudia a distinção entre predicação substancial e
acidental, a discussão termina. Nessa teoria,
nenhum predicado é definitivo, e a implicação
metafísica é que a realidade não existe.

Repetindo um pensamento anteriormente expresso


no início da análise da lei da não-contradição: esta
análise ou “prova” é contraditória, ou negativa.
Não é uma demonstração baseada em princípios
mais originais. Uma leitura descuidada concluirá
que a lei é demonstrada a partir do princípio de que
cada palavra deva ter um sentido único. Mas a
verdade da matéria é simplesmente o reverso.
Na verdade, o que Aristóteles está dizendo, é que
cada palavra tem de ter um único sentido porque o
princípio da não-contradição o exige. Ele está
aplicando a lei a este caso em particular. E o caso
em particular é escolhido com o propósito
de mostrar que um oponente não pode levar a cabo
a própria teoria. Tal oponente se prenderia a um
infinito regresso e teria de abandonar seu
argumento. Portanto, se qualquer pessoa, incluindo
o oponente, deseja argumentar, raciocinar,
discutir ou dizer qualquer coisa significativa, terá
de pressupor a lei da não-
contradição. Consequentemente, tal lei não é
demonstrada a partir de algum princípio superior,
mas Aristóteles demonstra que ela terá de ser
pressuposta por quem quer que deseje falar de
maneira inteligente.

A insipidez do relativismo cético foi sugerida no


comentário citado, de que o músico tem de ser um
não-navio e, portanto, é uma casa. Isso tem
outra implicação ontológica. Se declarações
contraditórias quanto ao mesmo objeto, ao mesmo
tempo, são verdadeiras, evidentemente todas as
coisas serão as mesmas. Sócrates será um navio,
uma casa, tanto quanto homem; mas, então, Crito
também será um navio, uma casa e um homem.
Porém, se precisamente os mesmos atributos
vinculados a Crito são vinculados a Sócrates,
conclui-se que Sócrates é Crito. Não apenas isso,
mas, uma vez que também está na mesma lista, o
navio no porto será identificado com a pessoa de
Sócrates-Crito. De fato, tudo será tudo. E tudo será
a mesma coisa. Todas as diferenças entre as coisas
se desvanecerão e tudo será um. Tal é a insensatez
metafísica que se pode derivar de Protágoras ou de
qualquer um que negue a lei da não-contradição.

Uma antecipação ética

Aristóteles continua nesse rumo por mais algumas


páginas, reforçando os aspectos ad hominem de
seus comentários. Apenas um desses comentários
será incluído aqui. Será isolado, em parte, porque,
com outros pontos do argumento, ele mostra a
dependência de Aristóteles, de Platão; também
porque antecipa o efetivo uso posterior que
Agostinho fez do tema; mas, sobretudo, porque
nos relembra a conexão entre lógica e ética. Os
subjetivistas, diz Aristóteles, que
fazem indiscriminadamente todas as predicações,
deveriam aplicar suas teorias à própria conduta e,
em vez de realmente ir à Mégara, apenas ficar em
casa e imaginar que estejam andando. Ou, mais
explicitamente, se todas as predicações são
igualmente verdadeiras, por que, quando
estivessem andando, evitariam cair em um
precipício? Segundo sua teoria os predicados, bom,
prazeroso, vantajoso, estariam tão vinculados à
queda em um precipício, como à permanência no
caminho. A conduta dos céticos, pois céticos não se
lançam mais de penhascos do que qualquer tipo
de pessoa, mostra que eles realmente não creem no
que dizem.

Refutação de Protágoras

A lógica é o organon ou instrumento necessário


para o estudo de outros objetos e sistematicamente
prioritário no desenvolvimento da fdosofia
de Aristóteles. Dentre as várias fases da lógica, a lei
da não-contradição foi discutida em primeiro lugar
por ser a base de todo o restante, e porque sua
discussão mostra a relação de Aristóteles com os
movimentos pré-socráticos, especialmente o
movimento sofista. Tal relação deve ser feita da
maneira mais clara possível, pois Aristóteles não
aceita a solução platônica para as dificuldades em
pauta. A esta altura, o relato tem sido concentrado
na defesa lógica da lei da não-contradição, embora
com alguma ênfase sobre suas implicações
ontológicas.

Aristóteles completa sua defesa, acirrando a


discussão sobre as bases ontológicas e
especialmente físicas da confusão pré-socrática e
do ceticismo sofista.

Ele observa que a doutrina de Protágoras e o


repúdio para com a lei da não-contradição
permanecem ou caem juntamente. As duas se
implicam mutuamente. Se conhecimento é
percepção e todas as opiniões são verdadeiras,
então todas as afirmações são tanto verdadeiras
quanto falsas. Na opinião de Protágoras, todas
as opiniões são verdadeiras e, portanto, sua opinião
é verdadeira. Porém, na opinião de Platão, a
declaração de Protágoras é falsa. Portanto, a
declaração de Protágoras é falsa e verdadeira.
Entretanto, isso significa que a mesma coisa é e não
é. Uma vez que a verdade é uma declaração da
realidade tal como ela realmente é, e que ambas as
contradições são verdadeiras, conclui-se que a
realidade é e não é. Inversamente, se a realidade é e
não-é, todas as opiniões serão verdadeiras.

Ora, como Protágoras e outros têm chegado a essa


opinião? A questão não se furta a uma resposta
inteligente. À parte de argumentos frívolos, os
contendores de Eutidemos, os sofistas sérios,
baseiam seus pontos de vista em observações
do mundo sensível. Eles pensam que os
contraditórios ou contrários são verdadeiros, ao
mesmo tempo, porque veem qualidades contrárias
sendo geradas da mesma coisa. A água pode se
tornar gelo e pode se tornar vapor; o trigo, quando
comido, pode se tornar homem ou cavalo.
Entretanto, uma vez persuadidos por Parmênides de
que do nada só pode vir o nada, isto é, que aquilo
que não é não pode vir a ser, os contrários assim
gerados devem ter secretamente coexistido na
coisa, água ou trigo, da qual vieram: água era
realmente, ao mesmo tempo, gelo e vapor, e o trigo
era ambos, homem e cavalo. Tal ponto de vista foi
explicitamente adotado por Anaxágoras, e,
implicitamente, foi também a visão de
Demócrito. Este diz que todas as coisas são
compostas de átomos e vazio, identificando átomos
com ser, e vazio, com não-ser. Os sofistas
simplesmente tornaram a colocação mais explícita
e enfatizaram, nessa mesma linha de raciocínio,
aquilo que já estava embutido em muitos dos
pensamentos dos pré-socráticos. Ora, tais homens
não eram estúpidos nem velhacos. Há um elemento
de verdade no que disseram. Mas falharam em
fazer uma distinção. Água, em certo sentido,
é realmente gelo e vapor: não é factualmente gelo
ou vapor, mas é potencialmente um e outro. As
qualidades contrárias não existem de fato no objeto,
mas o objeto é potencialmente ambos. Tal distinção
entre potencialidade e factualidade é de suma
importância, para Aristóteles, e, conquanto no
momento nada mais possa ser dito sobre isso,
deveríamos reconhecer que, sem esta distinção, a
filosofia de Aristóteles desmoronaria. Outro erro
dos pré-socráticos foi a crença de que todas as
substâncias estivessem sujeitas à destruição,
geração ou movimento. Será necessário, mais tarde,
defender a existência de outro tipo de substância.

Há ainda, relacionada com esta, outra linha de


argumento mediante a qual pensadores têm
chegado à posição cética. Alguns deles têm suposto
que a verdade não deveria ser determinada por
nenhum procedimento de votação democrática: o
fato de 100 pessoas crerem em uma teoria, não faz
dela duas vezes mais verdadeira do que uma teoria
sustentada por 50 pessoas. Se um menor número de
pessoas crê que azeitonas não tenham gosto bom, e
um grande número creia que sejam deliciosas, o
grupo de maior número não deveria ter nenhum
privilégio especial quanto à verdade. Se tivesse,
então a insanidade poderia ser determinada por
meio do voto e, em algumas sociedades, aqueles
que agora consideramos sadios seriam
institucionalizados em manicômios por terem sido
vencidos em eleição. Ora, se duas pessoas
percebem diferentes gostos da azeitona, ou
diferentes cores das árvores, não há maneira óbvia
para determinar o gosto ou a cor real. Assim, todas
as opiniões são verdadeiras. Mesmo quando os pré-
socráticos não o dizem explicitamente, fica
implícito em sua visão que a sensação é
conhecimento e é alteração física. Tais visões são
consistentes com e dependentes de uma noção de
que somente coisas físicas ou sensíveis sejam reais
e que estejam em constante movimento. Em
primeiro lugar, coisas físicas não são
completamente ou 100% factuais; na natureza
sensível há uma grande mistura de
indeterminação, isto é, de potencialidade. Em
segundo lugar, conquanto seja verdadeiro
que nenhuma declaração definitiva possa ser feita
sobre aquilo que está em constante mudança, será
demonstrado que a mudança não é absolutamente
universal, até mesmo, no mundo sensível.

Mudança não é universal

Aristóteles adianta, pelo menos, quatro razões por


que a mudança não é fator universal, três das quais
vão aqui reproduzidas. Primeiramente,
mudança não é absolutamente universal porque,
quando uma coisa está perdendo uma qualidade,
ainda assim conserva um pouco da qualidade que
está sendo perdida. Se a água líquida está se
tornando vapor, ainda restará algum líquido, pois,
se não houver líquido e tudo for vapor, não haverá
o processo de tornar-se. O processo terá terminado.
Ao mesmo tempo, o vapor terá alguma nova
qualidade gasosa, pois, se tal qualidade não estiver
ainda presente, a mudança não terá
começado. Essas duas qualidades, portanto, têm de
existir: o líquido é líquido e o vapor é vapor.
Consequentemente, em todo caso de mudança
qualitativa, há de se distinguir, pelo menos, no
tempo, e algumas vezes, no espaço, uma parte já
mudada e uma parte que ainda não mudou. Ambas
existem. Em outras palavras, o processo de geração
e destruição pode ocorrer somente no contexto do
ser; e sobre tal ser, nenhuma declaração poderá ser
feita.

Em segundo lugar, mudança qualitativa não é o


mesmo que mudança quantitativa. Podemos admitir
que todo objeto físico está
constantemente mudando em quantidade, mas nós
não conhecemos as coisas por suas
quantidades. Conhecemos que Sócrates é um
homem não porque ele pesa 80 quilos, mas
em virtude da forma homem. Essa forma
permanece, e não muda com o peso. Portanto,
declarações definitivas são possíveis. E, finalmente,
a menção dessa forma indica a existência de uma
realidade não física e imutável.
Sócrates, certamente pode mudar, mas um homem
sempre será homem.

Se já podemos admitir que esses argumentos, e


outros também contidos no Livro Gama,
desqualificam completamente o relativismo e o
subjetivismo, ainda não fica claro se Aristóteles
será bem-sucedido na construção de um sistema
de filosofia que não apele às Ideias platônicas.
Estamos bem no início, e ele já falou sobre uma
realidade não sensível: o que é isso se não uma
Ideia platônica? Anteriormente mencionamos a
forma homem. Platão a aprovaria? Então,
também, a própria lei da não-contradição: o que
será? Não seria um princípio
transcendente, suprassensível, independente do
fluxo, gozando as mesmas características e
privilégios que Platão concedeu às realidades do
mundo Ideal? Para responder a tais questões, será
necessário ir além na lógica, além da lei da não-
contradição, até a explicação de Aristóteles para a
natureza do conhecimento e o processo de
aprendizagem.

LÓGICA

A lei da não-contradição é obviamente lógica, mas,


por causa de sua importância singular, foi-lhe dado
tratamento especial. A noção de lógica,
para Aristóteles, contém não apenas a teoria da
demonstração, isto é, a lógica
propriamente dedutiva, mas também uma vasta
organização e distinções, algumas das
quais parecem meramente gramaticais, e as teorias
do aprendizado ou epistemologia. A lógica
dedutiva, a construção do silogismo, será omitida.
Mas alguns dos detalhes preparatórios serão usados
na explanação do conhecimento.
As categorias

Na seção sobre a lei da não-contradição, fizemos


referência às categorias. Foi dito que as categorias
são tipos de predicados possíveis;
aproximadamente o mesmo sentido é obtido,
chamando-as de diversos sentidos do verbo
ser. Presumivelmente, há dez delas, embora
Aristóteles não forneça os números nem os itens
particulares constantes em suas várias referências
ao tema. Com propósitos elementares, somente
duas ou três precisam ser consideradas.

Todas as expressões que não sejam compostos


(Aristóteles quer dizer substantivos e verbos, cada
um isolado e não em uma sentença)
significam substância, qualidade, relação, lugar,
tempo, posição, estado, ação ou afeição. Homem e
cavalo são substâncias; 66 centímetros de
comprimento é uma quantidade; branco é uma
qualidade; dobro é uma relação; assentar é
um termo de posição; alerta ou armado é um
estado; cauterizar é uma ação; ser cauterizado é
uma afeição. O mais importante de todos esses
itens é substância ou realidade.

Substância

Embora esses dez itens sejam chamados de


categorias ou predicados, substância, em seu
sentido primário, não é um predicado. As
realidades primárias e básicas são coisas
individuais, como Sócrates ou o Monte Olimpo, e
essas são sempre sujeitos e jamais predicados.
Sócrates é um homem, mas um homem não é
Sócrates. Monte Olimpo é íngreme, mas íngreme
não é Monte Olimpo. Para Aristóteles, portanto,
coisas individuais, como essas, são realidades
primárias; e esse ponto de vista é facilmente
distinto do platonismo. Se tais coisas
individuais não existem, diz Aristóteles, nada mais
poderia existir. Essa afirmação, contudo, mesmo se
for seguramente verdadeira, não bastará para provar
que coisas individuais sejam realidades; pois uma
questão a ser mantida em mente, como justificativa
das categorias, continua sendo: o que permaneceria
de uma coisa individual, se as outras categorias não
existissem? Ela não seria branca, com
66 centímetros de comprimento, estar assentado,
alerta ou cauterizado. Seria alguma coisa?
Aristóteles afirmou mais, que toda substância
primária é tão real como qualquer outra. O Monte
Olimpo, o boi e Sócrates são igualmente reais. E
mais ainda, nenhuma substância singular admite
graus de realidade dentro de si mesma. Não apenas
um homem não é mais nem menos homem do que
outro, mas ele também não é mais nem menos
homem do que ele mesmo é a qualquer tempo. Esta
é uma característica distinta da substância tal como
oposta à qualidade, pois obviamente um homem
não pode ser mais nem menos pesado do que outro
e do que ele próprio, ao mesmo tempo.

Em um sentido secundário, espécie e gênero, e


nada mais, são substâncias; por exemplo, homem e
animal, oliveira e planta, pois somente estes
definem a substância primária. Outras declarações,
tais como Sócrates é branco, são irrelevantes
quanto à definição. A espécie é mais
verdadeiramente real do que o gênero porque está
mais intimamente relacionada às coisas individuais.
Em resposta à questão: por quê?, mais respostas
são levantadas pela afirmação da espécie do que do
gênero. Saber que alguma coisa que cresce no solo
é uma oliveira é mais satisfatório do que saber que
é uma planta.15

Há grandes dificuldades na teoria da substância, e


talvez uma possa ser considerada de passagem. Se
um mesmo homem, Sócrates, pode ser frio e
quente, poderia ele também estar vivo e morto;
permaneceria, Sócrates, numericamente a mesma
substância depois de sua execução? Quem poderá
dizer? Seria a unidade numérica determinada pelo
conhecimento de que o objeto é uma substância,
ou seria ele reconhecido como substância por causa
da unidade numérica? Novamente, se Sócrates não
for mais nem menos homem do que outro e, se a
espécie ou a definição de homem puder ser
igualmente predicado de Sócrates e de Crito, o
que distinguirá Crito, de Sócrates? O que é que faz
um indivíduo? Tais questões, as quais Aristóteles,
pelo menos tentou responder, levam-nos bem além
das categorias; mas será bom mantê-las em mente à
medida que prosseguimos.
Relação

A segunda categoria era a da relação. Relativo é


qualquer coisa dita sobre outra coisa ou a ela
referente. Um primo é sempre primo de alguém.
Acima é sempre relativo a abaixo. Mas Sócrates
jamais é Sócrates de alguém. As substâncias
primárias jamais são relativas. É importante
também perguntar se realidades secundárias
poderão ser relativas. A resposta é claramente
negativa, pois homem não é homem de alguma
coisa. Não é definido em referência a nada externo
a si mesmo. Ainda assim, poderá parecer que mão e
cabeça, como realidades secundárias, são relativas
porque mão e cabeça são definidas em referência a
um corpo. Uma cabeça e a mão de alguém.

Neste ponto, algumas críticas parentéticas devem


ser levantadas. A categoria de relação tem sido
definida pelo uso da preposição de ou, no caso do
grego, pelo caso genitivo, mais a preposição
grega pros com o acusativo. Filósofos posteriores,
especialmente nos tempos modernos, têm criticado
o pensamento de Aristóteles de que o universo
poderia ser organizado segundo regras
gramaticais, o que lhes parece ridículo. Teria, toda
a natureza, de obedecer às regras da sintaxe grega?
Uma resposta requer que diversas coisas sejam
ditas. Primeiro, embora a natureza, supostamente,
não possa ser regulada por peculiaridades
da sintaxe grega, tal como oposta ao latim ou ao
alemão, se o universo pode ser explicado, isto é, se
o universo é essencialmente racional, então, segue
que há, pelo menos, uma íntima correspondência
entre natureza e linguagem, assumindo, é claro, que
a linguagem seja racional. Linguagem e natureza
podem ser expressões da mesma racionalidade, de
maneira que, da primeira, nós podemos tirar
valiosas sugestões sobre a segunda. O contrário
também seria verdadeiro, pois, se linguagem e
natureza são, ambas, expressões da razão, uma
época em que a gramática não teria sido ainda
formulada poderia descobrir sugestões sobre ela a
partir da natureza. Em segundo lugar, vem a
questão de se ou até onde Aristóteles dependeu
das peculiaridades da sintaxe grega. Onde quer que
ele tenha dependido dela, não o seguiremos; mas
onde ele meramente parece fazê-lo, teremos de lhe
fazer justiça.

Certamente a mão é a mão de alguém; mas a prévia


definição gramatical de relação não está completa.
Não é apenas o uso do caso genitivo que faz um
relativo, mas a referência a um objeto externo. Ora,
cabeça e mão são substâncias, e podemos conhecê-
las definitivamente mesmo sem saber a quem esta
mão ou cabeça pertence. Consequentemente,
nenhuma destas ou qualquer realidade é relativa.
Nesse caso, pelo menos, Aristóteles não se deixou
enganar pela gramática. Ele pode, é claro, estar
sujeito a outras críticas; por exemplo, ainda que não
saibamos a quem pertence a cabeça decepada, no
campo de batalha, podemos negar que jamais
conheceremos a natureza essencial da cabeça sem
conhecer sua relação com um corpo. E há alguns
pensadores que têm tentado reduzir, não apenas
mãos e cabeças, mas toda substância a meros
relativos.

Qualidade
A terceira categoria, e última a ser discutida, é a da
qualidade. No pluralismo pré-socrático,
especialmente em Demócrito, as dificuldades que
pairavam sobre o conceito de qualidade eram
bastante subestimadas. Não apenas o
caráter inconcebível da origem torna o
aparecimento de novas qualidades paradoxal; e não
apenas a relação entre qualidades e padrões
geométricos é um enigma; mas também os
pensadores mais antigos jamais haviam dito o que
significa o termo qualidade. Aristóteles, agora,
começa, definindo qualidade como aquilo em
virtude do que, se diz que as coisas são assim ou
assim. Por exemplo, disposições e hábitos são
qualidades; insanidade é uma qualidade; entretanto,
uma irritação leve, quando alguém está aborrecido,
não é uma qualidade, mas uma afeição; densidade
também não é uma qualidade, mas a posição
relativa das partes de uma coisa, e
igualmente, suavidade. Algumas qualidades,
diferente de substâncias, admitem gradação,
pois uma coisa poderá ser mais branca do que
outra, e um homem poderá ser mais justo do que
outro. A justiça em si, é claro, não sofre diferença
de gradação; ainda assim, um homem poderá ser
mais ou menos justo embora não possa ser mais
ou menos homem. Outras qualidades, tais
como triangularidade, obviamente não sofrem
variação de grau. A característica distintiva de
qualidade, entretanto, é o fato de que semelhança e
dessemelhança podem ser predicados somente
em referência à qualidade. Deve-se ser observado
que algumas coisas poderão ser classificadas tanto
como qualidade quanto como relação.

Por causa da moderna suspeição acerca da


substância e por causa das muitas dificuldades
acumuladas em redor da qualidade, aristotélica ou
não aristotélica, a linha de argumentos carece de
cuidadoso escrutínio. E verdadeiro que semelhança
pode ser predicado apenas em referência à
qualidade? Suponha que dois homens sejam, não
apenas qualitativamente pesados, mas exatamente
— e, portanto, quantitativamente, e pesem 100
quilos. Não poderia ser dito que sejam semelhantes
quanto ao particular quantitativo? Ou, o que é pior,
talvez 100 quilos não seja uma quantidade, mas
uma relação entre um homem e uma unidade de
peso. Nesse caso, poderia ser mantida a distinção
ou relação entre quantidade e qualidade?
Certamente homens podem ser semelhantes quanto
a terem sobrinhos, um relacionamento, e em
estarem armados, o que está sob a categoria de
estado. Poderiam, estas outras categorias, então,
preservar suas distinções? Tal suspeita é provocada
pelo próprio Aristóteles, quando diz que algumas
coisas podem ser tanto qualidades quanto relativos;
e, sobretudo, quando, depois de escolher um
exemplo de determinada categoria, em uma
passagem, ele usa o mesmo exemplo para outra
categoria, em outro lugar. Isso poderia conduzir, e,
de fato conduz, a uma tentativa de reduzir o
número de categorias, pois os estoicos admitiam
apenas quatro. Ainda assim, quatro é
possivelmente muito, e fica o risco de que todas as
categorias se misturem, de maneira que nem
mesmo a substância permaneça distinta. Por
exemplo, se a semelhança pode ser predicada
somente em referência à qualidade, e se Sócrates e
Crito são semelhantes no sentido de ambos serem
homens, a substância homem emergiu como
qualidade. Mas seria uma ruína para o aristotelismo
se a substância evaporasse assim. Novamente, é o
próprio Aristóteles quem levanta a suspeita.
Em Metafísica (1020a33), ele diz: “Qualidade
significa a diferença de essência, e.g., o
homem é um animal de certa qualidade porque ele
é bípede... e um círculo é uma figura de particular
qualidade porque não têm ângulos”. Isso quase
equipara qualidade à forma ou substância,
especialmente porque Aristóteles usa com
frequência a expressão “bípede” como definição de
homem. Levando além, isso implicaria que homem
é uma qualidade. O uso frequente de “bípede” para
definir homem, provavelmente porque Aristóteles
não quisesse se dar ao trabalho de pensar
uma definição exata, também levanta a questão, se
seria realmente possível definir uma substância. Se
for impossível, então o mais conhecido de todos os
objetos, na filosofia aristotélica, seria
desconhecido. Mas tais problemas
estão extremamente intrincados, e devemos reter o
julgamento até que sua epistemologia seja mais
bem explicada.
Epistemologia

As dificuldades inerentes à definição, distinção e


comparação de categorias poderão ser
possivelmente resolvidas de uma forma ou de
outra, se uma declaração, sem exceção, puder ser
feita de maneira a ser apreendida pela
razão. As condições da demonstração ou ciência
terão de ser também explicadas. Esses dois
desideratos são razões adicionais que motivam a
teoria do conhecimento. A fonte mais importante
deste material epistemológico é o Analítico
Posterior. Todo ensino e aprendizado baseado no
raciocínio, diz Aristóteles, procede
de conhecimento preexistente. Deve ser notado que
Aristóteles não afirma que todo conhecimento, sem
exceção, seja baseado em conhecimento
preexistente Platão e Kant talvez dissessem algo
assim, mas, para Aristóteles, não há conhecimento
completamente a priori. É quando um estudante vai
à escola para receber instrução que um
conhecimento preexistente se torna necessário
para que possa haver ensino racional. O
conhecimento preexistente poderá ser a admissão
de um fato, ou do sentido do termo usado, ou
ambos.

Esse princípio ajuda-nos a superar um obstáculo


inicial. Platão, no Mênon, observou as objeções
sofistas à possibilidade de conhecimento. Eles
diziam que aprender é coisa impossível, por uma
dupla razão. Se já conhecemos um item, então,
obviamente, não podemos aprendê-lo agora; mas,
se não conhecemos determinado item, não podemos
sequer começar a indagar por ele — não
saberíamos o que buscar; e, se acidentalmente nos
encontrássemos com ele, não saberíamos ser ele o
objeto que desejávamos conhecer. O aprendizado é,
pois, impossível. Platão objetivava resolver o
problema mediante a aceitação do paradoxo de que
aprendemos o que já sabemos. Ele assumiu que
todos os homens são oniscientes em virtude de uma
vida anterior, e que, na vida presente, todo
aprendizado é recordação.

Para Aristóteles, esta é uma solução inaceitável. Ele


se aproxima do problema por meio de um dos
artifícios que os sofistas usaram com suas vítimas
ingênuas. Você sabe, perguntaria um sofista, que
todo par é igual? Após receber uma resposta
afirmativa, o sofista mostraria um par de pedras ou
moedas ou de algo cuja existência fosse
desconhecida ao interlocutor; e, uma vez que sua
existência fosse desconhecida, o fato de que as
pedras ou moedas fossem iguais teria de
ser igualmente desconhecido. Daí, os sofistas
concluiriam que tal pessoa, na realidade, não sabia
que todo par é igual. Alguns gregos, não Platão,
tentaram resolver o problema, dizendo: todo par é
conhecido como igual. Mas Aristóteles
argumenta que nenhuma demonstração se limita a
casos que alguém conheça. A geometria não
conclui a afirmação: os triângulos que conheço têm
180 graus; conclui, sim, que todos os triângulos,
sem exceção, têm essa propriedade. A solução
do paradoxo repousa sobre o fato de que o
reconhecimento de uma verdade, às vezes, contém
tanto um conhecimento prévio quanto o
conhecimento adquirido simultaneamente com o
reconhecimento. No exemplo sofista, o
conhecimento prévio é de que todo triângulo
contém 180 graus; a vítima do sofista
agora aprende que “este é um triângulo” ou que
“este é um par”; e, com tal informação, ele conhece
que a propriedade universal também se aplica a este
caso. Pois, Aristóteles continua, mostrando que, em
certo sentido, nada há que impeça um homem de
conhecer o que ele está aprendendo, conquanto, em
outro sentido, ele não conheça o que está
aprendendo. Isto é, ele pode conhecer o
princípio universal, e, portanto, conhece, ainda que
seja um conhecimento potencial.
Porém, obviamente, ele não pode conhecer e não
conhecer no mesmo sentido.

Causa e demonstração

Vencida essa dificuldade, é possível começar a


descrição do conhecimento. Há vários tipos, mas
conhecimento em sua forma simples, conhecimento
absoluto ou sem qualificação, conhecimento
científico distinto de formas inferiores
de conhecimento ou consciência, é sempre um
conhecimento das causas. Conhecimento é
explanação, e explanar uma matéria é declarar sua
causa. Se desejamos, por exemplo, explicar eclipses
lunares, devemos estabelecer suas causas; e
quando estivermos habilitados a fazê-lo, diremos
que conhecemos e estamos satisfeitos. A forma
científica desse conhecimento é a demonstração.
Nem todo silogismo, nem mesmo todo silogismo
válido, é produtor de conhecimento, pois há
silogismos dialéticos com premissas incertas; mas
todo conhecimento, no sentido estrito, é declarável
por meio de um silogismo válido. Cientistas
modernos, repelidos pela esterilidade da física
medieval, pensam que Aristóteles enfatizou
demasiadamente o silogismo; algumas almas mais
precipitadas, como Francis Bacon, falam como se
não houvesse necessidade de uma lógica dedutiva;
mas uma ou duas coisas devem ser ditas em favor
de Aristóteles. Em primeiro lugar, o raciocínio
válido é da mais alta importância em qualquer
época e sobre qualquer assunto, incluindo física; e,
uma vez que Aristóteles era o primeiro a
desenvolver a teoria do silogismo, e que ele o fez
tão bem, que mesmo tempo mais tarde ela não
mudou muito, ele pode ser perdoado de havê-lo
enfatizado em demasia. Em segundo lugar, o
mais alto desenvolvimento da ciência de seus dias
era o da geometria; somente na geometria havia
uma semelhança de explicação razoável, oposta à
coleção caótica de fatos da zoologia. Tomar o
método silogista da geometria como modelo para a
totalidade da ciência foi, portanto, muito natural.
Certamente este ideal de ciência não é mais
repreensível do que o de grande parte dos
pensadores modernos que tentaram reduzir a
totalidade do conhecimento à mecânica
matemática. À luz das condições históricas,
Aristóteles não deveria ser julgado de maneira tão
definitiva.

Demonstração, portanto, é o método da ciência,


pois é o silogismo que pode apontar a causa.
Considere o fato de que as estrelas cintilam e, os
planetas, não. Por que os planetas não cintilam?
Assuma os planetas como C, proximidade da terra
por B, e não-cintilação por A. Desse modo, B é um
atributo de C, e A é um atributo de B;
consequentemente, A é predicado de C. A questão
“Por que os planetas não cintilam?” é representada
por “Por que A é predicado de C?”. A resposta é B.
B, portanto, é a causa e a explicação. Em geral, a
causa é o termo médio de um silogismo
demonstrativo; a conclusão é a asserção da qual
desejamos saber a razão; e o termo médio é a razão.
Deve ser dada ênfase à noção de causa, razão ou
explanação. Não será suficiente mostrar que um
fato é um fato. O conhecimento de fatos somente,
uma mera coleção de dados, não é
estritamente conhecimento ou ciência; sequer é
suficiente referir-se a um evento anterior. O que é
necessário, é uma declaração da razão, do por que,
da causa, e isso implica que a conclusão não apenas
é, mas tem de ser. Necessidade, não
apenas verdade, é a característica da demonstração.
A verdade obtida mediante demonstração é
necessária, e o próprio objeto do conhecimento
científico não pode ser diferente do que é.
Conhecimento demonstrativo tem de ser
conhecimento de uma necessária coleção de dados,
pois, se não for necessária, não é causa.

Uma vez que as premissas da demonstração, em


sentido restrito, são universais e necessárias, a
conclusão será uma verdade eterna. Nenhum
atributo pode ser demonstrado ou conhecido como
inerente a uma coisa perecível. Há um tipo de
conhecimento de casos acidentais e especiais, mas
que não merece o título de demonstrativo. Um
eclipse da Lua em uma dada noite não pode
ser objeto da ciência, mas o princípio de que
eclipses lunares ocorrem sempre devido à
interposição da Terra é uma verdade eterna, e
portanto, um objeto próprio da demonstração. Em
biologia, não apenas os eventos individuais estão
além da apreensão da ciência, mas os próprios
processos não ocorrem da mesma maneira, tal
como ocorre com os eclipses. Ainda que, em sua
maior parte, os processos sejam bem regulares, há
frequentes exceções. A biologia, portanto, seria
menos científica do que a astronomia. Quanto
menos regular se torna o processo
que investigamos, e quanto mais particular os
objetos em vista, mais eles imergem em
indeterminada e ininteligível multiface. Os
universais são, portanto, os objetos próprios do
conhecimento.
Premissas primárias

Ora, uma vez que é a conclusão da demonstração


que estamos tentando provar, e que ela é provada
pelo assentamento de premissas, segue que
as premissas do conhecimento são mais bem
conhecidas do que a conclusão. Se não conhecemos
as premissas, obviamente não poderemos conhecer
a conclusão. A conclusão não pode ser mais certa
do que as premissas sobre as quais se baseia. As
premissas são a causa da conclusão e, portanto, são
anteriores a ela. E também, na demonstração,
mesmo que não em todo silogismo válido,
as premissas têm de ser verdadeiras. A
demonstração é conhecimento, e não poderá haver
conhecimento do não-existente. As premissas,
portanto, são declarações daquilo que existe ou
é; isto é, elas têm de ser verdadeiras.

É claro que poderá haver uma série de silogismos


em uma demonstração, tal como na geometria. Mas
a cadeia deve ter um ponto de partida, e esse
ponto tem de ser não apenas anterior, causal e
verdadeiro, mas, especialmente, primário e
indemonstrável. Ele tem de ser uma verdade básica
e imediata. Nada pode ser mais certo do que elas,
pois, se sobre elas pairar a menor dúvida, a dúvida
seria vinculada a todas as conclusões; e isso
significaria que a ciência seria abalada. Mas a
convicção da ciência pura tem de ser inabalável.

No século 19, cria-se que a ciência seria tão


inabalável quanto foi o desejo de Aristóteles; mas o
clima no século 20 é o de que a ciência é
apenas tentativa, e de que as leis têm necessidade
de constante revisão. Assim, a corrente objeção a
Aristóteles é que a ciência que ele descreve não
existe. A validade formal do silogismo talvez seja
perfeitamente segura, mas suas aplicações à matéria
concreta, especialmente as premissas sobre as quais
são baseadas, não são completamente isentas de
dúvidas. Para Aristóteles, isso significaria que não
poderia haver conhecimento científico tal como ele
definia o sonhecimento. Nos seus dias, havia uma
diferença de opinião semelhante. Alguns diziam
que não poderia haver conhecimento; outros diziam
que todas as verdades poderiam ser demonstradas.
Mas Aristóteles não concordava com nenhuma
dessas posições.

Aqueles que negavam a existência do


conhecimento científico argumentavam que a
demonstração seria apenas um método pelo qual
algo poderia ser conhecido. Mas demonstrações
dependem de premissas. E, se as premissas devem
ser conhecidas, terão de ser também demonstradas.
Isso leva-nos de volta ao infinito regresso,
resultando no fato de que a demonstração jamais
finda, ou, de maneira mais acurada, jamais começa.
Por consequência, não haveria
conhecimento aentífico. O outro grupo também
afirmava que a demonstração seria o único método
pelo qual algo poderia ser conhecido; contudo,
asseguravam que tudo noderia ser demonstrado
porque a prova giraria em círculos. Toda
premissa leria uma conclusão, e haveria uma série
finita cujo fim e começo seriam -dènticos.
Aristóteles replica que uma proposição não pode
ser, ao mesmo tempo, interior e posterior, tal como
essa visão requer. Dado que o número exato
de termos é irrelevante, eles podem ser reduzidos a
três, e o absurdo se torna aparente. Demonstrações
circulares seriam equivalentes a dizer: “A é B. Por
quê? Porque 3 é C. Por quê? Porque C é A. Por
quê? Porque A é B”. Tendo abolido
as demonstrações infinitas e circulares, conclui-se
que nem tudo pode ser demonstrado, e que primeiro
deve haver verdades indemonstráveis.

Um filósofo de uma escola diferente, Hegel, por


exemplo, sem dúvida admitiria ser um absurdo o
círculo de três termos; mas ele poderia
argumentar que o número exato de termos não seria
tão irrelevante como Aristóteles pensava. Um mau
círculo é um círculo pequeno; mas, se um círculo
pudesse ser traçado de maneira a incluir todas as
coisas, seria um círculo belíssimo. Em um
universo racional todas as coisas estão implicadas
em todas as coisas; e precisamente por esta razão,
um círculo de três termos é um absurdo: ele falha
em mostrar a outra relação de A, B e C. Hegel
poderia, até mesmo, atribuir ao próprio
Aristóteles alguns círculos muito pequenos e muito
ruins. Ele perguntaria: seria, a resposta de
Aristóteles, mais do que um círculo de dois termos,
no qual a demonstração é possível porque há
verdades primárias, e há verdades primárias porque
deve haver demonstração?

Contrariando as duas posições, Aristóteles afirma


que nem todo conhecimento é demonstrativo. Deve
haver verdades básicas primárias porque o regresso
na demonstração tem de terminar em tais verdades
básicas, e isso é indemonstrável. Portanto, além do
conhecimento científico, que é demonstração, há
sua fonte original que nos habilita para o
reconhecimento das proposições básicas
indemonstráveis.

No caso de alguém pensar que tais verdades básicas


sejam as leis da lógica e nada mais — uma noção
que implica que todo conhecimento poderia caber
em um único sistema compreensivo e
demonstrativo — Aristóteles insiste que
cada ciência em separado tem as próprias premissas
peculiares. Elas não podem ser tão restritas que
cubram apenas uma parte da ciência, nem tão
remotas e inapropriadas que misturem dois ou mais
objetos incombináveis. Ninguém pode demonstrar
verdades geométricas por meio da aritmética. É
verdadeiro, é claro, que a geometria pode ser
aplicada à mecânica e à ótica, e que a aritmética
é usada na harmonia. É também verdadeiro que,
além das premissas peculiares, há princípios
comuns, como as leis da lógica para toda a ciência,
e princípios aplicáveis em toda a matemática,
como: igual com igual resulta em igual.
Tais princípios comuns são usados
“analogicamente” nas diversas ciências: eles
não significam exatamente a mesma coisa à medida
que mudam de uma ciência para outra.
NosAnalíticos Posteriores, o exemplo de
Aristóteles, de duas ciências distintas,
é aritmética versus geometria. Aritmética, uma
ciência de propriedades nãoinerentes a um
substrato, não é apenas superior à harmonia, uma
ciência de propriedades inerentes, mas é também
superior à geometria porque tem menos elementos
básicos. A unidade de aritmética é uma realidade
sem posição, enquanto que, na geometria, o ponto
tem posição.

Essa separação de ciências, uma para cada gênero,


cada qual com suas primeiras verdades peculiares,
levanta muitas questões sobre a relação entre
elas. A negação de Aristóteles, de uma ciência
singular, suprema e compreensiva, põe em risco,
até mesmo, a superioridade da metafísica
aristotélica sobre a física, a zoologia e outras
ciências. Em menor escala, mais fácil de ser
apreendida, há a relação da aritmética com a
geometria. Aristóteles está bem certo de que não
há ciência separada para os triângulos isósceles,
para os triângulos equiláteros e para os escalenos.
Se alguém usasse três demonstrações diferentes
para provar que os três tipos têm 180 graus, e, se
alguém pudesse provar que há apenas três tipos,
ainda assim não teria havido verdadeiro
conhecimento, demonstrativo ou científico, do bem
conhecido teorema. Um triângulo isósceles contém
dois triângulos retos não porque seja um isósceles,
mas porque é um triângulo. Triângulo, portanto, é o
gênero, e as verdades básicas são coextensivas com
o gênero. Mas a aritmética pertence a outro gênero,
e princípios não são usados adequadamente se
forem usados para cobrir dois gêneros. Alguém
poderá se perguntar, como Aristóteles explicaria a
geometria analítica, para não mencionar a
cibernética. Ou, o que ele faria com a redução da
química contemporânea, pensada de modo
independente, em relação à física? Em uma
passagem, ele ingenuamente se entrega, dizendo:
“E difícil ter certeza se alguém conhece ou não;
pois é difícil saber se o conhecimento de alguém é
baseado em princípios de cada gênero ou não; e é
precisamente isso que constitui
conhecimento”.16 Porém, se é assim tão difícil,
como pode ser sustentada a declaração de que
a ciência é inabalável? Essa dificuldade é tanto
antiga quanto moderna.

De qualquer modo, para Aristóteles, há mais do que


poucas verdades básicas. Cada ciência ou cada
gênero tem algumas que lhe é característica
e intransferível. A unidade não pode tomar o lugar
do ponto. Além disso, as leis da lógica não servem
como premissas para todas as conclusões; elas
devem ser tomadas em conjunção com as verdades
genéricas. Ora, uma vez que conclusões científicas
são numerosas, as verdades primárias e imediatas
não são em menor número do que as próprias
conclusões. E essencial para a teoria de
Aristóteles que tais proposições indemonstráveis
possam ser conhecidas com certeza.

Conhecimento não-científico

Temos visto que o conhecimento científico ou


demonstrativo é impossível sem premissas
imediatas. Entretanto, uma vez que tais princípios
são indemonstráveis, o conhecimento deles não
poderá ser conhecimento “científico”. Tem de
haver, então, outro tipo de conhecimento, um
conhecimento que seja realmente superior ao
conhecimento científico, já que conclusões não
podem ser mais certas do que as premissas das
quais dependem. Platão chamou esse conhecimento
de inato. Mas é impossível, diz Aristóteles, que
possuamos tais acuradas verdades, mais acuradas
do que a demonstração, e ainda assim, falhemos em
observá-las, não apenas na infância, mas em
qualquer tempo antes de nos aplicarmos ao estudo
científico. Tal conhecimento, portanto, não pode
ser inato, mas, sim, adquirido.
Contudo, se nós adquirimos tais verdades básicas,
elas também, como conhecimento demonstrado,
dependem de conhecimento preexistente, e
da capacidade para desenvolvê-lo a partir desse
conhecimento. O conhecimento e a capacidade
preexistentes, entretanto, não podem ser superiores
ao seu estado desenvolvido. Para ser concreto:
todos os animais são naturalmente dotados com a
faculdade da sensação por meio da qual distinguem
ou discriminam uma coisa de outra. Nos animais
inferiores, impressões sensíveis são evanescentes,
e tais animais parecem não ter conhecimento além
de suas sensações presentes. Nos animais
superiores, as impressões sensoriais deixam traços
que continuam por um tempo. Entre tais animais,
alguns não são e outros são capazes de ordenar e
organizar essas impressões persistentes naquilo que
chamados de memória. De muitas e repetidas
memórias da mesma coisa, é formado na alma um
conceito universal, aquele, dentre muitos, que é o
fator comum a todos eles. É a posse de um
universal que torna possível, tanto a habilidade do
artesão quanto o conhecimento do cientista. Tais
estados de conhecimento não são inatos
nem desenvolvidos a partir de um estado mais alto;
eles vêm por meio da sensação. É como a confusão
de uma batalha sendo interrompida, primeiro pela
colocação de um único homem, depois de outro e
assim por diante, até que a ordem esteja restaurada.
A alma é constituída de modo a ser capaz de operar
esse processo.

Como se a ilustração fosse falha, e porque o relato


é admitidamente difícil, Aristóteles repete para que
fique claro.

Quando um dentre um número de particulares


logicamente indiscrimináveis se impõe, então, pela
primeira vez há um universal na alma; pois, embora
o ato da percepção termine em um indivíduo, o
conteúdo apreendido é um universal — isto é, nós
percebemos homem e não Cália. Novamente, outra
colocação é feita, e o processo não para, até que
universais indivisíveis (as categorias)
sejam obtidos; isto é, primeiro nós apreendemos
determinada espécie de animal, depois esse
animal símplice, e daí por diante, até as
generalizações mais distantes.
Esse é o processo de indução, e por meio dele
somos capazes de apreender os universais, tais
como espécies e gêneros, e também as premissas
primárias. Os processos de opinião e cálculo são, às
vezes, confundidos; ambos,
conhecimento demonstrativo e intuição são
perfeitamente seguros e infalivelmente
acurados. Assim como a intuição ou a inteligência
fornece as premissas, possivelmente o Intelecto
Ativo, a ser tratado mais tarde, deve ser
considerado como a fonte da ciência. É confortante
saber que, pelo menos em parte do tempo, não
estaremos enganados, se apenas soubermos quando
seja essa parte.

DA CIÊNCIA PARA DEUS

Aristóteles considera a lógica, não como sendo a


própria ciência, mas como um organon ou
instrumento da ciência. A lógica arranja a forma e
as condições do conhecimento real. Porém, por
mais importante que seja a lógica, grande parte do
corpo de escritos de Aristóteles diz respeito à
ciência. Parte desses escritos, a mecânica celeste,
por exemplo, é ultrapassado; a vasta quantidade de
detalhes zoológicos sequer atinge os próprios
requerimentos científicos de Aristóteles, embora
sua obra seja valiosa como uma primeira tentativa
de observação real e descrição; é claro que há erros
factuais, tal como quando Aristóteles considera a
luz como uma força não propagadora e nega sua
velocidade - um erro muito natural aí, e é possível
que um cientista que lhe seja menos simpático
despreze totalmente a ciência de Aristóteles. Ainda
assim, mesmo à parte do valor
estritamente histórico de seu trabalho como
determinante do curso do pensamento
filosófico por mais de mil anos, Aristóteles e a
ciência aristotélica mantêm seu valor. O iniciante
vê seus tropeços, o acadêmico, sua genialidade.

Embora a vasta massa de detalhes zoológicos


mostre que esse era um de seus estudos favoritos, é
uma pobre introdução à ciência de
Aristóteles precisamente porque tem mais detalhes
do que princípios; e é assim porque estuda apenas
uma porção limitada da natureza. Uma
apresentação mais geral deve ser precedida de uma
ciência mais geral - uma ciência da totalidade
da natureza. O nome de tal ciência, e do livro de
Aristóteles sobre esse princípio básico é Física,
pois, Ta Phusika, significa “As Coisas da
Natureza”, e não se restringe ao nosso termo
moderno, física.Em concordância, portanto, com
as condições lógicas para o conhecimento
científico, a tarefa é descobrir os princípios, causas,
condições ou elementos da natureza. Temos de
começar onde nos encontramos, onde a natureza e
toda sua diversidade nos é familiar às percepções
sensoriais, e, mediante análise, avançar para a
explanação, a causa e os princípios primeiros.

Movimento

Se o propósito é a totalidade da natureza, e não


apenas as peculiaridades da zoologia ou de outra
ciência limitada, o principal objeto de inquirição
tem de ser o processo de mudança ou de devir, pois
a mudança é comum a todos os objetos naturais
enquanto que a vida, por exemplo, é característica
somente de alguns deles. Não apenas a importância
da mudança ou movimento é indicada por sua
universalidade, mas também os maiores problemas
da filosofia, a antítese entre Heráclito e
Parmênides, o comprometimento pluralista e o
resultado sofista, giram em torno da questão do
movimento. Pode-se dizer, também, que
Platão falhou, uma vez que de suas Ideias não
explicam o movimento.

A estrutura da sentença, em virtude de o fenômeno


da mudança ser expresso em sentença, fornece uma
sugestão da solução. Há diversos modos de
expressão. Alguém pode descrever uma mudança
dizendo que o homem se torna educado, ou que o
não-educado se torna educado, ou que o homem
não-educado se torna um homem educado. O
primeiro modo é conclusivo e coloquial; o terceiro
é a forma mais completa. Esta terceira forma
mostra que por meio das mudanças há algo que
permanece sendo o mesmo, pois o mesmo homem,
igualmente homem, está aí antes e depois. O
homem poderá ter seu estado mudado ou, em
outra instância, sua quantidade ou qualidade, e
poderá também haver geração e destruição, isto é,
mudanças dentro da categoria de substância; mas
em todos os casos há um objeto subjacente, que não
muda. No exemplo citado, o ser do homem não foi
mudado. O que ocorreu foi que uma forma, não-
educado, foi substituída por outra forma, educado.
Tal como Platão ensinou, mudanças ocorrem entre
contrários; ou, se “não-educado” não é uma forma,
no sentido estrito a ser explicado depois, a
mudança, pelo menos, foi da privação à posse dessa
forma. Segue que o movimento sempre requer algo
composto - um objeto e duas formas contrárias;
algo realmente simples, por exemplo, uma forma
pura, não poderá ser mudada.

O movimento é o mais universal dos fenômenos


porque, em certo sentido, é natureza. Alguns
objetos, como camas e cadeiras, por exemplo, são
artificiais; outros objetos existem por natureza, e
nós os chamamos de objetos naturais. Porque os
últimos são naturais? Qual é a propriedade comum
a todos eles, que não é encontrada nos objetos
artificiais? Tal propriedade é a natureza, que,
por sua vez, é um princípio de movimento e
descanso. Suponha que alguém lance uma pedra de
uma janela e ela, varando o ar, caia em um lago e
vá parar no fundo lodoso. Esta é uma instância de
movimento natural. A pedra atravessa o ar e cai na
água por natureza. A natureza é a causa do
movimento. É possível que alguém levante uma
objeção, dizendo que a estátua, cinzelada na pedra,
é um objeto artificial que também poderá tombar
no ar, cair na água e repousar no fundo do lago.
Como, então, esse movimento distingue entre
objetos naturais e artificiais? Aristóteles responde
que a estátua cai não por ser uma estátua, mas por
ser uma pedra. O princípio e a causa do movimento
são imanentes à pedra em si; e estão na estátua
apenas por acidente. Dois objetos estarão no fundo
do lago porque ambos são pedras. O objeto
artificial não repousa em virtude de ser artificial.
Portanto, natureza é um princípio, ou causa de
descanso e movimento nesse corpo ao qual é
imanente em si e não por acidente. Observe que
natureza é um princípio tanto de descanso quanto
de movimento. Se o objeto fosse rolha, a natureza
teria causado que repousasse na superfície do lago.
Mas a pedra afunda naturalmente.
Demócrito havia explicado o movimento da pedra,
não por meio de um princípio inerente, mas pelo
fato de alguém ter lançado a pedra. Ou,
generalizando, um átomo move porque outro átomo
se chocou com ele; e o primeiro átomo se chocou
com o segundo, porque foi empurrado pelo átomo
precedente, e assim por diante, em um retorno
infinito. Esse esquema parece explicar cada
movimento particular; explica por que cada coisa
singular se move. Porém, Aristóteles afirma que
isto não explica o movimento. No máximo,
Demócrito explicou apenas por que essa pedra se
move agora; ele falha em fornecer qualquer razão
ou causa geral. Ora, Aristóteles, tal como
Demócrito, está disposto a admitir que a série de
movimentos regresse infinitamente: haverá sempre
um movimento precedente a qualquer movimento.
Seu princípio da natureza não deve ser entendido
como se fosse possível uma absoluta iniciação do
movimento. Se o mundo sempre tivesse existido
em um estado de absoluto repouso, nenhum
movimento jamais teria sido iniciado. Uma pedra
cai, ou quando é lançada ou, talvez, porque a chuva
removeu uma obstrução. Nessa relação, a pedra não
terá iniciado o movimento. Contudo, uma vez que a
obstrução é removida, a natureza da pedra é que
determina o tipo de movimento e o ponto de
descanso. O crescimento de uma planta, tanto
quanto a queda de uma pedra, requer movimento
antecedente, mas o tipo de movimento é
determinado pela natureza da planta.
Entretanto, conquanto Aristóteles e Demócrito
concordem que jamais tenha havido um primeiro
movimento, e que uma série retorne infinitamente,
Aristóteles se opõe à afirmação de Demócrito, de
que uma série de explicações não possa
retornar infinitamente. Uma explicação deve ser
fundada em um princípio original — e a natureza é
esse princípio de movimento.

Qual filósofo estará certo? Poderá Aristóteles


provar a existência do princípio que ele chama de
natureza? Não, ele não pode. Ele explicou, na
lógica, que nem todas as coisas podem ser
demonstradas; as conclusões das
demonstrações repousam em princípios que são
mais acurados do que as próprias conclusões. Tais
primeiras premissas são apreendidas não por
demonstração, mas por intuição. Ora, a natureza é
um desses princípios. Nada há mais evidente ou
certo do que a própria natureza da qual a existência
da natureza poderia ser deduzida. O problema é que
a intuição de Demócrito falhou na operação; sua
mente avançava tal como um exército em confusão,
mas, infelizmente, nenhum soldado marcou
presença. Consequentemente, ele chegou a um
sistema mecanicista, enquanto a intuição infalível,
o teria levado a uma conclusão diferente.

Dado que a natureza é definida como um princípio


de movimento, é necessário entender o sentido
de movimento para que possamos entender
a natureza. Aristóteles classifica a mudança em
tipos: geração e corrupção; mudança qualitativa ou,
em termos modernos, mudança química; mudança
quantitativa, tal como crescimento e decadência; e
movimento no espaço. Todos esses são discutidos
em maior extensão do que conseguiríamos fazer
aqui. Será também necessário discutir
sobre contínuo, infinito, lugar, vazio e tempo, pois
esses termos serão usados na explanação. Porém,
primeiro, temos de definir movimento.
Potencialidade e atualidade

Na seção sobre lógica, a solução do paradoxo do


aprendizado, tal como apresentado
no Mênon, dependeu da distinção entre
conhecimento atual e conhecimento potencial.
Também na seção sobre a lei da não-contradição,
o problema da coexistência de contrários foi
resolvido, por meio da mesma distinção. Esses
conceitos de atualidade e potencialidade são
básicos no pensamento de Aristóteles, e, aqui, eles
serão necessários para a definição de movimento.
Mas potencialidade e atualidade não podem ser
definidas. Assim como conclusões dependem,
eventualmente, de premissas indemonstráveis,
assim também vários termos são definidos
mediante conceitos indefiníveis. A razão tem de
apreendê-los intuitivamente da experiência. O fato
de que uma peça de mármore pode se tornar uma
estátua ou um menino ignorante pode se tornar um
homem educado é matéria conhecida da
experiência comum. Ou, que um acadêmico que
está dormindo pode despertar e começar a estudar.
A indução desses casos fornece os conceitos de
potencialidade e atualidade. Eles não são definidos,
mas devem ser apreendidos por analogia. De posse
de tais conceitos indefiníveis é
possível definirmudança ou movimento, de maneira
geral.

A definição é: “a atualização do potencial como tal,


é movimento” ou: “a atualidade de um ser
potencial, quando é atual e operativa não em si
mesma, mas como móbil, é movimento”.
Aristóteles elucida a definição com
exemplos: quando a construtividade, enquanto
construtividade, está em atualidade, a mudança
chamada construção está se processando. Ou,
quando dizemos que o bronze é potencialmente
uma estátua, não é a atualidade do bronze como
bronze que está em movimento, mas, sim, a
atualização da “estátua em potencial”,
a transformação do bronze como objeto mutável.

Ora, pode bem ser verdadeiro, como Aristóteles


prossegue argumentando, que toda tentativa prévia
para definir movimento tenha falhado. Por si
mesmo, entretanto, isso não prova que a tentativa
de Aristóteles tenha sido bem-
sucedida. Superficialmente, parece que sua
definição de movimentousa o mesmo conceito que
está sendo definido. Movimento, ele disse, é a
atualização de um objeto enquanto objeto móvel.
Porém, se o sentido demovimento não foi
ainda determinado, a expressão “enquanto móvel”
não acrescenta informação. Depois, o
termo atualização - a menos que o traduzamos
como atualidade - aparentemente se refere a algum
tipo de processo, e consequentemente, pressupõe a
definição de mudança. Finalmente, para não
pressionar o problema da derivação de dois termos
por analogia, atualidade e potencialidade
dificilmente serão adequadas para processos
explanatórios. Sem dúvida, o bronze pode ser
transformado em estátua - isso é questão de
experiência. Mas a simples declaração de que
o bronze tem potencialidade para se tornar estátua,
a fim de explicar por que o bronze pode ser tornar
uma estátua, não aumenta nosso conhecimento.
Afirmar que uma matéria é potencialidade, de certa
forma, significa somente que uma matéria similar
no passado veio a ter essa forma. Essa é uma
declaração de fato, não uma explanação. Talvez
Demócrito estivesse certo, e não haja
nenhuma explanação. Movimento é apenas um
inexplicável fator de experiência, e
somente movimentos particulares podem ser
definidos ou explicados. Ou, talvez, os argumentos
dos eleatas contra o movimento fossem meros
jargões conceituais e, para refútá-los, tudo o que
Aristóteles precisava era de jargões conceituais.
Em tempos modernos, Bérgson também lamentou
que seus antecessores tivessem falhado em explicar
o movimento.

Seja como for, a plena explanação de movimento,


incluindo os problemas subsidiários de tempo,
lugar e infinidade, prossegue para culminar
como argumento para provar a existência de um
primeiro motor — o deus de Aristóteles.

Não há primeiro movimento

Como temos dito, Aristóteles insiste que o


movimento jamais começa e nunca se findará. Esse
movimento é, então, perene e pode ser entendido
mediante a tentativa de análise de um suposto
primeiro movimento. Ora, obviamente, não poderá
haver movimento a menos que haja um objeto que
se mova, por exemplo, uma pedra ou um animal.
Poderá, um movimento particular ser um primeiro
movimento? Não, pois as coisas serão eternas ou
geradas. Se forem geradas, a geração terá sido uma
mudança precedente ao suposto
primeiro movimento. Se, entretanto, forem eternas,
não teriam estado imóveis e, depois, iniciado o
movimento, porque repouso é privação de
movimento, um tipo de obstáculo ao movimento; o
obstáculo teria de ser removido antes de ter
ocorrido o suposto primeiro movimento. Qualquer
movimento selecionado, portanto, requer um
movimento anterior. Consequentemente, o
movimento jamais começa. Do mesmo modo, o
movimento jamais cessa, pois haverá sempre um
movimento subsequente a qualquer último
movimento suposto. Quando uma coisa cessa
o movimento, ela não cessa de ser móvel; mas, se
não pudesse se mover de novo, não seria móvel.
Ou, se a coisa em questão é destruída de maneira
que não pode se mover de novo, ainda assim, o
destruidor teria de ser destruído antes que
o movimento terminasse. A conclusão é que o
movimento é eterno.

Motores

O passo seguinte, no argumento em favor da


existência de Deus, é a proposição de que, o que
quer que esteja em movimento é movido por
alguma coisa mais. Uma vez que as pedras caem
naturalmente na direção da terra, o movimento que
fazem quando atiradas para cima é forçado, ou não
natural. Em casos de movimentos não naturais, a
distinção entre a coisa em movimento e o motor é
evidente. Tal distinção é encontrada também, mas
não de maneira tão evidente, no caso de um animal
correndo. Este é o movimento de um
objeto automovido. Porém, ainda que movam a si
mesmos, como totalidades orgânicas, os animais
têm partes, tal como navios: uma parte está em
movimento e outra parte causa o movimento. E
difícil, às vezes, identificar essas partes, mas,
pelo menos, é óbvio que as orelhas e o rabo de um
cachorro são movidos, mas não são motores.

A distinção entre motor e coisa movida é menos


evidente nos movimentos naturais de coisas
inanimadas — uma pedra caindo, por exemplo.
Sendo inanimados, tais objetos não movem a si
mesmos. Se o fizessem, eles poderiam parar de cair
em algum momento, assim como um cachorro
poderia parar de correr — eles seriam capazes, até
mesmo, de se mover para cima. Contudo, eles não
podem mover a si mesmos. O que ocorre é que uma
obstrução é removida, e a pedra rola montanha
abaixo. O que quer que remova a obstrução é a
causa do movimento, como causa acidental. A
verdadeira causa da queda de uma pedra é a causa
que fez da pedra, uma pedra. Houve um processo
de geração mediante o qual um corpo pesado veio a
ser, e a causa do peso é a causa da queda. Ou,
alterando a ilustração, um processo de geração
produziu uma quantia de gás, isto é, algo não
pesado, mas leve, tal como quando a fumaça é
produzida pelo fogo; e quando a obstrução, se
houver, for removida, ela naturalmente sobe. Em
ambos os casos o gerador é o motor. Isto é
suficiente para estabelecer a conclusão que tudo
que está em movimento é levado a mover por algo
mais.

Um primeiro motor

O passo seguinte no argumento que prova que há


um primeiro motor, é o de maior dificuldade. Um
motor, Aristóteles diz, pode causar o próprio
movimento ou pode ser colocado em movimento
por alguma coisa mais. E, é claro que pode haver
diversos intermediadores em uma série. “Se, então,
toda coisa que está em movimento foi movida por
algo mais”, tal como provado anteriormente, “e
o motor pode ou não, ele mesmo, ser movido por
algo mais; e no último caso, deve haver algum
primeiro motor não movido por nada mais... pois
seria impossível haver uma série de motores, cada
qual movido por outra coisa, uma vez que uma
série infinita não tem primeiro termo — se, então,
tudo o que está em movimento é movido por algo
mais, e o primeiro motor é movido, mas não por
algo, ele tem de ser movido por si mesmo”.17 Esta
passagem difícil pode ser parafraseada da seguinte
maneira: é possível haver vários itens em uma série
de movimentos conectados (Aristóteles menciona
uma pedra movida por um pedaço de pau, movido
pela mão, movida por um homem); qualquer
motor-movido, como o pedaço de pau, pressupõe
um motor final que não seja movido por nada mais;
enquanto os motores intermediários requerem esse
motor primeiro, o primeiro motor não requer
nenhum intermediário, pois, se isto fosse
necessário, um motor intermediário teria de ser
inserido entre o primeiro motor e outro
intermediário prévio, e assim uma série
infinita seria gerada.

Apesar de supostamente provar a necessidade de


um primeiro motor, este argumento deve ser visto
com suspeição. Como Aristóteles já argumentou
que o movimento nunca começa e nunca termina,
não existe uma boa razão para contestar essa série
infinita, e insistir na existência de um primeiro
motor. Mesmo no caso de animais, que se movem,
deve haver um movimento de geração antecedente
ao próprio movimento do animal; e, se a causa da
queda de uma pedra é a própria causa que produziu
a pedra, ainda mais apropriado seria para o homem,
que move sua mão para mover o pedaço de pau, ser
atribuído a seus pais. Ou, se for sugerido que,
enquanto o corpo do homem foi gerado por
seus pais, sua alma, que é seu real e primeiro
motor, não foi assim gerada, então seria necessário
determinar se uma alma assim concebida está de
acordo com a definição de alma, apresentada por
Aristóteles em seu De Anima, como sendo a forma
do corpo. Este ponto da psicologia não poderá ser
discutido aqui.

Outra sugestão, em defesa de Aristóteles, pode ser


que a série pedra — pedaço de
pau — mão — homem não é uma série temporal,
mas uma série lógica, ou de explanação. Neste
caso, o fato de que o movimento nunca começa
é irrelevante. Podemos, então, desconsiderar o fato
de que o homem teve de pegar o pedaço de pau,
movê-lo para tocar a pedra, e então mover a pedra.
Podemos começar a análise no momento em que a
mão, o pedaço de pau, e a pedra estão em contato
rígido; neste caso eles poderiam todos mover
simultaneamente, e não haveria série temporal.
Talvez isto seja plausível, mas Aristóteles não
oferece nenhuma indicação de conexões rígidas ou
movimentos simultâneos. Ainda mais, tudo isso
parece restrito a motores vivos, e não é plausível
que todos os movimentos naturais, incluindo ventos
e chuvas, possam se referir a almas. Se não
for possível demonstrar que essa crítica é
irrelevante, então o argumento em favor da
existência de Deus estará arruinado. E se tal crítica
é ou não irrelevante, terá de ser julgado em vista do
restante da passagem, citada para permitir
que Aristóteles fale por si mesmo:

“Todo motor move alguma coisa e move-a com


algo, ou com o uso de si mesmo ou com outra coisa
qualquer: um homem move alguma coisa,
seja diretamente ou com um pedaço de pau, e uma
coisa é derrubada ou pelo próprio vento ou por uma
pedra impulsionada pelo vento. E impossível,
entretanto, que aquilo com o qual algo é movido
provoque o movimento sem ser, por sua
vez, movido por algo que comunique movimento
mediante a própria agência. Ao mesmo tempo, se
algo provoca movimento pela própria agência, não
seria necessário haver algo mais mediante o qual
provoque movimento, entretanto, se há algo mais
mediante o qual o movimento é provocado, deverá
então existir algo que provoque movimento não
mediante outra coisa mas por si somente, senão um
regresso infinito será inevitável. Se, então, qualquer
coisa é um motor e ao mesmo tempo movida, a
sequência deve terminar em algum lugar, não sendo
infinita. Portanto, se o pedaço de pau move algo em
virtude de ter sido movido pela mão, a mão move o
pedaço de pau: e se alguma coisa causa
o movimento da mão, a mão também é movida por
algo diferente de si mesma. Então, quando o
movimento, por meio de um instrumento, é a cada
estágio causado por alguma coisa diferente do
próprio instrumento, ele deve sempre ser precedido
de outra coisa que inicia, por si mesmo, o
movimento. Assim, se o último motor está em
movimento, e se não há nada mais que o mova,
então ele deve mover a si mesmo”.18
Aristóteles assumiu ou não o ponto em questão?

Motores imóveis

Mesmo depois de admitida a necessidade de um


primeiro motor, como oposto a uma série infinita,
as dificuldades não cessam. Algumas das
passagens são extremamente intrigantes. Ora,
obviamente, se todo motor está em movimento, um
primeiro motor tem de mover a si mesmo, ou deve
haver um primeiro motor que seja imóvel.
Aristóteles se propôs a provar que nem todo motor
está em movimento. Considere a possibilidade de
que todo motor esteja em movimento, de que o
movimento seja acidental, e de que o movimento
acidental seja a causa do movimento que o motor
causa. Se todos os movimentos dependem de um
acidente, e um acidente não é necessário, então
seria possível cessar todo movimento. Mas isso é
impossível, como já foi demonstrado.
Entretanto, considere a possibilidade de alguns
motores estarem em movimento e
causarem movimento a partir de um movimento
essencial, e não meramente acidental. Neste caso, o
movimento do motor poderia ser, ou não, do
mesmo tipo de movimento pertinente ao da coisa
movida. Se for do mesmo tipo, um professor que
ensina uma lição está aprendendo a lição, e aquele
que atira está sendo atirado; mas isso é contrário ao
fato. Se o movimento for de outro tipo, então um
motor em movimento causaria alteração, e um
motor em alteração causaria crescimento. Porém,
visto que os tipos de movimento são poucos em
número, eles reapareceriam em breve; e como a
mais antiga da série é causa mais real do
movimento, do que uma intermediária, conclui-se
que o motor em movimento causa movimento - o
professor que causa o aprendizado, aprende, e
aquele que lança, é lançado.

Infelizmente, o argumento de Aristóteles parece


conter uma confusão. Se a série de tipos de
movimento é circular, então o ensino produz
aprendizado, que produz ensino, e o professor é
ensinado. Mas professores não são para
ensinar? Um professor ensina seu discípulo, que se
torna professor e que, por sua vez, ensina outros
alunos. Os tipos de movimento, sendo poucos em
número, retornam; mas os motores individuais,
sendo em número infinito, não precisam
ter movimento circular. Consequentemente, a
impossibilidade, ou o absurdo sobre o qual
Aristóteles se baseia, não existe.

De qualquer maneira, a conclusão presumível é que


nem todos os motores estão em movimento; ou,
pelo menos, como Aristóteles revela hesitação
quanto à eficácia do argumento, se o primeiro
motor estiver em movimento, ele terá de ser
automovido. Alguma prova adicional tem de ser
dada para mostrar que um motor automovido não é
suficiente para resolver o problema.

Um ente automovido não pode mover-se


totalmente, pois, se o fizesse, ele seria a causa e o
sofredor da causa ao mesmo tempo,
especificamente um e indivisível. Mas nada pode
ser agente e paciente, na mesma relação.
Movimento ou mudança, tal como visto, é a
passagem de uma forma para outra, ou da privação
à posse de uma forma. E aquilo que produz a forma
tem de já possuí-la, do mesmo modo como aquilo
que aquece algo tem de já estar
quente. Consequentemente, se uma coisa moveu a
si mesma em sua totalidade, ela possuiria e não
possuiria a forma em questão. Assim, todos os
chamados automotores têm de ser divididos em
duas partes, um motor e um movido.

É verdade que a parte que causa a mudança pode


ter sido posta acidentalmente em movimento pela
parte que muda, tal como quando a alma de um
homem causa o movimento de um corpo de um
lugar para o outro. Neste caso, a alma muda ií lugar
acidentalmente. Porém, uma vez que é acidental e
não necessária, essa situação não precisa acontecer,
e onde ela não acontece, há um motor
imóvel, ^oncordemente, aquilo que primariamente
concede o movimento, e imóvel.

Entretanto, uma vez que os automotores com os


quais estamos mais ramiliarizados são corruptíveis,
tal como os homens e outros seres vivos,
Aristóteles tem de mostrar que há um primeiro
motor eterno e incorruptível, não em movimento
acidentai nem em movimento em si. As aimas, a
alma de Sócrates, por exemplo, existem em um
tempo e não em outro — ainda que, não
tendo partes, não se pode dizer que sejam geradas
ou que pereçam. Contudo, já que são e não são em
diferentes tempos, tais almas não podem ser
motores imóveis, pois deve haver alguma causa
superior à sua existência e não-existência.
Como são contínuos, os processos de geração e
decadência, no mundo, não podem ser explicados
por qualquer motor imóvel que não exista num
tempo qualquer. Nem podem, a eternidade e a
continuidade desses processos, serem causadas por
qualquer combinação desse motor imóvel, pois a
relação causal requerida, tem de ser eterna e
necessária. Consequentemente, é necessário um
motor imóvel, supremo e todo-inclusivo - um
único, pois é melhor assumir um adequado, em vez
de muitos. Além disso, o movimento é eterno;
qualquer coisa eterna não é meramente sucessiva,
mas contínua; um movimento contínuo não é
plural, mas singular; e um movimento pode ser um
e único somente se o motor for singular.
O primeiro movimento

Antes de chegar a uma conclusão, Aristóteles volta


sua atenção do primeiro motor para o movimento
primeiro ou primário. A locomoção foi provada
como sendo primária no sentido de que
crescimento, alteração e outras formas de mudança
não podem ocorrer sem seu concurso, embora ela
mesma possa ocorrer sem nenhuma delas. A
digestão, por exemplo, requer a tomada de alimento
para o estômago. Aristóteles afirma mais, que a
locomoção é a primeira também no tempo; embora,
se as condições terrenas de crescimento e
decadência tiverem sempre existido, parece
impossível que a locomoção ou qualquer tipo de
movimento possa ter sido literalmente primeira no
tempo. Pode-se admitir, entretanto, que para
objetos eternos — as estrelas e planetas são
individualmente eternos, enquanto que objetos
sujeitos a crescimento e decadência não são - a
locomoção é o único movimento possível. Além
disso, com referência à teoria da
continuidade, Aristóteles sustenta que somente a
locomoção pode ser contínua e eterna e,
da locomoção, somente o movimento rotatório.
Sendo o universo finito em extensão, tal como
Aristóteles argumentou, qualquer objeto, movendo
em linha e não parando antes, poderia chegar ao
fim do universo, ser forçado a parar seu movimento
à frente por um momento, e a assumir um
movimento de retorno. O momento de repouso e
mudança de direção, tal como Aristóteles mostrou
de sobejo, quebra a continuidade. O movimento
rotatório, entretanto, por ser contínuo, e continuar
sempre sem ser quebrado, é o movimento primário
e eterno, tal como podemos ver com nossos olhos,
em uma noite sem nuvens.

A causa dessa rotação eterna é o primeiro motor


imóvel. Ele não pode ter magnitude, pois, entre
muitas razões, uma magnitude infinita não pode
existir e uma magnitude finita não pode causar um
movimento infinito.

De acordo com isso, concluindo, existe um


movimento singular contínuo de uma singular
magnitude movida por um motor. Se esse motor
estivesse em movimento, requereria outro
motor, ad infinitum. Consequentemente, este é
o motor imóvel. Ele causa movimento eternamente,
pois, sob tais condições, nenhum esforço é
necessário. (Se nenhum esforço é necessário, por
que não um motor de magnitude finita causar o
movimento eterno?) Já que o movimento está em
círculo, o motor tem de estar no centro ou sobre a
circunferência. E posto que uma circunferência se
move mais rapidamente do que qualquer esfera
interior, e que os movimentos mais rápidos têm de
estar mais próximos do motor, o motor, não tendo
magnitude, está localizado na circunferência.

Deus

Poucas páginas atrás, onde a explanação do


movimento imergiu na prova do motor imóvel, foi
afirmado que estava em pauta a existência de Deus.
Mas no livro VIII da Física, tal como acaba de ser
esboçado, não palpita fervor religioso, nem parece
descrever o motor imóvel como tendo aquelas
características divinas historicamente atribuídas ao
Deus da tradição judeu-cristã. Será interessante, no
entanto, quando chegarmos ao período medieval,
século 13, ver como Tomás de Aquino utiliza
Aristóteles para propósitos cristãos. Por
pouco promissor que Aristóteles pareça a esse
respeito, e tão fundamentalmente irreligioso como
ele obviamente é, há uma ou duas frases
na Metafísica e no De Anima que fogem ao
comum. Além disso, naMetafísica ele responde à
questão bastante natural: como pode algo que não
está em movimento causar movimento?
Mesmo que algumas coisas do argumento sejam
repetições, um breve sumário não será ruim.

As substâncias, diz Aristóteles, são as primeiras das


coisas existentes, e, se elas são todas destrutíveis, o
universo seria destrutível. Mas o movimento
não pode ser destruído; tem de existir sempre. De
fato, há uma rotação contínua e eterna. Portanto, a
causa do movimento tem de ser atual, pois a mera
potencialidade não precisa, necessariamente,
exercer seu potencial, e isso implicaria
a possibilidade da cessação de movimento. A causa
tem de ser, portanto, atualidade eterna, imaterial,
imóvel. Um motor imóvel pode causar movimento
por ser objeto de desejo, tal como uma bela pintura,
em uma galeria de arte, causa muitas pessoas se
moverem em sua direção. Esse apelo ao desejo, em
tal objeto especulativo, não é tão inapropriado
quanto parece, porque os objetos primários do
desejo e do pensamento são os mesmos. O objeto
primário do desejo racional é o bem, e o desejo é
consequência da opinião, e não o contrário. Isto é,
nós desejamos um objeto que pensamos ser bom;
não pensamos um objeto bom porque o desejamos.
O pensamento é movido pelos objetos do
pensamento; entre tais objetos está o bem; e o
primeiro desses objetos é a substância. Isto é, o
supremo objeto do desejo e o supremo objeto do
pensamento coexistem e, na verdade, são o mesmo.
O motor imóvel, portanto, produz movimento por
meio de ser amado.

Os céus e o mundo da natureza dependem de tal


princípio. A vida que está ali é uma vida de
estímulos, percepções e pensamentos que os
homens são capazes de desfrutar apenas por um
curto período. O pensamento e o seu objeto
correspondem: os melhores pensamentos pensam
os melhores objetos. O pensamento também pensa
em si mesmo, pois compartilha a natureza do objeto
do pensamento, uma vez que ele se torna objeto do
pensamento quando pensa seus objetos.
Desse modo, os pensamentos e os objetos do
pensamento são os mesmos. Uma vez que a posse
atual é melhor do que a habilidade vazia, o ato da
contemplação é perfeita felicidade. Deus sempre
contempla, e, portanto, a vida pertence a Deus, pois
a atualidade do pensamento é vida, e Deus é essa
atualidade. Portanto, vida e duração, contínuo e
eterno, pertencem a Deus, pois isto é o que Deus é.

A seguir, a natureza do pensamento divino precisa


de alguma clarificação. Se o pensamento do motor
imóvel depender de um objeto externo, sua
substância não será ato, mas potência do
pensamento, e assim, não será a melhor
substância. Terá de pensar em si mesmo ou em
outra coisa mais. Não poderá pensar em
outra coisa, pois o pensamento de objetos maus,
obviamente, detrairia o valor da sua vida divina e,
mesmo objetos relativamente bons, seriam
inferiores a ele. Porém, uma vez que a vida melhor
consiste em pensar somente nos objetos melhores,
ele mesmo tem de ser o único objeto de seus
pensamentos; e uma vez que sua substância e
essência são pensamentos, seu pensamento é um
pensamento sobre pensamentos. Isso parece
estranho e quase impossível, pois, ordinariamente
na vida humana, o pensamento primeiro tem outro
que não ele próprio como objeto, e ele
próprio somente como objeto secundário. Porém,
até mesmo no pensamento humano, há casos em
que o objeto é o próprio conhecimento. A objeção
ocorre porque muito da experiência humana lida
com objetos materiais, mas nem sempre é assim,
pois no caso de fórmulas teóricas ou conceitos
universais, em que toda matéria é excluída, o ato de
pensar é o próprio objeto. Visto que, portanto, o
motor imóvel é uma forma pura imaterial, seu
pensamento e seu objeto serão idênticos.

Tais reflexões sobre a natureza do pensamento


divino devem ser concluídas com uma referência
ao De Anima. Neste tratado sumamente
interessante, Aristóteles estuda a alma humana em
todas as suas funções. Ele a define como a forma
orgânica do corpo humano, descreve nutrição e
crescimento, explica o processo de sensação e
imaginação, e finalmente chega ao
pensamento. Pensamento é como sensação no
sentido de que um objeto tem de atuar sobre a alma
ou o intelecto. Assim, o intelecto é receptor da
forma e potencialmente seu objeto. Ter a própria
forma, tornaria impossível o pensamento, pois tal
forma impediria ou distorceria a recepção de outras
formas; consequentemente, o intelecto passivo,
antes que pense, é atualmente, nada. Entretanto,
esta não é a história toda. Tal como na natureza em
geral, aqui também o potencial em via de vir a
ser requer um agente ou causa, que ele mesmo
produz. Portanto, além do intelecto passivo, tem de
haver um intelecto ativo - um intelecto agente
para atualizar as formas em que o intelecto passivo
se torna em pensamento. Essa atualização é como a
luz incidindo nas cores e tornando-as visíveis; ou,
para levar adiante uma analogia sem sentido, é o
desembaraço das formas ou conceitos, das imagens
sensoriais pelas quais elas primeiro vieram à mente
humana. Assim, o intelecto ativo é similar, ou
idêntico à “intuição”, proposta em Analítico
Posterior, por meio da qual, os conceitos são
formados na consciência.

Contudo, não fica claro que Aristóteles tencionasse


que o intelecto ativo fosse, estritamente falando,
uma função humana. Em tempos medievais, os
árabes e Tomás de Aquino se opuseram, os árabes
afirmando que haveria um único intelecto ativo
para todos os homens (tornando impossível a
imortalidade pessoal), e Tomás, naturalmente
dissentindo e afirmando que cada pessoa teria o
seu próprio. O próprio Aristóteles foi breve e vago,
talvez, deliberadamente, evitando o problema. De
qualquer modo, ele disse que o intelecto ativo é
separado, impassível e sem mistura; ele não
apresenta intermitência em seu
pensamento; somente ele é imortal e eterno; e, dado
que é puramente imaterial, a razão, e somente a
razão, põe o homem em contato com o exterior,
pois nenhuma atividade corpórea pode estabelecer
esse contato.19 Quando examinado de perto, não
é nada fácil harmonizar aMetafísica com o De
Anima; o último traz Deus - se o intelecto ativo for
Deus - para perto do homem e o envolve em grande
parte do conhecimento humano; mas isso parece
excluído da Metafísica. Contudo, se os árabes,
Zabarella, e o comentarista grego Alexandre
estiverem corretos, essa obscura passagem, no De
Anima, deve ser incluída na teoria do motor
imóvel, que, em sua totalidade, é o ápice do sistema
aristotélico.

FORMA E MATÉRIA

A fim de enfatizar o argumento que procedeu da


definição da natureza como sendo o princípio de
movimento e repouso para o motor imóvel,
alguns temas aristotélicos importantes não foram
diretamente tratados. Em particular, não foi feito
um relato sobre forma e matéria ainda que fossem
assumidos e mencionados.

As quatro causas

Começando com o problema da explicação da


geração, decadência e cada tipo de mudança física,
Aristóteles elabora sua teoria das quatro causas,
das quais forma e matéria são as principais. Não se
diz que alguém conhece uma coisa, ou é capaz de
explicá-la, até que tenha apreendido o “por que”,
ou causa, dessa mesma coisa. As dificuldades para
explicar geração são tão grandes que alguns dos
primeiros filósofos chegaram a negar sua
possibilidade. Todo vir a ser, eles argumentavam,
tem de surgir do ser ou do não-ser; mas um ser não
pode surgir do ser, pois já é e não precisa surgir;
nem surge do não-ser, pois alguma coisa precisa
estar presente como substrato. O que é não pode vir
a ser; o que não é não pode produzir algo. A
solução de Aristóteles para o paradoxo é que o ser
do qual qualquer coisa vem a ser é ambos, ser e
não-ser, mas em diferentes sentidos. Aquilo que é
tanto ser quanto não-ser é matéria, e a material é
uma das quatro causas. “Aquilo de que uma coisa
vem a ser e que persiste em ser é chamado de
causa, por exemplo, o bronze da estátua, a prata da
salva, e o gênero do qual bronze e prata são
espécies.” O bronze existe, ou é ser, enquanto
substrato da geração; mas é não-ser enquanto não
for estátua. Em um nível mais baixo, a terra ou o
metal do qual o bronze é feito, é sua matéria, e,
nessa relação, é sua forma. Em um nível ainda mais
baixo, os próprios elementos são formas impostas
sobre uma primeira matéria, a qual, entretanto, não
é fisicamente separável. Então, estendendo o
sentido de causa material além dos objetos físicos
brutos, pode-se dizer que as letras são a matéria das
sílabas, e premissas são a matéria das conclusões.

A segunda das quatro causas é a formal. Para


continuar o exemplo citado, a forma seria o que
quer que a estátua fosse, Zeus, por exemplo, ou um
sátiro. Os outros exemplos, entretanto, mostram
que forma não é tanto a figura física de um objeto
quanto é a essência ou a definição de um objeto. É
o que o objeto realmente é. A forma de um oitavo é
a razão de dois para um. A forma de uma árvore é o
tipo de árvore que ela é — uma forma imposta à
sua matéria. A alma é a forma do corpo orgânico. E
tal como no nível mais baixo há uma
primeira matéria, assim também, no mais alto nível,
o motor imóvel é uma forma pura inteiramente à
parte de qualquer matéria. Forma requer extensa
explanação, mas primeiro devemos alistar as outras
duas das quatro causas.

A terceira causa, chamada de causa eficiente, é a


fonte primária de mudança; por exemplo, o pai é a
causa eficiente do filho, o escultor, da estátua. A
quarta causa é a causa final — final no sentido de
ser aquilo por causa do qual a coisa é feita; tal
como a saúde é a causa do exercício físico. Por que
alguém se exercitaria? A. resposta ou a explanação
peia qual entendemos sua atividade é que tal pessoa
deseja manter a saúde. Sob reflexão será notado
que as causas formal, eficiente e final são a mesma.
A causa formal da estátua era Zeus; a causa
eficiente é tida como sendo o escultor, mas, mais
exatamente, é a forma de Zeus na mente do
escultor; e a causa final ou o objetivo da atividade é
também a forma de Zeus. O mesmo pode ser dito
do exercício, pois o fim é saúde e saúde é a forma
do homem. Portanto, em um sentido, há duas
causas ou duas partes da explanação de qualquer
coisa; forma e matéria. Para um entendimento do
aristotelismo, estas duas causas e a relação entre
elas têm de ser estudadas com cuidado, e
o primeiro ponto será o significado da forma como
causa final. A esse respeito, houve uma lacuna no
capítulo sobre Platão, que precisa ser agora
preenchida, além de uma referência a Demócrito,
para contraste.

Teleologia

No Fédon, Sócrates lamentou que Anaxágoras


tivesse prometido e falhado em fornecer uma
explanação teleológica da natureza; e, certamente,
Demócrito sequer prometeu: ao contrário, insistiu
em uma análise estritamente mecânica de todo
fenômeno. Qualidades tais como quente e frio
foram definidas mediante a figura geométrica e o
arranjo dos átomos; conceitos de classe, tais como
planta e homem, teriam recebido definições
similares em caráter; e eventos naturais, tais como
clima, nutrição, sensação, e daí em diante, seriam
explicados somente em termos mecânicos. A
natureza não exibe propósito, e, se os homens
têm propósitos, eles são, meramente, mecanismos
mais complicados.
Para Platão, isso era insatisfatório. Se a realidade
era inteiramente física, talvez o mecanicismo fosse
aceitável, se pudesse escapar ao ceticismo sofista;
mas, se as Ideias constituíssem a realidade, não
apenas o mecanicismo estaria descartado, mas uma
possibilidade melhor seria provida. O mecanicismo
não explica Sócrates assentado, na cadeia,
conversando com seus amigos; propósito explica.
Igualmente, clima, sensação e todos os conceitos de
classe têm de ser entendidos ideologicamente. As
Ideias são propósitos; propósito é o que
conhecemos quando conhecemos alguma coisa.
Suponha que um último modelo de automóvel
tivesse um novo acessório e que perguntássemos o
que é ele. Se o vendedor ou o engenheiro
desse uma descrição mecânica, nos mínimos
detalhes, reproduzisse seu projeto em palavras,
enumerasse suas roldanas e mancais, e traçasse seu
circuito elétrico, ou o que mais tivesse, ainda assim
não saberíamos para que serve o apetrecho.
Porém, se ele dissesse que é limpador de para-brisa,
um novo relógio ou velocímetro, um para-choques
com maior poder de absorção de choques, então,
nós estaríamos satisfeitos. Conheceríamos quando
conhecêssemos o propósito. O que é isto? É seu
propósito. O propósito define a coisa. A Ideia é o
propósito.

As formas de Aristóteles, tal como as Ideias de


Platão, são propósitos, e toda a ciência é
teleológica. Tome a chuva, por exemplo.
Demócrito teria dito que ar úmido e morno
necessariamente sobe - uma ação estritamente
mecânica; quando é esfriado nas camadas mais
altas do ar, ele condensa e cai como chuva. Se
chover sobre um campo de trigo, o trigo crescerá
em função de necessidade mecânica; mas a chuva
não cai com o propósito de produzir o trigo.
Algumas vezes, a chuva cai sobre uma seara
madura e estraga a colheita. Ninguém diria que a
chuva caiu com o propósito de destruir o trigo; é
simplesmente um caso de necessidade mecânica.
Semelhantemente, homens e animais têm
dentes mediante um processo natural de
crescimento; e tendo dentes, homens e
animais mastigam; mas os dentes não crescem para
o propósito de permitir que o homem mastigue. Ou,
a visão teleológica pode ser ridicularizada, tal como
Voltaire fez, sugerindo que narizes foram feitos
com o propósito de apoiar os óculos.

Ora, diz Aristóteles, é impossível que uma teoria


mecanicista seja verdadeira. E a razão de ser
impossível envolve uma teoria da natureza na qual
a forma é o fator dominante. Mecanicistas,
insistindo na necessidade e inviolabilidade da
lei matemática, negam a opinião popular de que
algumas coisas ocorram por acaso. Mas Aristóteles,
mais próximo de uma concordância com a
observação atual, distingue entre processos
naturais, tais como a revolução das estrelas, que
ocorrem sempre da mesma maneira, e outros,
igualmente naturais, tal como o crescimento das
plantas, que são regulares ou comuns, mas não
estritamente invariáveis. Nesses últimos processos,
ocorrem exceções ou irregularidades, tais
como mutação nas plantas ou aberrações da
natureza, tal como um bezerro com duas cabeças.
Em questões de deliberação humana, existem mais
irregularidades ainda, algumas das quais são sorte,
como no caso do homem que vai ao mercado
e acidentalmente encontra um devedor que acerta a
dívida. Irregularidades podem ocorrer quando o
processo normal não se atém a sua finalidade
natural, ou quando o fim chega fora do processo
normal. Regularidade, ao contrário, é o processo
atualmente produzindo um fim. A natureza é como
a arte: começa com uma matéria e produz uma
forma. Se a natureza pudesse fazer crescer uma
casa, procederia segundo os princípios
arquitetônicos usados pelo construtor; e se
a arquitetura pudesse construir uma árvore, seria
paralelo aos estágios naturais.

Retornando ao um exemplo anterior, as


chuvas de primavera, dado que permitem exceções,
não podem ser explicadas ou entendidas em termos
de mecanismos invioláveis; mas, uma vez que
sejam regulares e não sejam, elas mesmas,
excepcionais, não poderão ser elementos do acaso;
consequentemente, eles são propositais. No caso de
formigas e aranhas, a evidência de ação proposital é
muito forte para ser negada; e, se for admitida
nesses casos, a teleologia não poderá, em princípio,
ser negada.
Ou, tome o caso da vida em geral. Uma explanação
físico-química da vida provavelmente tentaria
reduzi-la a alguma forma de oxidação, e
Aristóteles, usando termos antigos, pergunta se a
vida poderia ser explicada em termos de fogo. As
seguintes razões implicam uma resposta negativa.
Um primeiro fogo pode ser feito para tomar
qualquer formato. Há fogueiras circulares. Mais
uma vez, para queimar um campo de capim, o autor
derramou gasolina ao longo de suas bordas, e o
fogo teve, por algum tempo, o formato de retângulo
oco. Obviamente poderá haver toda sorte de
formatos. Poderá também haver toda sorte de
tamanhos, produzidos apenas mediante a adição de
mais combustível. Se o suprimento é mantido, não
haverá limites para o tamanho do fogo. Na vida,
porém, existem limites. Até mesmo a mulher gorda,
no circo, embora não mantenha a plástica, ainda
reterá um formato reconhecidamente humano.
Tempo antes de acabar o suprimento de comida ela
deixará de aumentar seu tamanho e peso. A
diferença entre fogo e vida, portanto, é a forma que
controla o tamanho e o peso dos seres vivos. A
menos que entendamos o processo da natureza
como sendo teleologicamente dirigido, teremos
perdido o ponto principal. Até mesmo o próprio
fogo é proposital, e dirigido por uma forma; mas é
a forma que controla a direção de seu movimento, e
não o tamanho e o peso. A forma suprema que
cobre todos os processos de propósitos subsidiários
é o Motor Imóvel, a causa última de todas as
mudanças.

Assim, em oposição ao mecanicismo, a causa ou a


explanação de qualquer fenômeno natural é um
propósito a ser obtido no futuro, em vez de um
evento ocorrido no passado. Conquanto os
mecanicistas afirmem que os eventos passados são
causa porque necessitam de seus efeitos, os fatos
são ao contrário. Nenhum evento passado ou
condição necessita de algo. Enquanto houver uma
distinção entre o evento chamado de causa e o
evento chamado de efeito, enquanto estes dois
estiverem separados por um intervalo de tempo,
será possível que o efeito não ocorra. Os
mecanicistas poderão dizer que comer alimento é a
causa da nutrição e do crescimento. Mas
obviamente, no caso das doenças ou da morte, uma
boa refeição imediatamente antes não causa o
efeito. Ou, para usar o exemplo de Aristóteles, o
fato de tijolos, madeira e serra existirem, não
implica que a casa seja construída. Porém, se uma
casa deve ser construída, os tijolos, madeira e
ferramentas têm de necessariamente preexistir.
Causalidade, portanto, opera a partir do futuro para
o presente ou passado, e não do passado para
o futuro. A causa ocorre depois do efeito, não antes
dele. Essa é a característica da explanação
proposital, em oposição à teoria mecanicista, agora
demonstrada como sendo insustentável.

O presente relato da forma, enfatizando a antítese


entre teleologia e mecanicismo - um objeto de
contenção tão moderno quanto antigo - tem
sido mantido próximo das coisas de interesse
científico. Pelo menos, ele não tem cruzado os
limites entre física e metafísica. Uma seção
conclusiva sobre matéria nos levará um pouco mais
adiante no misterioso território além.

Matéria e geração
Matéria, como já foi dito, é o substrato da geração;
sem esse conceito seria impossível obter uma
explanação da mudança. Por exemplo, o quente
não produz frio; mas uma coisa quente pode se
tornar fria. Mudança requer uma coisa, um
substrato, ou uma matéria que possua uma dada
qualidade ou forma em um momento e uma forma
contrária, em outro momento. Se a matéria
não permanecer a mesma durante a mudança,
“coisa nenhuma” mudará. Assim, descrevendo a
matéria como um substrato, um objeto a que as
formas se prendem, e, pelo menos uma vez, como
uma realidade, Aristóteles parece assegurar
alguma independência à matéria. Entretanto,
qualificações suficientes são aditadas a fim de
evitar este erro. Posto que a matéria é, em si
mesma, indeterminada, ou talvez melhor,
indeterminação, isto é, sem uma forma própria;
posto que ela não pode existir por si mesma, mas
apenas em combinação com uma ou outra forma;
posto que seja o contrário da forma, e que seja
potencial em vez de atual, a matéria deveria ser
considerada como recaindo sob a categoria de
relação, tal como, de fato, Aristóteles indica
na Física II, 2. Entretanto, mesmo esta
classificação a toma real demais, pois pares
relativos estão, ordinariamente, em linha, como é o
caso — um elemento é tão real quanto o outro;
visto que a matéria é indubitavelmente inferior à
forma, o seu contrário, em vez de seu correlativo.

A mudança qualitativa de quente para frio,


entretanto, não exemplifica o problema de maneira
tão acurada como o faz a mudança substancial. Por
mudança substancial se quer dizer uma mudança
dentro da categoria de substância. Quando a água
se torna quente, ou quando a planta se torna
verdade, a mudança é qualitativa; em tais casos,
dizemos que alguma coisa se tornou isso ou aquilo;
mas há outros casos quando algo vem a ser em um
sentido não qualificado. Aristóteles escreve: Em
mudanças qualitativas, “o bronze ora é esférico ora
angular, e ainda assim, permanece sendo o mesmo
bronze. Porém, quando nada perceptível permanece
em sua identidade como substrato, e a coisa muda
em sua totalidade (quando, por exemplo, a
totalidade do sêmen é convertido em sangue, ou
água em ar, ou a totalidade do ar em água), tal
ocorrência já não é mais alteração’. É o vir a ser de
uma substância e o desaparecimento de
outra...”20 Logo antes, ele havia escrito: “Temos de
considerar se há qualquer coisa que venha a ser
e desapareça em um sentido não qualificado; ou se
nada vem a ser, nesse estrito sentido, mas tudo vem
a ser algo e vem de alguma coisa - quero dizer,
por exemplo, vem a ser saudável a partir de estar
doente... Pois, se existisse um Vir a ser’ sem
qualificação, ‘algo’ deveria, sem qualificação, ‘vir
a ser a partir de não-ser’, de forma que seria
verdadeiro afirmar que não-ser é um atributo
de alguma coisa. Pois, vir a ser qualificado é um
processo a partir de um não-ser qualificado (por
exemplo a partir do não-branco ou não-belo), mas
vir a ser não qualificado é um processo a partir de
um não-ser não qualificado.”21

Se as últimas palavras fossem tomadas literalmente,


significaria que a realidade poderia vir a existir a
partir de absolutamente nada. Essa não é a intenção
de Aristóteles, embora a matéria do vir a
ser substancial fosse tão próxima do nada absoluto
que Aristóteles tivesse problemas para prevenir que
tudo desaparecesse. “Eu defino matéria”, ele diz,
“como aquilo que, em si mesmo, não é uma coisa
nem uma quantidade nem qualquer das categorias
do ser”.22 Para prevenir essa tênue não-realidade de
ser um nada parmenidiano, Aristóteles chama-a de
potencialidade. Nas outras formas de mudança, a
matéria é uma realidade atual em algumas relações,
e é potencial somente em referência ao seu novo
atributo, tal como a estátua potencial é bronze
atual; mas a matéria de vir a ser substancial é
inteiramente potencial e, de maneira nenhuma,
atual.

Indubitavelmente, Aristóteles tenta mitigar as


dificuldades tão evidentes em tal construção,
insistindo que o vir a ser substancial de uma
realidade é sempre a destruição de outra: “Mas
sobre tal absoluto não-ser, alguém tem de perguntar
se é ou não um de contrários - por exemplo, seria a
terra, pesada, um não ser, enquanto o fogo, leve,
seria um ser? Ou, ao contrário, ‘aquilo que
é’ incluiria igualmente a terra e o fogo, enquanto
‘aquilo que não é’ seria matéria -a matéria da terra
e do fogo da mesma maneira? Outra vez, seria
diferente a matéria de cada um? Ou é a mesma,
uma vez que, de outra maneira, eles não poderiam
vir a ser reciprocamente a partir um do outro, isto é,
contrários a partir de contrários? Pois tais coisas,
terra, ar, fogo e água, são caracterizadas
pelos contrários. Talvez, a solução seja que suas
matérias sejam, em um sentido, a mesma, mas, em
outro sentido, diferente. Pois, aquilo que lhes
subjaz, qualquer que possa ser a sua natureza
subjacente, é o mesmo; mas seu ser atual já não é o
mesmo. Isto já é suficiente para este tópico”.23 E tal
suficiência já é bastante difícil.

Individuais e Deus

Posto que os quatro elementos sejam os corpos


mais simples, sua matéria subjacente é claramente
incorpórea e imperceptível. Um corpo é sensível e
tangível; a matéria não. Ser tangível significa
possuir certas qualidades; matéria é o oposto de
forma e, portanto, é, em si mesma, vazia de
qualidade. Porém, pior do que ser imperceptível,
sua falta de forma torna a matéria incognoscível.
Como pura potencialidade, ela não pode ser
apreendida pelos sentidos nem ser entendida senão
por analogia. E isto traz de volta um problema
apenas tocado de passagem. Na seção sobre Lógica,
foi dito que, para Aristóteles, as realidades
primárias eram coisas individuais; não homem, mas
Sócrates. Se tais coisas individuais não existirem,
nada mais poderá existir. Neste ponto, em vista das
relações peculiares entre as categorias, foi
levantada a questão de se coisas individuais
poderiam existir caso as outras categorias não
existissem. Essa questão, já que a
discussão sobre a substância primária e secundária
procedeu, desenvolveu-se no problema dedistinguir
entre realidades da mesma espécie. Para Piarão, a
Ideia Homem era real e Sócrates e Crito eram, no
máximo, meio-reais. Contudo, distinguir
entre essas semirrealidades pode não ser
importante. Contudo, para Aristóteles,
esses homens eram realidades primárias, e assim,
ambos eram homens e igualmente homens, tanto
Sócrates quanto Crito. Qual é, então, a fonte de sua
individualidade? A resposta infeliz de Aristóteles é
a de que a fonte da individualidade é a matéria. A
forma homem é a mesma em todos os casos;
consequentemente, apenas a matéria poderá
distinguir Sócrates de Crito. No entanto, uma vez
que a matéria é um não-ser virtual e é
incognoscível, as realidades primárias, as coisas
independentes e básicas do universo, estão além do
entendimento. E isso é bastante próximo
do ceticismo para causar qualquer temor
dogmático.

Contudo, há ainda outra complicação. As coisas da


experiência, os objetos naturais, são todas
composições de matéria e forma; abaixo dos
objetos naturais mais simples, os elementos, eles
mesmos compostos de matéria e forma, reside a
matéria pura que acabamos de discutir; agora, para
completar o equilíbrio, acima das realidades
primárias, Aristóteles concebeu seu motor imóvel
como forma pura, sem nenhuma matéria. Ele tem
de ser forma pura, pois é completamente atual e
não contém nenhuma potencialidade. Entretanto, se
for forma pura, esse ser supremo não poderá ser um
indivíduo, e não poderá ser uma realidade primária.
Logo, ele não será uma realidade secundária, uma
espécie, e, consequentemente, não será inferior a
Sócrates e Crito? Essa é uma inconsistência, que
requereria modificações importantes no sistema
aristotélico. Na verdade, exigirá um retorno à teoria
das Ideias, da qual Aristóteles desejava escapar.
Uma individualidade baseada na matéria é uma
coisa negativa, quase um defeito, em vez de uma
virtude excelente; uma individualidade que fosse
excelência e, consequentemente atribuível a Deus,
não poderia se basear na matéria. Ou, talvez, será
necessário negar individualidade a Deus e afirmar
que a realidade mais alta é o mais universal
conceito de classe - do que seguiria que
plantas, animais Sócrates e Crito seriam espécies de
Deus. Certamente há espaço, aqui, cara estudos
mais extensivos, tanto nos escritos de Aristóteles
quanto nos escritos da história subsequente.
4 - A ERA HELÉNICA
A história da filosofia grega é dividida em três
épocas bem demarcadas. Primeiro, o período pré-
socrático, estendendo-se de 585 a.C. a 399 a.C.,
caracterizado principalmente por um interesse na
cosmologia e na ciência, cujas dificuldades
chamaram a atenção para o ceticismo e a
epistemologia e, portanto, para a ética. O
“portanto”, aqui, isto é, a conexão entre ceticismo
e ética, é importante e torna-se mais óbvio na
sequência. O segundo período (385-323 a.C.)
produziu a grande obra sistemática de Platão e
Aristóteles. Estes dois homens, os grandes gênios
filosóficos que o mundo jamais viu iguais,
atacaram resolutamente o problema do
conhecimento, e em suas epistemologias
construíram imponentes sistemas de ciência,
política e ética.

A terceira época da filosofia grega, embora seja a


mais longa (300 a.C.-529 d.C.), é, frequentemente,
introduzida com desculpas. Nesses oito séculos,
não houve alguém à altura de Platão ou de
compreensão semelhante à de Aristóteles, e apenas
um se aproximou de tais ideais quase inatingíveis.
A era helénica, portanto, é geralmente considerada
como um período de decadência e, por isso, pode
ser apresentada de maneira abreviada, tal como
aqui, ou ser completamente omitida. Contudo,
considerá-la um desperdício sombrio configura
total incompreensão. Isso, por uma razão: foi
durante esse período cronológico que
o cristianismo assumiu controle da civilização
ocidental - um evento de não pequena importância.
Não obstante, de outro ponto de vista, o próprio
fato de o cristianismo ter sido um evento de
proporção sísmica mundial resultou em uma
subtração em vez de em uma adição de importância
para a história da filosofia, especialmente desse
tempo. Duas civilizações lutavam, uma contra a
outra: o paganismo grego, com seu impressionante
e inspirador passado intelectual, e a ainda não
bem conhecida revelação hebraica, com seu fervor
moral e religioso. Razões pedagógicas, então,
indicam a sabedoria de traçar, até o fim, a filosofia
puramente pagã, antes de retornar a novos temas.
Isso é feito mais facilmente do que se imagina em
princípio, porque, embora a luta entre os dois
mundos fosse violenta, o desenvolvimento da
filosofia grega continuou, virtualmente, sem
referência a novas ideias. De forma que, embora a
época helénica vá até 529 d.C., pode-se dizer que o
período medieval tenha começado cinco séculos
antes que a era anterior terminasse.

Ainda que se exclua o cristianismo, a era helénica


não terá sido um deserto sombrio. Comparar Platão
com Aristóteles, ainda mais com tal proximidade,
é um teste severo. Ainda mais severo, se for
considerado que os escritos filosóficos dos dois
séculos imediatamente seguintes a Aristóteles
foram todos perdidos, e que nosso conhecimento a
seu respeito tem de ser construído com base
em fragmentos, tal como foi o caso dos pré-
socráticos. O que restou mostra que havia homens
de força e brilho, cujas ideias merecem ser
consideradas. Então, no século 3o de nossa era,
Plotino, um grande homem, segundo qualquer
padrão filosófico, elaborou um sistema — uma
reinterpretação platônica das melhores ideias de
todos os filósofos anteriores - que pode bem ser
chamado de fim da filosofia grega.

Depois de Plotino, o espírito grego declinou rápida


e visivelmente. Somente Proclo (- 485) merece ser
mencionado; e quando Justiniano fechou a
escola pagã, em 529 d.C., não ocorreu a queima de
livros nem a calamitosa caça às bruxas que alguns
historiadores anticristãos apregoam, mas, antes, um
enterro decente de uma longa tradição já morta.

OS EPICUREUS

Se, por um lado, a era pré-socrática pode ser


caracterizada como científica, e se, por outro,
Platão e Aristóteles podem ser considerados
predominantemente, embora não exclusivamente,
epistemológicos, o principal interesse entre os
filósofos da era helénica foi ético. Isso não quer
dizer que ela tenha sido considerada desprovida de
atividade epistemológica e científica. Em primeiro
lugar, houve cientistas excelentes, tais como
Aristarco, Ptolomeu e Galeno, que
produziram vigorosos avanços em questões de
astronomia e medicina; mas, como
cientistas especiais, eles prestaram pouca atenção à
filosofia. Em segundo lugar, os
filósofos necessariamente lidaram com questões
científicas ou, pelo menos, cosmológicas; porém,
de maneira mais clara do que Platão e Aristóteles,
eles enfatizaram a conexão entre a ciência e os
problemas práticos da vida diária. Para ser
mais exato, a visão de Platão acerca do mundo
físico está relacionada à doutrina da imortalidade e
suas implicações éticas, e o estudo da física, para
Aristóteles, é em si mesmo uma virtude intelectual
essencial para a obtenção da felicidade. Mas os
pensadores helénicos, especialmente os epicureus,
estavam mais conscientes de que a busca da ciência
e da epistemologia era governada pela medida de
valor que tais assuntos pareciam ter em relação à
ética.

Superstição religiosa

Segundo os epicureus, o grande problema da


humanidade era o medo engendrado por
superstições religiosas. A religião consistiria, em
grande parte, da crença de que os deuses
recompensavam e, que, especialmente, puniam a
humanidade. O medo da punição na vida futura
tornava a presente vida insuportável. A fim de
evitar as maldições dos deuses, os homens
recorreram ao sacrifício humano, chegando ao
extremo de um homem matar a própria filha para
facilitar uma fuga e ter uma viagem próspera. A
religião, dessa maneira, seria a maior fonte do mal,
e a tarefa da fdosofia seria a de libertar as mentes
dos homens desse temor. Para isso, a suposição
básica e primeiro princípio têm de ser: “nada
jamais é originado de nada por meio de poder
divino”; e as implicações a serem deduzidas
incluem uma explanação atomista do fenômeno,
que descarta a teoria da providência.

A motivação ética antirreligiosa do atomismo é um


procedimento interessante.24 Homens de convicção
religiosa talvez sejam tentados a argumentar que,
uma vez que a negação da providência resulta em
atomismo, este terá de ser combatido a fim de
defender a providência. O cientificismo materialista
do século 19, entretanto, conquanto aceitando o
atomismo e rejeitando a providência, rejeitaria
qualquer motivação ética ou pessoal como sendo
inconsistente com os objetivos científicos. Ambas
as razões, no entanto, enfrentam
inesperadas complicações. Primeiro, talvez o
atomismo em si não seja
necessariamente inconsistente com a providência.
Não poderia Deus ter criado os átomos e ser capaz
de controlar seus movimentos? De qualquer
maneira, alguém poderia admitir que as religiões
pagãs fossem malignas e que Epicuro devesse ser
recomendado por suas tentativas para destruí-las.
Afinal, o populacho romano aceitava
juntamente ateus, epicureus e cristãos, em uma
comum condenação. Segundo, com respeito
a alegada objetividade, talvez os epicureus tivessem
admitido abertamente apenas aquilo que é
verdadeiro em todo sistema filosófico: que existe
uma motivação ética. Friedrich Nietzsche, que nem
sempre era insano, disse: “Para entender como um
filósofo chegou às asserções metafísicas mais
obscuras, será sempre bom e sábio perguntar: Qual
é a moralidade objetivada?” Se houver de existir
declarações indemonstráveis, tal como Aristóteles
admitiu, poderiam ser motivadas por outras coisas
mais do que as conclusões a que chegam?

Acaso e livre-arbítrio

Os epicureus adotaram o atomismo a fim de se


livrar da providência. A matéria e o infinito vazio
em que as partículas se movem são os
princípios fundamentais da natureza, e não há uma
terceira realidade, tais como ideias, formas ou
almas imateriais. Os átomos se movem sem
propósito ou sabedoria. Nenhuma mente ordenou
seu arranjo, mas, através do tempo, suas colisões
os têm organizado de todas as maneiras possíveis; e
o presente mundo nada mais é do que uma dessas
infinitas combinações ao acaso. O mundo não pode
ser obra de uma providência sábia porque contém
muitos defeitos óbvios.

Até este ponto, Epicuro meramente reproduziu


Demócrito, e se não fosse certa originalidade,
sequer seria incluído num livro de história da
filosofia.

Porém, com grande gênio, mesmo que nada


acrescentasse, ele alterou o sistema de Demócrito.
Segundo o último, os átomos individuais não têm
peso. Epicuro, entretanto, cria haver uma direção
descendente no espaço infinito25 e que os átomos
caíam, primeiro, em virtude do próprio peso.
Porém, se caem com as mesmas velocidades
através do vácuo, os átomos jamais colidiriam para
formar um mundo. Portanto, Epicuro afirma que,
em tais medidas incertas de tempo e sem nenhuma
causa, um átomo, desvia um pouco de sua reta.
Essa inclinação não-causada é bem discreta, tão
leve que não poderá ser vista; e porque o olho não
pode detectar a diferença entre uma queda
perfeitamente reta e uma suave oscilação, nenhuma
observação poderá refutar a teoria.

A motivação por trás da rejeição do mecanicismo


de Demócrito não é apenas uma necessidade de
colisão na produção de um mundo. A motivação é
principalmente ética. Uma vez que o homem, tal
como tudo na natureza, é uma combinação
de átomos, segue que, se átomos fossem
mecanicamente determinados, o homem não teria
livre-arbítrio; e, sem livre-arbítrio, não haveria
moralidade. Mecanicismo significa destino. O
indeterminismo permite-nos perseguir o prazer.
Portanto, o mundo deverá ser composto de
partículas que se movam inexplicavelmente por um
tempo não fixado e em uma direção não fixada.

Para prosseguir mais rapidamente para uma teoria


ética, os detalhes da ciência epicurista não poderão
ser mais do que uma breve amostra. De fato,
do ponto de vista epicurista, os detalhes da ciência
não são importantes. “Nada há no conhecimento de
surgimentos e composições, de solstícios e eclipses,
e de todo tipo de objetos, que contribua para a
nossa felicidade.”26 A carta de Epicuro a Pitocles,27
e o De Rerum Natura, de Lucrécio, apresentam
diversas explanações rivais de cada um dos muitos
fenômenos meteorológicos e sistemas
planetários, cada qual considerado como sendo
possível. Não era essencial determinar
qual explanação seria realmente verdadeira;
qualquer delas seria satisfatória, se fosse descartada
a providência e concedida a paz interior. Quando a
felicidade é posta imediata e prioritariamente em
foco, tal como é o caso de questões concernentes à
vida, o princípio é o mesmo, mas com maior
cuidado. A vida originalmente resulta de geração
espontânea. Alma e mente, como combinação de
minúsculas partículas atômicas, começam com o
nascimento, pois, se tivessem existido previamente,
tal como afirmou Platão, teríamos de ser capazes de
lembrar nossas vidas passadas. Assim como a alma
tem início no nascimento, assim também, na morte,
a combinação se rompe, suas partículas se
dispersam aqui, e então, a consciência desaparece.
A alma, isto é, a combinação, já não existe;
portanto, não poderá haver punição em uma vida
futura, nada havendo a temer.

Sensação

Posto que o atomismo, à luz do desenvolvimento


pré-socrático, parece envolver ceticismo, quanto às
questões de vida e alma, os epicureus deram
bastante atenção à sensação. A maneira como as
imagens se destacam das coisas, viajam pelo ar e
impingem aos olhos, como tais imagens são
revertidas e refletidas em espelhos, sua passagem
através do vidro e o julgamento de distâncias - tudo
isso e outras questões similares ocupam uma
importante seção do De Rerum Natura, de
Lucrécio. A motivação é sempre ética; pois, se o
ceticismo fosse admitido, não haveria uma verdade
ética. Ora, o ceticismo é contraditório. Aquele
que nada conhece não pode saber que nada
conhece. Os epicureus, portanto, tiveram de
providenciar, pelo menos, uma epistemologia
rudimentar cuja base é a sensação. Os sentidos dão
o primeiro conhecimento da realidade e não
podem ser refutados. A razão não pode contestar a
sensação porque aquela é mero desenvolvimento
desta. Se os sentidos forem falsos, a razão o será
ainda mais. Também, uma sensação não pode
refutar outra sensação. Os ouvidos não
podem negar os olhos nem uma sensação visual
contradizer outra sensação: elas são causadas por
diferentes imagens e, portanto, sem conflitos. Esta
colocação do conhecimento com base na sensação é
inteiramente consistente com a ética. De fato, é
requerido pela ética epicurista, pois a norma da
vida é o prazer, e este é sensação. Se o prazer não
for positivamente uma sensação, será a ausência
da sensação de dor; e dor é tão real que Epicuro
defendia a validade da visão e da audição com base
no fato de que são tão reais como a dor.28

Prazer

O objetivo da vida, então, é o gozo do prazer, pois


o prazer é o nosso bem primeiro e natural. Epicuro
não fornece praticamente nenhum argumento
para suportar essa proposição fundamental.
Certamente ele não tenta, de maneira especulativa,
construir um princípio normativo além da mera
declaração de fato. Não é tanto que o prazer deva
ser o alvo da vida, mas que a observação
mostra que o prazer é o alvo da vida. Todas as
coisas vivas, tão logo nascem, deliciam-se no
prazer e ressentem-se da dor, naturalmente e sem
raciocínio. Prazer é a regra mediante a qual nós
julgamos todas as coisas boas, e é o fator
determinante de todas as nossas escolhas e
aversões.29

Prazer, tal como já foi dito, não é uma sensação


positiva tanto quanto é a ausência de dor. Definindo
o prazer dessa maneira, os epicureus tentavam
evitar as dificuldades relacionadas à posição
cirenaica contemporânea, de indulgência nos
prazeres sensuais momentâneos. Havia uma
concordância verbal entre as duas escolas, de que o
prazer era o bem; mas, fora o fato de que os
cireneus estivessem menos interessados na
epistemologia do que os epicureus, os dois grupos
discordavam quanto ao significado do próprio
prazer e, portanto, recomendavam dois diferentes
estilos de vida. Para os cireneus, os prazeres
eram aqueles que produziam sensações mais
violentas e intensas, relacionados com o vinho,
mulheres e música. Nisto, eles eram talvez mais
próximos da conotação de prazer na linguagem
coloquial. Tais homens louvavam e viviam uma
vida selvagem e, até mesmo, bestial.

Epicuro, por sua vez, admitia que todo prazer,


incluindo o mais licencioso, fosse, em si mesmo,
bom. Não há diferença qualitativa entre prazeres,
mediante a qual alguém escolhesse ser honrado e
nobre e, outro, iníquo. Somente a quantidade conta.
Todos os prazeres são bons e todas as dores são
más. Porém, a partir de tal admissão, não se conclui
que devêssemos buscar indiscriminadamente todo
prazer ou evitar toda dor. Não é necessário muita
inteligência para ver que o curso da devassidão
frustra a obtenção de uma vida de prazeres; estes,
sem dúvida, existem, mas não serão satisfatórios.
Ao contrário, a vida licenciosa sofre
preponderância de dor. Tal como parodiou o moto
cirenaico: Coma, beba, e divirta-se, pois amanhã
haverá gota, cirrose hepática e delirium tremens.
Estes eram os resultados que os epicureus queriam
evitar, e para isso, distinguiam entre dois tipos de
prazer. Quando está bebendo água, a pessoa
certamente sente prazer; mas, quando a sede foi
saciada, ela experimenta um tipo de prazer
diferente. O primeiro é uma espécie de movimento;
o segundo possui certa estabilidade e, por essa
razão, é preferido. Os cirenaicos, em seu amor por
sentimentos de prazer intenso, aceitavam o
movimento, ou emoção, e isso envolve dor. O
prazer estável e maior não é a mistura de prazer e
dor, exemplificada no homem sedento, mas o
prazer puro, não misturado, da sede saciada, qual,
de fato, não é nada mais, nada menos, do que a
ausência de dor. Cícero argumenta que
definir prazer como sendo ausência de dor é uma
violação da linguagem comum e introduz confusão
na discussão. Os epicureus estavam enganados, e
embora essa definição não fosse a causa única, teria
sido mais sábio usar o termo prazer com menos
frequência, substituindo-o pela expressão ausência
de dor, ou pelo termo epicureu técnico, ataraxia —
calma, tranquilidade, compostura.

Distinta da visão dos cirenaicos, esta visão leva os


epicureus também a recomendar os prazeres da
razão, acima dos prazeres do corpo. É certo que
a própria razão é um corpo, uma coleção de
diminutos átomos situados ao redor do coração.
Dessa maneira, não há prazer que não seja sensorial
ou corpóreo. “Eu não sei”, disse Epicuro, “como
conceber o bem à parte dos prazeres do gosto, do
sexo, do som e da forma”.30 Outro fragmento
também cita: “O prazer do estômago é o começo e
raiz de todo bem”. O epicureu Metrodoro louvou
o comer e o beber como sendo superiores às
guirlandas gregas concedidas em virtude da
sabedoria, tornando os prazeres do estômago não
apenas começo e raiz, mas também a medida de
todo bem. Se a última ideia for estendida,
os prazeres da razão serão pouco mais do que
reminiscências e antecipação de boas refeições. As
declarações mais moderadas de Epicuro poderiam
significar que nutrição e saúde seriam pré-
requisitos para outros prazeres, maiores, mas
não independentes. Pelo menos, ele diz: “Uma
refeição completa dá tanto prazer quanto um
custoso jejum quando, depois, a dor da vontade é
removida. Pão e água conferem o maior prazer
possível quando trazidos aos lábios
famintos. Habituar-se, pois, a dietas simples e
inexpressivas é tudo o que é preciso para a saúde, e
habilita a pessoa a preencher os necessários
requerimentos de uma vida sem imposição de
limites. Coloca-nos em melhor condição para nos
aproximarmos de preciosas refeições, sem temor da
sorte”.31 Qualquer que seja o veredicto quanto à
consistência epicurista, e qualquer que sejam as
acusações de imoralidade pessoal e de degradação,
geralmente exageradas, e, frequentemente falsas,
não há dúvida sobre a aprovação de Epicuro, aos
mais valiosos prazeres da razão. Prazer não é uma
sucessão de rodadas de bebida, de amor sexual, de
pescados e outros regalos; antes, é o raciocínio
sóbrio, a busca das bases de cada escolha e de cada
abstinência, e a renúncia de crenças que lançam a
alma em tumultos. A prudência é o bem maior; não
podemos viver uma vida de prazer que não
seja também uma vida de prudência, honra e
justiça.32

Por “raciocínio sóbrio”, tal como citado, Epicuro


não quer dizer uma desinteressada investigação de
detalhes científicos. A educação geral
também parece abolida mediante o conselho:
“Jovem, evita toda forma de cultura”.33 A razão
sóbria, portanto, é uma busca das bases da escolha
e da abstinência, um cálculo das quantias de prazer
a ser derivado de cursos de ação conflitantes.
Esse é o meio segundo o qual honra e justiça se
tornam essenciais à boa vida. Para ser mais exato,
assim como os prazeres licenciosos não são maus
em si mesmos, assim também a injustiça, em si
mesma, não é um mal. A distinção entre justiça e
injustiça, em vez de ser absoluta ou natural, tal
como no platonismo, é meramente convencional; é
o resultado de pactos sociais e de concordância
recíproca. Não obstante, a justiça é essencial para a
boa vida porque “é impossível para um homem,
que secretamente viola qualquer artigo do pacto
social, sentir-se confiante de que permanecerá sem
ser descoberto, mesmo que já tenha escapado
dez centenas de vezes, pois, até perto do fim da
vida, ele não estará certo de que não será
descoberto”.34 Portanto, a injustiça produz a
perturbação mental que o homem sábio evita.
Semelhantes razões de prudência suportam o
cultivo de amizades. O egoísta é geralmente
retratado como um calculista mal-humorado e
solitário, mas o planejador inteligente não deixa de
aprender que a aspereza não produz prazer, que os
amigos são necessários em tempos de emergência,
que a posse de amigos remove o presente medo de
futuras emergências, e que, além disso, as amizades
são, em si mesmas, prazerosas. A teoria, é claro, é
egoísta: “As amizades são despertadas por nossas
necessidades”,35 e ninguém se importa com
outros, exceto para a própria vantagem. Ainda
assim, na prática, como quer que a teoria pareça,
Epicuro era pessoalmente distinguido por uma
atitude amigável em relação aos seus discípulos e,
segundo todos os relatos, o jardim escola em que
lecionava deve ter sido bastante prazeroso.

Contudo, se prudência e cálculo recomendavam


justiça e amizade, era o contrário com respeito à
família e à participação na política. “O intercurso
sexual jamais fez bem ao homem, e ele terá tido
sorte, se ainda não sofreu nenhum dano. O homem
sábio também não se casa ou constitui família
(exceto em circunstâncias especiais).”36 Filhos
constituem insensatez, e os cuidados do lar são
distrações. No entanto, Epicuro parece ter sido
simpático e afeiçoado às crianças que ele conhecia.
A vida pública é ainda mais perturbadora. Até
mesmo a política bem-sucedida está longe de
proporcionar tranquilidade e felicidade, para não
falar das frustrações e desapontamentos que sofrem
os aspirantes a ela, motivados por ambição e
luxúria, à cata de mundos para conquistar. A
obscuridade fornece melhores condições.

Morte

De todas as distrações, medos e dores a serem


evitados, o principal é o medo da morte e da
punição divina. Deve-se notar que os epicureus não
eram professa, ou literalmente, ateus. Eles eram
politeístas, tais como os gregos e romanos comuns.
Mas eles diferiam, no sentido de atribuir aos
deuses, em seu domicílio interestelar, uma
tranquilidade epicurista, sequer perturbada
por qualquer superintendência sobre os negócios
humanos. Como conceber tais deuses, que tipo de
corpos teriam — pois eles também teriam de ser
compostos de átomos - e especialmente, como
poderiam ser mortais e eternos, eram questões para
as quais as fontes existentes não proviam respostas
suficientes. Estes eram, ainda, pontos sobre os
quais o próprio Epicuro estava confuso.37 De
qualquer maneira, os deuses não modelavam o
mundo a partir de átomos; eles certamente não
criavam os átomos; e com exceção de aparições aos
homens, em sonhos, não interferiam na vida
humana nem recompensavam e puniam os homens.

Ora, se não há punição após a morte, uma vida


futura não será mais terrível do que a vida presente.
De fato, poderá ser bem melhor, pois, se os deuses
são eternamente felizes, por que os homens não
poderiam usufruir o mesmo? Logicamente,
portanto, para tal propósito, Epicuro não foi
compelido a negar a imortalidade ou a defender o
atomismo. Contudo, talvez houvesse uma
compulsão psicológica. Obcecado com as
superstições de sua época, talvez tentasse
obter dupla segurança, sentindo-se constrangido a
tornar a morte um termo da existência humana. Os
homens e todas as coisas vivas (exceto os deuses)
são temporariamente agregados de átomos. Na
morte, os átomos menores de nossa razão
escapam primeiro do agregado, depois, os átomos-
alma ligeiramente maiores, se dispersam e,
finalmente, os átomos comuns se desengajam do
corpo e este se desintegra em pó. Uma vez que
sensação, memória, raciocínio, e toda a consciência
e atividades mentais eram funções do agregado,
elas também cessam, e o ego ou eu se
desvanece. Mesmo que os mesmos átomos
pudessem ser, mais tarde, reestruturados em
um corpo humano, não seria a mesma pessoa, pois
nenhuma memória uniria as duas vidas.

Se aceita, essa visão descarta a punição divina em


uma vida futura, mas levanta outro problema.
Poderia um homem ser feliz agora, sabendo que
não tem futuro? Tal conhecimento não o faria se
sentir miserável? Não tornaria o epicurismo uma
forma de pessimismo?

Os epicureus tentaram responder tais questões em


três passos. Primeiro, Epicuro rejeitou o
pessimismo em relação à qualidade da presente
vida. Se o mundo fosse controlado por mecanismos
invioláveis, ou por destino, como dizem os
estoicos, nada estaria sob nosso controle, e
deveríamos ser pessimistas. Ou, entretanto, se não
houvesse regularidade nenhuma e todos os
eventos ocorressem por puro acaso, então, também,
nossos esforços seriam vãos. Mas Epicuro evitou
ambas as formas de pessimismo: a última,
afirmando que os átomos seriam, em grande parte,
mecanicamente determinados, e a
primeira, colocando que haveria desvios ocasionais
e não causados, nos quais o nosso livre-arbítrio
estaria baseado. Assim, o futuro não será
totalmente nosso nem será totalmente independente
de nós, mas nosso suficientemente para tornar
a vida prazerosa. Em segundo lugar, o pensamento
da morte não é mais uma causa para a depressão. A
morte não pode nos ferir, pois, quando ela chegar
é que nós vamos. Será tolice deixar-nos incomodar
agora acerca de um evento que, quando ocorrer,
não poderá nos perturbar.

Suponhamos que tudo isso seja verdadeiro: poderá


alguém ser feliz, mesmo que não creia em um
sofrimento após a morte, se souber que deixará
de existir? Não é a esperança da imortalidade,
necessária para a calma aceitação de nosso quinhão
presente? O terceiro passo do argumento é dirigido
a essa questão. Uma das Doutrinas Principais, de
Epicuro, diz: “Tempo ilimitado e tempo limitado
dispõem a mesma quantidade de prazer, se
medirmos os limites do prazer por meio do uso da
razão”.38 O que significa a frase: “se medirmos
os limites do prazer por meio do uso da razão”? Há
um sentido ao qual relativamente pouca objeção
pode ser feita. Se Epicuro estiver correto ao dizer
que a ausência de dor é o maior prazer, e que,
depois de havê-la alcançado, os prazeres
poderão ser variados, mas não aumentados, então
um último momento de tranquilidade não poderá
ser maior do que um momento anterior; já se terá
experimentado o máximo. Mas será que Epicuro
queria dizer também que um momento de máximo
prazer, julgado pela razão, é tão bom quanto dois
desses momentos? Esse sentido, que não aprova a
si mesmo, parece ter sido criado para servir
de argumento contra a imortalidade. Como Epicuro
diz, mesmo que “os homens escolham não apenas a
maior porção de comida, mas a mais prazerosa”,39
a maioria dos homens consideraria que duas
refeições prazerosas seriam melhor do que apenas
uma. Ou, mais exatamente, não apenas há uma
difundida crença na imortalidade, como há também
uma arraigada aversão à cessação da existência. O
melhor que Epicuro pôde oferecer é a promessa de
que sua filosofia removerá de nossa mente a ânsia
pela imortalidade. Mas tal promessa não é
facilmente sustentada. Corliss Lamont, um
humanista contemporâneo que tem tomado
emprestadas muitas ideias de Epicuro, em seu livro
O humanismo como uma filosofia, tem um capítulo
cujo título é: Esta vida é tudo, e é o
bastante. Porém, aparentemente não é bastante, e
Epicuro falhou em relação ao seu discípulo, pois
Lamont confessa: “Mesmo eu, descrente que sou,
seria, sinceramente, mais do que feliz, se
despertasse um dia para uma vida eterna que
valesse a pena” (124).

Zenão de Cítio deu início ao estoicismo mais ou


menos ao mesmo tempo (300 a.C.) que Epicuro
fundou sua escola rival, e os dois filósofos
continuaram em vigorosa existência corporativa,
até serem eclipsados pelo neoplatonismo. Ainda
assim, um resumo não fará menos justiça ao
estoicismo, do que ao epicurismo, pois, enquanto as
doutrinas de Epicuro eram propagadas por meio de
instrução catedrática, e sofriam pouca modificação
nas mãos de seus estudantes, a escola estoica era
composta de pensadores originais e independentes,
que não hesitavam em fazer quaisquer mudanças
que julgassem adequadas. Havia uma tendência
comum, e uma área de concordância, sem as quais
não haveria escolas para sumariar; mas as variações
interessantes, o desenvolvimento histórico e, até
mesmo, muito dos pontos de concordância serão
omitidos. Um pouco de Zenão, um pouco menos de
Cleantes (-232 a.C.), mais de Crisipo, presidente
e hábil reformador (232-206 a.C.), e uma breve
referência aos estoicos romanos, é tudo o que será
abordado.

Tal como os epicureus, os estoicos eram moralistas,


materialistas físicos, e empiristas com respeito à
epistemologia; mas com esta comparação bem
geral finda toda similaridade, pois eles não
partilhavam precisamente o mesmo
sensacionismo, nada do mesmo atomismo e
enfaticamente nada da mesma moralidade.

Contra o ceticismo

Em primeiro lugar, como pré-requisito da teoria da


moral, a verdade tem de ser obtenível. Zenão estava
tão distante da suspeição cética que
extravagantemente afirmou que o homem sábio
jamais entreteria uma mera opinião, jamais
voltaria atrás em uma decisão, jamais estaria errado
e jamais mudaria sua mente. A antiguidade inquiria
os estoicos se tal homem já teria existido. A
resposta geralmente era que Sócrates fora um
homem sábio e que teria havido outros que teriam
preenchido os requisitos. Se, entretanto, o Homem
Sábio é apenas um ideal jamais obtido na História,
tal como parece o caso, então as palavras de Zenão
tornam-se, infelizmente céticas, em outra
afirmação, de que somente o homem sábio poderá
conhecer alguma coisa. Com respeito a esta e a
outras declarações extremadas, a história do
estoicismo é um procedimento de polimento das
arestas e de tornar a coisa toda mais palatável ao
senso comum. Contudo, todos eles concordavam
em que a verdade seria baseada nas sensações.

Como os estoicos eram, de alguma forma,


materialistas, uma sensação, ou de maneira mais
acurada, uma representação, era, para eles, uma
impressão física sobre uma alma corpórea. Zenão
usou as palavras estampa e selo, sugerindo algo
como uma impressão de um sinete na cera. Cleanto
tomou sua ilustração de maneira literal e falou de
depressões e elevações em uma alma como que
de cera. Porém, porque esse literalismo levantou
problemas sobre as impressões simultâneas, e sobre
a memória, Crisipo disse que “impressão” seria
uma mudança qualitativa, de maneira que, tal como
o ar pode carregar simultaneamente sons e odores,
assim também a alma pode receber diversas
“impressões” ao mesmo tempo, sem confusão.

Entre as representações, algumas ilusórias e


enganosas, há um tipo, a representação
compreensiva, que garante a própria verdade. A
representação compreensiva é aquela que foi
estampada e selada por um objeto existente
da forma como realmente é, assemelha-se ao
próprio objeto e não poderia ter sido produzida por
nada mais. Assim como a luz se revela, não apenas
iluminando um objeto, mas a si mesma ao mesmo
tempo, assim também a
representação compreensiva se autentica.

Quando os céticos argumentaram que um critério


não poderá ser critério de si mesmo, os estoicos
replicaram que uma linha reta é norma de si
mesma, e de outras linhas, e que uma balança mede
a igualdade de pesos em seus pratos, tal como,
também, a própria igualdade. Além disso, se o
cético não usar algum critério em seu argumento
contra os estoicos, seu julgamento não será
confiável. Mas se possuir algum critério, o cético se
contradirá, aceitando um critério, a fim de repudiá-
lo. Assim, sendo necessária e autenticativa, a
representação compreensiva força sua colocação,
sendo o critério da verdade.

Diferente dos epicureus, que ficavam satisfeitos


com uma simples refutação do ceticismo, e uma
ingênua aceitação das sensações em geral, os
estoicos, que não se restringiam àquilo que é
imediatamente prático, desenvolveram mais
sua epistemologia. Eles fizeram uma elaborada
classificação de juízos; construíram uma teoria da
validade lógica; buscaram muitas distinções
meramente gramaticais; sua teoria de sinais, coisas
significadas, sentidos e semântica contrariavam
seu materialismo; suas investigações eram
aguçadas, variadas e detalhadas. Porém, à exceção
daquela parte de sua lógica, que combinada com a
física, estabelece a doutrina do destino, tudo
passaremos em triste silêncio.

Materialismo

Foi dito anteriormente que os estoicos e os


epicureus eram materialistas, mas tal declaração,
em si mesma, é mais desviante do que informativa.
Na verdade, apenas o corpo é real. As Ideias
imateriais, de Platão, e até mesmo, as Formas de
Aristóteles, eram abstratas, etéreas e, portanto,
irreais. A realidade é algo sólido, algo que ocupa
espaço, algo em que alguém pode bater com os
nós dos dedos. Há certos corpos, é claro, nos quais
não se pode bater literalmente com os nós dos
dedos, tais como o ar e o fogo, mas eles ocupam
espaço e são considerados atômicos. O campo de
força magnética também ocupa espaço, mas este
não é uma coleção de átomos, e alguém poderia
dizer que não é um corpo. Entretanto, a realidade
corpórea que constitui o universo, longe de
ser atômica em sua estrutura, é, segundo os
estoicos, mais como um campo de força; ela é um
contínuo, um fluido, um gás, ou, para fornecer a
identificação estoica, um fogo, que a tudo permeia.
Portanto, o mundo é estritamente um corpo, não um
agregado de muitos corpos. Essa noção de um
contínuo implica outra apresentação que distingue
o estoicismo, do epicurismo. Em um
atomismo pleno, as coisas vivas podem ser nada
mais do que particulares arranjos de
átomos discretos. Individualmente, os átomos são
inanimados; somente o grupo, a estrutura atômica,
a máquina, pode estar viva. Porém, no estoicismo,
o fogo universal é vivo; e, portanto, em vez de falar
de materialismo, seria mais preciso chamar
de hilozoísmo estoico. Obviamente eles não
ultrapassaram apenas Aristóteles e Platão; foram
além de Demócrito, e encontraram inspiração em
Heráclito.

Não obstante, Aristóteles não deixou de ter


influência, também. A despeito de que os estoicos
possam ser classificados com os primeiros monistas
corpóreos, a intrigante relação entre um e muitos, e
a forte insistência na confiabilidade da sensação e a
realidade das coisas ordinárias, levam-nos a colocar
grande ênfase nas diferenças dentro da matéria
universal. Assim, o monismo básico é feito para
acomodar um dualismo derivativo. Mais
importante, e análogo à matéria e forma de
Aristóteles, potencialidade e atualidade, é a
distinção entre agente e paciente. O paciente é a
matéria não qualificada, inerte, não inclinada, por
si mesma, ao movimento, mas pronta para se tornar
todas as coisas. O agente, ou causa, é a razão
informadora inerente à matéria, o fogo original em
seu estado puro, e, em contraste com a matéria, o
divino ser de Deus. Os monistas não são,
geralmente, muito claros a respeito de como tal
dualismo subsidiário surge da unidade prístina.
Parece estranho, para os oponentes, que uma parte
de Deus desdeifique a si mesmo.

Entretanto, como essa é uma crítica geral aplicada a


todas as formas de monismo e não apenas ao
estoicismo, e Parmênides já marcou o ponto,
faremos bem em considerar uma objeção mais
específica levantada pelo grande
comentarista aristotélico, Alexandre Afrodísio.
Para ele, a construção estoica, em particular, parece
implicar que seria possível para dois corpos, ocupar
o mesmo lugar, ao mesmo tempo — o que é
impossível. Ele escreve: “Podemos, com toda
razão, acusá-los de dizer que Deus está misturado
com a matéria... pois, se Deus é um corpo, como
eles afirmam, sendo um espírito inteligível e eterno,
e se a matéria é um corpo, então, em primeiro
lugar, será um corpo se estendendo através de um
corpo" ...40

Os estoicos, entretanto, estavam dispostos a admitir


que dois corpos podiam coexistir em um mesmo
lugar. Essa posição está intimamente ligada com a
teoria ética estoica. Platão, em oposição ao
materialismo de seus dias, argumentou: Virtudes
são reais; virtudes não são corpos; portanto, [pelo
menos, algumas] realidades são imateriais. Os
estoicos responderam: Virtudes são, de fato, reais;
toda realidade é corpórea; portanto, virtudes são
corpos. Contudo, se virtudes forem corpos, e se os
seres humanos são corpos, conclui-se que, em
um homem virtuoso, dois corpos coexistem num
mesmo espaço. Tal aplicação para a virtude é
apenas um exemplo do princípio geral. Plutarco, tal
como Alexandre, achava que tal fase do estoicismo
fosse uma perplexidade. Referindo-se à tese de que,
não somente as virtudes, mas todas as qualidades,
são corpos, Plutarco argumenta que, se fossem
corpos, as qualidades não precisariam de
nenhuma realidade à qual se ligar como atributo,
pois seriam reais em si mesmas.41 Assim, verde,
pesado ou coragem poderiam existir isoladamente,
tal como uma pedra, uma cadeira ou uma nuvem.
Plutarco, portanto, apontou uma dificuldade
no estoicismo, no fato de que eles chamavam a
matéria de não qualificada e, ainda assim, por causa
do seu materialismo, não estavam dispostos a
chamá-la de imaterial. Claramente esse
“materialismo” não pode ser atomista, pois
duas partículas discretas, duras e impenetráveis não
podem ocupar o mesmo espaço. Mas dois campos
de força podem interpenetrar; e dois fluidos
também parecem fazer o mesmo. Os estoicos
usavam uma mistura de vinho e água como
um exemplo numa argumentação.

Fatalismo

A teoria de um fogo original, tornando-se, em parte,


todas as coisas da experiência e, ao mesmo tempo,
permeando todas elas, é a base para a
doutrina estoica do fado ou destino. Os Fados eram
três seres mitológicos: Cloto, responsável por urdir
o fio da vida, Láquesis, a quem cabia medir a
extensão da tecedura da vida, e Atropo, que
correspondia ao corte do pano ou terminação
da vida. Mas o fatalismo, mesmo na época dos
estoicos, já havia dispensado os Fados. Em tempos
modernos, alguns escritores restringem o
termo fatalismo às visões deterministas que negam
a presciência e a providência divinas.
Agostinho, que viveu não muito tempo depois dos
estoicos, definiu o fado ou sina como uma ordem
necessária, excluindo a vontade de Deus e do
homem; mais tarde, ele disse que um tipo de
fatalismo seria mais tolerável do que uma
completa rejeição da presciência.42 Os epicureus
escaparam ao fatalismo mediante o desvio não-
causado dos átomos, mas Demócrito e os
mecanicistas modernos podem ser chamados de
fatalistas, pois negam que a natureza tenha um
propósito. Os estoicos, no entanto, foram chamados
e a si mesmos se chamaram de fatalistas, a despeito
do fato de eles mesmos afirmarem a providência
divina, pois mantinham que todos os eventos eram
determinados de antemão e que contribuíam para
o grande plano e propósito da natureza.

Deus e a sina

Essa combinação de determinismo e propósito


procede logicamente de suas concepções de Deus.
Nem o átomo inanimado de Demócrito e
Epicuro, nem, com toda a probabilidade, a água e o
ar dos jônios, poderiam prever o futuro, estabelecer
um plano, ou escolher um propósito. Mas quando
os estoicos enfatizaram a sugestão de Heráclito, de
que o fogo original fosse uma sabedoria, uma
razão, uma inteligência a dirigir o universo,
providência e propósito dificilmente poderiam ser
evitados, nem mesmo o determinismo o poderia
ser.

Se esse fogo vivo fosse néscio, ou se sua presença e


poder fossem limitados a determinados tempos e
lugares, então, deveria haver bastante liberdade
ou indeterminação, tal como as permitidas por
átomos desviantes. Contudo, Deus permeia todas as
coisas, e porque é razão, ele não muda sua mente.
Ele é o Logos universal. Pequenas centelhas do
fogo divino, os logoi, tal como sementes,
controlam o desenvolvimento de cada coisa. Assim,
Epiteto, aplicando sua teoria física aos problemas
da ética, disse que há um pequeno traço de Deus
em cada homem. Visto que a noção de uma
centelha divina em cada homem ainda encontra
aceitação em nosso século, é compreensível que o
panteísmo tivesse recebido grande reação popular
favorável, na Roma antiga. A tese de que o
universo é Deus e de que os homens são partes de
Deus (peixes ou vermes também, pois Deus não é,
em nenhum sentido, uma pessoa) possui um apelo
perene.

Causalidade universal

Os estoicos não basearam seu fatalismo sobre uma


simples inferência do panteísmo. Foram dadas
razões detalhadas. Em oposição aos epicureus, os
estoicos argumentaram que nada aconteceria sem
uma causa, e que o universo todo, passado e futuro,
estaria ligado em uma série infinita de causas e
efeitos. Crisipo, supostamente, teria dito que a
atmosfera nevoenta de Tebas tornava seus
cidadãos fortes e estúpidos, enquanto que o ar
rarefeito era responsável pela inteligência dos
atenienses. Certamente, os epicureus também não
negavam a existência de causas e efeitos. Mas
simplesmente apontar instâncias de tais ocorrências
não provava a série infinita, desejada pelos
estoicos. Cícero fez a réplica óbvia de que a
atmosfera ateniense não poderia explicar a razão
pela qual um ateniense se tornava um peripatético
e, outro, um cético. Contudo, Crisipo jamais quis
dizer que o clima seria a causa única. Há
considerações mais particulares.

Lógica e sina

É neste ponto que a lógica se combina com a física,


pois o determinismo parece uma implicação
derivada de um princípio básico lógico. Deodoro,
embora fosse um megárico e não um estoico,
apresentou esse bom argumento estoico. Toda
proposição é verdadeira ou falsa; portanto, uma
proposição verdadeira, colocada no tempo verbal
futuro, declara um evento inevitável, e uma
proposição falsa, no tempo futuro, declara uma
impossibilidade. Com respeito à declaração feita
em tempo verbal passado, é fácil reconhecer que
seu verdadeiro valor não pode ser mudado. O fato
de que Alexandre, o grande, morreu jovem é
verdadeiro, e não poderá ser feito falso. E óbvio
também que algumas declarações sobre o futuro
não poderão ser feitas falsas, tal como: César
morrerá. Porém, por que deveria ser de admirar que
algumas afirmações sobre o futuro sejam
imutáveis? “César morrerá” tem de ser verdadeiro;
então, por que não seria igualmente verdadeiro:
“César morrerá nas mãos de seu amigo nos idos de
março”? Tal evento é inevitável e não poderá ser
feito falso. Assim, a simples lógica suporta a teoria
da sina ou fado.

Crisipo apresenta um argumento mais detalhado do


que o de Deodoro. Se há um movimento sem uma
causa, ele diz, nem toda proposição é verdadeira ou
falsa. Porém, uma vez que toda proposição tem de
ser verdadeira ou falsa, todo movimento deve ter
uma causa. O silogismo requer uma breve
explanação. Aristóteles, em um costumeiro desafio
à opinião comum, nega que as proposições relativas
ao futuro possam ser verdadeiras. A predição de
que choverá amanhã ou de que César conquistará a
Gália, não é verdadeira. Mesmo a
proposição: “César morrerá”, não é verdadeira. E
também não é falsa. Na opinião de Aristóteles,
verdadeiro é uma declaração de realidade, e
realidade sempre é passada ou presente. O futuro
não é real, ainda. As proposições, no tempo verbal
presente, tornam-se verdadeiras ou falsas com o
passar do tempo, mas, no presente, as predições não
podem ser verdadeiras. A opinião comum,
entretanto aceita predições como se fossem falsas
ou verdadeiras, e explica nossa inabilidade
em distingui-las com base em nossa ignorância
sobre o que deverá acontecer. Além disso, se uma
proposição no tempo futuro não pode ser
verdadeira, nenhum silogismo poderá conter uma
proposição. Seria impossível argumentar que
dois dias à frente será sexta-feira por causa de
amanhã ser quinta-feira. De fato, uma declaração
verdadeira é inteligível, e uma declaração falsa
também é inteligível, mas uma declaração que não
é verdadeira nem falsa parece uma
completa insensatez. Crisipo, portanto, concluiu
que toda declaração significante é verdadeira ou
falsa.

O ponto seguinte na argumentação é o da asserção


de que algo somente poderá ser verdadeiro ou falso
mediante uma causalidade eficiente. Suponha que
alguém pergunte por que há uma lua cheia nesta
noite. A resposta deverá ser: porque a lua se
levantou em posição diretamente oposta à do sol.
Tal argumento é verdadeiro por causa de
movimentos precedentes. Se tivesse havido
outros movimentos diferentes, a declaração teria
sido falsa. O movimento, portanto, torna a
afirmativa verdadeira ou falsa. Contudo, observe,
se nenhuma causa tivesse afetado o movimento, a
declaração não seria verdadeira nem falsa;
teria sido sem sentido - não teria havido lua, nem
sol, nem Crisipo.

Objeções

A força lógica da posição determinista ou fatalista,


bem como suas elucidações subsequentes, talvez
fossem vistas de maneira ainda mais clara,
na réplica dos estoicos às objeções dos seus
oponentes. Discutiremos quatro delas. A primeira
diz que se todos os eventos forem predeterminados,
não haverá razão para alguém se esforçar para
atingir um objetivo, pois, se estiver predestinado,
o evento proposto acontecerá de qualquer maneira;
e, se não estiver predestinado, nada que o homem
faça o trará a efeito. A segunda diz que é
simplesmente falso que causas externas, como o
clima, sejam responsáveis pelas ações humanas.

A terceira pontua que se o destino já decretou todas


as coisas que acontecem, então, ele é o responsável
por todos os males que há no mundo. E a quarta
afirma que se a Razão Universal planejasse e
executasse todos os eventos, não haveria mal; e isso
aboliria todas as distinções entre ações morais e
imorais.

A primeira objeção é chamada de argumento


ocioso, porque sugere que, uma vez que todos os
eventos são inevitáveis, não há razão para realizar
qualquer coisa. Se estiver fadado a receber uma
nota A em um curso, um estudante não precisará
estudar, pois, de qualquer maneira, receberá uma
nota A. Semelhantemente, se estiver fadado a
receber uma nota F, não haverá razão para estudar.
Infelizmente, para abatimento do estudante, não
adiantará argumentar. A objeção presume que o
evento estará fadado a acontecer em isolamento,
fora de uma textura de causas e efeitos, tal como
determinado. Contudo, esta não é a teoria
fatalista. O estudante fadado a receber uma
nota A foi destinado para receber uma nota A por
meio de seu estudo. Ele não receberá a nota de uma
maneira ou de outra, mas apenas de uma maneira
especial, isto é, estudando o suficiente para receber
um A. A objeção passa uma ideia errada do
fatalismo, supondo que os fins são fixados
independentemente dos meios, mas os estoicos
insistiam em que os fins e os meios formavam um
sistema inviolável. Por mais estranho que seja, até
mesmo os oponentes do determinismo, do século
20, algumas vezes, usam esta objeção — fato que é
provavelmente significante para avaliar
a psicologia humana.

A segunda objeção também é uma representação


falsa. Se o fatalismo estoico tivesse explicado a
ação humana com base única em causas externas,
e, tal como o mecanicismo moderno fez, tivesse
tentado trazer o fenômeno consciente para o âmbito
da lei físico-química, os oponentes poderiam ter
feito uma boa apresentação. Porém, ainda que os
estoicos fossem materialistas, estavam distantes do
atomismo mecanicista. Talvez, algumas de suas
ilustrações mais inadvertidas tenham dado a
impressão errada. Crisipo é mencionado como
tendo usado a seguinte ilustração: Suponha que um
cão esteja atado a uma pequena carreta. Se ele
deseja ir em frente, é puxado pela carreta,
seguindo-a espontaneamente, de maneira que seu
poder é juntado à força da necessidade; mas, se ele
não quiser ir adiante, a carreta o arrastará contra a
sua vontade. Assim, também, a humanidade pode
seguir voluntariamente os decretos do fado ou ser
obrigada a segui-los contra a própria vontade. A
despeito de ser pitoresca, a ilustração não é muito
esclarecedora. Obviamente, todo homem é
conduzido pelo carro da História, em direções que
ele poderia querer ou não. Até mesmo os
epicureus admitiram que o futuro não está
totalmente em nosso poder. Outra das
ilustrações de Crisipo é ainda mais relevante. Ela
ocorre em um discurso sobre a força do estímulo
sensorial. Assentimento a impressões, mediante as
quais determinamos nossa conduta, não pode
ocorrer sem o estímulo dos sentidos, mas a
sensação não é a causa única das nossas ações. A
situação é como a de um cilindro e um cone, que
alguém empurra abaixo em um plano inclinado. Os
dois corpos não poderão começar a rolar a menos
que sejam empurrados; assim como não poderemos
tomar a decisão para agir sem assentir às nossas
impressões sensoriais. Contudo, tendo sido
empurrados, o movimento do cilindro diferirá do
movimento do cone devido à sua construção.
Consequentemente, com a causa externa há uma
causa interna, que determina a natureza do
movimento. Aplicações do cilindro e do cone
foram feitas a dois homens, ambos estimulados
pela visão de uma bela mulher.43 O caráter de um
dos homens é instável e, ainda que
tenha previamente resolvido ser contido, ele cede à
tentação. O outro homem, ainda que sujeito às
mesmas excitações sensoriais, tem uma razão
disciplinada, permanece firme em sua resolução e
reprime seu desejo. Assim, tal como os átomos
desviantes de Epicuro não deixam todas as coisas
sob o controle do homem, assim também o
fatalismo estoico não remove todas as coisas de sob
o controle humano. O homem não está à mercê de
causas externas, pois seus atos brotam do seu
caráter. Sem dúvida, seu caráter foi formado por
causas prévias; suas ações são predeterminadas,
pois ele não pode violar o próprio caráter, seja este
estável ou instável. Mas os atos ainda são seus, e
ele será voluntariamente contido ou incontido.

A distinção entre causas externas e internas,


particularmente a insistência estoica no papel da
vontade, apresenta uma resposta à terceira objeção;
e, aqui também, o estoicismo escapa à acusação por
meio de sua plena consistência. As objeções contra
um determinismo inconsistente são devastadoras. A
terceira objeção é a do Fado, ou seja, a de que Deus
seria culpado, se todos os eventos, dentre os quais
alguns que são maus, fossem decretados desde a
eternidade. Para colocar isso de outra maneira, a
fim de que o homem estivesse sujeito à
culpa moral, não poderia haver nenhum plano
original ou causa, no universo. Ora, é necessário
notar que destino, determinismo ou predestinação
não negam a ocorrência de ações voluntárias. Os
proponentes do livre-arbítrio, por exemplo, os
epicureus, argumentam como se não pudesse haver
exercício de volição a menos que ela seja livre.
Mas o ponto em questão não é a evidência da
vontade, mas se a vontade é livre ou determinada.
A ilustração anterior contrastou o ato voluntário de
um caráter instável com o ato voluntário de um
homem de bom caráter. Em cada caso, a vontade
foi a causa do ato. Respiração, digestão e
ser atropelado por uma carruagem puxada por
quatro cavalos, não são atos voluntários e, em tais
casos não há louvor ou culpa. Mas resistir ou
sucumbir à tentação é um ato voluntário e,
portanto, louvor ou culpa estão ligados à causa
imediata do ato, a saber, o caráter, o próprio
homem.

Se a terceira objeção denuncia o mal no mundo, a


quarta a contradiz, negando a existência do mal:
uma vez que os eventos ocorrem
precisamente como Deus os ordenou, nada é
inconsistente com seu decreto e, portanto, tudo é
bom. Contudo, novamente, a objeção está baseada
em falácia e confusão. Considere a insanidade
como um exemplo. Todo caso de insanidade
ocorre mediante leis naturais e é, neste sentido,
racional. Mas insanidade não é uma condição
natural da humanidade nem é desejável apenas
porque ocorre naturalmente. Uma pessoa terá de
distinguir entre as leis universais da natureza e a
natureza do homem. Aquilo que é natural no
primeiro contexto (e tudo é) poderá ser antinatural
e mau, no segundo contexto. No primeiro sentido,
sem dúvida será verdadeiro que todas as coisas
sejam boas. Deus planejou, previu e fez todas as
coisas, boas. Até mesmo, a insanidade contribui
para a perfeição da totalidade. Nesse ponto, os
estoicos eram bem cuidadosos ao responder à
contenção estoica de que a grande quantidade de
imperfeições na natureza contraria a doutrina da
providência. Porém, conquanto imoralidade e
insanidade ocorram segundo o plano de Deus, não
significa que atos morais e imorais sejam
indistinguíveis. Um cavalo e um leão, ambos
existem mediante o decreto da sina, mas tal não faz
do cavalo, um leão. Nem, quando um cavalo come
milho e um leão come carne, poderá ser dito que
Deus esteja comendo. Tais atos pertencem ao
cavalo e ao leão, não a Deus. Igualmente, um
homem mau existe, segundo o plano de Deus,
mas isso não faz de Deus, mau. Atos maus, opostos
aos atos bons, são cometidos, não por Deus, mas
pelo homem; e como o homem mau é sua causa,
tais atos maus têm referência nele, isto é, o homem
mau deve ser responsabilizado.

Neste ponto alguém poderia parar para considerar


criticamente, se os estoicos eram ou não
inteiramente consistentes em suas respostas às
objeções. Como há diversas formas de
determinismo, a possibilidade de que uma
forma possa prover resposta satisfatória e, a outra,
não, deve ser considerada. Se as objeções tivessem
sido baseadas no panteísmo dos estoicos, talvez
fosse mais difícil manter uma distinção real entre
ações boas e más. Epiteto diz que a natureza nada
nos dá senão boas inclinações e que nós mesmos
somos fragmentos de Deus. Com base em tal
premissa será possível concluir que todas as
nossas inclinações são boas e não más, e que, uma
vez que somos partes de Deus, nossas ações são
ações da parte de Deus. Ora, se o que é justo, é
aquilo que Deus faz, então, nesta base panteísta,
nossas ações são ipso facto justas, e não há mal no
universo. O panteísmo, tal como toda forma de
monismo substancial, enfrenta dificuldades para
manter a realidade de coisas distintas.
Entretanto, seja como for com panteísmo e
monismo, o determinismo teleológico,
se combinado com algum tipo de existência
pluralista, escapa dessa crítica com muita
facilidade. Para o livre-arbítrio epicureu, é também
curioso, e um fato histórico inexplicável, que o
determinismo, ou, pelo menos, o
determinismo teleológico, seja geralmente
associado a um moralismo estrito e vigoroso,
enquanto que os expoentes da liberdade tendam a
acatar um estilo de vida mais solto e fácil. O certo é
que este é o contraste na antiguidade.44

A vida racional

Com as refutações às objeções, já vistas, são vistas


as linhas gerais da ética dos estoicos. A boa vida é
uma vida conforme a natureza — não a
natureza universal do terremoto, da insanidade e da
imoralidade, mas a natureza do homem, a saber, a
razão. A razão no homem, um fogo mais puro do
que o encontrado nas plantas e nos animais, é
essencialmente o mesmo que a razão no universo.
Todo mundo tem ou melhor, é, uma centelha
divina, uma parte de Deus. Contrária à teoria
hedonista, a razão não ensina que o prazer deva ser
equiparado com o bem e, a dor, com o mal. Na
verdade, como descrição de fato - e os
epicureus faziam questão do fato descritivo - o
prazer não deveria ser o único, nem o motivo
humano básico. Tal como poderá ser aprendido da
observação de infantes que, antes de serem
corrompidos com doces e refrigerantes, desejam e
apreciam a boa alimentação, não existe impulso
natural para o prazer, mas sim uma tendência à
autopreservação. Além disso, o hedonismo torna-se
plausível somente mediante o uso inequívoco do
termo prazer. Poucas pessoas, sem excluir
os epicureus, estariam dispostas a identificar a vida
boa com uma vida consistente com o intenso prazer
da licenciosidade. Mesmo uma vida de continuadas
boas refeições não seria suficiente. Mas os prazeres
de uma mente satisfeita, sem a qual o hedonismo
faz pouco sentido, são tão diferentes de outros, que
será confuso incluir ambos os tipos sob o mesmo
gênero. Deixando o prazer de lado, portanto, os
estoicos afirmam que o único bem é a virtude, e
que o único mal é o vício. Sem dúvida, prazeres e
dores ocorrem: prazeres tentam as virtudes
e recompensam o vício, e a dor tormenta a ambos;
mas a virtude torna o homem superior tanto aos
prazeres quanto à dor.

O ideal da virtude difere em muitos aspectos do


atenuado ideal epicureu. Enquanto a escola do
prazer julga a vida familiar uma insensatez, os
estoicos defendem a monogamia e a família como
deveres recíprocos. Advogam a educação para
mulheres - até mesmo, cursos de filosofia.
Enquanto os epicureus, também, se furtam à
política, os estoicos enfatizam o patriotismo e
as responsabilidades cívicas. Se o governo se
tornasse extremamente corrupto, os estoicos
admitiam que um homem sábio pudesse se afastar
da política, mas, normalmente, a virtude requeria
ativa participação na vida pública. Uma vez que,
geralmente, o império romano fosse corrupto, os
epicureus poderiam acusar os estoicos de aparente
incoerência. Sua acusação adquire mais
plausibilidade em função do cosmopolitismo
estoico. De um ponto de vista
filosófico abrangente, a devoção a uma pequena
cidade-Estado parece uma ilógica restrição de
interesse. Todos os homens seriam partes de Deus,
e a lealdade individual deveria ser concentrada na
totalidade da raça humana. De um ponto de
vista mais estritamente político, à medida que as
cidades-Estado gregas perderam sua independência,
havia cada vez menor oportunidade para os
indivíduos participarem do governo. A
administração tornava-se, então, mais distante, e
os antigos laços íntimos com o Estado iam sendo
quebrados. Privados legalmente da cidadania, em
Atenas ou outra cidade, ao estado de habitantes
conquistados por um poder estrangeiro, os estoicos
se declaravam cidadãos do mundo. Seu lar não era
mais a polis Atenas, mas sim a cosmópolis. Com
alguma demonstração de razão, portanto, mas
também com não muita razão, os epicureus
poderiam acusar os estoicos de inconsistência entre
a última posição e a recomendação do patriotismo
em relação ao governo da época. Em suma, os
estoicos mantinham que o homem é naturalmente
social e que tem de cumprir seus deveres sociais.

Por mais estoica que fosse, e exemplificada pelo


escravo Epiteto e pelo imperador Marcos Aurélio, a
ênfase em deveres sociais é falha quanto à
localização da essência da virtude, pois virtude não
significa identificação com tais ações extremas. A
virtude é algo mais interno; é um ato da vontade
mais do que das mãos; e, se louvor e culpa
estiverem ligados, a ação deverá estar sob controle
de alguém. Entretanto, atos externos ou resultados
desejados da volição não estão sob o controle da
pessoa, e assim, não poderão ser essenciais à
virtude. Para Aristóteles, era necessário ser rico a
fim de exibir a virtude da liberalidade; coragem era
coisa impossível para um coxo ou paralítico; e,
geralmente, a virtude ocorria apenas em seu
exercício — um homem adormecido não poderia
ser realmente virtuoso. Essa teoria remove a virtude
de sob nosso poder porque existe o controle de
fatores externos. Os estoicos, portanto, centravam a
virtude na força da vontade. Para eles, a intenção
do ato é que conta, e não atos externos e seus
efeitos, e isto coloca a virtude sob nosso poder.
Riqueza e saúde dependem de forças externas, e, se
tal posse fosse necessária para uma vida virtuosa,
ninguém poderia ser voluntariamente virtuoso -
teria de ser imortal a despeito de suas profundas
convicções e sinceros desejos. O segredo da vida
boa, então, é o conhecimento daquilo que está e
daquilo que não está sob nosso controle. A
frustração é a marca da estultícia, pois ela vem do
desejo de alcançar coisas impossíveis. O homem
sábio restringe seus desejos a coisas que ele pode
fazer, mantendo assim os seus desejos sempre
satisfeitos. Não podemos controlar
as circunstâncias, mas podemos controlar nossas
reações às circunstâncias. Portanto, virtude não é
uma atividade externa, mas uma disposição da
alma, que nos torna superiores a toda exterioridade.

Já dissemos antes que há poucos homens sábios. A


maioria da raça humana é depravada. Da mesma
forma, alguns não são menos errados do que
outros. Assim como um homem poderá se afogar
tanto em um palmo de água quanto em águas com
uma milha de profundidade, e assim como alguém
postado a uma milha de Atenas estará tão fora de
Atenas como alguém que se encontre a centenas de
milhas distante dela, assim também todos os que
não forem sábios, serão igualmente estultos. A
mudança do vício para a virtude, tal como a entrada
em Atenas, é instantânea, uma súbita conversão.
Contudo, poucos são os convertidos; e isso, apenas
depois de uma vida de lutas. Os estoicos romanos
mais recentes abrandaram tal rigidez, mas a
conotação do termo estoico permaneceu fiel
ao antigo vigor, virtude e disciplina ascética.

NEOPLATONISMO

Contemporânea ao surgimento do estoicismo, uma


forte escola de ceticismo, talvez herdando alguma
coisa dos sofistas, iniciou sua longa história, desde
Pirro, cerca de 300 a.Q, a Sexto Empírico, em 200
d.C. O período pré-socrático poderia ter levado
alguém a esperar que o ceticismo se tornasse arma
poderosa contra o sensacionismo e o materialismo;
contudo, o que pode parecer estranho é a que
Academia platônica, originalmente dedicada a um
vigoroso dogmatismo, compartilhasse a mesma
atitude.

Ora, o destino dos estoicos foi tropeçar em duas de


suas mais importantes proposições. Sua teoria
sensorial do conhecimento foi condenada desde
o princípio, e os céticos e acadêmicos não tiveram
dificuldades para refutar as reivindicações de
representação compreensiva. Seu materialismo
também sofreu sob tal pressão. No início, ele fora
um materialismo peculiar, e quanto mais
os estoicos lutavam para justificar seus princípios e
para administrar seus problemas repletos de
detalhes, menos sólida, espacial e inerte a sua
matéria se tornava, assumindo cada vez mais
características espirituais. Virtudes e qualidades,
razões seminais, interpenetração de corpos e
misturas complexas, significado, sentido, e a
expressividade de todos esses, encaixavam-se
confortavelmente em um sistema materialista. O
tempo estava pronto para uma reação dogmática ao
ceticismo e para uma reação espiritualista ao
materialismo.

Entretanto, o neoplatonismo foi mais do que uma


reação. Platão mesmo deixou sem solução algumas
questões sobre participação, espaço ou
magnitude, o Demiurgo e a origem do mundo.
Aristóteles trouxe à luz muitas
considerações importantes, que exigiram
incorporação no sistema platônico; e os
próprios estoicos, por causa de seus fios soltos,
também fizeram valiosas contribuições. Além
disso, é necessário fazer justiça à motivação ética
básica da época helenista. A história da filosofia
grega estava chamando para um objetivo
sistemático, uma integração sumária de toda a
sabedoria obtida ao longo de oito séculos,
uma explosão final de brilho estelar no apogeu da
antiguidade pagã. Terminaremos este capítulo com
um relato, infelizmente inadequado, da obra de
Plotino (205-270). Ainda que classificado como
menor do que Platão e Aristóteles, Plotino tinha os
dons requisitados para a realização desta enorme
tarefa.
Refutação do materialismo

Um ponto principal, com o qual Plotino iniciou sua


carreira literária, é a refutação do materialismo e a
defesa da imortalidade da alma. Se a alma
fosse material, argumenta Plotino, corpo e alma se
decomporiam nos mesmos elementos. Porém, se
nenhum deles estivesse vivo, seria difícil concluir
como seria uma combinação deles. Epicureus e
estoicos afirmam, sem dúvida, que nem
toda combinação de elementos é viva, mas apenas
determinadas combinações, de proporções
particulares. Isso negligencia o fato de que tem de
haver primeiro um agente vivo, uma alma
inteligente, não uma alma humana, é claro, mas
uma alma mundial, para determinar as proporções.
Compostos inanimados, e até mesmo, corpos
simples, não poderiam existir sem tal alma, pois o
que produz o corpo é a imposição de
um logos, a ratio, uma razão ou uma forma sobre a
matéria.

A matéria, sendo inerte, não pode informar a si


mesma, e sem a alma haveria apenas o caos.
Se o materialismo não pode explicar a gênese da
vida e o fenômeno do crescimento, nem mesmo o
arranjo ordenado do mundo inanimado,
menos ainda poderá explicar a sensação, o
pensamento ou a moralidade. Para perceber um
objeto, a alma precisará de uma unidade de
percepção, e o objeto terá de ser percebido pelo
mesmo ser, ainda que diversas impressões entrem
através de diferentes órgãos sensoriais. Tal como
Platão e Aristóteles indicaram, seria impossível
saber que uma cor é diferente de um som, a menos
que ambos tenham sido apresentados ao mesmo
sujeito que percebe. A alma, portanto, deve
ser como uma central à qual as sensações
convergem com as diferentes radiações. Tudo isso
seria impossível se a alma fosse um corpo, pois,
nesse caso, um lado do objeto visto poderia
contatar um lado da alma, e o outro lado do
objeto colocaria uma impressão no outro lado da
alma. A menos que cheguem a um ponto imaterial
indivisível, duas sensações não poderão ser
comparadas ou combinadas mais do que se Platão
percebesse uma e Plotino percebesse a outra. Isto é,
se a alma fosse material e ocupasse espaço, uma
parte da alma teria de perceber uma parte do objeto,
mas não haveria percepção da totalidade do
objeto. Também não poderia haver pensamento,
pois tal como sensação é percepção por meio de
instrumentos corporais, pensamento é percepção
sem concurso de instrumentos corporais. Não fosse
assim, pensamento e percepção seriam idênticos. A
sensação apreende objetos sensíveis, e o
pensamento apreende coisas inteligíveis. Mesmo os
estoicos admitiram a existência de objetos não-
extensos. Como, então, poderia uma alma extensa
pensar ou imaginar um objeto não-extenso? Se
fosse dito que o pensamento se relaciona com
formas na matéria, pelo menos tais pensamentos
surgiriam por meio de abstração da matéria, e seria
a inteligência e não o corpo a abstrair um círculo,
uma linha, um ponto. Beleza e justiça são tão não-
extensas, externas e imutáveis como conceitos
de geometria, e um corpo não poderá apreender tais
objetos. A alma, portanto, é concebida como uma
realidade espiritual imaterial, não-extensa.

Contra Aristóteles
Plotino, não apenas ataca o materialismo óbvio dos
estoicos, mas rejeita, também, a inadequada teoria
aristotélica, da alma como a forma ou
potencialidade do corpo. Ele argumenta que,
segundo tal teoria, uma amputação poderia remover
parte da alma; o sono seria inexplicável; a razão
não se oporia ao desejo. Não poderia haver
pensamento independente do corpo, nem imagens
sensíveis poderiam ser preservadas independentes
das coisas sensíveis do desejo, pois um objeto
incorpóreo seria inexplicável. A propagação de
plantas seria impossível; a alma seria divisível; e
fmalmente, a teoria de Aristóteles não poderia
explicar como a alma de um animal se tornaria
alma de outro, quer por meio de propagação ou
como quando um verme é dividido ao meio. O ser
da alma, portanto, não depende do ser da forma de
nada mais; ele é uma realidade que não deve sua
existência ao fato de ter sua localização no corpo.
Ao contrário, a alma existe antes, e depois, torna-se
alma de um ser vivo em particular. Não é um
corpo, nem um estado corpóreo, mas uma realidade
ou substância verdadeira. Objetos corporais não são
substâncias verdadeiras; eles são fluxo e processo;
eles vêm e vão; eles jamais são realmente, mas
derivam sua semi-realidade da participação na
realidade autenticamente existente.

Cosmologia e ética

Deve-se observar que esta discussão,


intitulada Sobre a Imortalidade da Alma, refere-se
não tanto ao destino das pessoas individuais, como
se pudesse prometer a Sócrates e Cícero uma vida
feliz na Ilha dos Bem-Aventurados.
Seus fundamentos também não objetivam um
esclarecimento do problema da
psicologia científica, embora aqui, e ainda mais em
outros lugares, Plotino examine sensação,
imaginação, memória e pensamento com grande
cuidado e muitos detalhes. Porém, como uma
refutação do estoicismo e do aristotelismo, a
discussão se preocupa primariamente com a função
cosmológica da alma. A realidade é espiritual, e o
mundo depende de um princípio de vida. Tal como
Platão sustenta, corpos são apenas semi-realidades,
mas há outra natureza, que possui seu ser em si e de
si mesma, uma natureza que não pode ter sido
gerada, nem será destruída. Tal como o princípio
automotor do movimento, essa natureza causa o
movimento de outras coisas. Mantendo a própria
vida, sem que precise tomá-la emprestada, ela
anima os seres vivos. Nem todas as coisas podem
ter uma vida derivada, pois isso implicaria um
eterno regresso. Deve, portanto, haver uma fonte
original de vida, eterna e imperecível, para prover
vida a outros seres vivos. A alma não é o substrato
da vida - é a própria vida, e a vida é uma realidade
imortal. Consequentemente, a alma é eterna e
imortal.

Contudo, embora a teoria de Plotino sobre a alma


seja cosmológica e as frases citadas pareçam se
referir à alma universal, ainda assim a alma
individual de Sócrates e Cícero está aí incluída. É
impossível que uma alma seja imortal e outra seja
mortal. Tanto a alma universal, quanto a alma
socrática, são princípios de movimento; as duas são
seres viventes. Ambas apreenderam os
mesmos objetos, com as mesmas faculdades de
intelecção, quando pensaram sobre realidades
celestiais e supracelestiais; ambas aspiraram se
elevar à fonte primária de todas as realidades. O
conhecimento, existindo na alma individual,
é reminiscente e eterno; e assim como a alma
coexiste com o conhecimento, Sócrates é tão
imortal quanto a alma universal. Mesmo as almas
dos animais e das plantas são imortais.

Esse tipo de imortalidade, entretanto - a eternidade


e divindade da alma em vez de mera existência
futura - levanta problemas especiais conectados
não apenas com a cosmologia, mas também com a
ética pessoal. Se a alma, na eternidade passada,
viveu nas regiões celestiais com as realidades
inteligíveis, como se explica que a alma tenha
deixado sua habitação celeste e se deixado
encarcerar no corpo, como que num túmulo? E, se
agora está encarcerada, uma teoria ética deverá
descrever a rota de escape. Com respeito ao
problema cosmológico, Platão usou linguagem
mítica para descrever a alma perdendo suas asas e
decaindo para uma esfera inferior. Em termos
menos figurativos, ele afirmava que o Demiurgo
impôs ordem ao espaço mediante a construção
de imitações de Ideias. Esta é a resposta final de
Platão para a questão da existência de um mundo
físico além da existência de um mundo ideal.
Plotino alterou consideravelmente tudo isso, como
um sumário da exposição demonstrará. Efm ponto
subordinado é que o Demiurgo de Platão se funde
com a alma universal. Porém, assim como as
Ideias, em Platão, são superiores ao Demiurgo,
assim também, em Plotino, a Mente, ou
Inteligência, é superior à alma. A alma é de um
grau inferior, caracterizado pelo desejo, e, quando
grávida e em dores de parto, anseia produzir uma
ordem similar à do âmbito da inteligência.

Em tal cosmologia, o motivo ético está


constantemente entrelaçado. O Fédon e
o Fedro descreveram o contacto da alma com o
corpo como sendo algo mau. Por meio de um tipo
de morte viva, fugindo da sensação e
praticando uma contemplação racional, o filósofo
deveria lutar para se salvar do túmulo corpóreo.
Como poderão, tais sentimentos, ser harmonizados
com uma visão que torna o mundo, e,
consequentemente, a alma que habita no homem,
um ato louvável? À medida que Plotino continua a
explanação, o problema cosmológico se torna cada
vez mais intrigante, pois sua intenção não é tanto a
de explicar a união de alma e corpo, mas de afirmar
a divindade da alma, a despeito dessa união. A da
alma divindade é defendida com base no fato de
que ela jamais se separa real ou completamente da
alma universal. Em união com a alma
perfeita, nossa alma alça os céus e administra o
cosmos. Não é ruim para a alma fornecer ao corpo
o poder de existir, desde que a providência da alma
sobre o corpo inferior não deponha contra a
superioridade de sua função mais elevada.
Ainda assim, a alma humana não pode ser
considerada sem qualificações, para
permanecer íntegra, nos céus. A alma universal
permanece assim. Ela organiza o universo
sem entrar em contato com as coisas, enviando
poderes menores para cuidar delas. Há um sentido,
então, em que a alma humana é enviada e descende.

Entretanto, Plotino não pode escapar


completamente à noção de que, em seu túmulo
corpóreo, a alma decai para o mal, para o
sofrimento, experimentando tribulações, medos e
desejos. A alma individual, ele diz, cansada de estar
com a alma universal, separa-se e torna-se frágil, e,
em vez de permanecer inteiramente racional, aceita
a orientação das sensações. Plotino, no entanto,
tenta mitigar essas asserções, afirmando que a alma
poderá recuperar a posição perdida, e que sua
queda é livre e necessária, uma vez que é ordenada
por Deus. Mediante sua decadência a alma é
habilitada, primeiro, a aprender do mal sem ser
ferida, especialmente, se retornar rapidamente; e,
segundo, a atualizar as potencialidades da vida
vegetativa e sensível, que, não achando lugar no
mundo inteligente, teria existido em vão. Sem um
mundo inferior, a alma sequer teria sabido conhecer
tais poderes. Não poderia ter existido um mundo, se
existisse apenas o Uno. A pluralidade é necessária,
e a produção de multiplicidade continua até
que todos os possíveis efeitos tenham sido
atualizados. Embora tivesse sido melhor para a
alma permanecer no mundo superior, ainda assim,
porque não é um ser pertencente à primeira
categoria, mas a uma categoria intermediária entre
dois mundos, ela é compungida a entrar em contato
com o reino sensível. Tal experiência com o mal
lhe fornece uma percepção clara do bem.
Nenhuma alma, porém, está total ou irrestritamente
imersa nas sensações. A salvação é sempre
possível.

Adotando um tema do Teeteto, de Platão, Plotino


faz a salvação consistir na semelhança de Deus. Ela
é alcançada ao reascender aos graus dos quais
decaiu. As profundidades da queda configuram o
hedonismo. Os homens assim cunhados, tais como
os epicureus, estão imersos em sensações; julgam
que o prazer seja o único bem e, a dor, o único mal.
Na verdade, nenhum homem vive sem sensações, e
alguns homens jamais se elevam além dela. Mas
outros, de melhor estirpe, os estoicos, concentram
sua atenção na virtude e na prática dos deveres da
vida.

O tipo mais elevado de homem, entretanto,


reconhece a natureza divina da alma e se esforça
para retornar ao estado mais puro. Embora isso seja
feito principalmente deixando o reino dos sentidos
e entrando no reino da razão discursiva, da
inteligência ou daquilo que seja mais elevado, os
sentidos poderão fornecer um estímulo. Alguém
poderá ascender mediante a contemplação
da beleza visível, buscando sua causa primária na
própria Beleza. A beleza do corpo é imposta pela
alma, mas a alma recebe sua beleza da Mente
Divina, ou do mundo das Ideias.

O fato de que existe uma Mente Divina é provado,


não pela beleza corpórea, mas pela existência da
própria alma, que requer um princípio mais
elevado. A Mente é quem produz a alma, pois a
alma é um ser intermediário entre dois mundos. Do
lado inferior, ela toca o mundo dos sentidos, mas,
do lado superior, está próxima das Ideias. O mundo
das Ideias e a Mente são idênticos. Ninguém haverá
de supor que haja uma mente além dos objetos
externos independentes que ela conhece. Tal
separação, infelizmente, parece baseada
no Timeu, em que as Ideias e o Demiurgo são entes
separados. O próprio Platão, porém, ainda
que apenas de passagem, diz explicitamente que o
mundo das Ideias é uma Mente viva. Não fosse
assim, a Mente em siseria apenas potencialidade
intelectual, em vez de essencialidade atual. A
mente é aquilo que pensa. Se seus objetos
não fossem de sua própria realidade, ela não
poderia conhecer a si mesma, e a
injunção socrática: “conhece-te a ti mesmo”, teria
sido declarada em vão. A Mente, portanto, são as
Ideias, e a frase parmenidiana: “pensar e ser é o
mesmo”, justifica-se dessa forma. Com a negação
de que objetos independentes atualizam uma Mente
potencial, deve-se negar também que uma Mente
independente tenha atualizado ou criado Ideias por
meio de pensar nelas. O idealismo moderno é
estranho ao sistema de Plotino. As Ideias e a Mente
têm de ser estritamente identificadas: uma não tem
prioridade sobre a outra.

Temas platônicos

Em sua solução para o problema da extensão do


mundo Ideal, o avanço de Plotino sobre Platão é
visto de maneira ainda mais clara. Uma crítica das
Ideias, encontrada em Parmenides e,
frequentemente, repetida desde então, é a de
que conceitos de classe são produções
essencialmente arbitrárias das mentes humanas, e
não deveriam ser, ilicitamente, transformadas em
objetos naturais independentes e autossubsistentes.
Não apenas objetos matemáticos, tais como dois e
igualdade, podem ser “puramente formais”, mas a
justiça e as demais virtudes são tidas como coisas
que mudam com os costumes sociais, e as leis e
classes da física são interpretadas como sinais de
abreviaturas convenientes, como símbolos
inventados para processos físicos. Assim, também,
pode não haver nenhuma Ideia de ateniense ou de
espartano, pois estas são, evidentemente, distinções
feitas pelo homem. E o que dizer de classes
artificiais, tais como navios e casas?

Para o estudante não especializado, os exemplos


mais plausíveis de classificação natural são os das
espécies de plantas e animais. Embora a
diferença entre um ateniense e um espartano seja
uma diferença estabelecida por homens e, embora
talvez a matemática seja puramente formal, a
diferença entre um elefante e um leão não é nem
formal nem produzida por homens. Estes tipos não
são, obviamente, classificações arbitrárias; eles
estão presentes clara e verdadeiramente na
natureza. Uma teoria satisfatória teria de ser
consistente: ou as classes arbitrárias teriam de ser
provadas como naturais ou as naturais provadas
como arbitrárias. Portanto, o diálogo Parmênides, e
aqueles que o estudaram, levantaram a dificuldade
e questionaram a existência das Ideias de cabelo e
lama, de doenças e privações, de indivíduos como
Sócrates, e de classes artificiais, como navios e
casas.

Com respeito a objetos artificiais, Plotino fornece


uma explicação engenhosa. As artes imitativas -
pintura, escultura, dança e pantomima - e as artes
produtivas, tais como arquitetura e carpintaria, não
têm as próprias Ideias, mas estão implícitas na Ideia
de Homem. A música está colocada em uma
posição mais elevada, em que se relaciona à
perfeita simetria do mundo Ideal. Geometria e
filosofia localizam-se no campo mais elevado.
Depois de uma pequena hesitação, Plotino
afirma também a existência da Ideia de Sócrates —
uma profunda modificação do Platonismo que
merece um estudo igualmente profundo.

Outro ponto que talvez deva ser mencionado, é que


Plotino tenta aprimorar o pensamento de Platão. A
fim de explicar a relação entre coisas e Ideias,
Platão descreve o Demiurgo formando o mundo por
meio da construção de cópias das Ideias no espaço
independente. Mas a admissão de três princípios
últimos e independentes é tão contrária ao gênio de
Platão e tão desrespeitosa ao nobre Parmênides,
que não deve ser permitido que permaneça. Deverá
haver, portanto, uma continuidade de produção sem
uma matéria independente. A alma, que tomou o
lugar do Demiurgo, é, ela mesma, uma produção da
Mente Divina, e o mundo inferior é uma produção
da alma. Contudo, o fato de que a alma não opera
sobre o espaço ou matéria independente é visto no
caso do teste da magnitude.

Este mundo sensível é, como sempre foi, um


conjunto de reflexos num espelho. Os objetos reais
refletidos são as Ideias. Os reflexos são, é claro,
os objetos sensoriais. O espelho, por sua vez, toma
o lugar do espaço de Platão. Obviamente o próprio
espelho não tem nenhuma das qualidades que
reflete. Em si mesmo, ele não é vermelho, igual ou
corajoso, mas observe, especialmente, que ele
também não possui extensão. Magnitude ou
extensão é uma Ideia refletida no espelho, mas o
espelho mesmo não tem extensão. Portanto, ele não
é um espaço independente. De fato, se o reflexo
desaparecesse, o espelho também desapareceria. O
espelho poderá ser chamado de matéria, se alguém
assim o desejar, mas será uma matéria imaterial que
existe apenas para refletir. Uma vez que Platão
identificou espaço com matéria, o resultado é
equivalente à negação de que o espaço seja extenso.
As coisas são extensas pois participam da Ideia
de Magnitude. Magnitude aparece no espelho, ou
matéria, mas a matéria não é, em si mesma,
extensa.

Os termos espelho e matéria, entretanto, têm


conotações tão especiais que fazem o relato parecer
confuso. Outra figura de linguagem favorita de
Plotino, é a da luz brilhando nas trevas que poderá
dispersar parte da obscuridade. A luz brilha e seus
raios estendidos vão se tornando cada vez mais
tênues até que se percam na escuridão. A luz
representa a existência - sua fonte é o existente
mais elevado; os raios representam existências
menores, tais como a alma, e as coisas ainda menos
visíveis do mundo inferior. Contudo, uma vez que
mais obscuro nada mais é do que menos claro, as
trevas em que o mundo foi projetado
são literalmente nada; isto é, não existe matéria
independente. Tudo o que existe ou, parcialmente
existe, é a própria luz.

O Uno

A figura da luz brilhando conduz a um ponto final.


A Mente Divina não é a fonte de luz. Ela não é o
princípio último. A salvação moral do
homem começa com o abandono das sensações, e a
ascensão à Mente por meio da razão e da
intelecção. E mais, se um homem continuadamente
contempla as Ideias, talvez consiga alcançar uma
visão do princípio supremo. Tal como
foi necessário rejeitar a hipótese de três princípios
independentes, assim, pela mesma razão, a Mente
não será o princípio mais elevado. A multiplicidade
corre solta no mundo sensível; mas, mesmo na
Mente, há uma dualidade de objeto e predicado.
Consequentemente, a Mente não é uma unidade
verdadeira. Deverá haver, portanto, o
Uno parmenidiano superior à Mente. Há distinções
na Mente. E posto que a Mente é o âmbito do
conhecimento, pois conhecimento
requer distinções, o Uno é estritamente
incognoscível. Nada poderá ser predicado dele;
nenhuma declaração verdadeira poderá ser feita
sobre ele,“0 pois toda proposição requer uma
distinção entre objeto e predicado. O conhecimento
requer também uma distinção lógica, se não atual,
entre a pessoa que conhece e o objeto
conhecido. Consequentemente, a salvação tem de
consistir, não no conhecimento, mas em um transe
místico, uma absorção inconsciente do filosofo,
dentro do Uno. Nesse transe, a alma não mais
saberá se tem um corpo, e sequer poderá dizer se é
um homem ou algo real. E, depois de ter se
recuperado do transe, ninguém poderá dizer que
tipo de experiência teve. Sem dúvida, a pessoa
poderá dizer que foi maravilhosa ou beatífica, ou
atribuir outros adjetivos à experiência. Mas
somente a pessoa que teve a experiência saberá o
que foi que ocorreu; e, ainda assim, não conhecerá
realmente.

O misticismo tem provocado reações extremas:


alguns mantem que os místicos sejam benfeitores
supra-humanos da raça, enquanto outros os
consideram iludidos. Por causa de seu misticismo,
Plotino tem sido chamado de irracional,46 mas tal
apelação poderá ser verdadeira somente quanto ao
misticismo e não quanto aos seus escritos, pois
estes são magníficos exemplos de razão
discursiva. O próprio misticismo de Plotino não é
separado, tal como o misticismo geralmente é, do
estudo inteligente. Esta visão é assegurada somente
depois de grande labor filosófico. O misticismo é
atacado também com base em que seja uma
experiência incomunicável, obtida apenas por
algumas pessoas. Não é aberta e pública tal como é
o experimento científico ou a prova lógica.
Respondendo a essa objeção, Plotino afirma que a
experiência é o exercício de uma faculdade que
todos temos; se apenas alguns fazem uso dela, as
demais pessoas não têm do que se queixar. Não
obstante, autores modernos que sustentam uma
teoria quanto à natureza da ciência argumentam que
a experiência privada é ilegítima em termos de base
filosófica. Porém, se isso for literalmente
verdadeiro, a teoria da cor deveria ser ilegítima,
pois nem todos têm a mesma experiência na
distinção de todas as cores. Se, portanto, a
existência de pessoas cegas para as cores não
invalida a teoria das cores, a mera existência de
racionalistas não místicos, não deveria
invalidar nenhuma verdade fundada sobre visões
místicas. Assim como um homem cego para as
cores terá de tomar a palavra de outro para a
distinção existente entre cores, assim também os
racionalistas deveriam aceitar a palavra do
místico. Na estética, as críticas e os teóricos
desprezam as almas insensíveis, que não
veem valor no belo, e não apreciam as obras de
arte. Talvez, o cientista racionalista repudie a arte,
em virtude de ser uma experiência mística
incomunicável. Porém, até mesmo o gosto de uma
azeitona é incomunicável. Se, então, alguém deseja
argumentar contra o misticismo, que o faça, não
com base no fato de que poucos tenham a
experiência ou de que ela seja incomunicável, tal
como o gosto da azeitona, mas com base no fato de
que, mesmo tendo a experiência, o místico nada
pode dizer sobre ela. O transe não deu a Plotino
nenhuma informação segundo a qual seu relato da
Mente e da Alma poderia ser corrigido. A
filosofia foi pensada à parte dessa visão e ela,
quando acrescentada, não alterou a filosofia. O
misticismo, portanto, é inócuo.

A recuperação do transe, ou descida da experiência


com o Uno, é, novamente, a produção do mundo. O
Uno brilha como a luz. Ele produz a dualidade da
Mente e a multiplicidade da Alma. Não há quebra
de continuidade, nem Demiurgo independente, nem
espaço. Assim, até mesmo o mundo sensível é uma
“emanação” do Uno parmenidiano. O Uno e a
matéria são extremidades de uma mesma linha
contínua. Não há quebra. A totalidade, portanto, é
um sistema monista e panteísta. O Uno sem dúvida
“transcende” o objeto sensível; mas tal
transcendência é meramente uma posição superior
em uma linha contínua. O significado disso será
mais bem verificado se contrastado com uma
diferente noção de transcendência, encontrada no
ensino cristão. A diferença radical entre o
cristianismo e o paganismo está centrada na
natureza do princípio supremo. A natureza de Deus
controla a explanação do mundo. Alguém poderia
perguntar se, de fato, Plotino, finalmente, deu uma
explicação do mundo melhor do que a de Platão,
ou, até mesmo, do que a de Demócrito. Estes
propuseram um mundo à custa do pluralismo.
Entretanto, se o primeiro princípio é o Uno simples,
como poderá a produção de multiplicidade ser
inteligível? Ilustrações de espelhos e de luzes
refulgentes não serão suficientes. Se multiplicidade
e distinções estiverem no Uno, mesmo que
virtualmente, o Uno não poderá ser pura Unidade.
Porém, se não houver multiplicidade no Uno, como
a produção de multiplicidade teria procedido dele?

A resposta de Plotino é reduzida à afirmação de que


isso ocorre e deve ocorrer. A emissão ou emanação
do múltiplo a partir do Uno, ele diz, é a
instância mais sublime da lei de que toda realidade
necessariamente dá à luz algo inferior, tal como o
Sol produz sua luz e calor. E considerando as
pressuposições gregas e a história da filosofia
grega, é difícil ver como o seu final poderia ser
diferente.
II - A IDADE MÉDIA
5 - O PERÍODO PATRÍSTICO
PAGANISMO E CRISTIANISMO

A fonte de todos os contrastes entre o paganismo e


o cristianismo está na diferença em seus conceitos
sobre Deus. Em qualquer sistema, o princípio
último determina a forma da totalidade e mostra
suas implicações em questões de ética, física e
epistemologia. Costuma-se dizer que a filosofia
grega conheceu apenas princípios imanentes, e a
religião judeu-cristã introduziu a ideia de
transcendência. Embora essa declaração esteja
substancialmente correta, os dois termos não são
usados no mesmo sentido, por todos os autores, e
os diversos sentidos têm de ser distinguidos a fim
de evitar confusão. Na linguagem
ordinária, imanência e transcendência são sempre
opostos um ao outro, mas, na linguagem técnica,
podem especificar diferentes tipos de oposição.
Quando imanência e transcendência são tomados
como termos contraditórios ou contrários, o
primeiro é aplicado a sistemas em que Deus é a
essência do universo e o universo é a essência de
Deus. Nesse sentido, nenhum princípio poderá ser,
ao mesmo tempo, imanente e transcendente.
Concomitantemente, teólogos cristãos, ainda que
retendo a oposição coloquial entre os dois mundos,
têm usado os termos, não como contrários, mas
como subcontrários. Assim, eles podem dizer que
Deus é tanto imanente quanto transcendente.
Entretanto, com alguns esclarecimentos, o
princípio primeiro ou divino, dos filósofos gregos,
poderá ser chamado imanente no sentido estrito do
termo, de maneira que toda noção de
transcendência é excluída, tornando os sistemas
pagãos radicalmente diferentes do cristianismo.

Imanentismo grego

Para ser específico, voltemos a Tales. Na ausência


de informação adequada, nenhuma importância
teológica poderá ser atribuída à sua declaração de
que todas as coisas estão cheias de deuses. Em face
disso está a evidência de um politeísmo em que os
deuses, longe de serem primeiros princípios, são
produtos de forças naturais. A água, entretanto, é
seu primeiro princípio, e as coisas do universo são
modificações da água. Este primeiro princípio é
chamado de princípio imanente. Em nenhum
sentido é sobrenatural: é a própria natureza. Não
fosse o fato de que Tales não deixou evidência de
qualquer particular interesse em religião, seu ponto
de vista poderia ser chamado de panteísta, mas, na
situação atual, o termo naturalismo tem conotação
mais apropriada. Parmênides não pode ser chamado
de naturalista em nenhum sentido, embora seu
acosmismo possa ser considerado uma forma de
panteísmo. Se alguém hesitar em aplicar, à
filosofia de Parmênides, o termo imanente, será
porque outros sistemas de imanência permitem
alguma pluralidade mediante a qual Deus seria
imanente. Mas fica bastante claro que, uma vez que
somente um Ser existe, não há transcendência na
filosofia de Parmênides.

Tales e Parmênides não se adaptam bem ao


catálogo religioso por causa de sua indiferença
geral quanto à religião. Mas Heráclito, e
especialmente seus descendentes estoicos, usaram
uma terminologia mais religiosa, de maneira que
não seria peculiar chamar seu pensamento de
panteísmo imanentista. O fogo é Deus, e Deus é
o universo; à parte dessa substância e suas
modificações, nada existe.

Platão é o mais difícil de ser classificado de


maneira precisa, especialmente porque os termos
usuais são muito rígidos para adequar à elástica
linguagem de Platão. Os autores gregos, educados
em uma cultura politeísta, usaram o termo Deus em
um sentido mais frouxo do que aqueles que eram
fortemente influenciados pelo cristianismo. Assim,
também, o conceito judeu-cristão de Deus
reúne elementos que são conservados
separadamente na obra de Platão, o que resulta na
dificuldade de dizer quem era o Deus de Platão. Se
Deus é a causa e o criador do mundo físico, então o
Deus de Platão é o Demiurgo do Timeu. Porém,
se Deus é o primeiro, mais alto e último princípio,
o Deus de Platão é a Ideia do Bem. No primeiro
caso, Deus é confrontado com dois princípios
igualmente eternos e independentes. Ele usa as
Ideias como marcas mestras para impor ordem no
espaço caótico. Nesse arranjo, Deus não é imanente
nem transcendente. Entretanto, embora o Demiurgo
goze de uma posição mais elevada do que o espaço,
ele não é a causa de todas as coisas no mundo
físico: se feito um apelo à República, Deus poderá
ser a causa de apenas algumas coisas, pois o mal é
mais extenso do que o bem. No entanto, uma vez
que ocupa uma posição inferior às Ideias, o
Demiurgo não poderá ser transcendente, pois ele
não é o princípio mais alto. Ora, no segundo caso,
se o termo Deus for usado estritamente para o
supremo princípio de qualquer filosofia, então o
Demiurgo não é o Deus de Platão, e tentativas de
classificar Platão sobre essa base estarão fora de
ordem. As Ideias compõem a verdadeira realidade
de Platão, e o mundo físico é apenas meio real. No
mundo das Ideias, o Bem é supremo. Ideias
inferiores são conhecidas apenas por intermédio do
Bem, e somente mediante o Bem elas existem. Isso
parece tornar Deus transcendente, e ninguém
poderá negar que ele é a Ideia suprema. Mas
supremacia não significa precisamente
transcendência. O Bem não é o criador, nem
mesmo o artesão das Ideias, mas, ao contrário, um
gênero supremo, do qual as ideias inferiores são
espécies. Se alguém hesitar em qualificar
tal relacionamento como imanência, deve-se
argumentar que Plotino removeu a confusão e
indicou o sentido essencial de Platão. Nesse caso,
nem o Demiurgo nem o Bem correspondem ao
conceito judeu-cristão de divindade: o
Demiurgo fez o mundo, mas não é supremo; o Bem
é supremo, mas não fez o mundo.

O Deus de Aristóteles é o menos panteísta e,


obviamente, o menos imanente de todos os
primeiros princípios gregos. Se desejasse
estabelecer um ponto, um crítico de fora do sistema
argumentaria que, uma vez que Aristóteles
recusou, corretamente, admitir a existência de uma
primeira matéria, exceto como limite irreal de
abstração, no outro lado ele não deveria ter
admitido a existência real e separada de uma Forma
à parte da matéria. O motor imóvel teria sido a
Forma do Mundo, e assim, um princípio imanente.
Contudo, historicamente, embora Aristóteles tenha
negado a existência separada da matéria, ele
quebrou a simetria de seu sistema e atribuiu isso a
Deus. Nesse sentido, portanto, o Deus
de Aristóteles não é um princípio imanente. Mas
seu motor imóvel também não é transcendente. E
claro que é quase impossível definir
transcendência, excluindo onisciência; mas a quase
transcendência de um Deus ignorante dos males
passados e de todos os eventos futuros não é a
visão bíblica de transcendência.

Neste ponto os epicureus não precisam ser


considerados, e a última seção do capítulo anterior
mostrou suficientemente o panteísmo e o
emanacionismo do sistema neoplatônico. Em
relação a isso, um exemplo específico poderá
ser apresentado, sobre como a natureza do primeiro
princípio controla as partes subordinadas da
filosofia. Por que o Uno e a Mente Divina são o
que são, a salvação no neoplatonismo se torna um
escape das sensações para um transe místico. Com
um primeiro princípio diferente, o cristianismo não
está interessado na salvação das sensações, mas do
pecado; e se o apóstolo Paulo teve qualquer visão,
não foi o transe místico de Plotino.
Transcendência judaica

Para completar este breve contraste entre a teologia


imanentista grega, com suas qualificações e
variedades indicadas, e a visão judeu-cristã da
deidade transcendente, será necessário, primeiro,
fazer uma declaração preliminar sobre o conceito
bíblico de Deus. Quando esse conceito é
esclarecido, a diferença radical entre as duas
cosmovisões dificilmente será perdida de vista, até
mesmo em seus detalhes subsidiários.

Uma vez que os termos imanência e


transcendência são usados como contraditórios,
contrários, ou subcontrários, dependendo da
escolha do autor, o sentido bíblico poderá ser mais
vividamente apreendido, especificando
duas instâncias em que este ponto de vista diverge
fundamentalmente do paganismo. O primeiro deles
é a doutrina da criação. O fato de Deus ser
transcendente no sentido de ser o Criador do
mundo contrasta com toda forma de filosofia grega.

A primeira sentença da Bíblia é: “No princípio


criou Deus os céus e a terra”. O verbo hebraico
“criar”, na forma ou “voz” usada em Gênesis 1.1,
jamais denota produções humanas. Até mesmo as
outras “vozes”, em que um objeto humano corta
uma árvore ou mata um inimigo, são extremamente
raras. Verbos para fazer ou construir ocorrem
centenas de vezes na Bíblia, mas este verbo,
em relação a um objeto humano, ocorre apenas
cerca de cinco vezes. Seu uso característico se
refere à produção divina. Essa produção, criação,
acontece por meio do ftat divino. As palavras são:
“Disse Deus: Haja luz; e houve luz”; “porque todas
as coisas tu criaste, sim, por causa da tua vontade
vieram a existir e foram criadas”; “o Deus que
vivifica os mortos e chama à existência as coisas
que não existem”. Assim, as Escrituras descrevem
uma Deidade que criou o mundo a partir do nada,
mediante o ftat divino. O fato de que a criação foi
ex nihilo é demonstrado negativamente, por meio
da ausência de qualquer menção a uma matéria
preexistente a ser moldada ou formada.
Positivamente, aquilo que Deus criou é tão
extensivamente expresso que não deixa lugar para
uma matéria não criada. É dito que Deus criou
todas as coisas. Algumas das passagens são
as seguintes: “Só tu és SENHOR, tu fizeste o céu, o
céu dos céus e todo o seu exército, a terra e tudo
quanto nela há, os mares e tudo quanto há neles; e
tu os preservas a todos com vida, e o exército dos
céus te adora” (Ne 9.6); “... pois, nele,
foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a
terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam
soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo
foi criado por meio dele e para ele. Ele é antes de
todas as coisas. Nele, tudo subsiste” (Cl 1.16, 17);
“Tu és digno, Senhor e Deus nosso, de receber a
glória, a honra e o poder, porque todas as coisas tu
criaste, sim, por causa da tua vontade vieram a
existir e foram criadas” (Ap 4.11). Dando suporte
essas passagens que afirmam que Deus criou todas
as coisas, há outras em que a soberania de Deus
sobre todas as coisas é também expressa; assim
como aquelas que afirmam que o mundo teve um
começo. Por exemplo: “Antes que os montes
nascessem e se formassem a terra e o mundo, de
eternidade a eternidade, tu és Deus” (SI 90.2); “...
e, agora, glorifica-me, ó Pai, contigo mesmo, com a
glória que eu tive junto de ti, antes que houvesse
mundo” (Jo 17.5). Talvez possa ser deixada aos
teólogos e filósofos a construção de uma teoria do
tempo adequada, e é possível que tenham
suas discordâncias; mas não se pode negar que a
Bíblia apresenta o mundo como tendo um primeiro
momento. Devemos observar, nas passagens
citadas, e em outras, que o Novo Testamento não
altera a visão do Antigo Testamento. Os
dois Testamentos são idênticos quanto a esse ponto,
de maneira que é justo dizer que a criação é uma
visão judeu-cristã. Admitida e indubitavelmente,
Deus é imanente no sentido de conhecer e controlar
toda a história; mas a posição judeu-cristã
é radicalmente oposta a qualquer imanentismo que
pressuponha que o mundo seja uma modificação do
ser divino. Igualmente, é oposta a uma pluralidade
de princípios eternos independentes, tal como em
Platão; e, também, oposta ao ignorante Deus de
Aristóteles. Finalmente, uma vez que um fiat é um
ato voluntário e não uma emanação necessária, o
cristianismo não tem simpatia pelo neoplatonismo.
Para a Bíblia, Deus é transcendente.

Se a doutrina da criação tem implicações óbvias


para a ontologia e a cosmologia, há um segundo
sentido cristão de transcendência que controla
a epistemologia. A fase da epistemologia
pretendida neste momento não é a que indica Deus
como necessariamente conhecedor de todas as
coisas, que planejou e criou em oposição ao motor
imóvel, que conhece apenas parte do passado
e nada do futuro. O ponto, aqui, diz respeito ao
aprendizado humano. Os gregos talvez tenham
diferido quanto aos papéis precisos das sensações e
da razão, em que os teólogos cristãos também
diferem, mas, para o cristianismo, há uma fonte de
conhecimento não admitida pelos filósofos gregos,
a saber, a revelação. Deus não apenas cria o
mundo, mas também fala e comunica informação
ao homem. Em primeiro lugar, ele contou a Adão o
que seria requerido dele e quais seriam as
penalidades para a desobediência. Então, depois de
Adão haver pecado contra ele, Deus lhe deu uma
promessa de redenção. Da mesma maneira,
Deus falou com Noé, Abraão, Moisés e com os
profetas. Tais mensagens foram escritas como
palavras de Deus para a posteridade, e, ao longo do
tempo, o cânon do Antigo Testamento foi sendo
construído, até que Malaquias escrevesse o
último livro. Portanto, nos tempos de Cristo, que
constantemente apelava para a Bíblia hebraica e
insistia que “a Escritura não pode ser quebrada”, a
ideia de um cânon não era uma novidade. Os
cristãos não a inventaram gradualmente, mas
herdaram a noção de um conjunto de escritos
canônicos. Na verdade, o cânon do
Novo Testamento não passou a existir a partir do
primeiro momento. Os livros foram escritos ao
longo de um período de 50 anos, para muitos e
diversos leitores. Outros 50, ou mais anos foram
precisos, para fazer cópias para a distribuição,
e para, utilizando lentos e difíceis meios de
transporte, conseguir encaminhar um conjunto de
cópias às diversas cidades, assegurando em cada
cidade que os livros e cartas fossem recebidos
como escritos com autoridade apostólica. Por esta
razão, algumas das mais antigas listas compiladas
omitem este ou aquele livro. Mas não há evidência
de que tais cartas e livros não fossem
imediatamente aceitos como revelação pelas igrejas
às quais foram originalmente enviados; nem há
evidência de que não fossem imediatamente aceitos
por outras igrejas tão logo sua imposição apostólica
tenha sido estabelecida. O cânon reconhecido do
Novo Testamento talvez tenha sido desenvolvido
ao longo de um século; mas a ideia de um
cânon não se desenvolveu. A ideia de um cânon
autorizado era familiar desde o começo, e um livro
reconhecidamente aprovado por um apóstolo era
imediatamente recebido como tal. Obviamente,
nada disso existia na filosofia pagã, e a oposição do
paganismo moderno ao cristianismo é mais
vigorosa nesse ponto do que, até mesmo,
na doutrina da criação. Os herdeiros do pensamento
grego acham repugnante a aceitação de
informações reveladas por Deus; eles insistem na
verdade descoberta por meio de seus próprios
recursos; e, se tal não puder ser feito, preferem
ficar sem a verdade, a recebê-la como um dom de
Deus.

Funções da Revelação

Na competição intelectual com o paganismo -


distinta da atividade evangelística comum, e de
esforços para a autopreservação, em face da
perseguição organizada por imperadores tais como
Nero, Domiciano, Trajano e o estoico Marco
Aurélio - a revelação bíblica serviu a uma dupla
função. Em primeiro lugar, ela determinava o que
era o cristianismo. Assim como o platonismo ou
a teoria das Ideias é o que Platão escreveu, assim
também o cristianismo é aquilo que os profetas e
apóstolos escreveram. Do mesmo modo, assim
como a Academia platônica, com sua apostólica
sucessão de presidentes, regularmente empossados,
divergiu da teoria das Ideias, tornou-se cética e
deixou de ser platônica, assim muitas pessoas que
tiveram alguma conexão histórica com
a comunidade cristã deixaram de ensinar o
pensamento cristão porque suas teorias não eram
bíblicas. Em tempos antigos, quando um grande
número de pagãos se convertia e aceitava a Cristo
como Senhor, tornou-se imperativa a
necessidade de uma declaração escrita do
cristianismo. Tendo sido educados em um
ambiente de idolatria politeísta, os convertidos nem
sempre podiam distinguir uma ideia cristã de uma
ideia pagã. Suas mentes continham uma confusão
criada por duas filosofias antagônicas.
Indubitavelmente, eles confiaram em Jesus Cristo
para a salvação; mas isso implicaria criação ex
nihilo ou uma matéria preexistente, formada por
Deus? Essas questões, que são muitas, somente
poderiam ser respondidas, apelando para uma
revelação escrita. Além dos cristãos
convertidos que ainda sentiam os efeitos do
paganismo, havia ainda grupos pagãos que
sofriam a influência do cristianismo. Suas mentes
também estavam em confusão, ainda que não na
mesma extensão. Para identificar tais grupos,
principalmente gnósticos, como pagãos em vez de
cristãos, era necessária uma revelação escrita que
declarasse autoritariamente o que é o cristianismo.
De outra maneira, as disputas teriam se
assemelhado a querelas entre heterogêneos grupos
de meninos tentando jogar bola sem auxílio de um
livro de regras. Um menino se queixa de que o
outro é injusto porque está usando uma bola
redonda, de futebol, enquanto deveria estar usando
uma bola oval, de futebol norte-americano.
Outro garoto intermedeia a questão, concordando
com o primeiro, em que a bola deveria ser oval e de
trinta centímetros de comprimento; mas, por sua
vez, reclama porque o outro time tem mais
jogadores do que o número adequado. Aí, então,
um espírito verdadeiramente ecumênico argumenta
que tais diferenças seriam triviais, sendo
inoportuno discutidas — a coisa importante é ÇLie
deve/jã/l] jogar bola juntos.

O segundo aspecto dessa dupla função é, de fato,


nada mais do que uma extensão ào primeiro. A.
determinação do que é o cristianismo, serve, não
apenas para separar grupos pagãos de grupos
cristãos, mas, pelo mesmo método, habilitar os
crentes para o progresso no entendimento do
cristianismo. Deus realmente criou? Se os
argumentos de Aristóteles, na Física VIII forem
válidos, o mundo jamais terá sido criado. Se,
entretanto, forem inválidos - afinal, não é tão difícil
achar defeitos neles — a Antiguidade é deixada na
ignorância sobre o assunto. Talvez não seja
possível provar qualquer coisa contra ou a favor.
Porém, se Deus fala, e diz que ele realmente criou o
mundo, a questão está respondida. Isso não quer
dizer que as Escrituras respondem a todas as
questões e que devamos ser ignorantes sobre tais
pontos; não obstante, há muitos pontos, os mais
importantes, sobre cosmologia, psicologia, filosofia
da história, epistemologia — além de moralidade e
religião — sobre os quais a Bíblia protege o cristão
contra teorias plausíveis, mas falsas.

Similaridades superficiais

A falha em notar a diferença radical entre a


imanência grega e a transcendência bíblica, entre
sensações ou razão e revelação, resulta na
descoberta de aparentes similaridades e de suposto
empréstimo da primeira para a segunda. Na
realidade, porém, tais similaridades são superficiais
e o empréstimo jamais ocorre. A única escola grega
que, no Novo Testamento, recebe alguma
coisa como palavra de aprovação, é o estoicismo.
Falando a um grupo de estoicos e epicureus, no
monte Marte, o apóstolo citou um poeta estoico:
“pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos,
como alguns dos vossos poetas têm dito:
Porque dele também somos geração”. Mas seria
necessário muita insensibilidade e muita falta de
imaginação histórica para supor que Paulo tenha
usado as palavras em seu sentido original, e que
estaria, agora, pregando o panteísmo. Fosse
assim, Paulo não teria mencionado a ressurreição, e
a audiência não teria se voltado contra ele. Há
também quem suspeite de influência estoica em
2Pedro 3.7,10, em que o apóstolo diz que, assim
como o mundo foi destruído uma vez, no tempo de
Noé, assim também, pela Palavra de Deus, o
mundo está entesourado para o fogo. E, no dia do
Senhor, os elementos serão dissolvidos com
grande calor e a Terra e as suas obras serão
[atingidas] descobertas. Isso claramente não é
caracteristicamente judaico, e é uma sugestão de
estoicismo.

A noção de uma conflagração final não é algo


frequente na literatura judaica. Os Oráculos
Sibilinos (c. 140 a.C.) mencionam diversas vezes
essa noção; ela ocorre duas ou três vezes em outros
escritos anteriores; e há diversas referências a ela
na literatura rabínica. Porém, embora ela não seja
frequente no pensamento judaico, ela é parte
proeminente da teoria estoica. Entretanto, a
influência estoica sobre Pedro é uma hipótese
insustentável, por causa da diferença radical entre
os dois sistemas - diferença no que diz respeito à
natureza da conflagração e no que diz respeito aos
primeiros princípios.

Primeiro, a teoria estoica da conflagração depende


de um sistema de física completamente ausente em
2Pedro e no Novo Testamento.

Segundo, e mais conclusivo, a conflagração, em


2Pedro, é uma catástrofe repentina, tal como o
dilúvio. A conflagração estoica, ao contrário, é
um processo lento que já está em operação: ele leva
muito tempo, e durante ele os elementos se
transformam em fogo, pouco a pouco. O processo
estoico é natural, no sentido mais comum da
palavra; mas, para Pedro, é o resultado da Palavra
ou fiat do Senhor.

Terceiro, a conflagração estoica é um tipo de


deificação de todas as coisas, mas a de Pedro é um
julgamento sobre o pecado. Este fato talvez
explique por que a expressão “serão descobertas”,
no versículo 10, é preferível à “serão
atingidas”. Por meio do fogo do julgamento, o
verdadeiro valor das obras da terra será revelado.

Quarto, a conflagração estoica ocorre um infinito


número de vezes durante ciclos universais infinitos.
A de Pedro ocorre uma única vez, tal como o
dilúvio. Os novos céus e a nova terra não
representam uma repetição da história passada
ponto a ponto, tal como no estoicismo, mas um
estágio final de eterno gozo junto ao nosso Criador
e Redentor.

Somente interpretando mal o Novo Testamento,


alguém poderá falar de “Traços Estoicos no
Cristianismo”,47 e somente interpretando mal
Platão, alguém poderá escrever um livro intitulado
O Elemento Cristão em Platão,48

Alegadas fontes da teologia paulina

Mais recentemente, a teologia de Paulo tem sido


traçada em referência a alguns cultos orientais, à
literatura hermética ou a religiões gregas de
mistério.

A primeira dessas possibilidades depende da


interpretação do relato de Paulo sobre a luta entre a
carne e o espírito em termos de um dualismo
entre matéria e espírito. Tal dualismo poderá ser
final, tal como no caso do zoroastrismo, em que
dois princípios eternos são responsáveis pelo
universo, ou ser derivado de algum estado unitário
primitivo, tal como é comum no gnosticismo. A
ideia de que a matéria ou o corpo é inerentemente
mau e, o espírito, inerentemente bom, levou a dois
tipos contrastantes de conduta: uma vez que o
corpo seja mau, a pessoa terá de viver uma vida
ascética, mortificando o corpo; ou, uma vez que um
corpo inerentemente mau não poderá ser
santificado, e que um espírito inerentemente bom
não poderá se tornar impuro, a pessoa não deverá
se preocupar com os atos do corpo. Paulo jamais
foi acusado de licenciosidade. Antes, ele já foi mal
interpretado como tendo ensinado o asceticismo.
Certamente, esta não é a teoria de Paulo, e o fato de
que sua teologia não tem tal procedência pode
ser mostrado por diversas evidências. Obviamente,
não há um dualismo último, em Paulo. Um Deus
triúno é o princípio soberano sobre todos. A forma
gnóstica de um dualismo derivado de corpo e
espírito também é estranha ao pensamento paulino.
Ele descreve, sem dúvida, uma luta moral: quase
todo autor de livros sobre ética tem essa
abordagem. O ponto essencial é o da identificação
do antagonismo. Platão o localiza entre desejo e
razão; o dualista, entre corpo e espírito; Paulo,
entre a carne e o espírito. Em uma leitura
descuidada, a palavra carne, usada por Paulo com
um sentido pejorativo, poderá ser tomada por
corpo. Contudo, um pouco de atenção aos
comentários de Paulo deixará claro o seu sentido,
que não é corpo, mas a natureza humana herdada
de Adão. Observe que, no princípio, Deus criou o
ser humano, homem e mulher, declarando que sua
criação era muito boa. Ele ordenou a nossos
primeiros pais que fossem frutíferos, se
multiplicassem e que enchessem a Terra. Isso é
inconsistente com a tese de que o corpo ou a
matéria seja inerentemente mau. A queda de
Adão ocorreu como resultado de uma vontade
rebelde, e não por causa de um corpo mau. Em
segundo lugar, a existência de espíritos maus
mostra que espíritos não são necessariamente bons;
e a ressurreição dos corpos, especialmente dos
crentes, é inconsistente com a teoria de que a
matéria é inerentemente má. Terceiro, quando
Paulo arrola as obras más da carne, adultério e
lascívia talvez possam ser tomados como obras do
corpo, mas idolatria, ódio, ira, heresias e
inveja certamente são atos psíquicos, em vez de
corporais. Note também que Paulo atribui a alguns
heréticos de Colossos, uma “mente carnal” (Cl
2.18). É claro que ninguém poderá ver, nesta
expressão, uma teoria epicurista de um
espírito material ou corpóreo. Se tal ideia perversa
fosse aceita, arruinaria o dualismo. E a mente
carnal também não deverá ser entendida em termos
de sensualidade e lascívia. Esses heréticos, ao
contrário, eram ascéticos. Eram culpados, não
de fornicação ou glutonaria, mas de humildade
voluntária, culto de anjos, negligência ou punição
do corpo, e de viver segundo a máxima: “não
manuseies isto, não proves aquilo, não toques
aquilo outro”. Paulo não era um ascético. Ele sabia
o que era estar humilhado e o que era ser honrado.
A força de seu exemplo e argumentos não é
motivada por um desejo de libertar uma alma
divina, de um túmulo corpóreo, nem muito menos
pela ideia de que a dor é boa e o prazer é mau.
Antes, Paulo estava engajado em uma corrida cuja
vitória dependia de ele deixar todo peso e todo
pecado que tenazmente a todos assediam. Disposto
a sofrer apedrejamentos e açoites por causa do
nome de Cristo, ele jamais praticou autoflagelação,
e Simão Stilites (o eremita), teria provocado sua
condenação.

Uma segunda tentativa para explicar a origem da


religião de Paulo encontra sua ideia na literatura
hermética - um conjunto de tratados que pretende
ser uma revelação dada pelo deus egípcio Tot. Em
primeiro lugar, tais tratados foram provavelmente
escritos depois de Paulo ter sido executado, de
maneira que, se contêm elementos cristãos, eles, e
não Paulo, é que tomaram material emprestado. Em
segundo lugar, é preciso muita imaginação para
enxergar elementos cristãos neles. A salvação sobre
a qual se referem é uma deificação, e é aliada mais
próxima do dualismo já mencionado do que da
doutrina paulina da redenção do pecado. O método,
assim como a natureza da salvação, é diferente. No
Novo Testamento, a morte de Cristo salva; em
Hermes, a pessoa é salva mediante o conhecimento
da cosmologia.49

Uma terceira tentativa para derivar uma teologia


paulina do paganismo, diz respeito aos mistérios
gregos. Um autor, na ausência de qualquer
evidência, supre a deficiência com sua coragem
pessoal, asseverando que Paulo teria sido um
iniciado.50 A literatura floresce o suficiente para
remover a forte adesão farisaica de Paulo ao
monoteísmo do Antigo Testamento, colocando-o
em um politeísmo popular. Tal conjectura não é
apenas uma má formação acadêmica, mas também
um preconceito irresponsável.

Caso tais tentativas para achar as origens da


teologia paulina no paganismo falhem quanto a
romper a singularidade do cristianismo, Paulo é,
então, descrito como místico ou epilético,
dependendo de o que alguém deseja fazer de
suas visões. Um estudo dessas visões, contudo,
deixa pouco menos do que uma fértil imaginação
para suportar tais pontos de vista. Na verdade,
Paulo afirmou ter tido visões, e, se ter visões faz de
alguém um místico, então Paulo era místico. Mas
as visões que ele teve possuíam características
incompatíveis com a experiência mística de
Plotino. Os transes de Plotino não continham nem
possuíam conhecimento. As visões de Paulo eram
plenas de objetos e predicados. No caminho para
Damasco, Paulo viu uma figura celeste que falou
com ele: “Por que me persegues?” Paulo estava
intrigado. Ele reconhecia a figura celeste como
sendo o Senhor, mas não estava cônscio de havê-lo
perseguido. Quando perguntou: “Quem és tu,
Senhor?”, a palavra “Senhor” não tinha o mesmo
sentido do pronome de tratamento: tivesse tal
sentido, a resposta: “Eu sou Jesus” teria apenas
agravado sua ira; e, como ele intentava perseguir os
cristãos, teria ordenado aos soldados que
prendessem tal homem. O termo Senhor, aqui, é
tomado no sentido de Adonai, como era comum
entre os judeus de fala grega - o Jeová do Antigo
Testamento. Paulo aquiesceu, e perguntou:
“Senhor, que queres que eu faça?” (ARC). Então
Jesus ordenou-lhe que seguisse certas instruções.
Essa foi sua visão. Nem Plotino, nem um epilético
se lembrariam do que tivesse acontecido em um
transe. Paulo jamais esqueceu. O apóstolo teve
ainda outra visão, e embora não pudesse dizer se
fora no corpo ou fora dele, Paulo ouviu
palavras. Que palavras foram, ele recusou revelar;
mas eram palavras; e sua experiência não foi a de
um estado de inconsciência em que nada é
conhecido. As coisas conhecidas, as doutrinas
reveladas, não são ecos da filosofia grega ou de
religiões de mistério.

Dois cuidados

Por razões tais como essas, podemos concluir que o


paganismo e o cristianismo são radicalmente
distintos. Quaisquer pontos de similaridade
serão superficiais e triviais. Falar dos dois sistemas
como sendo semelhantes não será melhor do que
identificar o epicurismo e o platonismo com base
no fato de ambos terem sido fundados por homens.
Tal conclusão não é enfraquecida por dois cuidados
que deveriam ser observados. Primeiro, uma vez
que o Novo Testamento foi escrito em grego, ele
usa palavras que também são usadas nos escritos
pagãos. João usou, até mesmo, o termo Logos. Mas
o ponto em questão não é o do uso das palavras,
mas a ocorrência de ideias. O uso dos termos
logos, em João, e hypostasis, na epístola aos
Hebreus, não são evidências de ideias pagãs. Nem
se poderia achar Aristóteles no Credo Niceno, só
porque diz ali que Deus é uma substância ou
realidade. Ninguém pode proibir os escritores
cristãos de usar palavras comuns, sob pena de se
tornarem pagãos. O segundo cuidado é que, embora
o cristianismo e as filosofias gregas, como
sistemas, não tenham nenhum elemento em
comum, o cristianismo, enquanto povo,
frequentemente manteve ideias pagãs. Pessoas se
converteram do paganismo e não puderam
se desfazer dele de uma vez. Portanto, quando
vieram a expor e defender o cristianismo, de forma
inconsistente, eles usaram ideias do platonismo ou
do estoicismo. Por meio de uma longa e árdua
batalha, tais elementos de inconsistência foram
sendo gradualmente removidos de algumas áreas
fundamentais, e assim, veio a existir, por exemplo,
o Credo Niceno. Entretanto, em outros tópicos,
e, especialmente, em casos de particular autoria, a
luta não foi bem-sucedida. À medida que o tempo
passou, as tentativas para escapar às ideias pagãs, e
para preservar a pureza do pensamento do Novo
Testamento, ficaram mais fracas, quase cessaram,
se poderia dizer. Esta é uma história complexa,
sobre a qual poderá ser feito somente um relato
simplificado.

FILO

O primeiro filósofo medieval - ou, melhor, o


primeiro filósofo a fazer uso de revelação divina, já
que viveu durante o tempo de vida de Cristo - foi
Filo, um acadêmico judeu devoto, de Alexandria.
Por quase três séculos, uma comunidade judaica
prosperou em Alexandria, porque Alexandre, o
grande, havia fundado a cidade sobre princípios de
liberdade religiosa; e nessa cidade cosmopolita,
com sua livre troca de ideias, os judeus puderam
aprender a filosofia grega. Alguns aparentes traços
de tal conhecimento são notados em certas
palavras usadas para traduzir as Escrituras para o
grego, na Septuaginta; e mais da influência é
encontrada em outros escritos judaicos do Io e 2o
séculos antes de Cristo; Filo revela bem seu
conhecimento da escola grega. Entretanto, embora
conhecesse a História e falasse com respeito sobre
os filósofos, Filo não aceitava plenamente seus
pontos de vista. Certamente não os aceitava sem
modificação. Ele condenou os pré-socráticos por
causa de seu materialismo irreligioso; Aristóteles,
ele rejeitou mais do que adotou; dos estoicos,
tomou emprestado uma grande porção, ainda que
desprezasse seu materialismo; quanto ao
neopitagorismo, ressuscitando a primitiva escola de
matemática, e adicionando a própria, Filo
basicamente o contradisse; Platão foi quem mais o
influenciou, mas, ainda assim, Filo não deixou de
ser seu crítico. Se Moisés é superior a Platão,
algum tipo de teoria Ideal poderá ser considerado
uma filosofia sadia, mas teria de haver
extensa modificação no platonismo original.
A possibilidade de Filo combinar a revelação
judaica com a filosofia pagã depende de um
conjunto de fatores que se soam estranhos hoje,
mas eram tidos como comuns, na época. Primeiro,
a Bíblia presumivelmente não conteria toda a
verdade, e, portanto, seria possível que Platão e
Aristóteles tenham descoberto alguma coisa mais.
Segundo, a visão de Platão era tão admirável e,
frequentemente, tão de acordo com a Escritura, que
não se pode excluir a possibilidade de que, de um
modo ou de outro, ele tenha recebido informações
de Moisés. Então, terceiro, Filo cria que a Escritura
deveria ser interpretada alegoricamente, resultando
na permissão de uma latitude infinita em que os
diversos temas filosóficos poderiam ser
encontrados. Dado que os pais da igreja aceitaram
o método da interpretação alegórica diretamente de
Filo, vão aí alguns exemplos de como ele funciona.

Alegoria

Concernente a Gênesis 2.5, Filo escreve: “Qual é o


sentido das palavras: ‘Toda planta do campo ainda
não estava na terra, e toda erva do campo ainda não
brotava; porque ainda o Senhor Deus não tinha
feito chover sobre a terra, e não havia homem para
lavrar a terra’? Tais palavras, diz ele, aludem às
ideias incorpóreas. Por exemplo, a expressão ainda
não estava na terra’ indica a perfeição de toda erva,
plantas e árvores. E, como a Escritura diz que,
antes que crescessem na Terra, Deus fez plantas,
ervas e outras coisas, é evidente que as fez
como ideias incorpóreas e inteligíveis, de acordo
com a natureza inteligível que as coisas
suprassensíveis da terra deveriam imitar”. Sobre
Gênesis 2.7, Filo, de igual modo, escreve: “Quem é
o homem ‘moldado’ [do barro]? E como ele
difere do homem feito ‘à imagem e semelhança de
Deus’? O homem moldado é o homem sensório-
perceptível e aparência do tipo inteligível. Mas o
homem, feito segundo a forma de Deus, é
inteligível e incorpóreo, uma semelhança
do arquétipo, enquanto visível. É uma cópia do selo
original. É o Logos de Deus, o primeiro princípio, o
arquétipo, a medida anterior de todas as coisas”.
Um ou dois exemplos de alegoria poderão ser
acrescentados em pontos de menor importância
filosófica. Paraíso é símbolo de sabedoria, e nele
são plantadas as Idéias de árvores. Deus plantou o
paraíso para o leste por causa do movimento do
mundo, do leste para o oeste. Os quatro rios são
quatro virtudes: Prudência é Pisom, moderação é
Giom, coragem é o Tigre e justiça, o Eufrates. Ou,
ainda mais misterioso, sobre Gênesis 16.16, Filo
escreve: “Por que é dito que Abrão tinha 86 anos de
idade quando Hagar deu à luz a Ismael? Porque o
número que segue ao oito, isto é, seis, é o primeiro
número perfeito. Ele é igual às suas partes, e é o
primeiro número par-ímpar... E o número oitenta é
o mais harmônico dos números, consistindo de
duas excelentes escalas, a de dobros e a de
triplos, no esquema de progressão”. Quanto à
mudança do nome de Abrão para Abraão, Filo diz
que o fato significou que Abraão havia avançado
além do nível de filósofo natural, para o de sábio
amante de Deus. Sua mulher também
foi transformada, de Sarai, virtude específica,
paraSara, virtude genérica. Hagar significa
educação encíclica, e seu filho, Ismael, é sofismo.
Um dos exemplos mais conhecidos é o do relato
dos israelitas, que, quando estavam prontos para
escapar da escravidão, no Egito, tomaram as joias
de seus antigos senhores. Egípcios representam os
gregos, e uma vez que joias são posses
preciosas, estas representam a filosofia; segue daí
que Filo ou qualquer filho de Deus poderá tomar
emprestado da filosofia grega.

Uma das razões dadas por Filo para o uso do


método alegórico é que as Escrituras falam de Deus
em termos antropomórficos. Elas fazem menção
do braço do Senhor ou dos seus olhos. Contudo,
uma vez que é revelado que Deus não é corpóreo
— este é o fato que subjaz à forte proibição de
imagens de escultura - tais expressões, ainda que
úteis para propósitos pedagógicos, não poderão
ser tomadas literalmente. E, se não literalmente,
deveria alguém interpretá-las alegoricamente?
Assim pareceu a Filo. Não parece assim, hoje, por
causa do reconhecimento de que figuras de
linguagem não requerem logicamente o
método alegórico. Nas figuras de linguagem, a
intenção do autor não é tão obscura. Se for dito que
Deus tem olhos que perpassam toda a terra, é óbvio
que o autor está captando uma imagem da
onisciência divina. Flá uma conexão natural entre
ver e conhecer; em todas as línguas. Um intrigado
estudante de geometria, por exemplo, poderá dizer:
“Eu vejo!”, quando ele realmente não viu, mas
entendeu. Quanto ao método alegórico, entretanto,
não há conexão natural entre os sentidos literal e
alegórico. Os quatro rios do Éden poderiam
significar qualquer coisa desejada, com igual
razão. Abrão poderá significar tanto “utilitarismo”
quanto “filósofo natural”, e, Abraão, poderia
significar “kantiano”. Ou vice-versa. Sarai poderá
significar “labor diário” e, Sara, “descanso
sabático”. Figuras de linguagem poderão levantar
diferenças de opinião; poderá ser que não fique
claro se uma dada frase é ou não uma figura de
linguagem; não obstante, no método alegórico não
haverá nenhum controle - linguístico, histórico ou
lógico. Cada alegorista terá irrestrita liberdade para
fazer qualquer coisa significar qualquer coisa. O
resultado final será que o texto interpretado se
tornará supérfluo: Alguém poderá sacar Platão ou
Aristóteles das Mil e Uma Noites tão facilmente
quanto de Moisés. Tal método de interpretação
empesteou a igreja até o tempo dos reformadores,
que insistiram em um método gramático-histórico
para determinar a intenção dos autores.

Embora o método alegórico não imponha limites


sobre o que possa ser entendido das Escrituras, a
sóbria preocupação judaica de Filo demarcou
esses limites. Ele aceitava o Antigo Testamento
como revelação autoritária de Deus. Tanto quanto
pudesse ser entendido literalmente, ele tomou como
literalmente verdadeiro. Abraão, Hagar, os egípcios
e suas joias, portavam significados alegóricos para
o intérprete escolado, mas os eventos literais
realmente ocorreram na Flistória e podem ser lidos
com edificação, pelo povo comum. A atitude
de Filo quanto às Escrituras contrasta com a de
Platão em relação aos poetas gregos. Para os
filósofos gregos, os poetas exibiam uma sabedoria
popular primitiva bem inferior às descobertas dos
próprios filósofos. Os poetas, por meio de um tipo
de inspiração exasperada poderiam ter vagas
premonições da verdade, mas não tinham
informação acurada da parte de Deus. Para Filo, as
Escrituras eram informações precisas vindas de
Deus, às quais nenhum saber humano
poderia equiparar. Embora devessem ser entendidas
alegórica e literalmente, e a despeito do fato de a
alegoria ser inerentemente incontrolável, Filo
aceitava certas doutrinas fundamentais às quais
ambas, alegoria e filosofia, deveriam se submeter.
“É melhor ter fé em Deus”, disse ele, “e não em
nossos tênues raciocínios e conjecturas incertas”. A
fé certifica a crença no único Deus e em sua
providência para o mundo que ele criou. Filo cria
também que a revelação requer a aceitação de uma
teoria de ideias incorpóreas. Consequentemente,
podemos declarar que, para Filo, o método
alegórico é limitado, em virtude das doutrinas
do monoteísmo, da criação, da providência, das
Ideias e, é claro, da revelação.

Ideias platônicas em Moisés

Dessas crenças fundamentais, a de maior


importância é a doutrina de Deus, pois é aqui que
se vê mais claramente a radical alteração que
Filo promoveu nas visões pagãs. Entretanto, a
aproximação mais interessante à sua teologia é feita
por meio da sua teoria das Ideias - isto, por diversas
razões. Aqui, temos mais de Platão do que de
Moisés, o que deixa a suspeita de
maior dependência do método alegórico. Além do
método, há também o resultado da combinação de
duas cosmovisões divergentes. Que harmonia
haveria entre Platão e Moisés? Qual o efeito de tal
tentativa de aproximação sobre os
conceitos escriturais de Deus e da criação? Assim,
também, é em conexão com a teoria das Ideias que
Filo discorre sobre umLogos a quem chama de
Filho de Deus. Será que, exatamente no fim da era
do Antigo Testamento, durante a vida do próprio
Cristo, este grande filósofo judeu, despercebido de
que o Filho de Deus já tinha vindo à Terra, e sem
nenhuma ajuda, além de Platão e de Moisés, teria
antecipado o Evangelho de João e a doutrina da
Trindade? Se fosse assim, ou seus contemporâneos
pensassem assim, estaria explicada a razão de os
pais da igreja receberem Filo com entusiasmo,
enquanto os judeus o negligenciaram por 1.500
anos.

O suporte do Antigo Testamento à doutrina das


Ideias, encontrado nos primeiros dois exemplos de
interpretação alegórica anteriormente, talvez possa
ser rejeitado com uma breve menção. Uma vez que
foi ordenado a Moisés que construísse o
tabernáculo “conforme o seu modelo, que te foi
mostrado no monte”, os judeus anteriores ao tempo
de Filo supuseram que haveria nos Céus
um tabernáculo modelo, com modelos de todos os
seus vasos. Não apenas o tabernáculo, mas a
tradição também afirma a preexistência de Abraão
e um número de outras coisas. Tais coisas ajudam a
construir um mundo Ideal. Porém, para
estabelecer sua teoria Ideal, Filo se baseou mais em
especulação do que em revelação. “Pois Deus,
sendo Deus, previu que uma cópia bela não poderia
ser produzida sem um bom modelo, e que nada
perceptível aos sentidos poderia ser sem falha a
menos que modelasse em referência a um arquétipo
concebido pelo intelecto. Quando, portanto,
determinou criar este mundo visível, Deus primeiro
formou um mundo inteligível a fim de ter um
padrão divino incorpóreo para a produção de
um mundo material, outra criação à imagem da
primeira, contendo tantas espécies de coisas
sensíveis quantas espécies inteligíveis havia no
mundo Ideal.”51

O ato de usar um modelo a fim de produzir uma


cópia bela soa muito bem como o Timeu, de Platão.
Porém, quando vemos a relação entre Deus e o
modelo, desvanece a ilusão de que Filo tenha
dependido inteiramente de Platão para construir sua
filosofia. A citação anteriormente e outras
passagens ensinam que Deus formou ou criou o
mundo Ideal de maneira semelhante como
talvez suponhamos que tenha criado um modelo
celeste do tabernáculo, para que Moisés o copiasse.
Como Criador, portanto, Deus é superior às Ideias.
No Timeu, ao contrário, nem o Demiurgo nem o
mundo das Ideias devem sua existência um ao
outro, e, na verdade, o Demiurgo ocupa posição
subordinada. Outra indicação de que Filo repudia,
em vez de reproduzir Platão, é o seu uso do Sol
como ilustração. Para Platão, o Sol simbolizava o
Bem como causa do conhecimento e da
existência. Tal função e tal ilustração, Filo atribui a
Deus. Mais explicitamente, ele afirma que Deus é
“superior, até mesmo, ao próprio Bem e à própria
Beleza”.52 Se esse tipo de pensamento for
chamado, em qualquer sentido, de platonismo, será
um platonismo tão profundamente alterado que
Platão mesmo sequer o reconhecería.

Ainda assim, nem tudo está claro, pois as figuras de


linguagem, de Filo, e as mudanças nas ilustrações,
frequentemente inconsistentes entre si, tornam
difícil obter uma interpretação acurada. Em
pontuado contraste com o argumento usado no
diálogo Parmênides, quanto ao fato de que as
Ideias teriam de existir anterior e
independentemente do conhecimento que Deus tem
delas, Filo não apenas torna a atividade mental
subjetiva de Deus anterior às Ideias, mas também,
em uma passagem, parece eliminar toda
necessidade de Ideias objetivamente
criadas. Discutindo sobre a criação deste mundo
visível, ele observa que a cópia bela requer um
padrão belo. Então, para explicar a formação desse
padrão inteligível, ele usa a ilustração de um
arquiteto que concebe planos para a fundação de
uma cidade. Filo é muito cuidadoso para não
permitir uma planta para o arquiteto: todos os
detalhes do edifício a ser construído são contidos
na mente do arquiteto. Explicitamente, ele diz: “O
mundo discernido pelo intelecto, nada mais é do
que a Palavra de Deus, quando ele já está engajado
no ato da criação; pois a cidade discernível ao
intelecto, nada mais é do que a faculdade de razão
do arquiteto, no ato de planejar fundar uma
cidade”.53 Essas palavras parecem equiparar
o mundo das Ideias à mente de Deus, e tornar um
modelo externo, desnecessário. De um ponto de
vista filosófico independente, requerimentos
epistemológicos e cosmológicos, também parecem
ter sido satisfeitos, se as ideias
estiverem eternamente subjetivas na mente de
Deus. Ainda assim, deve ser dito que Filo também
afirmou a existência objetiva das Ideias e, até no
contexto da passagem já citada, há indicações nesse
sentido.

O Logos

Uma vez que o Logos, ou, a Palavra de Deus, é a


Ideia mais elevada, a Ideia das Ideias, ou a
totalidade das Ideias, excetuando apenas o próprio
Deus, essas passagens aparentemente contraditórias
complicam a compreensão da exposição da
doutrina do Logos, de Filo. A citação anteriormente
torna a Palavra nada mais do que a faculdade da
razão em Deus; isto é, a Palavra é o próprio Deus.
Filo chama o Logos de eterno e não gerado.
Entretanto, Filo também afirma que o Logos foi
gerado, e que as ideias foram criadas. Em algumas
passagens em que o Logos é chamado de eterno, a
intenção poderá ser somente a de que
o Logos seja perene; e em outras passagens há um
contraste entre o Deus eterno e
o Logos incorruptível, o que poderá significar que
Deus estivesse originalmente só, mas que agora,
depois de haver gerado o Logos, ele não o
aniquilará. Filo diz, também, que Deus é superior
ao Logos, e que o Logos é o Filho de Deus,
segundo Deus, e um segundo Deus. Uma
explicação para tal confusão seria a de que Filo
fosse um eclético ametódico. Obviamente mais
interessado em edificar seus correligionários, ele
ajuntou material de onde pudesse achar sem se
preocupar com a consistência e com os problemas
da filosofia sistemática. No entanto, não é
implausível que tal homem bem educado, mesmo
que tenha deixado escapar detalhes menores, tenha
sido bem consistente em suas posições
principais. Portanto, alguma medida de harmonia
talvez possa ser obtida mediante a suposição54 de
que o Logos passe de um estágio interno, na mente
de Deus, para um estágio externo, como um mundo
das Ideias realmente existente, e, até mesmo, para
um terceiro estágio em que ele se torna imanente no
mundo sensível.

Sem dúvida, foi o título Filho de Deus que trouxe a


teoria do Logos, de Filo, à atenção simpática dos
primeiros pensadores cristãos. Visto que
oEvangelho de João ensina que Jesus,
o Logos, criou todas as coisas e sem ele nada do
que foi feito se fez, a teoria de Filo, de que Deus
usou o Logosou Sabedoria na criação parece uma
antecipação da posição trinitariana. Entretanto, essa
interpretação cristã de Filo não poderá ser mantida
com sucesso. Ela depende demais da linguagem
altamente figurativa de Filo. É verdade que Filo
personifica o Logos, mas tal personificação é
inteiramente metafórica. Ele também diz que o Riso
é um Filho de Deus, e que Deus é o marido da
Sabedoria; diz que a Sabedoria é filha de Deus, e
mãe do Logos,e diz também, que a Sabedoria é pai
da instrução. Essas metáforas cancelam-se
mutuamente. A sóbria posição de Filo é a de
que, por razões epistemológicas e cosmológicas,
deve existir um Mundo das Ideias, mas, contrário a
Platão, Deus é supremo.

Na história dos estudos filônicos, outra razão foi


apresentada para dar ao Logos um mais alto grau de
independência ou personalidade substancial. Por
causa da justiça de Deus, argumentou-se que ele
não poderia, mesmo que por um ato de criação,
entrar em contato com um mundo onde há pecado.
De maneira mais geral, foi sustentado que a
suprema Deidade, infinitamente superior à
toda finitude, incluindo o conhecimento humano
finito, comprometeria sua posição singular caso
entrasse em contato com o mundo. Portanto, teria
sido necessário que Deus usasse seres
intermediários a fim de produzir um mundo
inferior. A primeira forma do argumento, que
envolve o problema do pecado, deve ter ocorrido a
qualquer pensador judeu ou cristão, embora não
seja tão evidente que um ser intermediário
resolveria a questão. A segunda forma do
argumento é tão incompatível com o conteúdo da
revelação, e com a própria possibilidade
de revelação, que seria surpreendente encontrá-lo
em escritos de autores ortodoxos ou heréticos. Filo
não estava intrigado sobre como um Deus imaterial
e supremo poderia criar um mundo material. Este
foi criado por um ato de vontade soberana de
acordo com um plano sábio. Depois de havê-lo
criado, Deus poderia lidar e lidou com o mundo de
maneira direta e por meio de intermediários, tal
como lhe pareceu adequado.

Há, entretanto, uma dificuldade importuna em


relação à criação do mundo visível. Algumas vezes,
Filo refere-se a Deus, não como tendo criado o
mundoex nihilo, mas como tendo formado todas as
coisas a partir da matéria ou da realidade. Assim,
quando diz que Deus não é apenas um Demiurgo,
mas também um Criador, Filo está argumentando
que Deus é o criador das Ideias, mas apenas
o Demiurgo do mundo visível. No entanto, mesmo
que Deus tivesse criado este mundo a partir da
matéria, ainda seria possível que Deus tivesse
previamente criado também a matéria. Evidência
para isso poderá ser encontrada em
certas expressões que parecem indicar que Filo,
novamente contrário ao Timeu de Platão, pensasse
que o espaço teria sido criado. Se Filo alterou o
platonismo em um dos aspectos principais, nada
impede a conjectura de que o tenha
também alterado em outros aspectos. O desejo de
obter consistência pode ter sido uma motivação.
Embora a fraseologia não seja decisiva, uma
matéria não criada, e um dualismo básico, parecem
tão claramente incompatíveis com o Antigo
Testamento, que seria difícil supor que um
admirador de Moisés adotasse tal visão. Entretanto,
posto que filósofos têm feito coisas muito
estranhas, e como os antigos frequentemente
surpreendem a mente moderna, talvez esse assunto
possa ser deixado em aberto.

Transcendência e conhecimento
Mais recompensador será um estudo mais próximo
da visão de Filo sobre a natureza de Deus. Algumas
indicações da transcendência de Deus já
foram dadas. Deus não é meramente eterno e
independente, mas somente ele é; não há outros
princípios independentes. Ele não é meramente o
mais alto termo de uma série de gradação, mas
entre ele e tudo mais está o abismo que separa o
Criador das criaturas. Além das poucas citações já
feitas, há outra sobre transcendência que parece
diretamente dirigida contra o neopitagorismo. Filo
escreveu: “Deus tem sido classificado segundo o
uno e a unidade; ou melhor, até a unidade tem sido
classificada segundo o único Deus, pois todo
número, tal como o tempo, é mais jovem do que o
cosmos”.55

Uma vez que qualquer autor que faça tal declaração


afirma ipso facto que conhece algo sobre Deus, a
doutrina de Deus poderá ser abordada mediante
a consideração de se o conhecimento humano sobre
Deus é realmente possível, e se for possível, como?
Esse problema não apenas ecoa através da Idade
Média e reverbera na teologia protestante, como é
também um problema, algumas vezes disfarçado,
ao qual a filosofia secular não pode escapar. A
questão imediata é se a teoria teológica de Filo
permite ao homem o conhecimento de Deus ou
não. A pessoa não instruída será tentada a fazer
pouco caso da questão: se Deus é incognoscível,
então não poderemos fazer nenhuma declaração
justificável sobre ele e deveríamos parar de falar.
Se, ao contrário, Filo fez tais
declarações, obviamente ele cria que Deus pode ser
conhecido. Entretanto, há complicações. Conquanto
a noção de Filo quanto à transcendência não separe
Deus do mundo a ponto de requerer mediadores
pessoais, ainda assim há declarações tão
fortes sobre a superioridade de Deus e a finitude do
homem, que a possibilidade do conhecimento
humano sobre Deus torna-se problemática. Em uma
passagem, frequentemente citada, Filo diz: “Quem
poderá afirmar, sobre a primeira Causa, que ela não
tem corpo, ou que é corpo; que é com ou sem
qualidade; quem poderá fazer qualquer declaração
quanto à sua substância, qualidade, estado
ou movimento?” Tal negação da possibilidade de
fazer qualquer afirmação positiva sobre Deus,
limitando o conhecimento humano sobre Deus
àquilo que Deus não é, foi, mais tarde, chamada de
teologia negativa. Porém, tirada do contexto, a
citação é demasiadamente extremada para
representar a posição normal de Filo. Mesmo com
certas qualificações do contexto, e com o
reconhecimento de que os termos-chave são
estoicos, a citação ainda é muito cética. Pois, se
alguma coisa fica clara, Filo estava quase disposto
a afirmar não apenas negativamente que Deus não
teria corpo, mas também positivamente que Deus
seria justo, criador, e daí em diante. Entretanto, tal
declaração extremada, ainda que não característica
de Filo, somente poderia ser feita por um pensador
para quem a possibilidade humana de conhecer a
Deus fosse definitivamente limitada.

Um conhecimento da existência de Deus, e


algumas impressões de sua sabedoria e poder
poderão ser obtidos mediante a observação de sua
maravilhosa criação.

É de duvidar que Filo pretendesse afirmar a


validade formal do argumento cosmológico; em
todo caso, o conhecimento de Deus, derivado do
mundo, é apenas uma apreensão “mediante uma
sombra projetada, discernindo o Artífice por meio
de suas obras”. Em contraste com esse
conhecimento indireto, Filo parece mais
impressionado com a possibilidade de conhecer
Deus com o concurso de nossas mentes. Por meio
da solidão e bloqueio das impressões sensoriais, da
introspecção e abstração, alguém poderia obter um
conhecimento de si mesmo que o conduzisse a
Deus. Há uma analogia entre a relação da mente
com o corpo, e a relação entre Deus e o mundo. Por
esse caminho é possível obter melhor entendimento
de Deus, do que por meio do estudo da cosmologia.
De fato, esquecendo momentaneamente o ceticismo
das citações anteriores, Filo, com entusiasmo
excessivo, afirma que será possível para a pessoa
cuja mente seja “totalmente pura ... elevar os olhos
acima e além da criação e obter uma clara visão do
Uno não criado”. Portanto, Moisés conheceu a
Deus, não por meio de reflexão sobre as coisas
criadas, mas mediante “uma clara visão de Deus, a
partir diretamente da própria Causa Primeira”.56
Contudo, o ceticismo retorna, pois a analogia não
fornece um paralelo perfeito. “Não suponha,
entretanto, que Ser, cuja verdade existe, seja
apreendido por qualquer pessoa, pois não temos em
nós nenhum órgão por meio do qual possamos vê-
lo nem por meio dos sentidos ... nem na mente ... E
por que nos surpreenderíamos com o fato de que o
Ser não pode ser apreendido pelo homem, quando a
nossa mente também nos é desconhecida? ... É uma
consequência lógica, que nenhum nome pessoal
possa ser, adequadamente, atribuído ao verdadeiro
Ser. Observe que, quando o profeta desejou saber
qual a resposta a ser dada aos que perguntassem
sobre seu nome, Deus disse: ‘Eu sou o que
Sou, equivalendo a: ‘Minha natureza é ser, não ser
dito’.”57

O fato de que Deus é incompreensível, que sua


natureza não pode ser descrita, que realmente não
tem nome — o último, baseado em Levítico
24.16 interpretado como proibindo nomear Deus - é
suportado por considerações adicionais. Uma vez
que Deus transcende o Bem e o Uno, não há nele
distinção de gênero ou espécie, de forma ou
matéria. Deus não é o gênero supremo (a despeito
das palavras de Filo de que Deus é o mais genérico
de todos os seres) de quem as outras coisas são
espécies, nem é uma espécie de alguns
gêneros mais elevados. Isso significa que Deus não
pode ser classificado. Porém, se for assim, então
Deus será incognoscível, pois todo conhecimento é
expresso por meio da classificação do objeto sob o
predicado mais amplo. Podemos saber o que é um
leão ou camelo, classificando-o com outros
mamíferos ou outros animais vertebrados. Sem tal
classificação, não poderíamos saber o que é um
leão. Ou, em outras palavras, o que um leão é, é a
definição de leão, e segundo Aristóteles, a
definição é enquadrada identificando o gênero e
adicionando uma diferença específica. Ora, a
menos que uma teoria não aristotélica de definição,
seja elaborada, o que Filo não fez, a conclusão será
que Deus não poderá ser definido e que nós não
poderemos saber o que Deus é. Em vez disso,
alguém terá de falar de Deus como faziam os
israelitas em relação ao maná: eles não sabiam o
que era e, por isso, chamaram-no de “o que é isto”.
Geralmente, todo conhecimento humano é uma
questão de discernir semelhanças. Chamar um leão
de mamífero é afirmar sua semelhança com muitas
outras espécies. Sempre que aprendemos algo sobre
um objeto até então desconhecido, isso ocorre por
meio de informação de com o que ele se parece.
Contudo, para Filo, Deus é diferente de todas
as coisas. Explicando a declaração de Deus, de que
jamais destruiria o mundo por meio de um dilúvio,
uma declaração que indica remorso,
arrependimento ou mudança de mente, Filo
escreve: “Podemos dizer que todas as formas de
palavras usadas na Lei, geralmente são mais para
aprendizado e auxílio no ensino do que para a
natureza da verdade. Há dois textos encontrados na
Lei, um dos quais diz: ‘Deus não é como o
homem’, e o outro em que é dito que o Eterno
disciplina o homem tal como este disciplina um
filho, e isso é verdadeiro. Na realidade, Deus não é
como o homem, nem como o leão, nem como o
Sol, nem como o mundo perceptível aos sentidos,
mas apenas como Deus, se for correto dizer isso. O
bendito e bem-aventurado Uno não admite
semelhança, comparação ou parábola; antes, está
além da própria bênção e ventura e o que quer que
seja mais excelente e melhor do que estas coisas”.58

Observe novamente quão estranho é este tema para


o pensamento grego. Mesmo o inefável Uno de
Plotino, fornece apenas uma semelhança
superficial, ademais, Plotino estava ainda há
duzentos anos, no futuro. Sem dúvida, Filo
foi fortemente influenciado por filósofos gregos,
mas foi uma influência apenas na terminologia e
em detalhes menores. Se alguém quiser determinar
a fonte de seus primeiros princípios, em vez de sair
a campo e pesquisar os textos gregos, deveria ler o
hebreu Isaías: “A quem, pois, fareis semelhante a
Deus ou com que o comparareis?... A quem pois
me fareis semelhante, para que lhe seja
semelhante? - diz o Santo ... E quem chamará como
eu, e anunciará isso, e o porá em ordem perante
mim, desde que ordenei um povo eterno? Este que
anuncie as coisas futuras e as que ainda hão de vir
... A quem me fareis semelhante, e com quem me
igualareis, e me comparareis, para que sejamos
semelhantes? ... Lembrai-vos das coisas passadas
desde a antiguidade: que eu sou Deus, e não há
outro Deus, não há outro semelhante a mim” (Is
40.18, 25; 44.7; 46.5, 9).

Certamente, isso não quer dizer que a interpretação


de Filo, de Isaías, seja mais correta do que sua
interpretação de Levítico 24.16.

Revelação e ceticismo

Uma religião revelada, na qual Deus fornece ao


homem informações sobre ele mesmo e sobre sua
salvação, simplesmente não pode ser cética. Se, de
modo inconsistente, Filo afirmou e negou a
possibilidade de conhecer a Deus, ele não foi o
único a tropeçar nesse sentido. Ainda que não
avancemos na exposição do pensamento de Filo,
devido ao reaparecimento da dificuldade ao longo
dos séculos, em diversas apresentações, será bom
que terminemos esta subseção com uma vista breve
sobre algumas delas. Presumindo que Deus tenha
criado o homem à sua própria imagem, já não mais
poderemos dizer que Deus seja totalmente outro e
sem semelhança. Ainda que os pensamentos de
Deus estejam muito acima dos nossos pensamentos,
e que Deus seja infinito e o homem, finito,
e, mesmo a despeito da cegueira espiritual por
causa do pecado, uma religião revelada terá de
afirmar que o homem pode conhecer a Deus. A
extensão de tal conhecimento, contudo, tem sido
matéria de discussão. Com bastante frequência, um
indivíduo ou um grupo, esposando alguma forma
de misticismo irracional, tem trocado conhecimento
por transe, reduzido a religião a uma emoção,
e limitado a linguagem a confusas ilustrações e
analogias. Mais educada, pelo menos na aparência,
mas não muito superior, está a teologia negativa,
que afirma que poderemos conhecer que Deus é,
mas jamais o que ele é - isto é, podemos conhecer a
existência de Deus, mas não a sua essência.
Conhecimento da existência de Deus é
saber que Deus é; conhecimento da essência de
Deus é saber o que ele é. Porém, se não
soubermos o que Deus é, sequer saberemos que
tipo de existência é para ser afirmada. Deus, assim,
torna-se meramente um objeto desconhecido. É
difícil explicar por que alguém deveria adorar
um objeto desconhecido, ou como alguém poderia
ajustar sua conduta a ele. Permitindo maior
conhecimento positivo, pelo menos aparentemente,
está a posição de que os atributos de Deus podem
ser conhecidos, mas não o próprio Deus. O fato de
que Deus é justo e misericordioso é, sem
dúvida, verdadeiro; outros atributos talvez possam
ser igualmente afirmados; mas Deus ou a essência
de tais atributos, isto é, a substância a qual os
atributos se ligam, permanece em trevas
impenetráveis.

Essência e atributo

A discussão dessas, e de outras soluções, tem sido


assistida com considerável confusão, fruto das
dificuldades do próprio problema e, talvez, até
mais, das ambiguidades terminológicas. Se a
existência ou Ser de Deus for considerado antes e à
parte da essência e dos atributos de Deus, os
últimos, segundo uma analogia química, assumirão
os aspectos dos elementos adicionados, o que
parece comprometer a alegada simplicidade do Ser.
No entanto, mesmo que a simplicidade não exigisse
a identificação de existência e essência, a
identificação seria necessária para evitar a redução
da existência de Deus à existência de um objeto
incognoscível, pois o que deve existir e deve,
também, ser conhecido. A distinção entre
substância e atributo também apresenta
dificuldade. Substância é um sinônimo
de essência - não é? Mas o que serão os atributos?
E quais serão suas relações com a essência? Não
serão os atributos predicados distintos do objeto ou
substância à qual se ligam? Se os atributos não
configuram a essência, seriam eles não essenciais?
A essência de Deus permaneceria imutável, se
um dos atributos lhe fosse retirado? Seria Deus o
que Deus é, se a onipotência e a onisciência
pudessem não ser seus predicados? De fato, o
que é essência e o que é essencial senão os
atributos?

Além da distinção ou da negação da distinção entre


essência e atributo, o status dos próprios atributos
também tem sido matéria de discussão. Pergunta-
se: Os diversos atributos têm diferentes definições
quando aplicados a Deus, tal como têm quando
aplicados a homens? Sabedoria e poder, justiça e
amor não significam as mesmas coisas nos
negócios humanos, mas haveria alguma
diferença, no caso de Deus? Ou seriam os atributos
meramente maneiras humanas de apreensão da
manifestação da atividade de Deus? Se os atributos
forem meramente subjetivos, e talvez,
representações humanas arbitrárias, e não existir
distinção entre eles, em relação a Deus, então
parecerá que o conhecimento dos atributos não
constitui conhecimento de Deus. Palavras devem
ter sentidos definidos; e quando termos tais
como justiça, poder e amor são tomados como
sinônimos, eles não comunicam pensamento
definido. Esse parece o resultado da remoção de
distinções reais ou objetivas do Ser de Deus. É
possível que essa conclusão cética não seja
estritamente obtida. A essência de Deus, para
equipará-la com um atributo, poderia ser
onipotência. Sendo onipotente, Deus promulga e
ordena leis de moralidade. Esta é uma função da
onipotência, mas o homem poderá chamá-la de
justiça. Sendo onipotente, Deus planeja e executa o
curso da história de maneira a produzir um fim
escolhido. Isto também é onipotência, mas
o homem poderá chamá-la de sabedoria. Assim,
ainda que justiça e sabedoria não sejam distintas
em Deus, elas têm pontos de referência na
experiência, sendo, portanto, distinguíveis e,
consequentemente, conhecíveis. Nesse caso, não
se poderá levantar a objeção de que Deus não seja
“verdadeiramente” justo, mas que meramente
inflija punição por causa do pecado - infligir
punição por causa do pecado é ser
“verdadeiramente” justo. Também, o singular
atributo da onipotência não é um conceito vazio,
indeterminado, e Deus não é reduzido — tal como,
algumas vezes, os místicos o reduzem — a um
Nada divino ou a um Vácuo celestial.

Parte da dificuldade com esse problema é real e


parte é apenas verbal. A contemplação da
majestade e da sublimidade de Deus, para quem
nosso conhecimento é admitidamente inadequado,
geralmente conduz a mente religiosa a uma visão
mística e cética da transcendência. Porém, como já
foi dito, isso é inconsistente com uma religião
revelada. Relacionado à sublimidade, ainda que
seja um motivo mais filosófico do que
distintamente religioso, está a simplicidade da
essência de Deus. Para os cristãos, no entanto, a
doutrina da Trindade contraria a simplicidade, que
reduziria Deus a um mero Uno eleata ou
neoplatônico. Para Filo, que, claramente, nada
conhecia sobre a Trindade, assim como para os
cristãos, as Ideias na mente de Deus impedem uma
unidade última. Quando Deus é concebido como
uma mente, ele poderá ser único Deus, além de
quem não há outro; mas sua mente precisará não
ser um imenso espaço em branco ou uma confusão
homogênea. Entretanto, muito da dificuldade é
verbal, por causa de uma teoria de lógica
incompleta. Alguns teólogos parecem não precisar
de definição dos termos essência e atributo, e,
portanto, a relação entre eles se torna nebulosa.
Aristóteles fez da substância ou realidade a
sua categoria primeira, e tentou definir propriedade,
atributo e acidente. Ele não foi completamente
bem-sucedido, tal como o capítulo precedente
indicou brevemente; mas é necessário dizer que os
teólogos cristãos não fizeram melhor. Quanto os
teólogos conscientemente seguiram Aristóteles, por
exemplo, na Idade Média, as dificuldades originais
reapareceram. Quando não seguiram Aristóteles,
como nos períodos patrístico e protestante, fica
difícil adivinhar o que os teólogos queriam dizer
com esses termos. Mesmo sua lista de
atributos termina em confusão. Conhecimento e
volição são atributos? As Ideias na mente de Deus
são atributos? Como poderia alguém ser capaz de
responder tais questões sem conhecer o significado
do termo atributo, sem uma teoria de lógica bem
desenvolvida? Isto é o que, frequentemente, tem
sido omitido.

Como judeu, vivendo antes do Novo Testamento


ter sido escrito, Filo reconhecia apenas o Antigo
Testamento como revelação divina. Com a vida
e morte de Jesus Cristo e os escritos do Novo
Testamento, os temas fundamentalmente judaicos
foram libertados da interpretação farisaica, e,
desenvolvidos em uma teologia mais rica, foram
efetivamente proclamados ao mundo gentio. Foi
esta revelação mais ampla que dominou a Idade
Média.

A teologia de Jesus
Jesus é, algumas vezes, descrito como um simples
mestre de moralidade, ingênuo e não-teólogo. A
evidência histórica, entretanto, não suporta tal
debuxo pouco lisonjeiro. Com determinação, ele
instou sua audiência ao arrependimento, perdoou
pecados, e seguiu o caminho da justiça. Em tudo
isso, porém, ele pouco foi além da Lei e dos
Profetas ou, até mesmo, além de alguns
dos melhores rabinos. Seu famoso sumário da Lei,
por exemplo, reduzindo os Mandamentos ao amor a
Deus e ao próximo, é retirado, palavra por
palavra, de Deuteronômio e Levítico. Se tivesse
sido o simples mestre de moralidade a que o reduz
a reconstrução liberal da História, Jesus seria, hoje,
mais obscuro do que o rabino Hillel.

O fato de que a posição preeminente de Jesus na


História não depende de uma carreira magisterial
bem-sucedida, especialmente, de mestre de
prosaica moralidade, fica evidente em duas
considerações. Primeiro, seu propósito na vida não
foi o de ensinar, mas o de morrer. Diferente dos
estoicos, que ensinaram que todos os homens eram
filhos de Deus, Jesus viu os homens como
nascidos em pecado, filhos do diabo, que
precisavam de novo nascimento. Jesus
veio, portanto, para que os homens fossem feitos
filhos de Deus. Os fundamentos para tal
possibilidade foram lançados por sua morte, não
por seu ensino moral. Em segundo lugar, sua falta
de sucesso como mestre é vista no fato de que,
até mesmo seus discípulos mais íntimos, não
entenderam sua mensagem. Tudo isso
é surpreendente, primeiro porque, no que concerne
ao grande público, “Por isso, lhes falo por
parábolas, porque eles, vendo, não veem; e,
ouvindo, não ouvem, nem compreendem. E neles
se cumpre a profecia de Isaías, que diz;
Ouvindo, ouvireis, mas não compreendereis e,
vendo, vereis, mas não percebereis”; e segundo,
porque sua pessoa e os eventos futuros que ele
obscuramente indicava eram contrários à
expectativa dos discípulos.

Contudo, ainda que sua audiência falhasse em


perceber a teologia da mensagem, ele mesmo não
era desprovido de uma teologia bem
desenvolvida. Sobre esse ponto, seus mais
ferrenhos inimigos viram além e mais
claramente do que os discípulos. Em sua teologia,
Jesus aceitava naturalmente a revelação do Antigo
Testamento, apelava a ela e enfatizava-a. E ele a
expandiu. O Antigo Testamento claramente ensina
que Deus não se agrada da injustiça e que punirá o
pecado. Jesus não apenas enfatizou a justiça, mas
ainda forneceu detalhes mais vívidos sobre a
punição, como, até então, jamais vistos. No tão
conhecido Sermão do Monte, ele ameaçou com
fogo do inferno e, em outros lugares, ele falou do
fogo que não se apaga e do verme que não morre.
Fazendo tais adições ao Antigo Testamento, ele, de
fato, reivindicou posição igual à de Moisés e
dos profetas; ou melhor, ele reivindicou autoridade
igual à de quem deu a mensagem a Moisés e aos
profetas. No Sermão do Monte, novamente, ele
afirma ser o Juiz do destino final de todo indivíduo.
“Muitos me dirão naquele Dia: Senhor, Senhor, não
profetizamos nós em teu nome? E, em teu nome,
não expulsamos demônios? E, em teu nome, não
fizemos muitas maravilhas? E, então, lhes direi
abertamente: Nunca vos conheci; apartai-vos de
mim, vós que praticais a iniquidade”.
Depois de setenta dos discípulos terem retornado de
uma excursão de pregação e de reportarem que
alguns judeus haviam crido e, outros, não,
Jesus orou (Mt 11.15-27 e Lc 10.21-22),
agradecendo ao Pai por ter escondido dos sábios e
prudentes o significado da mensagem, revelando-o
aos pequeninos. Isso pareceu bem aos olhos de
Deus. Então, Jesus continuou: “Todas as coisas me
foram entregues por meu Pai; e ninguém conhece o
Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai, senão
o Filho e aquele a quem o Filho o quiser
revelar”. A última frase de sua oração mostra que
Cristo reivindicou poder igual ao de Deus para
escolher quais pessoas entenderiam a revelação e
de quais ela seria escondida, pois toda revelação
havia sido entregue nas mãos do Filho. E mais, o
conhecimento do Pai quanto ao Filho - que, é claro,
é conhecimento divino, eterno e completo - e o
conhecimento do Filho quanto ao Pai são
equiparados. Aqui está envolvido, nada mais do
que uma reivindicação de Jesus, de que ele é Deus.
Essa reivindicação foi feita em diversas formas e
em muitas ocasiões; e finalmente, quando repetida
sob juramento, em corte, tornou-se a base para sua
condenação à morte. Sua ressurreição dentre os
mortos, deixando o túmulo vazio, e sua aparição
para mais de quinhentas testemunhas fazem justiça
à reivindicação.

Quando o apóstolo Paulo pregou as boas-novas aos


gentios, explicando seu significado de modo mais
amplo do que as condições históricas
tornavam sábio que Cristo o fizesse, dois resultados
interligados ficaram evidentes. Primeiro, o
monoteísmo judaico aceito teria de ser ajustado de
maneira que o único Deus pudesse consistir de três
Pessoas. Porém, em segundo lugar, os convertidos
ao cristianismo, diferente de Filo, eram
principalmente gentios, imbuídos de religiões e
filosofias pagãs; naturalmente, portanto, sua
primeira tentativa para assimilar a revelação do
Novo Testamento mostrou uma mistura mais ampla
de ideias do que o pensamento de Filo. E de uma
teologia tão distinta do ponto de vista político, os
três primeiros séculos, culminando com o Concílio
Niceno, foram tomados com esforços para excluir
ideias pagãs da formulação das doutrinas básicas do
cristianismo.

Divisões históricas

A filosofia medieval é dividida em duas épocas


bem demarcadas. A segunda, o período escolástico,
começou com João Scoto Erígena, após o reinado
de Carlos Magno. O período patrístico anterior
pode ser subdividido. O primeiro período, o
período patrístico antigo anterior, inclui os autores
pós-apostólicos, de maior importância para a igreja
do que para a filosofia; os gnósticos,
grupos heréticos ou pagãos que inventaram uma
síntese de cristianismo com ideias gregas
prodigiosas demais para relacionar; Justino, o
Mártir (morto em 166); Tertuliano (c. de 200);
Orígenes (c. de 250); e Atanásio (293-373). Nesse
período patrístico antigo anterior, a teologia e a
filosofia, tal como era então, estavam intimamente
entrelaçadas; e o principal esforço era o de
formular a doutrina da Trindade. Depois de
Atanásio, outros estudos doutrinários foram
assumidos e, do seu pano de fundo teológico,
começaram a surgir os temas filosóficos. O período
patrístico antigo posterior também pode ser
dividido, principalmente por causa da
desintegração do Império Romano. Gregório de
Nissa (335-394) talvez seja melhor considerado
como um precursor não tão importante de
um grande autor filosófico do milênio. Agostinho
(354-430) se destaca em qualquer método de
avaliação, e, marca uma subdivisão no próprio
período patrístico. Então, com a queda de Roma,
ocorrida no tempo de vida de Agostinho, e
continuando com as invasões bárbaras, a Era das
Trevas dominou o mundo pelos 350, ou 400 anos
seguintes.

Patrística Menor

Depois da destruição de Jerusalém (70 d.C.), que


rompeu o último laço visível com o judaísmo
organizado, o Mundo Romano reconheceu que
havia uma nova religião com a qual contender.
Ainda que a maioria dos convertidos viesse das
classes inferiores, como deve sempre ser em se
tratando de religião, o cristianismo, já nos tempos
do Novo Testamento, havia penetrado a casa
de César. À medida que eram levados, de tempo em
tempo, a aceitar a Cristo, pagãos bem-educados não
podiam evitar a tentativa de responder
questões filosóficas levantadas por sua nova
religião. Tais tentativas, sobretudo,
tinham necessidade de apelar para outros pagãos
bem-educados. Alguns dos escritores pós-
apostólicos refletiram de maneira não sistemática
sobre as implicações da fé. Mas Justino - para não
falar dos gnósticos, cujas lendas espíritas não
devem ser aqui repetidas — foi o primeiro a se
dedicar conscientemente à tarefa. Em face da
perseguição pela qual ele finalmente obteve o título
de Mártir, Justino pleiteou tolerância para o
cristianismo, com base em que este também seria
uma filosofia. Justino podia falar como um filósofo,
porque havia estudado os melhores pensamentos
dos seus dias; sua conversão ao cristianismo, vindo
de uma prévia posição platônica, ocorreu em
virtude de argumentos contra a imortalidade
natural da alma. Aquilo que o Fédon se propõe a
provar não era tanto a imortalidade da alma no
sentido cristão e etimológico da palavra, mas a
eternidade da alma. Não apenas a alma sobreviveria
após a morte, mas teria existido antes do
nascimento. Tal eternidade seria uma qualidade
natural e inerente. Justino Mártir e muitos outros
consideraram falacioso esse argumento platônico.
O Novo Testamento diz que só Deus possui a
imortalidade e que os homens a têm somente como
um dom divino. Convertido dessa maneira, mas
mantendo tendências intelectuais prevalecentes na
época, Justino, como cristão, permaneceu eclético.
Respeitou os pitagóricos, admirou os estoicos em
alguns aspectos, e continuou apegado à forma do
platonismo, crendo que muito dos ensinos de Platão
teria sido derivado de Moisés. Esse tipo de
mentalidade, típica da época, não era capaz de
evitar a confusão. Ainda que representasse Deus
como o Deus vivo, em oposição às abstrações dos
filósofos, Justino parecia não apreender a
criação ex nihilo. Ele identificou o Logos com
Cristo, mas, como é de se esperar, teve dificuldade
com a relação entre o Pai e o Filho. O Pai gerou o
Filho mediante um ato da vontade de maneira que o
Filho não é pessoalmente eterno, mas veio a ser em
um ponto no tempo. Entretanto, a substância
do Logos é eterna e é uma com o Pai, mas
a distinção numérica e pessoal é uma adição
posterior. O Logos,sendo a razão de Deus, é
encontrado onde houver razão. Em Sócrates, por
exemplo, o Logos condenou os erros da religião
grega. Entretanto, se todos os homens
compartilham do Logos, pelo menos, até certa
extensão, por que, então, falham quanto a
conhecer a Cristo? Justino explica que o homem
tem livre-arbítrio; teria capacidade de escolher o
bem; haveria pouca ou nenhuma falha na natureza
humana; o pecado de Adão teria sido o primeiro
pecado, mas não teria sido a causa dos
pecados posteriores; não fosse pelos demônios que
inventaram o politeísmo, o Logos teria impedido o
homem de fazer o mal. Tudo o que é necessário,
agora, é razão e ensino; o Logos encarnou em Jesus
Cristo; ainda que ele tenha vencido a morte
e lavado os nossos pecados por meio do seu
sangue, o propósito principal de Jesus foi o ensino
para correção de erros. O batismo redime dos
pecados de outrora, e nós recebemos recompensa
por, subsequentes, boas obras. Desse modo,
duas linhas de pensamento inconsistentes estavam
entrelaçadas.

Tertuliano tinha um tipo diferente de personalidade.


Não apenas defendeu a justiça, mas foi além e
adotou uma posição ascética. Foi com rancor que
ele admitiu a permissibilidade para o casamento; o
celibato seria melhor; e um segundo casamento
seria pecado. A cultura pagã é um mal e a filosofia,
a mãe das heresias. Enquanto Justino é tido como
um apreciador da literatura pagã, Tertuliano é mais
conhecido por sua áspera condenação desses textos.
Hábil na retórica da discussão da lei, ele declara:
“Que tem o cristão em comum com o filósofo?
Jerusalém com Atenas? A Igreja com a Academia?
Revelação com razão?” Para ilustrar seu desprezo
pela racionalidade, autores modernos, algumas
vezes, citam-no como aceitando o evangelho com
estas palavras: Credo quid absurdum [Creio porque
é absurdo]. Não há evidência de que Tertuliano
tenha usado essa frase, mas há registro de algo que
ele disse: Sepultus ressurrexit; certum est
quia impossible est [sepultado, ressuscitou;
verdadeiro porque é absurdo]. Entretanto, aqueles
que desprezam a filosofia são, frequentemente,
aqueles que mais filosofam, e com um mínimo de
constrangimento. Assim, a despeito de todo repúdio
pelo paganismo, Tertuliano parece ter absorvido
uma boa porção do estoicismo. Ele foi, de fato, um
materialista, sustentando que nada existiria, exceto
corpos, e que toda substância seria corpórea. Deus
mesmo seria um corpo, tal como a alma humana. A
despeito do materialismo ser uma anomalia no
cristianismo histórico, Tertuliano foi capaz de fazê-
lo servir para uma visão da natureza humana, mais
de acordo com o Novo Testamento do que tinha
sido a visão de Justino. O homem não nasce
inocente; a natureza depravada é uma herança
corpórea, transmitida de Adão, de maneira que,
desde o berço, o pensamento e a vontade de cada
pessoa são corrompidos pelo pecado. Assim, aquilo
que os intelectos viciados pensam ser impossível
ou, até mesmo, absurdo, tal como a ressurreição de
Cristo, poderá bem ser a verdade. Ainda assim, a
raça humana não é terminantemente má, pois
alguma bondade original de Adão também é
herdada; pelo menos o bastante para preservar o
livre-arbítrio e a capacidade de escolher o bem.
Tertuliano se preocupou também com a relação
entre o Pai e o Filho. Tal como Justino, ele não
disse claramente que o Filho, como Filho, seria
eterno, mas, antes, que houve um tempo em que o
Filho não era. Consequentemente, de acordo com a
doutrina do Logos de sua época, ele apresentou o
Filho como tendo sido feito pelo Pai com o
propósito de criar o mundo. Entretanto, sua adesão
consciente às declarações do Novo Testamento,
incluindo as declarações sobre o Espírito Santo, até
então despercebidas ou abafadas, levaram-no a
forçar tal tipo de subordinação, a ponto de falar de
uma substância em três pessoas. Em tais passagens,
ele quase alcançou a posição nicena.59

Neste ponto, será conveniente quebrar a


continuidade histórica a fim de dar atenção a
Atanásio. Um parágrafo parentético será suficiente,
porque o próprio sucesso que o tornou de suprema
importância na história da doutrina, remove-o das
considerações filosóficas. Seus argumentos, tal
como são vistos em De Decretis, baseiam-se
inteiramente em exegese bíblica e são
completamente purgados de elementos pagãos. Seu
oponente, Ário, intensificando a especulação da
subordinação do Logos, não apenas afirma que
houve um tempo em que o Filho não era, mas
conclui plausivelmente que, portanto, o Filho teria
sido criado do nada. Atanásio, contra a hostilidade
imperial pela qual foi falsamente acusado de crime
e, diversas vezes, exilado, e a despeito da inércia de
uma casa de bispos, levou a igreja a reconhecer que
a doutrina da Trindade é o fundamento da fé.60

Outros pensadores cristãos, entretanto,


particularmente sobre outros assuntos além da
Trindade, não foram tão bem-sucedidos em escapar
à influência pagã. Retornando ao século anterior, a
Atanásio, Orígenes de Alexandria (185-254) foi
ainda mais ascético do que Tertuliano, embora, tal
como Justino, estivesse mais inclinado a aceitar a
filosofia grega. A parte de sua subordinação, não
mais extremada do que a de Justino, Orígenes
discutiu sobre o universo criado. A questão que o
preocupava era se o universo era, ou não, eterno.
Por um lado, eternidade envolve
incompreensibilidade; e como Deus compreende o
mundo, este não poderia ser eterno. Isso também é
visto no relato de Gênesis. Por outro lado, criação
implicaria uma mudança em um Deus imutável.
Deus cria porque ele é bom, e, se eras tivessem
passado antes da criação, parecerá que, durante
tal período de inatividade, Deus não teria sido bom.
Orígenes propõe uma solução à antinomia,
sugerindo que este mundo presente teria sido
criado, em um ponto do tempo, tal como Gênesis
diz, mas que haveria uma série infinita de
mundos — não idênticos em muitos aspectos, tal
como diz o ensino estoico - de maneira que o bom
Deus estaria eternamente criando. (Infelizmente, se
uma série de mundos for tambémipso
facto incompreensível, reaparece o problema
original do conhecimento de Deus.) Uma vez que
não haja variedade em Deus, os espíritos que ele
criou primeiro serão todos iguais. Tal unidade foi
destruída mediante o exercício do livre-arbítrio,
resultando em uma hierarquia de seres, porque
alguns pecaram menos e outros mais. Embora não
tencionasse criar um mundo material, Deus o fez
como punição por causa do pecado; e as almas
humanas, de certa forma, descendentes
degenerados de espíritos decaídos, foram forçadas
a entrar em corpos e a nascer. Entretanto, o que o
livre-arbítrio fez poderá também desfazer. Até
mesmo o diabo escolherá ser salvo (é difícil
entender exatamente como uma vontade livre terá
de finalmente escolher o bem), e segundo
ICoríntios 15.25-28, o estado final será como o
inicial. Ao mesmo tempo, e a despeito de
sua imensa erudição e habilidade, Orígenes parece
também traçar um paralelo entre a bondade fixa do
eleito, no céu, e a maldade fixa do réprobo, no
inferno.

Entre Atanásio e Agostinho, devemos mencionar


apenas, Gregório de Nissa. Sua principal alegação,
que merece distinção, é uma tentativa de explicar a
Trindade a partir de princípios platônicos.
Assumindo que o Pai é Deus, o Filho é Deus e o
Espírito Santo é Deus, três pessoas em uma só
substância: Como poderá ser isso? Qual é a relação
entre substância e distinção pessoal? O platonismo
resolve o problema. Tal como Pedro, Tiago e João
são três pessoas que participam igualmente da Ideia
de Homem, assim também o Pai, o Filho e o
Espírito Santo são três pessoas em uma substância.
A essência de Deus é como uma Ideia platônica,
sob a qual, neste caso, há somente três particulares.
Essa engenhosa tentativa para “racionalizar” a
Trindade jamais foi bem recebida pela
igreja. Contudo, levantou a questão, se as doutrinas
da Bíblia poderão ser racionalmente deduzidas ou
não; isto é, se demonstrações de doutrinas poderão
ser completamente independentes da informação
revelada. Sobre isso, muitos autores têm coisas a
dizer. Gregório também pensou que, do mesmo
modo, o platonismo pudesse explicar a doutrina da
criação. Se Deus é espírito puro, como pode haver
uma criação corpórea? A resposta é: Se abstrairmos
de uma árvore, cor, dureza, magnitude e assim por
diante, não restará nenhuma árvore; ao
contrário, Deus juntou as Ideias espirituais de cor,
dureza, e daí por diante, produzindo uma existência
corpórea. Orígenes e Gregório foram homens
ilustres em seu tempo, mais merecedores de
renome do que indica este abreviado relato; mas
nenhum deles poderá ser comparado a Agostinho.
Poucos homens o poderão.
AGOSTINHO

Agostinho (354-430) nasceu de pai pagão e mãe


cristã, emTagaste, Numídia; frequentou escola em
Cartago; aceitou a religião maniqueísta; fez-se
professor de retórica, tornou-se cético; visitou
Roma e Milão; desfrutou o estilo polido dos
sermões de Ambrósio; estudou o neoplatonismo;
leu a Bíblia e converteu-se ao cristianismo; foi
ordenado padre, em 391, elegendo-se bispo de
Hipona, em 395, tendo uma distinta carreira
eclesiástica e literária.

A atividade intelectual de Agostinho começou com


o problema do mal, e com esse problema teve longa
duração. Por volta dos seus 20 anos, ele
achava impossível crer que um Deus bom pudesse
ser a única causa final de um mundo no qual tanta
miséria fosse tão amplamente experimentada, ou,
experimentada em tudo. O dilema, talvez
formulado primeiro por Lactâncio (c. 300) e
repetido por Voltaire e muitos outros, é este: Ou
Deus quer libertar o mundo, do pecado, ou não
quer; no segundo caso, ele não será bom; no
primeiro, ele não será onipotente. Os maniqueístas,
rejeitando a onipotência, concluíram que
haveria dois princípios originais e independentes,
Luz e Trevas, uma mistura da qual este mundo
seria constituído. No século 3o, Mani, o fundador
do maniqueísmo, combinou temas babilónicos,
parses, e budistas, para substituir o zoroastrismo, na
Pérsia. Um pouco da terminologia cristã foi
incluída, e cresceu, provavelmente, na medida em
que a religião se estendeu para o noroeste da
África. Ali, ganhou a aceitação de Agostinho.
Depois de oito anos, porém, os defeitos inerentes a
tal religião foram sentidos. Embora não estivesse
particularmente interessado nas ciências físicas,
Agostinho percebeu que a astrologia maniqueísta
ficava em posição desfavorável quando comparada
à exatidão da astronomia matemática. Assim,
também, sua teoria moral se mostrava deficiente,
pois, a despeito de seu asceticismo, tabus e
escrúpulos - os maniqueístas estritos eram
celibatários — o dualismo subjacente destruía a
responsabilidade pessoal. O “eu” real pertenceria à
Luz, e é a natureza das Trevas que peca. Portanto,
qualquer mal que minha natureza faça não será
tomado como acusação contra mim. Especialmente,
a implicação dualista de que o mal seria uma
substância ou realidade, foi um ponto que
Agostinho veio a combater mais vigorosamente ao
longo do restante de sua carreira. No momento,
com maiores perplexidades quanto ao
materialismo, Agostinho passou para o período do
ceticismo. Por meio do estudo do neoplatonismo,
auxiliado por influências cristãs, Agostinho
escreveu contra os céticos; e com esses
argumentos, pode-se dizer que o sistema filosófico
de Agostinho tenha iniciado. Talvez nem pudesse
ser dito que Agostinho tivesse um sistema
filosófico. Mesmo não sendo um autor tão
desconexo quanto Filo, ainda assim, os livros de
Agostinho eram mais ricos, variados e
estimulantes, do que, propriamente, sistemáticos.

Ceticismo e felicidade

É mérito peculiar de Agostinho ter defendido a


possibilidade de conhecimento, não apenas ou
puramente em bases lógicas, mas
principalmente em bases morais. Ele não se propôs
a enquadrar um relato genético do conhecimento,
mas fez uma aproximação da questão, a partir do
amplo ponto de vista teológico. Nos capítulos
anteriores, por exemplo, no parágrafo de
abertura da era helenista, foi mencionada a conexão
entre ética e epistemologia. Sobre tal ponto,
Agostinho deixa pouca coisa adicional a ser dita.

Os céticos, incluindo os Acadêmicos,


argumentaram, afirmando que ninguém poderia ter
certeza sobre nada. Alguém sequer poderia saber,
que alguém não poderia saber com certeza. Porém,
etimologicamente, cético é aquele que busca a
verdade; a própria busca, sem a descoberta, já é
sabedoria; por meio da suspensão de julgamento
sobre todas as questões, um homem se liberta
de armadilhas e desilusões; ele governará suas
ações, não mediante a verdade, mas mediante a
probabilidade; e assim, no fim da vida, ele será
digno da felicidade.

A isso Agostinho responde, primeiramente, que


uma busca sem possibilidade de descoberta não
pode ser aceitável como definição de
felicidade. Antes, é uma descrição da estultícia.
Certamente ninguém poderá ser feliz, se não tiver
aquilo que quer. Aquele que busca a verdade quer a
verdade. O cético, portanto, não poderá ser feliz;
não poderá conquistar o objetivo de sua vida. Nem
sua busca inútil poderá fornecer orientação para a
vida do dia-a-dia. Os céticos almejam agir sobre o
que é provável. Contudo, se “provável”
significa apenas aquilo que parece bom a uma
pessoa naquele momento, um homem poderá
cometer o mais horrível crime sem que haja culpa,
desde que ele pense que a ação tenha sido
provavelmente boa. Mas probabilidade talvez
signifique algo mais. É possível que signifique
“aproximar da verdade”. Os céticos denominam as
proposições de falsas, duvidosas,
prováveis e plausíveis. Seu princípio básico, no
entanto, não permite que alguém use tais termos de
modo consistente. Uma proposição falsa é uma
proposição oposta à verdade. Como poderá
alguém dizer que uma proposição é falsa, a menos
que conheça a verdade? Uma proposição duvidosa
éaquela que talvez possa ser verdadeira; uma
proposição provável ou plausível assemelha-se ou
aproxima-se da verdade. Mas será impossível
aplicar tais termos sem conhecer a verdade
mediante a qual são determinados. Alguém poderia
perguntar: Será verdadeiro que uma busca
malfadada de antemão configure sabedoria? E um
cético teria de responder que não sabe. Será
provável que tal busca mostre sabedoria? Ou, com
respeito ao cotidiano, será provável ou duvidoso
que comer uma refeição hoje é coisa sábia? Outra
vez, o cético não poderia saber. Uma teoria da
probabilidade tem de ser, ela mesma, baseada
na verdade, pois, se o método de determinar a
provável sabedoria de comer uma refeição for
falso, a conclusão de que é seguro fazer a refeição
não seria conhecida como provável. Sem a posse da
verdade, portanto, é impossível agir
racionalmente, mesmo nas situações mais
ordinárias.

Ora, felizmente, a verdade não somente é possível


de ser obtida como também é possível de ser
perdida. Há verdades que são indubitavelmente
certas. Mesmo as sensações não são uniformemente
ilusórias, e indo mais direto ao ponto, o
pensamento não é totalmente dependente das
sensações. Por exemplo, disjunções completas (tal
como: alguém ou dorme ou está acordado) e
as implicações baseadas nelas (tal como: se houver
só quatro elementos, não haverá cinco) são
inquestionavelmente verdadeiras. Igualmente, a lei
da não-contradição, que subjaz a todas as formas de
lógica, não pode ser negada. Neste ponto,
será preciso revisar alguns comentários pertinentes
de Aristóteles. Além disso, as proposições
matemáticas não poderão ser postas em dúvida,
nem tal ciência é mais baseada em experiência
sensível do que a lógica. Mesmo que fosse
possível perceber sensivelmente determinado
número, o três, por exemplo, as
proporções, divisões e outras operações não
poderiam ser percebidas. Coisas percebidas
por meio dos sentidos, rios e árvores, não
perduram, mas o fato de que a soma de três e sete é
dez, dura para sempre. Jamais houve nem haverá
um tempo em que três e sete somados não resultem
dez. Tais verdades invioláveis e eternas
não poderão ser abstraídas de uma matriz mutável.
Nem poderá um dado número ser abstraído dessa
maneira. O três — ou melhor, o um, uma vez que a
série de números depende do um — não poderá ser
percebido por meio dos sentidos, pois todo objeto
de sensação é múltiplo, e não uno. Corpos possuem
partes inumeráveis. Pelo menos, eles têm três
dimensões, um centro ou superfície, um lado
esquerdo e um lado direto, e, portanto, nenhum
corpo poderá ser uno. Ora, se a unidade pura e
simples não é atributo do corpo, ela não poderá
ser abstraída do corpo, pois não podemos jamais
abstrair o que não está presente. As verdades da
matemática, da mesma forma, são apreendidas, não
por meio dos sentidos, mas mediante a razão ou
intuição intelectual. E tais verdades
são indubitáveis. A refutação mais pesada vem
quando Agostinho pergunta ao seu oponente: Você
sabe que existe? Se ele apenas ouvir a questão, não
haverá dúvida quanto à resposta. Ninguém jamais
poderá duvidar da própria existência. “Todos temos
um ser e o conhecemos, e todos amamos o nosso
ser e o conhecimento. Nesses três termos nenhuma
falsa aparência poderá nos enganar, pois não
os discernimos como coisas visíveis, por meio dos
sentidos... Não temo o argumento acadêmico que
diz: ‘O que será, se você estiver errado?’ Se eu
erro, eu sou, pois só quem não é não pode errar.
Portanto, meu erro prova meu ser.”61 Assim,
na certeza imediata da autoconsciência, um
pensador tem contato com ser, vida, mente e
verdade.

Mil e duzentos anos depois, Descartes repetiu o


argumento: Cogito, ergo sum. Para parecer original,
Descartes apenas alterou sua forma e prejudicou
sua força. Além disso, Descartes transformou a
premissa em uma proposição da qual todas as
verdades deveriam ser derivadas. Agostinho, de
fato, derivou muitas outras verdades,
provavelmente em excesso, de sua certeza original;
mas ela não era a única certeza original. Ela era um
caso, especial e óbvio, de intuição intelectual. Os
céticos haviam gozado considerável sucesso em sua
disputa com os estoicos, pelo fato de ambas as
escolas se limitarem à intuição sensível. O objetivo
de Agostinho era o de forçar a admissão de, pelo
menos, um caso de intuição intelectual; se um caso
fosse admitido, estaria aberta a possibilidade para
outros. Outro filosofo moderno, Immanuel Kant, no
século 18, não se cansou de negar a possibilidade
de uma intuição intelectual. Para ele,
não exatamente como para os estoicos, toda
intuição seria sensível. A oposição entre estes dois
tipos de filosofia é fundamental.

O motivo ético na defesa da verdade merece um


pouco mais de ênfase. Filósofos e cientistas têm
sido, frequentemente, caracterizados como
pessoas engajadas em uma desinteressada busca da
verdade. Especulação é a posição passiva de um
espectador, daquele que vê o espetáculo, mas não
participa como ator. Essa pessoa observa relações
matemáticas, observa-as atentamente, e por um
acaso inventa cálculos, mas não com o propósito de
construir pontes; ela poderá estar interessada na
opressão dos gases, mas não em mover
uma máquina. O objetivo de sua observação ou
experimentação é o conhecimento pelo próprio
conhecimento, do qual ela usufrui como que em
uma “torre de marfim”. A figura pode, obviamente,
ser considerada uma distorção, pois Platão estava
profundamente preocupado com a relação entre o
conhecimento científico e a ética, e com a aplicação
dos princípios éticos a situações concretas. Até
mesmo, Aristóteles, que contemplou atividades
elevadas, escreveu cuidadosamente sobre virtudes
morais. Contudo, embora a figura da “torre
de marfim” talvez seja exagerada, é uma excelente
antítese da visão de Agostinho sobre filosofia.

É claro que a era helénica, especialmente os


estoicos e os epicureus, haviam colocado maior
ênfase na ética, do que Aristóteles, mas Agostinho
a enfatizou ainda mais. Isto está de acordo com o
seu personalismo. Os filósofos anteriores partiram
da física natural, e para eles, o homem era apenas
um item entre tantas curiosidades. Agostinho,
porém, em seu apelo à certeza imediata da
autoconsciência, foi o primeiro filósofo a usar
exclusivamente categorias psicológicas.
Mesmo, Plotino, com todo seu espiritualismo, ainda
manteve as cinco categorias platônicas, das quais
duas eram as categorias físicas do repouso e do
movimento. As palavras-chave de Agostinho,
entretanto, eram: pensamento, dúvida, memória,
vontade e bem-aventurança. Embora tenha
comparado, desfavoravelmente, a astrologia, com
as predições dos astrônomos, Agostinho não estava
grandemente interessado nas ciências físicas.
Enquanto o mundo visível mostra-nos a glória de
Deus, está tudo bem e bom; mas: “Ó Senhor, Deus
da verdade, porventura quem conhece estas coisas
[astronomia] já Vos agrada? Infeliz do homem que
as conhece, mas Vos desconhece a Vós! Feliz o que
Vos conhece, ainda que as ignore! O que vos
conhece a Vós e àquelas coisas não é mais bem-
aventurado por causa delas, mas unicamente por
causa de Vós, se, conhecendo-as, Vos glorifica
como Deus, Vos rende graças e não se desvanece
em seus pensamentos”.62 Algumas mentes
científicas modernas sentem-se aterrorizadas por tal
visão. Perfeitamente certos de que nenhum Deus
interfere miraculosamente no curso da natureza, e
de que daqui em diante, livres dessa espiral mortal,
não haverá sonhos que os impeça, tais mentes
concentram suas afeições em refrigeradores,
automóveis e bombas atômicas, infalivelmente
convencidos dessas coisas, porque a ciência da
raça humana é hoje mais feliz do que foi nos dias
de Agostinho. Porém, qual é o significado de
felicidade, para essas mentes modernas? A primeira
condição da felicidade, Agostinho arrazoa, é que
ela seja permanente. Amar aquilo que poderá ser
perdido será viver imerso em medo. Liberdade do
medo, portanto, apenas poderá ser encontrada na
imutável posse de um objeto imutável, e o único
objeto independente de mudança é Deus. Conhecer
e amar a Deus e conhecer a si mesmo é o objetivo
da filosofia. Nada mais é necessário. Esses dois
conhecimentos, tal como João Calvino repete no
capítulo introdutório de suas Institutas, não
podem jamais ser separados. Não posso conhecer a
mim mesmo a menos que reconheça minha relação
com Deus. Tenho de me colocar sob Deus, mas
acima do corpo e suas paixões. O principal
obstáculo a esse conhecimento é o pecado
do orgulho. O homem não se dispõe a se submeter
a um superior. Ele pretende ser o único comandante
de sua alma. Assim, filosofar é fundamentalmente
uma atividade moral, e o conhecimento tem um
propósito prático, em vez de
puramente especulativo. Está aí envolvida,
basicamente envolvida, a questão
do meu destino. Isso não quer dizer que Agostinho
fosse um precursor do pragmatismo moderno, nem
um discípulo de Protágoras. O homem não cria e
recria a verdade; a verdade é fixa e eterna; e tem de
haver especulação no sentido de descobrir e
considerar a verdade. Mas nós queremos a verdade
porque só ela traz felicidade pessoal. Isto é, ela
trará felicidade, se o conhecimento de Deus for
possível.

Verdade e Deus

Sem dúvida, Agostinho cria que a existência de


Deus pudesse ser provada. Aqui, basta apenas uma
breve declaração sobre “existência” e uma
explanação da prova um pouco mais extensa. Tal
como a distinção entre existência e
essência mencionada, Agostinho, algumas vezes,
revela influência da teologia negativa. Em um
lugar, ele pergunta “se, de fato, nada pode ser dito
adequadamente sobre ele [Deus] pela boca do
homem”. O comentário surgiu no curso de um
argumento a respeito do fato de que as Ideias não
são superiores a Deus, como se Deus participasse
de uma Ideia superior de Grandeza ou de Bondade,
mas que as Ideias estão em Deus e, como atributos,
são idênticos uns aos outros. “Ele é grande com a
mesma grandeza pela qual Ele próprio é essa
mesma grandeza... pois é a mesma coisa, para
Deus, ser grande e ser Deus... o mesmo pode
ser dito também em relação à bondade....”63 Parece,
portanto, que grandeza, e bondade são, em Deus, a
mesma coisa. “Sua grandeza é, também,o mesmo
que sua sabedoria.”64 E, por inferência,
conhecimento, vontade e ação também
são idênticos, pois, em Deus, qualidade e
substância são a mesma coisa. “Ele é, sem dúvida,
uma substância... Deus é a única substância ou
essência imutável, a quem o próprio Ser, de onde
vem o nome essência, mui específica e
verdadeiramente pertence.”65 Mas há uma
dificuldade. Deus não poderia ser chamado de
substância. “Se, eu digo, Deus subsiste de maneira
que possa ser propriamente chamado de substância,
então haverá algo nele como haveria em um objeto,
e ele não será simples... Mas será uma impiedade
dizer que Deus subsiste e é um objeto em relação à
sua própria bondade, que sua bondade não é uma
substância ou preferivelmente essência, e que ele
mesmo não é sua própria bondade, mas que o que
nele há é substância. Por isso, fica claro que Deus é
impropriamente chamado de substância a fim de
que possa ser entendido como Ser mediante o nome
mais comum de essência, tal como ele é verdadeira
e propriamente chamado; assim, talvez seja correto
dizer que somente Deus poderia ser chamado
de essência.”66 A citação é confusa, especialmente
a distinção, aludida, mas não explicada, entre
substância e essência. Seria tentador dizer que
Agostinho tenha recusado colocar Deus sob
qualquer categoria; e em certo sentido, isso
é verdadeiro, embora ele tenha usado a categoria de
relação quando falou de rrês Pessoas e de sua
relação com o mundo. Duas outras passagens
contêm declarações mais fortes de teologia
negativa. Uma é: “Aquele que é mais bem
conhecido, conhecendo o que Ele não é”; a outra:
“De quem a alma não tem conhecimento salvo o
conhecer como não o tem conhecido”.67 Contudo,
tais declarações não poderão pesar muito para a
conclusão. Primeiro, Agostinho as introduziu
de maneira incidental e hesitante - elas não fazem
parte do seu argumento principal. Segundo, o
tratado está entre os primeiros escritos, escrito
imediatamente após a sua conversão, quando a
influência do neoplatonismo ainda era mais forte. A
obra completa de Agostinho não é totalmente
consistente — com o passar do tempo ele
modificou sua opinião, retirando muitos elementos
pagãos, por exemplo, a teoria platônica da
reminiscência e da eternidade da alma,
finalmente escrevendo as Retratações. Terceiro, o
extremo da teologia negativa, de que não seria
possível nenhuma declaração positiva sobre Deus,
não é a posição de Agostinho, pois seus escritos
estão repletos de afirmações positivas, e a
prova de que Deus é tem tudo a ver com o que
Deus é.

O que é “prova”, é outra questão. Agostinho


certamente não parte do movimento físico,
argumentando laboriosamente até chegar a um
motor imóvel, ainda que forneça o que lhe parece
não apenas uma convincente, mas
conclusiva demonstração. Mas ela não é a difícil
série de silogismos que Aristóteles fornece, pois
Agostinho julga tão fácil provar a existência de
Deus, que ele não usa de extremo cuidado para
produzir validade formal. Agostinho nem mesmo
atribui o mesmo peso que Aristóteles às
demonstrações racionais. Há uma maneira mais
natural para começar. Natural, porque todos os
homens sabem que há um Deus; tal conhecimento é
inseparável do espírito humano. E, se alguns
estultos dizem que não há Deus, fazem-no em
função de voluntária ignorância. Deus permanece
presente em suas mentes, se apenas prestarem
atenção. Em vez de começar com prova racional,
Agostinho escolheu o caminho da fé, e assim
fazendo, levantou o problema da relação entre fé e
razão.

Para a mente secular, razão e fé são antitéticas,


sendo a primeira boa e, a segunda, intelectualmente
desonesta. Quão desonesta deverá ser, então, a
mente secular! A fé não é algo estranho ou
irracional, usada apenas na aceitação da revelação
divina; é uma atividade mental indispensável. Fé é
a aceitação de uma proposição como sendo
verdadeira, baseada no testemunho de testemunhas.
Se alguém viu e mediu os muros de Cartago,
poderá dizer que conhece sua altura; mas, se um
cartaginês diz a um romano quão alto eles são, isso
não quer dizer que o romano os terá estritamente
“conhecido”. Ele aceitará o testemunho na base da
fé, e “crerá” nele. Junto de todos os conteúdos, até
mesmo na mente mais secular, estão questões de fé.
Agostinho usou a seguinte ilustração: um jovem crê
que certo homem mais velho é seu pai, com base no
testemunho de sua mãe; e, até mesmo, a identidade
da mãe é uma questão de fé. A fé é a base da vida
familiar e da sociedade. Mesmo assumindo que a fé
não é conhecimento direto, ainda assim, ela não é
irracional. Não é cega. Há razões para crer em uma
testemunha. Se um homem nunca tiver visto os
muros de Cartago, será irracional tomar sua palavra
quanto à altura da edificação. Porém, se ele for
uma testemunha ocular e digna de confiança, a fé
em sua palavra não será antinatural, nem irracional.
De fato, a fé não apenas é geralmente chamada de
conhecimento, mas não pode haver conhecimento,
no sentido estrito, sem a fé. Todo conhecimento
começa com a fé. Nossos pais e mestres nos
contam coisas nas quais nós cremos. Mais tarde na
vida, poderemos ponderar sobre tais
informações. Mas não poderemos obter o
entendimento posterior sem a precedência da
fé. Agostinho formulou um tipo de moto, que
Anselmo, mais tarde, tomou emprestado: Credo ut
intelligam — creio a fim de entender. O
entendimento como objetivo é superior à fé como
ponto de partida; mas a partida terá de ocorrer.
Somente poderão encontrar incompatibilidade entre
fé e razão os autores que definem fé de maneira
diferente, e assim não estarão falando sobre a
mesma coisa, ou aqueles que não se preocupam
com tal definição e, portanto, sequer sabem sobre o
que estarão falando. Para Agostinho, razão e fé
estão intimamente conectadas, e a filosofia se torna
a exploração racional do conteúdo da fé. A
aplicação de sua visão à questão da existência de
Deus é a de que os apóstolos foram testemunhas
oculares de Cristo. Ambos, eles e Cristo, atestaram
a mensagem divina por meio de milagres, e a
mensagem nos informa que Deus existe.

Uma vez que uma pessoa tenha se despojado do


orgulho para crer nessa mensagem, poderá avançar
para uma prova racional da existência de Deus.
De fato, embora a fé seja, de alguma forma,
precedente a todo conhecimento racional, a fé na
Bíblia não é um requisito necessário para evitar o
ceticismo, para aprender matemática ou, até
mesmo, para provar a existência de Deus. Ainda
que não seja um pré-requisito necessário, é, não
obstante, a maneira mais fácil. Temos de lembrar
que o destino eterno dos indivíduos, muitos dos
quais não são filósofos, é muito importante para
depender dos acidentes da educação formal. Há
uma prova, entretanto, que conduz da posse da
verdade para a necessidade de Deus.

O ceticismo, tal como já indicado, foi refutado


porque a mente humana necessariamente possui um
número de verdades indubitáveis. Uma pessoa
não poderá duvidar de que sete mais três sejam dez.
A intuição intelectual também revela a verdade
moral de que alguém deve buscar sabedoria. Então,
há também as leis da não-contradição e da
disjunção. E, sobretudo, eu penso, portanto existo.
Nenhuma dessas verdades depende das sensações.
Os olhos corpóreos frequentemente nos enganam,
mas os olhos da alma, a razão, não
enganam. Ninguém poderá se enganar quanto à
própria existência. Alucinações e dúvidas não
ocorrem, a menos que alguém exista, viva e pense.
Essas verdades são, portanto, necessárias. Porém,
se necessidade, universalidade e
obrigações normativas não podem ser baseadas na
experiência sensível, também não poderão ser
baseadas na razão subjetiva de uma pessoa
individual. Onde este for o caso, a verdade mudará
de pessoa para pessoa. No entanto, essas verdades
são comuns a todos os homens: elas são universais.
Elas são imutáveis; a mente humana
não. Conquanto existam em nossa razão, essas
verdades são superiores a ela. Se a verdade fosse
inferior à razão, teríamos a capacidade de julgá-las;
diríamos que três mais sete deveria ser dez. Mas
nós não construímos essas verdades; nós
as descobrimos e, a partir delas, julgamos as outras
coisas. Uma vez que tais verdades, ou corpo de
verdades, são normas às quais a razão se submete
em seu julgamento, a verdade é superior à razão e a
razão é inferior à verdade. Ainda assim, a razão é
coisa excelente; por causa dela o homem é superior
aos animais; e suas habilidades são inspiradoras.
Se, portanto, a verdade é superior à razão, a
verdade é Deus. Está provado que Deus existe. Se a
verdade não fosse Deus, e houvesse algo acima da
verdade, então esse algo seria Deus. Assim, uma
vez mais, fica provado que Deus existe. De
qualquer maneira, uma vez que a verdade tem
sido demonstrada como sendo imutável e eterna, e
uma vez que só Deus é imutável e eterno,
poderemos dizer que Deus é a verdade. A
conclusão, portanto, é que, apreendendo a verdade,
a mente conhece Deus. Fazendo de todo
conhecimento, um conhecimento de Deus, ao dizer
que Cristo é a luz que ilumina todo
homem, Agostinho não traspassou a esfera da graça
redentora. Todos os homens são iluminados pela
luz de Deus, mas nem todos os homens são salvos.
O presente problema está circunscrito inteiramente
dentro dos limites da epistemologia, e Agostinho
está longe de negar que os pagãos possam ter
conhecimento. A Escritura diz: “para que
buscassem ao Senhor, se, porventura, tateando, o
pudessem achar, ainda que não está longe de cada
um de nós; porque nele vivemos, e nos movemos, e
existimos”, e isso se aplica tanto ao pagão, quanto
ao crente. Deus é a luz universal para todos os
homens, e todos vemos a verdade sob sua luz.
Obviamente, o cético não é um crente, mas, mesmo
ele é obrigado a admitir a certeza de sua existência
de Deus. Isso é epistemologia, não graça.

A tese de que todos os homens, em seu


conhecimento, têm contato com Deus, ou que Deus
seja a luz universal, capacitou Agostinho a resolver
um problema que os filósofos anteriores haviam
negligenciado. Górgias, um sofista contemporâneo
de Protágoras, foi além de negar a existência do Ser
e de argumentar que, mesmo se existisse, o Ser não
poderia ser conhecido: ele afirmou que, ainda que
ele pudesse ser conhecido, duas pessoas jamais
poderiam falar sobre ele. À parte da
impossibilidade materialista pré-socrática, de o
mesmo pensamento existir em dois lugares e ao
mesmo tempo, seria impossível também para os
sons, no ar, produzirem um reconhecimento do Ser,
quando a hipótese é que o reconhecimento do Ser é
a causa dos sons. Agostinho se dedicou
ao problema em um brilhante tratado, intitulado De
Magistro.

Comunicação

Linguagem ou comunicação, argumentou


Agostinho, é uma questão de palavras, e palavras
são sinais — elas significam alguma coisa. A
relação entre um sinal e a coisa significada, a teoria
da semântica, aumenta a dificuldade do problema
da comunicação, ainda que Agostinho tenha
chegado a um maior detalhamento do que será
necessário considerar para o nosso
propósito. Geralmente, quando tentamos indicar o
que uma palavra significa, usamos outras palavras,
por exemplo, uma cidade é uma área de grande
densidade populacional. Assim, um sinal é
explicado por outro sinal e, se formos ignorantes a
respeito dos últimos, a coisa significada perde o
sentido. E claro que, no caso de substantivos
concretos, tais como cidade ou muro,seria possível
indicar a coisa significada apontando com o dedo.
Isso é verdadeiro, pelo menos, em relação a objetos
visíveis, pois não podemos apontar o dedo para
sons, odores ou gostos; e, indicar o que eles
significam, por meio de proposições, está ainda
mais fora da esfera das coisas que podemos
apontar. Então, deve se notar também
que, conquanto o próprio muro não seja um sinal,
mas a coisa significada, apontar com o dedo é usar
um sinal, tanto quanto usar uma palavra, e, usando
tanto um quanto outro, teríamos o mesmo efeito.
Parece, entretanto, que há certas ações que podem
ser mostradas sem sinais. Se alguém deseja saber o
que é andar, o professor talvez possa indicar a ação
significada, andando, isto é, por meio de realizar a
coisa significada e não mediante um sinal. Se o
aluno estiver ainda em dúvida, o professor poderá
andar um pouco mais rápido. Mas justamente
aqui se encontra a dificuldade. Como o aluno irá
distinguir andar de se apressar? Ou como irá
distinguir entre “andar” e “andar dez passos”? A
questão será ainda mais complicada, se desejarmos
explicar, não andar,
mas falar, não parede, mas palavra, gesto, letra, e
especialmente as palavras substantivo e verbo-
, pois em todos esses casos o sinal é um sinal de um
sinal; e incidentalmente uma palavra escrita é um
sinal de uma palavra falada. Assim, “substantivo”,
quando falado, é um sinal audível de sinais
audíveis, enquanto “parede” ou “cidade” é um sinal
de uma coisa.

A negligência de tais distinções semânticas era


motivo de humor para um antigo sofista, que
perguntava a suas vítimas se aquilo que foi
expresso procederia da boca. Recebendo uma
resposta afirmativa, o sofista retomaria a conversa
de maneira que a pessoa pronunciasse a
palavra leão-, isso permitiria ao sofista zombar dele
acerca do leão que procederia de sua boca, quando
falasse. Ainda assim, substantivos procedem de
nossa boca, quando falamos. O que é
um leão? Uma resposta será que um leão é um
substantivo; outra, será que leão é um animal. A
distinção que o sofista deixou de lado é que,
quando leão é chamado substantivo, leão
é construído como um sinal; mas quando é
classificado como um animal é construído como a
coisa significada.

Retornando ao significado de andar e falar,


Agostinho concluiu que nada poderá ser mostrado,
exceto por meio de sinais. Nada poderá ser
ensinado ou comunicado somente por si mesmo.
Entretanto, surge aqui um paradoxo, pois fica
evidente que, desse modo, ninguém poderá ser
ensinado também por meio de sinais. Quando sinais
são usados, o aluno conhece ou não conhece a
coisa significada. Se não conhece, o sinal nada lhe
ensina. Será como se o professor dissesse caput a
alguém ignorante do latim. Porém, se o aluno já
conhece a coisa significada, a enunciação do sinal
não lhe dirá o que a coisa é. Muito ao
contrário: porque já conhece o que é “cabeça”, a
repetição da enunciação da palavra o levará a
associar o sinal com a coisa significada que ele já
sabe; e ele aprenderá que a palavra é um sinal
somente por meio de conhecer a coisa significada.
De outra maneira, ela será apenas um som sem
significado. A coisa, portanto, tem de ser
conhecida, primeiro; o sinal é aprendido depois. A
comunicação somente é possível por meio de
palavras ou de outros sinais. Mas palavras,
mais apropriadamente, em vez de ensinar algo
novo, estimulam nossa memória das coisas que
previamente conhecemos. Assim, quando um
orador diz algo, a menos que esteja se referindo a
objetos sensíveis presentes no momento, nós
consultamos a verdade em nossas mentes para
julgar se ele está ou não falando a verdade.
Nos diálogos platônicos, uma série de questões
estimula a reflexão, e o aprendizado ou
assentimento vem de dentro. Não são as palavras de
Sócrates que efetuam o ensino, pois, se Sócrates
tivesse dito: Você não concorda que dois é igual a
três? O aluno teria instantaneamente replicado:
Não, de nenhuma maneira. Os alunos, nos diálogos,
geralmente respondem afirmativamente porque
veem a verdade em suas próprias mentes. Em vez
de aprenderem de Sócrates, os alunos se
assentam para julgá-lo. E isso somente é possível
por intermédio de um entendimento da verdade; e,
se os alunos não entenderem, as palavras de
Sócrates não terão propósito. Situações peculiares
podem surgir. Suponha que um epicureu, que não
crê em uma alma imortal e incorpórea, deva dar um
relato de argumentos elaborados para provar o
contrário; o aluno poderá julgar que os
argumentos sejam sadios, ainda que o professor os
tenha como falaciosos. Poderíamos dizer que o
epicureu ensina o que ele mesmo não sabe? A
peculiaridade apenas reforça a solução de que
comunicação e ensino, embora fazendo uso de
palavras ou sinais, são possíveis somente porque a
mente possui a verdade. Sócrates ou Agostinho não
são realmente professores: o verdadeiro mestre é
Cristo, que é a Verdade, aquele que ilumina todo
homem.

Ainda que o problema da comunicação e a


refutação do ceticismo pressuponham a existência
de pessoas individuais, e que alguma breve
referência tenha sido feita à percepção sensível, o
material citado diz respeito principalmente à
existência de Deus. Agora é hora de considerar
mais diretamente a existência do mundo e a relação
de Deus com o mundo. Isso é o mais urgente, visto
que Agostinho começou sua famosa carreira
rompendo com o dualismo maniqueísta, passando
pelo emanacionismo neoplatônico, e finalmente
aceitando a doutrina cristã da criação.

Criação

A questão específica do dualismo ou pluralismo


tem de ser suposta como assentada por causa da
necessidade racional de algum tipo de unidade. E
interessante observar, entretanto, que poucos dos
gregos mantiveram consistentemente um monismo.
Platão tinha três princípios independentes.
Aristóteles falhou em defender um mundo
unificado, porque cada substância individual era
um composto de matéria e forma, e essas duas eram
irredutíveis; pois, mesmo que a matéria não exista
em separado, a forma pura existe. É possível que os
estoicos tenham tido mais sucesso. Mas os
neoplatônicos, geralmente considerados
como defensores mais insistentes da unidade,
ocultaram um dualismo tão básico como o dos
maniqueístas. Além da dificuldade para entender
como o Uno poderia produzir multiplicidade, há a
existência das trevas irreais, nas quais a luz do
Uno brilha, sendo finalmente extinguida. Se a razão
demanda unidade, então parece que o nobre
Parmênides foi racional. No entanto, agora, o
problema do mundo será considerado por um novo
ângulo.

A visão cristã das coisas também se assemelha a


um dualismo. Pelo menos, Deus e o mundo podem
ser chamados de duas “substâncias”; e um não é
da mesma substância que o outro. Contudo, na
realidade, o cristianismo é mais bem-
sucedidamente monista, do que foi o
neoplatonismo. Somente Deus é substância eterna,
o princípio independente; à parte da criação do
mundo, nada existe além dele. Isso realça os
elementos essenciais e controversos da
doutrina judeu-cristã. Primeiramente, como
Criador, Deus é visto, não como o
Uno indiferenciado, que produz um mundo em
função de necessidade, mas como uma mente livre
que cria com voluntariedade e presciência. Plotino
explicitamente negou volição ao seu Uno; mas
vontade é um dos aspectos mais proeminentes
da Deidade Bíblica. Em segundo lugar, exatamente
porque Deus é Criador, o mundo é chamado à
existência somente mediante o fiat divino. Não há
matéria preexistente a ser formada ou organizada;
sequer há trevas ou vazio do qual, ou, no qual, o
universo seja criado. E terceiro, isso implica que o
mundo teve um primeiro momento e que sua
história passada é finita.

Foi o último ponto que Agostinho achou que


precisava de especial defesa contra as filosofias
anteriores, pois quaisquer que fossem as diferenças,
todas elas concordavam que o mundo teria sempre
existido. Se o Demiurgo, de Platão, tivesse formado
o mundo-alma, e organizado o espaço caótico,
ainda assim teria sido uma atividade eterna;
Aristóteles defendeu, explicitamente, que o
movimento jamais teria começado, nem teria fim;
os estoicos, deram uma história finita ao mundo
presente, mas fizeram dele, um, de uma série
infinita de mundos, uma visão estranhamente
adotada também por Orígenes; e, é claro, a
emanação do mundo do neoplatonismo. A noção de
que o mundo teve um começo somente tem origem
na revelação bíblica.
Uma objeção clássica contra a visão cristã é que a
criação implica uma mudança em Deus, ora
declarado imutável. A objeção talvez possa ser
expressa em termos mais gráficos, tais como: Por
que Deus não criou o mundo antes ou depois?
Como poderia Deus ter concebido criar o mundo
quando tal noção não lhe ocorreu previamente? Por
trás dessa objeção, seja ela expressa de
qualquer maneira, está a hipótese parmenidiana, de
que a racionalidade exclui mudança. Ou, para
colocar isso de uma forma mais imediatamente
relevante para a terminologia cristã, a racionalidade
não poderá levar em conta um evento que ocorre de
uma vez por todas. A ciência, conhecimento e
razão, explica aquilo que é comum ou universal.
Até mesmo, na física, onde pêndulos e balanças
são coisas que apresentam mudanças, o
conhecimento não apreende um pêndulo em
particular; o objeto do conhecimento científico é a
lei do pêndulo, isto é, a relação uniformemente
exibida. Um fato singular, tal como a cor do
pêndulo ou o fato de que ele oscilou em uma
ocasião, é um acidente irrelevante e fora do âmbito
da ciência ou filosofia. Ora, o cristianismo é
abundante em eventos singulares — a morte de
Cristo, o fim do mundo, e a presente perplexidade
do princípio do mundo.

Agostinho deu uma dupla resposta aos seus


oponentes. A primeira parte é algo como um
argumento ad hominem ou, talvez, um dilema: Ou
eles mesmos têm de admitir um evento singular
inconsistente com seu apregoado racionalismo ou
têm de negar a parte mais preciosa de seu sistema.
E temos de lembrar, outra vez, que tal resposta,
consistentemente com a motivação ética básica de
Agostinho, depende da visão de que a filosofia seja
um meio para a felicidade e para o conhecimento.
O neoplatonismo havia oferecido, como objetivo
final da reflexão filosófica, um transe beatífico ao
qual atribuíram valor supremo. Platão,
também, quis escapar da prisão dos sentidos e
deixar que sua alma se elevasse ao Mundo das
Ideias. Porém, se esses são estados de beatitude,
para os quais a filosofia nos prepara durante nossa
presente condição de miséria, e se a alma e o
restante do mundo são eternos, então, uma vez que
a alma eleva-se e decai novamente, bem-
aventurança e miséria se alternarão eternamente.
Ou, melhor, a bem-aventurança jamais ocorreu,
nem ocorrerá. Pois, se houver essa alternação, a
alma não poderá ser feliz, mesmo nas ilhas dos
Bem-aventurados, pois poderá prever sua futura
queda e miséria. Ou, se nas ilhas dos Bem-
aventurados, ou no transe de Plotino, a alma não
previr seu retorno à miséria, será ignorante e estará
sendo enganada; e, certamente, a verdadeira bênção
não será um estado de engano. Ou, entretanto, se
um filósofo afirmar que a alma permanece em um
estado de permanente felicidade, tal como, de fato,
Porfírio sustentou, em oposição aos
princípios comuns de sua escola, então haverá um
evento singular e alguém poderá perguntar: Por que
isso não ocorreu antes? Se Porfírio considera a
necessidade de um evento único, não poderá, em
princípio, negar a possibilidade de outro, tal como
a criação do mundo e do homem. Pois, se o mundo
ou o curso da história não tivesse tido um início,
não poderia ter um fim, um objetivo ou um ápice. E
se tais comentários se aplicam ao neoplatonismo,
serão ainda mais relevantes em relação à teoria
estoica da eterna recorrência.
História

Antes que a segunda parte da defesa da doutrina da


criação, de Agostinho, seja apresentada, uma das
consequências de atribuir significado ao evento
singular merecerá uma maior atenção. Posto que o
pensamento grego é o de que a razão requer a
exclusão do evento singular (se, diferente de
Parmênides, eles [os gregos] forem
desconfortavelmente forçados a admitir mudanças,
acidentes e indivíduos, serão colocados além do
âmbito da ciência), jamais lhes ocorreu produzir
uma história da filosofia. História, para eles, não
era importante, mas, para o cristianismo, que ensina
que a segunda Pessoa da Trindade tornou-
se homem, na cidade de Belém, e morreu na cruz
precisamente em 14 de Nisã, a história é de suma
importância. Finalmente, no entanto, ocorreu um
evento perturbador, inclusive para a mente pagã.
Quando a cidade de Roma foi saqueada pelos
bárbaros, em 410 d.C., os pagãos atribuíram a
catástrofe ao fato de o povo ter esquecido dos
deuses romanos, em prol de Cristo. Para responder
a essa acusação, Agostinho escreveu uma obra
gigantesca, A Cidade de Deus, em que, pela
primeira vez em toda a literatura (exceto a Bíblia) a
filosofia da história foi formulada. O fato da
história exibir um plano racional é uma ideia sobre
a qual Tucídides sequer sonhou; e fora do
cristianismo, ninguém jamais tentou um estudo da
história até que Hegel e Karl Marx prepararam o
caminho para Oswald Spengler, Arnold Toynbee e
Pitirim Sorokin. Sem o estímulo do cristianismo,
é provável que essa noção não tivesse ocorrido a
esses autores mais recentes; e, se Alarico não
tivesse saqueado Roma durante o tempo de vida de
Agostinho, é provável que sua mente fértil, sob o
estímulo das profecias do Antigo Testamento, a
encarnação, vida e morte de Cristo, e sua predição
do fim do mundo, tivesse elaborado essencialmente
as mesmas ideias.

Tempo

A segunda parte da resposta de Agostinho às


objeções contra a criação do mundo, especialmente
em referência às questões de por que o mundo não
teria sido criado antes, se o tempo fluía
infinitamente antes que houvesse mundo, e se Deus
estava inativo antes que criasse qualquer coisa, é
uma discussão sobre a natureza do tempo. O
problema recebe amplo tratamento,
em Confissões, livro XI.

Agostinho inicia com uma oração, pedindo que


Deus lhe concedesse uma compreensão da criação.
O mundo é evidentemente uma criação porque
ele muda. Mas como Deus poderia tê-lo criado?
Não teria sido com qualquer instrumento ou
matéria preexistente, pois estes pertencem ao
universo criado. Ou, onde poderia Deus tê-lo
criado? Um artista pode produzir sua obra
em Atenas ou Roma, mas Deus não poderia ter
criado a Terra na Terra ou nos céus; Deus não teria
criado o universo no universo, pois estes tais foram
criados. Deus simplesmente falou e as coisas
vieram a existir. Mas algumas pessoas
ainda perguntam: O que Deus fazia antes que
falou? Ele estaria inativo? Se sim, por que não
permaneceu desta forma? Foi a criação um novo
ato da vontade e não um ato eterno? E, se isso for
inconcebível, isto é, se, a vontade de Deus
for eterna, por que o mundo também não é eterno?

Tais questões se baseiam no entendimento


incorreto do Ser de Deus. Deus é eterno, e
eternidade não é movimento perpétuo. Eternidade é
imobilidade; ela não permite sucessão, tudo está
presente de uma vez; não há passado ou futuro. A
resposta literal e precisa à questão: “O que Deus
fazia antes de criar os céus e a Terra”, é esta: Não
estava fazendo nada. Pois, se estivesse fazendo
alguma coisa, tal coisa teria sido uma criatura.
Obviamente, Deus não poderia ter feito alguma
coisa antes que fizesse alguma coisa.68 Não é
verdadeiro que incontáveis séculos tenham se
passado antes que Deus criasse todas as coisas, pois
os séculos não poderiam existir antes que Deus os
criasse. A doutrina da criação ex nihilo tem como
consequência, o fato de que o tempo foi criado.
Tempo não é um princípio independente, tal qual as
trevas neoplatônicas, dentro do qual Deus projetou
o universo. O que o tempo é, veremos em breve; o
tempo, como todas as criaturas, teve
princípio.69 Consequentemente, é absurdo
perguntar o que Deus fazia antes de criar; não havia
antes, pois não havia tempo.

O que é o tempo, então? Neste ponto, Agostinho


apresenta sua famosa resposta: “Se ninguém me
perguntar, eu sei; mas se me perguntam, não
sei”.70 E bem claro: Se nada jamais tivesse
acontecido, não existiria tempo passado; e se nada
devesse acontecer, não haveria tempo futuro; e se
nada houvesse agora, não haveria tempo presente.
Porém, uma vez que o tempo passado já não
é mais, o passado não é, não existe; e uma vez que
o futuro ainda não existe, o tempo futuro não
existe. E se o presente estivesse sempre presente,
absolutamente não haveria tempo, mas eternidade;
portanto, uma vez que o presente tempo, a fim de
existir, tem de se perder no passado, como
poderemos dizer que o presente existe? Além disso,
falamos do passado ou do futuro como algo longo,
embora o presente não possa ser longo; mas como
poderá ser longa alguma coisa que não existe? O
presente não pode ser longo porque o presente
século, a presente hora, o presente minuto, são
meio passados e meio futuros. O que é o presente, o
agora, senão um ponto no tempo, sem duração e,
portanto, não podendo ser longo? Sequer será
tempo, pois não terá duração - se tivesse qualquer
duração, seria meio passado e meio futuro. No
entanto, nós comparamos tais tempos
não existentes e dizemos que o século passado foi
mais longo do que será o ano seguinte. Ainda mais
estranho, nós comparamos ou medimos os tempos
passados, não no passado onde eles estão, mas
agora, no presente, antes que tenham cessado de
existir. Similarmente, nós medimos ou comparamos
os tempos futuros, não no futuro, mas no presente.
Como podemos medir o que não existe? Pior
ainda, se o futuro não existe, como puderam os
profetas prever o não-existente? E se o passado não
existe, como podem os historiadores falar sobre
ele? Ora, realmente, passado e futuro têm de existir,
de alguma forma; e se não existem no passado
ou no futuro, devem existir agora, no presente. Os
historiadores falam sobre eventos passados, porque
o passado permanece presente em sua memória; e
os profetas que preveem o fim do mundo, os
astrônomos que preveem um eclipse, ou,
até mesmo, você e eu, que planejamos para
amanhã, temos o tempo futuro presente em nossa
imaginação ou consciência. O tempo, portanto,
existe em todos os três modos; mas existe apenas
na mente.

De uma coisa Agostinho está bem certo: o tempo


não pode ser explicado por meio de categorias
físicas. Ele não pode ser identificado com o
movimento do Sol ou de um planeta, pois, mesmo
que um dado movimento cesse, o tempo continua
seguindo em frente. O tempo também não pode ser
identificado com o movimento em geral, pois
movimentos ocorrem no tempo. O movimento
é medido pelo tempo, e não o tempo pelo
movimento, como Aristóteles afirmou. Para
identificar um movimento, alguém tem de
identificar dois pontos no espaço, seu princípio e
seu fim. Mas esse mesmo movimento entre esses
mesmos dois pontos poderá ser completado em
variável extensão de tempo. O
movimento, portanto, não determina nossa medida
de tempo. Além disso, um corpo, às vezes, pode se
mover de um ponto ao outro em diferentes
velocidades e, em outras vezes, pode permanecer
em repouso. Até mesmo seu repouso é medido pelo
tempo. Tempo, portanto, não é o movimento dos
corpos.

O que é o tempo, então? É a atividade de nossas


mentes, memória e expectação, na qual passado e
futuro existem. O tempo passa na mente. Por
essa razão, as objeções originais quanto ao que
Deus fazia antes que criasse qualquer coisa são
completamente sem sentido. Não havia tempo antes
que Deus criasse. Tempo, como atividade de
mentes criadas, começa apenas com a criação de
tais mentes. O mesmo acontece em relação ao
espaço. Se os oponentes perguntam a razão de Deus
não ter feito o mundo antes, poderão legitimamente
perguntar também a razão de ter feito o mundo aqui
e não ali. Tais questões também não têm sentido.
Deus não criou o mundo no espaço mais do que
não o criou no tempo. Espaço é uma característica
do mundo e foi criado com ele. A doutrina da
criação coloca somente Deus como o único
princípio original. Ele criou todas as coisas do nada
e no nada. Qualquer tentativa de tornar o tempo e o
espaço independentes da Criação de Deus será
inconsistente com o pressuposto de um primeiro
princípio singular. Uma tentativa assim seria um
pluralismo, tal como o de Platão, diferente apenas
no fato de que, em vez de Ideias, Demiurgo e
Espaço, haveria Espaço, Tempo e Deidade.

O mal

Quanto mais o monismo é enfatizado, tanto mais


contundente se torna o problema que motivou
muito da obra de Agostinho: o problema do mal. Se
apenas Deus é independente, se ele criou o mundo
a partir do nada, e se o único motivo da criação é a
bondade, como explicar o mal evidente no
mundo? Se apenas houvesse um pouco de
dualismo, algumas trevas, caos ou espaço, Deus
poderia ser preservado inculpável. O mal é um
problema que todos os pensadores têm de enfrentar.
Mesmo uma filosofia puramente mecanicista,
tal como a de Demócrito, tem de levar em conta o
mal, ou neste caso, devêssemos chamar de
problema do bem e do mal. Sistemas teístas não
encontram problemas, isto é, nenhuma
perplexidade, com respeito ao bem; mas o
mecanicismo acha tão difícil explicar o bem quanto
o mal, ou, se preferir, acha tão fácil explicar o mal
quanto o bem. De qualquer maneira, para os
mecanicistas, bem e mal devem de ter sido
misteriosamente gerados a partir de átomos
inanimados. O neoplatonismo também tentou
explicar o mal, e dele Agostinho tomou emprestado
parte de sua solução. É exatamente aqui que, talvez,
Agostinho tenha tido menos sucesso para purgar
sua mente das ideias pagãs correntes.

Foi dito acima que, para Agostinho, Deus não é


uma substância, mas uma essência, e a razão de
Agostinho insistir na essência é que o termo
essência é derivado de esse (lat.), ser, existir. Deus
é a realidade que realmente é; Deus é Ser no
sentido mais elevado e estrito. Agostinho cria que
poderia encontrar suporte na Escritura para a sua
noção, nas palavras de Deus a Moisés: “Eu sou o
que sou... Eu sou me enviou a vós”. Se, então, Deus
somente é, as outras coisas não são. Agostinho
virtualmente diz isso, pois, depois de citar as
palavras mencionadas, ele continua: “Como se em
comparação com aquilo que realmente é, ser
imutável, as coisas mutáveis não são — uma
verdade a que Platão se agarrou com força”.71 A
não-existência de coisas mutáveis, entretanto, não
deve ser tomada de modo tão literal ou absoluto.
“Pois Deus, sendo a mais elevada essência, isto
é, eterno e imutável, deu essência às suas criaturas,
mas não como a sua própria: a algumas, mais, e a
outras, menos, ordenando a existência natural por
gradação.”72 Coisas mutáveis, portanto, existem,
mas existem em graus menores do que o de Deus.
Deus fez tais coisas, e elas são boas. A própria
existência é boa. Tal como um ser vivente é melhor
do que um ser não-vivente, assim, até mesmo um
elemento corpóreo não-orgânico é mais excelente
do que nada ser. Portanto, tudo o que existe, uma
vez que existe, é bom. A não-existência é má, e o
mal é a não-existência. Ou, um pouco mais
profundamente, o mal poderá ser definido como a
privação do bem, o grau extremo daquilo que é
absolutamente não-ser.

“Se forem privadas de todo bem, as coisas


absolutamente não existirão; portanto, enquanto
existirem, elas serão boas; assim, o que quer que
seja, é bom; e o mal ... não é uma substância
porque, se fosse substância, seria
bom.”73 Conforme essa teoria, Deus é
absolutamente isentado de culpa quanto à criação
do universo. Ele criou cada coisa com certas
perfeições, algumas com mais, outras, com menos.
Esse foi um ato de bondade, e como nenhum ser
criado teve, ou tem, nenhuma reivindicação sobre
Deus, até mesmo o menor grau de perfeição
deve ser recebido com gratidão. Pela mesma razão,
nenhum ser pode se queixar com justiça de que
Deus não lhe tenha dado mais perfeição. De fato,
poderia não haver mundo, se Deus estivesse sob a
compulsão de tratar todos os seres da mesma
maneira ou de dar a cada um a mesma suprema
perfeição. Tratar todos os seres da mesma maneira
significaria um mundo, digamos, só de
cachorros, sem gatos - só de cachorros e sem Sol,
Lua ou estrelas, sem árvores, campos ou rios:
obviamente um estado de coisas impossível.
Entretanto, se Deus estivesse sob a compulsão de
dar o ser supremo a tudo que criasse, o absurdo
seria ainda maior. O não criado e eterno é mais
perfeito do que a criação; um mundo em que todos
os seres possuíssem todas as perfeições possíveis
seria um mundo de deuses eternos, e esse não seria
nem um mundo, nem uma possibilidade
lógica. Assim, parte do problema do mal está
resolvida.

Mas esta poderá ser considerada uma parte muito


pequena, pois, embora seja uma solução para algo,
tem pouco a ver com o mal. Existência e
bondade foram tomadas como termos sinônimos -
uma identificação que talvez signifique apenas que
todas as existências têm algum propósito e que
constitui uma defesa da diferença e da diversidade.
Mas o que isso tem a ver com o mal, com
a maldade, com a injustiça e com o pecado? Talvez
o diabo seja bom (para alguma coisa), tal como
Agostinho diz, ainda assim, ele é mau. Os homens
são bons para alguma coisa, mas são pecadores. E
conquanto Deus possa facilmente absolvê-los de
culpa, criando diferenças, como explicar que tenha
criado um mundo em que sabia que apareceria a
maldade? Esta não é apenas a segunda parte do
problema do mal, mas a totalidade do problema.

Assim como a doutrina do Deus vivo e


seu fiat criador distingue o cristianismo do
paganismo, em uma escala macroscópica, assim
também, em uma escala microscópica, a relação
entre o Deus vivo e o homem, especialmente o
homem como ser rebelde e pecador, é um tema
estritamente cristão. Os gregos, os estoicos, mais
do que outros, tinham algum senso de certo e
errado; eles recomendavam o que pensavam ser
virtudes e desprezavam a fraqueza de caráter. Mas
a gravidade da rebelião deliberada contra o Deus
vivo seria apenas uma remota analogia em suas
mentes. A ausência de reconhecimento do pecado é
ainda mais completa no humanismo moderno, o
que leva muitos historiadores da filosofia a
uma estranha cegueira. Um deles se refere a
Agostinho em termos de um “exagero neurótico da
culpa e do pecado, uma doentia alienação do
mundo”. Ora, não será necessário requerer que
Agostinho tenha obtido a perfeição nos seus
últimos anos de vida cristã, nem que sua análise e
especial escala de valores tenham sido sempre o
exato e perfeito equilíbrio da verdade. Porém, supor
que o enérgico e bem-sucedido bispo tenha sido
neurótico estimula-nos a pedir a Deus que
nos abençoe, nos tornando mais neuróticos. O autor
se refere às palavras com as quais Agostinho
introduz sua confissão de pecados, e diz: “Essa
abertura parece nos preparar para uma revelação de
crimes hediondos, mas qual a quantidade dos
pecados de Agostinho?” Eles eram “travessuras e
aventuras consideradas produtos normais da
exuberância juvenil”, tais como roubar
peras.74 Certamente a traquinagem de roubar peras
era “normal” no sentido de que todos os
jovens fazem coisas semelhantes. No entanto, isto
faz do roubo uma coisa inocente? Ou isso
demonstra que todos os jovens são pecadores?
Agostinho estava bem consciente de que o roubo
das peras não configurava um “crime hediondo”,
do mesmo nível de assassinatos brutais, e, foi
porque a escapada infantil parecia tão trivial, que
ele a escolheu para análise. O que estava
envolvido? Na vizinhança de Agostinho havia uma
pereira cujos frutos não eram belos nem suculentos.
Uma noite, com um grupo de garotos, ele roubou as
peras. Sequer valiam a pena de serem comidas,
razão pela quais as lançaram aos porcos. Ora, como
o roubo poderia ser explicado? Se um homem
comete um assassinato a fim de usufruir as riquezas
ou a esposa da vítima, ele tem um motivo que
conseguimos entender. Muitos assassinos não
matam pelo prazer de matar. Mesmo o monstruoso
tirano que pratica barbaridades “sem qualquer
motivo”, como se diz, faz isso a fim de manter seu
trono por meio da intimidação. E um trono é um
motivo que podemos entender. Mas qual teria sido
o motivo de Agostinho no roubo das peras? Não foi
a fome, pois ele tinha boas refeições, em casa; nem
foi pela sobremesa extra, porque a fruta sequer foi
comida. O único motivo para o roubo foi o
próprio roubo. Ele amava o mal pelo próprio mal,
só pelo prazer de fazê-lo. Pior ainda, o menino
Agostinho não teria ido roubar as peras sozinho;
não seria divertido, a menos que fosse motivado
por aversão ao dono das peras, mas este não
seria maior motivo do que o da ira. Foi o prazer de
roubar com a turma. O motivo, então, foi o puro
amor pelo mal, incrementado com a cumplicidade
no crime. Quando, mais tarde, Agostinho escreveu
as Confissões, ele sabia bem que o roubo das peras
teria feito relativamente pouco dano ao dono das
peras. Nesse sentido, foi trivial e pode mesmo
conduzir pessoas com falta de acuidade a chamá-lo
de neurótico. Contudo, conquanto o roubo tenha
sido externamente trivial, o que seria pior do que o
puro amor ao mal pelo próprio mal?

Aqueles que têm pouco senso de pecado, porque


têm pouco senso de Deus, têm também pouco
reconhecimento do problema do mal. Agostinho
com sua ênfase perfeitamente cristã sobre a
maldade extrema da rebelião contra Deus escapa a
qualquer acusação de ter minimizado o problema.
Ele pode não tê-lo resolvido de forma satisfatória,
mas ele certamente não fugiu dele. Pelo menos
duas questões estão envolvidas aqui. Além da
perplexidade quanto ao modo como Deus
seria, digamos, tão tolo ao criar o homem, quando
ele sabia quão depravado o coração humano se
tornaria, há também a dificuldade psicológica de
explicar como Adão, criado com uma boa vontade,
poderia ter escolhido mal.

O livre-arbítrio

Agostinho responde a ambas as perplexidades,


afirmando a liberdade da vontade. Ações virtuosas
são possíveis, diz Agostinho, contradizendo os
estoicos, somente se a vontade for livre e, portanto,
Deus, uma vez que quis que os homens vivessem
justamente, deu-lhes o livre-arbítrio. Ora, se o
homem usa sua liberdade da maneira errada, Deus
não pode ser acusado. Nós não rejeitamos o vinho
só porque algumas pessoas fazem uso errado dele,
por que, então culparíamos Deus por causa de
algum mau uso da liberdade? As mãos também
podem ser usadas de maneira errada, mas ninguém
se queixa de que Deus tenha dado mãos aos
homens (ainda que alguém possa se perguntar por
que Deus permite o mau uso das mãos, do vinho e
da liberdade). Qual é a causa das escolhas más? O
que faz que uma vontade seja má? Agostinho
responde que não há causa para uma vontade má,
pois a vontade é a única causa de todo mal.
Vontades más causam atos maus; mas se a vontade
tivesse uma causa, essa causa seria uma vontade
boa ou uma vontade má; ora, uma vontade boa não
causa uma vontade má, e dizer que uma vontade
má é a causa de uma vontade má apenas puxa o
problema de volta ao primeiro mal não explicado.
Essa vontade má original obviamente não poderia
ter sido causada por uma vontade má anterior. Será
melhor dizer que o primeiro mal foi feito por algo
que não é uma vontade. Mas tal coisa não
poderia ser superior à vontade que ela mesma
afetou, pois, se fosse, ela também seria uma
vontade. Pela mesma razão, a coisa não poderia ser
igual à vontade em questão. Portanto, teria de ser
inferior à vontade que se tornou má. Ainda
assim, uma coisa inferior teria de ser boa porque
todas as coisas são boas. Como, então, poderá uma
coisa boa ser a causa de uma vontade má?
Estritamente, uma coisa boa não pode ser a causa
de uma vontade má. O que ocorre é que a vontade
abandona um bem superior e deseja um bem
inferior. É esse abandono da vontade e não a coisa
desejada que configura o mal. A coisa boa inferior
não perverte a bondade, a vontade perverte a si
mesma ao desejar a coisa inferior. Aqui, Agostinho
toma emprestado dos estoicos a ilustração de dois
homens que veem uma bela mulher.75 Supondo que
os dois homens sejam iguais em corpo e mente, não
haverá causa para uma vontade má da parte de um
deles em face da tentação. A natureza do homem é
boa, pois toda a natureza é boa; portanto, uma
vontade má não terá causa eficiente. Terá, no
entanto uma causa deficiente. O caso será igual ao
de ver as trevas e ouvir o silêncio. Em certo
sentido, nós percebemos as trevas mediante os
olhos e, o silêncio, por meio dos ouvidos, mas tal
percepção tem forma exterior como a sua causa
real ou eficiente; nós percebemos por causa da
privação da forma; percebemos que não
percebemos.

Mas as complicações ainda não chegaram a um


fim. Deverá ficar bem estabelecido que a vontade
não tem causa eficiente. Embora Agostinho não
forneça argumento em favor dessa pressuposição,
deverá ficar claro também que a ação moral
pressupõe uma vontade livre. Ainda assim, se Deus
previu que o homem haveria de pecar, como
poderia ser de maneira diferente? A presciência não
tornou o pecado inevitável? Não poderia Deus tê-lo
prevenido? Embora Agostinho sugira fortemente o
contrário, não poderia ter havido um mundo com
suficiente variedade sem graus de pecado? Deus,
portanto, deve ter desejado um mundo
pecaminoso ou não o teria feito dessa maneira. Esse
problema tem sido sentido em todas as épocas;
alguns cristãos tentam evitar a discussão, ou
tentam, até mesmo, evitar o pensamento sobre tal
possibilidade, para o deleite dos seus inimigos.
Outros, tal como Agostinho, enfrentam o assunto
com precisão, dando o melhor de si mesmos para
resolvê-lo; mas poucos, ou nenhum, têm escrito tão
satisfatoriamente como João Calvino e Jonathan
Edwards, nem mesmo Agostinho.

Outro elemento na teoria de Agostinho é que ser é


melhor do que não-ser, e que é melhor existir
infeliz, presumivelmente, até no inferno, do que
não existir. Para defender isso, ele argumenta que
um cavalo perdido é melhor do que uma pedra não
perdida, que o homem infeliz prefere viver em vez
de morrer, e que, até mesmo, uma alma que
persevere em pecado é melhor do que um objeto
inanimado que, por causa da ausência de vontade,
não pode pecar. Porém, uma vez que um homem
infeliz que prefere viver tem esperança de
melhores dias, essa consideração não se aplica à
infelicidade desesperançada do inferno, nem
concorda com a declaração da Escritura: “Bom
seria para esse homem se não houvera nascido”.

Em segundo lugar, Agostinho nega a afirmativa de


que eu tenha de querer a vontade de Deus.
Dizer tem de significa que o ato é necessário, e por
necessidade Agostinho provavelmente tinha em
mente algo tal como uma causalidade mecânica ou,
pelo menos, uma compulsão externa; e isso é
equivalente a negar que a ação seja voluntária. Se
um homem é derrubado por um golpe, ele terá de
cair; mas, uma vez que ele tenha de cair, a queda
não terá ocorrido
voluntariamente. Consequentemente não é
verdadeiro que eu tenha de agir tal como foi
previsto por Deus. Deus tem presciência de que o
eleito será feliz, no céu; mas isso não quer dizer
que os escolhidos serão felizes, no céu,
involuntariamente. A presciência de Deus não
acaba com o nosso poder. Por exemplo, se um
homem sabe que outro irá pecar, esse
conhecimento não torna o segundo homem
pecador. Presciência não exerce força. Tal como a
memória de eventos passados não causam o
passado, assim também a presciência não força o
futuro. Algumas vezes, é dada uma ilustração de
um homem parado no alto de uma torre ou encosta.
Abaixo, à direita, ele vê um carro, correndo em
direção ao sul; à esquerda, ele vê outro carro,
também em velocidade, indo para o oeste; ele prevê
que eles se chocarão na intersecção, mas,
obviamente, sua presciência não causará o desastre.
No entanto, essa linha de argumento faz de Deus
um mero observador que nada causa e que aprende,
observando agentes independentes. Em qualquer
caso, o suposto acidente será inevitável, pois, do
contrário, não haveria presciência. Presciência e
inevitabilidade são correlatas, pois, se o choque não
ocorrer, terá havido somente ignorância anterior.
Finalmente, a despeito de sua insistência no livre-
arbítrio, Agostinho volta atrás, pelo menos em
parte, e nega que o homem o tenha.

Pelágio

Houve um monge britânico, chamado Pelágio, que


chegou a Roma, pregando e enfatizando o livre-
arbítrio e a capacidade do homem de fazer
boas obras. Uma coisa específica o revoltava.
Quando ele pregava a justiça e reprovava o povo
por causa de seus pecados, eles se desculpavam
com base em que tinham uma natureza má e não
podiam evitar o pecado. Davi, o salmista,
confessou em contrição diante do Senhor: “Pequei
contra ti, contra ti somente, e fiz o que é mau
perante os teus olhos, de maneira que serás tido por
justo no teu falar e puro no teu julgar. Eu nasci na
iniquidade, e em pecado me concebeu minha mãe.
Eis que te comprazes na verdade no íntimo e no
recôndito me fazes conhecer a sabedoria. Purifica-
me com hissopo, e ficarei limpo; lava-me, e ficarei
mais alvo que a neve. Faze-me ouvir júbilo e
alegria, para que exultem os ossos que esmagaste.
Esconde o rosto dos meus pecados e apaga todas as
minhas iniquidades. Cria em mim, ó Deus, um
coração puro e renova dentro de mim um
espírito inabalável”. Ao contrário da confissão de
Davi, aqueles que ouviam Pelágio estavam
dizendo: “Minha vontade escolheu o mal, mas eu
não posso ser culpado porque nasci assim”. Pelágio
se revoltava com tais desculpas. Assim, ele disse
às pessoas que elas tinham livre-arbítrio, que o
pecado não era inevitável, que não havia
depravação inata; e que elas podiam escolher o
certo. Parecia absurdo, para Pelágio, ordenar aos
homens o que eles não podiam fazer. Mandar
um soldado saltar vinte metros talvez seja o
artifício de um militarista brutal, mas não seria o
requerimento de um mestre razoável, muito menos
de um Deus bom. A obrigação, portanto é limitada
pela capacidade. Se Deus ordena aos homens que
não pequem, eles são capazes de não pecar; se
Deus ordena aos homens que sejam santos e
perfeitos como é perfeito o Pai do céu, os
homens são plenamente capazes de cumprir tal
requerimento. Pelágio foi além, e afirmou que seria
possível fazer mais do que Deus requer. A fim de
que isso não parecesse uma possibilidade vazia ou
hipotética, ele afirmou que alguns homens
teriam vivido sem pecado. Depois, ele defendeu
que os pecados atuais não impossibilitariam a
vontade. Se a vontade é livre, e não é causada ou
determinada, então, não importando quantas vezes
alguém cometa pecado, a vontade ainda reterá sua
liberdade e inocência originais. Não haveria algo
como caráter mau ou natureza depravada, pois isso
seria a negação da liberdade. O pecado
consiste tão-somente de atos específicos, e depois
que o ato é findo, não permanece nem um traço de
pecado.

Essa visão pelagiana permite algumas


consequências inconsistentes com o entendimento
comum do evangelho. Dois pontos relativamente
menores são os seguintes. Primeiro, Paulo afirmou:
“Todos pecaram e destituídos estão da glória de
Deus”. Mas Pelágio mantinha que alguns homens
não teriam pecado, e teriam, até mesmo, ido além
dos requerimentos de Deus. Segundo, se não há
uma natureza depravada herdada, e se os pecados
consistem apenas em atos voluntários, por que
deveria o infante ser batizado? É impossível ser
verificada a declaração de Pelágio, de que algumas
pessoas desconhecidas, séculos atrás, em
terras distantes, teriam vivido sem pecado. Porém,
uma vez que os infantes têm sido batizados a cada
dia, da Grã-Bretanha à Pérsia, Pelágio, a fim de
evitar um óbvio repúdio do cristianismo, teve de
reconstruir o significado do rito, declarando que o
batismo não seria um sinal de purificação dos
pecados, mas seria realizado a fim de atingir um
estado de salvação mais elevado.

Há outro elemento do cristianismo, igualmente


evidente, e bem mais importante, com o qual
Pelágio entrou em conflito. Se o cristianismo for
algo, afinal, ele é a oferta da graça divina para a
salvação de pecadores. O nome Jesus significa
Salvador. Porém, se alguns homens tivessem
excedido os requerimentos de Deus, não
precisariam do Salvador. Em outras palavras,
Pelágio negou a necessidade da graça. Na verdade,
Pelágio se referiu à entrega da Lei e ao exemplo da
vida de Cristo como graça. Esses seriam dons
infinitos que os homens poderiam usar como
auxílio, no sentido de um poder interior para
guardar a Lei ou imitar a Cristo: uma habilidade
dada antes de as boas obras poderem ser
feitas. Pelágio negou a graça. A graça é
inconsistente com o livre-arbítrio. Com a
doutrina da graça, Agostinho foi capaz de
responder à quase plausível teoria de Pelágio,
de que a capacidade limita a responsabilidade. As
ordenanças de Deus são, indubitavelmente,
impossíveis. Seus requerimentos estão além dos
nossos recursos. Uma vez, entretanto, que eles não
estão além dos recursos de Deus, Agostinho pode
orar: “concede-me o que me ordenas, e ordena o
que quiseres”.

A batalha eclesiástica contra o pelagianismo e a


atividade episcopal de Agostinho são mais matéria
de história da igreja do que de teologia ou
filosofia. Nem poderemos dar tempo para os
sermões de Agostinho sobre batismo e graça. Ainda
que Pelágio e seus seguidores tenham torcido,
retorcido e esticado o uso ambíguo da linguagem, o
apelo de Agostinho à Escritura é avassalador.
Contudo, ele levou Agostinho à quase negação do
livre-arbítrio. Agostinho logo percebeu que os
homens, hoje, por causa do pecado, não têm livre-
arbítrio. Sem a fé, que é um dom de Deus, é
impossível agradá-lo. A mente carnal é inimiga de
Deus, pois não está sujeita à lei de Deus, nem pode
estar; estávamos mortos em pecados e éramos, por
natureza, filhos da ira. Sobre esse ponto, sem
dúvida, Agostinho teria aprovado um livro escrito
mais tarde por um monge agostiniano,
Martinho Lutero, sobre A Escravidão da
Vontade. Mas Agostinho não estava disposto
a renunciar ao livre-arbítrio. Se o homem, hoje, não
é livre, pelo menos Adão o teria sido, antes da
queda. Ou, na realidade, a situação seria um pouco
mais complicada. Quando os santos finalmente
chegarem aos céus, é óbvio que não mais pecarão,
nem desejarão o pecado. Suas vontades serão
imutavelmente dirigidas para o bem. Então, essa
plena determinação da vontade poderá ser chamada
de livre-arbítrio em seu sentido mais elevado, pois
será livre de pecado. Nem mesmo Adão teve
liberdade nesse sentido. A vontade de Adão, antes
da queda, era livre no sentido de que era possível
não pecar; para os santos, no céu, será livre no
sentido de que será impossível pecar; enquanto, na
Terra, é impossível não pecar. Agostinho, com sua
inclinação para a oratória, tomou três frases latinas;
para Adão, posse non peccare[habilitado a não
pecar]; para nós, non posse non peccare [não
habilitado a não pecar]; para aqueles no céu, non
posse peccare [não habilitado a pecar].

Não é de surpreender, então - de fato, foi declarado


no início - que o céu é o nosso objetivo, pois o bem
é o fim último de todos os desejos, e a vida eterna é
o sumo bem. Certamente, esta vida terrena não
contém o bem. Aqui, estamos sujeitos a
multiformes misérias. Crimes, torturas, guerras, e
até mesmo, línguas estrangeiras que obstruem a
comunicação, são misérias. A amizade é boa,
mas pode causar tristeza também, não sendo,
portanto, um bem absoluto ou sem mistura. O puro
e sumo bem poderá ser encontrado somente na
perfeita paz dos céus. A paz terrena, essa paz
imperfeita entre os homens, é, tal como a
amizade, um grande bem; mas a paz entre o homem
e Deus, uma paz que não pode ser rompida,
somente ela é o sumo bem. A tristeza profunda, a
frustração, a insatisfação dos anseios do coração
humano é essencialmente a falta dessa paz; é a
ausência da paz; é guerra contra Deus. E nada
poderá sanar os horrores da guerra,
disfarçados pelas diversões do mundo e pelas
artimanhas do diabo, exceto a paz. “Magna
es, domine, et laudubilis valde ... quiafecisti nos ad
te et inquietam est cor nostrum donec requiescat in
te. Grande és tu, Senhor, e digno de grande louvor
... pois nos fizeste para ti, e nosso coração estará
inquieto, até que descanse em ti.” 6

IDADE DAS TREVAS

O governo imperial tinha, recentemente,


abandonado Roma e se transferido para
Constantinopla, e a cidade outrora orgulhosa se
tornara uma cidade provinciana. Roma foi saqueada
em 410 d.C. Seu bispado era insignificante
se comparado ao brilho de Hipona. Quando
Agostinho morreu, não deixando sucessão
intelectual, cristã ou pagã, séculos de trevas
tomaram conta, primeiro do Ocidente e, depois, do
Oriente.

O único pagão digno de menção é Proclo (410-


485), o último dos neoplatônicos. Por estranha
providência, ele exerceu imensa influência sobre
a história subsequente do cristianismo. Antes do
fim do século, um cristão professo tentou uma
combinação de neoplatonismo e cristianismo, em
que havia muito mais de neoplatonismo do que
Agostinho teria admitido. Sua discussão sobre
o mal é quase uma reprodução verbatim da seção
de Proclo. O autor adotou o nome de Dionísio, o
Areopagita, cuja conversão, por intermédio do
apóstolo Paulo, está registrada em Atos 17.34.77 As
trevas eram tão densas, que a falsificação foi
detectada. Não obstante, os escritos foram aceitos
como tendo autoridade quase apostólica. Assim, a
tendência da igreja, tão vigorosa com Tertuliano e
Atanásio, de purgar-se de ideias pagãs, foi
confrontada e teve sua direção revertida. Até
mesmo, Tomás de Aquino, pensador brilhante,
aceitou tais escritos como autênticos e permitiu-
se absorver algumas, não todas, das ideias
neoplatônicas.

A teoria de Dionísio sobre o mal é semelhante à de


Agostinho; a linguagem, no entanto, é mais
fortemente platônica. O mal é o abandono de um
bem supremo para um bem menor e não tem causa
eficiente. É privação, não-ser, ou, até mesmo, algo
pior, inferior e menos real do que não-ser. Além da
teoria do mal, Dionísio enfatizou a unidade e a
bondade de Deus, de tal maneira que resultou num
misticismo e numa teologia negativa plenamente
desenvolvida. Tal como o mal é um não-ser de
baixa categoria, assim Deus é superior ao Ser. Ele é
pré-ser e supra-ser. Nenhum nome se lhe aplica
adequadamente porque ele está acima de tudo.
Somente declarações negativas são admissíveis.
Deus não é mente, nem alma, nem espírito, nem
não-ser. Se qualquer declaração for verdadeira, será
a de que Deus é causa. Portanto, uma vez que Deus
é inefável, isto é, que não podemos falar sobre
Deus, o misticismo será nosso único recurso, e a
linguagem que teremos de usar, a linguagem que
Dionísio usou, torna-se ininteligível.
“Tríade suprema, supra-Deus e supra-bem,
Guardião da teosofia dos homens cristãos, orienta-
nos diretamente para o supradesconhecido e
suprarresplandecente e elevado vértice dos oráculos
místicos, onde o simples, o absoluto e os imutáveis
mistérios da teologia repousam escondidos no
supraluminoso clarão do silêncio, revelando coisas
escondidas, que em suas mais densas trevas reluz
acima do mais suprarresplandecente, e na totalidade
impalpável e invisível, transborda com glórias e
assombrosa beleza, a ponto de extravasar as mentes
desprovidas de olhos.”78 Ou: “Deidade de nosso
Senhor Jesus, a causa e a plenitude de tudo, que
preserva as partes concordantes com a totalidade, e
que não é parte nem totalidade, e totalidade e parte,
como abarcando em si mesmo todas as coisas,
totalidade e parte, e Ser supremo e anterior,
perfeito, na imperfeição como fonte de
perfeição, mas imperfeito no perfeito como
supraperfeito e pré-perfeito, forma
produzindo forma em coisas sem forma, como
fonte de forma, informe na forma e acima da forma,
essência penetrante sem macular as essências
perpassadas, e pré-essencial, exaltado sobre toda
essência, impondo limites a todos os principados e
ordens e estabelecida em todo principado e
ordem”.79 Sem sombra de dúvida, uma
perfeita introdução à idade das trevas.

À medida que as trevas se tornaram densas, viveu


em Roma, onde, em seu tempo, foi nomeado
cônsul, certo Boécio, de tendências científica,
política e filosófica. Ele lidou com cronômetros e
tentou sistematizar o sistema de cunhagem.
Aprisionado sob acusação de traição, ele escreveu
sua última obra, A Consolação da
Filosofia. Apresentando sua história em forma de
uma visão, Boécio descreveu a filosofia como uma
mulher majestosa que vinha consolá-lo em face da
morte iminente. A filosofia argumenta que a
virtude é a própria recompensa e que o homem mau
jamais será feliz. Há também
argumentos elaborados para mostrar que a
presciência divina não seria inconsistente com a
liberdade. Embora Boécio fosse presumidamente
cristão, sua Consolação não faz menção a Cristo.
Tão logo após Agostinho, o cristianismo
desvaneceu das mentes dos homens.
A Consolação jamais trouxe fama a Boécio, mas
seu nome foi preservado, principalmente, por causa
de sua tradução de Aristóteles para o latim; e à
medida que o grego morria, no Ocidente, o
acadêmico medieval passou a estudar Aristóteles na
tradução de Boécio.

Durante o tempo de vida de Boécio, a Itália foi


governada pelos ostrogodos: Boécio foi cônsul do
chefe ostrogodo, Teodorico. Justiniano, mais tarde,
derrotou os ostrogodos e reanexou a Itália ao
Império. Os visigodos mantiveram a Espanha, e os
burgúndios conflitaram com os francos, na Gália.
Sob o comando de Clóvis, os francos foram bem-
sucedidos, não apenas em subjugar os burgúndios,
mas também em destruir para sempre todo poder
imperial na - poderíamos chamar de França? O
norte da África, cenário da glória de Agostinho,
tornou-se um reinado vândalo. Justiniano também
reconquistou seu território; mas foi capaz de manter
a Itália por meros dez anos. Então, os lombardos
devastaram a terra já desonrada e dividiram-na em
insignificantes ducados, como a atormentada
Itália até o século 19.
Em tempos de guerra, pobreza, fome e anarquia, a
filosofia não floresce. Cassiodoro (480-575) é
apenas um nome. Isidoro de Sevilha (560-636)
conhecia o grego e o hebraico, introduziu
Aristóteles na Espanha e criou seminários. Mas ele
é mais importante para a história do
desenvolvimento da língua espanhola do que para
qualquer obra filosófica. O venerável Bede (672-
735), um santo inglês, também conhecia grego e
hebraico; mas qualquer influência que tenha
exercido foi destruída pela invasão dos
dinamarqueses. Mais importante do que
todos esses, foi Alcuíno (735-804), que labutou
paciente e, até, heroicamente, para defender a fé
ortodoxa contra a heresia adocionista e para trazer
sucesso aos esforços de Carlos Magno para
reacender a chama do aprendizado. Rábano Mauro
(776-856), um germânico, discípulo de Alcuíno,
continuou a luta para promover maior
academicismo.
6 - O PERÍODO ESCOLÁSTICO
Costumeiramente, considera-se que a Idade das
Trevas e o período Patrístico terminam no começo
do século 9o. Há uma razão política e uma razão
intelectual para essa divisão, ambas centradas na
pessoa de Carlos Magno. Depois de um período de
cruel anarquia, Carlos Martel (690-741), conseguiu
impor certa autoridade unificada nos domínios
francos. Seu maior ato de bravura foi o de salvar a
Europa, na batalha de Poitiers, em 732, das
mãos do Islã, que já havia conquistado o norte da
África e estava avançando sobre a Espanha. O filho
de Carlos, Pepino, também foi um governante
vigoroso. O neto seria Carlos Magno. Embora não
tenha havido imperadores romanos, no Ocidente,
por três séculos, Carlos Magno tentou reviver a
velha tradição e coroou a si mesmo no dia do Natal
do ano 800. Embora a unidade da Europa não
subsistisse depois de Carlos Magno, o período de
extrema anarquia e invasões estava findado.
Politicamente, portanto, a Idade das Trevas estava
terminada. Carlos Magno também teve ambições
intelectuais para o seu império, e, embora ele
mesmo não lesse ou escrevesse, estabeleceu escolas
em Paris, Fulda e especialmente em Tours. Ele
encorajou o ajuntamento e a preservação
de manuscritos, e introduziu cursos nas sete artes
liberais. Tudo isso foi feito com vigor, mas seria
difícil dizer que o aprendizado tenha revivido.
Duzentos anos inteiros passariam antes que
ocorresse alguma iluminação espontânea e
continuada. Portanto, embora o período Patrístico
tivesse findado - possivelmente alguém poderia
dizer que terminara com Agostinho - aquilo que é
chamado de período Pré-Escolástico, do século 9o,
ou, até mesmo, a Baixa Escolástica, de 1050
al200, podem ser incluídos na Idade das Trevas. A
alta Escolástica vai de 1200 a 1340, e
o Escolasticismo recente continuou até à Reforma e
à Renascença.

Filosoficamente, o período findado em 1200 foi


caracterizado por seu conhecimento restrito de
Aristóteles. Um pouco, mas não tudo, de seus
escritos sobre lógica era conhecido; a Introdução às
Categorias, de Porfírio, e os Comentários, de
Boécio, eram utilizados; e isso era tudo. Embora o
conhecimento de Platão também estivesse restrito a
uma tradução do Timeu, o teor geral do pensamento
filosófico era platônico e neoplatônico, por causa
da influência de Agostinho com uma boa mistura
de Dionísio. Por volta de 1200, as outras obras de
Aristóteles foram descobertas e um novo ponto de
vista em breve se tornou superior. Porém,
conquanto as soluções fossem diferentes, em ambos
os lados da linha divisória os problemas principais
eram os mesmos: a relação entre fé e razão (a
tendência foi desenvolver separadamente a teologia
e a filosofia), o perene enigma dos universais e
particulares, e, mais tarde, o primado da vontade ou
do intelecto.

JOÃO SCOTO ERÍGENA

Depois da morte de Carlos Magno, suas escolas


desapareceram, e Carlos, o Calvo, tentou uma
reorganização, chamando João Scoto Erígena (810-
877?) a Paris. Tal como o nome indica, Scoto
nasceu em Eriu ou Erian, pois a Irlanda
era chamada Escócia Maior até 1100 d.C.80 Ao que
parece ele adquiriu fama, principalmente, por falta
de outro, pois seu sistema não é tanto original, mas
é modelado por Dionísio, o Areopagita, que ele
traduziu para o Latim e cujo ponto de vista ele
absorveu completamente. Essa tradução foi um
grande fator na imposição de um engessamento
neoplatônico e místico aos seis séculos seguintes.

Além das traduções, seu primeiro trabalho foi


escrito a pedido de Hincmar, bispo de Reims, que
desejava refutar um monge agostiniano,
Godescalco ou Gottshalk, quanto a questão da
predestinação. Na seção sobre Agostinho não
foi mencionado que, à medida que suas visões
amadureceram, ele atribuiu a Deus não apenas a
presciência, mas uma predestinação causal. Tal
pensamento é mais forte em suas últimas obras,
mas Agostinho jamais desenvolveu
plenamente, nem aplicou a ideia à questão do livre-
arbítrio. Gottshalk, provavelmente, lendo mais a
respeito de Paulo nos trabalhos de Agostinho, tal
como um protestante nascido fora de tempo,
antecipou João Calvino com uma clara noção
da predestinação. Em sua visão, o número preciso e
a identidade dos salvos e dos perdidos estão
definidos e inalteravelmente predeterminados. Essa
doutrina evangélica, que se tornou tão proeminente
nas igrejas reformadas, teve uma fria, ou antes,
tórrida recepção, quase no final da Idade das
Trevas. Gottshalk foi aprisionado e flagelado, e
como não se retratou, suas torturas foram
prolongadas por 21 anos, até à sua morte, na prisão.
Quanto à refutação da predestinação feita por João,
ela mesma provou não ser aceitável. Esta tem sido
descrita como um trabalho filosófico
conscientemente panteísta, combinando
elementos racionalistas de Pelágio com
especulações neoplatônicas. Embora esse
julgamento seja extremo, especialmente o termo
“conscientemente”, ele não é desprovido de alguma
evidência.

O maior trabalho de João foi o De Divisione


Naturae, publicado em cerca de 867 e condenado,
pelo menos, três vezes pelas autoridades
eclesiásticas. Ele começou com a visão agostiniana
de que filosofia e religião eram idênticas, visão esta
que, mais tarde, haveria de passar. Todas as nossas
inquirições devem começar com a sabedoria
revelada; não podemos colocar nossa experiência
acima de Deus, mas, antes, confiar na Palavra
revelada. Se João não foi hipócrita nisso, e não há
razão para acreditar que tenha sido, será impossível
julgá-lo como um racionalista no sentido teológico
do termo, ou, pelo menos, não um
racionalista consciente. A fim de entender as
Escrituras, entretanto, é preciso estudar os pais da
igreja, e infelizmente eles discordam em muitos
particulares. Temos, portanto, de escolher aquilo
que seja razoável neles, pois autoridades são
autoridades na medida em que são razoáveis.
Assim, em qualquer conflito entre a razão e
a autoridade dos pais, a razão é superior. Não há
indicação de que João tenha tomado a razão como
superior à autoridade das Escrituras, mas, antes, ele
diria que elas estariam no mesmo nível, pois a
razão e a verdadeira autoridade não poderão
conflitar.

A doutrina de Deus, de João Scoto, segue a teologia


negativa de Dionísio. A essência de Deus é
incompreensível e desconhecida ao homem. De
fato, Deus como não-algo sequer conhece a si
mesmo. “Deus não conhece quem ele é porque ele
não é um o quêA causa mais elevada não pode ser
verdadeiramente designada por um nome; todas as
nossas expressões são apenas
simbólicas. Metaforicamente, Deus pode ser
chamado de Verdade, Bem, Essência, Luz,
Sol, Estrela, Fôlego, Agua, e um número infinito de
outras coisas. Mas Deus está, realmente, acima de
todos esses predicados, pois cada um deles tem
uma contradição - verdade e falsidade, bem e mal,
luz e trevas - mas Deus não tem contradição. Ele é
supraessencial, supra-bem, e assim em diante, tal
como disse Dionísio. A criação é similar à
emanação neoplatônica, dependendo da
existência independente das Ideias. A aparência, e
talvez a realidade do panteísmo, é derivada da
representação de Deus como o gênero supremo, do
qual as classes finitas, tais como homens e animais,
são espécies. As coisas se desenvolveram a partir
de Deus, de maneira que há um processo reverso de
salvação ou deificação, conectado com a forma da
doutrina do Logos, por meio do qual todas as coisas
retornam à sua fonte. Tal reabsorção de todos os
homens e coisas, em Deus, é facilmente tomada
como panteísmo místico. O homem, diz ele, torna-
se inserido em Deus assim como o ar é penetrado
pela luz, e Deus será tudo em todos, quando
nada houver, senão somente Deus. O misticismo
dificilmente poderá ser negado, mas se é panteísta
ou não, depende do que João quis dizer por certas
palavras cautelares. Pois, ainda que o ar seja
penetrado pela luz, ele ainda é ar; e a reabsorção
em Deus é um adunatio sine confusione vel mixtura
vel compositione, adição sem confusão e mistura
sem composição. Se por tais frases João
desejou, conscientemente, negar ou disfarçar seu
panteísmo, é uma questão duvidosa e impossível de
ser respondida.

ANSELMO

Depois da morte ter extinguido a tênue luz de João


Scoto Erígena, as trevas continuaram por mais um
século e meio. Todos os esforços políticos para
estimular o aprendizado haviam falhado. Mas com
Anselmo (1033-1109), que se tornou Arcebispo de
Cantuária, e sem a estabilidade política que havia
marcado a vida de Carlos Magno, o estudo
acadêmico floresceu de maneira espontânea, se
desenvolveu, e não terminou até os dias de hoje.

Em sua posição filosófica geral, Anselmo seguiu


Agostinho, não de maneira escravizada e estéril,
mas levado, com surpreendente originalidade, a
novos campos de inquirição. Adotando o moto de
Agostinho, credo ut intelligam, ele aceitou a
identidade essencial de religião e filosofia e a
competência da razão para racionalizar a fé. A fé
fornece as proposições com as quais alguém deverá
iniciar; proposições relacionadas à existência de
Deus, Trindade, expiação e daí em diante. A razão
elabora provas racionais para tais doutrinas. Em
certo sentido, a operação da razão é superior à da
fé, e, em outro, não. É superior no sentido de que
um entendimento desenvolvido é um avanço, um
crescimento na graça, um objetivo para o qual a fé
é designada. Entretanto, o entendimento da
doutrina não deverá levar ao repúdio ou à
reinterpretação das doutrinas. Se este for o caso,
não seriam as doutrinas da fé que teriam sido
provadas e entendidas. Não, o conteúdo da fé é
inviolável e não pode ser aperfeiçoado pela
racionalização. Na religião, a fé desempenha o
papel que a experiência tem na ciência. Tal
como um homem cego não pode ver, e,
consequentemente, não pode discernir luz e
cor, assim também um incrédulo não poderá
compreender a doutrina. Os termos prova e
entendimento, entretanto, são suscetíveis de dois
significados. Aparentemente, Anselmo quis dizer
que as doutrinas da Bíblia e da igreja poderiam
ser demonstradas à parte da Escritura, em
diferentes bases. A razão é, portanto, em si mesma,
uma fonte de informação, e não simplesmente o
processo silogístico de deduzir um sistema de
teologia consistente a partir das declarações da
Escritura. O último sentido é também possível e
especialmente importante quando alguém afirma,
tal como, mais tarde, Lutero o fez, que a Bíblia e a
Igreja não concordam. Não fica claro que Anselmo
distingue a autoridade da Bíblia, da autoridade
da igreja, pois, no julgamento de Roscelino, ele
advertiu a corte a não engajar em discussão com o
acusado, mas a exigir imediata retratação. Tal
demanda deixaria sem convencimento o alegado
herege e lhe daria ocasião para ser um mártir ou um
hipócrita. Diferente de Gottshalk, Roscelino,
segundo a própria admissão, preferiu a hipocrisia.

Surge, então, a questão: Poderão todas as doutrinas


do cristianismo ser demonstradas sem apelo às
premissas da Escritura? Conquanto Agostinho
tenha definido filosofia como a exploração racional
da fé, e tenha defendido a pluralidade das intuições
intelectuais, ele não respondeu esta questão de
maneira tão explícita, e, é claro, ele não poderia
tentar provar todas as doutrinas. Anselmo parece
ter tomado isso como certo e tentado provar não
apenas a existência de Deus e da Trindade (o que,
de certo modo, Agostinho também tentou), mas
ainda a encarnação e, especialmente, a expiação.
Em seu trabalho, Cur Deus Homo, uma obra
magistral da teologia, Anselmo foi o primeiro na
história da igreja a ter apreendido o significado
exaro da morte de Cristo. Não é nosso propósito,
aqui, explicar a expiação ou, como é mais
apropriadamente chamada, a satisfação, mas
considerar a relação entre fé e razão. No prefácio,
Anselmo diz sobre seu livro: “deixar Cristo fora de
vista, como se nada jamais tenha sido
conhecido sobre ele, prova, por absoluta razão, a
impossibilidade de que qualquer homem possa ser
salvo sem ele ... tal é mostrado, sobretudo, pelo
simples raciocínio e fato de que a natureza humana
foi designada para esse propósito”. Tal prova
é dada por escrito não apenas para alegrar o
coração dos crentes, mas também para responder
aos descrentes, que pensam que o cristianismo é
contrário à razão. Anselmo negou que sua prova
consistiria de apreciação estética da beleza e
harmonia do plano de Deus; ele visava a prova
racional e a necessidade. A questão é: Que
necessidade havia de Deus tornar-se homem,
quando ele poderia ter nos salvado por meio de um
método menos doloroso? A morte do Deus-Homem
tem de ser provada “razoável e necessária”, de
maneira que convença alguém “não disposto a crer
em nada que não tenha sido provado pela
razão”. No final da obra, um discípulo de Anselmo
dá esta conclusão: “Por esta conclusão ... eu vejo a
verdade contida no Antigo e no Novo Testamento,
pois, provando que Deus se fez homem por
necessidade, deixando de lado o que é tirado da
Bíblia, vis., os comentários sobre as Pessoas da
Trindade e sobre Adão, você convence ambos,
judeus e pagãos, pela mera força da razão”.
Semelhantemente, no Monologium, ele diz: “posto
que nada na Escritura deva ser argumentado com
base na autoridade da própria Escritura, mas que
qualquer conclusão de investigação independente
deva ser declarada verdadeira, [a Escritura] deveria
ser reforçada, em estilo despojado, com provas
comuns e com um simples argumento, mediante o
convencimento da razão e da plena exposição à luz
da verdade”.

E claro que a prova de Anselmo não obteve


sucesso. Além dos comentários sobre a Trindade ou
sobre Adão, Anselmo tomou muitas premissas
tiradas da Escritura sem qualquer prova racional e
necessária. Seu entendimento da Bíblia foi melhor
do que seu entendimento da força da razão pura.
No restante da história da filosofia medieval, a
força da razão pura, isto é, razão como fonte
de informação independente das Escrituras, tornou-
se cada vez mais fraca, enquanto que, ao mesmo
tempo, a razão como método de argumentação
válida tornou-se cada vez mais aberta, consistente e
estritamente aplicada.

A ênfase na razão, entretanto, talvez em ambos os


sentidos e certamente no sentido proposto por
Anselmo, ainda que com certa afiliação histórica
com a visão de João Scoto Erígena, é uma esquina
e uma reversão da teologia negativa. A visão
mística é a de que as doutrinas são realmente falsas,
acomodações coloquiais às limitações humanas.
Mas Anselmo cria que Deus havia revelado a
verdade e que essa mesma verdade, não alguma
etérea negação dela, poderia ser demonstrada. Isso
não deve ser tomado como implicação de que
certos atributos não possam ser negados a Deus.
João Scoto havia chamado Deus de Sol, Estrela,
Fôlego e Água, apenas para esvaziar tais nomes de
todo significado.

Anselmo conservou o significado deles, mas negou


que eles fossem atributos de Deus. Mas outros
atributos, melhores do que aqueles, certamente
pertencem a Deus. Ele é vivo, justo, sábio,
poderoso e eterno. Ao mesmo tempo, Anselmo foi
cuidadoso em indicar que Deus não é sábio ou justo
por causa da participação em uma Ideia superior. O
próprio Deus é justiça. Isso é o que ele é. À
medida que essa linha de raciocínio é aplicada a
todos os atributos, por meio deles, nós sabemos não
apenas que tipo de ser Deus é, mas o que Deus é.
Não seria isso conhecer sua essência, que os
teólogos negativos dizem ser incognoscível? No
entanto, se for uma concessão, essa concessão deve
ser feita ao negativismo. Uma vez que Deus é um,
sem qualquer composição, Justiça é Vida, Poder
é Eternidade, e todos os atributos são os mesmos.
Obviamente, se Justiça é da essência de Deus, e se
a essência de Deus é Poder, Justiça e Poder são
atributos idênticos. Cada atributo exaure cada um
dos outros, “porque qualquer que seja a
essencialidade de Deus, isso é o que ele é”.81

O Monologium é uma tentativa de provar a


existência de Deus por meio do método platônico
de hispostatisar bondade, justiça, existência, e
assim por diante. Anselmo pensava que a prova
seria suficiente, mas ansiava por uma
demonstração menos complicada e mais
convincente. Com um toque de gênio, depois de
muita meditação não sucedida, a prova lhe veio. A
prova propriamente82 não tem mais do que duas
páginas, mas a discussão que ela engendrou a partir
desse dia deve encher mais de dois mil volumes. É
sobre esse Argumento Ontológico que repousa a
fama de Anselmo. Uma vez que é tão curto, pode
ser citado na íntegra, incluindo o primeiro
parágrafo, que é mais uma meditação do que um
argumento.

E assim, Senhor, vós que dais entendimento à fé,


dai-me, à medida que sabeis ser proveitoso a mim,
entender que vós sois como nós cremos, e que sois
o que cremos. De fato, nós cremos que vós sois um
ser sobre o qual nada maior poderá ser concebido.
Ou não haverá tal natureza, posto que o estulto diz
em seu coração: Não há Deus? (SI 14.1.) No
entanto, de qualquer modo, esse mesmo estulto,
quando ouve sobre tal ser a que me refiro — um ser
ao qual nada maior poderá ser concebido —
entende o que ouve; e o que ele entende, está em
seu entendimento, embora ele não creia que exista.
Uma coisa é, ter o objeto no entendimento, e outra,
entender que o objeto existe. Quando um pintor
concebe o que executará, ele tem [o quadro] em
seu entendimento, mas ainda não sabe o que será
[de fato], porque ainda não o executou. Porém,
depois de haver feito a pintura, ele a tem tanto em
seu entendimento, quanto sabe que ela existe,
porque já a fez.

Consequentemente, até mesmo o estulto está


convencido de que, pelo menos no entendimento,
algo existe, sobre o qual, nada maior pode ser
concebido. Pois quando ouve sobre ele, ele o
entende. E é entendido, existe no
entendimento. Certamente aquilo que existe, sobre
o qual nada maior poderá ser concebido,
não poderá existir somente no entendimento. Pois
suponha que ele exista apenas no entendimento:
então poderá ser concebido como existente na
realidade, que é maior [que o entendimento].

Portanto, se este, sobre o qual nada maior pode ser


concebido, existe somente no entendimento, o ser
sobre o qual, verdadeiramente, nada maior pode
ser concebido, será maior do que ele. Obviamente
isso é impossível. Consequentemente, não há
dúvida de que existe um ser sobre o qual nada
maior pode ser concebido, e ele existe tanto no
entendimento quanto na realidade.

Certamente existe tão verdadeiramente, que é


inconcebível que não exista. Pois é possível
conceber um ser que seja inconcebível que não
exista, e esse é maior do que aquele que poderá ser
concebido que não exista. Consequentemente,
se este sobre o qual nada maior poderá ser
concebido, puder ser concebido, não será aquele ao
qual nada maior poderá ser concebido. Essa é uma
contradição irreconciliável. Há, então, um ser tão
verdadeiro sobre o qual nada maior poderá
ser concebido que exista, que sequer pode ser
concebido que não exista; e este ser sois vós, ó
Senhor, nosso Deus.

Tão verdadeiramente, portanto, vós existis, ó


Senhor, meu Deus, que não podeis ser concebido
não existir; e justamente. Pois, se minha mente
puder conceber um ser melhor do que vós, a
criatura se elevaria acima do Criador; e isso é um
grande absurdo. De fato, qualquer coisa que haja,
exceto unicamente vós, poderá ser concebido que
não exista. A vós unicamente, portanto, pertence
o existir mais verdadeiramente do que a todos os
outros seres, e assim, em mais alto grau do que
todos os seres. Pois o que quer que exista não existe
tão verdadeiramente e, portanto, pertence-lhe
existir em grau menor. Por que, então, tem dito
o estulto em seu coração: Não há Deus, uma vez
que é evidente, para uma mente racional, que vós
existis em mais elevado grau do que todos? Por
quê? - exceto porque ele é obtuso e estulto!

Esse argumento é válido? Não é uma questão de se


Deus existe ou não. Deus existe. Tomás de Aquino
e o Bispo Berkeley, ambos criam em Deus,
mas nenhum deles cria que o argumento ontológico
provava a existência de Deus. Os racionalistas do
século 17 achavam que o argumento fosse sólido, e
alguns teólogos protestantes o têm tratado com
respeito. Kant o analisou com extremo cuidado e
concluiu que seria uma falácia. Mas Hegel, ainda
que não compartilhasse a fé de Anselmo em relação
à expiação e outras doutrinas cristãs, forneceu um
sistema que nada mais é do que uma transformação
e expansão do argumento ontológico. Nos próprios
dias de Anselmo, o argumento provocou um
imediato ataque da parte do monge Gaunilo.

A refutação de Gaunilo não é tão claramente


expressa, e se ele conseguiu ou não pôr o dedo na
fraqueza do argumento é algo que tem sido
questionado, até mesmo, pôr aqueles que rejeitam o
argumento. Ele começou, tentando mostrar que a
ilustração de Anselmo, do pintor e sua obra de arte,
é enganosa. Não é apenas a ideia de Deus que há
em meu entendimento, disse ele, mas ideias
de muitos objetos irreais. Para provar a existência
de Deus, portanto, seria necessário mostrar que não
poderemos tê-lo no entendimento da mesma
maneira que temos os objetos irreais. Porém, se não
pudermos ter Deus dessa maneira, então
haverá uma distinção entre o que tem precedência
no tempo, a saber, o ter tal objeto no entendimento,
e o que é subsequente, no tempo, a saber, o
entendimento de que tal objeto existe. Na ilustração
do pintor, a distinção no tempo foi
proeminente. Ele foi suposto primeiro como tendo
entendimento de um objeto irreal, e depois, após ter
pintado o quadro, teve um objeto real no
entendimento. De maneira mais acurada, o pintor
não teve primeiro a pintura em seu entendimento. O
que ele teve primeiro, isto é, o planejamento da
pintura, é estritamente parte da alma do pintor;
quando o pintor conheceu o plano, ele estava
conhecendo sua alma, não um objeto externo. Se,
portanto, desejou usar a ilustração de um
pintor, Anselmo deveria ter demonstrado a
necessária conexão entre o primeiro estado do
conhecimento e o segundo. A conexão, no caso da
pintura, é o próprio pintor, enquanto pintava; mas
qual seria a conexão, no caso de Deus?
Entretanto, se Deus não puder ser concebido não
existir (embora o pintor possa não existir), qual o
propósito do argumento? Pois, nesse caso, ninguém
poderia possivelmente pensar que Deus não exista.

Gaunilo prossegue: Não é possível ter Deus no


entendimento nem concebê-lo. A mente humana
não conhece aquela realidade em si, que é Deus. O
homem não poderá intuir Deus. Nem poderá o
homem conjeturar ou discernir o que Deus é, a
partir de outras coisas, pois nenhuma coisa é como
Deus. É bem fácil conjeturar sobre como seria um
homem desconhecido a nós, porque todos
temos experiência de muitos homens. O conceito
de homem é derivado de tais experiências. Mas
nada desse tipo ocorre em relação a Deus; portanto,
o conceito de Deus é impossível para a mente
humana. A frase de Anselmo, sobre o maior de
todos os seres, é muito vaga para produzir um
conceito; é apenas uma série de palavras; e um
objeto nem sempre ou jamais poderá ser concebido
apenas com palavras. Não há virtualmente
nenhuma chance de um homem ouvir
uma definição verbal de um objeto desconhecido e
formar uma imagem correta da coisa descrita. O
argumento de Anselmo requer a fórmula verbal
“maior de todos os seres”; mas Gaunilo nega a
proposição: A fórmula nãogé o maior de todos os
seres; sua existência é apenas a existência da
fórmula verbal; portanto, nada há de absurdo na
afirmação da existência de um ser maior do que a
fórmula verbal “o maior de todos os seres”.
Qualquer pedra real será maior do que “o maior de
todos os seres”.

Então, segue a famosa ilustração de Gaunilo, da


ilha perdida. Tal ilha é a melhor de todas as ilhas.
Suas riquezas e delícias são inestimáveis. Ora,
portanto, se o argumento ontológico fosse válido,
poderíamos concluir: “Você não pode mais duvidar
da existência dessa ilha desconhecida, que é a mais
excelente de todas as ilhas, uma vez que você não
mais tem dúvida de que ela está em seu
entendimento. E uma vez que é mais excelente não
tê-la só no entendimento, mas que ela exista no
entendimento e na realidade, por isso, ela tem
de existir. Pois, se não existir, qualquer terra que
realmente exista será mais excelente do que ela; e
assim, a ilha já entendida como sendo mais
excelente, não será mais excelente”.

Felizmente, Anselmo escreveu uma réplica a


Gaunilo, mas como Gaunilo era um católico que
falava em nome do estulto, Anselmo julgou
suficiente replicar ao católico não estulto. Ora, se o
maior dos seres concebíveis não puder
ser concebido, como Gaunilo afirmou, então Deus
não será tal ser ou Deus não pode ser concebido. A
primeira alternativa é falsa por definição, e a
segunda é inconsistente com nossa fé e consciência.
Quanto à ilha perdida, a ilustração é enganosa. A
ilha perdida poderá ser concebida não existir, mas
Deus não poderá ser concebido não existir. Gaunilo
mostrou grave desentendimento do
argumento original, pois falou constantemente da
maior das coisas existentes. Ora, obviamente, se
dois ou três coisas existirem, uma delas terá de ser
a maior. E nesse sentido há uma ilha maior. Mas o
argumento ontológico não diz respeito à existência
de coisas: sua validade depende do fato de que diz
respeito à maior realidade concebível. Se três
coisas existirem, uma pedra, uma estrela e um
touro, nenhuma delas seria Deus, pois o maior dos
três não seria o maior ser concebível.
Gaunilo confundiu a maior coisa com o maior ser
concebível, por isso ele falou sobre sua ilha
perdida. Além disso, não é verdade que Deus é tão
diferente das outras coisas que sequer podemos
concebê-lo. Um bem menor, conquanto seja
bom, assemelha-se a um bem maior. Se pudermos
conceber um bem que comece e finde, poderemos,
depois, conceber um bem que nem comece nem
finde. Consequentemente, a partir de bens menores
é possível obter uma considerável noção de um ser,
sobre o qual, outro maior é inconcebível. E essa
observação se aplica tanto ao estulto quanto ao
católico romano.

CONCEITUALISMO

E discutível a questão de até que ponto Anselmo e


Gaunilo deram atenção às pressuposições de seus
argumentos. Tais pressuposições rapidamente
se tornaram os principais tópicos da controvérsia,
continuando até o fim da Idade Média. O ponto
mais debatido foi o da natureza dos conceitos; e
quer o conceito em discussão seja o conceito de
Deus, seja o conceito de homem, o assunto é
o mesmo. Porfírio, em sua Introdução às
Categorias, havia levantado a questão: Será que
gêneros e espécies, tais como homem, leão, justiça
e equidade, realmente existem na natureza, ou são
apenas pensamentos da mente de alguém? E se
eles realmente existem, são separados das coisas ou
existem nas coisas? Boécio levantou também a
questão de se as categorias, substância, quantidade,
relação e outras, seriam coisas ou meras palavras -
res ou voces. Aqueles que disseram que
as categorias eram res foram chamados de realistas,
uma palavra que porta um diferente significado no
português moderno; e aqueles que disseram que
as categorias eram meras palavras foram chamados
de nominalistas, do termo nomem. Essas questões
são equivalentes a perguntar sobre o que trata a
ciência da lógica. A lógica lida com coisas ou é a
ciência das palavras? A resposta dada a
essas questões tem implicações de tanto alcance
que controla cada detalhe do cktema filosófico
resultante.

Sob a influência de Agostinho, o período


escolástico antigo foi realista. Palavras designavam
realidades, e, consequentemente, a palavra homem
se referia a um objeto existente. Ela se referia à
qualidade comum de homens, e a filosofia do seu
tempo aceitava tal qualidade comum como a
natureza essencial dos homens. Quanto mais
comum, isto é, quanto mais universal fosse, tanto
mais real era o conceito; e como Deus é o mais real
de todos os seres, ele é o mais universal. Isso, é
claro, parece impor uma teologia negativa em que
Deus seria a mais rara determinação ou
absolutamente nada; parece também obrigar
um panteísmo em que Deus é o gênero supremo.
Entretanto, o realismo parece dar uma boa base
para a Trindade, uma vez que três pessoas poderão
ser uma única substância, realidade ou gênero; e
isso se adapta também à unidade da raça
humana, que pecou em sua inteireza, em Adão.
Foram os elementos ortodoxos no realismo que
atraíram atenção nos dias de Anselmo, e não suas
tendências panteístas.

Roscelino (1050-1120), de cujos escritos foi


preservada apenas uma carta, foi o primeiro ou,
pelo menos, o principal dos antigos nominalistas.
Ele sustentou que indivíduos são as realidades
primeiras, e que as categorias ou espécies
seriam meras palavras, flatus voeis, o sussurro da
voz. Embora discutisse matérias de lógica e
dialética, tais como o estado das totalidades e das
partes, e a composição do silogismo, sua fama
adveio de sua aplicação da teoria à Trindade.
Havendo definido a pessoa como substância
racional, ele concluiu que as três Pessoas
da Deidade seriam três substâncias, de fato, três
deuses, e que a “Trindade” seria apenas um nome.
Anselmo, que usou a tese platônica de que diversos
homens são um só Homem [humanidade], a fim de
sustentar que as três Pessoas da Trindade são um
único Deus, localizou a fonte da heresia de
Roscelino em sua epistemologia sensorial. Tal
como Gaunilo, ele estava limitado por uma
imaginação muito vívida.

O mais famoso discípulo de Roscelino foi Abelardo


(1079-1142), que também estudou com o realista
extremado, William de Champeaux.
Contra Anselmo, Abelardo dirigiu a desgastada
objeção de que, se o Homem estivesse em Platão, e
Platão estivesse em Roma, então, uma vez que o
Homem está em Sócrates, Sócrates também tem de
estar em Roma. O tratamento foi tão rude que
Abelardo parece emocionalmente incapaz de levar
o realismo a sério. Sua indubitável capacidade foi
desviada para outra direção. Primeiro ele aceitou
a posição de Roscelino, de que um universal seria
uma mera palavra, mas com um olho na Trindade e
com uma mente aguçada em termos de lógica, ele
produziu um comprometimento entre nominalismo
e realismo, que, na verdade, foi uma redescoberta
do aristotelismo. Ele perguntou: O que é um
predicado? Quando alguém diz que Platão é um
homem ou que é alto ou velho, qual é o estado
do homem, alto, e velho? Visto que as coisas, tais
como estrelas e pedras, não podem predicar (pois
não dizemos: “pesada é pedra” ou “velho é
Platão”), o realismo, que afirma que os predicados
são coisas ou res, tem de ser rejeitado. O predicado
não pode ser uma mera palavra, pois uma palavra
ou som é uma coisa tal qual uma pedra. O
predicado, portanto, não é uma vox, mas, para
inventar um termo novo, é sermo. A alteração que
Abelardo fez na fórmula de Roscelino teve o
propósito de indicar que uma palavra, além de ser
um som no ar, porta um significado; e tal
significado ou sentido é o predicado.

O processo mediante o qual a mente produz o


significado determina plenamente a natureza dos
universais. Se pensarmos sobre Platão, nós
teremos em mente uma substância singular, uma
coisa individual, Platão como Platão. Porém, se
pensarmos que Platão é velho ou que é homem,
limitamos nossa atenção a esse aspecto de Platão.
Não mais pensamos de Platão como Platão, mas
como homem; isto é, pensamos em sua
racionalidade, por meio da qual ele pertence a certa
espécie; ou poderemos pensar sobre ele ser velho,
ou sobre outra qualidade que ele tenha em comum
com outras coisas. Tal processo de seleção ou
abstração resulta em um conceito. A qualidade
comum, portanto, torna-se predicado quando é
abstraída e dirigida para algo mais. Não é
uma coisa por natureza, tal como um indivíduo,
embora tenha base no indivíduo e não seja um som
vazio. Assim, o predicado está, em um sentido, na
coisa, e, em outro, em nossa mente. Além da frase
universalia post rem, que poderá ser aplicada ao
nominalismo, Abelardo estava disposto a afirmar
universalia ante rem, a fórmula dos realistas. Pois
tais universais também existem eternamente na
mente de Deus. O conceitualismo, portanto, surgiu
para resgatar os elementos de verdade que estariam
em outras teorias, sem carregar suas falhas
indefensáveis.

Se o conceitualismo, com sua epistemologia


sensorial, poderá escapar às dificuldades de
Roscelino com respeito à Trindade, não precisa ser
examinado agora, mas, do ponto de vista mais
restrito da lógica e da dialética, alguém
pode questionar a existência de uma qualidade
comum. Tanto Abelardo quanto Aristóteles
assumiram que tal qualidade comum existe.
Contudo, se for plausível supor que todas as rosas
vermelhas exibam diferentes tons de vermelho, e
que, consequentemente, vermelho, em vez de ser
uma qualidade comum, seja meramente um nome
para uma série de qualidade no espectro, será mais
plausível que homens, muito mais complicados do
que rosas, tenham diferentes “nuanças” de
humanidade e uma variedade de qualidades físicas,
mentais e morais e, portanto, sem uma qualidade
comum. Se alguém argumentasse em favor
da existência de qualidades comuns com base em
que não se pode perceber nenhuma diferença no
vermelho de três rosas específicas, poderia ser dada
a resposta de que uma pessoa cega para cores seria
menos capaz de distinguir diferenças, e assim,
muito mais qualidades comuns. Mas isso
suspenderia o fato da qualidade comum em função
da deficiência visual; e seria improvável que
Aristóteles ou Abelardo tivessem aprovado tal base.
De qualquer modo, nenhum defeito poderá ser
atribuído ao conhecimento de Deus. Se Deus,
portanto, desde a eternidade planejou criar Sócrates
e Platão, não teria ele ideias distintas sobre tais
homens, sem confundi-los em um conceito de
homens não-diferenciados? Talvez, então, não
exista uma qualidade comum idêntica, em nenhum
lugar.

Abelardo fez também outra grande contribuição.


Em Sic et Non, Sim e Não, Abelardo coletou
opiniões dos pais da igreja sobre grande número de
assuntos e organizou as passagens sobre cada ponto
em colunas opostas, ressaltando as discrepâncias.
Depois, ele tentou racionalizar as questões assim
definidas. O procedimento que, de fato, foi uma
imitação do método de Aristóteles, de expor
dificuldades para ajustar um problema, exerceu
grande influência sobre os sucessores de Abelardo.
As Summas teológicas do século 13, incluindo a
de Tomás de Aquino, foram escritas segundo esse
modelo. Essa é a razão por que devem estar errados
os historiadores modernos que afirmam que
Abelardo, considerado um livre pensador, tenha
escolhido esse método como a única
maneira segura de lançar dúvidas sobre o
cristianismo.

Se confiarmos em sua própria declaração, seu


objetivo foi harmonizar os pais da igreja e resolver
as dificuldades da doutrina cristã. Nos resultados,
em certas ocasiões há, sem dúvida, sentimentos não
ortodoxos, assim como há também profissão de fé
em Cristo e sua igreja.

Elá também alguma confusão quanto à relação


entre fé e razão. Anselmo já havia distinguido entre
o conhecimento racional baseado em axiomas
necessários, independentes da Escritura, e a fé que
se satisfaz com a revelação. Essa distinção, sem
alterações, foi usada por Tomás de Aquino e se
tornou padrão para o catolicismo romano.
Anselmo, entretanto, provavelmente não tenha
entendido o pleno significado de sua distinção, e,
certamente, não a aplicou consistentemente. Ele
sustentou também que todas as verdades da fé
poderiam ser demonstradas mediante a razão, de
modo que, embora filosofia e teologia difiram em
método, elas não diferem em conteúdo. Quando,
então, expressou insatisfação com as visões aceitas
sobre fé e razão, e antecipou os desenvolvimentos
seguintes, Abelardo não foi tão original, pelo
menos, não em princípio, tal como ele é
representado. Seus avanços se mostram mais na
maneira de insistir no uso rigoroso da razão, na
censura da metáfora e da oratória, e no fato de fazer
da dialética o grande instrumento para a defesa da
fé. É verdade que ele questionou a possibilidade
do estabelecimento da fé por meio da razão, com
base em que Deus é incompreensível. Ainda assim,
ele tem a merecida reputação de ser mais
racionalista do que fideísta. A dialética é
indispensável para a teologia; ela é competente
para determinar a verdade ou a falsidade de
qualquer tese; e poderia ter sido usada com sucesso,
até mesmo, para provar a Trindade, a ponto de
satisfazer os antigos filósofos pagãos. De fato, eles
virtualmente chegaram à doutrina cristã porque seu
Uno ou Bem é o Pai, o Logos e as Ideias são o
Filho, e o Mundo-Alma é o Espírito Santo.

Não inconsistente com isso, em seus esforços para


evitar o triteísmo, de Roscelino, Abelardo enfatizou
tanto a unidade da Deidade que a divisão
pessoal quase ficou reduzida a um modalismo
unitariano. Acoplado a um orgulho arrogante
quanto à habilidade dialética, o que o levou a
debater com superiores e iguais, suas diversas
posições não ortodoxas fizeram-no incorrer na
inimizade e condenação do grande místico do
século 12, Bernardo de Clairvaux. Mesmo que
Abelardo tivesse sido ortodoxo, os místicos não
teriam ficado satisfeitos, pois não estavam
interessados em uma clara apreensão do sentido da
doutrina em que criam, mas em experiências
emocionais e em visões extáticas. E parecia-
lhes não apresentar perigo, se sua absorção no ser
divino era tão panteísta como Abelardo era
unitariano - contanto que a questão não fosse
claramente racionalizada.
Fica evidente que a atividade acadêmica do século
12 era espontânea e não desapareceria, tal como
ocorreu depois da morte de Carlos Magno, na obra
de cerca de uma dúzia de pensadores menores, na
escola de Chartres. Embora esses homens fossem
realistas, a escola leva o crédito de ter publicado
algumas obras de Aristóteles, até então
desconhecidas; e seriam a continuada descoberta
de textos aristotélicos e seus estudos que
brevemente revolucionariam a
perspectiva medieval. Outra evidência, embora
menor, da vida acadêmica foi a escola de Victor,
mencionado apenas de passagem como tentativa
para mediar entre dialética e misticismo. Há
também um número de tentativas, estimuladas
pela obra de Abelardo, de sistematizar a teologia. A
mais famosa delas foi Sentenças, de Pedro
Lombardo. Ao mesmo tempo, havia atividade
filosófica entre os judeus. O maior nome foi o de
Maimônides (1135-1204). Porém, embora os
judeus tenham contribuído para a introdução de
Aristóteles na Europa Ocidental, o grupo mais
influente foi o maometano, da filosofia árabe.
Os ISLÂMICOS

A difusão do cristianismo na Síria e na


Mesopotâmia, onde os nestorianos tiveram papel
proeminente, trouxe, às terras orientais, o Novo
Testamento em grego, os escritos dos pais da
igreja, e algo de filosofia grega, especialmente
a lógica de Aristóteles. Quando o islã substituiu o
cristianismo, assumiu alguma coisa da filosofia e, à
medida que marchou para o oeste, ao Egito, por
exemplo, tomou posse de outras obras de
Aristóteles. Aceitos como aristotélicos, havia dois
escritos neoplatônicos: A Teologia de Aristóteles,
que era um excerto de Plotino, e o Líber de Causis,
de Proclo. A mistura de aristotelismo e
neoplatonismo, em muitos aspectos similar ao
desenvolvimento do século 12, na Europa,
produziu um escolasticismo islâmico, não bem
aceito por escolásticos estritamente ortodoxos. Tais
escolásticos defendiam o livre-arbítrio, negavam a
predestinação e juntavam os atributos divinos que o
Alcorão havia separado. Sob as circunstâncias do
encontro do islamismo com o cristianismo europeu,
na Espanha, a interação foi inevitável.

A filosofia islâmica teve início com um verdadeiro


gênio, Avicena (980-1037), que havia memorizado
a Metafísica de Aristóteles quando tinha 18 anos de
idade, e que, antes de morrer, havia publicado mais
de cem livros. Ele elaborou um conceitualismo bem
semelhante ao de Abelardo. O conceito, o
universalium post rem, é a apreensão de nosso
intelecto quando este abstrai uma forma e
a relaciona com muitas coisas individuais. A
universalidade reside nesse ato de relacionar.
Abstrair, portanto, produz algo na mente que jamais
lhe havia sido externo, e tal produção subjetiva
pode, ela mesma, ser um objeto do
pensamento. Quando, sob o termo homem,
consideramos Platão, o termo homem é
tomado como “primeira intenção”, mas, quando
consideramos homem como conceito subjetivo, é
uma “segunda intenção”. O campo da lógica reside
nas segundas intenções. Uma distinção semelhante
entre intenções surgiu, mais tarde, entre os filósofos
cristãos. Avicena defendeu também que a matéria,
o princípio da individuação, é eterna, e que o
mundo é uma emanação perene do ser divino. Essas
visões determinaram o curso da filosofia islâmica.

Al Gazali (1059-1111) tentou impedir a aceitação


geral do aristotelismo. Embora a razão, no sentido
de argumento lógico, seja útil na sistematização
da teologia, ela é falha como fonte independente de
informação. Em outras palavras, Al Gazali era um
filósofo cético. Ele atacou a validade do argumento
usado para provar a eternidade da matéria, a perene
emanação do mundo, a confusão dos atributos
divinos, e outras heresias. Mais interessante ainda,
na defesa da onipotência de Deus, ele antecipou o
filósofo escocês, David Hume, em um ataque ao
conceito da causalidade. A única base que os
filósofos têm para afirmar a relação causal entre
dois eventos é a observação de suas sucessões no
tempo. Mas não há argumento válido que possa
passar da sucessão temporal para a conexão
necessária. Diferente de Hume, entretanto, Al
Gazali concluiu que o único agente no mundo é
Deus e que milagres são possíveis. Nessa
conjuntura, a filosofia islâmica chegou à Espanha,
onde um alto grau de tolerância religiosa contribuiu
para o seu vigoroso desenvolvimento.

O maior dos filósofos islâmicos foi Averróis (1126-


1198). Durante a maior parte da vida, Averróis foi
favorecido pelas autoridades e cumulado de
honras, mas, mais tarde, sob a ressurgência da
ortodoxia, ele foi condenado por minar a religião e
ensinar que a verdade poderia ser obtida por meio,
unicamente, da razão. Averróis explicou a
frequente luta entre religiões, como o resultado
da inabilidade do povo comum, para entender o
argumento racional e a profundidade da verdade.
Essas pessoas deveriam ser ensinadas quanto ao
sentido literal do Alcorão ou, até mesmo, serem
limitadas a receber exortação moral. Acima
das massas estão os teólogos. Estes são mais
capacitados e fazem uso da dialética para
sistematizar a teologia. Mas eles estão contentes
com argumentos prováveis e não requerem
conhecimento demonstrativo exato. Dos últimos, os
filósofos dão conta. O problema surge quando uma
classe mais baixa tenta assumir a cátedra para
julgar as classes superiores. O sagrado Alcorão,
certamente, é dirigido aos três tipos de pessoas,
mas cada pessoa deveria estudá-lo conforme
sua capacidade; é uma estultícia tentar ensinar
sentidos elevados a uma classe inferior. Quando o
filósofo descobre que o sentido literal do Alcorão é
inconsistente com a verdade filosófica, ele
reinterpreta o Alcorão. As três impressões ou
sentidos são todas as mesmas verdades ou
aproximações, feitas em diferentes graus
de verdade absoluta. A verdade é a mesma, mas a
expressão difere.

Tal visão de diferentes sentidos das Escrituras e a


relação da filosofia com a religião ou é ela mesma
ou induz a teoria da dupla verdade — a teoria de
que aquilo que é verdadeiro na filosofia poderá ser
falso na teologia e vice-versa. Na teologia, é
verdadeiro dizer que há um inferno, mas em
filosofia será verdadeiro que o inferno não existe.
Ambas são declarações da mesma “verdade”. A
figura de recompensas e punições motiva o povo
comum às boas obras, mas a figura teológica,
quando usada em linguagem filosófica, torna-se
(usando um termo mais moderno) a demanda
autônoma a priori da pura razão prática. Assim,
a afirmativa, há um inferno, é tanto verdadeira
quanto falsa; verdadeira na religião e, falsa, na
filosofia. Mediante tal estratagema, um filósofo,
quando questionado por ortodoxos hostis, poderia
responder, com a sinceridade que a teoria lhe
permite, que ele, de fato, mantém ser verdadeiro
que existe um inferno. É duvidoso que Averróis
tenha usado a teoria da dupla verdade,
parcialmente, por causa de discrepâncias entre os
textos latinos e árabes, mas supõe-se que ele tenha
dito: “Mediante a razão, conclui por necessidade
que o intelecto (ativo) é um em número (para todo
homem), mas mantenho firmemente o oposto, pela
fé”. Igualmente, seus comentários sobre
imortalidade da alma dão a impressão de serem
cautelosamente ambíguos.

A filosofia de Averróis é um neoplatonismo


aristotélico. Na antiguidade, foram propostas duas
interpretações de Aristóteles. Uma foi mais
favorável à religião, quer islâmica, quer cristã; a
outra foi a brilhante interpretação naturalista
de Alexandre Afrodísio. Foi esta última que
Averróis, de maneira geral, adotou. Em sua visão
do aristotelismo, a matéria se torna metafisicamente
autossubsistente, portando, como sementes ou
germes vivos, as formas que atualizam
coisas individuais. Embora as formas elevadas
atualizem as inferiores, de maneira que, a forma
mais elevada, Deus, é o primeiro motor, não fica
claro que Deus seja transcendente ou realidade
separada da matéria. Ao contrário, a teoria tende a
ser um imanentismo naturalista. O mundo é
produzido por Deus ou a partir de Deus em uma
eterna emanação. Os detalhes da progressão
seguem o modelo platônico. Com respeito aos seres
humanos e seu maravilhoso poder de
conhecimento, Averróis identifica o misterioso
intelecto ativo, de Aristóteles, com Deus. Este foi o
sentido das citações mencionadas, de que há apenas
um intelecto ativo para todos os homens. Uma vez
que o intelecto passivo pode ser imortal, a
afirmação de um único intelecto ativo é, com
efeito, uma negação da imortalidade pessoal.

Averróis foi perfeitamente sincero, não apenas


crendo que a razão necessita de tais conclusões,
mas também que esta era a interpretação correta
dos textos de Aristóteles. Sendo que ele morreu
antes do nascimento de Tomás de Aquino, e era,
assim, a maior autoridade acadêmica aristotélica na
Europa, foi natural que os agostinianos — que por
séculos haviam dominado, sem competição,
o pensamento cristão - devessem considerar a
influência aristotélica como uma ameaça à fé. Em
1210, o ensino de Aristóteles foi proibido em Paris,
exceto o Organon, que já estava em uso havia
muito tempo; em 1245, a proibição foi posta em
efeito em Toulouse; e, em 1263, a proibição foi
renovada. Não obstante, Aristóteles estava sendo
estudado, mesmo por agostinianos. Boaventura
(1221-1274) produziu uma síntese agostiniana bem
completa, na qual, entretanto, introduziu elementos
aristotélicos. E foi ele o excelente oponente
contemporâneo de Tomás de Aquino. Alberto
Magno (1206-1280) reverteu a proporção e
permitiu a alguns agostinianos que colorissem seu
aristotelismo. Ele viu que Aristóteles teria de ser
modificado para se conformar ao cristianismo; mas
cria também que, se modificado, Aristóteles
poderia ser de grande utilidade. Parece que
ele também foi o primeiro a afirmar que a Trindade
não poderia ser feita um objeto de demonstração
filosófica. Boaventura e os que vieram antes dele,
até mesmo, Abelardo, que defendia que a Trindade
era um profundo requerimento da razão, traíram a
ignorância sobre o que seria uma demonstração
racional e rígida. O conhecimento científico é
possível somente sobre aquelas coisas cujos
princípios puderem ser achados na experiência;
uma vez que o autoexame nos dá uma unidade e
não uma trindade de pessoas, a doutrina da
Trindade somente poderia ser aceita com base na
Revelação. Tomás de Aquino, é claro, foi o
ponto culminante do movimento aristotélico, e
aquilo que foi proibido durante o seu tempo de
vida, tornou-se curso requerido, no século seguinte.

TOMÁS DE AQUINO

Tomás de Aquino (1225-1274) foi, nas palavras do


historiador germânico, Geuer, “der kläste Kopf und
der grösste Systematiker des Mittelalters” (a
maior mente e o maior sistemático da Idade
Média). Embora essa declaração
exagerada dispense qualquer necessidade de maior
avaliação, a importância de construir um sistema
deve ser enfatizada. As obras intelectuais dos dois
séculos anteriores, geralmente brilhantes, foram
dedicadas a problemas especiais. O Cur Deus
Homo, e o Proslogium, de Anselmo, são exemplos
desse fato. Contudo, ainda que o agostinianismo
tenha fornecido uma unidade de aproximação,
ninguém, nem mesmo Boaventura, que chegou
perto de fazer isso, foi bem-sucedido em expor a
amplitude de detalhes em suas mútuas relações
lógicas. Sem um sistema integrado fica fácil
“resolver” dois problemas especiais a partir de dois
princípios incompatíveis, sem notar a sua
inconsistência; com um sistema integrado fica mais
fácil demolir construções menos hábeis. Foi isso
que Tomás fez.

Nascido próximo da vila de Aquino, na Itália,


Tomás foi primeiro educado pelos beneditinos, na
abadia de Montecassino, e depois, cursou a
Universidade de Nápoles. Em 1244, contra os
desejos da família, entrou na ordem
dominicana, que era uma ordem de ensino. Depois
foi para Paris; e então, para Cologna, onde
absorveu grande parte de Aristóteles, sob a
inspiração de Alberto Magno. De 1259 a 1268,
ensinou na Itália. Foi, depois, mandado a Paris para
ensinar teologia e engajar-se na amarga luta contra
os franciscanos agostinianos. A oposição entre as
visões tradicionais e as inovações aristotélicas era
mais do que filosófica; havia se tornado matéria de
política eclesiástica; uma rivalidade entre ordens; e
os dominicanos astutamente escolheram seu melhor
homem para o mais proeminente posto. A
estratégia de Tomás, bem desenvolvida em sua
mente desde os dias com Alberto Magno, foi,
primeiramente, produzir uma interpretação de
Aristóteles, menos hostil à religião do que a de
Averróis. Ele também suavizou sua pendenga com
Agostinho, dizendo que Agostinho havia citado,
mas não teria adotado vários pontos de vista
platônicos ou neoplatônicos; essa mesma
desculpa serviu para engenhosas reinterpretações
das palavras de Agostinho, quando necessário,
mediante o silêncio. Der klürste Kopfvtnceu a
batalha. Em 1272, Tomás de Aquino retornou a
Nápoles, e dois anos mais tarde, morreu, quando se
preparava para atender ao Concílio de Lyon. Em
1323, ele foi canonizado.

Fé e razão

Quanto ao seu sistema, a distinção entre fé e razão,


que Anselmo havia formulado, mas que não
aplicou completamente, foi adotado por Tomás
e elaborado mais detalhadamente. A teologia é
fundada na revelação; a filosofia é baseada
exclusivamente na razão. Neste ponto, a única
diferença entre Anselmo e Aquino é de clareza;
enquanto Anselmo introduz a questão
parenteticamente, Aquino torna-a um ponto
definido de sua exposição. Ele enfatiza o fato de
que a filosofia é demonstrativa e que a teologia não
é. Ele diz, por exemplo: “Mediante o próprio ato de
relacionar princípios à conclusão, alguém aceita as
conclusões, reduzindo-as ao princípio... pois, no
conhecimento científico, o movimento da razão
começa no entendimento de princípios e termina
depois de ter passado por um processo de redução...
Porém, na fé, a aceitação... não se dá
pelo pensamento, mas pela vontade”.83Essa
maneira de dizer reflete o estrito
interesse aristotélico, na lógica. Tomás de Aquino
prossegue, citando Hebreus 11.1, dizendo que a fé é
a certeza ou convicção de coisas que não se veem
A fé, portanto, apreende objetos que não são
evidentes; o que é evidente é apreendido pela razão.
A fé é “menor do que o conhecimento científico,
porque a fé não tem a visão que a ciência tem,
embora tenha a mesma firme confiança. Mesmo
assim, ela é tida como mais do que uma opinião por
causa da firmeza da aceitação”. Mais tarde, ele usa
a palavra necessária e a frase forçada por
necessidade,ambas as quais mostram que ele tem
em mente argumentos formalmente válidos.
“Qualquer coisa que possa ser provada por um
argumento necessário poderá ser conhecida como
uma conclusão científica... Sempre que o
entendimento for forçado por necessidade a aceitar
alguma coisa, será conhecimento científico... Todas
as coisas que conhecemos com conhecimento
propriamente chamado de científico, nós as
conhecemos, por meio da redução ao primeiro
princípio, naturalmente presente no entendimento...
Consequentemente é impossível ter fé e
conhecimento científico sobre a mesma coisa.”84 E
ele imediatamente acrescenta que
poderemos conhecer cientificamente a existência de
Deus.

Tirando a epistemologia aristotélica, pela qual


Tomás desejou estabelecer os primeiros princípios,
Anselmo teria concordado com tudo isso. No
entanto, porque Tomás teve um sentido mais estrito
anteriormente, demonstração e insistiu, tal como
mostram as citações acima, na validade formal, a
discordância começou a aparecer no fato de Tomás
não considerar toda verdade revelada como
suscetível de prova filosófica, pelo menos, não
pelos homens. Sem dúvida, para cada dogma existe
uma completa demonstração racional; idealmente,
na mente de Deus, filosofia e teologia são idênticas.
Porém, para nós, não. Há algumas verdades que a
nossa razão pode ver, e outras que ela não pode. No
caso das últimas, quando um islâmico ou herege,
ou nós mesmos, argumenta em defesa de
uma conclusão incoerente com a Escritura, a razão
tem a obrigação e a capacidade de traçar seus
passos e detectar a falácia. Uma vez que toda
verdade forma um sistema na mente de Deus, será
impossível que razão e fé se contradigam; e, além
disso, será sempre possível, para nós, demonstrar a
ausência de contradição; mas nem sempre será
possível provar as verdades da fé. A doutrina da
Trindade, por exemplo — a despeito de Agostinho,
Anselmo e Abelardo — não é parte da filosofia. O
processo de demonstração racional começa com um
senso de percepção deste mundo. Ora, posto que o
mundo é uma criação, o poder criativo de Deus é
comum a todas as três Pessoas, e assim, pertence à
unidade da Deidade, e não às distinções pessoais;
portanto, nenhum argumento da experiência
humana, isto é, nenhum argumento filosófico
poderá chegar a concluir a
Trindade. Semelhantemente, Tomás excluiu da
filosofia a doutrina da criação temporal, do pecado
original, da encarnação, do purgatório, da
ressurreição do corpo, do julgamento, do céu e
inferno. Sem dúvida, os pais da igreja mostraram
quão plausíveis, belas e apropriadas são essas
doutrinas, mas a filosofia requer demonstração
válida a partir dos primeiros princípios, e os
princípios dessas doutrinas não são acessíveis à
razão natural.

Algumas proposições, entretanto, podem ser


encontradas tanto na teologia quanto na filosofia. A
razão é que as Escrituras foram dadas para a
salvação de todos os tipos de homens, tanto os
intelectualmente débeis quanto os
gênios; consequentemente Deus incluiu em sua
revelação, informação que, de fato, filósofos
poderiam obter naturalmente, mas que o homem
mais débil e grande parte da humanidade jamais
poderiam descobrir. Isso não quer dizer que
qualquer um possa crer e conhecer a mesma
verdade. O entendimento completa e põe fim à fé.
Sempre que o entendimento é possível, a pessoa
não deve se contentar com a fé. A fé apreende a
verdade que não é evidente; a filosofia é visão
clara; e as duas são, portanto, incompatíveis por
definição. Mas embora ninguém possa crer e
conhecer uma dada verdade, a mesma verdade
poderá existir em ambas; na teologia porque é
revelada, e na filosofia porque alguém entendeu
a demonstração. Esse é o caso da existência de
Deus.
Teologia natural

Assim, a teologia natural, que significa a


demonstração lógica da existência de Deus a partir
dos primeiros princípios, é o limite entre a teologia
e a filosofia.

Além desse limite está a teologia, sobre a qual, é


claro, Tomás de Aquino escreveu volumosamente;
mas até este ponto, tudo é preparatório. A
existência de Deus é a última verdade que a
filosofia prova e a primeira que Deus revela. Isso
torna a teologia natural o centro do sistema de
Tomás e a ela sua fama está
inseparavelmente ligada. Tomás enfrentou duas
outras visões contrastantes. Uma foi que a
existência de Deus é autoevidente, e não precisa,
nem é suscetível de prova a partir dos primeiros
princípios. Aqueles que defendem essa visão
argumentam que Deus implantou no homem um
conhecimento essencial sobre ele. A ideia de Deus
é inata. Sobre isso, qualquer argumento ou prova
será nada mais do que um esclarecimento de ideias
já presentes. Com efeito, essa era a natureza das
tentativas de Agostinho, Anselmo e Abelardo. Ora,
em certo sentido, Tomás estava disposto a admitir
que a existência de Deus fosse autoevidente: ela
seria autoevidente em si mesma, e autoevidente
para Deus; mas não seria autoevidente para nós.
Deus não implantou ideias na mente humana, e
todo conhecimento é baseado na experiência
sensível. A posição agostiniana implica que o
homem pode apreender aquilo que é puramente
inteligível, e que, portanto, todo objeto inteligível
tem de ser inteligível para nós. Isso foi o que
Boaventura quis dizer quando argumentou que, se
as montanhas nos deram a força para carregá-las, a
mais pesada das montanhas poderá ser carregada
por nós, com toda facilidade. Mas tudo isso
é rejeitado porque o homem não é puramente
espiritual, mas corpóreo, e seu conhecimento tem
de ser desenvolvido por meio dos sentidos e da
imaginação. Há também uma segunda visão que
Tomás rejeita. “Alguns têm dito, tal como o Rabino
Moisés relata, que o fato de Deus existir não é
autoevidente, nem é alcançado por meio de
demonstração, mas somente aceito mediante a fé...
[tal] opinião é obviamente falsa, pois descobrimos
que a existência de Deus poderá ser provada pelos
filósofos, com provas incontestáveis.”85 Podemos
também assumir que a prova é possível pelas
palavras do apóstolo Paulo: “Porque os atributos
invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como
também a sua própria divindade, claramente se
reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo
percebidos por meio das coisas que foram criadas”
(Rm 1.20). Esse versículo não poderá ser
verdadeiro, diz Tomás, a menos que o argumento
cosmológico fosse válido. O fato de que a
demonstração procede “das coisas que foram
criadas” está de acordo com a teoria da
demonstração, de Aristóteles. Há dois métodos de
demonstração. Um método parte da causa para o
efeito, o outro, do efeito para a causa. “De cada
efeito poderá ser demonstrada a existência de sua
própria causa, embora os efeitos nos sejam mais
bem conhecidos; porque, dado que todo efeito
depende de uma causa, se o efeito existe, a causa
deverá preexistir. Quando a existência de qualquer
causa é demonstrada a partir de um efeito,
esse efeito toma o lugar da definição da causa ao
provar a causa da existência. Esse é especialmente
o caso a respeito de Deus, porque, a fim de provar a
existência de qualquer coisa, é necessário aceitar
como termo mediador o sentido do nome e não sua
essência, pois a questão da sua essência segue a
questão da sua existência.

Ora, os nomes dados a Deus são derivados de seus


efeitos... Consequentemente, demonstrando a
existência de Deus a partir dos seus efeitos,
poderemos tomar como termo mediador o sentido
do nome Deus... Para todo efeito poderá
ser demonstrada claramente a sua causa.”86 Com
esse pano de fundo aristotélico, Tomás apresenta
sua prova como uma demonstração formalmente
válida.

Na Summa Theologica, Tomás de Aquino afirma


poder provar a existência de Deus, por meio de
cinco vias. Tirando do fato de que a quinta
inclui considerações teológicas ausentes nas
demais, elas são essencialmente iguais, e será
suficiente reproduzir apenas uma.
A primeira e mais conhecida via é o argumento do
movimento. É certo e evidente aos nossos sentidos,
que, no mundo, algumas coisas estão em
movimento. Ora, tudo o que é movido é movido
por alguma coisa, pois nada é movido exceto em
sua potencialidade em relação àquilo a que é
movido; e um ser move enquanto em ato. Pois o
movimento não é senão o trânsito de alguma coisa
da potencialidade à atualidade; mas nada pode ser
levado da potencialidade à atualidade, exceto
por alguma coisa em estado de atualidade. Assim,
aquilo que é atualmente quente, tal como o fogo,
leva a madeira potencialmente quente a ser
atualmente quente e dessa maneira a move e a
altera. Ora, não é possível para a mesma coisa estar
em atualidade e potencialidade, no mesmo sentido,
mas somente em sentidos diferentes. Pois aquilo
que está atualmente quente não poderá estar,
simultaneamente, potencialmente quente, mas,
poderá estar simultaneamente potencialmente
frio. Logo, é impossível que uma coisa seja motor e
movido ou mover-se a si mesma, no mesmo sentido
e do mesmo modo, pois, tudo o que é movido é
movido por outro. Se, portanto, o motor também se
move, é necessário que seja movido por outro,
e este, de novo, por outro. Ora, isso não poderá
ocorrer infinitamente, porque não haveria nenhum
primeiro movimento e, consequentemente, nenhum
outro; pois, os segundos motores não movem, mas
são movidos pelo primeiro, tal como o báculo não
move sem que seja movido pela mão. Logo, é
necessário chegar ao primeiro motor, por nenhum
outro movido, que todos entendem ser Deus.87

A citação, é mais realisticamente entendida não


como uma demonstração completa, mas como um
sumário de demonstração. Obviamente suas
premissas precisam ser estabelecidas em outro
lugar. Potencialidade e atualidade, a
definição de movimento, a rejeição do infinito
regresso, todas são conclusões de uma longa série
de argumentos anteriores, e envolvem discussões
não apenas sobre física, mas principalmente sobre
epistemologia. Se houver uma quebra em algum
lugar dessa longa cadeia de raciocínio, a prova
culminante citada dependerá de uma falácia. Por
exemplo, um elo importante é o da negação do
infinito regresso. Se a série de motores e coisas
movidas regressarem ao infinito, argumenta Tomás,
teria de existir um número infinito de corpos. Cada
um deles teria de necessariamente estar causando o
movimento e estar em movimento, ao mesmo
tempo. Porém, Tomás conclui que é impossível
para um número infinito de corpos estar
em movimento em um tempo finito; pois
Aristóteles descobriu por meio de observação
científica que, quando um corpo move outro,
ambos têm de estar em contacto; e isso requereria
que um infinito número de corpos fossem um único
corpo; e esse corpo singular teria de se mover em
um tempo finito, o que é impossível. Tomás tem
outros argumentos contra o infinito regresso, mas
eles são certamente não mais conclusivos do que
este; assim, se houver qualquer falha em sua
cadeia de raciocínio, a prova da existência de Deus
é inválida.

Qualquer discussão da filosofia de Tomás é crítica


da prova da existência de Deus, pois sua prova é a
culminação da filosofia e sua dificuldade, ou
melhor, impossibilidade, permanece dentro dos
limites da prova citada; ainda assim, tanto quanto é
possível, há mais uma crítica a ser feita antes de
desviar a atenção do sumário formulado por Tomás
de Aquino. Uma crítica intrincada questiona se o
sentido do verbo é ou existe, na conclusão “Deus
existe”, é idêntico ao sentido de existir nas diversas
premissas que falam da existência de corpos
em movimento. Se o sentido de um termo muda
entre as premissas e a conclusão de um silogismo,
obviamente o silogismo será inválido. Na prova de
Tomás, tal como citada, há três possibilidades.
Primeiro, o termo existe é completamente unívoco.
Se for esse o caso, então Deus existe no mesmo
sentido em que as coisas existem; mas Tomás
negou explicitamente isso, dizendo que, no caso de
Deus, a existência é idêntica à essência, enquanto
no caso das coisas, as duas não são idênticas. Por
isso, a segunda possibilidade é a de que o
termo existe teve seu sentido mudado, e que,
portanto, a prova, mesmo que não contenha outra
falha, será falaciosa por conta da mudança. A
terceira possibilidade é a de que, embora o
termo existe seja usado em dois sentidos, há alguma
conexão entre eles, mediante a qual a falácia
é evitada. A última é a construção que Tomás
defende. A conexão entre os dois sentidos depende
da teoria da analogia, que deve ser precedida por
um breve relato sobre o conhecimento negativo
sobre Deus.

No conhecimento terreno sobre o que uma coisa é,


a definição de uma coisa é expressa com seu gênero
e suas diferenças específicas. Mas como Deus não é
um gênero e excede tudo o que a mente humana
pode apreender, não poderemos saber o que Deus é
- não poderemos conhecer a sua essência.
Contudo, é possível conhecer o que Deus não é.
Esse conhecimento, ainda que
admitidamente imperfeito, é, até certo ponto,
verdadeiro. Assim, é verdadeiro que Deus não
é mutável, portanto, não-temporal, logo, eterno.
Similarmente, Deus não é passivo, pois
potencialidade envolve contingência, e Deus não é
contingente; portanto, Deus é puro ato. Por
conseguinte, ele não é matéria e,
consequentemente, é sem partes e simples.
Simplicidade implica a identidade de essência e
existência. Ainda assim, quando dizemos que Deus
é eterno ou simples, não temos aí um conceito de
eternidade ou simplicidade. Embora as palavras
pareçam positivas, o conhecimento, porque não tem
nenhuma referência na experiência, é
negativo; imperfeito, mas verdadeiro.

Além do conhecimento negativo, Tomás permite


outra variedade maior: conhecimento analógico.
Como em Deus, essência e existência são a mesma
coisa, conclui-se que predicados ou atributos
referentes a Deus não podem portar o mesmo
sentido de quando atribuídos ao homem. Na
afirmativa: Deus é bom e o homem é sábio, o
termo sábio não é usado de modo unívoco.
Predicação unívoca é impossível entre Deus e as
criaturas, pois as criaturas não são
efeitos proporcionais ao infinito poder de Deus, e,
consequentemente, não conseguem obter a
semelhança de sua causa eficiente. A relação é
exemplificada também no caso do Sol, que aquece
as coisas na Terra, não sendo ele mesmo
apenas quente no mesmo sentido do termo.
Quando, portanto, é dito que um homem é sábio, o
termo sábio significa uma qualidade distinta da
essência do homem, distinta do seu poder e de seu
ser. Porém, quando dizemos que Deus é sábio, não
significamos nada distinto de sua essência, poder e
ser. O termo sábio aplicado ao homem circunscreve
e compreende o homem, a coisa significada; no
caso de Deus, o termo deixa o objeto, Deus,
incompreendido. Consequentemente, nenhum
nome ou predicado poderá ser aplicado a Deus e à
coisas de maneira unívoca. Isso não apenas é
verdadeiro acerca de nomes e predicados, mas é
verdadeiro também quanto ao verbo ser. Quando
dizemos que Deus existe e que o homem existe,
o verbo não porta o mesmo sentido para os dois
casos. Em Deus, existência e essência são idênticas;
em todas as outras coisas elas não são. Por
conseguinte, Deus é, mas não no mesmo sentido
que o homem é. Ainda assim, se tais
predicações fossem realmente equívocas, seria
impossível aprender qualquer coisa sobre Deus a
partir do estudo da natureza; ao passo que o
apóstolo Paulo nos assegura que podemos fazê-lo.
Além disso, Aristóteles também seria contrariado.
De modo que, essas predicações nem unívocas nem
equívocas, têm de ser analógicas. Assim como
atribuímos saudável à medicina e a animais, porque
medicina é a causa da manutenção da saúde em um
corpo animal, assim também diversos predicados
poderão ser vinculados a Deus e a coisas. Em uma
predicação análoga, o sentido não é único, tal como
nas predicações unívocas, nem o termo é usado de
modo equívoco, com sentidos ultimamente
diversos, mas, nos dois casos, significa diferentes
proporções, o que torna a analogia um meio entre
univocidade e equivocidade.

Se essa explanação livra ou não o argumento


cosmológico da acusação de falácia, depende de
certas considerações, das quais uma ou duas
poderão ser mencionadas. Na explanação, Tomás
se refere ao Sol como a causa do aquecimento, e
traça um paralelo com Deus como causa da
sabedoria no homem. Talvez isso seja suficiente
para preservar inteligibilidade para a atribuição
da sabedoria ao homem e a Deus, mas não
assumiria que o predicado causa tenha sido usado
no mesmo sentido para Deus e para o Sol? Se a
afirmativa: Deus é a causa, e, o Sol é a causa, não
usa “causa” em um sentido unívoco, então, o
que significaria dizer que Deus é a causa da
sabedoria tal como o Sol é a causa do aquecimento?
Tomás, explicitamente, declarou que é impossível
haver uma predicação unívoca entre Deus e as
criaturas, e que nenhum nome é atribuído de modo
unívoco a Deus e a elas. Se isso se aplica ao
termo causa, da mesma maneira que aos
termos quente ou sábio, o paralelo é falho. Nosso
conhecimento da causalidade procede inteiramente
das coisas; sobre a causalidade divina, não temos
nenhum conceito verdadeiro; do que se concluiria
que a teologia da analogia não nos fornece avanço
maior, para além do conhecimento negativo. Ou,
de maneira mais geral, parecería que qualquer
teoria da analogia utilizável teria de ser baseada em
algum elemento unívoco. Tomo o exemplo da
medicina e o animal, em que ambos foram ditos
terem saúde. Certamente, em bom
português, alguém se referiria à medicina usando o
adjetivo salutar, indicando uma pequena diferença
com o adjetivo saudável. Mas em uma linguagem
mais comum, o último é usado em ambos os
sentidos. E os sentidos poderão ser chamados
de análogos. É possível, porém, definir o
termo saudável, significando exatamente a mesma
coisa, quer aplicado à medicina, quer a animais.
Certamente, este sentido singular será mais
abrangente e vago do que os dois sentidos
ordinários. Ele poderá ser meramente “ter alguma
relação positiva com a saúde”. Contudo, ainda que
vago, esse sentido singular poderá ser atribuído de
modo unívoco tanto à medicina quanto ao animal.
E, de maneira mais específica ainda, se esse
sentido singular unívoco não existisse, seria
impossível haver dois sentidos análogos. Eíaveria
apenas equivocidade. A analogia, tal como o
próprio Tomás admitiu, depende de algum tipo de
similaridade. Contudo, se for assim, essa
similaridade poderá ser designada por um único
termo, por mais abrangente que seja
seu significado; e a menos que esse termo
abrangente tenha um sentido igualmente aplicável
às duas coisas em questão, a similaridade não
existirá e não haverá analogia. Consequentemente,
se o termo existeportar um sentido temporal
nas premissas do argumento cosmológico, mas, na
conclusão, portar o sentido de eternidade, da qual
temos apenas conhecimento negativo (isto
é, sabemos apenas que não significa o mesmo que
nas premissas) e se, assim, não houver
sentido unívoco neste ou em outro termo, então a
prova da existência de Deus acaba não sendo uma
demonstração, mas uma falácia.

Sensações, imaginação e intelecto

As críticas apresentadas não deixam dúvidas de que


o argumento cosmológico presume a verdade de
uma teoria do conhecimento específica. Com
ajustamentos em certos detalhes, Tomás assume a
posição aristotélica de que todo
conhecimento surge das sensações. A percepção de
verde ou vermelho é uma abstração de uma folha
ou de uma maçã; essa abstração permanece depois
de cessada as sensações, como imagem na
imaginação; a partir de um complexo de imagens, o
intelecto ativo abstrai e produz conceitos no
intelecto passivo; e a combinação de conceitos é o
pensamento, cujas combinações ou proposições
poderão ser verdadeiras ou falsas. É claro que essa
declaração abreviada, anotação mais do que um
sumário, é igualmente injusta tanto para aliados
quanto para inimigos. Selecionar apenas um ou
dois pontos para crítica, talvez seja mais injusto
em relação a um amigo do que a um inimigo, mas
limitações de espaço tornam isso mais conveniente.
E se lembrarmos de que Tomás argumentou a
fundo sobre centenas de pontos, uma crítica,
mesmo adversa, produzirá mais admiração quanto a
sua extensão sistemática.

Ora, parece claro que, se o conhecimento deve ser


obtido por meio de abstração de material sensível, o
primeiro passo do processo, a própria sensação, terá
de representar corretamente o objeto físico.
Aristóteles, no entanto, afirmou que as sensações
não poderiam errar; e Agostinho disse “se todas as
sensações corpóreas relatam como são afetadas, eu
não sei o que mais poderei requerer delas”. Mas
estas duas declarações não significam exatamente a
mesma coisa, e nesse caso, Tomás modificou
Aristóteles a fim de conformá-lo a Agostinho.
Há três tipos de sensação, tal como disse
Aristóteles. A menos acurada é chamada de
percepção acidental. Esse tipo de percepção ocorre
quando vemos um homem ou uma árvore. Falando
de maneira mais acurada, não podemos ver um
homem ou uma árvore; o objeto próprio da visão é
apenas a cor; e quando vemos a cor em certos
tamanhos e formas, inferimos que seja um homem
ou uma árvore. Percepção per accidens, portanto,
não é sensação pura, antes, é uma
construção intelectual a que tanto Aristóteles
quanto Agostinho admitem possibilidade de erro. O
segundo tipo de sensação é o da apreensão de
sensibilidades comuns. Estas são certas qualidades,
como forma, magnitude, movimento e número,
que podem ser percebidas por meio da visão e do
tato; não são próprias de nenhum sentido, mas são
comuns pelo menos a estes dois. Para Tomás, esse
tipo de sensação também é passível de erro. O
terceiro tipo de sensação é o das
próprias sensibilidades; a saber, cor para os olhos,
som para os ouvidos, odor para o olfato e assim em
diante. Conforme Aristóteles é impossível haver
erro quanto a essas coisas. Mas Tomás de Aquino
acrescenta uma qualificação. Ele diz que
não poderá haver erro, exceto acidental e
raramente, quando da indisposição de um órgão. O
doce poderá parecer amargo para uma pessoa
doente. É claro, a pessoa doente não é enganada
quanto ao fato de que o gosto seja amargo, mas
seu sentido lhe terá informado o objeto físico de
uma maneira que não corresponde à verdade. Em
casos de comunicação não acurada como esses,
parece óbvio que as atividades intelectuais mais
elevadas, dependendo de como elaboram o material
sensível, estariam viciadas desde o início. Isso, por
si só, não é fatal para a teoria de Tomás, pois ele
teve de admitir, e admitiu a possibilidade de erro. A
teoria que tornasse o erro impossível seria uma
teoria impossível. Entretanto, alguém poderá
questionar se as imprecisões da sensação seriam tão
acidentais e raras como pensa Tomás. Embora seres
humanos raramente tenham febre além de 42°, é
estranha a quantidade de cores diferentes que
diversos artistas podem ver em um mesmo objeto,
ao mesmo tempo, e quantas cores
diferentes qualquer um poderá ver no mesmo
objeto, em tempos diferentes. Nós dizemos que a
cor observada depende da luz. Mas será mesmo que
a cor que abstraímos de um objeto à luz do Sol ou
de uma luminária ou à luz de vela é realmente a cor
verdadeira? E é real o gosto agradável ou
desagradável de um alimento? O fato de que os
sentidos, algumas vezes, informam as próprias
sensibilidades de maneira acurada não nos exime
de responder a essas questões antes que possamos
dar crédito ao argumento cosmológico em favor da
existência de Deus. Assim, quando Tomás procede
ao acréscimo de que, uma vez que os sentidos não
estarão errados quanto às próprias sensibilidades, o
objeto não nos enganará sobre a essência da uma
coisa, o mesmo tipo de dificuldade é agravado, em
nível superior.88

O estágio mencionado das sensações, no processo


de aprendizado, é o da imaginação, pois assumindo
que o conhecimento não é inato, a menos que
algo seja preservado na imaginação depois de haver
cessado a sensação, o processo não poderia ir além.
Por conseguinte, Tomás de Aquino insiste na
necessidade de imagens, ou, como ele as chama,
fantasmas, do termo grego para aparências. É
dessas imagens que o intelecto ativo abstrai
conceitos. Tomás deduz que essas imagens têm de
ser usadas no processo intelectual por meio de dois
fatos: Primeiro, porque o próprio intelecto não é e
não tem um órgão corpóreo, sua habilidade não
poderia ser dificultada por qualquer defeito em um
órgão corpóreo, a menos que o intelecto dependa,
em certo sentido, de tal órgão. Mas a atividade
intelectual poderá ser dificuldade por delírio, por
medicamentos ou por fadiga, de maneira que um
homem deixa de entender coisas que ele conhecia
muito bem. Então, o conhecimento, de alguma
maneira, depende do corpo. Segundo, qualquer
um poderá ver por si mesmo que, quando tenta
entender coisas, apela para imagens: se deseja
pensar sobre árvores, reproduz a imagem de uma
árvore que se pode ter visto na semana passada e
examina nessa imagem o ponto preciso que
deseja entender. Esses dois fatos, ou pretensos
fatos, mostram que as imagens terão de ser usadas
por causa da natureza universal, isto é, a qualidade
comum em todas as árvores existe nas coisas
individuais, e nós apreendemos coisas
individuais mediante os sentidos e a imaginação.
Até mesmo, no caso de Deus e de outros seres não-
corpóreos, dos quais não poderá haver imagens, nós
as conhecemos por comparação com corpos
sensíveis: conhecemos Deus como causa por
meio de excesso e remoção, isto é, argumentando
nosso conceito de causalidade física e eliminando
fatores inadequados.

Desses argumentos sobre imaginação, o primeiro é


indubitavelmente forte; talvez seja a razão mais
forte que Tomás pôde ressaltar em defesa da
totalidade do seu sistema; pois ninguém poderá
negar que distúrbios físicos afetem ou, pelo menos,
estejam relacionados ao processo do pensamento
consciente. A relação do corpo com a mente é algo
com o qual todo filósofo sistemático se confronta, e
que reapareceria no racionalismo do século 17.
Porém, mesmo que o primeiro fato de Tomás for
admitido sem qualificação, e, se for assegurado que
o corpo produz causalmente os fenômenos mentais,
o segundo fato alegado não segue como uma
conclusão, nem é estabelecido pela experiência. É
verdade que, quando pensamos em algo, temos
sempre de apelar para imagens? Aparentemente,
Tomás tinha uma vívida imagética visual. Quando
pensou em uma árvore, ele viu, com os olhos da
mente, e reconheceu, pela forma, que se tratava de
uma bétula e não de um carvalho. Daí, ele assumiu
que todas as demais pessoas seriam como ele nesse
particular. Mas essa hipótese tem de ser desafiada.
Se for perguntado a um grande número de pessoas,
se elas podem ver, agora, um carvalho, a mesinha
de café, ou uma face de um amigo ausente, embora
muitas possam responder que sim, algumas dirão
que não. Se mais perguntas forem feitas, tais como,
se as pessoas podem, agora, ouvir um som, sentir
um odor ou uma textura de papel, algodão ou seda,
as respostas negativas aumentarão. Somente depois
de um número de pessoas haver negado terem tais
imagens, uma pessoa com uma vívida imagética,
perplexa e relutantemente, admitirá a possibilidade
de que imagens não são necessárias para o
pensamento. Algumas vezes, essa pessoa perplexa
indagará: “Mas como você reconhecerá um amigo
quando o encontra, a menos que tenha em mente a
sua imagem?”

Suponha que essa pessoa inquirida, replique,


perguntando: “Você reconhece um amigo, quando
ele se aproxima, comparando a sensação com uma
imagem remanescente de uma sensação anterior, tal
como se tirasse do bolso uma foto e a comparasse
com o amigo que chega?” A pessoa perplexa, com
a mesma relutância, admitirá que não. E quando
não se tratar de amigos, mesinhas de café ou
árvores, mas de justiça ou de coragem, logaritmos e
raiz quadrada menos um, a necessidade de imagens
dificilmente será plausível. Então, terceiro, se
entendermos Deus, comparando-o com coisas
sensíveis, e sua causalidade, mediante excesso
e remoção, surgirá a questão quanto ao valor do
conhecimento puramente negativo. Se não sabemos
o que Deus é, como poderemos saber o que
eliminar do conhecimento de causas sensíveis?
Com efeito, se não conhecemos o que Deus é, será
mesmo possível saber o que ele não é? Isso é
suficiente para um relance sobre a imaginação.

Acima da imaginação, vem o intelecto, ativo e


passivo. Esse ponto, porém, é tão intrincado, que
uma breve menção não será indicação da
quantidade de discussões que ele tem causado.
Aristóteles disse que o intelecto passivo é
nada antes que ele pense. Tomás falou dele como
uma lousa limpa em que nada ainda foi escrito.
Quando algo é escrito nessa lousa, isto é, quando
algo é entendido, diz-se que a potencialidade foi
elevada à atualidade. A questão interessante é como
ou pelo que a potencialidade foi atualizada. Tomás,
em sua maneira usual, primeiro levanta uma
objeção. Pode parecer, ele diz, que não há um
intelecto ativo necessário para atualizar o intelecto
passivo, pela mesma razão que não há um sentido
ativo ou agente para atualizar a sensibilidade.
Coisas sensíveis atualizam os sentidos; então, por
que os próprios objetos inteligíveis não
atualizariam o intelecto? Tal objeção, entretanto,
presume que objetos inteligíveis realmente existam.
Em outras palavras, a objeção é baseada na
existência de Ideias à parte das coisas sensíveis. Se
essas Ideias existem, então não será necessário um
intelecto ativo. Contudo, Aristóteles mostrou que
Ideias não existem; e uma vez que as formas
embutidas na matéria não são atualmente
inteligíveis, isto é, são imateriais, tais formas terão
de ser alçadas de sua inteligibilidade potencial para
uma atualidade. Mas nada poderá ser elevado da
potencialidade para a atualidade, exceto por meio
da eficiência causal de algo já atual. Dessa forma,
tem de existir um intelecto ativo.
Se esse intelecto ativo fosse numericamente um
para todos os homens, então, como mostrou
Averróis, a imortalidade pessoal seria impossível.
Tomás, portanto, foi requerido, pela fé, a pelo
menos expor a falácia de Averróis, e provar, se
pudesse, que cada pessoa tem o próprio intelecto
ativo. Isso, ele tentou fazer mostrando que o
intelecto ativo é algo na alma. As objeções,
no entanto, foram pesadas. Primeiramente, Tomás
atentou o que o apóstolo João disse: “Ali estava a
luz verdadeira, que alumia a todo homem que vem
ao mundo”. Uma vez que o propósito do intelecto
ativo é frequentemente descrito como
essa iluminação dos objetos do conhecimento,
parece que o intelecto ativo seria Deus. Em
segundo lugar, Aristóteles disse que o intelecto
ativo jamais cessa de entender: não há intermitência
em seu pensamento. Mas isso não é verdadeiro
a respeito de seres humanos e, por conseguinte, o
intelecto ativo não poderá estar em nossa alma.
Terceiro, inversamente, dado que agente e paciente
bastam para a ação, a existência de ambos na alma,
um intelecto passivo e um ativo, resultaria em um
entendimento ininterrupto, ou, pelo menos,
seríamos capazes de entender o que quer que
desejássemos. Em face dessas objeções, e
outras, Tomás respondeu que existe um intelecto
superior, acima da alma intelectual de um homem,
tal como aquele a que o apóstolo Paulo se refere; os
homens participam de um intelecto mais elevado e
derivam dele uma cópia imperfeita. A existência da
luz divina, no entanto, não remove a necessidade
desse poder derivado em cada alma humana, pois,
sem esse poder, a alma não poderia alçar da
potencialidade à atualidade inteligível. Este é
apenas um caso de princípios gerais em que causas
particulares e causas universais são
necessárias para produzir um efeito. Por exemplo, o
Sol, por si só, não gera os homens, mas no próprio
homem há um poder gerador. Portanto, a própria
alma possui um poder para iluminar imagens, e
esse poder é o intelecto ativo. Tal
consideração sustenta a existência de um intelecto
ativo para cada alma, e assim, a imortalidade da
alma recebe suporte.

Foi dito, logo de início, que Tomás de Aquino


construiu sistema. Ele integrou múltiplos detalhes
em uma totalidade toleravelmente coerente. Esses
detalhes incluem não apenas uma grande
quantidade de teologia, mas, dentro da esfera da
filosofia, eles consideram a questão da criação, a
existência de anjos, um pouco de ciência natural,
psicologia o bastante para substanciar sua
epistemologia, e todos os meandros da ética e da
política. Todos esses terão de ser omitidos, aqui.
Quanto mais Tomás de Aquino escreveu, tanto
mais os franciscanos ficaram convencidos que não
tinham nada em comum com ele, apegando-se aos
dogmas, vindo, até mesmo, a crer que ele teria
reintroduzido o paganismo no
cristianismo. Contudo, Tomás e Aristóteles se
sobressaíram.

DUNS SCOTO

O triunfo de Tomás de Aquino sobre Agostinho


não foi imediato nem completo. O catolicismo do
século 20 é bem mais tomista do que foram
os séculos 14 e 15. No início do século 14, Duns
Scoto (1270-1308) atacou Tomás em vários pontos
importantes. Alguns historiadores descrevem-no
como, essencialmente, um agostiniano que aceitava
grande parte do tomismo, enquanto outros,
especialmente os acadêmicos romanistas,
consideram-no um tomista que reintroduziu uma
pequena parte do agostinianismo. Em todo caso,
ele preparou o caminho para Guilherme de Occam,
que era ainda menos tomista. Bibliograficamente,
talvez possa ser notado que, se a vida de Tomás foi
breve, a de Duns Scoto foi ainda mais curta. Em
vista disso, suas conquistas são ainda mais
surpreendentes.

Quão fluidas são as flutuações da filosofia, pode ser


visto no desenvolvimento da separação de Tomás
entre filosofia e teologia, feito por Duns Scoto.
Tomás havia julgado os agostinianos muito lassos
em seu senso de validade demonstrativa; portanto,
concluiu que a Trindade e diversas doutrinas não
tinham espaço na filosofia, mas que a existência de
Deus e a imortalidade da alma poderiam
ser provadas por princípios aristotélicos. Duns
Scoto tinha uma noção estrita de rigor lógico como
a de Tomás, uma restrição induzida, pelo menos,
em parte pelos estudos científicos e matemáticos
dos franciscanos, em Oxford. O princípio, pelo qual
a filosofia é distinguida da teologia Duns assumiu
de Anselmo e Tomás, mas ele restringiu mais o
campo da filosofia. Ele sustentou, por exemplo, que
a doutrina da imortalidade da alma não poderia ser
demonstrada. Três argumentos foram tentados. O
primeiro foi baseado na proposição de que a alma
seria uma forma autossubsistente; mas Duns
declarou que tal proposição não poderia ser
provada. O segundo defendia que as injustiças
deste mundo teriam de ser equilibradas com
recompensas e punições no mundo por vir; mas não
poderia ser provado que Deus seja justo. O terceiro
argumento mantinha que a constituição do universo
faz provisão para a satisfação de todos os desejos
naturais; consequentemente, nosso desejo por
imortalidade teria de ser satisfeito. Entretanto, isso
dispensa a questão, pois um desejo não será
conhecido como natural antes de sua satisfação ter
sido observada.

Por causa dos vários tratados espúrios associados


ao seu nome, há dúvidas sobre o âmbito ao qual
Duns Scoto estava disposto a estender a filosofia.
Esses tratados têm uma longa lista de proposições
ditas como indemonstráveis. Por exemplo, que
Deus é vivo, que Deus é sábio, que ele tem volição,
que ele é, agora, ativo, que ele é um, imutável,
simples, e eterno. O fato de que esses tratados
foram coletados com genuínos escritos de Duns
Scoto, talvez indique que eles tenham sido gerados
no círculo de seus discípulos. Certamente
esses tratados são evidências de uma crescente
tendência de restringir a filosofia e expandir a
teologia; mas, também é certo, que o próprio Duns
Scoto não chegou tão longe.

Sem dúvida, Duns Scoto cria que seria possível


provar a existência de Deus. Seus argumentos,
entretanto, algumas vezes, pareceram retornos às
visões ontológicas agostinianas. A ênfase tomista
no movimento sequer é encontrada, e há uma
grande confiança nos conceitos de essência e de ser
infinito. Ele fala também da superioridade da
demonstração quid, a priori, da causa para o
efeito, sobre a demonstração quia, a posteriori, do
efeito para a causa. E a proposição: Deus existe, é
considerada como uma verdade autoevidente. A
despeito de frases desse tipo, Duns Scoto jamais
retornou ao argumento ontológico.
Demonstrações quid, da causa para o efeito,
conquanto possam ser superiores e possíveis
no céu, estariam além da presente capacidade dos
homens. O argumento ontológico requer uma
intuição direta de Deus, e isso somente nos seria
permitido mediante uma visão beatífica. Os
argumentos de Duns Scoto, portanto, partem
da experiência sensível e são tão a posteriori como
os de Tomás; mas parecem mais conceituais porque
não partem do mesmo fenômeno que Tomás usou.
Tomás estava interessado no movimento, e Duns
Scoto, no ser. As propriedades do
ser experimentado teriam de se referir a uma causa,
uma causa real e tão existente como os seres dos
quais parte o argumento. Uma vez que tais
propriedades incluem pluralidade, dependência e
composição, a causa terá de ser única, independente
e simples.

A diferença entre esse argumento e o de Tomás,


embora não seja tão grande quanto a diferença
entre uma demonstração quid e uma
demonstraçãoquia, ainda é considerável, pois com
os pontos mencionados, há também uma
noção diferente de ser, existência, essência, e de
suas mútuas relações.Ser, para Duns Scoto, designa
tanto a essência quanto a existência daquilo que é.
Enquanto essências forem essências de coisas
atuais, essências existem. Como uma coisa
é definida pelo que ela é, sua essência é parte de
seu ser. Esses comentários, é bom notar, carregam
um tom agostiniano. É interessante, no entanto,
perguntar por que Duns Scoto cria ter demonstrado
a existência de Deus, de modo a posteriori. A
existência de Deus encontra espaço na filosofia, ou
somente na teologia? Pode parecer que Duns Scoto
tenha ficado limitado nessa questão. Ou, talvez,
ele tenha sido tão sutil que deixasse de seguir o
raciocínio. Ele foi, de fato, sutil e ganhou o título
de Doctor Subtilis. Forneceu também a etimologia
do nosso termo pejorativo,dunce (estúpido, bobo);
mas isto se deve, provavelmente, ao fato de sua
terminologia ser tão técnica como a dos lógicos
simbolistas modernos. De qualquer forma, uma
verdade pertence, simpliciter, à ciência que
demonstra isso de maneira a priori; mas a mesma
verdade talvez pertença secundariamente à
ciência quia, isto é, à ciência que mostra que
isso é assim, mas não porque é assim. Portanto, a
existência de Deus pertence,simpliciter, à teologia,
mas, secundariamente, à metafísica. Ainda assim,
embora os argumentos sejam válidos, o ser
necessário da metafísica não é o Deus da teologia.
Em particular, ciência ou filosofia tem o geral ou
universal como seu objeto, enquanto Deus é um
ser único e singular; além disso, o infinito e
absoluto poder de Deus, que Duns reforça por
outras razões, é indemonstrável. Portanto, a
existência de Deus não é um elo ou uma área
comum entre filosofia e teologia, tal como foi em
Tomás.

Onipotência e liberdade

O poder absoluto de Deus é um tema pelo qual


Duns Scoto é bem conhecido. O fato de nenhum
filósofo ter jamais demonstrado tal poder,
é evidência suficiente de que ele é indemonstrável e
uma noção estritamente cristã. Há um sentido em
que o Deus dos filósofos poderá ser chamado de
todo-poderoso: eles creem que Deus causa todos os
efeitos; o motor imóvel é uma causa universal, cuja
eficácia está presente em todos os lugares. Porém,
para os filósofos, tal eficácia é sempre mediada por
agentes naturais. Deus causa o nascimento de uma
criança do mesmo modo que o Sol faz; sem Deus e
o Sol não haveria criança, mas, ainda assim, um pai
será indispensável. Em um mundo assim
concebido, as ações de Deus são necessárias.
Deus é todo-poderoso, mas não é livre. Ele não age
voluntariamente; causas secundárias não podem
ser dispensadas. Duns Scoto, ao contrário,
mantendo certamente os milagres em mente, define
onipotência em termos da habilidade para produzir
qualquer possibilidade sem o uso de uma ou mais
causas secundárias. Para os gregos as causas
secundárias eram necessárias, não apenas para
manter a uniformidade da natureza, mas também
para explicar a finitude, limitação ou imperfeição
da natureza. Eles argumentavam que o que quer
que Deus produza, imediatamente, será perfeito e,
por conseguinte seria necessário o concurso de
mediadores para produzir efeitos finitos. A visão
cristã, de acordo com Duns Scoto, é que Deus pode
restringir sua causalidade; não é necessário que
Deus exercite todo o seu poder em cada caso; Deus
age livremente.

Isso não quer dizer que Deus está livre para fazer o
absurdo ou o impossível. Ele não pode “causar” um
“efeito” que não tenha causa. Ele não pode criar
um triângulo de quatro lados. Mas isso não é
limitação do seu poder ou liberdade, pois as tarefas
indicadas, absolutamente, não são tarefas: são
combinações contraditórias de palavras, e, como
não têm sentido, não apresentam
nenhum problema. Da mesma maneira, a atividade
trinitária da Deidade é necessária. O princípio geral
é que o movimento natural, ainda que o
termo movimento não seja aplicável a Deus,
precede o movimento voluntário. Portanto, o
primeiro ato de Deus é conhecer a si mesmo,
natural ou necessariamente, e tal conhecimento é
eternamente gerado do Filho. Assim, um ato
intelectual precede toda volição; conclui-se daí, que
Deus não é definido simplesmente como vontade
onipotente. Se a simplicidade de Deus é violada em
função da atribuição de intelecto e vontade, essa é
outra questão. Pelo menos, Duns Scoto concorda
com Tomás de Aquino, quanto a tornar supremos,
em Deus: intelecto e natureza. O primeiro ato
voluntário é o amor de Deus pelo qual o Espírito
Santo procede do Pai e do Filho. Esse amor
voluntário é também necessário, mas, mesmo sendo
necessário, ele pode ser chamado livre por causa da
ausência de constrangimento externo.

Portanto, a liberdade de Deus - liberdade no sentido


de que uma escolha diferente poderá ser feita - é
encontrada somente na atividade ad extra de Deus,
e não em sua totalidade. O ponto que chama a
atenção é a relação da liberdade de Deus com a lei
moral.

Tal como era aceito, Deus criou um mundo bem


diferente deste. Esse mundo deve ter sido um
sistema planetário de apenas cinco planetas.
Talvez Deus não pudesse ter feito a água, isto é, a
natureza ou a essência que estamos familiarizados,
para congelar a menos 32 graus centígrados em vez
de a zero grau, pois isso seria contraditório; mas ele
poderia ter criado um mundo com fluidos análogos
que congelassem a menos 32 graus. Deus estava
livre para criar um mundo com qualquer coisa não
logicamente impossível. E quando criou o homem,
poderia ter-lhe imposto vários tipos de obrigações.
Obviamente, nada há de necessário no ritual
mosaico: ele não existia antes do tempo de Moisés
e foi abolido, com Cristo. Mas o que dizer do
Decálogo? Primeiro deve ser lembrado como
matéria de fato que Deus impôs o Decálogo e
nenhuma autoridade humana pode dispensá-lo. O
problema não diz respeito às presentes obrigações
do homem, neste mundo; e se puder ser concluído
que Deus poderia ter requerido o contrário dos Dez
Mandamentos, eles ainda permaneceriam sendo a
nossa obrigação. Passo seguinte, Deus não estava
livre para ordenar o oposto dos dois primeiros (os
protestantes diriam três) mandamentos. É da
natureza do homem desejar o bem supremo; de
fato, é da natureza de todas as coisas criadas
tenderem para o que é bom; e, uma vez que o bem é
Deus, haveria uma contradição entre a natureza do
homem e um mandamento para não adorar a Deus.
Deus, portanto, não estava livre para ordenar tal
mandamento. Mas não há contradição entre
a natureza do homem e uma ordem para matar ou
cometer adultério. Consequentemente, Deus estava
livre para ordenar aos israelitas que matassem seus
inimigos em certas ocasiões; por conseguinte, o
mandamento de não matar não é, obviamente,
necessário. Leis morais, portanto, dependem
somente do livre-arbítrio de Deus.

Considerável crítica tem sido dirigida contra a


noção de uma Deidade arbitrária. Ele é tratado
como um déspota oriental, irracional. Embora o
termo oriental possa ser sintoma de preconceito, a
acusação de irracionalidade é má em qualquer
língua. E reconhecido universalmente que um
homem que age de maneira arbitrária ou irracional
é ignorante, estúpido ou irresponsável. No caso do
homem, no entanto, há entes e condições que não
estão sob nosso controle. O conhecimento de tais
entes e condições é requerido para a ação racional
pela simples razão de que uma ação é irracional por
causa das condições levadas em conta. Porém, no
caso do Deus cristão, não há condições
independentes; não há Ideias superiores às quais ele
deva se conformar. De fato, as características
de infinidade, onipotência e liberdade que Duns
Scoto enfatizou, deveriam tê-lo levado a negar a
distinção entre intelecto e vontade, em Deus, e a se
aproximar da posição de que Deus é vontade.
Intelecto e racionalidade são claramente
subordinados às coisas conhecidas, e não poderá
haver coisas a serem conhecidas a menos que Deus
queira criá-las. Apenas uma aparente exceção
poderá ser mencionada. Deverá ser dito que Deus
primeiro conhece a si mesmo, e é exatamente isso o
que Duns Scoto susteve; e conhecendo a si mesmo,
ele conhece ipso facto o espectro de infinitas
possibilidades. Então, secundariamente, ele quer
criar diversas, mas não todas as possibilidades. Ao
mesmo tempo, no entanto, Deus quer a si mesmo,
quer existir, quer eternamente gerar o Filho e enviar
seu Espírito. O resultado disso é que o
autoconhecimento e o autodesejo de Deus se
tornam indistinguíveis. Tal como Plotino, que
negou que o Uno agisse voluntariamente, todos os
críticos da arbitrariedade de Deus rejeitam o
conceito de um Deus pessoal vivo. E com base em
um deus impessoal, cego, mecânico, uma força
mundial involuntária, eles, compreensivelmente,
voltam-se contra o cristianismo.

Eles não apenas rejeitam a noção de um Deus vivo,


mas rejeitam, ainda mais, a noção de um Deus de
amor. Duns Scoto enfatiza o amor de Deus; e amor,
uma volição, é algo claramente arbitrário. Mesmo
nas questões humanas, a razão de uma pessoa amar
a outra é, frequentemente, um mistério;
dizemos, geralmente, que sequer há razão; ou
talvez digamos que Pedro ama Eloísa, por causa de
suas agradáveis qualidades, deixando de considerar
que outras pessoas têm as mesmas, ou mais
qualidades agradáveis, sem atrair o amor de Pedro.
Isso é mais profundamente verdadeiro no caso do
amor de Deus por alguns homens acima de outros.
Todos os homens são pecadores e rebeldes diante
de Deus. Nenhum tem qualquer mérito diante dele,
nem qualquer direito à sua graça. Deus não deve
respeito a eles. Não obstante, ele elege, escolhe e
ama a alguns e não outros. De todas as coisas, o
amor é o ato mais arbitrário. O
termo arbitrário que tais críticos usam em relação a
Deus é certamente pesado. Um cristão
usará linguagem mais reverente para falar sobre a
soberania de Deus. Executando seu plano, Deus
mostra sabedoria e razão, no sentido de que os
meios são perfeitamente proporcionais aos fins.
Mas o fim, como fim, não poderá ser um meio
para nada mais; e Aristóteles disse que alguém
poderia deliberar sobre os meios, mas jamais sobre
os fins, de maneira que os cristãos poderiam dizer
que os fins de Deus são questões de soberania,
escolha e vontade. De outra maneira, não
haveria teleologia universal, e, pulando diversos
passos no argumento, a ausência de princípios
morais deixaria para o homem a escolha entre a
vida e o suicídio.

Alguém poderá supor que a ênfase sobre a


onipotente liberdade de Deus tenha levado Duns
Scoto a algum tipo de determinismo, para o
homem. A antiga doutrina agostiniana do pecado
original também suportaria a mesma conclusão.
Mas Duns Scoto parece ter considerado que o
efeito do pecado era superficial. Uma razão pela
qual Deus impôs os Dez Mandamentos, em vez
de milhões de mandamentos que poderia ter
requerido, é que, embora os Dez Mandamentos
sejam difíceis de serem guardados, não são
impossíveis, nem mesmo árduos. Com razoável
esforço, disse ele, qualquer pessoa poderia
acumular méritos diante de Deus. A vontade é
perfeitamente livre para obedecer e, é claro, para
desobedecer. Assim como não há causa para a
vontade de Deus, não há causa para a vontade do
homem. Aqui, Duns Scoto repete a ilustração
que Agostinho tomou emprestado dos estoicos, e
alterou: Supondo uma mesma situação, dois
homens que olhem uma bela mulher agirão de
maneiras diferentes. De outra maneira, não haveria
louvor ou culpa; de fato, de outra maneira
sequer haveria vontade. Uma vontade que tivesse
uma causa não seria vontade. Sobre isso, Duns
Scoto se coloca contra outros teólogos, incluindo
Tomás de Aquino. Embora Tomás tivesse várias
coisas a dizer sobre livre-arbítrio, sua teoria,
talvez não intencionalmente, é, ou pelo menos
parece, determinismo psicológico. Primeiro, o
homem é criado de tal maneira que desejar o bem
geral seja uma necessidade absoluta. Para ser mais
preciso, ele nem sempre sabe qual seja a verdade
ou o bem final; mas, se e quando o intelecto vem a
conhecer o bem, ele naturalmente (poderíamos
dizer, automaticamente?) o escolhe. Isso ocorre
nos céus: o bem-aventurado, confirmado em graça,
necessariamente deseja Deus porque vê sua
essência. Quanto a este primeiro ponto, Agostinho
representa bem a posição de Tomás. Sobre o
segundo ponto poderá haver alguma
discordância. Nesta vida, não vemos claramente o
bem final, mas diversos objetos se nos mostram
bons. Parece portanto, que as imagens em nossas
mentes, ou mais simplesmente, o bem aparente,
moveria nossas vontades, e nesse caso
o determinismo seria estendido a esta vida. Afinal,
se uma vontade necessitada não for uma
contradição de termos no céu, e se Deus puder,
livre e necessariamente, causar a ação do Espírito
Santo mediante o amor, por que não poderia o bem
aparente exercitar uma eficácia causal sobre a
vontade, aqui e agora? Duns Scoto evita dizer que
Tomás intencionasse ensinar
determinismo psicológico, e, muito provavelmente,
Tomás não pretendeu fazê-lo, mas Duns Scoto
parece pensar que algumas de suas palavras
implicam tal intenção. Uma vez que Duns Scoto
quis afirmar a completa indeterminação da vontade,
ele se dispôs a argumentar que a imagem, ou bem
aparente, não causaria a vontade. É claro que
ninguém poderá querer um objeto desconhecido; o
conhecimento tem um papel a desempenhar; mas a
vontade estaria completamente livre para escolher
ou para não escolher. Mesmo, na visão beatífica, o
objeto, o próprio Deus, não causa necessariamente
a vontade. Porém, se essa liberdade perfeita existir
nos céus, não seria possível que o bem-aventurado
escolhesse pecar?

Individuação

Duns Scoto estava profundamente interessado em


outro problema, um problema que forma uma
conveniente conexão com seus sucessores: o
problema da individuação. Aristóteles tinha
afirmado que a diferença entre duas coisas
da mesma espécie, dois homens, por exemplo,
estaria na matéria. Como seriam semelhantes em
termos de forma, qualidades comuns e espécie,
seria apenas por causa da matéria que cada um seria
uma coisa diversa. Mas a matéria é
pura potencialidade incognoscível e, portanto,
parece que as coisas individuais, que Aristóteles
admitiu serem as realidades primárias, seriam
incognoscíveis. Tomás de Aquino tinha
essencialmente a mesma visão. Na verdade, ele a
alterou um pouco. Para ele, o princípio da
individuação não seria a matéria em geral,
mas matéria signata: na definição da espécie do
homem haveria matéria em geral, mas em Sócrates
e Platão haveria uma matéria signata. Se esta é
uma evasão ou se aproxima da posição posterior de
Duns Scoto, são questões que não precisam ser
respondidas, aqui. De qualquer forma, Duns Scoto
estava insatisfeito com o ensino prevalecente. Tal
ensino parecia negar individualidade ao intelecto
ativo, que não teria matéria, o que,
consequentemente, solaparia a doutrina da
imortalidade. Ela parecia também tender a um
panteísmo em que Deus, sendo imaterial,
não poderia ser individual, mas teria de ser
considerado apenas como gênero supremo. É claro
que Tomás negou essas conclusões; mas, pelo
menos, admitiu que anjos fossem espécies e não
indivíduos. Por causa de tais razões teológicas,
Duns Scoto se sentiu compelido a elaborar uma
melhor teoria da individuação; e talvez seu senso
mais vívido do individual possa ser conectado à sua
ênfase sobre o livre-arbítrio.

A teoria da individuação, de Duns Scoto, é da mais


alta sutileza e complexidade. Para começar, ela
inclui uma reorganização da noção de matéria. Se
indivíduos são as realidades primeiras, e também
forem compostos de matéria e forma, a matéria não
poderá ser puro nada. Um composto de forma e
nada, não será um composto; nem poderia uma
realidade que deva sua realidade a nada, ser
uma realidade. A matéria, portanto, é,
positivamente, alguma coisa. Ela tanto é coisa, que
é cognoscível; de fato, uma vez que Deus a criou,
deverá haver uma Ideia de matéria na mente de
Deus; e por outra razão complicada, ela poderá
existir fora da forma. Ora, se a matéria for algo, ela
será um algo, será um indivíduo. Porém, uma vez
que a matéria não pode ser o princípio da própria
individuação, terá de haver outro princípio de
individuação que não a matéria.

Para enfatizar o problema, permita-me perguntar:


por que uma pedra não poderá ser dividida de
maneira que cada parte seja a mesma pedra
original? Talvez um exemplo melhor seja a divisão
do, assim chamado, animal, em dois animais. Por
que nenhum dos dois será o mesmo que o primeiro?
Será um indivíduo, simplesmente um não-dividido?
Duns Scoto cria que as explanações seriam
insatisfatórias porque basearia individualidade na
privação, negação e defeito. E os indivíduos, como
primeiras realidades, são muito reais para
serem resultados de negação. Para ele, o indivíduo
não seria apenas não-dividido, mas indivisível. É
claro que uma pedra poderá ser dividida em duas
outras, mas enquanto coisa singular, é indivisível -
sua singularidade não poderá ser dividida. Por
conseguinte, pensou Duns Scoto, terá de haver
algum fator intrínseco positivo. A
privação é insuficiente.

É um princípio geral que o mais particular possui


uma determinação não encontrada no universal; por
exemplo, alguém terá de acrescentar ao
gênero animal, o diferencial racional, a fim de
obter a espécie homem. Igualmente, algo positivo
terá de ser acrescentado à espécie homem, para se
obter Sócrates. Tal como a forma
específica racional constitui a espécie homem,
assim o princípio da individuação torna Sócrates
aquilo que ele mesmo é. A comparação
entre espécie e indivíduo poderá ser levada um
passo além. Assim como a espécie
é especificamente indivisível, assim também, o
individual, tal como já foi dito, não pode ser
subdividido. Portanto unidade individual é a mais
estrita de todas as unidades. Agora, indo além,
embora determinações adicionadas, geralmente,
deem origem a espécies inferiores, isso não é
verdadeiro no caso de Deus. Quando um ser
infinito é atribuído ou predicado a Deus, o
resultado não será uma espécie de Deus. Antes,
Deus é, por meio disso, individualizado.
Semelhantemente, o princípio da individuação não
é uma forma adicionada, mas é a realidade última
dessa forma específica. Há uma lacuna entre a
espécie e o indivíduo. Individualidade e forma
pertencem a ordens diferentes. Ainda que alguém
possa abstrair a forma de indivíduos, terá de iniciar
o processo a partir da natureza dos indivíduos e não
de suas individualidades. Em outras palavras,
individualidade é um fator metafísico para o qual
não há conceito. Não é forma nem matéria. É a
realidade última do ser. O existencialismo moderno
também sustém que o pensamento conceituai falha
em apreender as realidades últimas, e poderá
argumentar que, de modo inconsistente Duns Scoto
apenas tenha evitado suas conclusões paradoxais e
irracionais. Talvez sim, mas, na realidade, ele
concluiu que, embora tal realidade última seja
ininteligível a nós, não possamos defini-la, e dela
não haja conhecimento ou ciência, ainda assim
Deus tem Ideias de singulares, e nós também as
temos, no céu. Indivíduos não são, em si mesmos,
ininteligíveis, tal como o existencialismo moderno
afirma; o problema está em nós que somos como
corujas cegas em dia claro. Qual, então, será o
princípio da individuação? Ele somente poderá ser
nomeado: haecceity ou istoidade [qualidade de
absoluto do pronome isto] — um termo que Duns
Scoto usou pouco, mas que se tornou frequente,
depois.

É justo dizer que Duns Scoto enfatizou mais os


indivíduos do que Tomás de Aquino havia feito. É
também verdadeiro, com qualificações técnicas,
que ele foi mais realista e deu um papel mais amplo
às Ideias. E, na afirmação de que há Ideias de
indivíduos, pode-se suspeitar de uma mistura de
realismo e nominalismo que estaria distante do
pensamento de Plotino; de qualquer forma, depois
de Duns Scoto, o desenvolvimento mais importante
foi na direção do nominalismo.

GUILHERME DE OCCAM

Guilherme de Occam, ou de Ockham (c. 1300-


1349), foi, como Duns Scoto, um franciscano,
educado em Oxford. A fama de Occam se deve,
em grande parte, ao seu empenho na revitalização
do nominalismo, não na forma simples e rude do
nominalismo de Roscelino, mas em uma teoria
mais completa e intrincada. Para ele e para os
críticos do platonismo, a atribuição de realidade aos
universais implica muitas coisas absurdas. Se um
universal fosse um ser ante rem independente, e
não meramente um construto mental, teria de ser
tão individual como qualquer coisa. Porém, se for
individual, como poderia ser universal? Então,
também, se a Ideia for individual, teria de haver
tantos individuais quantos forem os homens; e isso
é demais para ser animador. Tomás havia rejeitado
ideias ante rem nesse sentido. Entretanto, se com
Tomás é dito que os universais existem in re, não
atualmente, mas requerendo ser atualizado por
um intelecto ativo, então os universais não
existirão in re como universais; pois nosso intelecto
certamente não produz o objeto externo; ele só
produz o conceito em nossa mente.
Consequentemente, universais não poderão
existir in re. Não pode haver uma qualidade
comum, um vermelho comum ou um homem
comum; existe somente uma instância singular de
vermelho ou de homem. Ao princípio operante
nessa crítica, embora derivado de Aristóteles, foi
dado o nome de “navalha de Occam”. Aristóteles
havia afirmado que as Ideias seriam
duplicações desnecessárias de coisas sensíveis.
Occam expressou isso, dizendo que os entes não
deveriam ser multiplicados além da necessidade.
Sua conclusão foi que universalia in re seriam tão
desnecessárias como universalia ante
rem. Portanto, corte-os fora. Todas as coisas
poderão ser explicadas somente com as
coisas individuais e nosso conceito delas.

Os universais são de dois tipos: há o universal


natural, um conceito mental que apenas existe na
mente; e há o universal convencional, uma palavra
usada como sinal do conceito. Em certo sentido, em
suas segundas intenções como denominou Occam,
palavras, tal como conceitos, são entes singulares
reais. Uma palavra é um som no ar ou marcas em
um papel, e um conceito é um ato individual,
temporal e concreto da mente. Mas tais coisas
concretas, em outro sentido, em suas primeiras
intenções, tornam-se universais em virtude de
sua predicabilidade. O que é predicabilidade? Uma
palavra é predicável porque pode representar ou ser
um sinal de muitas coisas. Homem é o predicado de
Sócrates, Platão e Aristóteles, porque a
palavra homem poderá ser colocada no lugar
de cada um desses três homens. Ora, se não houver
nenhuma qualidade comum, nenhum universal real
nesses três homens, um realista poderia levantar a
seguinte questão: Não poderíamos, digamos,
coletar um homem, uma árvore e uma pedra e usar
o termo snarP^ para representar tal coleção? Em
outras palavras, a classificação não é tão arbitrária
como a predicabilidade de termos parece
implicar. Deverá haver uma qualidade real comum
nas coisas em virtude da qual as colocamos juntas e
lhes aplicamos o mesmo termo. Por causa dessa
ausência de qualidade comum na coleção homem,
árvore e pedra, nenhuma linguagem terá um termo
específico para representá-la. Occam tinha uma
resposta engenhosa para essa objeção. Ela tem a ver
com o papel dos universais naturais. O
conceito mental ou universal natural é um sinal, no
mesmo sentido que a fumaça é sinal de fogo e
tristeza causa choro. Este início de resposta não é
tão claro, e alguém poderá perguntar em que
sentido fumaça poderá ser sinal de fogo. Será que
é porque fogo causa fumaça, tristeza causa choro, e
Platão e Aristóteles causam o conceito no homem?
Se for assim, fumaça seria um universal. Ainda
assim, Occam respondia que nenhum objeto
externo poderia ser predicado de muitas coisas, e
o paralelo parecia divergir. Entretanto, a resposta à
objeção citada é a de que os universais, ainda que
sejam ficção, isto é, algo imaginado pela mente,
não são puramente fingimentos, como se nada real
no mundo lhes correspondesse. Eles são cópias ou
imagens de realidades sensoriais individuais. (Note
que fumaça não é cópia de fogo.) Contudo, não são
cópias perfeitas; se fossem, a imagem de Platão não
poderia representar Aristóteles. Tal imagem, do
modo como é necessário, é algo como uma
composição fotográfica de vários indivíduos que
concordam uns com os outros. “Poderá ser
chamado um universal porque é um exemplar e
aponta, indiferentemente, para todos os indivíduos
externos. O uso de tal semelhança em sua
existência mental (in esse obiectivé) poderá
representar a coisa externa.”

Seguem diversas conclusões interessantes e


importantes. Se os universais forem meramente
figuras na mente, e se uma coisa não for composta
de matéria e forma, desaparece o problema da
individuação. Cada coisa real será um
indivíduo por direito, e nenhum princípio
desnecessário precisará ser buscado para
explicar sua individualidade. Outra conclusão é que
nenhum intelecto ativo ou vontade, serão
pressupostos por meio de abstração. O conceito
segue, por si só, com base nas sensações. Se não
nas sensações, então com base em intuição interna,
pois a introspecção fornece conhecimento mais
seguro do que o das sensações.

Mais interessante ainda, são as conclusões que


dizem respeito diretamente às questões de teologia.
Ideias na mente de Deus somente poderiam
ser consideradas segundo a analogia de figuras na
mente humana: elas não seriam partes da essência
do Deus eterno, mas apenas seu conhecimento de
coisas individuais. Infelizmente, isso parece
implicar que Deus teria sido ignorante, mesmo
depois de ter criado as coisas individuais, e então,
teria dado uma olhada ao redor para ver se
encontrava a verdade. Occam certamente não
pretendeu chegar a tal absurdo, pois ele não
minimizou as prerrogativas de Deus. Alinhado com
o ponto de vista de Duns Scoto, de que Deus pode
agir independentemente de causas secundárias,
Occam disse que Deus poderia produzir uma figura
em nossa mente sem a presença de objetos
externos. Se isso ocorresse com frequência, metade
das coisas que vemos não existiria. O que seria se
todas as nossas figuras fossem imediatamente
produzidas por Deus? Ainda mais, poderia Occam
ter provado que há um Deus? Obviamente, ele não
poderia ter usado a prova ontológica, pois em seu
sistema todas as provas têm de ser indutivas ou a
posteriori. Mas o argumento a posteriori é
igualmente inválido. O principio da causalidade no
qual ele é baseado não poderá ser consubstanciado;
a impossibilidade de uma série infinita não poderá
ser provada; não há demonstração da unidade ou da
infini-tude de Deus; e uma pluralidade de palavras,
cada qual com a própria causa, é algo inconcebível.

Em Agostinho e em Anselmo, as áreas da filosofia


e teologia eram mutuamente inclusivas. Em Tomás
de Aquino, havia alguma sobreposição, mas um
número de verdades foi retirado da filosofia e
atribuído somente à teologia. Com Duns Scoto, a
sobreposição tornou-se menor; a filosofia foi ainda
mais restrita e a teologia, expandida. Agora, com
Occam, até mesmo a existência de Deus tornou-se
totalmente uma questão da teologia. Porém, e a
filosofia? Teria se tornado tão restrita que sua área
seria então igual a zero? Se fosse assim,
o nominalista Occam e o realista Agostinho teriam
chegado ao mesmo argumento essencial: havería
uma só área de conhecimento, e chamá-la de
filosofia ou de teologia não faria diferença. Mas tal
concordância exigiría de Occam a admissão de que
nenhuma verdade poderia ser descoberta, senão por
meio de revelação. Para aqueles que não
reconhecem a revelação divina, essa admissão é
chamada de ceticismo. Se não houver revelação e
se a razão não pode provar nada, então o
conhecimento será impossível.

Ora, Occam hesitou em esboçar uma conclusão


cética em relação à filosofia. Talvez a lógica
demandasse tal conclusão, mas Occam estava
interessado em matemática e ciência em Oxford, e
foi um dentre os muitos que, ainda que pouco,
prepararam o caminho para a perspectiva científica
moderna. Nisto, ele foi um precursor da
Renascença; mas foi também, de certa forma, um
precursor da Reforma. A civilização dos tempos
modernos — “moderno”, significando o período de
1500 até meados do século 20 — tem sido uma
mistura das perspectivas da Renascença e da
Reforma. Um espiritualismo cristão e um
materialismo científico têm sido estranhamente
combinados. A separação da filosofia e da teologia,
feita por Occam, resultou na escolha da Renascença
em favor do materialismo científico e, da Reforma,
em favor da revelação divina, purgada dos
elementos do neoplatonismo e do aristotelismo. Os
sucessores imediatos de Occam foram mais céticos
e menos escolásticos. John Huss e John
Wycliffe eram homens de Oxford, e tal como
Occam, opuseram-se ao sistema totalitário do
papado. Huss mantinha uma combinação do
Scotismo com o nominalismo. Wycliffe seguiu a
lógica da visão de Duns Scoto sobre a onipotência
até sua conclusão determinista. Um desconhecido
alemão nominalista, Biel, e seu discípulo mais
conhecido, Staupitz, foram os instrutores de
Martinho Lutero. Lutero também declarou que
pertencia à escola de Occam, e, em bases
mais escriturísticas do que escolásticas,
argumentou em favor da Escravidão da
Vontade. Calvino baseou toda a sua argumentação
somente na Escritura. O protestantismo, portanto,
não foi filosófico no sentido escolástico ou nos
termos do cientificismo moderno. Seus esforços
foram despendidos na reforma da religião e na
renovação do cristianismo bíblico.
Consequentemente, a história da filosofia moderna
é predominantemente secular, ainda que alguns
cristãos façam parte dela. Foi tacitamente assumido
que se houver um Deus e uma vida futura, os
homens não são pecadores nem precisam de
redenção, e deveriam se preocupar mais com
a física e com a política deste mundo do que com a
bem-aventurança dos céus. A questão foi: como a
verdade é obtenível? Poderia ser achada na ciência?
O que é ciência? Ou, a área da filosofia foi
permanentemente reduzida a zero?
III - FILOSOFIA MODERNA
7 - O RACIONALISMO DO
SÉCULO 17
Uma nova civilização

A Renascença, marcando o fim da Idade Média e o


início dos tempos modernos, não foi meramente,
nem principalmente um desenvolvimento
filosófico, pois este ocorreu mais tarde; a
Renascença foi o berço de uma nova civilização em
todos os seus aspectos. Há uma complexa relação
entre um maior avanço filosófico e suas
precedentes condições políticas, religiosas e
literárias. A filosofia, tal como dizem alguns, não é
escrita no vácuo, e todo autor reflete o pensamento
dos seus dias. Mas quanto maior for o autor e mais
novas forem suas ideias propostas, menos sua obra
será efeito do passado e mais causa do futuro. Por
isso, uma história da filosofia poderia omitir
a Renascença, propriamente dita, visto que sua
influência sobre a filosofia não foi determinante.
Ainda assim, devido a certos elementos, e, porque
ela foi muito interessante, a Renascença não deve
passar em completo silêncio.

Frequentemente, os avanços literários e científicos


dessa época são chamados de Renascença, para
distingui-los do despertar religioso conhecido como
Reforma. Com respeito ao último já dissemos
alguma coisa.

Os povos da Europa ocidental começaram a


mostrar desagrado diante da idolatria, corrupção e
imoralidade da igreja romana, e, sob a liderança de
homens como Martinho Lutero, Ulrich Zwinglio,
João Calvino e John Knox, buscaram restabelecer a
doutrina e a vida revelada no Novo Testamento. No
lugar da atual visão superficial do pecado, eles
ensinaram a depravação total. No lugar do livre-
arbítrio, colocaram a graça de Deus na
predestinação. Assim, em vez de ganhar o céu por
meio de obras humanas, as pessoas seriam
justificadas mediante a fé em Cristo, somente.
Contudo, embora tivesse efeitos abrangentes sobre
a civilização, a Reforma não teve muita influência
sobre a filosofia moderna, como seria de esperar. O
espírito da Reforma era, unicamente, evitar o
ceticismo resultante da dependência da razão, e
aceitar a verdade como revelação vinda de Deus.

Entretanto, o desenvolvimento filosófico é uma


tentativa de mostrar que o conhecimento é possível
sem o concurso de revelação sobrenatural. Talvez,
a maior influência dos reformadores sobre os
filósofos tenha sido a de levá-los às próprias
inconsistências. No relato sobre o período pré-
socrático, foi mencionado o isolamento cultural dos
gregos, que os impediu de serem confundidos
pelos conceitos judeu-cristãos. Ora, assim como a
Idade Média havia diluído o cristianismo por meio
da adição de ideias pagãs, assim também os
filósofos modernos (ainda que Leibniz e Berkeley
fossem, pessoalmente, cristãos) aplicaram camadas
de verniz cristão, de espessuras diversas, ao seu
secularismo básico. Seria mais sábio, portanto,
ignorar a Reforma em uma história do que
é comumente aceito como a linha mestra do
desenvolvimento filosófico.

Talvez a menos importante, ainda que


possivelmente mais espetacular fase da
Renascença, enquanto distinta da Reforma, tenha
sido o período puramente político. Das ruínas de
uma estrutura frouxa e complicada do feudalismo
europeu, surgiram os Estados nacionalistas e
despóticos da Espanha, França e Inglaterra. Esses
três foram capazes de dominar o cenário porque a
Itália e a Alemanha permaneceram conglomerados
de pequenos reinos, enquanto a Hungria defendia a
Europa do ataque dos turcos, a leste. Além da ação
política, a literatura política é representada em a
Cidade do Sol, de Campanella, O Príncipe, de
Nicolau Maquiavel, e Utopia, de Thomas Morus.
Maquiavel adquiriu uma reputação desagradável,
mas nada poderia ter sido mais revoltantemente
totalitário do que a Utopia de Morus. O
absolutismo estava em voga, e os protestantes não
o puderam desalojar na Inglaterra até o ano de
1688, nem os ateístas franceses, na França, até
1789. Em termos políticos, se poderia associar
descobertas geográficas e expansão. A partir do ano
1100, as cruzadas e os seus resultados devastaram
os horizontes geográficos da Europa. Entretanto,
não é evidente que isso tenha muito a ver com a
Renascença. Durante o século 14, começou o
comércio com a índia e a China, o que, no fim do
século seguinte, levou à descoberta das Américas.
Foi com o massacre dos incas, e a posse de seu
ouro, que a Espanha se tornou força dominante na
Europa, até que William de Orange dirigisse
seu regime cruel da Holanda, e a Inglaterra
derrotasse seu exército.

Tais desenvolvimentos políticos, entretanto,


estenderam-se por tantos anos, que talvez nem
devessem ser incluídos na Renascença; certamente
não foram sua causa. Se uma causa imediata houver
de ser identificada, a mais plausível será a
conquista de Constantinopla, pelos turcos, em
1453. Até esse tempo, o Império Romano
continuava uma existência moribunda, no leste. Ali,
estudiosos acadêmicos preservaram um grande
número de manuscritos antigos. Ocasionalmente
um acadêmico oriental viajava para a Itália; depois,
à medida que crescia a ameaça turca, passaram a
viajar em números maiores, trazendo com eles os
seus tesouros. Embora alguma coisa de Platão já
fosse conhecida no Ocidente, e Aristóteles tivesse
sido descoberto no século 12, a glória plena
da Grécia e de Roma só ficou conhecida agora, pela
primeira vez, na Itália.

Contudo, sem outro evento de ordem muito


diferente, a introdução de tais manuscritos na
Europa poderia apenas ter apressado um pouco o
ritmo das mudanças. Ocorreu que, logo antes da
conquista de Constantinopla, um alemão havia
inventado a máquina de impressão. Embora uma
impressora seja quase inútil sem nada
para imprimir, um manuscrito será de pouca
utilidade sem uma impressora. O
processo trabalhoso de copiar textos à mão estava
chegando ao seu final. Platão, Homero e Cícero
iam se tornando campeões de venda. Isso não
justifica a caracterização da Renascença como
“redescoberta, exercício, e gozo dos poderes da
mente”. Os escolásticos dos séculos 13 e 14 haviam
exercitado ao máximo as suas mentes
e, indubitavelmente, tiveram prazer na tarefa. O
que acontecera, realmente, na Renascença, fora a
descoberta de uma literatura brilhante, com a qual a
mente poderia se exercitar e se divertir. E os
italianos estavam prontos para a ocasião.

Ou será que eles naufragaram nela? O catolicismo


romano havia se tornado uma questão de costume
social. As pessoas amavam o luxo em vez de amar
a Deus. Com a maravilhosa ourivesaria e prataria
de Celline, elas podiam servir um soberbo jantar e
envenenar seus convidados de uma maneira
mais polida. Os prazeres terrenos, em vez das
bênçãos celestes, eram os alvos dos papas e dos
sacerdotes - e dos Bórgia. Quando Savanarola
condenou os pecados deles, a igreja romana o
condenou e o sepultou, em 1498. Era um tempo de
licenciosidade, violência e engano. Os mais
educados, os quais, esperamos, não tenham sido tão
infames, estudavam os clássicos, editavam,
traduziam e comentavam os textos, tornando-se, no
processo, entusiasmados neoplatônicos ou
neopitagóricos. Alguns dos mais supersticiosos
ressuscitaram as religiões gregas de mistério
e perseguiram os números.

Entre outros fatores que caracterizaram a


Renascença, a arte ocupou posição única. Muito
antes de o avivamento literário ter ocorrido, as artes
pictóricas mostravam mudanças nas pinturas de
Giotto (1276-1336). Então, também, enquanto
outros aspectos da Renascença levavam algum
tempo para se espalhar da Itália para o norte, a arte
pareceu se mover mais rapidamente. Um novo
estilo é visto em Van Eyck (1385-1441), de
Flandres. Além disso, os
desenvolvimentos artísticos, no período da
Renascença, poderão ser considerados bem
completos — pelo menos, mais completos do que o
desenvolvimento científico - pois os maiores
pintores italianos terminaram suas obras no século
16: Leonardo da Vinci (1452-1519), Rafael (1483-
1520) e Ticiano (1477-1576). A mudança na forma
é de grande importância para a história da arte,
enquanto que a filosofia está mais preocupada com
a mudança de conteúdo. Os fundos dos cenários
que representavam os céus foram substituídos por
paisagens. História bíblica e contos da religião
medieval deram lugar a temas clássicos e
contemporâneos; e nas pinturas cristãs, à vezes,
João Batista não podia ser diferenciado de Baco e
a prostituta preferida do artista podia servir de
modelo para a virgem Maria.

A menção de Leonardo da Vinci aproxima-nos do


desenvolvimento científico, o que, mais do que
outros fatores, contribui para a visão filosófica
dominante dos tempos modernos. Esse gênio
impressionante, que havia lido Arquimedes, insistiu
em demonstrações matemáticas em conexão
com experimentos e verificação, investigou os
princípios da mecânica, e antecipou Galileu por
mais de um século. Mesmo assim, Leonardo não
foi o primeiro cientista. Ninguém deverá supor que
na véspera da Renascença não houvesse ciência e,
de repente, uma dona Ciência eclode da mente de
Júpiter. Se pudesse ser traçada como uma curva, a
mudança de uma cultura para outra
seria representada por uma hipérbole ou parábola.
A Idade Média já havia tomado uma direção, quase
em linha reta. Então, percebe-se que a linha se
curvou um pouco, ainda que não seja possível dizer
quando ocorreu tal mudança. O grau da curvatura
aumenta rapidamente para, então, diminuir, de
novo. Aí, também, a mudança da mudança é
demasiadamente suave para os limites
fixados. Experimentos científicos foram
desenvolvidos por Roger Bacon (1210-1290), que,
para enxergar mais profundamente na química e na
biologia, inventou o microscópio.90 Diversas
figuras menores, entre Occam e Leonardo,
estudaram as leis do movimento; e a astronomia foi
objeto de perene investigação.

Foi a astronomia que captou a imaginação dos


historiadores, levando-os a fazer declarações, de
certa forma, exageradas sobre o papel de Copérnico
(1474-1543). Tal como acontece com respeito a
Cristóvão Colombo, é inadequado dizer que uma
nova era começou com “a descoberta de que o
mundo era redondo em vez de plano”, pois o
conhecimento de que a terra era esférica já se dera
ao longo da Idade Média. Também é inadequado
dizer que a teoria heliocêntrica de Copérnico teria
“destruído toda evidência externa da situação focal
e privilegiada do homem, no universo”. Os
historiadores deverão notar que a posição focal
e privilegiada no universo, que o cristianismo
atribui ao homem, não é motivada nem dependente
da astronomia geocêntrica. A posição é espiritual,
não espacial. Está relacionada ao plano de Deus
para a salvação de pecadores por meio da morte e
ressurreição de Cristo. O movimento planetário é,
no máximo, um cenário para o drama de Deus. O
contrário também é verdadeiro: se a proximidade
do centro confere estado privilegiado ao homem,
terá de conferi-lo com maior honra ao peixe do
oceano profundo, e com maior honra ainda ao
minério ou metal que forma o centro do planeta.
Em todo caso, a teoria geocêntrica não coloca a
terra no centro do sistema; e embora os antigos
filósofos gregos, tomando Plotino como bom
exemplo, tenham aceitado a teoria ptolomaica, ela
jamais lhes sugeriu uma visão cristã do homem.
Não, a importância de Copérnico reside na
astronomia, e, mesmo aí, ele tem sido considerado,
algumas vezes, de forma demasiadamente otimista.

Este é o pano de fundo. Platão, em idade


extremamente avançada, “arrependeu-se de ter
atribuído à Terra a posição central” no sistema
planetário, e elaborou um sistema heliocêntrico
rudimentar, o qual Aristarco (c. 275 a.C.) trouxe a
considerável perfeição. Mas o senso comum e a
autoridade de Aristóteles convenceram a maioria de
que o Sol circulava ao redor da Terra. Embora a
forma de geocentrismo de Aristóteles, as esferas
concêntricas de Eudóxio, fosse bastante inepta, o
sistema de círculos, epicêntricos e excêntricos, que
Ptolomeu (c. 150 d.C.), um astrônomo egípcio,
formulou com alto grau de precisão, baseado em
muitas observações acuradas, permaneceu
dominante em todos os pontos essenciais ao longo
de toda a Idade Média. Um diagrama dará
tolerável clareza pictórica do esquema. O ponto C é
o centro do sistema. De um lado dele está a Terra;
diametralmente oposta à Terra, e equidistante do
centro está E’. O ponto X se move ao redor do
círculo C, de maneira que a linha E’X tem
uma velocidade angular uniforme, e o planeta P
circula ao redor de X.
Dadas as distâncias e velocidades corretas para
qualquer planeta, este arranjo descreverá os
movimentos observados.

Além do interesse em cometas, os astrônomos


medievais ficavam ocasionalmente intrigados com
as peculiaridades de Mercúrio e Vénus, e
um astrônomo espanhol sugeriu que esses dois
planetas poderiam ser considerados satélites do Sol.
À medida que passaram os séculos 14 e 15, o
interesse em astronomia parece ter aumentado.
Copérnico ficou impressionado com o fato do
sistema ptolomaico ser extremamente complexo,
dispondo-se a descobrir um método simples para
descrever a teoria. É de duvidar que ele tenha
descoberto tal método apenas com o concurso da
própria mente, sem o auxílio da literatura antiga,
recém trazida do leste. Na revisão final de seu livro,
por motivos que não saberemos dizer, ele retirou as
referências feitas a Aristarco. De qualquer
modo, Copérnico foi o primeiro, em tempos
modernos, a propor uma teoria heliocêntrica. No
que diz respeito a detalhes científicos, grande parte
ficou por fazer. Tycho Brahe argumentou que, se a
terra se movesse ao redor do Sol, deveria haver
uma mudança aparente na posição das estrelas.
Nenhuma mudança era possível de ser observada.
Portanto, Brahe concluiu que a Terra teria de
estar em repouso. De fato, tal paralaxe não foi
descoberta e a teoria heliocêntrica “provada” até
1838. A razão para isso, além da necessidade de
telescópios mais potentes, é que as distâncias
estelares são bem mais vastas do que Copérnico
e Tycho imaginavam. Até mesmo suas ideias sobre
o sistema solar eram restritas. Ptolomeu havia
estabelecido a distância do Sol à Terra em cerca de
1.210 vezes o rádio da Terra. A estimativa de
Copérnico foi pouco menor: 1.142. Os
números presentes chegam a 23 mil. Assim,
também, as construções copérnicas
foram incapazes de prever ou descrever com
melhor precisão que o sistema ptolomaico.

A observação científica estava, definitivamente,


mais favorável ao antigo do que o novo. Mas a
ciência não é só observação.

Havia outro fator que exercia muito peso, na


verdade, conclusivamente em favor de Copérnico.
O esquema ptolomaico era
matematicamente sobrepujante, enquanto a teoria
heliocêntrica era matematicamente simples.
Na ciência, a simplicidade matemática conta mais
do que observações acuradas. Isso, no entanto, é
apenas um volteio interessante. Copérnico havia
descartado Ptolomeu por considerações estéticas. A
beleza da simplicidade matemática apelava aos
seus sentidos. Mas o que dizer sobre a verdade: A
Terra se move, real e verdadeiramente, ao redor do
Sol? Se o objetivo da ciência for a
simplicidade matemática, então todas as leis
científicas serão engenhosas tentativas para
chegar a descrições simples; e um cientista, mais
tarde, poderá ainda propor uma descrição ainda
mais simples. No entanto, havendo rejeitado
Ptolomeu, com base em parecer estético, e não por
causa de qualquer falha que pudesse ser atribuída à
observação dos fatos, Copérnico, ao chegar às
próprias conclusões, assumiu a posição de que
fmalmente a verdade havia sido encontrada.
Desde então, a maioria dos cientistas, e, certamente
a maioria da massa populacional, apesar das
constantes mudanças sofridas pelas teorias, está
comprometida com a firme e dogmática ideia de
que a ciência alcança a verdade. Muitos filósofos
também têm esperado atingir a verdade. Porém, até
mesmo o mais dogmático deles tem sido mais
sensível às dificuldades existentes. A despeito das
impressionantes conquistas de Galileu (1564-1642)
e de Kepler (1571-1630), que descartaram
círculos em favor de elipses, e do rápido avanço ao
longo do século 17, a esperança filosófica da busca
da verdade não se baseou em descobertas
empíricas.

RENÉ DESCARTES

René Descartes (1596-1650), depois de formado


em “uma das mais celebradas escolas da Europa”,
na qual esperava receber “conhecimento claro
e certo de tudo aquilo que é preciso para a vida”,
descobriu-se envolvido em dúvidas e erros que o
convenceram de que nada tinha aprendido, senão
a profundidade da própria ignorância. As línguas
são, de fato, importantes, mas não garantem a
veracidade dos livros escritos nelas. A história é
inspiradora, mas ninguém pode confiar em sua
precisão. A matemática, por causa da certeza de seu
raciocínio, foi o estudo favorito de Descartes. Ele
ficou estupefato com a ideia de que nenhuma
superestrutura superior tivesse sido erigida sobre tal
sólido fundamento. A teologia, matéria de
revelação divina, não estaria sujeita à impotência
da razão. E a filosofia, finalmente, “cultivada por
muito tempo por homens da maior distinção”, não
continha nenhuma matéria dentro de sua área que
ainda não estivesse sendo discutida. E considerando
“o número de opiniões conflitantes sobre um único
tema discutido por homens cultos, embora
pudesse haver apenas uma verdade”, Descartes
“supôs que fosse falso tudo aquilo que não pudesse
ser provado. Quanto às outras ciências, visto que
seus princípios eram tomados emprestados da
filosofia”, “julgou que nenhuma superestrutura
sólida poderia ser construída sobre fundamentos tão
instáveis”.91

Descartes tinha horror de ser enganado. Embora


sua educação não lhe tenha fornecido nenhuma
verdade, ele poderia mitigar essa condição,
evitando o erro. A razão o convencia de que
deveria ser cuidadoso a ponto de não
admitir crenças sobre o que não pudesse ser
inteiramente certo e indubitável tanto quanto para o
que fosse manifestadamente falso. Entretanto, seria
esse princípio indubitavelmente certo? William
James, mais tarde, afirmou que seria melhor crer
em muitas verdades e alguns erros, do que evitar
todos os erros e correr o risco de acabar com pouca
ou nenhuma verdade. Talvez, a antítese entre
Descartes e James não seja tão pertinente no
momento, pois Descartes insistiu na tentativa de
duvidar de tudo, com o propósito de descobrir algo
que não pudesse ser posto em dúvida. Os céticos
antigos, bem como a sua própria experiência, foram
suficientes para mostrar que todos os resultados da
percepção sensível eram extremamente duvidosos.
Uma pessoa ingênua poderia replicar que duvidar
que eu seja um homem, assentado em uma cadeira,
com um livro nas mãos, é marca de insanidade.
Talvez seja, mas onde estará a prova de que eu não
sou insano? Ou, em menor escala, onde está a
prova de que eu não esteja dormindo, sonhando que
eu seja um homem, quando, na verdade, sou uma
mulher; sonhando que eu esteja sentado, com um
livro nas mãos, quando, de fato, estou deitado em
uma cama, com as mãos amputadas? Com
considerações tais como essas, e levando em conta
que todas as ciências se baseiam em observações,
fica evidente a prudência quanto a duvidar das
sensações. A matemática, entretanto,
parece escapar à crítica cética, “pois, se estou
dormindo ou acordado, permanece
sendo verdadeiro que dois mais três são cinco”.
Aqui, ainda que não o tenha dito explicitamente,
Descartes parece sugerir que não poderia sonhar
que dois mais três fossem quatro. Não obstante, há
uma condição sob a qual, até mesmo as verdades da
matemática, poderão ser postas em dúvida.
Poderíamos pensar que tal condição seja um
absurdo; mas, se ainda não descobrimos nenhuma
verdade indubitável, não teremos norma para
distinguir aquilo que é absurdo, daquilo que seja
mais provável. Na ausência da verdade, nada será
absurdo. Suponhamos, portanto, que o mundo seja
controlado, não por um Deus bom, mas por
um deus enganador, cujo principal deleite seja nos
fazer crer que dois mais três sejam cinco, quando,
na realidade, são quatro. Como ele riria de nossa
matemática enganada. Certamente não saberíamos
se tal deus enganador existiria; com
sorte, poderíamos, mais tarde, provar que esse deus
não existe; mas, no momento, ainda não saberíamos
que ele não existe. E até que pudéssemos descartá-
lo, a matemática estaria sob suspeição como ciência
empírica. Portanto, se o conhecimento é possível,
teremos de achar uma verdade sobre a qual nem
mesmo um deus enganador poderia nos enganar.

Descartes estava plenamente cônscio de que a


Idade Média havia expirado e que ele era o
primeiro filósofo dos tempos modernos. Ele
afirmou, com frequência, que apagou todo o
suposto aprendizado do passado, e recomeçou tudo
a partir de novos fundamentos. Em certo sentido,
essa reivindicação é justificada, pois o racionalismo
do século 17 não é encontrado na Idade Média nem
na Antiguidade. Mas a primeira verdade, da qual é
impossível duvidar, soa muito como um tema de
Agostinho, e as verdades subsequentes, nela
baseadas, também têm seus antecedentes. Nenhum
filósofo poderá romper completamente com o
passado.

O “cogito”e a lógica

O que é essa primeira de todas as verdades, uma


verdade sobre a qual é impossível ser enganado?
Ela poderá nada ter a ver com corpo, forma,
extensão ou movimento. Poderá não ser uma
verdade da ciência ou da matemática.
Porém, embora eu tenha dúvidas sobre a Terra e o
céu, e tenha lançado suspeita sobre a matemática, e
embora seja, até mesmo, constantemente enganado
por um deus enganador, permanece sendo
indubitavelmente certo o fato de que eu duvido,
eu penso e, portanto, existo. Eu devo existir se
estou sendo enganado. Cogito ergo sum.
Entretanto, se Arquimedes precisava apenas de um
ponto fixo de apoio a fim de mover a terra, essa
única verdade de minha existência é base
suficiente para toda a filosofia.

Aqui, é preciso parar para considerar o que se passa


e em que direção a filosofia haverá de avançar. O
exame é complicado pelo fato de que Descartes não
se expressa com perfeita clareza e de que ele
mesmo suspeitava de algumas inconsistências. No
entanto, se ele for considerado o fundador do
racionalismo do século 17, suas maiores intenções
talvez devam ser julgadas pelos resultados obtidos
em Spinoza e Leibniz. Descartes repetia
constantemente que o teste de uma ideia verdadeira
é sua clareza e precisão. Isso não significa sua
vivacidade, tal como em uma pintura ou uma
imagem na mente. Diferente de Tomás,
os racionalistas não mostram dependência de
imagens visuais. A clareza que Descartes aponta é a
clareza lógica. Considere uma aula de lógica, em
um curso superior. O professor explica que todos os
homens são mortais e que Sócrates é homem. A
conclusão lógica não é que Sócrates é mortal?
Nesse ponto, um desses ídolos do atletismo cujo
Q.I. é menor do que a metade do seu peso,
protesta: “Concordo em que todos os homens sejam
mortais e que Sócrates seja homem; mas não vejo
como isso tem a ver com a conclusão de que
Sócrates seja mortal. Explique-me, por favor,
porque a terceira proposição decorre das duas
primeiras?” O desafio é muito difícil para ser
executado. Qualquer um, a não ser um
imbecil, poderá ver, clara e distintamente, que a
conclusão decorre das premissas. Nada poderá ser
visto de maneira mais clara. Essa é a clareza lógica,
e é com tal clareza que percebo que eu penso. Por
que, por exemplo, eu penso com tal clareza?
Não será porque o pensamento seja uma
experiência de tamanha profundidade psicológica
que a introspecção não poderá deixar de notá-la.
Antes, o motivo é que a proposição, eu penso, é
uma cuja própria negação prova sua verdade.

Eu não terei de andar a fim de negar que estou


andando, mas eu não poderei negar que eu penso,
sem pensar. Ambulo, ergo sum não poderá ser
substituído por cogito, ergo sum. Semelhantemente,
o racionalismo é um sistema filosófico que defende
que todo conhecimento é baseado somente na
razão. Nesse sentido, a razão não é contrastada com
a revelação, da maneira como foi feito na
Idade Média, mas com as sensações. De modo
menos ambíguo, alguém poderia dizer que todo
conhecimento é baseado apenas na lógica. Somente
mediante a lógica alguém poderia escapar ao
engano dos sentidos e da malevolência de um deus
enganador. E, se todo conhecimento for baseado
somente na lógica, a primeira verdade terá de ser
uma verdade autocomprovada, uma verdade
para negar aquilo que a prova verdadeira — e todas
as demais verdades terão de ser deduzidas dela.

Se Descartes tivesse produzido um sistema que


correspondesse perfeitamente a essa definição de
racionalismo, não teria havido necessidade de que
ele fosse corrigido por filósofos posteriores. Porém,
infelizmente, ele não foi completamente consistente
na aplicação de seu princípio racionalista. Uma
falha aparece imediatamente, no cogito, ergo sum.
Mediante que lógica o sum é deduzido do cogito?
Se alguém disser: “Eu sou um ser pensante, todos
os seres pensantes são seres existentes, portanto eu
sou um ser existente”, esse alguém
indubitavelmente teria um silogismo lógico isento
de reprovação. Mas de onde teria vindo a
premissa de que todos os seres pensantes são seres
existentes? Descartes foi acusado de haver
contrabandeado uma proposição que não teria sido
ainda demonstrada. A tal acusação, ele deu uma
resposta curiosa. Negou a acusação de contrabando
da premissa, negando, até mesmo, que cogito, ergo
sum fosse um silogismo. A força do ergo, neste
caso, não teria sido o de uma demonstração
ordinária. A conclusão é obtida, não mediante a
lógica, mas por meio da luz natural.

A dificuldade com o apelo a uma não-lógica ou,


pelo menos, a um princípio não-demonstrativo, é
claramente vista quando comparamos esse caso
com outro. Mais tarde, Descartes considerou as
razões que levam a maioria das pessoas a crer na
existência de corpos sensíveis. Uma delas é que
somos assim ensinados pela natureza. Esse ensino
natural, entretanto, é apenas certo ímpeto
espontâneo, que impele a pessoa a crer em uma
semelhança entre ideias e seus objetos. Não é a luz
natural que assegura o conhecimento da verdade. A
luz natural e ímpeto espontâneo são bem diferentes.
“Aquilo que a luz natural mostra ser verdadeiro não
poderá jamais ser duvidado, por exemplo, que eu
sou porque eu duvido, e outras verdades desse tipo.
Contudo, com respeito a impulsos naturais, eu
tenho observado ... que eles frequentemente levam-
me a obter a pior parte”. Esse arrazoado é
altamente insatisfatório, como pode ser visto
mediante a aplicação da fraseologia à
demonstração. Suponha que tenha sido dito que a
demonstração é bem diferente de falácias porque,
na demonstração, resulta uma conclusão, enquanto
que, nas falácias, isso não ocorre. Tal declaração
não fornece nenhuma ajuda quanto a distinguir uma
demonstração, de uma falácia. E até mesmo, se a
luz natural conduzir à verdade, enquanto o impulso
natural não o puder fazer, ainda assim seríamos
incapazes de distinguir um do outro. Tal como
temos de conhecer a forma da demonstração válida
antes que possamos dizer que a conclusão se
seguiu, neste caso específico, assim também
teríamos de identificar a luz natural, antes de
podermos saber que o resultado é verdadeiro.

Descartes usa também o termo intuição. Ele diz que


há duas “operações” por meio das quais somos
habilitados, “totalmente sem temor de ilusão, a
chegar ao conhecimento de coisas... viz., intuição e
dedução”. Uma de suas descrições de intuição é
esta: “Por intuição, entendo, não o testemunho
flutuante dos sentidos, não o julgamento enganoso
que procede de estultas construções da
imaginação, mas a concepção que uma mente clara
e atenta nos fornece de maneira tão real e distinta
que nos deixa livres de dúvidas quanto ao que
entendemos. Ou, o que vem a ser a mesma coisa, a
intuição é a concepção indubitável de uma
mente clara e atenta, que irrompe somente da luz da
razão. A intuição é mais certa do que a própria
dedução, em virtude de ser mais simples, embora a
dedução, como já observado, não poderá ser, por
nós, conduzida de maneira errada. Assim, cada
indivíduo poderá, mentalmente, ter intuição do fato
de que existe e que pensa; de que um triângulo é
limitado por três linhas e que uma esfera é limitada
por uma linha só”.

Uma vez que o último parágrafo especifica que há


apenas duas operações para a obtenção da verdade,
podemos concluir que intuição e luz natural são
a mesma coisa. Mas as várias frases usadas para
descrever a intuição não diminuem as dificuldades.
O problema não é, principalmente, que Descartes
tenha admitido dois métodos de obtenção da
verdade, quando a simplicidade requereria
apenas um, nem é que ele não tenha se adequado à
definição de racionalidade dos historiadores, nem
mesmo que ele não tenha alcançado a perfeição de
Spinoza. A falha principal foi que Descartes não
deu a razão pela qual a intuição fosse mais
confiável do que as sensações. E interessante notar
que um dos exemplos de Descartes quanto à
intuição é que o triângulo é limitado por três linhas.
Seria essa uma concepção de uma mente clara e
atenta? Parece mais uma definição, e em Spinoza, a
definição desempenha um importante papel.

Continuando a exposição: depois de provar a


existência do EU, com cuidado Descartes relembra
a si mesmo de que não havia ainda provado a
existência de um corpo humano. De fato, ele
iniciou, duvidando de toda experiência sensível, e
se, em face das dúvidas, ainda permanece a certeza
de que eu existo, é claro que esse EU não é ou, pelo
menos, não precisa de um corpo. Sequer havia
evidência de que as sensações existiam, pois
poderíamos estar dormindo. A existência do EU
não é baseada nas sensações, mas no pensamento.
É claro que o pensamento inclui aquilo que é
geralmente chamado de sensação. O pensamento
inclui duvidar, entender, afirmar, negar, imaginar e
querer. O pensamento, para Descartes, incluía todo
fenômeno mental, e poderá ser equiparado àquilo
que veio a ser chamado de consciência. Duvidar é
estar consciente, mas, conquanto possa crer que
tenha um corpo e que veja montanhas e céus, a
única proposição de que aquele que duvida poderá
estar certo é que ele é uma coisa pensante. Poderá
ser, e de fato é, que corpos e o corpo humano
existam; mas a existência do pensamento ou da
alma é mais certa do que a existência dos corpos.

Tal é a difusão de nossos velhos preconceitos,


como a força do impulso natural, que
automaticamente cremos que corpos poderão ser
mais claramente conhecidos do que a alma. Nossa
mente poderá ser desabituada desse erro por meio
do exame de uma utilidade, a cera de selar, mais
usada nos dias de Descartes do que no presente. Se
os sentidos nos instruíssem sobre o que é um
corpo, certamente seríamos aptos para conhecer o
que é a cera, pois é percebida por meio dos cinco
sentidos. É vermelha — podemos ver isso; sendo
fresca, podemos sentir ainda o odor de flores -
cheiramos isso; nas mesmas condições, ela
guarda o gosto do mel da colmeia - provamos seu
sabor; é fria e dura - nós a tocamos; e se a batermos
contra a mesa, o choque emitirá um ruído distinto
— nós o ouvimos. Que maior número de
informações poderíamos desejar a respeito de um
corpo? Mas coloque a cera próxima do fogo. O
gosto se esvai, o odor evapora, a cor muda, a forma
é alterada, o tamanho aumenta, a coisa torna-se
líquida e pastosa, e quando tocada, não emite som.
Todas as qualidades sensoriais foram substituídas
por outras. Será essa a mesma porção de cera? Se
foram os sentidos que nos informaram sobre a cera,
poderia ser a mesma cera? Ora, para não romper
com a opinião comum, digamos que é a mesma
cera. Porém, então, não teremos aprendido o que é
a cera por meio de sensação. A cera não foi
aquilo que tinha a doçura do mel nem o perfume de
flores, não tinha a cor vermelha nem emitia o som
característico; não era nada como foi sentida.
Poderemos dizer, no máximo, que a cera é um
corpo que parece ter diferentes formas em algumas
horas, e outras, em outras horas. A única coisa que
permanece a mesma sob toda essa diversidade é
que a cera tem extensão. Não que ela tenha
sempre a mesma extensão, pois a cera é mais
extensa quando quente. Em outros aspectos, é
impossível identificar a cera com forma, pois
requereria um número infinito de formas. A
conclusão é que não podemos ver, cheirar, tocar ou,
mesmo, imaginar a cera. A percepção dela jamais
foi um ato da sensação, embora essa tenha sido
nossa crença antiga, mas foi uma intuição da mente
- uma intuição que pode ter sido confusa, mas que
se tornou clara à medida que conhecemos o que é
extensão. Temos, portanto, um conhecimento mais
claro e original da alma do que do corpo. Eu vejo a
cera e talvez seja enganado; mas não poderei me
enganar quanto ao fato de que sou um ser pensante.

Deus e matemática

Alguém pode supor que, à vista do seu repúdio da


informação baseada nas sensações, Descartes não
era simpático ao desenvolvimento vívido da
ciência que ocorria ao seu redor. Não foi esse o
caso. Descartes se manteve a par, e tomou parte nos
avanços científicos do seu século, pois cria que a
experimentação poderia “sugerir” muitas verdades
que a lógica, mais tarde, viria a provar. Então,
também, tanto porque a matemática seria o mais
poderoso instrumento de que a ciência precisava,
quanto porque melhor exemplificava o método
racionalista, Descartes estava suficientemente
interessado nesta ciência para inventar a
geometria analítica. Contudo, antes que alguém
possa confiar na matemática, terá que se livrar do
deus enganador. Talvez seja indubitavelmente certo
que eu exista, mas, se dois e três forem quatro, me
parecerá que não serei capaz de aprender
muita coisa. A matemática, portanto, terá de ser
baseada em uma teologia sã, pois será somente
mediante a prova da existência de Deus, que é bom
e não engana, que será quebrada a maldição do
deus enganador sobre a matemática.

O fato de eu pensar significa que tenho


pensamentos. Tenho ideias sobre o céu e as
montanhas, sobre demônios e hipogrifos, e sobre
Deus. Talvez nenhum deles exista na realidade. E
mesmo que existam, eles poderão não ser
totalmente similares às minhas ideias A despeito
disso, eu tenho ideias. “Ora, é manifesto pela luz
natural que deve haver tanta realidade na causa
eficiente e total, quanto há em seus efeitos, pois de
onde poderia um efeito derivar sua realidade,
senão de sua causa?... E, consequentemente, não
apenas aquilo que é, não poderá ser produzido por
aquilo que não é, mas, igualmente, o mais perfeito
... não poderá ser efeito do menos perfeito”. Além
disso (observe o que os argumentos medievais se
tornaram), embora uma ideia possa vir de outra
ideia, esse regresso não poderá ser infinito.
Teremos de chegar, no final, a uma ideia primeira,
cuja causa é o arquétipo no qual todas as realidades
mentais encontradas nas ideias estão atual ou
objetivamente contidas. Em outras palavras,
nenhuma ideia poderá ocorrer a menos que haja um
objeto realmente existente.

Que objeto, então, poderá ser a causa de minhas


ideias? No caso de céus e montanhas, isto é, no
caso de objetos finitos, não haverá mais realidades
mentais do que a própria alma objetivamente
possui. Portanto, eu mesmo poderia ser causa
suficiente para a ideia de qualquer ser finito. Não é
necessário supor que o céu exista mais do que o
hipogrifo exista. Mas pode ser afirmado que eu
seja causa suficiente para a existência de Deus?
Descartes dá diversas razões para negar que uma
realidade finita pode causar um ser infinito.
Primeiro, a ideia de infinitude não é uma ideia de
negação. Com isso, Descartes repudia a
teologia negativa. Nós poderemos apreender as
trevas somente como a ausência de luz, mas
percebemos claramente que há mais realidade em
uma substância infinita do que em uma substância
finita. De fato, se houver um conhecimento
negativo, este será o conhecimento do finito, não
do infinito, pois o finito é a limitação do infinito e
não vice-versa. Por exemplo (Descartes não usa
esta ilustração neste ponto, mas à luz dos últimos
desenvolvimentos ela é apropriada), a fim de
saber o que é um pé cúbico de espaço, será
necessário primeiro saber qual é o espaço do qual
esse é um pé cúbico. O conhecimento de um espaço
infinito tem de preceder o conhecimento de um
espaço limitado. E embora Descartes tenha feito do
cogito a primeira verdade do seu sistema, aqui ele
parece dizer que antes de conhecer quem nós
somos, teremos de conhecer Deus. Pelo menos, “de
alguma forma, eu possuo a noção de um infinito
antes de ter a noção de um finito, isto é, a
percepção de Deus antes da percepção de mim
mesmo, pois como eu poderia saber que duvido,
desejo, ou que algo me falta, e que eu não sou
totalmente perfeito, se não possuir nenhuma ideia
de um ser mais perfeito do que eu, em comparação
com o qual eu conheça as deficiências da
minha natureza?” (Meditação III).

Se um oponente negasse que um conhecimento de


Deus teria de preceder o conhecimento do “eu”,
seria necessário ele demonstrar que a ideia de
Deus poderia ser construída fora dos poderes de
alguém. David Hume, mais tarde, fez tal afirmativa,
mas ele parece ter ignorado o argumento com o
qual Descartes se lhe antecipou. A construção da
ideia de Deus teria de começar com o
progresso que temos feito, da dúvida universal e
ignorância para o conhecimento de
nossa existência. Éramos ignorantes, mas agora
sabemos alguma coisa. Com base nisso, poderemos
supor que seja possível aprender outras verdades,
também. Ora, projetando esse crescente
conhecimento até o infinito, nós chegaremos à
ideia de onisciência, e esta poderá ser equiparada à
ideia de Deus. Esta construção falha, argumenta
Descartes, porque a ideia de onisciência não é a de
um limite ideal para o nosso progresso. A ideia de
onisciência é a ideia de um conhecimento perfeito
que jamais foi precedido por ignorância ou dúvida,
um conhecimento que jamais veio a ser por meio
do aprendizado, e um conhecimento que
jamais aumentará. Obviamente, portanto, o EU não
poderá ser a causa dessa ideia, e seremos forçados a
dizer que há um ser, atualmente onisciente, que é
tal causa. A essa declaração, Descartes acrescenta
que eu sou um ser dependente, pois do contrário eu
teria atribuído todo conhecimento a mim mesmo.
Mesmo que eu fosse um ser eternamente existente,
ainda assim seria dependente, pois uma força que
não possuo seria necessária para manter meu ser.
Dizer que eu dependo de meus pais para a minha
existência não atinge o ponto, porque eles
não preservam minha existência nem podem
preservar a sua própria. Resta, portanto, a
conclusão a que chegamos há pouco: Deus existe, e
ele me criou para que tivesse uma ideia inata sobre
ele. Sendo o ser que possui total perfeição,
Deus não é um demônio e, portanto,
matematicamente viável.

Seria possível dissecar e discutir extensamente esse


argumento. Ele contém o defeito previamente
mencionado, de depender da luz natural como o
princípio de causalidade. Então, novamente,
Hobbes, um filósofo inglês contemporâneo, negou
que tivéssemos uma ideia de Deus, com base no
fato de que tal ideia é uma figura. Para Descartes,
uma ideia não é uma imagem ou figura. E se
estes dois pontos não estão abertos a uma
interminável discussão, sem dúvida, também os
outros não estarão. A fim de evitar tudo isso,
restrinjamos nossa atenção à questão de se esse
argumento em favor da existência de Deus é
consistente com o procedimento racionalista geral.
Seria, a totalidade disso, deduzida apenas mediante
a lógica? A resposta é claramente negativa, ainda
que muitos leitores não consigam ver o ponto, e
quando lhes é apontado, desprezam-no como sendo
trivial. Tal como é o caso de muitos argumentos, o
ponto fraco está logo no início. Descartes havia
dito, eu tenho uma ideia de Deus. Mesmo
parecendo irrepreensível, em princípio, essa é uma
proposição que não foi deduzida somente pela
lógica. Sem dúvida, eu penso. Porém, por meio de
que argumento eu cheguei à conclusão de que
penso em Deus? A opinião comum diria que tal
proposição não precisa de prova. Eu penso
quaisquer ideias que pense, e tudo o que
é necessário é observar as diversas ideias —
montanhas, hipogrifos, e Deus — que passem em
minha mente. Esta opinião comum é tão plausível
que poderá me levar à rejeição do ideal racionalista,
de provar todas as coisas somente pela lógica. No
entanto, na história da filosofia, isso levou primeiro
a descartar o argumento, descartar o cogito, e
substituí-lo pelo argumento ontológico como base
do sistema.

Não foi apenas Spinoza que seguiu explicitamente


esse método. O próprio Descartes pareceu
insatisfeito com o argumento causal. Uma segunda
vez, ele afirmou que Deus é o objeto que melhor
conhecemos. Daí, então, ele operou com o
argumento ontológico. Uma vez que isso já foi
bastante discutido, e que reaparecerá na crítica de
Kant, será necessário apenas mencionar que
Descartes como que simplifica a apresentação de
Anselmo. Isso poderá ser ainda mais simplificado
em um simples silogismo: Deus, por definição, é o
ser que possui todos os atributos; existência é um
atributo; portanto, Deus existe. Por que,
em Spinoza, isso dispensa o cogito, é algo que pode
ser descoberto, embora seja explicado algumas
páginas adiante.

Erro e livre-arbítrio

Seja a primeira verdade, seja a segunda, a


existência de Deus é necessária a fim de provar a
existência de um mundo material. E, como o estudo
do mundo material conduz a muitas verdades, e a
extensão de possíveis falhas automaticamente
aumenta, devemos fazer uma declaração preliminar
quanto à veracidade de Deus e quanto aos nossos
erros. Se a bondade de Deus é garantia da
matemática, por que sua bondade não se estenderia
para todos os objetos, a ponto de que jamais
cometêssemos erro algum? Mera ignorância, a
ausência de conhecimento, não é tão difícil de ser
explicada. Há muitas razões plausíveis consistentes
com a bondade de Deus do por que começamos a
vida em ignorância, e temos de nos esforçar para
aprender. E mesmo com todo o esforço de
que somos capazes, a bondade de Deus não requer
que ele divulgue informações que lhe apraz guardar
para si mesmo. Especialmente, Deus não
providenciou para nós nenhum método pelo qual
pudéssemos descobrir seus propósitos, pelo
menos, não no campo da ciência como matéria
distinta da teologia. Sem dúvida, um Deus bom tem
um propósito ao criar o mundo, até mesmo, para
pôr aquela árvore exatamente ali e aquela montanha
exatamente lá. As qualidades do ópio, do fogo e das
demais coisas foram dadas com um propósito, mas
nenhuma quantidade de estudo nos capacitará a
descobri-lo. A razão é que, se tentássemos achar o
propósito de uma árvore ou da substância do ópio,
seríamos levados a vê-lo como contribuindo para o
propósito de alguma coisa, e assim por diante, até
que tivéssemos conectado nosso primeiro objeto
com a totalidade do universo. Em outras palavras,
uma explanação teleológica de um objeto
não poderia ser completada até que a totalidade do
universo fosse compreendida. Obviamente isso não
é para nós. Platão e Aristóteles, com suas causas
finais, inadvertidamente sujeitaram a filosofia a um
infinito regresso. E foi o ponto de vista teleológico
que tornou tão estéril a ciência medieval. A física
deve ser abordada matematicamente, isto é,
mecanicamente. Nós teremos de
permanecer ignorantes do propósito.

Entretanto, erro não é o mesmo que ignorância.


Embora um Deus bom possa nos manter ignorantes
quanto a algumas coisas, é mais difícil ver por
que ele nos permitiria crer em falsidades. Ainda
assim, não é tão difícil. Note que Deus nos dotou
com um intelecto. É um intelecto finito, mas como
não possui os direitos de Deus, ele não pode
queixar-se do fato de que seu intelecto não
seja mais amplo. Um mundo deve ter uma grande
variedade de coisas. Assim como os cães não
podem se queixar de que Deus não os tenha feito
elefantes, assim também o homem não tem base
para exigir que Deus lhe dê os dons de anjos. Além
do intelecto, Deus deu ao homem uma vontade.
Embora o intelecto seja finito, a vontade é tão
ampla e perfeita, tão superior a todos os limites,
que seria inconcebível uma maior. É a vontade,
principalmente, que constitui a similaridade com
Deus. A vontade de Deus, é claro, é maior do que a
do homem em virtude do conhecimento e poder
unidos a ela. Ela é mais eficaz e se estende a um
maior número de coisas, mas, em si, ou por
definição, a vontade de Deus e a do homem é a
mesma, pois o poder da vontade consiste apenas em
ser capaz de fazer ou não fazer a mesma coisa, isto
é, afirmar ou negar, buscar ou evitar. Essas frases
parecem descrever uma vontade tão livre como
Duns Scoto teria desejado.

Contudo, Descartes acrescenta, imediatamente,


certas qualificações que Spinoza usou para outro
fim. A liberdade da vontade, disse Descartes,
consiste no fato de que, quando buscamos ou
evitamos um propósito, não estamos conscientes de
sermos determinados à ação por nenhuma força
externa. Além da questão saber se a inconsciência
de forças externas prova que elas não existam, há a
questão, igualmente importante, da existência de
forças internas. Descartes admite a existência das
últimas. A liberdade não deve ser equiparada com
a liberdade de indiferença, e nós podemos ser
inclinados à escolha de uma ação, tanto mediante o
conhecimento natural, quanto por meio da graça
divina. Mas essas determinações internas, longe de
restringir, aumentam e fortalecem nossa liberdade.
Em outro lugar, entretanto, Descartes parece
inconsistente aceitar a liberdade de indiferença;92
mas o que os princípios do racionalismo
logicamente requerem, será esclarecido mais tarde.
No momento, a questão é como Deus pode ser bom
e permitir que o homem erre.

A resposta está na relação entre o intelecto finito e


a vontade infinita. Assim como não temos base
para nos queixar sobre nosso intelecto finito,
assim também, ou muito menos, teremos base para
nos queixar de que Deus tenha nos dado uma
vontade infinita. Contudo, por causa dessa
infinitude, a vontade estará sempre à frente do
intelecto. Deus, em sua bondade, nos tem
dado armas suficientes para que jamais nos
deixemos enganar. Será nossa falta, e não dele, se
corrermos adiante e dermos lugar a proposições
antes que elas sejam logicamente demonstradas.
Deveríamos nos recusar resolutamente
ao julgamento de matérias obscuras. Se
mantivermos nossas mentes fixadas
nessa advertência, imprimindo-a profundamente em
nossa memória, poderemos adquirir o hábito de
jamais cometer um erro. Porém, por que tantas
pessoas negligenciam o conselho de Descartes,
estultamente, recusando-se a desenvolver tão
valioso hábito? Por que aceitamos a proposição
obscura de que uma fatia extra de torta de maçã
contém quase nada de calorias? Seria
humanamente impossível deixar de julgar questões
obscuras?

O mundo material
Será que tortas de maçãs ou as árvores das quais as
maçãs provêm realmente existem? Pode a
veracidade de Deus garantir a existência de um
mundo físico? O argumento começa com uma
concessão. A imaginação difere da
cognição. Podemos conceber um triângulo ou, até
mesmo, um quilógono, e concebê-los com perfeita
clareza, sendo capazes de deduzir uma série de
teoremas a partir de tais concepções. Mas não
poderemos imaginar um quilógono. Se
tentarmos fazê-lo, a figura resultante será tão
borrada que será indistinguível de um polígono de
mil lados. Além disso, a imagem não seria de
nenhuma utilidade para a descoberta de qualquer de
suas propriedades. A imaginação, portanto, não
é parte da essência do homem; o pensamento pode
bem ser processado, e de fato, melhor processado,
sem imagens. A imaginação, então, tem de
depender de algo diferente da mente, e por causa
disso, torna provável a existência de corpos. Com a
mesma finalidade, observa-se que algumas
imagens, especialmente percepções sensoriais, são
involuntárias. Uma vez que eu não as construo,
nem previno sua ocorrência, há de ter alguma causa
para elas, fora de mim mesmo. Tal causa será Deus
ou corpos. Se Deus causasse a percepção dos
corpos, ele não poderia escapar à acusação de
engano. Portanto, os corpos terão de
existir. Insistamos, contudo, que isso não assegura
a precisão de nossas percepções. Os corpos poderão
ser, e são, bem diferentes daquilo que nos parecem,
pois nossas sensações são confusas. No entanto,
Deus nos dotou com possibilidade suficiente para
evitar engano, e chegar à verdade. As limitações do
sentido não refletem sua bondade. Somente se não
houvesse corpos se poderia dizer que Deus teria
usado de engano.

Se, então, corpos não são aquilo que parecem, se o


mundo físico real não é vermelho, azul, amargo,
doce, úmido e daí em diante, qual é a natureza do
corpo, a natureza daquela cera que foi alterada?
Deverá haver algo que possa ser clara e
distintamente apreendido, e a ilustração da cera
antecipa a resposta. “A natureza do corpo consiste
não em peso, dureza, cor ou coisas
semelhantes, mas somente na extensão.”93 “A
mesma extensão em comprimento, largura
e profundidade, que constitui espaço, constitui o
corpo.”94 A conclusão de Descartes, de que a
matéria é espaço, parece lembrar Platão. Mas os
motivos e os resultados dos dois filósofos não são
os mesmos. Platão havia escolhido ver o espaço
como o receptáculo para as ideias. Descartes
identificou a matéria como espaço porque a
geometria pode ser deduzida apenas mediante a
lógica. A geometria é a ciência do espaço; portanto,
a geometria é a ciência da física. De maneira mais
acurada, o estudo da física é a mecânica. Em face
dos Diálogos sobre duas novas ciências, de
Galileu, em que ele faz marcantes deduções, a
distinção entre geometria e mecânica poderia ser
facilmente minimizada e, além disso, o programa
racionalista, de deduzir toda a ciência somente por
meio da lógica, não era tão impossível para o
século 17 quanto parece no século 20.

A primeira e mais universal lei da natureza é que a


quantidade do movimento é uma constante. Uma
vez que o espaço é matéria, não há espaço vazio;
corpos estão em todo lugar. Se um corpo começar a
se mover mais rapidamente, outro terá de diminuir
a velocidade; não há como aumentar ou diminuir a
quantidade de movimento, no universo. Essa lei
fundamental da física é presumivelmente deduzida
da natureza de Deus, apenas por meio da
lógica. Deus, sendo bom, quer que o mundo seja o
máximo possível tal como ele mesmo é.
Obviamente o mundo não poderá ser um mundo e
ao mesmo tempo ter a mesma simplicidade e
imutabilidade que Deus tem. Um mundo tem de
exibir movimento. Mas a imutabilidade de Deus
pode ser vista no mundo por meio da atribuição de
uma quantidade constante de movimento. Terá de
haver mudança para que algo seja um mundo, mas
um mundo bom terá, e, este mundo tem, uma
imutável quantidade de mudança.

Deste ponto em diante, a pretensão de deduzir as


leis da natureza somente por meio da lógica torna-
se cada vez mais tênue. O que é ainda pior: há
pontos em que sequer resta essa pretensão.
Descartes estava interessado na totalidade da
ciência, da astronomia à medicina. Ele tentou uma
derivação do sistema solar por meio de uma teoria
do vórtice. Os detalhes terão de ser omitidos, mas
fica claro que, se Deus tivesse preparado vórtices
de outras magnitudes, teria resultado um mundo
diferente do nosso. É verdadeiro também que
o presente mundo poderia ter resultado de um
arranjo diferente daquele descrito por Descartes. E,
se até mesmo a lei fundamental da física, procede
inexoravelmente do ser de Deus, as leis subsidiárias
do movimento não seguiriam com o mesmo rigor.
Tal como é, todo evento particular dentro do
sistema mecânico de Descartes segue
necessariamente o evento precedente; mas o
sistema não é necessário. Depende da escolha de
Deus. Isso é um irracionalismo que exigirá um
Spinoza.

Alma e corpo

Contudo, até mesmo no próprio sistema físico,


Descartes admite uma exceção à lei de que todo
evento segue um predecessor por causa de
necessidade real. Observe onde o argumento
chegou. As características dos corpos são os modos
de extensão, isto é, tamanho e forma; as leis da
física natural são as leis do movimento. A
característica da mente é o pensamento, não o
movimento ou a extensão. Assim, o mundo consiste
de dois tipos de substância, uma pensante, mas não
extensa, e outra, extensa, mas não-pensante.
Entretanto, uma vez que as duas são partes do
mesmo mundo, e, especialmente, uma vez que nos
seres humanos elas são intimamente conectadas, a
relação entre as duas substâncias deverá ser
examinada. Poderá um evento mental produzir um
movimento que viole as leis da mecânica?

Fica claro que Descartes tinha grande respeito pela


lei da mecânica. Ele não apenas explicou alavancas,
roldanas, movimento de pedras e planetas
em termos mecânicos, como também considerou os
animais como máquinas. Familiarizado com
parafernálias engenhosas que exibiam tarefas
predeterminadas sob o comando de um botão, e
ainda mais, com o maravilhoso sistema de nervos,
músculos e veias que havia descoberto em suas
dissecações, Descartes estava convencido de que os
mecanismos animais eram suficientemente
complexos para explicar o comportamento de um
cão, gato ou cavalo. Espete um cão com uma
agulha, e ele ganirá tal como o bater da baqueta no
couro do tambor produz som. Se Descartes tivesse
conhecido o “olho eletrônico” que abre portas, teria
se convencido ainda mais de que, quando o cão nos
vê, e vem ao nosso encontro, realiza uma ação
puramente mecânica. Não haveria pensamento,
consciência, ideias ou sentimentos, nos animais.
Eles seriam, literalmente, máquinas.

Contudo, o homem é bem diferente. O fato de o


homem pensar é mais certo do que o de que o corpo
existe. A conduta humana é que deveria ser
relacionada ao movimento mecânica. Primeiro, há a
questão da localização da alma no corpo. Se
pensamento, sentimento e volição forem
conectados com os movimentos do corpo humano,
a alma deverá, certamente, estar em algum lugar no
corpo. Mas como poderia um ente não extenso, tal
como a alma, estar em algum lugar? A geometria
provê uma resposta fácil para essa questão. Na
geometria, um elemento sem extensão é um ponto,
e embora um ponto não ocupe lugar no espaço, é
uma localização. Consequentemente, nada haverá
de irracional em dizer que uma alma não extensa
pode estar dentro do corpo. Mas onde? É plausível,
ainda que não demonstrável somente mediante a
lógica, que a alma esteja localizada no
ponto central do sistema nervoso. Ao dissecar um
cérebro, Descartes observou que ele consistia de
dois hemisférios, e que suas partes vinham em
pares. A glândula pineal, contudo, era uma
exceção. Esta parte era singular, situada entre os
dois hemisférios, diretamente sobre o duto pelo
qual espíritos ou eflúvios deveriam passar, da parte
anterior para a parte posterior do cérebro, ou vice-
versa. O menor movimento dessa glândula poderá
alterar grandemente a passagem desses espíritos, e
inversamente, a menor mudança de fluxo dos
espíritos poderia afetar grandemente a glândula.
Para Descartes, os espíritos animais seriam fluídos
sutis correndo nos nervos e controlando os
músculos. Deixado por sua própria conta, o corpo
humano, assim como o do animal, funcionaria
mecanicamente — e com uma única exceção, ele
realmente funciona mecanicamente. Os músculos e
os ossos seriam como muitas alavancas e roldanas.
Os espíritos comporiam um tipo de sistema
hidráulico. Na glândula pineal, a alma seria capaz
de exercer uma força que mudaria a direção do
fluxo, controlando o corpo. Em conformidade com
a lei fundamental da física, é negado à alma o poder
de aumentar ou diminuir a quantidade de
movimento, podendo, contudo, alterar sua direção.
Colocando isso de maneira crua, mas
acurada, podemos dizer que: se um átomo se
chocasse contra a superfície da glândula pineal em
um momento em que a alma não estivesse
interessada em mover o corpo, esse átomo, tal
como uma bola de bilhar, bateria no bordo elástico
e defletiria no mesmo ângulo do choque. A alma,
contudo, poderia pôr alguma linguagem no átomo,
de maneira que, ainda que se chocasse contra a
superfície da glande em um ângulo de trinta graus,
ele defletiria em um ângulo de 51 graus. Isso
explicaria por que, quando sob o sentimento de
desgosto, nosso punho soca o livro de filosofia e
abandona-o sobre a escrivaninha.

Talvez, o contrário. É difícil conceber um ponto


imaterial que altere as leis da mecânica. É difícil
conceber que tais leis da mecânica sejam alteradas.
Se uma bola não se movimenta no ângulo correto,
certamente haverá algum fator físico a ser levado
em conta, responsável pela alteração. Deverá ser o
taco e não a alma que passou a mensagem. Além
disso, quem poderá negar que a sequência de
pensamentos e sentimentos esteja ligada,
indissoluvelmente, a uma série de movimentos
físicos? Descartes, realmente cometeu um ou dois
erros ao elaborar o racionalismo; talvez este seja
outro. Ainda assim, com erro e tudo, ele
deveria receber o crédito por ter visto um problema
que jamais havia ocorrido aos pensadores
medievais, pois eles jamais haviam tido a mesma
visão do mecanicismo. Suas raízes teriam de ser
buscadas, se necessário fosse, na Grécia antiga,
onde a antítese entre mecanicismo e teleologia foi
encontrada pela primeira vez. Em conformidade,
em vez de abandonar o livro com aversão, uma
mente curiosa procuraria lê-lo para ver se Spinoza
lida com o problema de maneira mais satisfatória e
mais de acordo com os princípios racionalistas.

BARUCH SPINOZA
Em grande medida, Spinoza (1632-1677)
concordou com Descartes. Matemática,
mecanicismo e racionalismo é um vocabulário
comum aos dois. Também, muitas das frases em o
Principia, de Descartes, são encontradas
em Spinoza, com uma diferença. A diferença está
na direção de um racionalismo mais estrito. Assim,
Spinoza será descrito como aquele que “corrigiu os
defeitos” de Descartes. Tal descrição poderá ser
plenamente justa, mas, afinal, justiça é algo que
jamais foi feito na história da filosofia.

Definição e existência

Em primeiro lugar, como já foi citado, Spinoza


descartou o cogito e construiu sobre o argumento
ontológico. Há uma boa razão para isso, que deverá
ser entendida, para que o motivo principal do
racionalismo seja compreendido. A questão não é
que o “eu penso” não possa ser provado mediante a
lógica somente, ela está mais intimamente ligada à
dificuldade para provar que eu existo. Para ser mais
preciso em nossa declaração, o ponto tem mais a
ver com a existência de alguma coisa, não
necessariamente de mim mesmo. O
método racionalista tem sido descrito como um
método demonstrativo. Quando
Descartes acrescentou uma palavra sobre intuição,
ou ele se confundiu, ou deu um exemplo em vez de
uma definição. Ora, na geometria, há definições e
axiomas e, então, as demonstrações fornecem os
teoremas. Assim, também, Spinoza,
que caracteristicamente intitulou sua obra principal,
Ethica Ordine Geométrico Demonstrata, começou
com definições e axiomas, e elaborou uma série
de teoremas. Isso poderá parecer — e por causa de
desenvolvimentos na geometria desde o tempo de
Spinoza parece ainda mais — que algum filósofo
poderia escolher um diferente conjunto de axiomas
e deduzir uma série diferente de teoremas. No caso
de filosofias rivais, portanto, como alguém
distinguiria a filosofia verdadeira, a filosofia que
descrevesse o mundo real, de uma filosofia que
fosse meramente um tour de force, isto é, um
sistema consistente, mas sem nenhuma aplicação?
O racionalismo não poderá apelar, aqui, para as
sensações. Não poderemos olhar e ver se há coisas
que correspondam às definições. Portanto,
é absolutamente essencial que o racionalismo
dependa de uma definição, ou, de um conjunto de
definições, que prove a existência da coisa definida.
A definição de um triângulo, de uma árvore, tal
como a de um snarnão assegura a existência do
objeto, mas, a menos que existência e essência
correspondam em algum lugar, a menos que aquilo
e o quê sejam idênticos em, pelo menos, um
dos objetos, não haverá esperança de passar da
definição para um mundo real existente. Em toda a
história da filosofia, apenas um objeto tem sido
pensado como algo que satisfaz essa especificação.
Portanto, o argumento ontológico é essencial para o
racionalismo.

Embora Descartes tenha simplificado o argumento


de Anselmo, pareceu apropriado a Spinoza,
complicá-lo. A conclusão de que Deus
existe, necessariamente, tomou a forma do
undécimo teorema, deduzido de uma série de
definições e axiomas. Resumindo e operando
regressivamente, o argumento pode ser declarado
como segue: Deus necessariamente existe; isto é,
sua essência envolve sua existência, pois a
substância não pode ser produzida de
nenhuma coisa externa - ela tem de ser a própria
causa. A substância tem de ser a própria causa,
porque nada há além de substância e atributo, e
uma substância não pode produzir outra substância.
Isso é verdadeiro, porque não pode haver
duas substâncias com o mesmo atributo, uma vez
que um atributo, por definição, constitui a essência
da substância. Além disso, coisas que nada têm em
comum não poderão ser a causa uma da outra, pois,
se elas nada têm em comum, uma não poderá ser
apreendida por intermédio da outra. Isso fica bem
claro considerando o Axioma V, que declara que
coisas que nada têm em comum não podem ser
entendidas, uma por intermédio da outra - o
conceito de uma não envolverá o conceito da outra.
E quanto ao restante, quaisquer pontas soltas neste
sumário dependerão de outras definições e
axiomas.

Há oito definições e sete axiomas na Parte I do


Ethica, algumas das quais são dadas, aqui, como
exemplos:
1. Por aquelas que são autocausadas, quero dizer
aquelas cuja essência envolve existência, ou
aquelas cuja natureza é somente concebida como
existente.

3. Por substância, quero dizer aquilo que é em si


mesmo e é concebido por si mesmo; em outras
palavras, aquilo pelo qual uma concepção poderá
ser formada independentemente de quaisquer
concepções.

7. Tal coisa é chamada livre, que existe somente


pela necessidade da própria natureza, cuja ação é
determinada somente por ela mesma.

Essas definições e axiomas, embora apareçam na


primeira página do livro de Spinoza, teriam sido
quase as últimas formulações por ele concluídas.
Em consonância com um sistema dedutivo, todos
os teoremas são implicitamente contidos desde o
princípio. Visto que esse início substitui o cogito de
Descartes, imediata atenção deveria ser dirigida ao
processo pelo qual Spinoza deriva o mundo, de
Deus. Descartes havia declarado derivar a
existência de corpos, da veracidade de Deus. A lei
fundamental da física buscou plausibilidade a partir
da imutabilidade de Deus. Mas o número de
planetas, a precisa aceleração da gravidade e, em
geral, as particularidades do mundo dependeram da
escolha de posições e velocidades atribuídas por
Deus, quando criou as coisas. De uma perspectiva
racionalista, entretanto, uma escolha divina que
fosse diferente, seria caprichosa. Não haveria uma
conexão necessária entre a natureza de Deus e a
posição e a velocidade em questão; lógica ou
matemática não estariam envolvidos nisso.

O melhor de todos os mundos possíveis

Há outra consideração que não foi mencionada.


Descartes assumiu que a bondade de Deus levou-o
a atribuir uma quantidade constante de movimento
ao mundo. Mas isso não responde muito bem à
questão se Deus poderia ter criado um mundo
melhor. Por exemplo, um sistema solar com dez
planetas seria melhor do que um com cinco
planetas? Sobre esse ponto e suas considerações,
Descartes, Spinoza e Leibniz discordam. Na
demonstração de Leibniz, Deus
estaria familiarizado com um número infinito de
planos para mundos. Seria como se Deus
contemplasse uma enorme série de planetas.
Alguns desses planos seriam relativamente pobres,
alguns, muito bons, e outro seria o melhor de todos.
De fato, teria sido tão bom que não haveria como
executá-lo. Uma vez que Deus é bom, sua escolha
de um mundo seria naturalmente motivada por
aquilo que fosse excelente — consequentemente, a
escolha de criar o melhor possível de todos os
mundos. Este é o tema que Voltaire, de modo mais
burlesco do que mordaz, ridicularizou em Candide.
Pouco brilho é necessário para escrever
uma história em que o herói passa pelos mais
extraordinários infortúnios, cada um deles
explicado como bênção disfarçada, neste melhor de
todos os mundos possíveis. Como peça satírica,
Candide poderá ser julgada pelo leitor segundo seu
gosto literário. Como argumento racional contra
Leibniz, sua superficialidade contrasta com a
penetrante análise de Spinoza. Figurar Deus como
tendo escolhido um plano que fosse, por si mesmo,
o melhor de todos os mundos possíveis, implicaria
haver um princípio de bondade externa e superior a
Deus. Em tal esquema, a bondade do projeto não
depende de Deus, mas a escolha de Deus depende
da bondade do projeto. Leibniz formulou, de fato,
uma Ideia platônica de Deus, e reduziu Deus ao
estado inferior de um Demiurgo.

Não foi assim com Descartes. O mundo é, sem


dúvida, um mundo bom, mas em vez de Deus ter
escolhido o mundo, porque ele fosse bom, o mundo
é bom porque Deus o escolheu. Capricho ou não, é
a vontade de Deus, quase como em Duns Scoto e
Ockham, que determinam o que é a bondade. Se
Deus tivesse escolhido um mundo diferente, com
menor número de planetas e mais mosquitos, tal
mundo seria bom. Essa visão, pelo menos, mantém
a supremacia de Deus. Voltaire poderá ter
ridicularizado essa visão, da mesma maneira como
fez com a de Leibniz, com menor razão ainda.
Contudo, Spinoza reconhece que uma teoria que
sujeite todas as coisas à vontade de uma divindade
indiferente, e que afirme que tais coisas sejam todas
dependentes de seu fiat, estará tão longe da
verdade como a teoria daqueles que mantêm que
Deus age em todas as coisas com o fim de
promover aquilo que é bom. Entretanto, nenhum
desses pontos de vista o satisfez, e ele quis
demonstrar aquilo que seria requerido pelo
racionalismo.

Comum a Descartes e Leibniz é a falha em


permanecer consistente com o conceito racionalista
de causalidade. Os três filósofos discutidos nesta
seção afirmaram que Deus seria a causa do mundo,
mas Descartes e Leibniz representaram a
causalidade como uma escolha. Sendo uma
reversão à teleologia, quer grega quer cristã, essa
representação é inconsistente com a matemática e a
lógica. Se todas as verdades realmente tiverem de
ser deduzidas do ser de Deus, mediante a lógica
somente, este mundo não poderá ser o melhor
mundo possível porque não há outros mundos
possíveis. Seriam os teoremas de geometria, os
melhores teoremas possíveis? A questão é
desprovida de sentido, pois não há outros teoremas.
Deus, portanto, não exerceu escolha quanto à
causalidade do mundo - ele é a causa, precisamente
no mesmo sentido em que os axiomas da
geometria são a causa dos teoremas.

Causalidade racional

Isso é o que subjaz um dos passos do argumento


ontológico e que está mais obscuro do que alguns
dos outros. A Proposição III é: Coisas que nada têm
de comum entre si não podem ser, uma, a causa da
outra. Fora da filosofia, isso é intrigante. O martelo,
batendo contra o ferro, causa um som. O que o
martelo e o som terão em comum? Os venenos
sódio e cloreto causam o sal comum, não tóxico. O
Sol causa o crescimento da grama. O que
significaria a declaração de que coisas que nada
têm de comum entre si não podem ser a causa uma
da outra? A prova que Spinoza fornece para a sua
proposição é esta: Se elas nada têm em comum,
uma não poderá ser apreendida por meio da outra,
porque o Axioma V afirma que coisas que nada têm
de comum entre si não poderão ser entendidas uma
por meio da outra. A concepção de uma não
envolve a concepção da outra. Portanto, uma não
poderá ser causa da outra, porque o Axioma IV
afirma que o conhecimento de um efeito envolve e
depende do conhecimento de uma causa.

A perplexidade inicial na leitura deste mais antigo


teorema do sistema de Spinoza resultou da
preocupação com causas eficientes. Quando a
causalidade lógica é considerada, tais axiomas,
proposições e provas tornam-se claras. Como já foi
apontado na exposição do critério de clareza e
distinção, de Descartes, nada poderá ser mais claro
do que a conexão necessária entre premissas
e conclusão. A explanação consiste em fornecer
uma razão. Se for perguntado por que alguma coisa
é verdadeira, a resposta será que as premissas o
requerem. Entendimento vem somente pela razão,
que demonstra, não apenas que a coisa é assim, mas
que tem de ser assim. As premissas são a causa.

Um racionalismo consistente, portanto, não poderá


admitir que nenhum outro mundo seja possível.
Este é o único mundo porque ele é necessário, e
é necessário por causa da natureza de Deus. Uma
vez que é perfeito, Deus causa um mundo perfeito.
Um mundo diferente pressuporia um Deus
diferente, um Deus imperfeito, o que seria
logicamente absurdo. A razão pela qual as
pessoas pensam que outros mundos sejam possíveis
é que elas atribuem a Deus um tipo de liberdade
inconsistente com a Definição VII: A coisa que é
chamada livre é a que existe somente pela
necessidade da própria natureza, e cuja ação é
determinada somente por ela mesma. Em vez dessa
liberdade, aqueles que acreditam que outros
mundos sejam possíveis atribuem a Deus um livre-
arbítrio absoluto. Ainda assim, tais pessoas
admitem que cada coisa é o que é por causa dos
decretos de Deus, pois, de outra maneira, Deus não
seria a causa de todas as coisas. Admitem também
que os decretos de Deus sejam eternos, pois, de
outro modo, Deus seria mutável. E como, além
disso, não há distinções temporais na
eternidade, um conjunto diferente de decretos
divinos seria uma impossibilidade. É
admitido também, em todas as instâncias, que o
intelecto de Deus seja inteiramente atual: nada há
de potencial, não desenvolvido, ou imperfeito, em
Deus. Posto, então, que o intelecto, vontade e
essência de Deus sejam idênticos, se sua vontade
ou seu intelecto fossem diferentes, a sua essência
também seria diferente. Contudo, supor que a
essência de Deus seja diferente do que é, isto é,
supor que Deus poderia ser melhor do ele é, é
obviamente absurdo.

Mais precisamente, nem intelecto nem vontade


pertenceriam à natureza de Deus. Aqueles que
aceitam essa noção comum enfrentam uma objeção
insuperável. Embora concebam Deus como sendo
supremamente inteligente, negam que ele possa
criar tudo que ele concebe, pois, se Deus criou
todas as coisas que existem em seu intelecto, não
poderia criar mais nada. Nesse caso, ele não seria
onipotente. Spinoza, ao contrário, manteve que a
infinita natureza de Deus jamais cessa de implicar
um número infinito de teoremas, e que, assim, a
onipotência de Deus é constantemente exibida. A
excentricidade da negação de que Deus possa criar
tudo o que ele concebe, depende da atribuição a
Deus de um intelecto e uma vontade, da maneira
como tais termos são ordinariamente entendidos.
Entretanto, se Deus realmente tem um intelecto e
uma vontade, eles serão polos opostos do intelecto
e da vontade humana. Nada haverá de comum entre
eles, senão o nome. Haverá tanta correspondência
entre os dois quanto há entre a constelação celeste
do Cão Maior e o cachorro que late. Considere:
o intelecto divino não poderia ser, tal como o nosso
é, posterior ao entendimento, pois Deus precede a
todas as coisas em virtude de sua causalidade. Deus
é a causa, não apenas da existência de todas as
coisas, mas de sua essência também. O homem é
uma das coisas. Uma vez, portanto, que aquele que
é a causa da existência e da essência terá de diferir
de seus efeitos, tanto em essência quanto em
existência, a essência ou a definição de um
intelecto ou vontade divina deverá diferir da
essência ou definição do intelecto ou vontade
humana. Entretanto, se a definição diferir, os dois
objetos nada terão em comum, senão o nome.

Uma substância

A natureza de Deus e as implicações do argumento


ontológico requerem exposição adicional. No
Principia, Parte I, li, Descartes escreveu: “Por
substância concebemos nada mais do que uma
coisa que existe de tal maneira que não necessite de
mais nada além de si mesma para existir. Na
verdade, somente poderá ser concebida uma única
substância, que seja absolutamente independente, e
esta é Deus... Assim, o termo substância não se
aplica a Deus e à criatura, de maneira unívoca”.
Para simplificar isso, Spinoza negou que houvesse
quaisquer substâncias finitas. Uma substância finita
seria aquela limitada por alguma substância.
Porém, se forem substâncias, ambas terão de ter
algum atributo em comum, o que já foi provado ser
impossível. Consequentemente, há apenas
uma substância, o Deus infinito. Uma vez que o
argumento ontológico define Deus como um ser
que possui todos os atributos, ele terá de ser
concebido também como um ser extenso e
substância pensante. Coisas individuais nada mais
são do que modificações dos atributos de Deus, ou
modos pelos quais são expressos, de maneira
determinada e fixa. O corpo é um desses modos.
Não se deveria dizer que Deus é um corpo, pois um
corpo tem quantidade definida, tamanho e forma.
Deus, é infinitamente extenso e totalmente
indivisível. Não será menos absurdo dizer que uma
substância extensa é feita de corpos ou partes do
que dizer que uma superfície é feita de linhas, ou
que uma linha é feita de pontos. Se uma substância
pudesse ser dividida de maneira que suas partes
ficassem realmente separadas, por que uma parte
não poderia ser dividida enquanto as outras
permanecessem unidas tal como antes? Mas isso
criaria um vácuo, e um vácuo não pode existir na
natureza. A razão por que as pessoas dividem
a substância em partes é que elas dependem da
imaginação. Contudo, se, em vez de quantidades
imaginadas, concebêssemos intelectualmente uma
extensão, a substância pareceria claramente uma e
indivisível. A matéria será sempre a mesma em
todo lugar e suas partes serão indistinguíveis. As
distinções que imaginamos são modais, e não
substanciais. Por exemplo, a água, enquanto água, é
divisível; suas partes podem ser separadas; ela pode
ser produzida e destruída. Mas na medida em que
ela é uma substância extensa, ela não é nem
divisível, nem produzível, nem destrutível. As
partes do espaço são indistinguíveis. Assim, Deus é
um ser extenso e pensante.

A crítica, nesse ponto, torna-se difícil. Ou ela será


tão específica, que se torne altamente técnica, ou
tão geral, que ataque todos os pontos de uma só
vez. Um exemplo do primeiro seria um exame da
validade dos silogismos de Spinoza. Seus teoremas
são deduzidos com rigor euclidiano? Alguns
críticos dão a impressão de que esse tipo de análise
é um pouco injusta. Ainda assim, que teste poderia
ser mais apropriado para uma filosofia que declara
basear toda a verdade somente sobre a lógica? Seria
injusto somente se as falácias descobertas
fossem triviais, deixando o sistema, na maior parte,
intacto. Mas isso teria de ser demonstrado em
detalhes. Sem dúvida, esse exame seria tedioso, e
exatamente por isso, deverá ser omitido, como de
costume. Outro exemplo de uma crítica altamente
técnica é aquele dirigido à distinção entre atributos
e modos. Atributos constituem a essência da
substância, e extensão e pensamento são atributos
de Deus. Modos são modificações da substância, ou
mais especificamente, modos se referem aos
atributos (II, vi), e amor e desejo são modos de
pensamento. Coisas individuais são modos.
Eventos singulares, tal como a descoberta
da América, também seriam modos? E, o que são
as leis da física específicas, tal como a igualdade
dos ângulos de incidência e reflexão? Isso levanta
uma questão que poderia provocar ampla crítica: é
a relação entre um axioma ou teorema e o sistema
do qual ele é parte, a mesma como a relação entre
uma substância e um atributo ou modo? Veremos
em breve como tais aparentes dificuldades
técnicas subjazem muitas das grandes questões.

As críticas mais gerais atacam todos os pontos de


uma só vez, correndo o risco de serem repetitivas.
Ainda assim, elas poderão ser defendidas
pedagogicamente como uma maneira de mudar a
posição da matéria para melhor entendimento. As
questões menos incontroláveis se relacionam com a
necessidade de todas as definições e axiomas.
Mesmo que o argumento ontológico,
presumidamente válido, justifique as premissas
sobre as quais ele se baseia, Spinoza
acrescenta outro axioma que não tem a mesma
razão de ser. Por exemplo, a lei da física de que os
ângulos de incidência e de reflexão são iguais, é
dada como um dos axiomas da Parte II. Seriam
também axiomas as três leis do movimento
planetário, de Kepler? Um cientista poderia se
dispor a desculpar a rejeição racionalista quanto ao
experimento, ou, pelo menos, considerá-la uma
tentativa válida, se as leis da física fossem
ostensivamente deduzidas de axiomas plausíveis.
Contudo, assumir como axiomáticas as próprias leis
particulares deixa sem explicação a razão da
escolha de algumas leis em vez de outras. Por que
não assumir que o ângulo de reflexão seja o dobro
do da incidência?

Sem dúvida, a questão mais incontrolável e,


portanto, mais interessante, é a do panteísmo de
Spinoza. Spinoza definiu Deus como um ser
absolutamente infinito: “Digo absolutamente
infinito, não infinito segundo sua espécie, pois
os atributos de uma coisa segundo sua espécie
sempre poderão ser negados. Mas aquilo que é
absolutamente infinito contém, em sua essência,
aquilo que expressa realidade, e não envolve
negação”. Por essa razão, ele conclui que Deus tem
de ter o atributo da extensão.

Pela mesma razão, também, será incorreto dizer


que o Deus revelado na Bíblia seja absolutamente
infinito. Por isso, alguns críticos do cristianismo
acusam a Bíblia de apresentar um Deus finito,
enquanto os teólogos ortodoxos
negam veementemente essa acusação. A confusão
surge desses dois tipos de infinitude. À parte da
persistente questão sobre quais e quantos são os
atributos, o cristianismo claramente nega a Deus o
atributo de espaço ou materialidade, assim como os
atributos de sensitividade, estupidez e mal, se é que
os últimos são atributos. O Deus dos ancestrais de
Spinoza era finito em poder, sabedoria e justiça, ou,
para usar os termos de Spinoza: ele é infinito
segundo a sua espécie. De modo particular, o Deus
da Bíblia é pessoal. Para alguns
pensadores, personalidade é uma limitação que
torna Deus um ser finito. O
cristianismo admitidamente ensina que Deus é
definido, e argumenta que qualquer ser destituído
de toda limitação, no sentido de atributos definidos,
seria o nada desconhecido da teologia negativa.
Ora, Spinoza, longe de negar que Deus tenha
atributos, afirma que Deus tem um número infinito
de atributos. Ainda assim, alguém poderia
perguntar se a substância, de Spinoza, com todos os
seus atributos, não seria, afinal, quase a mesma
coisa que seu nada desconhecido - por duas razões.
Em primeiro lugar, os dois atributos conhecidos de
Deus parecem tão incompatíveis que não poderiam
ser juntamente atribuídos a alguma substância
concebível. A razão pela qual Descartes admitiu
duas substâncias criadas foi que pensamento
e extensão são tão díspares que se excluem
mutuamente. Um universo que exiba diversidade
poderá conter algumas coisas ou modos extensos e
algumas coisas pensadas; mas quanto mais se
acentua a unidade da substância, tanto
menos poderemos conceber que a mesma coisa seja
tanto extensa quanto consciente. Um corpo pode
ser pesado e cair a uma aceleração de 32 pés por
segundo, mas um pensamento não tem peso nem
pode cair. Um pensamento pode ser engenhoso e
engendrar ou implicar outros pensamentos, mas os
corpos não têm esse potencial. Quando se diz que
esses atributos díspares pertencem à
mesma substância, tal substância chega perto de se
tornar um termo vazio.

Em segundo lugar, Spinoza nos ilude, afirmando


que, do número infinito de atributos, apenas esses
dois (incompatíveis) poderiam ser conhecidos.
Será que isso justifica a crítica de que aquilo que se
pode conhecer de Deus é igual em quantidade à
fração de dois sobre o infinito? Se for inútil
especular sobre o desconhecido, o panteísmo de
Spinoza pode ser considerado a partir do ponto de
vista dos atributos conhecidos, de personalidade e
justiça, que ele se recusa a atribuir a Deus. É justo
dizer que Spinoza não conta tais atributos entre
os desconhecidos, mas definitivamente nega-os a
Deus. Personalidade pode ser um modo do atributo
do pensamento divino, na medida em que há seres
humanos no mundo, do mesmo modo como há
justiça, na medida em que algumas pessoas são
justas; contudo, como Deus não é corpo, Deus não
é uma pessoa. O Deus de Spinoza é o próprio
mundo. Uma de suas expressões favoritas é Deus
sive natura, Deus ou natureza. Na linguagem
comum, ou é uma conjunção usada de maneira
ambígua, pois poderemos dizer: “vermelho ou
azul”, significando que tais cores sejam
mutuamente exclusivas, e poderemos dizer: “par ou
divisível por dois”, em que os termos significam a
mesma coisa. Ordinariamente, no latim, o primeiro
ou é aut e, o segundo, é sive. “Deus ou natureza”
significa que Deus é natureza. Em I, xiv, Spinoza
diz: “À parte de Deus, não há como assegurar ou
conceber substância”, e depois, na prova de I, xv,
ele acrescenta: “mas substâncias e modos formam a
soma total da existência”.

A partir deste ponto, a crítica se torna mais


complexa. Dois cursos se abrem. Primeiro, a
matéria pode ser vista como no argumento
ontológico. Tal argumento supostamente provava a
existência de Deus. Ora, suponha que o termo
substância seja restrito a Deus com base em que ele
denotaria independência absoluta e jamais poderia
ser aplicado a coisas. Suponha também que Deus
ou substância tenha muitos atributos e modos.
Ainda assim, isso não parecerá exigir a definição de
que corpo seja um modo da existência de Deus; e,
portanto, não prova que existam corpos.96 Isto é,
Spinoza não provou a existência de um tipo de
corpo que ele desejava; nem, inversamente, ele
refutou a existência de um tipo de corpo que não
desejava — um corpo que não é a substância nem o
modo spinozista. Em outras palavras, alguém
poderá se perguntar se Spinoza teria demonstrado
um absurdo na concepção de Deus criar coisas que,
embora não sejam independentes dele e não possam
ser concebidas sem ele, ainda assim não sejam
modos de sua essência. Será que Spinoza consegue
evitar uma grave objeção ao simplesmente
combinar e confundir duas ideias diferentes em sua
definição de modo?

Em segundo lugar, poderemos ver a matéria, não


do ponto de vista do argumento ontológico
tradicionalmente concebido, mas da perspectiva
da natureza. Supostamente, tínhamos provado a
existência de Deus, mas, agora, parece que
provamos apenas a existência do mundo, pois o
Deus de Spinoza é a natureza. Reconhecendo que o
racionalismo tem de demonstrar a existência
do mundo, pois ele não poderá se basear nas
sensações, alguém perguntaria qual seria a
necessidade de considerá-lo uma substância.
Presumivelmente, um universo deve ter algum tipo
de unidade, mas por que esta unidade seria a de
uma substância e seus atributos? E por que não
haveria, tal como disseram Anselmo e
Descartes, um Deus transcendente independente
desse universo? Essas questões retornam ao
conceito racionalista de causalidade. Conotações
teológicas e escolhas voluntárias são consideradas
como irracionais; portanto, para que o mundo
seja racional será necessário que ele seja um
sistema fechado de implicações, e assim continua a
teoria de Spinoza.

Mecanicismo epensamento

Entretanto, há outra complicação. Já tem sido


suficientemente enfatizado que Spinoza rejeitou o
conceito teleológico de causalidade eficiente em
favor de uma relação lógica entre premissa e
conclusão, que é, então, identificada com a relação
de substância com atributo e modo. Ao mesmo
tempo, tal como as referências à lei de ângulos
iguais demonstram, Spinoza também quis
manter uma causalidade mecânica. Por mais
diferentes que esses tipos de causa
pareçam, Spinoza pensou em justificá-los por meio
de um amálgama, ou melhor, não viu diferença
entre eles porque já havia igualado mecânica e
geometria. Ora, pondo de lado a crítica, o aspecto
mais interessante do mecanicismo de Spinoza é
sua grande consistência quanto à teoria de
Descartes.

Descartes tinha desejado manter o mecanicismo,


exceto no caso de interferência de uma alma ou ser
humano. No ato volitivo, as leis da física
são decompostas na glândula pineal. Se, entretanto,
as leis da física pudessem ser deduzidas mediante a
lógica somente, tal como Spinoza pensava, a
violação dessas mesmas leis seria algo impensável.
O corpo humano ou o dos animais seria
uma máquina. “Um corpo, em movimento ou em
repouso, é determinado a mover ou a repousar por
meio da interferência de outro corpo ... e assim em
diante, até o infinito”;97 e “O corpo não pode
determinar que a mente pense, nem a
mente determinar o corpo que se mova ou
repouse”.98 Para Spinoza, e para
Descartes, pensamento e extensão eram
mutuamente exclusivos, mas, para Spinoza,
a incompatibilidade não era adjetiva, mas lógica:
isto é, embora pensamento e extensão fossem
atributos da mesma substância, um pensamento não
poderia causar ou implicar um movimento, e um
movimento não poderia implicar ou causar um
pensamento. Qual será, então, a relação entre a
mente e o corpo, entre física e psicologia, entre
Deus como ser extenso e como ser pensante?

Se todas as críticas prévias forem afastadas, a


primeira formulação da resposta a essa questão não
será difícil de ser entendida. O corpo é um
atributo com um conjunto de axiomas apropriados.
Isso implica uma série de teoremas, que, por
necessidades óbvias, são teoremas de extensão.
Uma vez que tais axiomas não contêm declarações
concernentes a ideias ou pensamentos, os
teoremas também não o poderão conter.
Igualmente, o pensamento é um atributo de Deus, e
ele também tem um conjunto de axiomas
apropriados que implica uma série de teoremas
entre os quais nenhuma declaração sobre
movimento pode ser achada. Uma vez que a
implicação lógica é a causalidade, obviamente
nenhum pensamento poderá causar um movimento
nem um movimento, causar um pensamento.
Contudo, como pensamento e extensão são, ambos,
atributos de uma mesma substância, os dois
conjuntos de teorema descrevem o mesmo objeto e
a mesma forma, como se fossem colunas paralelas.

A nota que segue, traz o seguinte: “Mente e corpo


são uma e a mesma coisa, concebida primeiro sob o
atributo do pensamento, e depois, sob o atributo
da extensão. Segue, então, que a ordem da
concatenação das coisas é idêntica, quer a natureza
seja considerada sob um atributo, quer sob o outro.
Consequentemente, a ordem dos estados de
atividade ou de passividade, em nosso corpo, é
simultânea em natureza com a ordem dos estados
de atividade ou de passividade, na mente. Não
obstante ... dificilmente poderei crer ... que os
homens possam ser induzidos a considerar a
questão de maneira calma e justa, visto o modo
como se apegam tão firmemente à noção de que é
meramente por meio da instrução da mente que
o corpo é posto em movimento ou em repouso, ou
efetua uma variedade de ações, dependendo apenas
da vontade da mente ou do exercício do
pensamento. Entretanto, ninguém, até agora,
estabeleceu limites para os poderes do corpo...
Ninguém, até então, adquiriu conhecimento
acurado do mecanismo corpóreo, a ponto de
poder explicar todas as suas funções... De fato,
muitas ações observadas em animais inferiores, que
transcendem de longe a sagacidade humana, e
coisas que sonâmbulos fazem durante o sono, que
não se aventurariam fazer quando acordados...
são suficientes para mostrar que o corpo poderá,
apenas mediante as leis de sua natureza, fazer
coisas que maravilham a mente”.99

Nossa ignorância sobre os poderes do corpo


descarta a volição como causa de nossas ações. Ao
mesmo tempo, estranhamente, nossa ignorância
sobre os poderes da mente não nos fornece base
para supor que a volição produza ação. Pode ser
verdadeiro que o corpo permaneça inerte até que a
mente esteja em um estado adequado para pensar;
mas pode ser igualmente verdadeiro, conforme diz
Spinoza, que a mente permaneça inerte, a menos
que o corpo esteja em um estado adequado para
agir. Considere o sono e a anestesia. À objeção de
que é mediante a volição que falamos ou calamos,
Spinoza replicaria: “A palavra seria mais feliz, se o
homem fosse capaz de guardar silêncio da mesma
maneira como fala. A experiência mostra
sobejamente que os homens podem governar
qualquer coisa com mais facilidade do que as suas
línguas, e refrear qualquer coisa com mais
facilidade do que seus apetites”.

Há mais. Descartes teve outros seguidores, além de


Spinoza, que se interessaram pela relação entre
corpo e alma. Nicolas Malebranche (1638-1715) e
Arnold Geulinex (1624-1669) concordaram que
extensão e pensamento seriam muito diferentes
para serem atribuídos a uma substância. Porém, se
assim fosse, extensão e pensamento seriam muito
diferentes para interagir. Sua solução, chamada
de ocasionalismo, é que duas substâncias agem
conforme as próprias leis, não afetando uma a
outra, e ainda assim, tão ajustadas pelo Criador que,
quando a vontade age, o corpo move, e quando o
corpo é ferido, ocorre a dor. Tal evento é a ocasião,
mas não a causa do outro. É tentador supor que
Spinoza tenha simplesmente desprezado a ideia de
um Criador, falado de dois atributos em vez de
duas substâncias e excluído o paralelismo ou o
ocasionalismo. Contudo, tal interpretação é muito
simples e cômoda para fazer justiça à totalidade
dos escritos de Spinoza. O ocasionalismo estava
preocupado com a relação entre a mente humana e
o corpo humano ou, no máximo, incluía em sua
visão geral a consciência de animais, se é que
animais sejam conscientes. É claro que
Spinoza estava também interessado nessas coisas,
mas seu pensamento ia além desses
limites. Naturalmente, ele não cria que sua
substância fosse apenas um nome: ele levou a sério
a unidade da substância. “A substância do
pensamento e a substância extensa são uma e a
mesma substância, compreendida, ora por meio de
um atributo, ora por intermédio de outro. Assim
também, um modo de extensão e a ideia
desse modo [o corpo e a mente] são uma e a mesma
coisa, ainda que expressa de duas maneiras... de
forma que, embora consideremos coisas como
modos de pensamento, temos de explicar a ordem
da totalidade da natureza ou da totalidade da cadeia
de causas, somente por meio do atributo do
pensamento. Até que consideremos as coisas como
modos de extensão, teremos de explicar a ordem
da totalidade da natureza por meio somente do
atributo da extensão”.100

Tais palavras parecem indicar não apenas que a


mente humana e o corpo humano sejam a mesma
coisa, mas que a totalidade da natureza é extensão
e pensamento. Mais especificamente, Spinoza
disse: “As proposições que temos adiantado até
aqui têm sido inteiramente gerais, sendo igualmente
aplicadas a homens e a coisas individuais, que,
ainda que em diferentes graus,
são animadas”.101 Sua definição do termo ideia -
como sendo uma concepção mental, que, por sua
vez, é formada pela mente como uma coisa
pensante - poderá parecer cartesiana, como se a
mente, como uma substância, produzisse a ideia
como um ato. Entretanto, Spinoza, mais tarde, falou
sobre a ideia como constituindo a mente. A ideia é
a mente. E, no caso do ser humano, a ideia que
constitui a mente é a ideia do corpo humano, e nada
mais. Ora, assim como há uma ideia de
corpo humano, assim há ideias de todos os corpos.
Se não chamamos as outras ideias de mente, a
única razão é que elas exibem um grau menor de
perfeição.

Seria esta uma teoria de pampsiquismo? Se


pampsiquismo significar, como em Leibniz, que as
mentes são as realidades fundamentais, Spinoza
não será um pampsiquista, ainda que ele tenha dito
que todas as coisas são animadas. Tal teoria, seria,
ao contrário, uma forma de behaviorismo? Poderia
ser, se tomássemos o termo ideia no sentido de uma
verdade ou uma proposição. Os vários teoremas são
verdades sobre a substância única. Alguns deles são
expressos em uma linguagem, a linguagem do
pensamento, que poderíamos chamar “grego”, e
outras são expressas na linguagem da extensão, que
poderíamos chamar “latim”. Ambos os conjuntos
de verdades, porém, estariam descrevendo a mesma
realidade, e uma linguagem poderia ser traduzida
para a outra. Essa analogia das duas linguagens não
é ruim, mas Spinoza, sem dúvida, teria negado que
a teoria fosse behaviorista. O behaviorismo diria
que apenas o latim faz sentido, e que o grego não
existe. Spinoza, ao contrário, colocou extensão e
pensamento no mesmo nível, como atributos de
Deus, substância ou natureza. Portanto, ele não
poderia ser chamado de behaviorista, nem de
pampsiquista. Uma vez que ele, claramente, não
poderá ser chamado de interativista, permanece
havendo as dificuldades previamente mencionadas;
sobretudo, se substância é um nome sem
significado.

Ética e liberdade

O título do livro de Spinoza é Etbica Ordine


Geométrico Demonstrata. A demonstrata ficou
bem exemplificada, mas o leitor poderá ficar
curioso quanto à ética. Será que a ética encontra
espaço em um sistema de lógica pura, em
uma ordem de modos inevitáveis, em uma natureza
sem propósito? A opinião comum conecta a ética
com o livre-arbítrio e, portanto, com o
indeterminismo e, menos explicitamente, com a
teleologia.

Ainda que negasse que a natureza tenha um


propósito, Spinoza estava disposto a admitir que há
propósito na natureza. Os modos particulares de
atributos do pensamento, chamados seres humanos,
têm propósitos, e o problema da ética poderá ser
visto como evasão ou frustração. Mas a frustração e
a derrota podem ser evitadas, se não houver
liberdade? Mas é claro que há liberdade.
Em primeiro lugar, Deus seria livre, pois na Parte I,
Definição 7, “a coisa dita livre é aquela que existe
somente por necessidade da própria natureza e da
qual a ação é determinada somente por ela mesma;
entretanto, a coisa é necessária, ou antes,
obrigatória, quando é determinada por algo externo
a ela mesma a um método fixo e definido de
existência e ação”. Isso, porém, pouco tem a ver
com ética, pois obviamente nenhum homem, mas
Deus somente, pode gozar tal liberdade. Fica claro,
também, que nenhum homem pode gozar de livre-
arbítrio, pois, se todas as coisas forem determinadas
por meio da lógica somente, mediante um processo
de dedução de definições e axiomas originais, tudo
será logicamente necessário, e as ações de um
homem individual não poderão ser diferentes
do teorema que segue a definição de um triângulo.
A lógica garante a inevitabilidade.

Os expoentes do livre-arbítrio frequentemente


afirmam estar intimamente conscientes de sua
liberdade, e que nada poderia ser mais certo do que
ela. Ainda que esse seja um apelo à experiência e,
portanto, esteja fora dos limites do racionalismo,
Spinoza se esforça para demonstrar que a
consciência de liberdade não implica livre-arbítrio.
Suponha que o pequeno Tom, de 2 anos de
idade, tenha perdido seu sono da tarde. Por volta
das quatro horas, ele se mostra irritadiço, bate os
pés e exige o que quer, na hora que quer. O querido
anjinho pensa que é livre, estando cônscio de que
pode bater os pés e sabendo o que quer a cada
momento sucessivo. Mas qualquer pai sábio
reconhece que, longe de ser livre, seu pequeno EU
tem suas ações e desejos controlados pelo veneno
do cansaço. Um homem sábio tem conhecimento
de que há causas que controlam os desejos tanto de
adultos como de crianças. E o homem ainda mais
sábio reconhece que as próprias ações são
controladas. “Presumo ... que todos os homens
nascem ignorantes das causas das coisas, que todos
têm o desejo de buscar por aquilo que lhes é útil, e
que estão conscientes de tais desejos. Segue daí,
primeiramente, que os homens se julgam livres,
embora estejam cônscios de suas vontades e
desejos e sequer sonhem, em sua ignorância das
causas, com as causas que os tenham disposto a
querer e desejar.”102 Assim, aquilo que é chamado
de consciência de liberdade nada mais é do que
inconsciência de causalidade. Só uma mente
onisciente poderia conhecer a própria
liberdade, pois enquanto houver qualquer
ignorância, será possível que ela acoberte
a verdadeira causa do desejo.

Mesmo que nem Deus nem o homem tenham livre-


arbítrio, e ainda que somente Deus possa ser livre,
Spinoza intitula uma das seções
de Etica\“Da liberdade humana”. Se com todo o
mecanismo do movimento corpóreo e
todo “necessitarianismo” da lógica, parece que o
homem não pode ter propósito ou liberdade de
nenhuma espécie, o sentido dessa liberdade, para
Spinoza, talvez seja o indicado pela seguinte
ilustração. À beira-mar, se alguém se assenta
em um lugar pouco avançado em um píer, verá as
ondas movendo-se na direção da praia. Porém,
quando um pedaço de madeira é lançado a
distância, em vez de ser trazido à praia pelas ondas,
ele simplesmente flutua, subindo e
descendo. Então, a pessoa perceberá que embora as
ondas se movam, a água mesma não move em
direção à praia: ela se move para o alto e para
baixo. Nos laboratórios de física de muitas
faculdades também existem peças de demonstração
que indicam como os movimentos horizontais de
ondas poderão ser causados por partículas que se
movam apenas verticalmente. Assim podemos
imaginar um oceano de mecanismos, com suas
ondas de propósito e liberdade. Há um sentido em
que o sistema de Spinoza permite liberdade. A
visão comum de liberdade é que a vontade seja
não-causada e inexplicável, e, portanto, que haja
igual possibilidade de escolha entre duas ações
mutuamente exclusivas e sob as mesmas condições.
Para Spinoza, liberdade não é a habilidade para
escolher diferentes ações sob as mesmas condições,
mas a capacidade para escolher a mesma ação em
condições variáveis. Por exemplo, se alguém lançar
um grão de trigo para fora da janela, poderá ser que
ele caia sobre terra boa e solta, e talvez
tenha liberdade para crescer. Sem dúvida, isso não
mostra muita liberdade, pois, tivesse o grão caído
na calçada, não teria tido liberdade para crescer;
talvez um pardal o comesse. Diferente do grão de
trigo, o pássaro poderá pousar na calçada, e
não encontrando alimento, voar para procurá-lo em
outro lugar. O pássaro é mais livre do que o grão de
trigo, porque pode viver sob maior variedade de
condições. Igualmente, um homem é mais livre do
que um pássaro. Sob condições de seca ou de
tempestades que destruiriam um pássaro, o homem
com conhecimento poderá se salvar. E se um
número de homens cooperar para a conquista da
natureza, o espectro da liberdade se estende
largamente. Ignorância é escravidão, mas o
conhecimento faz do homem o seu próprio mestre.
Contudo, o que dizer sobre a morte? Uma vez que a
autopreservação seja uma virtude básica, e uma vez
que Spinoza tenha morrido cedo, de
tuberculose, não será a derrota inevitável e a
frustração a nossa sorte comum? Na resposta a essa
questão está o âmago da filosofia de Spinoza e a
motivação do título Ética. Aí será encontrado o
valor da dedução de toda verdade somente por
meio da lógica. De modo preliminar, requerendo
posterior elucidação, se poderia dizer que as coisas
em si mesmas não são boas nem más. Por exemplo:
“a música é boa para aquele que está melancólico,
má para aquele que pranteia, mas para quem é
surdo, ela não será boa nem má”.103 A bondade das
coisas está relacionada à sua utilidade para a
pessoa. “Não saberemos se alguma
coisa é verdadeiramente boa... salvo por meio das
coisas que realmente nos conduzem a tal
entendimento.”104 Consequentemente, se um
homem puder chegar a conhecer coisas tal
como elas realmente são, deduzindo-as da natureza
de Deus, certamente não as considerará más,
horríveis, injustas ou ilegítimas.105 Este princípio
se aplica tanto à morte quanto a outras coisas, mas
alguns dos eventos menores deverão ser explicados
antes.

A frustração resulta dos anseios que não podem ser


satisfeitos. Um bebê, em seu berço, tentará alcançar
a lua e chorará por não poder brincar com a
atraente esfera; um estudante despreparado poderá
desejar que os fatos da história ou da química sejam
conforme suas respostas erradas, no exame; um
paraquedista poderá esperar que a força da
gravidade seja menor, e a resistência do ar, maior.
Todos nós lamentamos o infortúnio e lastimamos
nossas ações estultas. O estudante despreparado
revela tanta imaturidade quanto a do bebê, no
berço; o paraquedista está preso ao medo; e nós
lamentamos e lastimamos por causa de nossa
ignorância. “Aquele que entende corretamente que
todas as coisas ocorrem por necessidade da divina
natureza e vêm a ser em concordância com as
eternas leis e regras da natureza, nada encontrará
que seja merecedor de ódio, derrisão ou desprezo,
nem se entregará à lamentação de qualquer coisa.
Antes, com o maior grau de virtude humana, se
esforçará para fazer o melhor, como diz o ditado, e
regozijar-se com o feito. Podemos acrescentar que
aquele que é mais facilmente tomado de
compaixão e comovido à vista do sofrimento ou
lágrima de outros, frequentemente faz algo de que
depois vem a se arrepender. Isso ocorre, em parte
porque jamais temos certeza de que uma ação
causada por emoção seja boa, e em parte porque
somos facilmente enganados por falsas
lágrimas.”106 “Quanto mais conhecimento de que
as coisas são necessárias for aplicado a coisas
particulares que concebemos com maior distinção e
a princípio, tanto maior será o poder da mente
sobre as emoções, tal como comprova a
experiência. Observamos que a dor surgida da
perda de um bem é mitigada tão logo a pessoa que
perdeu o bem percebe que este não poderia ser, de
modo nenhum, preservado. Assim também,
observamos que ninguém lamenta que um bebê não
consiga falar, andar e raciocinar, ou passe tantos
anos em inconsciência. Entretanto, se a maioria das
pessoas nascesse já desenvolvida, e apenas um
aqui, e outro acolá, nascessem infantes, todos
lamentaríamos esse fato, pois a infância não seria
vista como estado natural e necessário, mas
como uma falta ou delinquência da natureza.”107

Nenhuma pessoa razoável esperará que um teorema


de geometria seja diferente ou lamentará que ele
seja como é. Não é natural, para alguém, odiar
um eclipse da lua ou frustrar-se com sua
ocorrência. Ninguém deveria se preocupar com
algo que ele saiba ser inevitável. A infelicidade é
causada pelas mais tristes e enganosas das
expressões faladas ou escritas: “Tinha de ser”. As
frustrações em relação aos desapontamentos do dia-
a-dia, à tuberculose, a guerras, à própria
morte, vêm em função de desejos impossíveis. Mas
quando um evento é contemplado como algo
impossível, deixamos de desejá-lo, da mesma
maneira como deixamos de ansiar pela lua. O
segredo de uma vida feliz, portanto, reside no
conhecimento. Com o conhecimento, não somente
se desvanece o desejo impossível, mas
desaparece também o medo do inevitável. Nossa
morte, antes vista com aversão, como se fosse a
derrocada de todas as esperanças, será vista, então,
como um teorema necessariamente deduzido da
natureza de Deus, tal como os teoremas
euclidianos são deduzidos de seus axiomas. A
morte será vista como sub specie aetemitatis, como
Spinoza expressou; e o homem viverá uma vida
feliz.

Cabe neste ponto um parágrafo de crítica. A ideia


de que o conhecimento da inevitabilidade afasta a
frustração é bastante engenhosa, e Spinoza tornou-
a ainda mais plausível mediante sua conduta
pessoal. Na verdade, Spinoza não foi a figura mais
trágica da história. Embora tivesse sido expulso de
sua sinagoga, e ainda que os cristãos ressentissem
seus ataques contra a Bíblia, sua residência
na Holanda protestante poupou-o da perseguição
que tinha sido a parte das minorias, na França e na
Espanha. Se ele sofreu ostracismo, foi devido tanto
a um recolhimento voluntário quanto à pressão
social, pois ele poderia ter aceitado uma cadeira
no magistério. Ao mesmo tempo, ainda que tivesse
escapado de muitos infortúnios externos, sua saúde
era precária, e ele contemplava a eminência da
morte. A tuberculose inevitavelmente abreviaria
seus dias, e a inevitabilidade deveria torná-la
racional e suportável. Entretanto, ninguém deveria
concluir da tranquilidade de Spinoza, que o
argumento seja saudável. A conduta pessoal, não
importando quão louvável seja, não é equivalente
de validade lógica. Os exemplos geométricos
também não são suficientes. O fato de não
odiarmos um teorema geométrico não depende de
sua inevitabilidade. Ódio é sentimento
reservado aos homens, e até mesmo, se um teorema
não fosse inevitável, seria difícil imaginar que o
odiássemos. A ilustração de não lastimar uma
criança parece mais próxima do ponto. No entanto,
se infantes fossem inevitável e naturalmente
nascidos para sofrer, até que pudessem andar, ainda
assim não seria tão certo que não nos apiedássemos
deles.

Provavelmente o erro de Spinoza, tal como parece,


não tenha sido o da insistência na inevitabilidade,
mas sua omissão de outro fator. Em tempo de
grandes aflições, o pensamento da inevitabilidade
de uma felicidade final certamente será de imenso
conforto. Mas quem seria confortado por
pensamentos sobre a inevitabilidade da miséria?
Um resultado indeterminado fornece mais conforto
do que a má sorte determinada. Porém, no sistema
de Spinoza, não há espaço para um fim satisfatório
do processo universal. A teleologia é negada. O
mundo prossegue em seu curso, sem ir a nenhum
lugar especial. Sequer há garantia de fim
satisfatório a nenhuma vida individual. Somente
existe garantia para a miséria da morte. Tudo terá
de ser visto como sub specie aeternitatis, e
o individualismo, como uma ilusão. Finalmente, à
parte de tais objeções baseadas em princípios não
spinozistas, Spinoza, não recebeu pleno conforto e
bem-aventurança de sua demonstração, pois não
pôde atingir o próprio ideal de conhecimento. Ele
teve fé no fato de que todas as coisas são deduzidas
mediante a lógica somente. Ora, se são todas as
coisas, então a própria existência e miséria dele
deveriam estar aí incluídas. Entretanto, ele jamais
as deduziu de seus axiomas originais. Ainda que ele
assumisse a tuberculose como uma
necessária consequência do universo, o
conhecimento de que seu caso seria inevitável,
não poderia ser obtido. E, sem o conhecimento,
haveria uma nuvem sobre seu título de bem-
aventurado. O problema subjacente é o do
conhecimento, e, aqui, ele aparece com respeito a
pessoas individuais e a eventos particulares.

Sub specie aeternitatis

O que vimos até aqui deveria ser suficiente para


cobrir os fundamentos da ética de Spinoza.
Contudo, seus comentários sobre a morte levaram-
no a desenvolvimentos posteriores um tanto quanto
inesperados. Ele prosseguiu: “As coisas são
concebidas por nós como atuais, em dois sentidos:
em relação a determinado tempo e a determinado
lugar”, o que é um tipo inferior de
conhecimento, “ou como contida em Deus e a partir
da necessidade da natureza divina. O que quer que
concebamos como verdadeiro e real, nesta segunda
maneira, concebemos sob a forma de
eternidade”.108 “Nossa mente, enquanto conhece a
si mesma, e ao corpo, sob a forma de eternidade,
tem necessariamente um conhecimento de Deus, de
que está em Deus e de que é concebida por meio de
Deus ... Na mesma proporção, portanto, que um
homem é mais forte nesse tipo de
conhecimento, ele será mais plenamente cônscio de
si mesmo e de Deus. Em outras palavras, ele será
mais perfeito e abençoado.”109

Na citação anterior, formas temporais de


conhecimento foram subordinadas, e fomos
instados a assumir a perspectiva da eternidade, pela
qual nossa mente conhece que está em Deus.
Spinoza disse: “Agora tenho terminado de tratar
de todas as preocupações relativas a esta vida
presente... Portanto, é tempo de passar a tratar das
coisas pertencentes à duração da mente sem relação
com o corpo.”110 “A mente humana não poderá ser
absolutamente destruída com o corpo, mas dela
permanecerá aquilo que é eterno”.111 O que essas
frases significavam, para Spinoza? Teria ele
enganado a si mesmo, por meio da ambiguidade
das palavras “eternidade” e “Deus”, e,
subconscientemente, preservado algo da salvação
tradicional? Se este for o caso, obviamente esta
parte da teoria de Spinoza teria de ser tomada à
conta de rude inconsistência. Ou, entretanto, teria
Spinoza tomado tais termos tradicionais para
mascarar seu ateísmo e enganar o público? Por
que alguém diria Deus quando a intenção seria
dizer mundoi Por que diria eternidade quando a
intenção seria dizer lógica?.Bem, uma vez que
axiomas, implicação e teoremas são perenes, talvez
seja permitido chamá-los de eternos.
Embora alguns historiadores lhe atribuam a
doutrina da imortalidade, o próprio Spinoza parece
que evitou a palavra, contentando-se com o
termo eternidade. Para todos os efeitos, alguém
deve mostrar um autor o mais consistente possível,
e não inventar discrepâncias onde elas não existem.

Podemos admitir, sem sombra de dúvida, que


Spinoza não teve em mente qualquer coisa similar à
imortalidade platônica da alma individual, muito
menos à ressurreição cristã do corpo. Agostinho
bem colocou a memória como o teste da
personalidade individual, e Leibniz considerou a
memória como sendo essencial para a imortalidade.
Mas Spinoza diz: “A mente somente poderá
imaginar algo ou lembrar-se do passado, enquanto
perdurar o corpo”.112 “Não obstante”,
ele prossegue, “em Deus, há necessariamente uma
ideia que expressa a essência deste ou daquele
corpo humano sob a forma de eternidade. Prova:
Deus é a causa, não apenas da existência deste ou
daquele corpo humano, mas também de sua
essência. Tal essência, portanto, será
necessariamente concebida mediante a própria
essência de Deus. Sendo assim, ela é concebida por
certa necessidade eterna, e tal conceito
necessariamente terá de existir em Deus.
Proposição XXIII: a mente humana não poderá ser
absolutamente destruída com o corpo, mas
dela permanece algo que é eterno... Observe: Esta
ideia, que expressa a essência do corpo sob a forma
de eternidade, é, como já dissemos, certo modo de
pensamento que pertence à essência da mente, e é
necessariamente eterna. Ainda assim, não é
possível que nos lembremos de uma existência
anterior ao nosso corpo, pois este não porta nenhum
traço de tal existência; nem poderá a eternidade
ser definida em termos de tempo ou ter qualquer
relação com o tempo. Porém, não obstante,
sentimos e sabemos que somos eternos. A mente
não sente menos as coisas concebidas no
entendimento do que as coisas da memória. Os
olhos da mente, por meio dos quais vemos e
observamos coisas, são nossas provas.
Assim, embora não nos lembremos de uma
existência anterior ao corpo, ainda assim sentimos
que nossa mente, enquanto envolvendo a essência
do corpo e sob a forma de eternidade, é eterna, e
que, portanto, sua existência não poderá
ser definida em termos de tempo, ou explicada em
termos de duração. Assim, poderemos dizer apenas
que nossa mente perdura, e que sua existência
somente poderá ser definida por um tempo
definido, enquanto envolver a presente existência
do corpo. Tudo o que podemos é determinar a
existência de coisas no tempo e concebê-las sob a
categoria de duração”.113

Quanto à dependência racionalista da dedução, o


exemplo mais perfeito, do ser geométrico, deve ser
o guia para a compreensão dessa seção. A ideia do
corpo humano, que Espinosa já havia equiparado à
mente humana, está eternamente em Deus, como o
teorema de Pitágoras está eternamente em seu
axioma. Dizer que este ou aquele está em Deus
significa que a coisa em questão está implícita na
definição original e axiomas. Quando alguém
conhece a dedução, o algo é visto sob a forma de
eternidade. Daí, Spinoza diz que Deus é a causa da
essência do corpo, bem como de sua existência. E
uma vez que a implicação é eterna, algo da mente
ou da ideia do corpo permanece depois que o corpo
encontra-se temporariamente destruído. Por
consequência, a mente é eterna.

Essa interpretação consistente de Spinoza, despida


de conotações religiosas errôneas, mostra que a
eternidade da mente não é mais imortalidade, do
que preexistência. Ou, antes, nenhum desses dois
termos é apropriado, pois, se
algo continua depois da decadência do corpo,
eternidade terá sido confundida com tempo infinito.
Porém, como Spinoza disse na última citação,
eternidade não tem relação com tempo. Certamente
não deveremos falar de imortalidade, ou
de preexistência, no teorema de Pitágoras, mesmo
que ele seja ocasionalmente chamado de eterno.
Além disso, sugerindo que o corpo seja destruído e
que a mente sobreviva, Spinoza parece quebrar o
paralelismo que ele tão bem construiu. A única
eternidade que o pensamento de Spinoza permite é
o de uma eternidade de que tudo
igualmente participa. Não somente a mente
humana, mas também o corpo humano,
cães, estrelas e qualquer teorema existem
necessária e eternamente em Deus. Talvez, porém,
a real dificuldade com o sistema de Spinoza não
seja tanto a justificação de uma existência eterna
para as coisas temporais, quanto a dedução de
coisas temporais em primeiro lugar. Como axiomas
abstratos, gerais e universais poderiam implicar que
Spinoza, um indivíduo, nasceu em 1632, na cidade
de Amsterdã? O Spinoza do sistema, ou talvez, o
homem em geral, é tão eterno como qualquer
teorema de geometria. Mas teria havido um
indivíduo espaço-temporal, que morreu
de tuberculose em 21 de fevereiro de 1677, às 3
horas da tarde? Seria possível manter que pessoas
individuais e eventos históricos sejam deduzidos do
argumento ontológico? A sina do racionalismo
depende de uma resposta.

G. W. LEIBNIZ

Spinoza viveu a vida de um cidadão comum,


polindo lentes para se manter, e trabalhando em sua
filosofia conforme o tempo lhe permitia. Leibniz
(1646-1716) fazia de tudo. Recebeu seu grau
acadêmico em direito; serviu como diplomata para
o Arcebispo-Eleitor de Mainz, e, mais tarde, serviu
ao Duque de Brunswick; correspondeu com os
principais cientistas e filósofos da Europa,
procedendo investigações em quase todos os
assuntos conhecidos. Independentemente de New-
ton, ele inventou o cálculo; tentou reconciliar os
romanos e os protestantes; contudo, morreu na
obscuridade. Uma vida calma permitiu a Spinoza
que escrevesse sistematicamente e, mesmo que seu
pensamento seja difícil, o leitor pode segui-lo passo
a passo. Leibniz, entretanto, distraído por
numerosos interesses, jamais pôde expor seu
pensamento de forma sistemática, com exceção de
um compêndio relativamente breve,
chamado Monadologia. Ele discutiu diferentes
tópicos em ensaios, cartas e pequenas monografias.
O resultado é que se torna difícil juntar tudo isso.
Para o presente propósito, discutiremos apenas
alguns itens.

Leibniz foi um racionalista: teoricamente, todo


conhecimento é baseado em lógica, e em uma
passagem ele se jacta de haver demonstrado, “não
por meio de experimento, pois esse nada
demonstra, mas por demonstrações
geométricas”, que a terra se move e que o vácuo
não existe. Não obstante, seu racionalismo é bem
diferente do de Spinoza, tanto na forma quanto no
conteúdo. Spinoza, apegado ao seu ordine
geométrico, talvez tenha feito, inconsciente ou
relutantemente, pouco uso da experiência, pois,
afinal, a teoria permitia que a observação sugerisse
teoremas que precisariam, mais tarde, serem
provados. Descartes havia
experimentado deliberadamente; mas Leibniz, com
intenso interesse em problemas
científicos específicos, dedicou pouco tempo à
dedução formal. Ocupou-se com a invenção de
máquinas de somar, bombas de água e
microscópios. Seus trabalhos científicos, religiosos
e históricos não apenas detraíam a forma
geométrica dos seus escritos, como também seu
conteúdo era diferente dos escritos de Spinoza e
Descartes, no sentido de que prestava mais atenção
à derivação de verdades contingentes e temporais,
da verdade eterna e necessária. Experimentos com
inércia o levaram a substituir uma lei da
conservação do momentum, pela quantidade
constante do movimento, de Descartes. Com a
noção de força envolvida, ele rejeitou o
conceito cartesiano de matéria como extensão,
reinterpretando a natureza dos corpos físicos, e
desenvolvendo uma metafísica sumarizada em
sua Monadologia, que não era nem cartesiana nem
spinozista.

As mônadas

Conforme Descartes, o mundo criado consistiria de


um grande número de almas pensantes não-
extensas, e de um grande número de corpos
extensos, não-pensantes. Ainda que somente Deus
devesse ser considerado como substância,
no sentido estrito, Descartes estava disposto a
chamar almas e corpos de substância. Entretanto,
Spinoza reduziu pensamento e extensão à posição
de atributos de uma única substância. Leibniz
discordava de ambas as perspectivas. Primeiro,
em oposição a Spinoza, Leibniz cria que a
existência de muitas substâncias seria conclusão do
fato óbvio de que há compostos, no mundo. Quem
poderia negar que as coisas da experiência diária
sejam compostas de partes? Tais partes
poderão ainda ser compostas de partes menores,
mas, no final, cada composto ou agregado terá de
ser uma pluralidade de substâncias simples.
Entretanto, em segundo lugar, se Leibniz tem razão
ao afirmar que muitas substâncias poderiam ser
facilmente especificadas, sua explanação sobre a
natureza desses elementos, e sua rejeição do tipo
cartesiano de substâncias corporais extensas, são
questões bem mais complicadas. A visão de
Spinoza sobre a substância havia sido controlada
pela ideia de uma completa independência. Uma
vez que apenas um único ser poderia ter
independência completa, Spinoza admitiu somente
uma substância. Para Leibniz, entretanto,
independência, pelo menos, independência
completa, não seria essencial para o conceito de
substância. Na verdade, ele afirmou que os
elementos seriam independentes uns dos outros,
sem negar que tivessem sido criados e fossem
dependentes de Deus. A característica essencial da
substância, na opinião de Leibniz, é unidade e
simplicidade. Isso o levou, como veremos, a negar
que corpos fossem substâncias.

Aos elementos a partir dos quais o mundo foi


formado, Leibniz chamou de mônadas, um termo
grego para unidade. Uma vez que seriam simples
e unitárias, tais substâncias não poderiam ter partes.
Portanto, não poderiam ter extensão, e
consequentemente, não poderiam ser divididas. Isso
quer dizer que os elementos fundamentais do
mundo não poderiam ser corpóreos, pois todos os
corpos são tanto extensos quanto compostos. O fato
de que os corpos são extensos é óbvio, pois eles
têm partes, têm base e topo, direita e esquerda.
Do mesmo modo, é certo que são compostos.
Consequentemente, os corpos não são substâncias.
Além disso, uma vez que extensão é infinitamente
divisível, não há algo como um menor dos átomos.
Portanto, a substância não poderá ter tamanho, nem
forma. Assim, também, porque são unidades, os
elementos não poderão ser produzidos nem
destruídos por meios naturais. Certamente
aquilo que não tem partes não poderá ser separado
em partes. As mônadas, portanto, podem principiar
e findar somente de uma vez; isto é, somente
podem iniciar mediante criação e somente podem
findar por meio de aniquilação. Nada mais, senão
compostos, podem começar e findar de modo
gradual.

Embora não tivessem tamanho ou forma, as


mônadas teriam de ter algum tipo de qualidade, ou
nada seriam. E suas qualidades terão de diferir,
pois, caso contrário, as mudanças perceptuais não
poderiam ocorrer. Em um mundo democritiano,
com seu espaço vazio, uma coleção de átomos
poderia ser arranjada de maneira diferente de outra
coleção com o mesmo número de átomos. O
arranjo de um grupo poderia ser percebido contra
um fundo de espaço vazio, e então, distinguido de
outro arranjo percebido da mesma maneira.
Contudo, os racionalistas não admitiam o espaço
vazio. Ora, em umplenum, ou espaço plenamente
cheio, seria impossível perceber diferenças ou
mudanças, se todos os elementos fossem
qualitativamente idênticos. Seria como o arranjo de
moléculas em um copo de água clara, só que maior.
Não importando a maneira como as moléculas
sejam rearranjadas, um estado de coisas seria
indistinguível de outro. Movimentos e reposições
não fariam diferença, pois nenhum projeto
poderia emergir. Portanto, em umplenum, os
elementos terão de ser qualitativamente diferentes.
Na verdade, para o melhor dos mundos possíveis, a
maior diferença possível deveria ser identificada.
Isto é, cada mônada será diferente de cada outra
mônada, e é isso que faz o mundo ser belo.

Beleza consiste de unidade na diversidade; maior


beleza é o máximo de unidade em um máximo de
diversidade. Um simples retrato vívido ou,
mesmo, uma pintura abstrata, poderá ser bela
porque une diversas cores, planos e linhas.
Entretanto, uma tela notável de um cisne comendo
malvaísco em um campo de neve tem grande
unidade, mas falta-lhe diversidade. As pinturas dos
grandes mestres, em comparação com bons
instantâneos vívidos, têm também grande unidade
e diversidade. O mundo, portanto, como o mais
belo de todos os objetos, não contém duas coisas
exatamente iguais. Nenhum par de folhas na
floresta e nenhum par de impressões digitais são
idênticos. E se a impressão do polegar de um
suposto assassino for encontrada na cena de um
crime, um júri racionalista concluirá que o culpado
foi realmente identificado ou individuado. O
homem acusado, no entanto, com uma filosofia
diferente, protestará, dizendo que estava a
quilômetros de distância, na hora do assassinato, e
que, assim, a impressão digital deveria pertencer ao
seu sósia. Neste ponto, os problemas antigos e
medievais referentes à individualização tomam seu
curso moderno. Na discussão sobre o
conceitualismo de Abelardo, foram adiantadas
considerações contra a existência de uma
qualidade comum. Leibniz teria concordado, pelo
menos, com a conclusão. Assim, a criminologia
parece estranhamente ligada à estética e à
epistemologia.

Cada mônada, então, tem a própria qualidade. E


mais, Leibniz admitidamente assumia que cada
mônada estivesse sujeita a continuada mudança.
Uma vez que nenhuma mônada poderá afetar outra,
a mudança terá de ser atribuída a um princípio
interno. Então, também, as mudanças implicam
variedade, e ainda assim, a mônada é simples e
unitária. Que tipo de qualidade e de
mudança satisfaria tais condições? A resposta não é
difícil de ser suposta: o pensamento, ou melhor, a
percepção, pois não se trata precisamente do
pensamento cartesiano. Em conformidade com o
princípio da máxima variedade, e não sem uma
base na experiência, Leibniz afirma uma infinita e
contínua gradação de percepção. Há percepções
vívidas, como a de trovões ou de marulho; há
processos racionais claros, distintos e lógicos; mas
há também percepções vagas, como
sonhos, desvanecendo para aquilo que alguns
costumam chamar de inconsciência. Tais pequenas
percepções não haviam sido reconhecidas por
Descartes. Além do princípio de máxima variedade,
implicando infinita gradação, outra razão para
afirmar a percepção inconsciente está relacionada
ao paradoxo de Zenão, o eleata. Argumentando
contra o atomismo, Zenão inferiu que, se uma onda
do mar, chocando contra as rochas, fosse composta
de átomos de borrifos, o marulho do oceano teria
de ser composto de átomos de rumor. Entretanto,
uma vez que um átomo de borrifo não causa
percepção de som, o rumor não poderá ser
explicado em termos de atomismo. Leibniz não
somente rejeita o atomismo, como fez Zenão, mas,
diferente dele, afirma a existência de percepções
infinitésimas. Devido a haver restringido a atenção
às percepções maiores, a que chamamos de
pensamento consciente, Descartes chegou à
conclusão errônea de que os animais não teriam
sensação. Para Leibniz, pedras e torrões de terra
seriam compostos de substâncias perceptivas. Eles
não teriam os mais altos graus de percepções
característicos dos seres humanos. Por tal razão,
Leibniz duvidava se os
termos alma e espíritoseriam estritamente
aplicáveis. Cada substância seria uma mônada e
cada mônada perceberia.

A proposta de que os elementos básicos do mundo


são mentes ou almas é algo completamente oposto
a toda forma de materialismo. Entre o tempo
dos epicureus e o dos racionalistas, houve poucos
defensores do materialismo. Surgiu, então, um
filósofo inglês, Thomas Hobbes, o primeiro de
vários pensadores modernos a defender tal teoria.
Os representantes do atomismo ou negavam
a existência da consciência, tal como no
behaviorismo contemporâneo, ou,
mais frequentemente, tentavam explicar o
pensamento em termos de um
complicado epifenômeno físico-químico. Leibniz
acreditava que tal explicação fosse impossível.
Uma vez que o cérebro é um corpo físico, podemos
imaginar a construção de um, do tamanho de um
grande edifício. Andando pelos seus salões e
corredores, e examinando salas e armários,
poderíamos observar a máquina em movimento;
poderíamos ver engrenagens e sistema de
lubrificação. Porém, em todo esse movimento
mecânico, não poderíamos constatar
nenhuma percepção. O materialismo, portanto, é
falho.

A teoria de Leibniz terá de ser contrastada também


com as perspectivas de Descartes e de Spinoza,
mesmo que estes não fossem materialistas. Para
Descartes, o pensamento e o mecanicismo não
eram tão díspares, a ponto de ser
necessário atribuir-lhes duas substâncias diferentes,
ainda que lhes permitisse interação. Spinoza,
conquanto admitisse apenas uma substância, tornou
pensamento e movimento tão independentes um do
outro que impossibilitou a interação. Com respeito
à interação e a inviolabilidade da lei mecânica,
Leibniz concordou com Spinoza. Ninguém poderia
afirmar mais enfaticamente que a mente
seria independente do mecanicismo, e que o
movimento não poderia, de forma nenhuma,
produzir ou explicar o pensamento. Sua construção
geral, porém, e em particular, sua análise do
conceito de corpo e substância, é diferente.
“Aquele que meditar sobre a natureza da
substância... descobrirá que a totalidade da natureza
dos corpos não é exaurida em sua extensão, isto é,
seu tamanho, figura e movimento... antes,
descobrirá alguma coisa que corresponda à alma.
Será possível demonstrar, até mesmo, que as ideias
de tamanho, figura e movimento, não são tão
distintivas como se imagina, e que elas se postam
como coisas imaginárias relativas à nossa
percepção, assim como as ideias de cor, calor e
outras qualidades similares, com respeito às quais
poderemos duvidar de que elas realmente
sejam encontradas na natureza, fora de nós
mesmos. Essa é a razão pela qual as
ultimas qualidades não poderiam constituir
substância.”114 Em uma carta a Arnold,
Leibniz também diz: “Poderá ser surpreendente,
talvez, que eu negue a ação de uma
substância corpórea sobre outra, quando isso parece
tão evidente. No entanto, além do fato de outros já
terem feito isso, temos de considerar também que
se trata mais de um jogo de imaginação do que de
uma concepção distinta. Se o corpo for uma
substância e não um simples fenômeno, tal como
um arco-íris, nem for um ser arranjado de maneira
acidental, ou por meio de acumulação, tal como um
monte de pedras, sua essência não poderia consistir
em extensão. Necessariamente, teremos de
conceber algo, chamado de forma substancial, que,
de alguma maneira, corresponda à alma”.

Em outros lugares, ele argumentou a partir da


inércia, tal como já aludido de maneira breve. Se a
essência do corpo, ele discute, consistir em
extensão, se não houver mais corpo do que a
geometria ensina mais a noção de mudança,
então, quando um pequeno corpo rola sobre um
corpo bastante grande, os dois continuariam
juntamente em movimento, com velocidade não
diminuída, pois a extensão pura não poderia
oferecer nenhuma resistência. O resultado, diz
Leibniz, ainda que racionalista, é inteiramente
irreconciliável com os
experimentos. Consequentemente, há algo na
matéria que vai além daquilo que é
puramente geométrico, e além, até mesmo, da
extensão e do movimento. Esse algo é
substância ou força. Em vários lugares, por
exemplo, em uma carta a certo Wagner,
Leibniz identificou essa força como um princípio
vital, isto é, um princípio de vida, dotado de
faculdade ou percepção, o que, em termos brutos, é
sua alma. Matéria ou corpo, entretanto, com seu
atributo de extensão, não é uma substância; é
uma pluralidade de substâncias. Corpos são
multidões. A substância é uma unidade. Dessa
maneira, Leibniz chegou à sua teoria das mônadas.

Teleologia e mecanicismo

Como o universo é composto de almas, ele pode ser


explicado teleologicamente. Não apenas as almas
humanas têm propósito, como até Spinoza admitia,
mas Deus também age propositadamente em sua
criação. Algumas páginas atrás, os três racionalistas
foram comparados com respeito a suas perspectivas
sobre a relação entre Deus e o mundo, tendo sido
explicado que, para Leibniz, Deus escolhe este
mundo porque seu arranjo é o melhor. De fato, nós
poderemos acolher opiniões errôneas quanto a
quais sejam os propósitos de Deus, mas, conquanto
Descartes tenha negado a possibilidade do
conhecimento das causas finais na natureza, o erro
a que Leibniz se refere é principalmente com
respeito à incompletude. Nós temos a tendência de
aceitar uma parte do propósito de Deus à guisa da
totalidade. Spinoza, por exemplo, ridiculariza
o cristianismo quanto à crença de que Deus fez o
mundo por causa do homem. Leibniz replica que
seria uma grande estultícia pensar que Deus teria
feito o mundo apenas por causa do homem, ainda
que seja verdadeiro que o tenha feito inteiramente
para o homem, e que nada há no universo que não
nos afete. Não apenas podemos ter um
conhecimento geral dos propósitos de Deus, mas,
até mesmo nos, será possível e útil ter tal
conhecimento de propósito. Este conhecimento é
mais fácil de ser obtido do que um conhecimento
de causalidade mecânica. A lei da refração da luz,
Leibniz afirma,115 foi descoberta por meio
do conhecimento de causas finais. E o relato
fornecido por dois homens, Snellius e Pierre de
Fermat, fazendo uso da teleologia, é bem mais
satisfatório do que o de Descartes, que a desprezou.

Não obstante, Leibniz, diferente de Descartes, não


concluiu que as almas e suas teleologias violassem
as leis da mecânica. A esse respeito, ele se
aproxima mais da posição de Spinoza. Embora
“todas as coisas ocorram nas almas, tal como se
elas não tivessem corpos”, ainda assim, “todas as
coisas ocorrem nos corpos, tal como se eles não
tivessem alma”.116 “O físico poderá explicar
seus experimentos, ora usando experiências mais
simples, já elaboradas, ora empregando
demonstrações geométricas e mecânicas, sem
nenhuma necessidade de considerações gerais que
pertençam a outras esferas. E, se empregar
a cooperação de Deus, ou talvez, de alguma alma
ou força animada, ou qualquer coisa mais, de
natureza similar, ele terá saído de seu caminho,
tanto quanto o homem que, enfrentando uma
importante questão prática, entra em
profunda discussão quanto à natureza e ao destino
de nossa liberdade.”117 Repetidamente, Leibniz
afirma, segundo as leis da mecânica, que jamais são
violadas, no movimento natural, que cada
movimento tem origem em outro movimento. A
mecânica é contada não apenas em relação aos
corpos comumente chamados de inanimados, mas
Leibniz também não hesita em designá-la para os
corpos de plantas, animais e seres humanos,
considerando a todos como autômatos.

Contudo, se o ser humano for autômato, qual será a


relação entre movimento e percepção, mente e
matéria, mecanicismo e teleologia? Não poderá ser
de interação, pois uma mônada não poderá ser
afetada por nada externo, e um corpo
somente poderá ser afetado mecanicamente. Não
poderá ser também de paralelismo spinozista, pois
cada mônada é uma substância. Porém, poderá ser
um tipo diferente de paralelismo, embora Leibniz
tivesse outro nome para ele.

Dessa maneira, o problema envolvido é mais do


que a questão de corpo e mente, conforme
imaginava Descartes. Antes, o problema da relação
de mônada com mônada é que teria de ser
considerado. Cada corpo, para Leibniz, é
uma coleção de mônadas; não uma substância, mas
um agregado de substâncias, um exército, um
rebanho, ou um lago repleto de peixes. A ilustração
do lago de peixes ocorre várias vezes. Se
estivéssemos navegando em um lago,
poderíamos ver algo como um tronco
semissubmerso, flutuando em determinada
direção. Aproximando-nos dele, descobriríamos
não se tratar de um tronco, mas de um cardume de
peixes. Semelhantemente, quando vemos uma
pedra, um monte de terra, uma cadeira, ou qualquer
coisa, tais nos parecem inanimados por causa da
obscuridade de nossa percepção sensível.
Aproximando-nos deles por meio da razão,
entendemos que são coisas compostas de um
número infinito de mônadas vivas. O problema que
Leibniz enfrenta, portanto, não é somente o da
relação entre corpo e mente, mas o da relação entre
cada mônada com outra.

A mônada dominante no corpo humano, que é a


mente, ou o corpo de uma pessoa, poderá, em certo
sentido, ser superior a outras que estejam
agrupadas ao seu redor. A sua relação com as
demais, o corpo, deverá ser explicada com base nos
princípios gerais que se aplicam a todas elas. A
aparente interação de alma e corpo não é um
problema menor do que a coerência de outras
mônadas em uma pedra ou cadeira. O nome do
princípio que explica todos os casos, e, portanto,
explica a relação entre todas as mônadas criadas, é
harmonia previamente estabelecida.

Uma ilustração moderna talvez ajude. Suponha que


cada cômodo de um grande edifício contenha um
único músico com seu instrumento e com
sua partitura. Assentado em frente ao microfone,
cada músico começa a tocar, ao comando de um
sinal. Sob tais condições, é evidente que a nota do
tímpano, no porão, não terá eficácia causal no
flautim tocado na sala da cobertura, nem o violino
do átrio afetará o cornetim, no mezanino. Ainda
assim, quando todos os sons forem postos juntos
por meio dos microfones ligados a um receptor
central, transmitidos pelas caixas de som, a
totalidade será uma sinfonia. O fato de as notas de
todos os instrumentos se harmonizarem é coisa que
só poderá ser explicada mediante a hipótese de que
um único compositor tenha escrito todos os
registros. A sinfonia é uma harmonia previamente
estabelecida.
O mesmo ocorre com todas as mônadas que
compõem o universo. Deus escreveu a definição ou
a história da vida de cada uma delas, de maneira
que elas todas operassem em perfeita conjunção
para produzir o mundo que conhecemos. A
definição de Alexandre, o Grande, inclui o
predicado de que ele conquistaria Dario, e de modo
inverso, o predicado do conceito de Dario é o de
que ele seria derrotado por Alexandre. Leibniz dá
Júlio César como exemplo. Os eventos
que conduziram à ditadura de César estavam todos
contidos no conceito de César, e os
correspondentes atos de seus inimigos e amigos
estavam igualmente contidos nos próprios
conceitos. Leibniz não segue, aqui, o modelo
estritamente racionalista, e diz que os opostos de
tais eventos envolveriam contradições lógicas. Este
não seria o único mundo possível, e os predicados
de Alexandre e César não os prende à necessidade,
da mesma maneira como um predicado geométrico
se prende ao seu objeto. Eventos contrários são
sempre logicamente possíveis, pois tais predicados
são ligados a César somente por causa do decreto
do livre-arbítrio de Deus. Assim atribuídos, os
eventos são certos e seus contrários
jamais ocorreriam. Cada mônada, portanto, segue a
partitura e nada mais do que o registro que Deus
escreveu. Consequentemente, é assim que
pensamentos e movimentos se harmonizam, e é
assim que, quando nós apanhamos
uma extremidade de um lápis, a outra a acompanha.
O curso de todas as coisas é o de uma harmonia
previamente estabelecida.

Em virtude de Leibniz não ter sistematizado sua


filosofia em um único volume compreensivo, um
relato de seus pontos de vista tende a ser um tipo
de apêndice ao racionalismo, em que para alguns
problemas especiais, são dadas interessantes
soluções alternativas. Por mais sugestivas que suas
ideias possam ser, e não poderá ser negado que elas
sejam excepcionalmente brilhantes, o racionalismo,
como sistema, não recebeu grande avanço.
Deveríamos dizer ainda que a atenção de Leibniz a
verdades contingentes — os detalhes da física e
os eventos da história — sublinharam a dificuldade
de deduzir eventos individuais, do ser de Deus.
Como isso não é matéria de menor importância,
não é de surpreender que o racionalismo tenha
caído em desprezo e que o século 18 tenha tentado
um novo método.
8 - O EMPIRISMO BRITÂNICO
Oracionalismo, a teoria de que todo conhecimento
é baseado somente na lógica, deve algo à ciência da
Renascença. Foi o ideal matemático de Galileu que
inspirou Descartes e Spinoza. O lado empírico, ou
experimental, da ciência, no entanto, provou ser
embaraçoso para o racionalismo. E muito grande o
abismo que separa os axiomas dos filósofos, das
conclusões particulares da ciência. Assim, alguém
poderia esperar que uma falha em justificar a
física, com base somente na lógica, fosse seguida
de uma tentativa de estabelecer a matemática por
meio de métodos da física experimental. As
declarações deveriam, sem dúvida, ser feitas de
modo mais geral. A física experimental é uma
tarefa bastante complicada, e um cientista tem de se
aproximar dela com uma boa quantidade de
experiência anterior. Ele tem de ter não apenas uma
boa quantidade de educação formal, como também,
na educação formal e ainda mais cedo na vida, tem
de ter a experiência e as sensações comuns da
humanidade. Trigo e joio, cães e pássaros, Sol e
estrelas terão de ser vistos como objetos
comuns antes que alguém possa estudar botânica,
zoologia ou astronomia. O futuro cientista terá de
aprender a fazer contas antes que possa inventar
cálculos. Mas esses pré-requisitos comuns ao
estudo científico são matérias somente
da experiência? Uma resposta afirmativa indica a
teoria do empirismo.

Embora tenha dominado o continente, durante o


século 17, o racionalismo jamais conquistou as
Ilhas Britânicas. Do tempo de Roger Bacon em
diante, a filosofia, na Grã-Bretanha, tem sido
principalmente empírica. Thomas Hobbes, um
contemporâneo de Descartes, minimizou o
racionalismo, e defendeu o materialismo. E logo
antes do começo do século 18, o empirismo
recebeu poderoso suporte do surpreendente sucesso
de Isaac Newton. A teoria da gravidade,
que combinou e completou a obra de Galileu e
Kepler, com toda a matemática envolvida, dependia
inteiramente, segundo o próprio Newton, de
acurada experimentação. Apenas quatro anos
depois (1690), John Locke publicou seu Ensaio
Acerca do Entendimento Humano. Este e outros
trabalhos do Bispo Berkeley, e de David Hume,
tornaram o século 18, o século do empirismo.

Ideias inatas

Quando decidiu atacar o racionalismo, Locke


(1632-1704) não começou, tal como o relato
anterior parece sugerir, com uma tentativa de
demonstrar a invalidade do argumento ontológico.
Nem começou enfatizando a falha da dedução da
lei menor da física e dos eventos particulares da
história, a partir do ser de Deus. Em vez de
concentrar a atenção nesses fatores óbvios e
básicos, Locke escolheu um ponto que havia tido
pouca menção nas exposições correntes,
que alguém, em princípio, poderia perguntar se,
afinal, seria realmente essencial ao racionalismo,
ainda que tivesse sido pressuposto durante todo o
tempo. O ponto diz respeito às ideias inatas.
Descartes, na verdade, usou bem pouco o
termo inato, e Spinoza, menos ainda. Porém, se o
conhecimento não é recebido pelos sentidos, a
mente, no nascimento, deverá possuir algo à guisa
de equipamento intelectual - pelo menos, os
conceitos de lógica. De fato, uma vez que os
teoremas são deduzidos de axiomas originais, há
um sentido em que todas as ideias são inatas.
Platão, ao próprio modo, teria concordado.
Entretanto, vários intuicionistas, alguns dos quais
Locke evidentemente tinha em mente, por causa de
seus pontos de vista diferentes, limitaram o alcance
das ideias inatas a poucos princípios básicos,
incluindo com as leis da lógica, os conceitos de
número, de Deus e das distinções morais
elementares. Contudo, qualquer que fosse a
extensão desse mundo ideal, uma teoria em que o
conhecimento não seja totalmente baseado na
experiência exigirá algumas ideias inatas, assim
como uma teoria que baseie o conhecimento
somente na experiência, não poderá
admitir nenhuma. Portanto, a introdução de Locke
ao empirismo, Livro I de seu Ensaio, tenta uma
refutação.

O fato alegado, de que todos os homens, sem


exceção, têm certas ideias, é usado, algumas vezes,
como evidência para provar que tais ideias sejam
inatas. Tal como é dito, todas as pessoas têm uma
ideia de Deus, de número, de moralidade, de
contradições lógicas. A isso, Locke responde que,
mesmo o fato de as ideias estarem universalmente
presentes, não seria prova de que elas são inatas.
Elas poderiam ter sido derivadas, por todos os
homens, dos fatores comuns da experiência. Por
exemplo, as montanhas do Tibet e a selva
amazônica são geograficamente bastante diferentes
para explicar as diferenças nas ideias agro-
econômicas de suas respectivas populações.
Contudo, as condições físicas de movimento e a
impossibilidade de um corpo ser outro são as
mesmas em todo o mundo. As ideias baseadas em
condições idênticas poderiam ser universais,
sem que fossem inatas. Além disso, Locke insistiu,
como matéria de fato, nenhuma dessas ideias é
universalmente aceita. Não há uma ideia de
moralidade que seja universalmente aceita. Locke
julgava ser fácil demonstrar isso por meio de
uma pesquisa de diversas culturas. Os gregos
achavam certo matar crianças e os esquimós, matar
os avós. Há canibais e há vegetarianos. Quer Locke
lide, quer não, de maneira justa com a simples
distinção entre certo e errado, pois todas as culturas
fazem alguma distinção, até certo ponto ele não
teve dificuldade para demonstrar as aplicações
contraditórias.

Locke tinha outros argumentos, baseados em ideias


especulativas e em ideias morais. Ele achava que o
termo inato seria ambíguo. Se inato ou
congênito refere-se ao nascimento físico, então,
obviamente as leis da lógica não seriam inatas, pois
os imbecis jamais as aprendem, e as crianças
normais levam alguns anos de experiência antes
que possam assenti-las. Se, entretanto, inato refere-
se figurativamente ao nascimento da razão, tal
nascimento poderá somente designar a aceitação ou
assentimento que é dado quando as ideias são
entendidas. Essa interpretação de inatismo é
duplamente impossível. Primeiro, ela implicaria
que todas as ideias entendidas e aceitas, seriam
inatas. Locke não podia crer que qualquer um
pudesse admitir milhões de ideias inatas. Segundo,
o entendimento e a aceitação de tais ideias são, eles
próprios, resultados do aprendizado por meio da
experiência. Haveria outro sentido possível para o
termo inato, a saber, “provado pela lógica
somente”. Nesse sentido, entretanto, o mais difícil
teorema de geometria seria uma ideia inata - uma
conclusão ridícula.

Estes são alguns dos argumentos constantes no


primeiro Livro do Ensaio, de Locke. Talvez sejam
falaciosos. Leibniz os leu e achou que teriam sido
baseados em um desentendimento do racionalismo
— tal como parece ter sido o caso - e procedeu a
resposta sob o título: Novos Ensaios Acerca do
Entendimento Humano. No entanto, o valor do
empirismo não deve ser relacionado, de modo
direto à introdução de Locke. A teoria construtiva é
que conta. Se Locke tivesse demonstrado, com
detalhes, como todas as ideias, incluindo a mais
abstrata e especulativa, seriam derivadas da
experiência comum; se ele tivesse evitado
o ceticismo e tornado o conhecimento possível para
uma mente desprovida de ideias prévias; se, em
outras palavras, ele pudesse ter justificado o
empirismo, então, os menores pontos sobre as
ideias inatas teriam sido descartados.

Ideias simples

O empirismo é a teoria de que todo conhecimento é


baseado na experiência somente. “Todo homem
está cônscio de que pensa”118 e os objetos em que
pensa são as ideias. O termo ideia é aquilo que
“serve melhor para significar o que quer que seja o
objeto do entendimento, quando um homem pensa
[portanto, Locke o usou] para expressar o que ele
quer dizer por fantasma, movimento, espécie ou
qualquer coisa que a mente possa empregar no ato
de pensar”.119 Exemplos de ideias são: brancura,
dificuldade, movimento, elefante,
exército, bebedeira. “Suponhamos que a mente
seja, como dizemos, um papel em branco, vazio de
caracteres, sem nenhuma ideia: como teria ocorrido
o vasto acúmulo de operosa e ilimitada genialidade
que o homem desenhou nele com quase
infinita variedade? Teria ele todo o material da
razão e do conhecimento? A isto, respondo com
uma palavra: experiência. Todo nosso
conhecimento é construído, e, em última instância,
é derivado dela.”120 O empirismo, portanto, é a
teoria de que todo conhecimento é baseado na
experiência somente.

Ora, há dois tipos de experiência. Primeiro, há as


sensações, por meio das quais alguém recebe as
ideias de amarelo, quente, frio, macio, duro,
amargo, doce e tudo mais que chamamos de
qualidades sensíveis. Segundo, a mente, embora
não tenha ideias inatas e seja puramente receptiva
nas sensações, opera sobre as ideias sensoriais que
recebe. Podemos perceber essas operações
por meio da introspecção, sendo, assim, equipados
com um segundo conjunto de ideias, chamadas
ideias de reflexão, tais como percepções,
pensamentos, dúvidas, crenças, raciocínio,
conhecimento, vontade e todas as diferentes ações
de nossas mentes. Além dessas duas fontes de
ideias: sensação e reflexão — não há outra. Nem a
mente poderá inventar uma nova ideia simples.
Uma pessoa cega de nascimento não poderá ter
ideia de cor, nem um homem nascido surdo,
ter ideia de som. Suponha que eu lhe peça que
imagine o gosto de búfalo assado ou de cascavel
frita. Búfalo, é claro, tem gosto de carne, mas não
de carne de boi, de ovelha ou de porco. Cascavel
frita poderá parecer com pescoço de frango,
mas isso daria uma ideia do seu gosto?
Obviamente, alguém que jamais
tivesse experimentado tais sabores não poderia
imaginar ou inventar a sensação. Todas as ideias
vêm da experiência, e até mesmo, o mais complexo
conhecimento, como a teoria da gravidade, ou o
governo divino moral da raça humana, terá de ser
derivado dessas duas classes de ideias simples, e de
nada mais. Se a música de Beethoven e Bach tem
como elementos apenas uma centena de notas, por
que pensar que seria impossível construir física e
teologia a partir de ideias simples? Pois, embora
sensação e reflexão sejam as únicas fontes de
ideias, as ideias são numerosas. As cores, com seus
diversos graus ou nuanças, e os odores com
suas misturas de cheiros, são, cada qual, uma ideia
distinta. Por causa de seu grande número, não lhes
atribuímos nomes, pois, embora apliquemos o
nome doce para o odor de uma rosa e de uma
violeta, as ideias são certamente distintas.
Solidez, repouso, movimento, prazer e dor,
unidade, existência, e até mesmo, espaço e trevas,
são todas elas ideias simples da sensação, ainda que
algumas delas, diferentemente de cores e cheiros,
sejam recebidas mais por meio de um sentido do
que de outro. Assim, as unidades elementares do
conhecimento existem em número suficiente.

Antes de descrever as operações, por meio das


quais a mente constrói todo conhecimento
complexo, a partir de unidades simples, será
necessário observar uma importante distinção entre
dois tipos de ideias sensoriais. O
conhecimento, relaciona-se, é claro, com o mundo
real externo. Uma das dificuldades com
o racionalismo era a suspeição de que a definição
poderia não implicar existência objetiva. O
empirismo trabalha com o pressuposto de que a
experiência, especialmente a sensação, coloca a
mente em contato com a realidade. Porém, porque
o senso comum ingênuo aceita essa noção de
maneira tão disposta, Locke, em vez de enfatizá-la
como ponto de superioridade sobre o racionalismo,
se preocupa com adicionar restrições e reduzir seu
escopo. É verdadeiro e essencial que algumas
ideias da sensação revelem fielmente o mundo
externo. As ideias de solidez, extensão, figura,
movimento ou descanso e número são produzidas
em nossa mente pelas qualidades de extensão,
figura e assim por diante, em nosso corpo físico.
Tais qualidades são expressamente inseparáveis de
um corpo, em qualquer estado que estejam. Em
todas as alterações em que surjam, as
qualidades serão conservadas. Moa um grão de
trigo até a mais fina farinha, e cada partícula, ainda
que tão pequena que seja invisível, reterá as
qualidades mencionadas.

(Parenteticamente, deve-se perguntar, agora: se


todo conhecimento for baseado na experiência,
seria possível a alguém saber quais são as
qualidades de uma partícula invisível?)

Além das qualidades primárias, Locke chama a


atenção para um grande número de qualidades
secundárias. Ninguém deveria pensar, como talvez
seja costumeiro, que todas as ideias sejam imagens
ou semelhanças de algo inerente ao objeto
conhecido. De fato, a maioria das ideias sensoriais
não é semelhante a nada externo, mais do que os
nomes são semelhanças de nossas ideias121
Por exemplo, dizemos que o fogo é quente e
luminoso; a neve, branca e fria; o bom-bocado é
doce. Ainda assim, a mesma chama que, a
distância, produz a ideia de calor e luz, a uma curta
distância poderá produzir uma diferente sensação
de dor. O bom-bocado também poderá infringir,
assim como a neve. Da mesma maneira como
algumas pessoas tenderiam a afirmar que a
qualidade de dor existe, realmente, no objeto
externo, deveriam estar dispostas também
a considerar se haveria razão para supor que
quente, frio e doce seriam, realmente, qualidades
existentes nos corpos. Um corpo invisível poderá
possuir solidez e figura, mas, na ausência da
sensação de dor, esta simplesmente não existe. De
igual modo, impeça os olhos de ver a luz, a língua
de provar o gosto, o nariz de sentir cheiros, e todas
as cores, paladares e odores cessarão de existir
como sensação. A cor é uma sensação: segue,
portanto, que, se não houver sensação, não haverá
cor. No mundo externo, tais qualidades secundárias
não são mais do que o poder que tais qualidades
tem para produzir em nós as sensações.
Dizemos coloquialmente que um radiador, ou o
Sol, é quente. Mas nem um deles jamais toma um
lenço para secar a transpiração da testa. Falando de
maneira estrita, não eles, mas nós é que somos
quentes. O radiador ou o vapor no interior
do radiador está em movimento — um movimento
tão rápido que produz em nós a sensação de calor.
Similarmente, uma superfície lisa, um tipo de
forma, nos parecerá brilhante; raspem tal
superfície, isto é, mudem sua forma, e ela nos
parecerá opaca. É a forma que realmente existe no
mundo; a cor existe apenas em nossa mente. Da
mesma maneira, a qualidade primária do
movimento do ar produz a sensação de som. Mas
som é uma sensação que existe apenas no ouvido
daquele que percebe. O mundo real, portanto, o
mundo da ciência newtoniana, o mundo do
racionalismo, não poderá ser conhecido. E um
mundo despojado de cor, odor, som e, deve ser dito
ainda, despido de interesse humano: uma
consideração que tem levado alguns filósofos
contemporâneos a parar para ponderação.

Ideias compostas

A formação de ideias complexas a partir das ideias


simples depende de três atividades da mente:
composição, abstração e relação. Alguém
poderia supor, em princípio, que as mais simples
das ideias compostas seriam coisas da experiência
do cotidiano, tal como um livro, uma árvore ou
uma pedra. Essas ideias parecem formadas por
meio da combinação de várias ideias simples, de
cor, solidez, figura e possivelmente odores ou
outras qualidades. Entretanto, Locke crê que haja
exemplos de ideias compostas ainda mais simples.
Um livro e uma pedra requerem a adição de
diversas qualidades, tais como cinza, duro, pesado.
Porém, as ideias compostas mais elementares são
combinações de uma simples ideia repetida certo
número de vezes. A simples ideia de espaço vem
pela visão e pelo tato, pois obviamente vemos e
medimos a distância entre dois corpos. De muitas
observações de tais distâncias, isto é, a partir da
ideia de espaço repetida muitas vezes, construímos
a ideia de um espaço imenso. Igualmente, um
tempo é percebido passar entre duas ideias mentais
sucessivas, e por meio da repetição dessa ideia
simples, nós construímos a ideia de eternidade.
Assim, também, não há ideia mais simples do que a
de unidade. Repetindo essa ideia, chegamos à ideia
de um, dois, três, quatro e assim por diante. De
maneira mais geral, a ideia de infinitude, quer no
espaço, no tempo, ou em número, é obtida
mediante a repetição continuada de uma
medida finita. Porém, como a repetição, na
experiência, jamais atinge um número realmente
infinito, não poderemos chegar a nenhuma ideia de
espaço ou tempo infinito. Os argumentos em que
espaço infinito é um fator têm sido sempre causa de
confusão, porque a própria ideia é impossível.

Espaço e tempo, de fato, poderão ser mais simples


do que outras ideias compostas, mas, tal como
Locke indica, elas têm sido fontes de grande
confusão. Mesmo na demonstração de Locke, será
necessário que alguém considere e tenha a ideia de
dois corpos, uma pedra e um livro, antes que
identifique a distância entre eles. Isso talvez
indique que a ideia de espaço não seja uma simples
ideia ou sensação, mas, antes, uma ideia produzida
por uma atividade posterior, de relação. Assim,
também, quando Locke argumenta que a
repetição da ideia de espaço jamais nos conduz a
uma ideia positiva de infinitude (que segundo
deveria preceder qualquer ideia de finitude), parece
que ele teria de ter tal ideia positiva, ou sequer
poderia saber que a repetição não nos
estaria aproximando dela. Certamente, quando
viajamos, se soubermos que não estamos nos
aproximando de Nova York, teremos de saber o
que é Nova York e que nos afastamos dela. O
enigma do tempo e do espaço continuará sendo
considerado, especialmente, o modo como Kant o
tomou como um marco de sua filosofia.

Ideias abstratas

As ideias de coisas - o livro e a pedra — são


também ideias compostas, produzidas mediante a
combinação de diversas ideias simples que ocorrem
juntamente.

Um livro antigo, por exemplo, é a combinação das


ideias de marrom, do odor de poeira, do couro, e a
tangível sensação de papel ressecado, acrescido
das ideias de tamanho, forma e outras qualidades.
Mas há certa ambiguidade na palavra “livro”, que
aponta para a segunda das três operações mentais, a
saber, a abstração. Já foi dito anteriormente, que a
linguagem não dispõe de nomes suficientes para
cada ideia, mesmo que cada ideia simples tenha o
seu próprio. Se olharmos para a neve, teremos uma
ideia simples de branco; mas, geralmente, quando
usamos o termo branco, não pretendemos nos
referir a uma única sensação. Recebemos a mesma
sensação do giz, do leite, do papel e de
outras nevascas. De todas essas sensações de
branco, abstraímos a qualidade comum de branco,
de maneira que geralmente nossa ideia de branco
não é uma ideia simples, mas abstrata. Isso se torna
ainda mais evidente no caso de livro. Temos muitas
ideias compostas acerca de livros, extensas estantes
delas. Porém, abstraindo suas qualidades comuns, e
descartando suas peculiaridades individuais, isto é,
as circunstâncias de tempo e lugar, tamanho exato
de cada um, e assim em diante, enquadramos para
nós mesmos a ideia abstrata de livro. Essa ideia
abstrata, então, é usada como representação para a
totalidade das ideias compostas de livros. O mesmo
ocorre em relação a todos os exemplos daquilo que
geralmente chamamos de “coisas”.

Há, no entanto, um passo além na abstração, antes


da ideia de livro, ou, desse livro, ser completada. E
uma questão de curiosidade que requer
explicação, o fato de que diversas ideias
frequentemente ocorram juntas. Como é
possível que as ideias de marrom, odor de couro, e
a ideia de uma forma em particular acompanhem
umas as outras. Nada há em uma cor que requeira
um ou outro odor. Fica evidente, portanto, que
nenhuma dessas ideias depende ou pertence a outra.
Marrom não pertence ao cheiro de couro. Nem uma
nem outra poderá, por si mesma, existir “por aí”.
Marrom não poderá se colocar, por si mesmo, em
nenhuma estante, nem marrom e odor juntos
poderão fazê-lo. A brancura da neve, por si mesma,
não poderá cair das nuvens; nem o frio poderá fazê-
lo. Tais qualidades simples não poderão andar “por
aí” sem acompanhamento. Por si mesmas, sequer
poderão se encontrar e formar grupos. Em
conformidade com isso, “acostumamo-nos a supor
que algum substrato interno” das
qualidades “subsiste e do qual elas resultam, que,
costumamos chamar de substância”.122 A
substância, serve, assim, à função importante de
unir qualidades, de maneira que uma coisa possa
ser chamada de existente.

A substância serve também para individuar coisas.


Leibniz, para os racionalistas, explicou
individualização com a teoria de que cada coisa ou
mônada seria quantitativamente distinta das outras.
De Locke, obtemos a impressão de que o mesmo
conjunto de qualidades poderia existir em duas
substâncias numericamente distintas. Dois livros ou
duas pedras poderiam ter precisamente a mesma
cor, forma, odor e assim por diante. Elas seriam
duas coisas porque seriam duas substâncias.
Quando discutiu a ideia de identidade, porém, em
vez de se referir à substância, Locke disse que o
princípio da individuação existe, por si mesmo. Por
exemplo, um átomo é o mesmo em qualquer
instante porque ele é o que é. A existência, ele diz
mais, determina um ser para determinado tempo e
lugar, e essas duas determinações figuram
proeminentemente em nosso reconhecimento de um
corpo, como o mesmo corpo, por meio de
várias mudanças de posição. Assim, Locke não
afirma explicitamente que a substância seja o
princípio de individuação. De fato, seu uso de
tempo e espaço, nesse sentido, poderá ser tomado
como uma implicação do que não seja tal
princípio. Ainda assim, se qualidades precisam de
um suporte e poderiam não ocorrer juntas na
mesma coisa, a menos que elas pertençam a uma
substância singular, a substância exerceria essa
função, ainda que não recebesse o nome. Havendo
ou não confusão aqui, na mente de Locke, é
indubitável que a ideia abstrata de substância é
essencial para o seu sistema porque, sem ela, a
ideia simples não poderia ocorrer com regularidade.

Infelizmente, a ideia de substância traz alguma


dificuldade. “Se alguém examinar a si mesmo
quanto à própria noção de substância pura em geral,
julgará não ter outra ideia, mas apenas uma
suposição de que não sabe que suporte de tais
qualidades seria capaz de produzir ideias simples...
Se alguém fosse arguido sobre qual seria o objeto a
que pertencem cor ou peso, nada teria para
dizer, senão sobre as partes sólidas extensas. Se lhe
fosse perguntado a que pertencem tal solidez e
extensão, ele não estaria em melhor situação do que
o indiano que, dizendo que o mundo seria
suportado por um grande elefante, quando
indagado sobre o que repousaria o elefante,
responde: Sobre uma grande tartaruga. Pressionado
ainda a responder sobre o que repousaria a grande
tartaruga, replicou: Sobre algo que eu não sei o que
é.”123

Isso significa que a causa da existência das coisas é


desconhecida. Nosso conhecimento de uma pepita
de ouro ou de uma peça de aço é limitado
às qualidades observadas. A substância que as une
para formar uma coisa jamais será parte de nossa
experiência. Uma curiosa vantagem da religião
advém dessa ignorância. Deve se notar que as
ideias simples da reflexão, isto é,
pensamento, dúvida, volição, e assim por diante,
não poderão, por si mesmas, subsistir mais do que
podem as qualidades sensoriais. Portanto, a
substância espiritual ou a alma é tão necessária
quanto a substância material ou corpo. E sem a
alma ou espírito, a religião estaria em um estado
tão mau quanto a física sem a matéria. O
materialista, que não tem Deus nem alma - e Locke
cria que a existência de Deus é demonstravelmente
certa - assume que tem um claro conhecimento
da matéria, embora creia que a ideia de espírito seja
uma insensatez. Certamente o materialismo está
errado quanto a esse ponto, pois sabemos tanto de
um quanto de outro, mesmo que saibamos bem
pouco sobre ambos. Locke vai além, dizendo:

“Pela complexa ideia de extensão, figura, cor e


outras qualidades sensíveis — que é tudo que
conhecemos de uma coisa - estaremos tão distantes
da ideia da substância do corpo tal como se nada
soubéssemos”.124 Será desnecessário dizer que tal
conclusão é um desapontamento, e devemos
esperar que filósofos posteriores reexaminem os
raciocínios que a sustentam.
Ideias de relação

A terceira e última atividade de uma mente, pela


qual as ideias simples são transformadas em
conhecimento mais complexo, é a operação da
comparação. É assim que ideias de relação são
produzidas; por exemplo, marido, mulher,
pai, filhos. As ideias de velho e grande, embora em
princípio não pareçam, são também termos
relativos, pois um cão é velho aos 7 anos e um
homem, aos 70. De fato, a ideia de sete anos e uma
data tal como 1066 são ideias de relação, porque
requerem a comparação com um número de
movimentos da Terra ao redor do Sol. O mesmo
ocorre com o espaço — ou, pelo menos, com um
espaço como de uma milha.

As mais importantes ideias de relação, sem dúvida,


são as ideias de causa e efeito. Não se pode deixar
de notar que qualidades e substâncias vêm à
existência e, mais tarde, deixam de existir. Árvores
crescem e são feitas cadeiras. A árvore começa a
crescer e a cadeira é produzida por meio da correta
aplicação e operação de algum ser, quer Sol e
chuva, quer marceneiro e ferramentas. Comparando
o produtor e o produto, a mente forma a ideia de
causa e efeito.

Podemos conhecera realidade?

Locke, na companhia de muitos escritores dos


séculos 17 e 18, tende a ser bastante prolixo. Ele
insere quantidade considerável de detalhes sem
importância e explora vários temas periféricos. Há,
no entanto, um ponto mais que precisa de atenção,
antes que passemos ao estudo do seu sucessor.

No começo do Livro IV, Locke repete sua tese


inicial, de que somente os objetos do conhecimento
imediato são ideias propriamente
nossas. (Anteriormente, ele não tinha usado a
palavra imediato.) O teorema, tal como agora é
desenvolvido, torna o conhecimento a percepção da
concordância ou discordância entre duas ideias. Por
exemplo, branco não é preto. Mas há também a
possibilidade de que nossas ideias sejam simples
visões, meras fantasias, em nada correspondentes à
realidade. Não poderia, um visionário ou
fanático, perceber a concordância ou a discordância
entre duas de suas ideias? “O fato de que a harpia
não é um centauro é, dessa maneira, um
conhecimento tão certo e verdadeiro como o de que
um quadrado não é um círculo.”125

Uma vez que a força dessa objeção reside na


suposição de que o conhecimento humano é
bastante amplo, Locke se adianta a mostrar quão
pouco é possível saber. A experiência indubitável
que temos quanto aos corpos jamais ascende ao
nível da ciência. Isto é, não há verdades gerais e
inquestionáveis com respeito aos corpos,
certamente, nada que possa ser demonstrado. Sobre
espíritos, Deus, anjos, ou outro, se houver, teremos
ainda menos conhecimento. Além disso, a conexão
entre corpo e espírito é completamente sombria.
Por experiência, sabemos que as qualidades
primárias produzem ideias secundárias.
Sabemos também, que um pensamento ou volição
podem produzir uma emoção corporal; mas, longe
de saber como mente e corpo afetam um ou outro,
não sabemos, sequer, como qualidades primárias
produzem qualidades secundárias. Portanto, o
conhecimento humano está confinado a estreitos
limites.126

A objeção original, entretanto, não atinge o ponto


apenas restringindo o âmbito do conhecimento. O
empirismo talvez se satisfaça com pouco. Mas
o que desejamos saber é se realmente uma ideia
corresponde a um objeto externo real, ou se nosso
suposto conhecimento é todo visionário. Quanto ao
que diz respeito a real existência do EU, Locke
depende da intuição, dando uma interpretação
psicológica ao cogito, ergo sum. Sobre a existência
de Deus, como dito anteriormente, Locke crê ser
demonstravelmente certa. Porém, se a existência de
corpos pode ser conhecida somente por meio da
sensação, qual será o critério para distinguir uma
ideia correspondente, de uma ideia não
correspondente? A resposta de Locke é dada em
vários estágios.127

Primeiro, uma vez que todas as ideias simples são


involuntárias e produzidas de maneira natural, a
bondade de Deus assegura sua conformidade com
as coisas, ou pelo menos, um grau de conformidade
suficiente para as necessidades humanas. Segundo,
como ideias complexas, com exceção de ideias de
substâncias, não professam representar algo fora da
mente, o problema não aparece. O conhecimento de
matemática, por exemplo, embora e porque
consista apenas de concordância de ideias, é
conhecimento real e não fantasioso. Se
existem triângulos na natureza exterior, o teorema
se aplicará também a eles; mas, havendo ou não
triângulos físicos, o teorema será verdadeiro e
certo. Em terceiro lugar, tem de ser admitido que
ideias de substâncias frequentemente deixam
de corresponder a coisas reais. No entanto, Locke
afirma que, “embora aquelas concordem com estas,
nosso conhecimento a seu respeito será real”.128 O
parágrafo não é fácil. Ele parece dizer que ideias de
substância têm de corresponder a arquétipos reais,
embora poucas correspondam e, até mesmo essas,
não se conformem muito exatamente. Assim, nós
temos conhecimento real, mas não muito. Se o
estudante pensar que este sumário não faz justiça à
tratativa que Locke dá à principal objeção, estará
trazendo, sobre si mesmo, a charada do parágrafo.
Sem dúvida, há uma dificuldade. Talvez, o próximo
filósofo poderá esclarecê-la.

GEORGE BERKELEY

Com menos de 20 anos de idade, George Berkeley


(1685-1753), um estudante de Dublin, foi atraído
pela filosofia de Locke. Antes que completasse 25
anos, já havia publicado duas obras, Ensaio para
Uma Nova Teoria da Visão, e Tratado Sobre os
Princípios do Conhecimento Humano, que lhe
trouxeram fama duradoura. Nessas obras, Berkeley
aceitava o princípio básico do empirismo. A
experiência é a fonte, fundamento e pedra angular
de todo o conhecimento. Porém, assim como as
páginas anteriores têm mostrado, Locke havia
deixado algumas passagens ásperas que precisavam
de algum polimento. Ele havia entrado em algumas
dificuldades que ele não conseguiu superar, devido
a não ter seguido consistentemente os próprios
princípios empiristas. Berkeley se propôs a remover
tais inconsistências.
Ideias abstratas

A introdução ao Tratado Sobre os Princípios do


Conhecimento Humano é principalmente uma
crítica à teoria de Locke sobre as ideias abstratas. À
vista do fato de que a operação da abstração acabou
na problemática noção de substância, parece que
Berkeley dificilmente escolheria melhor ponto de
partida. Ele descreve o processo de abstração de
modo a realçar seu caráter absurdo: “Por exemplo,
a mente, tendo observado que Pedro, Tiago e João
são semelhantes em certas concordâncias de forma
e outras qualidades, deixa de lado a ideia complexa
ou composta que tem de Pedro, Tiago e de qualquer
homem em particular, e daquilo que é peculiar a
cada um, retendo apenas o que lhes é
comum. Assim, a mente forma uma ideia abstrata,
da qual todos os particulares
participam igualmente, abstraídas e desprezadas
todas as circunstâncias e diferenças que poderiam
determinar qualquer existência particular. Segundo
tal maneira de ver, é dito que chegamos a uma ideia
abstrata de homem, ou, se preferir, da humanidade
ou natureza humana. Esta, de fato, inclui cor,
porque não há homem, senão alguma cor, mas que
não poderá ser branca nem preta nem qualquer
cor em particular, porque não há uma cor particular
de que todos os homens participem. De semelhante
modo, inclui estatura, mas, então, não será alta
ou baixa ou sequer média, mas algo abstraído de
todas as medidas”.129

Ora, Berkeley continua dizendo, modestamente,


que, uma vez que ideias abstratas, admitidamente,
não são obtidas sem grandes dificuldades e
muito estudo, poderá ser que algumas pessoas as
obtenham; mas, ele mesmo e todas as outras
pessoas comuns, não. “A ideia de homem que
enquadro para mim mesmo é a de um homem
branco ou negro ou marrom, ereto ou curvado, alto
ou baixo ou de estatura mediana.”130 Nenhum
argumento é requerido para provar o ponto: bastará
a alguém que observe o conteúdo da própria mente.
“Se um homem tem capacidade para enquadrar em
sua mente uma ideia tal como a de um
triângulo abstrato como aqui descrito, será vão
pretender dissuadi-lo, eu sequer entraria na
discussão. Tudo o que desejo é que o leitor esteja
plena e certamente informado sobre o fato de ter ou
não tal ideia. Parece-me tarefa não muito difícil. O
que seria mais fácil para alguém do que atentar um
pouco ao próprio pensamento e tentar saber se tem
ou poderá obter uma ideia de um triângulo que
corresponda à descrição dada, isto é, a ideia geral
de um triângulo que não seja oblíquo, nem
retângulo, nem equilátero, isósceles, escaleno, mas
todas e nenhuma dessas características, ao mesmo
tempo?”131

É verdadeiro que fazemos uso daquilo que pode ser


chamado de ideias gerais. Mas tal ideia é uma ideia
particular, usada para um fim específico. “Suponha
que um geômetra esteja demonstrando um método
para dividir uma linha em duas partes iguais. Ele
traça, por exemplo, uma linha preta de
dois centímetros e meio de cumprimento. Esta, que
é uma linha em particular, não obstante, se refere a
um significado geral, uma vez que está sendo usada
para representar todas as linhas particulares,
quaisquer que sejam.”132

É verdadeiro também que palavras podem ser


chamadas de abstratas. A palavra triângulo se
aplica indiscriminadamente a todos os triângulos.
Não significa nenhuma ideia em particular. Nos
primeiros estágios do aprendizado,
a palavra bom ou a palavra perigo talvez tenha, em
princípio, ocasionado a particular ideia de coisa
específica, boa ou perigosa. Porém, quando tais
palavras se tornam familiares, um pai poderá
prometer a seu filho algo bom, ou adverti-lo de um
perigo, produzindo emoções ou reações definidas,
sem que o filho tenha qualquer ideia do que esse
bom ou perigoso possa ser. O uso das
palavras desacompanhadas de ideias ocorre ainda
mais frequentemente em discussões educadas e, por
isso, muitas controvérsias filosóficas são puramente
verbais. O erro, especialmente o erro filosófico,
procede principalmente da falta de cuidado no uso
das palavras. “Contanto que eu confine meus
pensamentos às minhas ideias despidas de palavras,
não vejo como erros poderão ocorrer com
facilidade... Não poderei me enganar, pensando que
tenho uma ideia que não tenho. Não será possível a
mim, imaginar que quaisquer das minhas ideias
sejam semelhantes ou diferentes, e que tal não seja
verdadeiro.”133 Quem confundiria o odor de
uma rosa com o cheiro da terebintina, ou a imagem
de um quadrado com a imagem de um círculo?
“Aquele que sabe que não tem mais do que ideias
particulares, não se confundirá em vão, buscando e
concebendo uma ideia abstrata ligada a
qualquer nome. E aquele que sabe que nomes nem
sempre se referem a ideias, se poupará do trabalho
de procurar ideias onde elas não estão... Em vão
estenderemos nossa visão aos céus ou forçaremos
os portões da Terra. Em vão consultaremos os
escritos dos eruditos e traçaremos as marcadas
pegadas da antiguidade. Precisamos somente abrir
as cortinas das palavras para contemplar a mais
bela árvore do conhecimento, cujo fruto é
excelente, ao alcance de nossa mão.”134

Para um melhor entendimento dos assuntos


envolvidos na discussão sobre as ideias abstratas, e
para indicar que nenhum sistema de filosofia pode
escapar a uma decisão sobre este ponto, faremos
uma referência ao que já vimos sobre as
controvérsias medievais. Roscelino, como deve ser
lembrado, reduziu os universais a meros sons no ar.
Abelardo e Tomás de Aquino defenderam a
teoria da abstração. Occam, implementando o
nominalismo de Roscelino, afirmou ter eliminado o
problema da individuação. Certamente, a estrutura
moderna difere bem da medieval: há um foco
diferente do anterior. O empirismo britânico tira
conclusões que provavelmente chocariam os
escolásticos. Ainda assim, é quase impossível
deixar de ver que as dificuldades são as mesmas.

Dois sentidos poderão percebera mesma ideia?

A questão das ideias abstratas não foi o único ponto


em que Berkeley, em nome da experiência, debateu
com Locke. O relato de Locke, sobre
distância, figura, movimento e outras coisas,
também apresentava defeito. Portanto, alguns dos
argumentos de Berkeley, no Ensaio para Uma
Nova Teoria da Visão, serão sumarizados antes que
passemos a seu principal esforço construtivo,
nos Princípios. Foi declarado, mas não enfatizado,
que as ideias de espaço, distância e movimento são
percebidas, na visão de Locke, tanto pela visão
quanto pelo toque. Berkeley discorda. O ponto
principal, de que nenhuma ideia singular é recebida
por meio de dois sentidos, é suportado, primeiro
pela observação de que espaço ou distância não é
uma ideia simples. Não podemos ver distância. Na
Segunda Guerra Mundial, quando tinham de saltar
sobre o Mar do Norte, os aviadores desciam em
seus paraquedas, atingiam as águas, afundavam
alguns metros, e subiam à superfície. Porém,
frequentemente, ao subir, tinham seus
paraquedas sobre suas cabeças; e se não
conseguissem rasgar os tecidos,
provavelmente afogariam. Para evitar isso, seus
superiores ordenaram que cortassem as cordas dos
paraquedas acerca de cinco metros antes de
atingirem o oceano. Assim, no tempo decorrido
entre a imersão e a volta à superfície, o paraquedas
já teria se deslocado de sobre eles. Obedecendo tal
comando, muitos homens tiveram o pescoço
quebrado. Pois, como a superfície do oceano é
relativamente plana e não apresenta objetos de
referência familiares, tais como casas e árvores, era
impossível julgar a distância até a superfície das
águas. O oceano, a 165 metros de altura, produz a
mesma impressão que a causada a cinco metros.
Isto é, distância não é uma ideia simples ou
singular. Ela não pode ser vista. Ela tem de ser
julgada. A pessoa tem de avaliar a distância,
comparando impressões atuais com
experiências passadas. Berkeley colocou isso da
seguinte maneira:

A distância não poderá ser diretamente percebida,


porque um objeto, a uma dada distância e em linha
reta, projeta-se a um único ponto do olho. Um
homem cego de nascença, depois de ter obtido
visão, não conseguiria, em princípio, saber a que
distância estariam as coisas vistas. Ele teria de
aprender a julgar as distâncias. O aprendizado
consiste de diversas partes: a sensação da atividade
muscular no olho, a variação de tamanho e
claridade da imagem, e a comparação destas
com outras sensações do tato. Isto quer dizer que,
depois de ter a sensação visual, o cego de nascença
avançaria e tocaria o objeto em questão. Mediante
repetidas experiências da quantidade necessária de
caminhada, antes da sensação do toque seguir a
sensação da visão, ele aprenderia a julgar ou
antecipar a distância por meio, apenas, da
visão. Contudo, falando de maneira estrita, somente
a cor é o objeto da visão, e não o espaço, a figura
ou o movimento. Esses detalhes sobre como a
distância deve ser aprendida, talvez não sejam tão
importantes para mostrar como Berkeley é mais
empírico do que Locke, quanto sua forte distinção
entre ideias da visão e ideias do tato. Na teoria de
Locke, as ideias de movimento, forma, posição, e
outras, vêm por intermédio de ambos os sentidos.
Berkeley, entretanto, estaria correto, ao indicar que
nenhuma ideia poderá vir por meio de dois
sentidos. A sensação visual de uma forma colorida
é perfeitamente distinta de uma sensação tátil de
uma forma rígida. Em ambos os casos a mesma
palavra é usada: forma. Porém, as ideias ou as
imagens são totalmente diferentes. Devido ao
espaço ser um conceito chave na filosofia, essas
considerações influenciaram profundamente o
avanço de Berkeley sobre Locke e, mais tarde,
proveram material para Kant. Locke havia feito do
espaço, uma ideia simples. Ele é imediatamente
impresso na mente pela sensação, e não como
resultado de uma operação posterior. Mas a ideia
idêntica é impressa, tanto pela visão quanto pelo
toque. Sendo comum às duas sensações, Locke
simplesmente pensou que o espaço seria algo
objetivo, existindo independentemente da
percepção. Esse espaço objetivo, se não requer
positivamente a existência de substância material,
pelo menos, torna possível tal hipótese,
contribuindo, assim, para a explicação do fato, de
outro modo, misterioso, de que qualidades díspares
podem ocorrer regularmente, como coisas
conjuntas. Tal construto bckeano é visto, hoje,
como duplamente impossível. Uma vez que não há
nenhuma ideia comum a dois sentidos, o espaço de
Locke prova-se inexistente. Qualquer espaço que
reste, estará desprovido de qualquer aparência de
objetividade. Ele se torna algo como as
qualidades secundárias de Locke, que existem, tal
como a dor, apenas enquanto alguém as percebe.
Além disso, se o espaço visual, admitido por
Berkeley, não for uma ideia simples, em si, mas for
aprendida somente depois de considerável
experiência do esforço ocular, ao focalizar as
imagens com firmeza e, assim por diante, se
for subsequente, em vez de antecedente à
percepção de ideias compostas; e se a
substância material, conforme ficará claro nos
parágrafos seguintes, for tão irreal quanto
qualquer ideia abstrata, será imperativo realizar
uma nova exploração para regular a coexistência de
diferentes qualidades em um mesmo lugar. Com
essa demanda, o trabalho construtivo de Berkeley,
nosPrincípios, não pode mais ser adiado.

Esse est per dpi

Berkeley começa, aceitando o esboço geral do


esquema de Locke: os objetos do conhecimento são
ideias simples, de sensação e reflexão, e ideias
complexas formadas por operações mentais. Na
continuação, a própria linguagem de Berkeley não
poderia ser melhorada.

Conquanto sejam observadas em companhia umas


das outras, diversas de tais ideias vêm a ser
marcadas por um único nome e a ser tomadas como
uma só coisa. Assim, por exemplo, determinado
composto, formado de cor, gosto, odor, figura e
consistência, tendo sido observado em conjunto, é
tomado como uma coisa e denominado maçã. Outra
coleção de ideias constitui uma pedra, uma árvore,
um livro, e outras coisas sensíveis...

Além de toda essa infinda variedade de ideias ou


objetos do conhecimento, há algo que os conhece e
percebe, e que exercita operações tais como:
querer, imaginar, lembrar. Esse ser ativo que
percebe é o que eu chamo de mente, espírito, alma
ou EU. Minhas palavras não representam nenhuma
das minhas ideias, mas uma coisa inteiramente
distinta delas, embora existam ou sejam a mesma
coisa pelo que são percebidas, pois a existência de
uma ideia consiste em ser percebida.

Um fato que todos admitem é que nem


pensamentos, nem paixões, nem ideias formadas
pela imaginação, existem sem a mente. Isso me
parece menos evidente que as diversas sensações
ou ideias impressas nos sentidos, por
mais combinadas ou misturadas que estejam. Isto é,
quaisquer que sejam os objetos que elas
componham, não poderão existir de maneira
diferente de como a mente as percebe. Creio que
qualquer um que atente a aquilo que quero dizer
pelo termo existente, aplicado às coisas sensíveis,
poderá obter um conhecimento intuitivo sobre elas.
A mesa sobre a qual escrevo, eu digo, existe. Isto é,
eu vejo e sinto a mesa. Se eu estivesse fora de meu
escritório, diria que a mesa ainda existiria,
significando que, se estivesse lá, eu ou outro
espírito realmente a perceberia. Haveria um
odor, isto é, a mesa poderia ser cheirada. Haveria
um som, isto é, se tocada, ela poderia ser ouvida.
Haveria uma cor ou uma figura, e ela seria
percebida pela visão ou pelo toque. Isso é tudo o
que posso entender por tais expressões, ou
outras semelhantes. Quanto ao que é dito sobre a
existência absoluta de coisas não pensáveis, sem
qualquer relação com o fato de serem percebidas,
isso me parece perfeitamente não-inteligível.
Seu esse éper dpi (seu ser é ser percebido), não
seria possível que tivesse qualquer existência fora
da mente ou na ausência de coisas pensantes que a
percebessem.

É, de fato, uma opinião estranha, prevalecente entre


os homens, que casas, montanhas, rios, e todo um
mundo de objetos sensíveis tenham existência
natural ou real, distinta de serem percebidos pelo
entendimento. Contudo, por maior que sejam a
segurança e a aquiescência que o mundo entretenha
tal princípio, ainda assim, quem quer que o
questione, se eu não estiver enganado, poderá se
envolver em uma contradição manifesta. Pois, o
que são objetos fenomenalizados, senão as coisas
que percebemos por meio dos sentidos, e o que
percebemos, além de nossas ideias ou sensações?
Não é completamente repugnante que qualquer
uma dessas ou de outras combinações existissem
sem serem percebidas?135

Berkeley estava consciente de que quase todos os


homens, e não apenas Locke, cria na existência real
eterna das substâncias materiais. Mas ele
pensava que bastaria uma pequena reflexão para
convencer a qualquer um sobre o absurdo dessa
visão comum. Matéria é uma ideia abstrata, e ideias
abstratas não existem. E mesmo que existissem,
seria na mente, o único lugar em que uma ideia
poderá existir. E porque cores e gostos são
percepções, tal como dor, será apenas na mente que
maçãs, montes e rios existirão, pois estes também
são ideias, ideias complexas, mas, não obstante,
ideias. Locke, é claro, admitia que as
qualidades secundárias da cor, do sabor e do odor
existiriam apenas na mente. Contudo, como
consequência de sua análise das ideias de espaço,
posição, e magnitude, Berkeley mostrava, que todas
as qualidades seriam “secundárias”. A
tangível qualidade de solidez é uma sensação tanto
quanto a cor vermelha. A forma percebida pelo tato
é tanto uma percepção como a forma captada pela
visão. E percepções existem apenas na mente
perceptiva.

Se fosse levantada a seguinte objeção, que embora


a percepção exista apenas na mente, ainda havería
coisas reais fora da mente, das quais as percepções
são efeitos e cópias, Berkeley replicaria que uma
ideia somente podería ser semelhante ou cópia de
uma ideia: uma cor somente poderá ser igual a uma
cor. Além disso, essas coisas externas, das quais as
ideias seriam supostas cópias, seriam perceptíveis
ou não? Se forem perceptíveis, serão ideias na
mente. Se não forem perceptíveis, então uma cor
será uma cópia de algo invisível, e a solidez,
uma cópia de algo intangível. Haverá insensatez
maior do que essa?

Um filósofo que pretenda defender a existência da


matéria deverá ter razões para crer que ela exista, e
ser capaz para demonstrar sua utilidade. Porém,
embora esses dois requerimentos permanecessem
não satisfeitos, Berkeley estava disposto a ceder, se
alguém pudesse meramente conceber a
possibilidade de uma substância extensa, ou de uma
ideia, ou de qualquer coisa semelhante a uma ideia,
existir de outra maneira a não ser em uma mente
que percebe. O apelo é feito à experiência.

Eu não argumento contra a existência de qualquer


coisa que possamos apreender, quer pelos sentidos
quer pela reflexão. As coisas que vejo com
meus olhos e toco com minhas mãos existem,
realmente existem, e eu não questiono isso. A única
coisa cuja existência eu nego, é aquilo que os
filósofos chamam de matéria ou substância
corpórea. Fazendo isso, nenhum mal é feito ao
restante da humanidade que, ouso dizer, jamais se
dará conta da realidade. O ateísmo, de fato,
desejará que a cor de um nome vazio suporte sua
impiedade; e os filósofos podem,
eventualmente, descobrir que perderam uma grande
jogada por causa de banalidades e disputas...
Contudo, o que quer que digamos, alguém talvez
ainda seja capaz de replicar que continua crendo
em seus sentidos, e nunca sofrer a força de
argumentos, por mais plausíveis que sejam, e por
mais que prevaleçam sobre sua certeza.
Sendo assim, assegure-se, ao máximo possível, da
evidência, pois nós estamos dispostos a fazer o
mesmo. Aquilo que eu vejo, ouço e sinto, realmente
existe. Isto é, é percebido por mim sem maiores
dúvidas do que minha existência. Mas não vejo
como o testemunho dos sentidos possa ser alegado
como prova da existência de qualquer coisa que
não seja percebida por meio deles.136
Você e eu existimos?

No começo, Berkeley distinguiu entre ideias


puramente passivas e o espírito ativo ou a mente
que as percebe. Se a existência de uma ideia
consiste em ser percebida, deve, obviamente, haver
um espírito que percebe. A discussão sobre o
espírito, entretanto, acontece com alguma
dificuldade. Se as ideias são passivas, sem nenhum
poder ou atividade, e o espírito é ativo, os dois
terão de ser completamente diferentes - tão
diferentes que uma ideia não terá possibilidade de
representar um espírito. O espírito ou mente é
caracterizado pelas atividades de entendimento e
vontade, mas nenhuma ideia tem essas
características. Isso quer dizer que não temos ideia
ou imagem de um espírito. Assim, o espírito torna-
se incognoscível, pois a primeira sentença
dos Princípios identifica as ideias como objetos do
conhecimento. Se, porém, ele é incognoscível,
como terá sido possível, para Berkeley, escrever
sobre o assunto? Como ele poderia admitir a ideia
de reflexão, uma vez que a volição é ativa e as
ideias são passivas? Para evitar essa conclusão
devastadora, ele escreveu: “Terá de ser adquirido
ao mesmo tempo em que temos uma noção de
alma, espírito, e operações da mente, tais como
amar, odiar, visto que conhecemos ou entendemos
o sentido dessas palavras”.137 Tal expediente
dificilmente poderá ser pensado de maneira
satisfatória, especialmente no caso de Berkeley,
que pouco antes havia atribuído grande parte das
ocorrências de estupidez filosófica ao uso de
palavras separadas de ideias permanecem sendo os
objetos do conhecimento, e se “noções” forem
diferentes de ideias, Berkeley não fez o mínimo
esforço para explicar seu estado. De fato, o
parágrafo v usou ideias, impressões e noções como
termos sinônimos. Quando, mais tarde, tal
conhecimento sobre a própria mente se tornou base
para o conhecimento de outras mentes, o perigo de
solipsismo tornou-se claro.138 Talvez eu seja a
única pessoa no mundo. Ou melhor, o único mundo
é aquele que existe em minha mente.

Claramente, Berkeley tenta defender a existência de


outros seres humanos,139 mas diz que temos melhor
razão para crer na existência de Deus.
Nosso conhecimento ou, pelo menos, nossas
suposições de que seres humanos existam, vêm por
meio das ideias que elas suscitam em nós por meio
de movimentos corpóreos. O fato de que têm de
haver outros espíritos humanos não é conhecimento
imediatamente evidente, mas uma inferência do
relato de alguma das minhas ideias. Entretanto,
embora tais ideias sejam poucas em
número, aquelas por meio das quais inferimos a
existência de Deus são extremamente numerosas.
E, se inferimos a ideia de homens, a partir de
nossas imagens visuais de cabeça, braço e tronco,
podemos igualmente dizer que vemos Deus em
virtude de nossas sensações de árvores, rios e
montanhas. A Escritura declara: “Fazendo ele
ribombar o trovão, logo há tumulto de águas no
céu, e sobem os vapores das extremidades da terra;
ele cria os relâmpagos para a chuva e dos seus
depósitos faz sair o vento”(Jr 10.13).140

Observe que, dos três racionalistas, Leibniz foi um


cristão devoto e ativo. Ele cria que seu tipo de
filosofia concordava, e provia suporte, para a sua
religião. Descartes era, talvez, um cristão nominal,
e Spinoza atacou o cristianismo. No empirismo,
Locke foi, no máximo, um cristão nominal, e
Hume, um inimigo do cristianismo. Mas a devoção
pessoal de Berkeley é vista - não tanto na
escolha que recebeu para ser bispo, mas em sua
extenuante, ainda que desapontadora, atividade
missionária. Para ele, o empirismo, que tornava a
existência de Deus mais evidente do que a de
outros homens, e que despojava o ateísmo
materialista de sua substância material, seria um
baluarte do cristianismo. Ainda assim, Leibniz e
Berkeley não poderiam, ambos, estarem certos.
Uma vez que racionalismo e empirismo são
incompatíveis, eles não poderão, juntos,
serem fundamentos do cristianismo. Ao mesmo
tempo, Berkeley e Hume não poderiam estar,
ambos, certos, bem como Leibniz e Spinoza não o
poderiam. Nem empirismo nem racionalismo
poderiam defender e destruir o cristianismo. Qual é
o problema? Será que algo nos escapou à visão
desde o período medieval?
Ciência e causalidade

Deixando de lado as questões de religião, Berkeley


teve de ajustar sua teoria à ciência. Para esse
propósito, também, a existência de Deus é
necessária. Tanto o senso comum quanto a ciência,
assumem que as árvores, a cachoeira e as
montanhas não deixam de existir quando eu, um
observador, retorno à cabana na floresta, e durmo.
De outro modo, como é que, quando acordo
na manhã seguinte, a árvore, a cachoeira e as
montanhas ainda estão ali, em seu lugar? A
hipótese comum é de que elas estiveram ali durante
todo o tempo. Mas Berkeley demonstrou que,
porque são ideias, elas não poderiam ter
permanecido ali durante todo o tempo. “Ali”,
significa em minha mente, e é
plenamente verdadeiro que tal sensação cessou
durante a noite. Mas ela retorna, regularmente, de
manhã, quando olho pela janela. Mesmo que a
sensação esteja em minha mente, deverá ter uma
causa externa. A ideia foi involuntária. Quando
olho na direção apropriada, não posso deixar de ver
a árvore, a cachoeira e a montanha; e quando olho
para outra direção, não posso vê-las, por mais que
me esforce. Ora, Berkeley admite que tem de haver
uma causa externa para ideias involuntárias, e
também deve haver uma causa para as
regularidades das aparições. Mas tal causa externa,
em vez de ser uma ideia abstrata de substância
material, é Deus. E a regularidade que Deus produz
ideias em nossas mentes, fornece evidência à
ciência do seu campo de investigação e distingue
objetos reais, de sonhos e de ilusões subjetivas.

A regularidade na sequência de ideias permite-nos


distinguir certas coleções de ideias como coisas.
Quando uma ou duas de suas qualidades aparecem,
tal como a sensação visual, de determinado
tamanho ou forma de vermelho, esperamos que as
outras qualidades de uma maçã, seu gosto, por
exemplo, ocorram então ou em breve. Mas o curso
da ciência vai além dessa experiência ordinária.
Deveria ser claramente afirmado a verdadeira
natureza da ciência, pois há muita confusão a esse
respeito. Porém, a negação da matéria não poderá
tornar impossível a ciência, mais do que torna
impossível a visão ou o gosto de uma maçã.

O materialismo afirma que o homem é


irremediavelmente ignorante sobre a verdadeira
natureza interior das coisas, porque os sentidos
somente poderão apreender suas aparências
externas. Há algo em cada pingo d’água e em
cada grão de areia que está além do poder de
compreensão da mente humana. Se esse ceticismo
for permitido na ciência, diz Berkeley, a religião
finalmente sofrerá. Mas ele não poderá ser
assegurado pela ciência, pois, até mesmo, o
ceticismo depende parcialmente, como já foi
explicado, da suposição da ideia abstrata da matéria
incognoscível. Em parte, ele depende também de
uma ideia equivocada da causalidade. Sem querer
ridicularizar os físicos medievais, por causa de sua
crença em essências e poderes ocultos, a
explanação do cientificismo moderno com respeito
às qualidades em termos de peso, figura e
movimento, isto é, a teoria das causas mecânicas,
está igualmente distante da verdade.
Qualidades perceptíveis, tais como peso e
movimento, não são causas de nada, pois as ideias
são coisas puramente passivas. Somente o espírito é
ativo. A teoria da gravidade, de Newton, pelo
menos da maneira como é popularmente
entendida, é um exemplo adequado. Desde a
publicação de seu Principia, o grande
princípio mecânico em voga tem sido o da atração.
O fato de que uma pedra cai em direção à Terra, ou
de que o mar propenda para a Lua, supostamente
tem sido explicado mediante a atração. Quaisquer
duas partículas de matéria, é dito, atraem-se na
razão direta de suas massas e no inverso do
quadrado das distâncias. Contudo, será que a
atração universal alarga nosso conhecimento?
Deveremos supor que um átomo se maquia com
batom e atrai outro átomo à medida que um se
aproxima do outro? Ou que, se usarem batom, dois
átomos repelirão um ao outro? O
termo atração simplesmente mascara nossa
ignorância, e depende de uma noção errada de
causalidade.

A ciência, de fato, nada tem a ver com causalidade.


Seu objetivo é o da descoberta de similaridades.
Quando observou a aceleração dos corpos em
queda livre, Galileu não descobriu a causa da
queda: ele descobriu o índice de velocidade da
queda. Mais do que isso, ele descobriu que todo
corpo em queda livre cai à mesma taxa de
velocidade. Seu sucesso consistiu, não na
observação da causa, mas da similaridade. Kepler,
também, descobriu que o movimento dos
planetas era similar. Cada órbita é uma elipse; cada
vetor radial varre áreas iguais, em tempos iguais; e
o quadrado dos tempos periódicos é proporcional às
distâncias médias, a partir do Sol. Assim, Kepler
não descobriu a causa do movimento planetário, e
sim, descreveu como os planetas se movem.
Newton, embora não tenha sido mais brilhante do
que Kepler, obteve maiores resultados
científicos, porque descobriu maiores
similaridades. Ele viu que a queda livre dos
corpos, de Galileu, e os planetas de Kepler,
moviam-se precisamente da mesma maneira. A Lua
“cai” na direção da Terra e a Terra cai na direção
do Sol da mesma maneira que uma bola de gude cai
na direção da Terra. Uma equação descreve todos
os três movimentos. Contudo, por que algo se
move? A ciência não tem uma resposta. Ela não
tem a ver com causalidade.

A única causa é a mente ou o espírito, operando


para um propósito. “Considerando que a totalidade
da criação é obra de um sábio e bom agente, poderá
parecer que os filósofos devam aplicar seus
pensamentos, ao contrário do que alguns pensam,
às causas finais das coisas. Devo confessar que não
vejo razão por que, a indicação dos vários fins para
os quais as coisas naturais foram adaptadas e para
os quais foram planejadas com inefável sabedoria,
não devam ser tomadas como uma boa maneira de
relatá-las, e totalmente dignas de um filósofo.”141

Dois mais dois é igual a cinco?

Mais um ponto há de ser mencionado, ainda que


brevemente, antes de passar ao sucessor de
Berkeley, David Hume. Os racionalistas
escolheram os métodos da matemática como sendo
o ideal, exatamente porque a matemática é a
disciplina que se mostra mais impenetrável ao
procedimento empírico. Berkeley, à maneira de
Locke, teve diversas coisas a dizer sobre a
divisibilidade infinita de linhas e espaço, e também
sobre o cálculo infinitesimal. Mas as bases
empíricas da matemática são mais bem vistas na
natureza da unidade. Leibniz pode ter tido
considerável sucesso, reduzindo a aritmética a um
sistema dedutivo, porém, o empirista indagará
sobre a origem da unidade. Dois mais três somam
cinco, entretanto, o que é o um? Naturalmente,
Berkeley não pôde admitir que o número um fosse
uma ideia abstrata. A ideia em nossas mentes é a
ideia de um grão de areia ou de um monte de areia.
Se a pilha é uma ou um milhão, depende de como
aquele que percebe vê a coisa. Não há números no
abstrato, mas apenas uma coleção de coisas. A
ciência dos números é, portanto,
inteiramente subordinada à prática, e a
experimentação é o teste de sua verdade. A
insistência de Berkeley em que a matemática seja
uma ciência prática poderá ser ilustrada por uma
química elementar. O racionalista afirma que dois
mais três resultam sempre em cinco. O experimento
mais cuidadoso mostrará que dois quilos mais três
quilos somam cinco quilos. Não precisará ser
quilos do mesmo material. Dois quilos de chumbo
mais três quilos de penas somarão sempre cinco
quilos de material. Mas dois mais três nem sempre
somarão cinco. Experimentos demonstram que dois
litros de água mais três litros de ácido sulfúrico não
resultam em cinco litros de algo. Indo além,
segundo o racionalismo, dois mais três produzem
sempre o mesmo resultado que três mais dois.
Entretanto, que surpresa para o estudante que pensa
que dois litros de água adicionados a três litros
de ácido sulfúrico dão o mesmo resultado que três
litros de adido sulfúrico adicionados a dois litros de
água. Essa aritmética não-empírica talvez o
exploda e o lance pelo telhado. A matemática,
portanto, é uma ciência tão experimental como a
física. Berkeley cria ter sido bem-sucedido em
basear a totalidade do seu sistema somente sobre a
experiência. Mas Hume achava que ainda faltava
uma correção.

DAVID HUME

Nos escritos de Locke e de Berkeley há frases que


descrevem com otimismo as conquistas do intelecto
humano. O primeiro fala sobre a imaginação ativa
e ilimitada do homem, e o último, faz referência ao
“coral celeste e teatro da Terra”. Deveria ser assim
mesmo, pois o empirismo, na esteira do naufrágio
do racionalismo, objetiva demonstrar a
possibilidade do conhecimento. Porém,
quando alguém começa a ler Hume (1711-1776),
surge o temor de que nem tudo esteja bem. “O
homem é um ser racional”, diz ele na Investigação
Acerca do Entendimento Humano (Seção I), “e
como tal, recebe da ciência a nutrição e o alimento
adequados. Contudo, tão estreitos são os limites do
entendimento humano, que pouca satisfação poderá
ser esperada nesse particular, tanto por causa da
extensão quanto da segurança de suas aquisições”.
Será possível que o empirismo também falhe
quanto a fornecer base para o conhecimento?

Nós pensamos por meio de imagens?

Hume, foi um empirista, é claro. Todos os objetos


do conhecimento, ou como ele mesmo diz, “todas
as percepções da mente humana explicam-se...
por impressões e ideias”.142 Esses dois termos
podem ser distinguidos por introspecção, sendo que
as impressões são vigorosas e vívidas, e as ideias,
pálidas imagens das impressões. O pensamento
poderá alcançar os céus e a imaginação talvez
figure monstros e formas incongruentes, mas “todo
esse poder criativo da mente não chegará a ser mais
do que a faculdade de composição, transposição,
maximização ou minimização de materiais obtidos
por meio dos sentidos e da experiência... Quando
analisamos nossos pensamentos ou ideias, mesmo
que eles sejam complexos ou sublimes, sempre
acharemos que eles se explicam em ideias
simples, como se fossem copiadas de uma
impressão ou sentimento precedente...
Podemos prosseguir nessa investigação até quando
quisermos, e sempre acharemos que cada ideia que
examinarmos terá sido copiada de uma impressão
similar”.143

Quando Hume usa o termo impressão, ele “não


deveria ser entendido como que expressando a
maneira que nossas vívidas percepções são
produzidas na alma, mas meramente as
impressões em si”.144 Ele nega, especificamente,
que as impressões sejam calcadas pela ação de
qualquer corpo externo. Aceitando a correção de
Berkeley quanto a Locke, Hume diz que, embora os
homens possuam um instinto natural para crer em
um universo externo, mesmo na ausência
da criatura sensível, a filosofia mais rasa ensina que
nada mais poderá estar presente na mente, do que
imagem e percepção. A mesa que vemos parece
diminuir à medida que nos afastamos dela. Se
pudéssemos vê-la na outra ponta de um
longo corredor, ela nos pareceria bem menor. Mas
a mesa real ou externa, nós supomos, mantém o
mesmo tamanho, não importando nossa distância
dela. Evidentemente, portanto, o que vimos era
apenas uma imagem e não uma mesa externa.

Sobre esse ponto, Hume simplesmente repete


Berkeley. Antes de continuar tratando do progresso
de Hume, é apropriado examinar as áreas de
concordância. Mesmo Locke, com toda sua
substância material, também definiu os objetos
do conhecimento como ideias, fantasmas ou
imagens. Uma vez que isto seja comum e básico ao
empirismo, a decisão, aqui, é de fundamental
importância. No capítulo sobre a Idade Média, a
seção sobre Tomás de Aquino sugeriu que
o empirismo seria defeituoso por causa do uso da
imaginação. Em particular, Berkeley e Hume
instavam que seus alunos olhassem para dentro de
suas mentes, e verificassem que ideias haveria ali,
jamais duvidando que todos os homens
encontrariam as mesmas imagens. Considere a
citação do Tratado I, i,l: “A ideia de vermelho que
formamos no escuro, e a impressão que atinge
nosso olho à luz do Sol, diferem apenas em grau,
não em natureza. O caso é o mesmo com todas as
impressões simples... qualquer um poderá se
satisfazer... repetindo o quanto lhe for aprazível.
Não sei de outra maneira para convencê-lo, do
que pedir que mostre uma simples impressão que
não tenha uma ideia correspondente... Se a pessoa
não responde a esse desafio, é certo que não
pode...” Entretanto, afinal, a coisa não é assim tão
certa, pois há pessoas que negam que a
impressão de vermelho, à luz do Sol, tenha uma
cópia correspondente, no escuro. Hume é ainda
mais explícito: “Quando fecho meus olhos e penso
em meu quarto, as ideias que formo são
representações exatas das impressões que sinto”.
Mas outros, que não Hume, não apenas são faltos
de representações que sejam exatas, mas sequer
têm imagens inexatas. Muitas pessoas admitirão
que não têm imagens de odor e sons; ainda que
tenham imagens visuais, suas deficiências (se
forem deficiências) em outros tipos de sensação
poderão levá-las a dar crédito à afirmação daqueles
que dizem que elas mesmas não têm também
imagens visuais. A teoria de Hume implicaria que a
pessoa desprovida de imagens não poderia pensar
— a própria indignação da pessoa provará que ela
pensa. Mesmo que as imagens fossem universais,
não significaria que todos os objetos do
pensamento seriam tais representações. Vivacidade
de imagens e clareza de pensamento nem
sempre variam em proporção direta, tal como
deveria ocorrer, de acordo com a
definição empirista. A dificuldade, aqui, não é
apenas uma possibilidade de erro na observação,
como se Hume meramente não tivesse encontrado
tais pessoas. Não é somente um argumento
defeituoso em que um autor tropeçou.
Erros superficiais sempre poderão ser corrigidos
sem detrimento da totalidade do sistema. Mas a
colocação errada do fato, feita por Hume, quando
disse: “certamente não pode”, envolvendo a
hipótese de que todas as mentes seriam iguais, a
esse respeito, é um erro para cuja correção o
empirismo não provê um método. Fora a questão da
dificuldade que há para se conhecer as mentes
de todas as pessoas, passadas e futuras, o
empirismo torna impossível o conhecimento da
mente de qualquer pessoa. Tal como o leitor não
poderá sentir minha dor de dente, assim dois
empiristas não poderão ter a mesma ideia de
vermelho, de maçã, ou de qualquer coisa. Cada
qual tem somente as próprias imagens, e
não poderá perceber o que passa na mente do
vizinho. O próprio método do empirismo previne
Hume de assegurar-se do que um homem pode ou
não pode fazer. Hume poderia, é claro, refugiar-se
no solipsismo. Se ele for a única mente, então
todos os pensamento serão imagens, pois todo
pensamento será pensamento de Hume. Temos de
lembrar também, que Berkeley teve alguma
dificuldade com as implicações do solipsismo. Ora,
o solipsismo é geralmente considerado
como um redutio ad absurdum de qualquer
sistema, e não há evidência de que Hume tenha
desejado se utilizar de tal expediente antissocial.
Portanto, a dificuldade quanto às imagens ainda
permanece.

Quem opera o pensamento?

Há, entretanto, outro ponto difícil de Berkeley, que


Hume definitivamente tentou evitar na teoria de sua
própria mente. Berkeley havia argumentado:
“Além de toda essa infinda variedade de ideias ou
objetos do conhecimento, há igualmente algo que
as conhece ou percebe, e que exercita diversas
operações, tais como vontade, imaginação,
memória. Esse ser ativo e perceptivo é o que
eu chamo de mente, espírito, alma ou EU”. Ainda
assim, Berkeley experimentou certo embaraço,
quando falou sobre a possibilidade de conhecer
nossa mente. Uma vez que a mente seja ativa e as
ideias, passivas, e que as ideias existam em uma
mente que seja seu substrato, não poderá haver
ideias de mente ou espírito. E se as ideias forem os
objetos do conhecimento, a mente não poderá
ser conhecida. Em outras palavras, não haverá
evidência na experiência, de que exista uma mente,
espírito ou alma. Hume delineou a última
conclusão, usando o mesmo método que Berkeley
havia aplicado a Locke. Se a impossibilidade
de ideias abstratas anula uma substância material
incognoscível, uma substância espiritual
incognoscível não irá mais longe. Impressões e
ideias existem, isto é, são percebidas, mas são
impressões sobre nada e nada as percebe.145

A decisão de basear todo conhecimento na


experiência é responsável pela condução a essa
conclusão paradoxal. Alguns filósofos, e Hume
deve ter tido Berkeley em mente — se é que,
segundo sua teoria, ele tinha uma mente) -
afirmaram que todos nós estaríamos intimamente
cônscios daquilo que chamamos “EU”; nenhuma
prova seria necessária, porque seria uma
experiência imediata. Porém, Hume continua, toda
experiência é oposta a essa afirmação. Não
há impressão da qual a ideia de EU possa ser
gerada. Impressões, tais como vermelho, azedo,
pesado, e daí em diante, não são, singular ou
coletivamente, os originais da alegada ideia de EU,
pois tais impressões e suas ideias derivadas estão
em constante mudança - vemos vermelho em um
momento, azul no outro, e depois, ouvimos um som
- enquanto que o EU deveria se manter constante.
Se, entretanto, alguns metafísicos pensam possuir
essas ideias, o próprio Hume e o restante da
humanidade “nada mais são do que um feixe ou
coleção de diferentes percepções... A mente é um
tipo de teatro em que diversas percepções
fazem sucessivas aparições... Não há propriamente
nenhuma simplicidade nisso, em um tempo
determinado, nem identidade, num tempo
diferente... A comparação do teatro não deverá nos
enganar. Elas são as aparições sucessivas que
somente constituem a mente. Não temos a mais
distante noção do palco, em que as cenas são
apresentadas, nem do material do qual a peça é
composta”.146
A propensão para atribuir a si mesmo uma
existência invariável e ininterrupta é resultado da
confusão de duas ideias distintas. De uma
percepção que permanece invariável por um espaço
de tempo, derivamos a ideia de uniformidade
ou identidade. A ideia de diversidade, conquanto
possa advir de uma sucessão de objetos não
relacionados, também surge de uma sucessão de
objetos intimamente relacionados. Porém, embora
essas duas ideias sejam perfeitamente distintas e,
até mesmo, contrárias, ainda assim são, geralmente,
confundidas uma com a outra. Assim, substituímos
a noção de identidade pela de sucessão de
objetos relacionados, e supomos a existência
continuada da alma, EU, e substância. Um navio
fornece uma boa ilustração. Na primeira viagem,
algumas de suas partes se mostram defeituosas e
são substituídas quando o porto é alcançado. Na
viagem seguinte, há uma tormenta e o mastro se
parte. Em uma próxima ocasião, a embarcação se
choca contra algumas rochas, e o casco tem de ser
reparado. O processo continua até que todas as
partes do navio tenham sido repostas. Ora, se todas
as partes tivessem sido substituídas de uma vez,
diríamos que seria um novo e diferente navio; mas,
porque as partes foram trocadas
paulatinamente, nenhuma delas portando grande
proporção em relação à totalidade, e especialmente
porque preserva o mesmo tamanho e funciona da
mesma maneira para o mesmo propósito, não temos
escrúpulos em chamá-lo de o mesmo
navio. Semelhantemente, se um feixe de ideias
fosse completamente substituído por outro
conjunto, de uma só vez, ou até mesmo, se um
número menor — identificado como o corpo —
permanecesse, enquanto memória, educação e
hábitos se perdessem, diríamos que uma nova
pessoa teria aparecido. Porém, se a mudança fosse
gradual, a mútua relação das partes continuasse, e a
totalidade preservasse a mesma função geral,
reconheceríamos a mesma pessoa e
equivocadamente lhe atribuiríamos uma existência
ininterrupta.

Novamente, causalidade

Passando para outro tópico, a teoria de Hume sobre


a causalidade, talvez até mais do que sua visão da
identidade pessoal, foi de grande estímulo
e provocação para Kant e outros filósofos
posteriores. O fato de que a influência futura fosse
de Hume, em vez de Berkeley, é algo estranho, pois
Hume acrescentou bem pouco à teoria da
causalidade, de Berkeley, exceto clareza e ênfase.
Talvez, Kant jamais tenha lido Berkeley; ou, mais
provavelmente, talvez estivesse dormindo quando
leu, pois Kant relatou que foi Hume quem o
despertou de sua sonolência dogmática e
racionalista.

A questão é, como alguém poderia se assegurar de


qualquer existência real e material, além de por
meio do testemunho presente dos sentidos, ou
de informações da memória. Se for indagado a um
homem sobre por que ele crê que seu amigo está na
França, ele poderá apontar a evidência de uma
carta recém recebida. O que é pressuposto nessa
resposta é a conexão entre o presente fato da carta e
a estada do amigo na França, inserida no fato. Toda
evidência dada para estabelecer um fato ausente,
depende de uma conexão causal entre o que é
presente e o que é ausente. A questão, então, torna-
se, como chegamos ao conhecimento de causas e
efeitos.

Uma filosofia empírica terá de afirmar que esse


conhecimento é totalmente baseado na experiência
e não poderá ser obtido a priori, isto é, antes da
experiência. Em uma tarde quente, logo depois de
sua criação, Adão estava assentado às margens do
rio Eufrates, balançando as pernas nas águas.
Vendo um peixe cochilando confortavelmente na
corrente refrescante, concluiu que o melhor lugar
para uma soneca em um dia tão quente, seria no
fundo do rio. Embora suas faculdades racionais
estivessem perfeitas, ele não poderia ter inferido da
fluidez e transparência, que as águas o sufocariam.
Nenhum conhecimento a priori o teria advertido de
que não poderia repetir o que o peixe fazia.
Somente mediante a experiência ele poderia
aprender a conexão entre a sensação de
fresca fluidez e a do afogamento. Hume fornece
outros exemplos mais. Apresente duas bolas de
gude bem polidas a uma pessoa que não conheça
física; ela jamais descobrirá, mesmo mediante
cuidadoso exame de suas qualidades, que
elas poderiam se juntar de tal maneira, em linha
direta, que requereria grande força para separá-las,
conquanto ofereçam mínima resistência a uma
pressão lateral. Ainda, o que há na aparência da
pólvora que levaria alguém a esperar uma explosão,
ou na observação de pedra-ímã (magnetita) que
indique magnetismo?

Algumas vezes, a grande familiaridade engana-nos


com a suposição de que poderíamos adivinhar os
efeitos a partir das causas. Imaginamos que,
sem experiência, poderíamos inferir que o impacto
de uma bola de bilhar comunicaria movimento à
outra. Ou que uma pedra, lançada ao ar e deixada
sem suporte, cairia. Porém, não fosse a experiência,
poderíamos bem supor que a segunda bola de bilhar
pararia a primeira, ou que a pedra permanecesse
estática ou, até mesmo, que “caísse” para cima.

Uma vez que todo efeito é um evento distinto ou


uma sensação de sua causa, qualquer conexão a
priori entre eventos será puramente arbitrária. E
mesmo depois de experimentar a sucessão de causa
e efeito, a conexão ainda parecerá arbitrária. A
ciência jamais poderá demonstrar a ação do poder
que produz qualquer efeito no universo. A fonte
última e os princípios da natureza estão totalmente
fechados para a curiosidade e a investigação
humana. A mais perfeita filosofia, do tipo natural,
apenas pausa um pouco mais a nossa ignorância,
tal como a mais perfeita filosofia da moral ou
metafísica serve apenas para descobrir largas
porções maiores das mesmas.

Hume insistiu que nossa conclusão relativa a causas


e efeitos não seria fundada em raciocínio ou
qualquer processo de entendimento. “Nossos
sentidos nos informam”, ele diz, “sobre a cor, o
peso e a consistência do pão, mas nem os sentidos,
nem a razão, jamais nos informarão sobre as
qualidades que promovem nutrição e suporte para o
corpo humano... Contudo, não obstante a
ignorância sobre as forças e princípios naturais, nós
sempre presumimos, quando
observamos qualidades sensíveis, que elas tenham
algo como poderes secretos, e esperamos que
ocorram efeitos similares aos que
experimentamos.”147 Essa expectativa compõe a
dificuldade. Primeiro, não poderíamos saber por
que a sensação de visão e odor que chamamos de
pão, teria sido, em uma ocorrência passada, seguida
de nutrição. Segundo, a inferência de que, no
futuro, uma nutrição seguirá similar sensação é
totalmente sem justificação lógica. A inferência não
é demonstrativa, porque não há contradição na
suposição de que o marrom possa ser seguido de
envenenamento ou de nutrição. É claro que, como
matéria de fato, as pessoas esperam que o futuro
seja como o passado, e assim, comemos nosso
lanche. Porém, “se houver qualquer suspeita de que
o curso da natureza possa mudar, e que o passado
poderá não ser regra para o futuro, toda
experiência se tornará inútil e poderá dar ocasião à
inferência ou conclusão”. Seria absurda tal
suspeita? Poderíamos provar a semelhança do
passado com o futuro? Se todo conhecimento for
baseado na experiência, obviamente, não, pois nada
é mais certo do que o fato de que não temos
experiência do futuro. “É impossível, portanto, que
qualquer argumento vindo da experiência possa
provar a semelhança do passado com o futuro, uma
vez que tal tipo de argumento seja fundado
na suposição de semelhança.” “Temos dito que
todos os argumentos com respeito à existência são
fundados na relação entre causa e efeito; que nosso
conhecimento da relação é derivado totalmente da
experiência; e que todas as nossas
conclusões procedem da suposição de que o futuro
será conforme o passado. Forçar, portanto, a prova
da última suposição, por meio de argumentos
prováveis, ou argumentos com respeito à
existência, será andar em círculos, tomando como
certo exatamente o ponto em questão."148

Como é então que as pessoas tomam uma sucessão


causal e arbitrária, e a transformam em uma
conexão causal e necessária? A experiência mostra
apenas que uma impressão seguiu a outra; por que
dizemos que uma produziu a outra? A essas
questões, Hume dá uma resposta notável. “O
princípio” mediante o qual os homens são
determinados a derivar uma conclusão causal “é
costume ou hábito”. Sempre que a repetição de
qualquer ato em particular produz uma propensão à
renovação do mesmo ato ou operação, sem ser
impelida por qualquer raciocínio ou processo de
entendimento, dizemos sempre que tal propensão
é efeito do costume. Empregando essa palavra,
pretendemos não ter dado a razão última para a
propensão”.149 Tal declaração é notável no sentido
de que o termo costume, com o qual Hume deseja
explicar a inferência causal, é ele mesmo
definido em termos de causalidade: a repetição de
um ato produz ou causa a propensão para repetir o
ato, e tal propensão é o efeito do costume. De
qualquer maneira, a natureza circular da declaração
não deverá causar nenhum efeito perturbador,
pois Hume admite que ele mesmo não forneceu a
razão última ou causa da propensão. Aqui está algo
que um futuro filósofo certamente terá de
examinar.

Por que crer em Deus?

Outro ponto importante é a palavra final do


empirismo sobre a existência de Deus. Ainda que
Locke e Berkeley condenassem o argumento
ontológico, com o método racionalista, ainda assim,
eles criam que a proposição em si poderia ser
provada por meio da ordem, beleza e sabedoria
observáveis no universo. É compreensível,
portanto, que Hume tenha considerado o assunto.

Na verdade, o resultado já havia sido decidido: se


não há substância espiritual, não pode haver Deus;
e se causalidade é costume, argumentos de que o
mundo seja um efeito que terá de ter uma causa
serão totalmente inválidos. Mas Hume não se
satisfez com deixar o assunto parar por aí. Para o
propósito de então, ele estava disposto a ignorar a
questão da substância espiritual, e conceder
validade ao argumento causal, mas, mesmo com
essas concessões, a existência de Deus não pode ser
provada.

Quando inferimos qualquer causa particular de um


efeito, temos de proporcionar uma pelo outro, e
jamais permitir-nos atribuir à causa
quaisquer qualidades, mas somente aquilo que for
necessário para produzir o efeito. Um corpo de
trezentos gramas, pesado em qualquer balança,
poderá servir de prova de que o contrapeso excede
a trezentos gramas; mas jamais poderá suportar a
razão de que excede a três quilos. Nem poderemos,
por quaisquer regras de pensamento justo, retornar,
inferindo da causa outros efeitos, além daqueles
pelos quais os conheceu. Ninguém, meramente a
partir de pinturas de Zêuxis, poderia saber que ele
teria sido um habilidoso escultor ou arquiteto, e que
teria sido um artista não menos hábil no trabalho da
pedra, do que das cores.150

Semelhantemente, se nosso conhecimento de Deus


for derivado do universo considerado como efeito,
nós somente poderemos somente lhe atribuir
aquele preciso grau de poder, inteligência e
bondade, necessário para o relato de
nossa experiência. E tal como se dá no caso de
Zêuxis, assim também em relação a Deus: não
poderemos concluir que, no futuro, ele dará mais
magnificente exposição de seus atributos,
produzindo um mundo mais maravilhoso do que
este. Isto é, não há razão para crer no Céu. Em
todos os argumentos causais, o conhecimento da
causa é derivado do efeito, e nenhuma inferência
poderá ser derivada. Esta evidente avaliação correta
da força do argumento deixa a punição e a
recompensa futura sem base de prova e, de certa
maneira, remove ainda o problema do mal. Nada há
que a experiência ensine sobre Deus, que requeira
que o bem triunfe, e que o mal seja punido. Se
houver marcas de justiça distributiva no
presente mundo, talvez Deus tenha designado esse
grau de justiça; e a justiça é satisfeita. Se não
houver marcas de justiça no presente, não haverá
razão para crer que Deus é justo.

A tudo isso, um crente em Deus poderá replicar que


qualquer um que tenha visto um edifício meio
acabado poderia legitimamente inferir não
apenas que seria efeito de um projetista, mas, além
disso, que o construtor retornaria em breve para
acabar a obra. Igualmente, o mundo é imperfeito,
mas, ainda assim, revela ordem que permite inferir
uma complementação posterior.

A réplica do crente, entretanto, não tem mérito.


Alguém poderia, de fato, inferir que o edifício tem
um arquiteto ou construtor, porque a experiência
provê muitos exemplos de conexão entre um
construtor e uma casa. A experiência inclui muitas
casas semiacabadas e construtores que as
completam depois. Mas o caso não é o mesmo que
o de nossos raciocínios, a partir da obra da
natureza.

A experiência não provê muitos exemplos de


conexão entre Deus e o universo. Nem vemos
muitos mundos semiacabados sendo completados
por Deus. Mas uma inferência, a fim de ter
qualquer mostra de plausibilidade, terá de ser
baseada em algo mais do que numa simples
observação. Não há, portanto, nenhuma razão para
supor que, se tiver feito o mundo incompleto, Deus
retorne para aperfeiçoá-lo. De fato, não há razão
para crer que o mundo seja incompleto. A
experiência é vaga nesses pontos, e a pessoa terá de
permanecer cética.

Ceticismo
Para concluir a parte sobre a filosofia de Hume,
resumindo os resultados do empirismo, e
preparando para o capítulo seguinte, devemos apor
certa dose de crítica. Hume não teve a intenção de
fornecer ajuda ou conforto ao cristianismo. Muitos
crentes ortodoxos, sabedores de sua inimizade, são
tentados a atacar sua refutação, colocando
argumentos em favor da existência de Deus de
forma válida. Porém, contrário a ambos, às
intenções de Hume e aos medos desses crentes em
particular, poderá ser que Hume tenha ferido mais a
si mesmo do que ao cristianismo. Se argumentos
derivados da experiência não provam a existência
de Deus, o problema talvez resida na experiência,
em vez de na questão da existência de Deus. O
ponto importante não é se Hume chegou ao
conhecimento de Deus, mas sim, se Hume poderia
ter chegado a qualquer conhecimento. E o
próprio empirismo que está sob juízo. Poderia,
qualquer conhecimento, ser baseado somente na
experiência?

A crítica começará com aquilo que é mais


superficial e procederá para as questões basilares.
Continuando com temas religiosos, Hume, além de
refutar o argumento cosmológico, escreveu um
capítulo contra os milagres. Ainda que
as implicações religiosas sejam, em grande parte,
periféricas, a definição de Hume, de que um
milagre é, uma violação da lei natural, convida à
comparação com a visão comum da ciência, com a
visão de Berkeley, e com a visão dos
islâmicos medievais. A visão comum repousa
acentuadamente sobre a noção de causa e efeito:
um evento supostamente produz um evento
subsequente. Se não houvesse conexão necessária
entre eles, sua conjunção seria vista, simplesmente,
como coincidência e não exemplificaria nenhuma
lei científica. Hume, obviamente, não poderia se
opor aos milagres somente nessa base. No capítulo
sobre a filosofia medieval, mencionamos o filósofo
árabe, Al Gazali, cuja visão de
causalidade coincidia com a de Hume. Contudo,
onde Hume nega a possibilidade de milagres, os
islâmicos, mais compreensivelmente do que o povo
comum, concluíram em seu favor. Com o repúdio
da eficácia causal, não apenas os milagres
parecem possíveis em raras ocasiões, mas todo
evento parecerá miraculoso.

Não obstante, a negação de Hume, da causalidade


necessária, ainda dá lugar a um tipo de lei natural.
Em um aspecto, a visão de Hume quanto à ciência é
bem semelhante à de Berkeley. Embora as ideias
sejam passivas e desprovidas de toda força, há uma
regularidade em sua sequência, e a tarefa da ciência
nada mais é do que a de descrever essa
regularidade. Berkeley, no entanto, baseou a
regularidade das ideias no controle do Espírito
divino. Para Hume, entretanto, seria um fato bruto
inexplicável que as impressões ocorressem sempre
na mesma série. Uma vez, portanto, que esse tipo
de leis naturais talvez exista, Hume
pôde consistentemente definir um milagre como
“uma transgressão de uma lei da natureza”. Porém,
se a lembrança de seu argumento é ou não
consistente, depende dos fatores fundamentais do
empirismo. Hume continuou a afirmar que “tem
de haver uma experiência uniforme contra todo
evento miraculoso, de outra forma, o evento não
faria jus a tal apelação”; pois “uma firme e
inalterável experiência tem sido estabelecida a
partir dessas leis” da natureza; e um milagre
“jamais foi observado em qualquer tempo e lugar”.
Nisso, que é o centro de seu argumento, Hume
reclama a questão. Milagres não podem ter
ocorrido, ele diz, porque jamais alguém
experimentou um deles. Tal declaração apresenta
como prova a própria proposição que supostamente
tenta provar. Tal petitio principii tem implicações
mais amplas do que a questão de milagres
religiosos. A questão passa a ser se o empirismo
tem direito a esse tipo de lei, que uma negação
da causalidade parece permitir. Obviamente,
ninguém tem experimentado cada época e lugar.
Será impossível descobrir uma firme e inalterável
sequência de ideias. A lei da natureza que Hume
reclama contra os milagres acaba sendo uma
lei universal, e ninguém poderá ter uma experiência
universal. Tal como o próprio Hume disse, em
oposição à prova da existência de Deus, a
conclusão não poderá conter mais do que as
premissas. Se não pudermos atribuir a Deus mais
justiça do que aquela que nós realmente vemos,
também não poderemos supor que a natureza
continue a ser regular, além dos limites de nossa
observação. A frase: “além dos limites de nossa
observação” não é apenas geográfica e temporal.
Ela inclui as experiências de homens em outros
lugares e em outras épocas, que relataram terem
presenciado eventos miraculosos. Inclui também a
estrutura elementar da natureza que repousa aquém
do limiar de nossa observação. Uma vez que nossa
rude experiência não nos fornece perfeita
regularidade, não há razão empírica para atribuir
perfeita regularidade a hipotéticos átomos que
as causem (ou não).

Até aqui, esta conclusão crítica tem atacado os


pontos encontrados no meio ou em direção ao final
da filosofia de Hume. Mas as dificuldades
mais sérias do empirismo ocorrem justamente no
princípio. Quando Locke proveu sua mente em
branco, com uma variedade de impressões simples,
teve de combinar algumas delas antes que pudesse
ter a impressão de uma coisa. Assim
também, Berkeley disse que uma maçã é uma
combinação de sensações de visão, gosto e toque.
Mas por que uma mente totalmente desprovida de
noções preconcebidas faria qualquer combinação
em vez de outra? Deixe que Berkeley, a
qualquer momento, faça a combinação de cor
vermelha e sabor suculento, para fazer uma maçã,
se ele quiser; mas ele não poderia, em outra
ocasião, combinar tal cor, com o odor de sulfato, e
o som de si menor, e obter um boogunP. A resposta
fácil de Locke à questão é que algumas ideias
ocorrem juntas e outras, não. Além disso, ele
arranjou uma substância material para justificar um
conjunto de qualidades ajuntadas. Entretanto, com
o desaparecimento da matéria, Berkeley pôde se
apoiar somente no espírito, e de fato, no Espírito de
Deus, para a justificação desse ajuntamento. Ora,
talvez essa não tenha sido uma ação tão fatal
quanto parece. Por que não poderia ser somente
uma questão de experiência que algumas ideias
viessem em grupos? Certamente, tal fato bruto seria
falto de explanação e deixaria o universo
incognoscível ou irracional. Mas Berkeley
jamais havia afirmado ser um racionalista, e os
empiristas não se desanimavam diante de fatos
brutos. Poderiam, no entanto, ter se descorçoado, se
fossem forçados a explicar, precisamente, como
sabiam que grupos de ideias ou
impressões ocorressem em conjuntos. A questão,
em outras palavras, é: Poderia, o
empirismo, demonstrar que o conhecimento do
ajuntamento seria possível?

Novamente, Locke tentou dar uma resposta fácil,


fazendo do espaço uma ideia simples. Mas fica tão
óbvio que espaço não pode ser visto, tocado
ou cheirado, que, aparentemente, nem Locke
duvidaria. Pelo menos, em Berkeley e Hume,
espaço se tornou uma ideia de relação, e como
relações são derivadas de ideias posteriores, o
conhecimento delas não poderia existir no
princípio. Contudo, é no princípio que um
conhecimento do conjunto se faz necessário. A
menos que a mente seja livre para combinar
sensações em boogums, a sensação inicial terá de
ser reconhecida como ocorrendo conjuntamente,
antes que a mente as combine em coisas; embora a
teoria empírica tome esta ideia de conjunto como
resultado da comparação de coisas, subsequentes ao
ato de combinar.

O empirismo não pôde evitar esse embaraço,


apelando para a experiência de um fato bruto. Não
adiantaria apontar para a regularidade das
percepções das coisas. Não há regularidade entre as
impressões simples de uma criança, quem dirá
entre as de um adulto. As sensações de vermelho
não vêm regularmente acompanhadas de sabor
suculento, cheiro de sulfato e quaisquer
sensações. Às vezes, nós vemos o vermelho, em um
momento, e depois, obtemos um gosto prazeroso;
outras vezes, poderá seguir um forte ruído. O
empirismo, portanto, falha logo de início.
Ilicitamente, ele provê espaço e tempo para a sua
mente desprovida, embora professe fabricar tais
ideias em um estágio posterior do processo de
aprendizado. Ele insiste em uma mente em branco,
e no fato de que o processo de aprendizado jamais
começa. Não surpreende que Hume chamasse sua
filosofia de ceticismo: ela é mais cética do que ele
mesmo imaginava. Assim, a segunda tentativa
moderna para estabelecer o conhecimento, deixa o
objeto em pior confusão do que a deixada pelo
racionalismo ou pelo antigo escolasticismo.
9 - IMMANUEL KANT
Deve haver algo como estilo nacional na filosofia,
pois, assim como o racionalismo jamais avançou
um pé na Grã-Bretanha, assim também a Alemanha
jamais passou por um período de empirismo.
Voltaire e outros pensadores introduziram a
filosofia de Locke, na França, nos lugares em que
a perspectiva inglesa era adotada. Porém, a leste do
Reno, desde o tempo de Leibniz até a publicação de
Crítica da Razão Pura, de Kant, o racionalismo se
moveu dificultosa e lentamente com o concurso de
Christian Wolf. Kant (1724-1804), mesmo educado
nessa tradição, veio a reconhecer um valor positivo
na experiência, o que tornava o racionalismo
obsoleto, mas, ao mesmo tempo, com a ajuda
de Hume, viu o defeito que tornava o empirismo
insustentável. Então, por meio de um simples salto,
o pensamento alemão foi poupado de 80 ou 90 anos
de experiência britânica, e passou diretamente, do
racionalismo para a reconstrução kantiana da
filosofia, chamada de criticismo.
O racionalismo era a teoria de que todo
conhecimento seria baseado na lógica somente. Seu
ideal era o método dedutivo da matemática, e a
física era torturada a fim de ser encaixada no
esquema. A escola empirista chegou com
o princípio de que todo conhecimento seria baseado
na experiência somente, e a matemática foi tida
como uma ciência experimental. Embora os dois
sistemas sejam, em outras coisas, Kant encontrou
neles uma profunda similaridade, que ele acreditou
ser a causa de suas falhas. Seus esforços para
substituí-los foram caracterizados por ele mesmo
como uma revolução copérnica.

Copérnico, em vez de presumir, com seus


predecessores, que os corpos celestes se giram em
torno do observador, fez seu grande avanço,
virando o universo de dentro para fora, e
afirmando que o espectador gira, enquanto
as estrelas permaneceriam em repouso. As
filosofias anteriores também sempre presumiram
que a cognição humana girava em torno ou teria de
se conformar aos objetos do conhecimento.
Contudo, agora, Kant propunha que os
objetos teriam de se conformar às condições da
cognição. Uma vez que a primeira suposição havia
resultado em constante falha, valia a pena tentar a
segunda.

Poderá ter ocorrido a qualquer um que tenha


seguido a filosofia moderna, até este ponto, que, se
a lógica somente e a experiência somente falharam
quanto a prover conhecimento, uma combinação de
lógica e experiência poderia ser bem-sucedida.
Porém, uma vez que a experiência apenas não
fornece absolutamente nada, a combinação não
poderá ser tal que a lógica proveja matemática, e
a experiência, a física. Não poderá ser uma
combinação no sentido de que cada método tenha
sua área exclusiva. Ao contrário, lógica e
experiência terão de cooperar em todos os campos
de aprendizado. A descoberta da maneira como elas
cooperariam exigiu o gênio de Kant.

“Não há dúvida de que nosso conhecimento


começa com a experiência.” Essa é a primeira
cláusula da introdução de Kant à Crítica da Razão
Pura, pois ele estava convencido, tanto como
qualquer empirista, de que o entendimento
é chamado à atividade somente mediante o
estímulo das sensações. Entretanto, embora comece
com a experiência, nem todo conhecimento provém
da experiência. O conhecimento empírico é um
composto de impressões sensoriais e algo que a
razão supre para si mesma. A tarefa da filosofia,
portanto, é a de identificar os elementos de tal
composto. Isto é, temos de separar os fatores
a priori, o conhecimento que independe de todas as
impressões sensoriais, das contribuições dos
sentidos feitas a posteriori.

Porque não podem ser derivados da experiência, os


critérios infalíveis do a priori seriam
universalidade e necessidade. A experiência talvez
possa ensinar que os filósofos não são práticos, e
que os políticos são corruptos, mas esses juízos são
verdadeiros somente para a maioria. Nenhuma
necessidade absoluta reside aí. Nós não
conhecemos todos os filósofos nem todos os
políticos; e ainda que nossa experiência fosse
completa, o que o passado remoto torna difícil e
o futuro próximo torna impossível, ainda assim,
não poderia nos fornecer nenhum conhecimento
sobre quaisquer conexões necessárias. Entretanto,
juízos universais e necessários existem. Tome a
mais simples proposição matemática, tal como
dois mais dois é igual a quatro. Nós não dizemos
que isso seja verdadeiro na maior parte das vezes,
verdadeiro em algumas vezes, verdadeiro no
passado, mas quem sabe se amanhã ainda será
verdadeiro? Em vez disso, nós dizemos que tem
sido sempre verdadeiro, porque é verdadeiro. Ou,
na física, não dizemos que muitas das mudanças
têm causas; antes, dizemos que toda mudança tem
uma causa. Esses princípios não têm experiência
para os seus aspectos básicos. Ao contrário,
eles mesmos são a base da experiência. Sem eles,
não poderia haver conhecimento.

O a priori é exemplificado nos conceitos


individuais e nos juízos. Um economista, por
exemplo, observando a diminuição de suprimento
de boa madeira, poderá esperar pela invenção de
uma porta forte e fina. Para poupar
grande quantidade de madeira, a porta teria de ser
realmente fina. O problema seria inventar uma
porta tão fina que tivesse apenas um lado. Embora
muitas pessoas desprezem esse conceito, como se
ele fosse absurdo, devemos nos lembrar que a
televisão em cores, o ordinário rádio, e até mesmo,
o telégrafo, foram considerados impossíveis e
absurdos, no início do século 19. Não é cedo
demais para começarmos a considerar portas de um
só lado. Ainda assim, permanece a suspeita de que
há uma diferença entre esses dois casos. A televisão
pode ser quase miraculosa, mas a existência de uma
porta de um só lado não é uma impossibilidade?
São necessários experimentos para ver se a
televisão funciona; mas nós não sabemos de
antemão, antes de qualquer experimento, a priori,
que uma porta de um só lado é coisa impossível?
Diferente dos problemas que nosso gênio inventivo
tem solucionado, este parece conflitar com as
condições necessárias do próprio espaço. Espaço
não é algo que possa ser mexido, rearranjado
ou alterado. Espaço é algo necessário. Temos de
necessariamente pensar assim. E o mesmo não é
verdadeiro para outras partes de nossa experiência.
Podemos fantasiar que não haja vermelho ou azul;
podemos supor que não haja corpo; podemos
remover de nossa concepção de um corpo, primeiro
sua cor, depois, sua dureza, e cada uma de suas
qualidades sensíveis, de maneira que a
concepção de corpo se desvaneça. Mas o espaço
antes ocupado permanecerá e não poderá ser
aniquilado do pensamento. Espaço, portanto, é um
fator a priori.

Já que uma das causas principais da falha do


empirismo foi a tentativa de basear um
conhecimento de espaço, na experiência, pois o
reconhecimento da pertinência das ideias foi
ilicitamente suposto logo de início, embora a
teoria explícita não tenha sido provida
posteriormente, a descrição de Kant, do
espaço como a priori, foi um componente inicial e
crucial de sua filosofia. Kant havia estudado por
muito tempo o assunto. Quando promovido à
posição de professor catedrático, ele proferiu, como
era de costume, uma Inaugural Dissertation em
que analisou tempo e espaço. Sua grande obra, A
Crítica da Razão Pura, publicada dez anos depois
(1780), na seção sobre tempo e espaço, quase que
apenas condensa a declaração anterior. Ele havia
escrito outro ensaio sobre o espaço em 1768.

ESPAÇO E MATEMÁTICA

O primeiro ponto de Kant é o de que espaço não é


um conceito derivado de experiências externas. O
reconhecimento de que a sensação se relaciona
a algo externo, isto é, a algo que ocupe uma parte
do espaço diferente daquela em que estou,
pressupõe um conhecimento prévio do espaço
como seu fundamento. Do mesmo modo, a fim de
reconhecer diversas sensações conjuntamente,
próximas umas das outras, ou em diferentes
lugares, é necessário já ter uma representação de
espaço. Consequentemente, o primeiro estágio da
revolução copérnica é este: meu conhecimento de
espaço não poderá ser derivado das relações de
fenômenos externos mediante experiência, mas, ao
contrário, experiências externas se tornam possíveis
apenas por meio do prévio conhecimento do
espaço. Isso quer dizer que espaço é uma noção a
priori. Ele tem as características de necessidade,
pois não podemos imaginar a não-existência de
espaço, ainda que possamos facilmente imaginar
que nenhum objeto se encontre ali. Repetindo:
espaço é uma representação a priori que provê base
para a experiência externa e, de modo nenhum, um
conceito empírico.

Uma intuição

De fato, espaço, absoiutamente, não é um conceito,


mas pura intuição. Um conceito discursivo é uma
noção abstrata de uma qualidade
comum encontrada em muitas coisas. É um gênero
ou uma espécie com muitos entes sob ela. Por
exemplo, os entes sob o conceito de filósofos são:
Aristóteles, Descartes, Hume e outros. Porém,
embora haja muitos filósofos, há apenas um espaço.
Nós falamos, é claro, sobre muitos espaços: há 64
espaços em um tabuleiro de xadrez e muitos metros
cúbicos em um cômodo. Mas as partes do espaço
não estão relacionadas a nenhum espaço abrangente
e completo, da mesma maneira que os entes de um
conceito se relacionam a uma espécie ou
gênero. Note que Aristóteles poderia ter existido,
ainda que Descartes jamais tivesse nascido. No
caso de conceitos empiricamente derivados, tal
como o de filósofo, não haverá dificuldade para
preservar o conceito, enquanto um ou mais de
seus entes é aniquilado. Quanto ao espaço, no
entanto, é bem diferente. Cada uma de suas partes é
necessariamente concebida como inseparável de
todas as outras. Tente, por exemplo, pensar em um
metro cúbico de espaço, aqui, e outro lá, mas sem
espaço entre eles. A noção de Locke era de que
alguém poderia tomar tais espaços separadamente,
ajuntá-los como blocos e construir, a partir deles,
a noção de um espaço imenso. Isso implica que um
metro cúbico de espaço, tal como Aristóteles,
poderia existir, ainda que outro metro cúbico de
espaço não existisse. Mas a tentativa de pensar
sobre diversos espaços como independentes uns
dos outros falha quando alguém pergunta: Por meio
do que um desses metros cúbicos se move a fim de
ser colocado próximo de outro? Ou, da mesma
forma, o que haverá imediatamente adjacente a um
metro cúbico supostamente deixado por si mesmo?
Se nada houver entre dois metros cúbicos, isto é, se
não houver espaço entre os dois, eles não serão
continuação um do outro? O espaço, portanto, é
essencialmente um; ele não é construído por meio
da adição de espaços, mas espaços são feitos
mediante divisão de espaço.

Por essa razão, espaço não é um conceito, mas pura


intuição. E esta é a resposta ao relato empírico da
matemática. As verdades de que o espaço
tenha somente três dimensões, de que a soma de
dois lados de um triângulo seja maior do que o
terceiro, de que não há senão uma linha reta entre
dois pontos, jamais são deduzidas de conceitos
gerais de linhas e triângulos, mas são intuídas de
um único espaço concreto. É impossível descrever
discursivamente a distinção entre dois triângulos
similares e iguais, mas incongruentes. A descrição
da mão direita, concebida somente com referência à
sua extensão, aplica-se, palavra por palavra, à mão
esquerda. Ainda assim, conquanto os termos
inteligíveis sejam idênticos, os limites entre as duas
extensões não poderão coincidir. Incongruência,
portanto, poderá ser apreendida somente mediante
pura intuição.

Juízos sintéticos e analíticos


Estas considerações são igualmente inconsistentes
com o empirismo e com o racionalismo. Para os
empiristas, juízos analíticos, isto é, juízos
cujos predicados meramente repetem o conteúdo
dos objetos, são trivialidades tautológicas, e não
constituem conhecimento real. Para salvar a
geometria desse fado, eles fazem suas proposições
a posteriori e sintéticas, isto é, o predicado
da proposição, quando descoberta em uma
experiência, alarga o conceito subjetivo. O
resultado é, como Berkeley explicou, que as
proposições da matemática não serão nem
universais nem necessárias. O racionalismo,
entretanto, sustentava que todo conhecimento real,
porque deduzido pela lógica, consistiria
em proposições analíticas. Mas nem uma, nem
outra escola, jamais imaginou outro tipo de
proposição diferente de um a priori analítico e um
a posteriori sintético. A reflexão de Kant sobre
espaço e epistemologia, levou-o a afirmar a
existência do, então sequer sonhado, juízo sintético
a priori: um juízo cujo predicado alarga o conceito
subjetivo sem depender da experiência.
Kant não nega o fato óbvio de que teoremas de
geometria sejam deduzidos de axiomas. Nesse
sentido, os teoremas são obtidos analiticamente.
Não obstante, são proposições sintéticas porque os
próprios axiomas são sintéticos. Isso é o
que significou quando foi dito que alguém não
poderia deduzir do conceito geral de linha e
triângulo a verdade de que a soma de dois lados do
triângulo é maior do que o terceiro lado. Porém,
diferente das proposições sintéticas da experiência,
os juízos geométricos são a priori, porque são
necessários e universais.

Ainda assim, aqui está um problema: como


proposições sintéticas a priori são possíveis? Para
ambos, empiristas e racionalistas, a combinação de
sintético com a priori teria parecido tão absurda
como um círculo quadrado. Kant teve de fazer
inteligível a existência de uma intuição que fosse
anterior à percepção dos objetos sensíveis. Essas
duas dificuldades relacionadas são
removidas, considerando espaço como a
capacidade da razão, de ser afetada por um
objeto do sentido. Espaço é a forma do sentido
externo.

Uma ilustração

Certa feita, uma dona de casa fez um tacho de


geleia e o estocou para o inverno, em potes de
vidro, na prateleira. Um pote de geleia, mais
inteligente do que os outros, passou alguns meses
refletindo sobre a própria experiência. Ele observou
que em um ano seu conteúdo era de cor vermelho
claro, de consistência menos densa e com gosto de
cereja. Em outro inverno sua experiência foi de
um azul quase roxo, mais pastoso e com gosto de
uva. Em outra ocasião, seu objeto havia sido
alaranjado e amargo. Então, a mais notável
descoberta despertou da sonolência dogmática o
kantiano jarro de vidro com geleia. Embora
vermelho, azul, amarelo, doce e amargo tenham
vindo e ido, os objetos tinham sempre a mesma
forma. Como seria isso possível? A mudança na
experiência poderia ser devido ao material estranho
colocado no jarro, mas o único fator permanente a
ser levado em conta para identificar a forma teria
de ser o próprio jarro de vidro.

A linguagem de Kant, entretanto, é a de um


professor germânico, e é possível simpatizar com o
estudante que escreveu em sua tradução da
Crítica-. “Não posso ler alemão, não importando
em que língua esteja escrito”. Ainda assim, o
pensamento é tão claro como uma jarra de vidro,
mesmo que jarros de vidro nem sempre estejam
claros.

As coisas em si

Espaço, então, não é uma propriedade das coisas


em si, nem as suas relações com cada coisa o são.
Espaço é a forma das aparências, as
condições subjetivas da sensibilidade. Uma vez que
a receptividade ou a capacidade da razão, de ser
afetada por objetos, necessariamente, antecede a
todas as intuições desses objetos, fica claro como a
forma do fenômeno pode ser obtida na razão, antes
de todas as percepções empíricas. Espaço é
aplicável às coisas na medida em que elas
aparecem a nós; portanto, fica claro que não
podemos tornar as condições especiais de
sensibilidade em condições para a possibilidade
de coisas, mas apenas para a possibilidade de sua
existência como aparência. O espaço, portanto,
contém tudo aquilo que nos parece, externamente,
mas não contém as coisas consideradas em si
mesmas. A proposição: “Todos os objetos estão
lado a lado, no espaço”, é verdadeira somente sob a
limitação de que tais objetos são fenômenos, isto é,
objetos da intuição sensível. Para tornar a
proposição universalmente verdadeira, se deveria
dizer: Todas as aparências externas estão lado a
lado, no espaço. Em outras palavras, o espaço
é empiricamente real, mas transcendentalmente
ideal.

Obviamente, isso não quer dizer que o espaço seja


subjetivo no mesmo sentido que cores e gostos são
subjetivos. É possível ter experiência
sem experimentar uma cor ou gosto particular.
Muitas pessoas jamais tiveram a experiência do
gosto de cascavel frita. Mas não será possível ter
uma experiência sem experimentar espaço. Isso
quer dizer que espaço pertence necessariamente a
uma intuição, mas vermelho, não. Com exceção de
espaço, nenhuma representação, subjetiva e
referente a algo externo, poderá ser chamada de
a priori. Cores e gostos fornecem predicados para
juízos a posteriori-, espaço fornece juízos sintéticos
a priori, sendo, portanto, empiricamente real e
objetivo como aqueles não são. Cores e gostos não
são propriedades das coisas, mas apenas mudanças
nos objetos percebidos, mudanças que poderão ser
diferentes para diferentes pessoas. Se cor fosse do
mesmo plano que espaço, a rosa
fenomênica passaria como uma coisa em si,
parecendo diferente a cada pessoa. Mas o
conceito transcendental de fenômeno no espaço é
uma advertência de que nada que aparece no
espaço é uma forma que pertença, como
propriedade, às coisas. Aquilo que chamamos de
objetos nada mais são do que meras representações
de nossa sensibilidade; e espaço é a forma de nossa
sensibilidade. Mas o correlato independente, a
coisa em si, não poderá ser conhecida mediante a
sensação e está para sempre além da investigação
empírica.
A distinção, entre o objeto conhecido da
experiência e o desconhecimento de coisas
incognoscíveis em si, pode ser ilustrada, mas
apenas ilustrada, por perspectivas ordinárias.
Quando alguém se coloca entre os trilhos de uma
linha ferroviária e olha a reta em frente, cerca de
1.500 metros, vê que, em certo ponto, os trilhos se
convergem e desvanecem. Diz-se, comumente, que
eles apenas parecem convergir, enquanto, na
realidade, eles permanecem equidistantes, um do
outro. Essa aparência se refere, então, às condições
subjetivas de nossa percepção. Somos nós que
fazemos as linhas paralelas se encontrarem ao
longe. Similarmente, para Kant, as condições de
nossa percepção é o que realmente fazem coisas
não-espaciais em si serem vistas no espaço como
aparências ou fenômenos. Somos nós que fazemos
as aparências espaciais. Porém, se os trilhos de um
trem parecem sempre convergir quando olhamos a
distância, o que ocorre quando não estamos
observando? Poderemos dizer que eles
permanecem paralelos quando jamais os vimos
assim? Certamente, nenhuma experiência poderá
nos informar sobre a natureza de objetos não
experimentados. Assim, enquanto o fenômeno
aparece a nós na “perspectiva” do espaço, as coisas
em si mesmas, as coisas que não nos aparecem,
terão de permanecer desconhecidas.

FÍSICA E LÓGICA

Correspondente ao espaço, como forma do sentido


externo e base da geometria, o tempo é a forma do
sentido interno e base da aritmética. Isso completa
a primeira seção da tarefa de Kant: ele demonstrou
como a matemática é possível, com suas
proposições universais e necessárias, e ao mesmo
tempo, a possibilidade do reconhecimento da
conjunção de percepções. A segunda parte da tarefa
de Kant foi demonstrar como a física seria possível.
No capítulo anterior, foram enfatizadas duas
dificuldades com o empirismo. Tendo eliminado o
primeiro, Kant voltou-se para a explanação de
Hume sobre a causalidade. Se a causalidade for um
costume inexplicável, e se juízos universais e
necessários, tal como o que diz que toda mudança
tem uma causa, forem logicamente indefensáveis,
então a física e todas as demais ciências serão
impossíveis. Assim, depois da matemática e da
sensação, Kant teve de discutir física e lógica.
Tal tarefa se mostrou mais complicada do que se
imagina, inicialmente. A razão para a dificuldade é
que a física requer bem mais do que simples
percepções de objetos.

Há na razão, de fato, duas fontes de conhecimento:


receptividade para impressões e espontaneidade na
produção de conceitos. Ambas são
necessárias. Sem intuição sensível — e Kant repete
uma dúzia de vezes que toda intuição é sensível, e
nega, múltiplas vezes, que haja intuição intelectual
- nenhum objeto poderá ser fornecido à
experiência; mas sem entendimento e
conceituação, nenhum objeto poderá ser pensado.
Pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições
sem conceitos são cegas. Isso quer dizer que a
sensação sozinha poderá nos apresentar uma estrela
ou uma árvore, mas sem conceito não
poderíamos pensar que estrelas são sóis ou que
árvores são plantas; inversamente, sem
sensação, poderíamos pensar que todo “a”é “b"on
que nenhum “a”é “b” mas jamais
teríamos conhecimento real. Sensação e
entendimento são, ambos, sensações, ainda
que seus papéis sejam diferentes. À seção anterior,
sobre sensação, por causa da etimologia, Kant
chamou de Estética: uma vez que a física requer
conceituação e pensamento, a segunda seção foi
chamada de Lógica.

Conceitos a priori

Assim como Kant, na Estética, respondeu à teoria


empírica da sensação, descobrindo as formas de
sensibilidade a priori, formas que se
aplicam necessariamente a todo objeto possível da
experiência, assim também, na Lógica, ele atacou
os problemas da causalidade, pesquisando formas
de entendimento a priori. Tais formas de
concepção a priori, tais categorias, são tão
necessárias ao pensamento quanto tempo e espaço
são às sensações. Alguém pode deixar de ter o
conceito de planta ou de gimnosperma, tal como
poderá deixar de ter a sensação de vermelho ou de
búfalo; mas ninguém que realmente pense deixará
de ter os conceitos a priori. Conceitos empíricos
têm conteúdo sensível, mas as categorias, porque
são a priori, são, ipso facto, puras. Elas têm de ser
alguma coisa como o conceito de unidade ou de
causa, em vez de serem como o conceito de
planta. Mas quais serão esses conceitos a priorP.
Como serão obtidos? Poderemos estar certos de
havê-los descoberto a todos? A resposta a essas três
questões depende da dedução de categorias tal
como um sistema depende da própria ideia
de entendimento. A menos que seja deduzido como
um sistema, uma lista de conceitos chegará a ser
apenas um agregado confuso. Isso explica a
diferença entre a análise kantiana e a análise
socrática. Os conceitos que Sócrates analisou eram
empíricos, e ele procedia de um para o outro sem
qualquer ordem nem fins determinados. Depois de
ter analisado a coragem, ele se voltaria
indiferentemente para a temperança ou para a
piedade. Mas a análise kantiana de concepção não é
uma análise deste ou daquele conceito; é uma
análise da faculdade de conceituação, a faculdade
do próprio entendimento. A análise kantiana busca
seus conceitos por meio de uma regra, de maneira
que os resultados formem um sistema que
seja reconhecidamente completo.

Unificação da experiência

O entendimento ou a faculdade de conceituação é


uma faculdade não-sensível da cognição. Uma vez
que o modo de receber conhecimento por meio
da sensibilidade é intuitivo, o modo de
entendimento da cognição será discursivo, isto é,
mediante conceituação. Não haverá outro modo de
conhecer. Ora, intuições dependem de
receptividade. A razão é passiva, é afetada, recebe
o que lhe é dado; mas conceber ou entender por
meio de conceitos é uma função ativa. Quando
enquadra um conceito, uma pessoa arranja diversas
representações sob uma representação comum. Por
exemplo, ela intui, se não, o coro celeste, pelo
menos a bancada terrestre, tais como carvalhos,
glicínias e grama comum; a tudo isso coleta e
classifica sob o conceito de planta. Ele unifica as
múltiplas intuições, arranjando-as sob um conceito.
Conceitos, portanto, são baseados na
espontaneidade do pensamento e são formas de
unidade impostas pela mente à
multiplicidade sensível. Isso implica que um
conceito não se relaciona imediatamente a
qualquer objeto dos sentidos; relaciona-se
imediatamente a uma intuição, uma
representação sensível que, por sua vez, relaciona-
se imediatamente com um objeto.

Embora as conceituações sejam um passo fora da


realidade, elas são indispensáveis ao conhecimento,
pois é por meio de conceitos que os juízos
são possíveis. Um juízo é uma cognição imediata
de um objeto, uma representação de uma
representação. O conceito junta a representação
subjacente em uma só unidade. Todos os juízos,
portanto, são funções de unidade; e a unificação
da experiência é o propósito do entendimento, pois
é a faculdade de julgar. Ora, o significado de tudo
isso é o seguinte; uma vez que o entendimento
unifica a experiência, e que tal unidade é expressa
em juízos, é possível descobrir todas as funções do
entendimento, todas as formas básicas de unidade,
todos os conceitos a priori, mediante o exame de
diversos tipos de julgamento.

Síntese

Antes de alistar esses conceitos ou categorias a


priori, Kant inseriu um parágrafo preliminar sobre
a síntese. Sua terminologia é indubitavelmente
confusa, mas se revelará não tão incompreensível,
se a motivação não for esquecida.

Em oposição à razão em branco do empirismo,


Kant quis especificar o equipamento a priori para o
pensamento. Esse equipamento incluirá a
categoria da causalidade, a fim de possibilitar a
física. E a lista de categorias deverá ser deduzida
por meio de uma análise do próprio entendimento.

Tal análise é possível porque as funções de unidade


da razão são expressas em juízos. Quase todos os
juízos, como no exemplo anterior, são empíricos. A
lógica geral abstrai o conteúdo empírico e identifica
suas formas — o universal ou o particular, a forma
afirmativa ou a negativa de um julgamento. A
lógica transcendental tem todas as formas da lógica
geral e outras que lhe são acrescentadas, porque,
diferente da lógica geral, tem diante de si o
multiforme conteúdo da sensibilidade a priori. A
espontaneidade do pensamento requer que
essa multiplicidade - as diversidades de espaço e
tempo — seja recebida pela razão e sinteticamente
conectada.

Síntese é o processo de juntar diferentes


representações e de compreender sua diversidade
em uma única cognição. Ela pode ser pura ou
empírica. Em uma situação empírica, uma síntese
terá sempre de preceder, não meramente um juízo,
mas, a intuição de um objeto sensível. Embora seja
sempre este o caso, ele é mais facilmente
reconhecido na percepção de objetos maiores.
Quando vemos um edifício ou uma montanha,
nossos olhos correm para um canto, depois para o
teto ou topo, depois cruzam para os lados e frente
do prédio ou monte. Será impossível sentir
completamente o objeto, de maneira
instantânea. Focalizamos uma parte após outra,
rapidamente. As muitas sensações recebidas são
guardadas na memória ou imaginação, e então,
ajuntadas ou sintetizadas em um único objeto. O
mesmo ocorre com objetos menores; os olhos se
movem de um lado para o outro. Isso fornece ao
sujeito que percebe uma variedade de sensações,
cores, formas, texturas. Estas são, então,
sintetizadas na percepção de um único objeto; mas
o processo é tão comum e tão rápido que
raramente se tem consciência dele.

Distinta dessa síntese empírica que resulta na


percepção de objetos sensoriais, há também a pura
síntese a priori. Assim como o dado material
é sintetizado no tempo e no espaço, o resultado é
encontrado na matemática e na geometria. Nossa
cognição de um número - e, mais uma vez,
números maiores dão melhores exemplos - é uma
síntese conceituai, tomando lugar segundo
uma base comum de unidade, por exemplo, de
dezenas ou centenas. Ora, então, a lógica
transcendental reduz a conceitos, não as
representações de edifícios ou montanhas nem de
números, mas a síntese pura das representações.
A linguagem pode ser confusa e o pensamento
obscuro, mas uma atenção moderada removerá as
dificuldades. A lógica transcendental reduz a
conceitos a síntese pura de representações: isto é, o
processo de síntese já exemplificado é analisado em
fatores. Tais fatores são conceitos pelos quais uma
ou outra forma de unidade é necessária e
universalmente imposta a todo o conteúdo do
pensamento. Há três estágios na cognição a priori
de qualquer objeto. Primeiro, a diversidade de
espaço e tempo. Segundo, a síntese de sua
diversidade na imaginação. Mas um terceiro é
também requerido para qualquer cognição, a saber,
os conceitos que dão unidade à síntese; conceitos
que consistem tão-somente na representação de sua
unidade sintética necessária. A mesma função que
dá unidade a diferentes representações em um juízo
também dá unidade à síntese, em uma
intuição. Assim, o entendimento, pelo mesmo
processo que usa na produção das formas de
julgamento lógico, introduz um conteúdo
transcendental nas suas representações. Portanto,
tais representações são chamadas de conceitos
puros do entendimento, e assim são aplicados a
priori a todos os objetos.

As CATEGORIAS

É hora, agora, de nomear as categorias e de


demonstrar sua derivação das formas de
pensamento lógico. Felizmente, esta colocação é
mais fácil de entender do que os parágrafos
preliminares. Há doze categorias, das quais a
primeira é unidade. Na lógica, quer geral, quer
transcendental, a forma de juízo geralmente põe em
primeiro lugar a forma universal. Frequentemente,
nós unificamos a experiência, coletando todas as
árvores sob o conceito de plantas, e dizemos:

Todas as árvores são plantas; ou no âmbito a priori,


dizemos; Todos os triângulos são figuras planas.
Esse relacionamento todos-são, que distingue o
juízo universal de outros, é a operação ou o
resultado da categoria a priori de unidade.

Contraste isso com a visão de Berkeley. Em seu


esforço para basear a matemática na experiência,
Berkeley se propôs a descobrir a unidade
na experiência. Ele faria de um simples grão de
areia, ou de um monte de areia, a unidade, o que
fosse adequado a seu propósito empírico. Para
Kant, entretanto, o tratamento de Berkeley foi
superficial. Concedamos que podemos
escolher qualquer coisa como uma unidade
empírica; a questão subjacente diz respeito
à origem da ideia de unidade. Se realmente
qualquer coisa na experiência puder ser escolhida
como uma unidade, será particularmente
impossível descobrir unidade nas coisas em si. Elas
poderão ser tomadas como unidades, mas a ideia de
unidade terá de preceder essa formação. Bem ao
reverso da tentativa empírica para basear a unidade
na experiência, a posição de Kant é que a
experiência, ou antes, a possibilidade de
experiência significante, é baseada na ideia de
unidade. Se a razão não tivesse uma categoria a
priori, jamais poderia reconhecer qualquer coisa
como uma coisa. E à parte de tal reconhecimento
elementar, a experiência não seria melhor do que
um caos completo. O mesmo princípio geral é
válido para as outras categorias: elas não dependem
da experiência, mas a experiência depende delas.
Causalidade

Além da forma de julgamento universal, há a forma


particular: algumas plantas são árvores, ou algumas
figuras planas são triângulos. A categoria na
base dessa forma é a categoria de pluralidade. As
demais - totalidade, realidade, negação, limitação,
substância, reciprocidade, possibilidade, existência
e necessidade - poderão, com segurança ser
omitidas desta consideração.

Mas a categoria da causalidade não poderá ser


omitida. Assim como Aristóteles selecionou a
premissa média do silogismo para indicar a causa
da conclusão, Kant, de maneira quase semelhante,
achou que a implicação na lógica dependeria da
categoria de causalidade. A implicação é uma
maneira de unificar a multiplicidade de experiência.
Quando dizemos: “Se isto for verdadeiro,
então, aquilo ou aquilo outro também será
verdadeiro”, nós juntamos um número
de experiências em um juízo. Ainda que seja um
juízo mais complicado do que as simples formas
universal e particular, continua sendo um juízo de
síntese e unificação. Esse juízo de implicação
caracteriza eminentemente, as leis da ciência. Se
certas condições forem colocadas, então
determinados resultados se seguirão. Se o Sol, a
Lua ou a Terra estão em afixadas posições,
movendo-se a definidas velocidades, seguindo
curvas específicas, então um eclipse ocorrerá em
um dado momento. Tal implicação, tal declaração
científica, é possível porque a razão está equipada
com o conceito a priori de causa. Certamente a
causalidade é encontrada na experiência, mas nosso
conhecimento da causalidade não está baseado na
experiência. A causalidade é encontrada na
experiência porque a razão a colocou ali; ela é a
forma ou o jarro de vidro no qual a experiência
é derramada. Esta é a revolução copérnica: as
filosofias anteriores tinham sempre assumido que a
cognição giraria em torno de, e que teria de se
conformar com, os objetos do conhecimento; mas,
então, Kant fez os objetos do conhecimento se
conformarem às condições da cognição.
Resta algo a ser dito sobre ciência e causalidade,
mas, primeiro, uma precaução que será aplicável a
todas as categorias deve ser introduzida. É
preciso entender que a cognição será possível
somente quando as categorias forem aplicadas ao
objeto da experiência. Pensar e conhecer não são a
mesma coisa. Podemos pensar, ou fazer juízos,
sobre snarks e hipogrifos: todos os hipogrifos são
snarks, mas nem todo snarks é hipogrifo. Contudo,
na cognição, tem de haver, não só a categoria pela
qual um objeto é pensado, mas também uma
intuição pela qual um objeto é fixado. A intuição é
sempre sensível; consequentemente, nosso
pensamento sobre um objeto em termos de
categoria somente poderá se tornar uma
cognição se o objeto for fixo na sensação. Até
mesmo as proposições da matemática,
que combinam as categorias e as intuições a priori
de tempo e espaço, não configuram estrito
conhecimento. A matemática torna-se
conhecimento somente sob a suposição de que
existem, ali, objetos sensoriais, aos quais possa ser
aplicada a forma matemática. Portanto, as
categorias, mesmo por meio de intuição, não dispõe
de nenhuma cognição de coisas. A sensação é
indispensável. Isso quer dizer que as categorias
servem apenas para tornar possível a cognição
empírica. Sua aplicação a objetos sensoriais é sua
única função legítima. Uma vez que os objetos da
sensação são aparências, fenômenos e não
noúmenos, nada poderá ser conhecido sobre as
coisas em si. Além dos limites da experiência
sensível, nem espaço e tempo, nem as categorias,
terão qualquer aplicação válida. Se alguém pudesse
imaginar um objeto de intuição intelectual ou não-
sensível, a ser fixado, o conhecido dele seria
inteiramente negativo. Não teria extensão
no espaço, não teria duração no tempo, não seria
uma unidade, uma pluralidade, uma substância,
uma causa ou um efeito. Mesmo supondo a
existência de uma intuição intelectual, uma
hipótese que, é claro, Kant não garante, essas
negativas seriam produtos de ignorância, seriam
incognoscíveis. Como essa restrição das formas da
razão ao material sensível afetará a questão da
existência de Deus, é algo que pode ser facilmente
antecipado.
Uma visão teísta

No final do parágrafo sobre a longa dedução ou


justificação das categorias, antes de se voltar para
uma visão mais próxima dos princípios da ciência,
Kant, brevemente, reverencia a todas as outras
possíveis epistemologias, e particularmente, a
qualquer tentativa teísta de evitar o ceticismo. Sua
disjunção inicial é que ou a experiência torna as
categorias possíveis ou as categorias tornam as
experiências possíveis. Uma vez que a primeira
perspectiva, sob a análise de Hume, resultou no
ceticismo, resta somente a segunda opção. Não
obstante, ele diz: “É bem possível que alguém
venha a supor uma espécie pré-formativa do
sistema de razão pura, um meio-termo para julgar
entre as duas alternativas mencionadas, que as
categorias não sejam inatas ou a priori nem
derivadas da experiência, mas que sejam
meramente aptidões subjetivas do pensamento, em
nós implantadas contemporaneamente com nossa
existência, como ordenadas pelo Criador,
de maneira que seu exercício se harmoniza
perfeitamente com as leis da natureza, que regula a
experiência” (B. 167).

Talvez, a objeção de Kant a esse tipo de


epistemologia teísta não dependa de certa confusão
inerente à citação; mas deve ser observado que, se
nosso Criador implantou em nós determinadas
categorias ou aptidões para o pensamento,
contemporaneamente à nossa existência, Kant
dificilmente estaria justificado na negação de que
elas seriam a priori. Em vez de dizer que as
categorias dadas por Deus não seriam a priori, nem
derivadas da experiência, teria sido bem mais
acurado, embora paradoxal, descrever as categorias
de tais epistemologias teístas, tanto como a priori,
quanto derivadas da experiência. Em qualquer caso,
não há justificativa para negar que seriam a priori.

A primeira objeção de Kant aos conceitos


divinamente implantados é que alguém jamais
poderia determinar o ponto em que o emprego de
tais aptidões predeterminadas cessaria. Essa
objeção é ambígua. Se ela significar que o uso
de categorias será estendido para além da
experiência, de maneira que juízos sobre Deus
sejam possíveis, o teísmo admitiria o sentido. Se,
entretanto, a objeção significa que a aplicação
precisa de uma categoria a uma situação
empírica concreta não é automaticamente
determinada pela visão teísta geral, isto é, se nós
não sabemos o que é causa do que, ou se
devêssemos, então, aplicar o conceito de
reciprocidade em vez de o de causalidade, a
resposta óbvia é que a própria teoria de Kant está,
ela própria, diante da mesma dificuldade.

A segunda objeção aos conceitos divinamente


implantados, que Kant afirma conclusivamente, é
que, no presente caso, as categorias perderiam
inteiramente seu caráter de necessidade, que está
essencialmente envolvido na própria concepção
deles. Ele explica esta objeção, com um exemplo:
“O conceito de causa”, ele diz, “que expressa a
necessidade de um efeito sob uma
condição pressuposta, seria falso, se ele repousasse
apenas sobre uma necessidade subjetiva arbitrária
de unir certas representações empíricas, segundo
tais regras de relação. Eu não poderia dizer: ‘O
efeito está conectado com sua causa, no objeto (isto
é, necessariamente)’, mas apenas, ‘Sou constituído
de modo que posso pensar que tais representações
são assim conectadas, e não de outra maneira’. Ora,
isto é exatamente o que o cético deseja”.

Contudo, a posição teísta teria de destituir as


categorias de sua necessidade e invalidar o conceito
de causalidade? (O teísmo, e algumas teorias não-
teístas, rejeitarão, é claro, a visão kantiana de
causalidade mecânica, mas esse é outro assunto.)
Certamente, presumindo que Deus tenha
implantado aptidões para o conhecimento, e que as
tenha ordenado de maneira harmônica com as leis
da natureza, Kant está patentemente errado, ao
dizer que seria falsa a concepção de uma relação
causal sob pressupostas condições. Quando se
refere a essa relação causal como sendo arbitrária e
subjetiva, parece que ele está dependendo de
sua declaração anterior, de que um conceito
implantado em nossa criação não poderá ser a
priori e inato. Mas essa afirmativa não é razoável,
nem plausível.
Finalmente, Kant deveria ser o último a lamentar a
declaração: “Sou constituído de modo que posso
pensar... e não de outra maneira”. Qualquer valor
que a objeção possa ter, se aplica com maior força a
Kant do que ao teísmo. Não seria o jarro de geleia,
constituído para dar forma ao seu conteúdo, “e não
de outra maneira”?

As LEIS DA CIÊNCIA

A tabela de categorias não é suficiente para, por si


mesma e sem maior elaboração, prover a
possibilidade da física. Categorias são conceitos;
além delas, é necessário um conjunto de juízos a
priori. Esses juízos, tal como as leis básicas da
ciência, devem ser descobertos na relação entre
categoria e sensibilidade. Embora sejam chamadas,
apropriadamente, de leis da ciência, elas não são
os princípios de matemática ou física encontrados
em livros-texto científicos comuns. Por mais
universal que seja, a lei da gravidade não é um
desses juízos. Assim como outras leis da natureza,
ela é simplesmente uma aplicação particular
de princípios puros a priori do entendimento. Esses
são os princípios que tornam possível a lei da
gravidade.

Quantidades extensas

O primeiro princípio, chamado de axioma da


intuição, é: “Todas as intuições são qualidades
extensas”. Em outras palavras, a magnitude tem de
ser ilustrada na experiência. Tal julgamento é a
priori, e como a priori, poderá ser conhecido antes
da experiência. O fato de que há magnitude não é
uma descoberta indutiva, empírica. O fenômeno
poderá ser apreendido somente sob as formas de
espaço e tempo, e uma vez que esses envolvem
quantidades extensas, todo fenômeno exibirá
extensão no tempo ou no espaço.

Quantidades intensas

O segundo princípio, a antecipação da percepção, é:


“em todos os fenômenos, o Real, aquele que é um
objeto da sensação, tem quantidade intensa, isto é,
tem um grau”. Kant justifica este princípio,
supondo que a apreensão não necessita de uma
série de sensações. Poderá ser verdadeiro que
nossa percepção de um edifício ou de qualquer
coisa requeira uma síntese de muitas sensações,
mas uma única sensação poderá ser apreendida sem
uma síntese, e poderá, portanto, ocorrer em dado
momento. Portanto, uma única sensação, distinta da
percepção de um objeto, tem uma quantidade
extensa. (Se uma sensação puder ocorrer
instantaneamente, e assim, evitar extensão no
tempo, seguirá que ela não terá extensão no
espaço?) A ausência de sensação, em determinado
momento, poderá ser pensada como zero - o
instante estará vazio. Haverá, entre zero e uma
realidade completa, uma série infinita de
gradações intermediárias. A sensação, portanto, é
um contínuo, e como uma quantidade apreendida
instantaneamente, em que a pluralidade poderá ser
representada unicamente mediante uma
aproximação de zero, ela é uma quantidade
intensiva, ou é medida proporcionalmente.

Tal como o primeiro desses dois princípios


contribui para a justificativa da aritmética e da
geometria, assim também, o segundo, aqui
dificultado por causa da omissão de várias
dificuldades, justifica o cálculo. Porém, assim
como a geometria, e o cálculo precederam Kant,
assim também sua profundidade poderá ser mais
bem julgada pela sua influência sobre seus
sucessores. E a implicação dessa seção que
estimulou as medições psicofísicas da intensidade
da sensação, pelas quais, mais tarde, Gustav
Theodor Fechner tornou-se famoso.

Conexão necessária

O terceiro dos princípios é um conjunto de três,


chamado de Analogias da Experiência, resumido na
seguinte declaração: “A experiência somente será
possível pela representação de uma necessária
conexão de percepções”. Kant concorda com Hume
em que, na experiência, nenhuma conexão
necessária surge das próprias percepções. Em uma
filosofia estritamente empirista, Adão
jamais poderia ter antecipado um afogamento nas
águas do Eufrates, nem o mais perspicaz dos
cientistas poderá ver por que o movimento de uma
bola de bilhar tornaria necessário o movimento de
uma segunda. Contudo, Kant estava bem mais
preocupado com as consequências de tal teoria, do
que Hume. Uma série de percepções desconexas
seria puramente rapsódica, caótica e sem
sentido. Tão caótica, que, na verdade, Hume não
poderia ter escrito sobre filosofia nem sua História
da Inglaterra. O ceticismo, como Platão e
Agostinho bem sabiam, exige silêncio, ou quando
muito, um murmúrio.

Da mesma maneira, Kant também viu, ou pensou


ver, um meio de escapar ao predicado de Hume. O
princípio geral das três primeiras analogias
citadas, isto é, a asserção da necessária conexão das
percepções, resulta da unidade sintética imposta
sobre a repetição de sensações. Kant, aqui, está
tentando dizer que o universo não pode parecer
caótico. A parte das implicações
completamente céticas do empirismo, não apenas
uma lei da física em particular seria, no
máximo, uma descoberta inesperada, mas, o
simples fato de que uma ou outra lei pudesse ser
descoberta não poderia ser conhecido antes da
descoberta de uma lei em particular. Em um
esquema empírico, o cientista corre o risco de
encontrar o universo completamente sem lei.

Kant nega que tal risco exista. Poderia ser que os


átomos que compõem o mundo estivessem em um
movimento sem lei, tal como suporíamos estar uma
larva de mosquito? Poderíamos experimentar ou
perceber uma completa ausência de lei, no
universo? Não, insiste Kant; toda percepção
pressupõe uma lei. Os átomos, supostos como
larvas de mosquitos, têm massa, ou não seriam
átomos; e o conceito de massa pressupõe a lei da
gravidade. Somente mediante a lei da gravidade
será possível reconhecer o átomo. Bem, então, se
massa tivesse sido uma invenção de Isaac Newton,
e se isso tornasse impróprio o uso do
conceito moderno de átomo, o que dizer dos
corpos? Sem lei, corpos extensos poderiam ser
observados? Novamente, a resposta é não, pois
extensão envolve medição, e medição requer lei.
Portanto, qualquer coisa que possamos dizer sobre
um corpo, implicará que se trata de um elemento
em um sistema em que habita lei. Ninguém jamais
poderá observar a completa ausência de lei. A visão
de Kant, aqui, contrasta tanto com o racionalismo
quanto com o empirismo. Se o empirismo mantém
que seria possível antecipar qualquer coisa, não
apenas esta lei, mas também a legalidade, o
racionalismo mantém o extremo oposto, de que
nada poderia ser antecipado, pois este é o único
mundo pensável. Kant rejeita ambos os extremos e
argumenta que, embora qualquer lei particular
da ciência possa ser antecipada, terá de haver lei,
pois a experiência, experiência significante,
pressupõe lei.

Substância permanente

A primeira analogia sob este princípio geral é: “Em


todas as mudanças de fenômeno, a substância é
permanente, e sua quantidade na natureza
jamais aumenta ou diminui”. A defesa desta
analogia é cercada de consideráveis dificuldades.
Todo fenômeno, Kant começa, existe no tempo, e
somente no tempo é que coexistência e sucessão
poderão ser representadas. Ora, o
tempo, propriamente, não é um objeto de
percepção. A partir desse fato, Kant
professa deduzir a conclusão de que, nos objetos de
percepção, será achado um substrato que represente
o tempo em geral, em que toda mudança e
coexistência possam ser percebidas por meio da sua
relação com o fenômeno. Esse substrato é
a substância. Onde não houver substância, onde não
houver fundamento permanente, não poderemos
jamais distinguir entre aquilo que é
coexistente daquilo que é sucessório. Na verdade, o
argumento define mudança de uma maneira que
lembra Aristóteles. Mudança somente poderá
ocorrer em relação a uma substância imutável.
Origem absoluta, algo vindo do nada, não poderá
ser percebido, porque o nada anterior, o tempo
vazio, não poderá ser percebido. Somente a
permanência torna possível a percepção das coisas.
Na primeira leitura da obra de Kant, sem dúvida,
será sábio propor uma investigação sobre as
dificuldades contidas nesse argumento. É possível
sustentar como plausível que a mudança requer
algo permanente, mas existe a dúvida de que Kant
tenha argumentado suficientemente bem para
demonstrar que no mundo físico o permanente
exista como substância. Possivelmente, o próprio
tempo poderia ser um permanente necessário; ou,
se não, talvez os requisitos poderiam ser satisfeitos
de maneira mais plausível pela razão, o EU, a
“unidade de percepção transcendental”, da qual o
tempo é a forma. Infelizmente, críticas tais como
esta requerem delicado raciocínio.

Causa e efeito

A segunda analogia, que poderá ser considerada o


foco da Crítica, é: “Todas as mudanças ocorrem
segundo a lei da conexão de causa e efeito”.
Embora Hume tenha levantado apenas a questão da
causalidade e tenha falhado em ver o problema
generalizado de todas as categorias, ainda assim,
para Kant, foi a causalidade que permaneceu como
ponto crucial. Essa longa seção de justificativa do
princípio da causalidade contém, pelo menos, seis
argumentos, a maior parte deles, substancialmente
o mesmo. Porém, porque há inconsistências
menores, conclui-se que Kant não escreveu o
capítulo de uma sentada só. Presumivelmente, tanto
no primeiro quanto no segundo caso, e em diversas
seções da Crítica, ele tentou formular uma dúzia de
vezes um argumento apropriado, e quando
decidiu publicá-lo, rapidamente os juntou e os
enviou para a impressão. A linha geral
de pensamento é a mesma que Kant seguiu do
começo ao fim. Para os empiristas, a incerteza de
uma conexão causal entre um evento particular x e
outro evento y, lança dúvidas sobre a causalidade
em geral. Os racionalistas, tal como fica claro em
Spinoza, fazem da causalidade uma conexão lógica
inerente ao sentido de x e y. Kant, entretanto,
permitindo dúvidas em casos particulares, torna o
princípio geral da causalidade inerente ao princípio
da experiência.

Mas as provas do princípio causam


desapontamento e confusão, e o que é pior, elas
ficam mais frustrantes à medida que são mais
cuidadosamente estudadas. Parece que mesmo
Kant, que com coragem atacou os problemas não
resolvidos do empirismo, corre o risco de falhar. Eu
percebo, ele começa, que os fenômenos se sucedem
uns aos outros. Tal percepção de mudança só é
possível porque eu conectei duas perspectivas no
tempo. Ora, conexão não é uma mera operação dos
sentidos. Sobre esse ponto, Hume é inatacável:
conexões não são dadas na experiência sensível.
Mas como existem de fato, devem ser produtos de
uma faculdade sintética da imaginação. A
imaginação, no entanto, pode conectar
duas percepções de duas maneiras, uma ou outra
antecedente no tempo. O tempo em si não pode ser
percebido, e o que antecede ou o que sucede em um
objeto, não poderá ser empiricamente determinado
em relação a ele. A sucessão, então, está na minha
imaginação, não no objeto. Isso é verdadeiro com
respeito à minha percepção de um edifício. Minhas
sensações talvez comecem com o telhado
e terminem com a fundação, ou vice-versa; talvez
procedam da direita para a esquerda. Mas não há
nenhuma sucessão nem relação causal no edifício.
Ao contrário, para conhecer a relação de sucessão
como determinada, a ordem terá de ser feita
necessária e irreversível. Ora, a necessidade
somente poderá vir de uma concepção pura do
entendimento e, nesse caso, o conceito é de causa
e efeito. Segue, então (pelo menos, Kant diz que
segue), que é somente porque nós estamos sujeitos
a sequência de fenômenos e, consequentemente, a
todas as mudanças, à lei de causalidade, que a
própria experiência torna-se possível, isto é, a
cognição empírica do fenômeno.
Consequentemente, os próprios fenômenos, como
objetos da experiência, somente são possíveis em
virtude dessa lei.

A conclusão mostra claramente para onde Kant está


indo, mesmo que ela não proceda daquilo que foi
dito. Há, entretanto, um número de
parágrafos posteriores, alguns talvez sigam na
direção desejada. Se uma mudança ocorre ou se
algo acontece, é algo que não poderá ser percebido
a menos que haja um fenômeno anterior. Um
evento ou uma realidade que seguisse a um vazio
temporal, por exemplo, Deus criar o mundo do
nada, não poderá ser apreendido, tanto quanto o
próprio vazio temporal. Portanto, toda apreensão de
um evento tem de seguir uma percepção anterior.
Ora, eu noto, à medida que observo um barco
descendo a correnteza, que minha percepção de sua
última posição segue minha percepção de sua
posição anterior, e que é possível perceber as
duas posições na ordem reversa. A ordem é
determinada. Assim, a percepção da mudança de
posição do navio é diferente da percepção do
edifício, porque, na segunda ilustração, a conexão é
feita segundo uma regra e a sequência é
necessária. Essa sequência subjetiva de percepções
é baseada numa sequência objetiva do fenômeno.
De outra forma, os conteúdos de minha razão
seriam, apenas, arbitrariamente arranjados, e não
poderia haver conhecimento.

A opinião comum é de que o conceito de


causalidade vem da experiência, como o conceito
do navio, mas, nesse caso, a causalidade seria tão
contingente como as coisas na experiência. Ver um
navio não é um elemento necessário na experiência;
habitantes do interior talvez nunca tenham visto
um. Assim, a lei da causalidade não seria universal
nem necessária. Mas a causalidade, diferente
do navio, é necessariamente encontrada na
experiência; é encontrada na experiência porque
nós a colocamos ali, e tal colocação ali torna a
experiência possível.

Ora, finalmente, há uma objeção que deveria ser


examinada, e a dificuldade se aplica tanto ao tempo
e ao espaço quanto à causa e às categorias.
Podemos dizer que a teoria de Kant torna tudo isso
puramente subjetivo. Espaço e tempo são chamados
empiricamente reais, mas transcendentalmente
ideais. Contudo, como tempo e espaço poderão ser
reais, se é a razão que os impõem sobre
a experiência? Como é possível referir nossos
estados conscientes a objetos? Terá Kant, mais do
que Berkeley ou Hume, escapado dos estados
subjetivos para fazer contato com um mundo real?
Deve ser lembrado que o racionalismo enfrentou a
mesma dificuldade. O argumento ontológico foi
supostamente uma ponte que ligou a lacuna entre
definição e existência real. Porém, à parte
das dúvidas quanto à sua validade, ele parece
insuficiente para a derivação de existências
individuais. Ora, a sensação encontrou um impasse
similar. A questão é, obviamente, de suma
importância, mas a série de pontos falhos indica
uma tarefa que se prova hercúlea. Como é possível
referir nossos estados conscientes a objetos? Ou,
para colocar a questão nos termos em que Kant
desejaria responder: que tipo de propriedade a
“relação com um objeto” fornece às nossas
representações subjetivas? Kant explica que a
diferença entre representações puramente
subjetivas em sucessão arbitrária e representações
que referem a um objeto é que a última foi
conformada com uma regra de conexão
necessária. Somente porque certa ordem temporal
entre nossas representações é necessária, é que um
significado objetivo pode ser atribuído às mesmas.
Espaço, tempo e causalidade podem ser tomados
como objetivamente reais, porque, por necessidade,
aplicam-se a todos os objetos da experiência. A
construção teológica de Berkeley não providenciou
tanto quanto a isso?

A EXISTÊNCIA DE DEUS

Por causa da omissão da terceira Analogia, dos três


Postulados do Pensamento Empírico e de algum
material intensamente interessante, será
possível considerar a visão de Kant sobre as provas
da existência de Deus. A essa altura, Kant
reivindicava ter demonstrado que matemática e
física eram possíveis. Porém, uma vez que as
categorias não poderiam ser validamente aplicadas
além dos limites das percepções sensoriais, fica
claro que metafísica e teologia são impossíveis.
Para suportar essa conclusão, inerente à sua
exposição das categorias, Kant analisou os
argumentos tradicionais e descobriu suas falácias.

Há três, e apenas três tipos possíveis de argumento


para provar a existência de Deus. Um tipo, o
argumento físico-teológico, ou, teleológico, é o que
faz uso de toda informação experiencial possível. O
mundo nos apresenta um espetáculo de ordem,
variedade e beleza tão magnificente, que somos
levados a atribuir toda possível perfeição a uma
causa suprema, primeira e autossubsistente.
Tal argumento, diz Kant, merece ser mencionado
sempre com respeito. É o mais antigo, o mais claro
e o que está mais em conformidade com a razão
comum da humanidade. No entanto, a fim de esse
argumento ser válido, um segundo tipo de
argumento, o cosmológico, terá de ser válido
também.

O argumento cosmológico é aquele que deriva a


existência de Deus da menor experiência possível.
Em um esboço: se alguma coisa existe, um
ser absolutamente necessário existe; eu mesmo
existo, portanto Deus existe. A menos que esse
argumento seja válido, o argumento teleológico
carecerá da fundamentação necessária. Kant está
consciente das objeções de Hume a tais
argumentos, e disposto a admitir que sejam
conclusivas. De fato, ele diz: “nesse
argumento cosmológico estão montados tantos
sofismas, que a razão especulativa parece
ter manifestado toda sua habilidade dialética para
produzir uma ilusão transcendental de mais
extremo caráter” (B. 634). Mas a falha principal,
mais séria do que qualquer das objeções de Hume,
ou mesmo que as restrições de Kant ao princípio da
causalidade do fenômeno sensível, é sua
dependência do argumento ontológico. A
experiência, na qual o argumento ontológico
professa repousar, não nos dá informação quanto às
propriedades e atributos do ser supremo, cuja
existência o argumento quer provar. A identificação
de tal ser supremo como sendo absolutamente
necessário requer o terceiro e único outro tipo de
argumento; um argumento que, entretanto, depende
da experiência. “Então, surgiu esse infeliz
argumento ontológico, que não satisfaz o saudável
senso comum da humanidade, nem sustenta o
exame científico do filósofo.” Assim, com a
análise destrutiva de Kant, desse argumento básico,
fica perdida toda esperança de provar a existência
de Deus.

Filósofos têm falado sobre um ser absolutamente


necessário. Eles têm definido isso verbalmente
como algo cuja não existência é impossível. Mas
nem sua definição verbal, nem sua argumentação,
lançam luz sobre a condição que tornaria
impossível cogitar sobre a não-existência de um
objeto. Como ilustração de absoluta necessidade,
eles apontam para as proposições geométricas,
tais como: um triângulo necessariamente tem três
ângulos. Mas todas as ilustrações como essa são
exemplos de juízos necessários, e não de coisas
necessárias. Certamente as condições dessas duas
necessidades são diferentes. Longe de afirmar que
três ângulos necessariamente existem, a proposição
geométrica citada apenas diz que, sob a condição
da existência do triângulo, necessariamente existem
três ângulos nele. Isso não explica qualquer coisa
quanto à existência necessária de um objeto. Se, em
qualquer juízo analítico ou idêntico, for negado o
predicado enquanto o sujeito é afirmado, resultará
uma contradição. Mas não poderá resultar uma
contradição, se ambos, sujeito e predicado, forem
negados, pois, uma vez que nada reste, não haverá
meio de formar contradição. É contraditório
afirmar um triângulo e negar três ângulos; mas será
inteiramente admissível supor a não existência do
triângulo com seus ângulos. Similarmente, “Deus é
onipotente” é um julgamento necessário, e afirmar
a existência de Deus enquanto sua onipotência é
negada, é uma contradição. Porém, se dissermos
que Deus não existe, onipotência e todos os outros
predicados desaparecem com o sujeito, e não
será possível uma contradição.

Essa análise força a réplica que, à parte de todos os


predicados, há um sujeito que necessariamente
existe. Mas isso nos leva de volta ao início, pois
foi para explicar o significado da existência
necessária de uma coisa que a
proposição geométrica foi introduzida.

Considere novamente a questão. O juízo, “Deus


existe”, seria uma analogia ou um juízo sintético?
Se for analítico e a ideia de existência estiver
logicamente contida no sujeito, então, o predicado
existente nada adiciona ao conceito do sujeito. No
entanto, nesse caso, a concepção na razão é idêntica
à própria coisa; e será meramente a existência do
conceito que terá sido provada. Portanto, o juízo,
“Deus existe”, é, como todo julgamento existencial,
um julgamento sintético. Contudo, se for sintético,
nenhuma contradição lógica surge, negando o
predicado do sujeito.151

Para aplicar essa análise à forma de Descartes, do


argumento ontológico, Kant nega a premissa
menor: “Existência é uma perfeição”. O ser não é
um predicado real: é meramente a colocação da
coisa com seus diversos predicados. Afirmar que
Deus existe não é adicionar outro predicado à lista
de onisciência, onipotência, e assim em diante. A
afirmação da existência de Deus nada mais é do
que a colocação de um objeto em relação ao
conceito mental. O conteúdo e o conceito de um
objeto são idênticos. O real não contém mais do
que o possível. Cem dólares não contêm mais do
que cem possíveis dólares. Se o conteúdo
dos dólares reais fosse mais do que o conteúdo do
conceito, o conceito não seria a representação dos
cem dólares inteiros. É claro que, com respeito a
uma conta bancária, cem dólares reais são mais; são
mais do que cem dólares possíveis, do que dólares
conceituais. Os dólares reais não estão contidos
analiticamente em uma concepção, mas formam
uma adição sintética, embora sua realidade
objetiva, sua existência, em última instância, não
aumente o número de predicados dos dólares.
Portanto, a premissa menor do argumento de
Descarte é derribada. Um conhecimento de
matemática e física talvez seja possível, mas não
poderá haver conhecimento de metafísica e
teologia.
MECÂNICA E MORALIDADE

Em função de argumentação, aceitemos essa


conclusão pelo seu valor expresso. Suponhamos
que não exista conhecimento de Deus e deixemos
que a causalidade, causalidade mecânica, controle
toda experiência de mudança. Então, o que dizer
sobre a vida humana, desejos humanos, planos e
volições; em resumo, o que dizer sobre
moralidade?

Em alguns trechos da história da filosofia, será


possível ignorar os problemas morais. Se Locke e
Berkeley tivessem estabelecido conhecimento, um
conhecimento de ética teria lhes causado algum
problema adicional. Se Hume destruiu
todo conhecimento, sequer precisaria ser
mencionado que o conhecimento moral
também teria se desvanecido. Porém, em outras
ocasiões, quando as teorias epistemológicas não
falham tão obviamente, o problema moral se torna
crucial. Até no ceticismo, como no caso do
sofismo, foi necessário apontar a existência de
resultados morais ou imorais. Se o conhecimento
for impossível, uma pessoa poderia escolher apenas
um fim irracional e tentar ser bem-sucedida, custe o
que custar. Mas Agostinho virou tal visão de
cabeça para baixo e usou as escolhas práticas
da vida humana para reprovar o ceticismo. Se,
então, o ceticismo não pode se esquivar da questão
da moralidade, uma filosofia positiva não poderá
desejá-lo. O que quer que a epistemologia ou a
metafísica possa ser, terá base em questões da vida
humana. Em tempos modernos, Spinoza, conforme
temos visto, tentou harmonizar a moralidade com o
mecanicismo inviolável. A opinião
comum considera isso uma tarefa impossível. Ora,
Kant, também, teve de enfrentar um paradoxo. Se
Deus realmente não pode ser conhecido e, se todos
os objetos observáveis, movimentos, aparências,
sensações, são objetos da lei de
causalidade, haveria algo como obrigação moral?
Kant, bem mais do que Spinoza, estava convencido
de que haveria. Duas coisas jamais cessaram de
excitar sua surpresa e maravilha: o céu estrelado
acima e a lei moral interior. Mas como poderá
o mecanicismo de um permitir a liberdade de
outro?
A ética do cálculo

O ponto de partida não é a liberdade, mas a lei


moral; e a natureza dessa lei, que deve determinar a
vontade, é aproximada, considerando se ela é a
priori ou dependente da experiência. Se for
derivada da experiência, a lei moral dependerá do
prazer e do amor próprio. Uma ética empírica teria
de ser um hedonismo, grosso ou refinado. Mas esse
ponto de vista enfrenta algumas objeções. Em
primeiro lugar, se o prazer for o fim da ação, os
meios serão indiferentes, exceto quanto à eficácia;
isto é, os fins justificarão os meios. Um conceito
tido comum e corretamente como imoral, porque os
meios, tanto quanto ou ainda mais do que os fins,
estão sujeitos ao louvor ou à culpa moral. Em
segundo lugar, se o prazer for o fim, não haverá
distinções qualitativas significantes entre prazeres:
os prazeres de um porco, de um esteta e de um
sadista estariam no mesmo nível. Esse conceito
também ofende o senso comum. Terceiro, se a
natureza fosse intencionada apenas para
proporcionar felicidade ao homem, teria
feito melhor do que simplesmente equipá-lo com os
poderes da razão. De fato, a pior maneira para
assegurar prazer, especialmente no caso do homem
refinado, é fazer uso da razão. Homens rudes,
seguindo os impulsos naturais e animais o instinto
parecem mais bem-sucedidos na obtenção da
felicidade; o que implica que a moralidade seria
irracional. Quarto, e conclusivamente, uma vez que
pessoas obtêm prazer de diferentes fontes, nenhuma
lei moral objetiva poderá ser derivada de uma
posição hedonista. Preceitos de habilidade ou de
eficiência não podem ser universais, tal como a lei
deve ser, pois as pessoas não buscam os
mesmos objetos. Isso quer dizer que uma lei moral
hedonista sequer será uma lei.

O fato de que uma lei moral não poderá ser baseada


na experiência é reforçada por duas outras opiniões
comumente aceitas. Sempre que um homem é
conhecido como quem calcula as consequências de
seus atos, poderá ser considerado esperto e
ardiloso, ou sábio e prudente; mas nunca é visto
como uma pessoa de moral notável. Ações morais
são realizadas sem medo ou esperança de
consequências. O cálculo não é uma característica
moral. A segunda opinião comumente aceita e que
conflita com a ética empírica é uma implicação
da primeira: uma pessoa jamais será vista como
moral com base em ser bem-sucedida, nem será
tida como imoral com base na falha de seus planos.
Se a falha for devido à pobreza de sua decisão
prática ou a desastres além do seu controle, as
pessoas geralmente creditam suas intenções no
julgamento, ao seu caráter. Cálculo e sucesso são
privilégios de altas inteligências ou de sorte
incomum; mas moralidade certamente está ao
alcance dos menores e mais humildes. A lei
moral, portanto, não poderá ser baseada na
experiência.

O imperativo categórico

Como é de se esperar, Kant vê a marca do a priori


na necessidade, objetividade e universalidade da
lei. Preceitos empíricos de prudência não poderão
ser universalizados. Um indivíduo poderá, por si
mesmo, decidir aumentar sua fortuna, utilizando
meios seguros. Mas essa máxima subjetiva não
poderá ser universalmente aplicada. Suponha que
uma viúva idosa secretamente dê a um homem uma
quantia de dinheiro com o propósito de assegurar o
cuidado dos dias que lhe restam. Em um contrato
verbal, ela instrui que, depois de sua morte, a soma
restante seja distribuída a tais e tais igrejas e casas
de caridade. Na ocorrência da morte, tal indivíduo
poderia seguramente reter o dinheiro para si
mesmo, pois ninguém saberia do trato. Contudo, se
a máxima da prudência fosse feita universal a todos
os homens, de modo que todos se apropriassem
dos fundos de garantia, tais depósitos deixariam de
existir. Assim, a universalização da máxima anula o
próprio conceito. Ela é autodestrutiva, contraditória
e, portanto, não é nem verdadeira, nem moral.

Para evitar contradição interna, qualquer lei em


particular terá de cair sob o princípio geral da lei
moral: “Aja em conformidade com aquela máxima,
e apenas aquela máxima, que você queira, ao
mesmo tempo, que seja uma lei universal”. Agindo
de modo errado, desejaremos que o oposto de nossa
máxima subjetiva seja uma lei universal. Nós
poderemos tomar a decisão de nos apropriar de um
depósito ou dizer uma mentira, mas esperaremos
que todos os outros homens sejam honestos e falem
a verdade. Isto é, esperamos que sejamos
uma exceção. Elaverá, assim, uma contradição em
nossa vontade, pois um princípio estará sendo
reconhecido como universal, e ainda assim, estará
sendo admitida uma exceção. Agindo de maneira
correta, entretanto, não surgirá
nenhuma contradição. Em outras palavras, alguém
poderá dizer, quando não houver contradição, o ato
é certo. A voz do dever, portanto, é um imperativo
categórico. Imperativos hipotéticos comandam uma
ação na suposição de um fim desejado. Por
exemplo, se quiser dividir uma linha, você terá de
traçar certos arcos. Mas esse não será um dever da
moralidade. O dever não tem “se”. Não há
imperativo categórico em dizer: Se quiser ter uma
boa reputação, seja honesto e diga a verdade. De
fato, uma pessoa que pretenda ser honesta a fim de
gozar de boa reputação seria bem menos do que
moral. O imperativo categórico ordena: Diga a
verdade a despeito das consequências. O ato terá de
ser feito virtude, por pura reverência ao dever, e
não em função de qualquer motivo ulterior.
Atos morais, portanto, são aquelas máximas que
podem ser universalizadas.

Liberdade

Os detalhes da teoria ética de Kant e sua crítica


divergem radicalmente da linha principal do
presente argumento. Eles terão de ser omitidos a
fim de que examinemos a relação entre lei
mecânica e possibilidade de conduta ética. A última
requer liberdade e a anterior parece excluí-la. A
tentativa de lidar com tal dilema começa com o
reconhecimento do dever, com nosso conhecimento
da lei moral. O imperativo categórico é um fato a
priori inegável. Desse fato é que a liberdade é
deduzida. Pergunte a um homem, se ele se
recusaria a dar falso testemunho quando ordenado
pelo rei a mentir na corte. O homem poderá duvidar
que se recuse, mas não haverá de duvidar que
poderia se recusar. Portanto, ele reconheceria sua
liberdade e julgaria a possibilidade, por causa do
dever. O imperativo categórico é o ratio
cognoscendi da liberdade, assim como a liberdade é
o ratio essendi da lei moral.

Porém, se a liberdade tiver de ser admitida, e o


mecanicismo também, não haverá aqui uma
arraigada contradição em que ou a moralidade não
tem sentido algum, ou o mecanicismo e a totalidade
da teoria do conhecimento que o subjaz é falso?
Kant não se recusou a enfrentar o dilema.

Nos seres humanos, Kant argumenta, há um tipo de


causalidade diferente, além da mecânica. E a
causalidade racional, também chamada de
vontade. Enquanto a vontade não for determinada a
uma atividade por nenhuma causa, que não a si
mesma, a causalidade racional será a liberdade. Em
contraste, a necessidade natural é propriedade de
seres totalmente não-racionais, determinados a
atividades por uma causa externa a eles mesmos.
Ora, causalidade de qualquer tipo envolve
determinação pela lei, pois o efeito é concebido
como determinado pela causa. Consequentemente,
liberdade não significa ausência de lei;
liberdade significa independência das leis da
natureza. Na natureza, não há causas próprias; tudo
é determinado à atividade, por algo externo. Mas a
vontade é uma lei para si mesma; isto é, seu
princípio é agir segundo uma máxima universal e
não outra. Consequentemente, uma vontade livre é
uma vontade que se conforma com as leis morais.

Não se deve supor que a liberdade seja a habilidade


para se entregar aos próprios desejos e impulsos
naturais. Estes são fatores externos à vontade
racional, e as ações realizadas sob sua influência
são governadas por causalidade mecânica. Uma
vontade será livre somente quando causada por si
mesma; ela será racional, somente quando não
tendenciosa; e tais condições são violadas quando
sob o controle de impulsos naturais. A razão,
portanto, deve ser autora dos próprios princípios de
ação; deve ser independente de influências
externas. Em outras palavras, a vontade de um ser
racional somente será a própria vontade, se ele agir
sob a ideia conjunta de liberdade e moralidade.

Entretanto - e o próprio Kant vê e considera isso -


conquanto o argumento tenha conectado,
indissoluvelmente, liberdade e moralidade, ele não
forneceu nenhuma prova especulativa de que o
homem seja realmente livre. Kant presumiu que a
vontade moral fosse um tipo de causalidade outra
que não a causalidade natural, mas não produziu
nenhuma evidência de que tal causalidade exista. A
única conclusão justificável, até então, é que, sem
pressupor liberdade, não poderemos conceber a nós
mesmos como seres racionais, da maneira como
Kant define a racionalidade: “Parece como que se,
estritamente falando, mostrássemos meramente
que, na ideia de liberdade, a lei moral deverá ser
pressuposta a fim de explanar o princípio de
autonomia da vontade, sem sermos capazes de
provar a realidade e a objetividade da própria lei
moral. Teremos de admitir, francamente, que há,
aqui, um tipo de círculo do qual é impossível
escapar”.

Os dois mundos

Kant não deixa o assunto parado aí; ele tem algo


mais a dizer. Porém, se ele diminui as dificuldades
ou, se ao contrário, as aumenta, terá de
permanecer uma questão em aberto, até que o
argumento tenha sido completado. O
argumento depende da tese de Kant, de que há dois
mundos, um mundo inteligível e outro tal como
este mundo de fenômenos. O homem, como ser
racional, é parte do último, mas como ser natural, é
parte do primeiro. A liberdade é, assim, conectada
ao mundo inteligível, enquanto o mundo
fenomênico se sujeita à necessidade mecânica. Para
demonstrar que existe um mundo inteligível e
para explicar sua natureza e relações com o mundo
visível, é necessário, antes que a discussão de
liberdade e moralidade seja completada, retornar
à Crítica da Razão Pura, para examinar certos
pontos até aqui não enfatizados.

Na Estética, tempo e espaço foram descritos como


formas da sensação. A razão impõe essas formas
sobre a experiência. Parece, portanto, que há
algo independente da razão. Se esse “algo” é mole
como uma geleia, em um frasco de vidro, ou se é
rígido como os trilhos de uma ferrovia, que
parecem convergir em certa perspectiva, isso não é
tratado por Kant como coisas em si, como
sendo distintas das coisas como aparecem.
Infelizmente, tais coisas em si
mesmas permanecem desconhecidas para sempre,
primeiro, porque elas são definições fora do tempo
e do espaço, e ipso facto,invisíveis. Segundo,
porque uma vez que as categorias se aplicam
somente a objetos sensíveis, as coisas em si
mesmas não podem ser pensadas. Mas Kant toma
como completamente certo que tais coisas existam,
e assim, temos o primeiro conjunto de objetos, com
os quais, preencher o mundo inteligível.

Há também outro conjunto de coisas que é mais


diretamente concernente à moralidade.
Indispensável à toda epistemologia de Kant está o
ego ou o EU, que impõe forma e unifica a
variedade da experiência. Não se trata do
EU empírico. O EU que se nos aparece na
experiência é essencialmente a coleção de ideias de
Hume. A introspecção revela sensações de
vermelho e azul, amargo e doce, e pensamentos de
causas, substâncias e leis. Tais elementos da
experiência mudam com uma rapidez que satisfaria
qualquer cético. Contudo, além desta coleção de
ideias, deve existir algo que as tenha coletado. Se
todas estas experiências fossem unificadas, deveria
haver uma unidade transcendental de
apercepção. Mas o EU transcendental não surge
como um fenômeno e, portanto, é unicamente parte
do mundo inteligível.

Além das coisas em si, e de seres em si, é possível


que haja outra parte desse mundo superior -
possível, mas não certo, conforme veremos. Essa
outra parte seria Deus. Embora Kant tenha se
esforçado para demonstrar a existência de Deus, ele
fez notório também que a existência de Deus não
pode ser contestada. Talvez, então, haja um Deus.
Especialmente em seus escritos sobre ética,
Kant parece crer que Deus existe. Essa impressão,
no entanto, é modificada por uma seção
da Crítica inicial. Uma distinção é traçada entre
princípios constitutivos e princípios reguladores.
Os primeiros existem realmente, como partes do
mundo conhecido; mas os últimos existem
simplesmente como regras para orientação da
investigação científica. Por exemplo, as notáveis
conexões e adaptações de partes a partes, no
mundo, poderão ser consideradas como se tivessem
sido arranjadas por uma inteligência divina. Não
apenas o mundo poderá ser considerado assim, mas
talvez fosse possível dizer que ele deveria ser
assim. O interesse especulativo da razão nos força a
pensar sobre o mundo como se fosse planejado por
uma Inteligência Suprema. Mas somente como
se. Pensar sobre Deus como um princípio
constituinte conduziria a um relaxamento
do esforço científico, mediante uma indolente
referência de detalhes, imediatamente à vontade de
Deus. Se, entretanto, Deus for reconhecido como
um princípio regulador, nós seremos,
consequentemente, movidos a investigar a
experiência, e a unificar os detalhes mediante leis
teleológicas. Essa maneira de olhar o
assunto, quando aplicada ao campo da ética, como
distinto do campo da ciência, resulta no princípio
paradoxal de que, embora não possamos conhecer a
Deus, deveremos viver como se houvesse um.
Talvez, então, Deus sequer seja parte do
mundo inteligível, mas, pelo menos, Kant cria que
os seres humanos racionais seriam.

Por causa da distinção entre os mundos inteligível e


fenomênico, Kant pôde negar que tenha atribuído
liberdade aos seres racionais,
inconsistentemente. Como fenômenos, os homens
estão sujeitos ao mecanicismo. Mas como
racionais, ou seres em si, eles estão sujeitos às
causalidades suprassensíveis da
liberdade. Entretanto, a remoção de tal
inconsistência não é, em si mesmo, suficiente
para tornar o mundo inteligível, um mundo
inteligível para nós. A teoria das categorias limita,
estritamente, sua aplicação ao mundo fenomênico.
Não apenas a causalidade é negada às coisas em si,
que, consequentemente, não poderão ser
consideradas como causas da experiência sensível,
mas, também, todo conhecimento de um mundo
além das sensações torna-se impossível. Kant
responde, talvez de maneira falha, que a realidade
objetiva da causalidade pode ser admitida, com
respeito aos noúmenos - as realidades que subjazem
as aparências — não com o propósito de obter
conhecimento, mas meramente para propósitos
práticos. A noção de um ser com livre-arbítrio é a
noção de uma causa noumenal; e embora não
constitua alargamento de nosso conhecimento
teórico, isso se justifica na prática.

Se esse apelo ao propósito prático além do limite


do conhecimento é falho ou não, poderá ser mais
bem julgado, observando como Kant trata de um
evento particular voluntário que ocorre no tempo.
Ele diz que não poderá haver liberdade para coisas
ou eventos, no tempo; todos os fatores temporais
são fisicamente determinados. Porém, ele
acrescenta que tais eventos são aparências, e
liberdade pode ser atribuída a noúmenos A maneira
como a última liberdade e a determinação anterior
podem ser combinadas em um único ato é ilustrada
em um caso de roubo. No ato particular de um
furto, os movimentos físicos visíveis, são
mecanicamente determinados. Alguns moralistas
tentaram preservar a liberdade, negando que
os movimentos fossem mecanicamente
determinados, embora afirmassem que o roubo
fosse produzido por um tipo de causalidade
psicológica. Assim, diz-se que o ladrão é livre
porque as causas de sua ação são internas, e não
externas. Tal argumento nada mais é do que um
subterfúgio infeliz, diz Kant, um mero jogo de
palavras. Uma liberdade que seja simplesmente
liberdade de uma compulsão externa, ainda será
necessidade no tempo, e não deixará lugar para
uma liberdade transcendental. Kant, entretanto,
quer aquilo que ele crê ser uma liberdade real, sem
um mínimo de determinismo de eventos no tempo.
Todos os movimentos físicos, e igualmente, todas
as séries de estados psicológicos, são
necessários. Portanto, os movimentos e os
pensamentos de um homem, ao cometer um roubo,
são igualmente necessários. Porém, ainda que
esteja parcialmente no tempo, o ladrão estará
parcialmente além do tempo. E com respeito ao
último estado que ele está livre. Consequentemente,
conclui Kant — e a conclusão certamente nos
concede uma pausa — o furto poderia ser evitado,
ainda que a aparência dele não fosse evitada.152

A conclusão de Kant, nos Princípios Fundamentais


da Metafísica da Moralidade, é de mais fácil
entendimento.
A razão, portanto, transcendería completamente os
próprios limites, se tomada para explicar como a
razão pura poderá ser prática, ou, para explicar
como a liberdade é possível, o que é a mesma
coisa.

Nada poderemos explicar senão aquilo que


pudermos reduzir a leis, os objetos que podem ser
apresentados em uma possível experiência. A
liberdade, portanto, é mera ideia, da qual a
realidade objetiva jamais poderá ser
apresentada conforme as leis da natureza, e
portanto, nem em qualquer experiência
possível. Ela tem simplesmente a necessidade de
uma proposição da razão, feita por um ser que crê
que ele mesmo esteja cônscio de uma vontade, isto
é, de uma faculdade distinta do mero desejo. O
máximo que poderemos fazer, será defender a
liberdade, derribando as objeções daqueles que
afirmam ter mais profundo
entendimento [insight] na natureza das coisas que
pretendemos ter, e que, portanto, declaram que a
liberdade seja impossível. Sem dúvida, seria uma
contradição dizer que, em sua causalidade, a
vontade está completamente separada de todas as
leis do mundo sensível. Mas a contradição
desaparecerá, se dissermos que além dos
fenômenos, há coisas em si, que, embora estejam
de nós escondidas, são as condições
dos fenômenos; e que as leis de ação das coisas em
si não são naturalmente as mesmas que as leis sob
as quais suas manifestações fenomênicas estão
colocadas.

Conquanto seja verdadeiro que nós não podemos


compreender a necessidade prática e incondicional
do imperativo moral, é também verdadeiro que
podemos compreender sua incompreensibilidade.
Isso é tudo o que é justo que se exija da filosofia,
que busca alcançar os princípios que determinam
os limites da razão humana.153

TELEOLOGIA E ORGANISMO

O apelo à ignorância, pobremente disfarçado pela


asserção de que nós compreendemos sua
incompreensibilidade, é tão insatisfatório que
alguém poderia, naturalmente, perguntar se um
grande pensador como Kant não teria nada mais a
dizer. Parece incrível que ele tenha deixado o
assunto em tal confusão, para não falar em
contradição. Essa surpresa pode ser diminuída
mediante três considerações. Primeiro, a admiração
de Kant ante os céus estrelados e sua intensa
maravilha ante a lei moral requer uma conclusão.
Se a moralidade pressupõe o livre-arbítrio, e se “eu
devo implica eu quero”, o que mais, senão
contradição, poderia resultar do sistema
mecanicista? Segundo, deve ser admitido que,
mesmo os grandes pensadores poderão ter pontos
cegos. Aquilo que é óbvio para uma pessoa não
será necessariamente óbvio para outra. Então, em
terceiro lugar, Kant não deixou a questão
exatamente onde, geralmente, é indicado. Ele ainda
tem algo a mais a dizer. Mas se isso radicalmente
muda ou não o quadro geral, é duvidoso.

Em uma terceira crítica, a Crítica do Juízo,154 Kant


examinou a teleologia na natureza. Um dos motivos
desse trabalho foi a crença de Kant de que o mundo
mecânico e o mundo moral poderiam, de alguma
forma, ser harmonizados, se a natureza fosse vista
como proposital. Ora, organismos são as
instâncias mais óbvias de teleologia natural, e a eles
é que Kant dirige olhar penetrante. Para ser um fim
natural, uma coisa tem de ser a própria causa e o
próprio efeito, num duplo sentido. Por exemplo,
uma árvore produz outra árvore. Uma vez que as
duas são especificamente a mesma, a árvore é o
próprio efeito e a própria causa. Porém, além dessa
relação específica, uma árvore é
autorreprodutiva, como um indivíduo. Ela germina
e faz crescer a si mesma. Tal como
Aristóteles argumentou, muito tempo antes, esse
desenvolvimento é bem diferente de um aumento
mecânico de tamanho. A água que a árvore
incorpora em sua massa, opera uma qualidade
especificamente peculiar. Esse é um tipo de
mudança que não ocorre nas máquinas. Assim, a
árvore produz a si mesma, usando uma matéria que,
uma vez assimilada, é o próprio produto. Além
disso, cada parte da árvore é autorreprodutiva, no
sentido de que a preservação de uma parte
depende da preservação de todo o restante.
Conquanto as folhas sejam produtos da árvore, a
árvore, por sua vez, depende das folhas, pois, se
constantemente despida de suas folhas, a árvore
morre. A extensão das diferenças entre as
características comuns de um organismo e de uma
máquina pode ser vista em uma tentativa
de substituir, na ilustração, a árvore e suas folhas,
por uma máquina e suas partes. Para uma coisa ser
um fim natural, explicável em termos de propósito,
suas partes terão de ser possíveis apenas em relação
à totalidade. Também, a fim de distinguir um fim
natural de um fim artificial, de invenção humana,
ela terá de ser possível independentemente de
qualquer causa inteligente externa. Em
conformidade com isso, suas partes terão de ser,
reciprocamente, causa e efeito. Um corpo, portanto,
será um fim natural somente se todas as suas
partes dependerem mutuamente umas das outras,
tanto em relação à forma quanto à sua combinação,
e forem elas mesmas a causa da totalidade,
enquanto, da mesma maneira, a totalidade é vista
como a causa do corpo. Nessas condições,
a conjunção de causas eficientes é, ao mesmo
tempo, considerada como um efeito por intermédio
de causas finais.
Essa interessante e valiosa análise da natureza dos
organismos somente pode resolver o dilema do
mecanicismo e da moralidade, se propósito
natural significar liberdade inteligível. Ora, até este
ponto, a discussão da teleologia não lança luz sobre
como um roubo poderá ser evitado, enquanto a
aparência dos movimentos do roubo é
mecanicamente necessária. Fique notado que
organismos propositais de modo nenhum conflitam
com o mecanicismo. Quando Kant diz que “a
conjunção de causas eficientes é considerada, ao
mesmo tempo, um efeito através de causas finais”,
ele está afirmando, não negando o mecanicismo. E
embora um relógio ou um automóvel sejam
máquinas artificiais, e não um fim natural, eles são
exemplos perfeitos da compatibilidade entre
propósito e mecanicismo. De fato, quanto mais
inviolável o mecanicismo, tanto melhor ele serve a
seu propósito. Similarmente, corpos orgânicos são
tanto propositais quanto mecânicos. Já vimos algo
não parecido, na perspectiva de Spinoza. Para ele,
o teorema da extensão era uma descrição da
natureza, e o teorema do pensamento, outra
descrição, da mesma natureza, igualmente possível
e verdadeira - como se o mesmo objeto fosse
descrito em grego, e depois, em latim. Ou melhor,
uma das pinturas de Van Gogh poderia ser descrita
segundo sua técnica peculiar e também segundo sua
matéria objetiva ou impressão estética. A mesma
pintura é feita inteiramente de pinceladas de
cinta; e é também, inteiramente,
apresentação estética de estrelas ou ciprestes.
Porém, se Kant nada mais fez do que
reproduzir Spinoza, ele deveria ter abandonado o
livre-arbítrio e o imperativo
categórico, reproduzindo também a ética de
Spinoza.

Princípios constitutivos eprincípios reguladores

Para evitar isso, Kant voltou-se para o propósito de


organismos específicos, para investigar a
possibilidade de um propósito universal. Poderia o
universo, ser um organismo? Ou, poderia ser que
uma Inteligência Suprema dirigisse o universo a um
fim último? Se fosse assim, o mecanismo, em certo
sentido, deve ser subordinado. À medida que a
discussão prossegue, Kant, diversas vezes, afirma
que tal concepção poderia ser apenas reguladora,
não constitutiva. O que quer que a subordinação do
mecanismo signifique, o princípio do propósito
de maneira nenhuma interfere no princípio do
mecanicismo, nem isso nos dá o direito de
considerar qualquer coisa como um fim proposital
da natureza.

Ao lidar com a natureza como uma totalidade de


objetos sensíveis, primeiro a razão deverá partir de
leis a priori prescritas à natureza, pelo
entendimento. Nesse caso, a máxima do juízo será:
Toda produção de coisas materiais tem de ser
julgada possível segundo leis puramente
mecânicas. Segundo, a razão deverá prosseguir
baseada em leis que sejam capazes de adições
indefinidas à medida que a experiência é ampliada.
Mas as leis a serem aprendidas por meio
da experiência são tão multiformes, que os
princípios a priori, isto é, os axiomas da intuição,
as antecipações da percepção, etc., são insuficientes
para conduzir uma investigação de maneira
ordenada. Algo mais é necessário para que o
conhecimento empírico possa formar um sistema
conectado e ordenado. Nesse caso, como a razão
parte de algum princípio em particular, e busca
formar julgamento sobre a natureza corpórea, a
máxima será: Alguns produtos de natureza material
não podem ser julgados possíveis segundo leis
puramente mecânicas, mas requerem uma diferente
lei de causalidade, a saber, a causa final.

Dificuldades insolúveis surgem se esses dois


princípios reguladores da investigação forem
convertidos em princípios constitutivos da
natureza, pois eles seriam então: Toda a produção
das coisas materiais é possível por meios de leis
mecânicas, e alguma produção de coisas materiais
não é possível por leis mecânicas; e estas duas
afirmações são claramente contraditórias.

No entanto, as duas primeiras máximas,


apresentadas puramente como princípios
reguladores, não são, de fato, contraditórias.

Dizer que todos os eventos no mundo material


(incluindo o roubo que nos trouxe a esta longa
explanação) devem ser julgados possíveis com base
em leis puramente mecânicas, não é o mesmo que
dizer que eles sejam possíveis apenas dessa forma,
ou à parte de algum tipo de causalidade. Tudo o
que fica implicado, aí, é que um cientista tem de
usar o mecanismo em todas as suas
investigações, aplicando-o o máximo que puder,
uma vez que, sem ele, não haverá
nenhum conhecimento da natureza. Mas isso não
previne um zoólogo ou um moralista, caso surja
ocasião, de usar a segunda máxima na explanação
de organismos ou da natureza como uma totalidade.
A explanação teleológica não nega o valor
do mecanicismo nem deixa implícito que
organismos não possam ser
mecanicamente produzidos. Teleologia significa
simplesmente que a razão humana, seguindo
o mecanicismo, jamais será capaz de descobrir
nenhuma base para o caráter específico dos fins
naturais. Uma vez que a razão humana não
conhece, e não pode conhecer as bases internas da
natureza, nossa ignorância permite que creiamos
que mecanicismo e teleologia possam estar, de
algum modo, conectados, na própria natureza. Mas
nós não somos capazes de conectá-los. Para nós,
eles são apenas princípios regulares do pensamento.

A razão humana tem uma tendência inexorável para


supor alguma existência incondicionalmente
necessária ou base original para a natureza e,
portanto, o conceito de Deus é uma indispensável
ideia da razão. Mas é uma ideia que permanece
sendo um problema indissolúvel para a inteligência
humana. Ela surge da natureza peculiar de nossas
faculdades cognitivas e, portanto, não
mantém verdadeira objetividade, mas mera
subjetividade. Ora, assim como a razão teórica tem
de assumir essa necessidade incondicional de uma
base original para a natureza, como sendo uma
ideia, assim também a razão prática pressupõe a
própria liberdade. Dessa forma, um ato sumamente
necessário é considerado fisicamente
contingente, uma vez que aquilo que deve ocorrer,
geralmente não ocorre. Evidentemente, então, leis
morais são representadas como mandamentos
devidos à constituição subjetiva de nossa razão
prática. Entretanto, a liberdade, que é a condição
formal de um mundo inteligível, é, para nós, uma
concepção transcendental e, portanto, incapaz de
servir como princípio constitudvo. Porém, como
princípio meramente regulador, comanda a todos
que agem de acordo com a ideia de liberdade,
tão absolutamente como se fosse um princípio
constitutivo.

Além disso, há poucos argumentos mais, em


relação ao dilema mecanicismo e liberdade. Há
algumas frases que parecem confundir a
impossibilidade de dedução de detalhes da física,
de princípios formais universais, com uma
contingência objetiva que deixasse tais particulares
mecanicamente indeterminados. O fato de que
esses detalhes sejam acidentes lógicos dos
princípios, parece ter sido transmutado na
afirmativa de que seriam mecanicamente
acidentais, isto é, puramente eventos ao acaso.
Porém, embora a liberdade possa ser preservada, se
as escolhas morais forem eventos puramente ao
acaso, indeterminados por causas externas ou
internas, é impossível crer que Kant tivesse
intencionado a confusão. Assim fosse, o dilema e o
intrincado argumento para resolvê-lo, não teria
surgido. Ainda assim, examinando o curso
principal do seu argumento, tal como fizemos, não
somos forçados a julgar que a confusão seja mais
um infeliz subterfúgio, do que uma visão
característica de Kant? E, talvez, nada mais. De
qualquer maneira, a brava tentativa para evitar
o ceticismo de Hume e para demonstrar que o
conhecimento é possível não foi um sucesso
absoluto.
10 - G. W. R HEGEL
PÓS-KANTIANOS MENORES

Dois ou três filósofos que, de outra forma, seriam


desconhecidos, logo descobriram o defeito básico
de Kant. Um pensador de nome Gottlob Ernst
Schulze (1761-1833) queixou-se de que a Crítica
levantava um problema insolúvel: ela buscava as
precondições da experiência enquanto negava que
tais condições fossem objetos da experiência. Kant
havia, com efeito, argumentado que, antes de
investigarmos Deus e o mundo, deveríamos
investigar se a razão seria capaz de investigar Deus
e o mundo. Mas daí não seguiria, com, pelo
menos, igual evidência, que antes de investigarmos
se a razão seria capaz de conhecer o mundo,
teríamos de investigar se poderiamos investigar se a
razão seria capaz de conhecer o mundo? Assim,
teria de haver Críticas anteriores e anteriores.

Mais popular e um pouco menos obscura do que a


de Schulze foi a crítica de E. H. Jacobi (1743-
1819). Ele cunhou a inteligente frase: “Sem o Ding
an Sich155 ninguém entra, e com ele, ninguém
poderá permanecer no sistema de Kant”. Tal como
a breve crítica apresentada na exposição precedente
demonstrou, Kant falhou em evitar o ceticismo de
Hume. Nem uma coisa real, nem um EU real, nem
um Deus real é encontrado na consciência.
Obviamente, portanto, isto é algo que seus
sucessores tiveram de lidar imediatamente. A
reafirmação de Jacobi, de um tipo de realismo pré-
kantiano, em que as coisas não são
meras aparências, nem representações agrupadas
por categorias, mas objetos reais, assegurados pelas
sensações, não é tão importante. Entretanto, o
restante de sua obra construtiva foi mais influente
porque antecipou um irracionalismo que
se desenvolveu no romantismo literário e no
misticismo religioso.

Jacobi

Jacobi, tomando a deixa da primazia que Kant


atribuiu à razão prática, buscou validar a iminência
da fé em oposição ao entendimento racionalizado
de um sistema spinozista. De fato, foi neste
momento, e não antes, que Spinoza exerceu sua
grande influência. Ora, Jacobi admitia que o
mecanicismo spinozista não somente seria lógico,
mas seria o único sistema lógico. Todas as
demonstrações levam, não a um Deus pessoal
extramundo, mas meramente à totalidade
do universo. A razão opera com coisas
condicionadas e não pode ser alçada à posição de
um Ser soberano e não-condicionado. Provar a
existência de Deus requereria uma base de prova
superior ao próprio Deus. De maneira que, um
Deus que pudesse ser conhecido racionalmente não
seria Deus. Entretanto, embora seja logicamente
inatacável, o spinozismo será rejeitado porque,
friamente e sem misericórdia, ele viola as inegáveis
reivindicações do coração. Kant havia
admitido que, conquanto não possamos provar a
existência de Deus, também não podemos provar a
sua não-existência. Portanto, Jacobi conclui, onde o
entendimento se cala, podemos crer mediante a fé.
A fé também incrementa a teoria ética de Kant.
Seus argumentos em favor dos postulados da
moralidade, isto é, Deus, liberdade e imortalidade,
eram fracos, e seria melhor, pensou Jacobi, basear a
moralidade em um sentimento ético imediato. A
essa fé, Jacobi chama de razão, em oposição ao
entendimento que caracteriza o spinozismo. É claro
que essa fé não é o que Agostinho e Tomás
de Aquino, e muito menos Calvino e Lutero,
tinham em mente quando usaram o mesmo termo.
Certamente o vocábulo cristão também não tem o
mesmo significado, quando Jacobi afirma ser um
pagão no entendimento, mas um cristão no coração.
Aquele cujo coração estiver contente com o
spinozismo, não poderá ser convencido a deixá-lo.
Sua punição é ver-se negado dos nobres conteúdos
da vida espiritual.

Menos interessado na fé do que Jacobi, Salomon


Maimon (1752-1800) aditou um valioso comentário
ao Ding an Sich. Embora a coisa em si seja
uma concepção contraditória, há um motivo para
inventá-la; e tal motivo tem de ser satisfeito. Kant
havia distinguido entre o conteúdo e a forma da
experiência; há a geleia e o frasco em que ela é
colocada. Uma vez que somente a forma
depende de nossa razão, algo mais explica o
conhecimento na consciência. Espaço, tempo e
causa talvez dependam de nós; mas de onde vêm o
vermelho, o amargo e o sólido? Foi para responder
a essa questão que Kant presumiu as coisas em
si mesmas. O fato de que a resposta de Kant tenha
sido um tropeço simplesmente leva-nos de volta à
questão original. Porém, de novo, a construção de
Maimon -uma tentativa bem similar à da teoria de
Leibniz, das pequenas percepções de mônadas,
para explicar o conhecimento na consciência —
também não é importante. Mas a necessidade de
um pensamento relacionado a um mundo
real dificilmente poderá ser exagerada.

Johann Gottlieb Fichte

Johann Gottleib Fichte (1762-1814) foi o mais


importante pensador entre Kant e Hegel. Tal como
Jacobi, Fichte admitia que o spinozismo era
perfeitamente lógico: eu sou um objeto no mundo
da natureza, e como que a natureza é uma
totalidade conectada, eu sou tão determinado
fisicamente como qualquer objeto. Meu senso de
liberdade é somente um senso de poder natural
dentro de mim; portanto, tudo é necessário. Mas
Fichte argumenta que por mais satisfatório que isso
possa ser, é moral e emocionalmente inaceitável. O
mecanicismo, na verdade, não pode ser contradito,
nem Fichte afirma que poderá provar a
própria visão. A razão é que, aqui, somos
confrontados com uma escolha entre
princípios últimos. O ponto de partida de uma
filosofia não pode ser consequência de
um argumento anterior. Logo, o tipo de princípio
que um homem escolhe depende do tipo de homem
que ele é. Fichte, sendo um tipo de homem
profundamente induzido pela moralidade kantiana,
rejeitou o mecanicismo e escolheu a
liberdade. Assim, não é a ciência que dá acesso à
realidade, mas a fé - a consciência imediata do EU
em relação moral com o EU do outro.

A dependência da fé, desse tipo de fé, não era uma


peculiaridade dos filósofos da época, mas era fato
comum no romantismo, que escrevia uma
nova literatura redescobrindo a arte grega,
construindo uma nova cultura e desenvolvendo um
novo senso de valores. Era uma revolta contra a
decadência estabelecida. A ação política da
Revolução Francesa foi sustentada pelos esforços
intelectuais do Iluminismo, também conhecido
como Idade da Razão. Vendo que a Igreja Romana
favorecia a autocracia opressora, os agitadores
gritavam: “Abaixo a infame!”, e objetivavam
suprimir todo o cristianismo. Consciência de
pecado, humildade, e um senso de falta de valor
foram substituídos por um sentimento de
autoconfiança. A natureza humana passou a ser
considerada como fundamentalmente boa. Na
literatura alemã, Johann Wolfgang von Goethe
(1749-1832) foi o grande romancista. Escrevendo
uma carta a Johann Gottfried Herder (1744-1803),
ele se queixou de que, até mesmo Kant, que, mais
tarde na vida havia inquirido sobre o mal radical da
natureza humana, teria sido muito amigável em
relação ao cristianismo ortodoxo: “A roupagem
filosófica de Kant ... precisa ser esvaziada do
errôneo preconceito, pois, assim, criminalmente
respingado das manchas do mal radical, até mesmo
os cristãos são iludidos para beijar suas orlas”. No
mesmo sentido, Fausto, em indecente conluio com
o diabo, e perpetrador dos mais tenebrosos crimes,
é pintado por Goethe como sendo um bom homem
que, confortavelmente, obterá o céu e receberá a
aprovação indulgente de Deus, cometendo alguns
pecados menores.

O imoralismo de Goethe e a ênfase de Fichte na


obrigação, não parecem, à primeira vista, pertencer
ao mesmo sistema de ideias. É verdade que
diversos escritores românticos diferem em sua
preferência por valores particulares. Porém, para
todos eles, o fato fundamental sobre o universo é
que ele contém valores. Tais valores são
apreendidos, percebidos, ou apreciados por meio de
fé imediata. A ciência, desprezando a fé
reivindicando ser a única aproximação da
realidade, talvez alargue a área, mas não aumenta a
profundidade de nosso entendimento. A realidade
não é feita de átomos; é a vida. Indubitavelmente,
as ciências positivas, mesmo os temas estritamente
epistemológicos de Hume e Kant, não deveriam ser
proibidos; a natureza é merecedora de estudos; mas
as perspectivas mais penetrantes atribuem maior
importância aos valores humanos da emoção,
arte, moralidade, religião e cultura.

Para Fichte, como já foi indicado, é o valor da


moralidade que remove da filosofia o absurdo do
Ding an Sich e proporciona um idealismo
consisieqte. O tipo de EU revelado na consciência
de obrigação é bem superior ao EÜ empírico de
Kant. Uma vez que o último não seja diferente do
pacote de imagens de Hume, as experiências
sensoriais parecem precisar das coisas em si, para
a sua base. Mas o EU de Fichte, similarmente mais
próximo da unidade de apercepção transcendental
de Kant, ainda que não desconhecidamente fora
da experiência, é suficiente para justificar o
conteúdo e a forma de percepção. Os objetos da
natureza, portanto, são construções de minha
consciência. O materialismo, sem exceção - quer o
de Demócrito na antiguidade e de alguns dos seus
expoentes modernos do Iluminismo francês, que,
negando realidade fundamental à consciência,
elegeram como melhor um epifenômeno
derivativo, quer o de Spinoza, que colocou matéria
e razão no mesmo nível, quer,
poderíamos acrescentar, o dos behavioristas do
século 20, que negaram, até mesmo, a existência da
consciência — todos são culpados de grande
absurdo. O conhecimento somente poderá começar
com algum tipo de cogito. A filosofia e a
experiência, ambas começam com o EU, e os
objetos da natureza são, portanto, inferências.
Havendo-os deduzido assim, um filósofo não
poderá, ele próprio, reverter e professar
uma explicação de si mesmo como resultado da
natureza.

Se isso consegue dispor do problemático Ding an


Sich, os mesmos fatores habilitam Fichte a evitar o
solipsismo de Berkeley. A fé na consciência da
obrigação moral, ou essa própria consciência, é o
fato indisputável. Nem as imagens de Hume, nem
os fenômenos kantianos, poderão ter obrigações.
Ainda que as percepções de vermelho, amargo, e
duro, possam ter efeito como causas, ainda assim,
não haverá sentido em dizer que as imagens devam
ser alguma coisa. Obviamente, portanto, eu não sou
um fenômeno. Porém, de novo, se imagens não têm
obrigações, é igualmente verdadeiro que ninguém
tem obrigações em relação a elas. Obrigações só
podem existir entre pessoas. Dessa maneira, há
de ter um mundo de espíritos, real e suprassensível,
do qual eu seja parte. E o universo físico será
apenas o material do dever feito sensível.

Há uma pequena dificuldade cuja remoção


completaria o sistema de Fichte. Se ambos, a forma
e o conteúdo da experiência, são as construções de
um EU ativo, uma pluralidade de seres produziria
uma pluralidade de universos. Cada pessoa
transcendente seria o supremo e solitário soberano
do próprio mundo. Mas porque isto impediria o
contato entre seres, o solipsismo é reintroduzido e a
obrigação é negada. Obviamente algo está errado.

Podemos lembrar que, na Idade Média, Averróis e


Tomás de Aquino diferiram em suas interpretações
da teoria do intelecto ativo, de Aristóteles. Os
islâmicos ensinavam que haveria um único
intelecto ativo para todos os homens, negando
assim a imortalidade individual. Entretanto, o
filósofo cristão produzia argumentos em favor da
imortalidade, defendendo uma pluralidade de
intelectos ativos. Ora, Kant havia deixado a
impressão de que cada EU empírico corresponderia
a uma unidade transcendental de apercepção.
Porém, uma vez que o EU mais profundo do
indivíduo é incognoscível, a impressão pode estar
errada. Nossa ignorância permitiria a possibilidade
da suficiência de um único “intelecto ativo”. E
uma vez que a pluralidade leva à negação da
obrigação, somos forçados, na verdade, não a negar
a pluralidade de seres Tmitos, mas a concluir que
há um EU Absoluto. Sem esse EU Absoluto não
poderia haver obrigação. Mesmo que fosse
possível que seres totalmente independentes
habitassem um único mundo, esse agregado seria
anárquico. Paz e ordem temporárias seria apenas
uma pausa para respirar entre guerras. A
moralidade não pòderia existir. Tal mundo sequer
existiria: nenhum EU individual, apenas o EU
universal, poderia formar um mundo fora de si
mesmo mediante uma imaginação produtiva.
Portanto, a pessoa individual tem um mundo
externo que a determina tanto em termos de
pensamento quanto de ação. Assim, a relação entre
os seres em um mundo comum requer deles
que sejam partes de um absoluto todo-inclusivo.

O EU Absoluto de Fichte não deve ser considerado


um Deus pessoal, pelo menos, não em qualquer
sentido teísta ou cristão. Embora a negação do Ding
an Sich, e a fé imediata em si mesmo, recuperassem
a metàfísica excluída por Kant, Fichte não teve a
intenção de recuperar a teologia e as provas
teístas. Quando foi acusado de ateísmo - e de um
ponto de vista teísta, Fichte era tão ateu
quanto Spinoza - ele formulou uma resposta
mudando o sentido da acusação. Ateísmo seria
equiparado com não-religião, e assim, com base em
sua fé, ele afirmou ser muito religioso. Com isso,
obviamente, ele fugia do assunto, e procurou
distrair a atenção de si, acusando os cristãos de
cultuarem o diabo. Os teístas seriam hedonistas, ele
dizia, em virtude ao gozo que alimentavam quanto
ao céu. E pior, afirmando que Deus havia criado o
mundo para a própria glória ou prazer, eles também
faziam de Deus, um hedonista. Tais opiniões são
resultantes de uma cegueira radical quanto às coisas
espirituais e uma completa alienação da pessoa, da
vida de Deus. Tal tipo de deus seria, de fato, o
diabo, o príncipe deste mundo, um ídolo. Fichte
não era o tipo de homem que escolheria tal
caminho. Ao contrário, Fichte identificou Deus, ou
melhor, o divino, com a moral impessoal da ordem
mundial. Tal ordem, que é o mais certo de todos os
fatos, não tem causa superior. “Não é de duvidar ...
que haja uma ordem moral mundial, que atribui a
cada indivíduo seu lugar determinado ... que cada
parte de sua sina, conquanto não seja causada pela
própria conduta, é o resultado desse projeto ... que
toda boa ação é bem-sucedida e todo mal falha,
que, para aqueles que acertadamente amam apenas
o bem, todas as coisas cooperam para o melhor
... Pouco fica de incerteza ... que o conceito de
Deus como uma substância particular é impossível
e contraditório.”

Sem dúvida, G. W. F. Hegel (1770-1831) foi o


gênio dominante do século 19. Isso é parcialmente
explicado pela extensão de seus interesses.
Enquanto Fichte enfatizava a moralidade, Jacobi e
Schleiermacher, a religião, Schelling, a natureza, e
os menos românticos, seus gostos, Hegel combinou
todas essas ênfases, acrescentando-lhes uma
apreciação de seu desenvolvimento histórico,
ausente nos românticos e, especialmente, nos
expoentes do Iluminismo. Porém, mais do que a
extensão dos interesses, foi a detalhada e intrincada
profundidade de Hegel que o tornou o príncipe
regente da filosofia por quase um século completo,
não apenas na Alemanha, mas também na América.
Infelizmente, tais fatores do seu gênio são
precisamente aqueles que tornam qualquer relato
elementar fragmentário e, portanto, enganoso, e,
em um sentido peculiarmente hegeliano,' falso. O
plano adotado, aqui, é o de demonstrar como a
Phänomenologie des Geistes começa, mostrar
como a Logik começa, e esperar que algum
estudante possa ser o felizardo, e dar um ou mais
passos em uma direção mais avançada. Uma
vantagem, entretanto, está vinculada ao resumo
escrito no prefácio da Fenomenologia. Hegel o
escreveu depois de completar o livro, o que fornece
uma visão geral de sua posição.

O prefácio começa com uma consideração sobre o


que deveriam ser os prólogos para livros de
filosofia. O procedimento usual, em que o autor
compara diversos sistemas precedentes, relata as
circunstâncias que deram origem a seus esforços, e
antecipa suas conclusões. Ele deveria ser
condenado porque essa sequência de afirmações
desconexas não é a maneira adequada para a
exposição da verdade filosófica. Além disso, o
prefácio encorajaria a noção comum de que a
verdade seria fixa e que um sistema contraditaria o
anterior. Nesse ponto inicial, Hegel indica aquilo
que ele entende por verdade, contradição, e
método filosófico. Suas noções desses termos terão
de ser bem entendidas antes que seja possível maior
progresso. No entanto, porque o Prefácio usa
breves, conquanto adequadas, metáforas de botão,
florescência e fruto, em vez de dar uma explicação
completa, parece melhor combiná-lo com materiais
adicionais tomados de outras partes.

Evolução dialética da verdade

Em vez de ser fixa e imutável, tal como Platão,


Aristóteles e quase todos os filósofos haviam crido,
a verdade se desenvolve e cresce. Tal como o
botão desaparece na flor e a flor, no fruto, assim a
verdade de uma época ou sistema desaparece e
torna-se a verdade diferente de outro tempo. Sem
dúvida, os estoicos contradizem Aristóteles, e os
empiristas contradizem os racionalistas.
Certamente haveria tal relação de contradição, mas
não seria aquilo que a lógica ordinariamente pensa
que é. Em vez das oposições serem fixas e perenes,
uma parte torna-se a outra. O botão e a flor são
contraditórios; eles são mutuamente incompatíveis.
O botão é uma forma falsa de uma flor, assim como
a flor é a forma falsa do fruto. Dessa maneira, o
racionalismo de Spinoza é uma forma falsa do
empirismo de Hume; os dois são contraditórios,
mas o último surge do primeiro. Estenda essa
imagem, de maneira a incluir toda a história da
filosofia, e o resultado será que as teorias de
Heráclito, Parmênides, Agostinho, Descartes e
Kant, não serão separadas, não serão sistemas
externa e arbitrariamente justapostos em sequência
temporal, mas serão todos, essencialmente, fases,
aspectos ou momenta em uma unidade orgânica.
Isso quer dizer que realmente existe aquilo que
chamamos de história; é uma coisa, não um
agregado de eventos independentes; é uma
totalidade orgânica em que os crescimentos
anteriores tornam-se os seguintes. Esse processo de
evolução na história é espelhado no próprio método
da filosofia, o método dialético, que teria sido
antecipado por Kant, usado de
maneira contraditória por Fichte, mas popularmente
ligado ao nome de Hegel, porque este o
desenvolveu até a um extraordinário grau de
perfeição.

A essência do método dialético consiste na escolha


daquilo que parece um ponto de partida apropriado
e plausível, chamado tese, que, sob análise, é
visto como que implicando uma proposição
contraditória ou conceito denominado antítese.
Essa contradição interna é preservada por meio do
encontro de um conceito unificador superior, a
síntese. Essa síntese torna-se, então, uma
segunda tese, dando surgimento à sua antítese, e
produzindo uma síntese mais elevada; e assim em
diante, até que a síntese mais elevada e todo-
inclusiva seja obtida, uma síntese que não mais
contenha contradição. Esse método, supostamente,
procede com rigor lógico igual ao da matemática e
do racionalismo. Desse rigor é derivada toda
categoria, todo conceito, isto é, toda realidade.

A lei da não-contradição

A tradicional lei da não-contradição, aristotélica, é


irrefutável. Pensamento implica sempre distinção.
Insistindo com Protágoras, que uma coisa é ela
mesma, Aristóteles precisou jogar uma coisa contra
a outra. Mas a contradição aristotélica é muito
restrita, pois o pensamento não é somente uma
questão de distinção. Ele também é matéria de
relação: ele conecta uma coisa com a outra. E,
até mesmo Aristóteles, admitiu que o conhecimento
dos opostos é alguma coisa. Se uma coisa sem
distinção for impensável, uma coisa sem relação
também o será. Conquanto todo objeto tenha de ser
diferenciado de todas as outras coisas, nenhum
objeto poderá ser diferenciado de modo que exclua
uma identidade que transcenda a diferença. Isso
quer dizer que não poderá existir uma
distinção absoluta: todos os antagonismos poderão
ser finalmente reconciliados. Todo pensamento
definitivo exclui o pensamento oposto; mas
também tem uma relação necessária com seu
negativo, e não poderá ser separado dele sem
perder seu significado. Portanto, todo pensamento
definitivo inclui seu oposto. É e não é ele mesmo,
pois contém a própria negação. Se passarmos do
primeiro pensamento para o segundo, o que
necessariamente temos de fazer, segundo esse
método e, então, desejarmos voltar ao primeiro
pensamento, somente poderemos realizar o intento
mediante a combinação dele com seu negativo, em
um terceiro pensamento mais elevado, no qual ele
será parcialmente negado e parcialmente afirmado.
Assim, o botão tanto desaparece quanto é
preservado na flor. Mas a contradição entre
proposições filosóficas tem sido comumente
concebida como fixa e insuperável. O descanso do
conflito e a polarização resultante não
foram obtidos, pois a mente que percebe a
contradição terá falhado no reconhecimento daquilo
que parece inerentemente antagônico na presença
de momento mutuamente necessário.156

Resultados e métodos

Quando a oposição entre verdade e falsidade é


tomada como fixa, oú7 se a verdade é considerada
como tendo evoluído até certo ponto, há uma
tendépcia de ver a importância da filosofia nos
resultados, tão laboriosamente conquistaqos. Em
um prefácio comum, talvez em um sistema
ordinário, tais resultados são contrastados com os
resultados de outros autores. Colegas estudantes,
em pkr-ticular, pensam ter aprendido filosofia
quando podem afirmar os resultados, tais como:
Aristóteles disse que o mundo era finito; Plotino
colocou o Um acima do Mundo Inteligível;
Descartes argumentou o cogito, ergo sum. Pensam
que deveriam receber uma boa nota só porque
escreveram seus conceitos
corretamente. Raramente lhes ocorre que os
conceitos deveriam ser suportados por
raciocínios. O que é pior, os professores, às vezes,
obscurecem seus raciocínios, utilizando a estupidez
pedagógica, do século 20, chamada de exame
objetivo. Na realidade, toda essa sorte de coisas é
uma tentativa de combinar a aparência de
seriedade com uma negligência factual em um dado
assunto. Esses resultados, em si mesmos, não
configuram filosofia. A opinião comum, irrefletida,
geralmente faz distinção entre método e conteúdo
das ciências positivas. No entanto, na filosofia,
essa separação não é possível. As conclusões a que
se chegam são sem sentido à parte de um
conhecimento do processo pelo qual foram obtidas.
Proposições separadas dificilmente poderão ser
chamadas de verdadeiras: a verdade poderá
existir verdadeiramente somente de forma
sistemática.

Romantismo

Em consonância com isso, o único meio da verdade


é a concepção. Os românticos do tempo de Hegel
— Jacobi, Schelling, Schleiermacher — afirmaram
que o contato com a realidade não seria feito
conceituai ou intelectualmente, mas intuitiva,
mística e imediatamente. Assim, a realidade, Deus,
ou o Absoluto, não seriam concebidos, mas
meramente sentidos; e os escritos desses homens
tornaram-se expressões, não do objeto real, mas
dos próprios sentimentos subjetivos.
Schleiermacher, por exemplo, que deu origem ao
liberalismo protestante e exerceu tremenda
influência até a Primeira Guerra Mundial,
abandonou a teologia e a substituiu pela
experiência da psicologia da religião. Em vez de
escrever sobre Deus, ele escreveu sobre si mesmo.
Da maneira como Schleiermacher estava
interessado no valor da religião, e Fichte
na moralidade, assim Schelling adotou uma
aproximação mística da natureza. Os homens, em
termos de seu estado mental, são como o filho
pródigo. Eles deixaram o lar; isto é, abandonaram a
satisfação e a segurança resultantes do senso
da certeza de que a vida pode ser conciliada com a
realidade última. Havendo gasto prodigamente seu
capital em reflexões nada substanciais, tornaram-se
conscientes da própria perda. Então, dando as
costas às bolotas de porcos, eles buscaram, não um
conhecimento perdido, mas o conforto
perdido.'Nao é de esperar que a filosofia rompa a
solidez compacta da existência substancial para
restaurar os caminhos do pensamento organizado.
Essa mentalidade não busca conceitos distintos
para remover seu caos: antes, deseja mais caos,
poucas distinções, menos ordem e sistema; deseja
êxtase, não argumento. Bem, se é isàp que
um homem quer, em breve encontrará algo que o
entusiasme. Mas a força do espírito, afirma Hegel,
é apenas tão grande quanto sua expressão
conceituai. Aqueles que colocam a expressão
obscurantista e apocalíptica, acima dá precisão do
significado, e desprezam declarações acuradas, não
são tão devotqs a Deus quanto aos conteúdos
fortuitos dos próprios espíritos. Eles acham qué
recebem sabedoria de Deus enquanto dormem.
Asseguramos-lhes que suas produções não passam
de sonhos.

Os românticos - e aqui, Hegel provavelmente


estaria pensando em Schelling mais do que em
outro - deslumbram seus leitores, dando-lhes a
impressão de ter vasto conhecimento mediante
referências a material cietítífico familiar. A
isso, eles juntam uma ênfase sobre fenômenos
curiosos, incomuns e extraordinários. À totalidade,
eles aplicam sua fórmula de que, no Absoluto, tudo
é um. Porém, se examinarmos mais de perto,
descobriremos que seu grandioso sistema, em vez
de mostrar como um único princípio toma
diferentes formas, nada mais é do que uma
repetição informe em que uma ideia é aplicada
externamente a vários itens. Isso não é substituto
para detalhes científicos. Um
formalismo monótono, uma simples ideia sem
realização concreta, não tem o valor substantivo de
conhecimento real. Eles nos dirão que, conquanto
um fato específico seja, sem dúvida, algo específico
aqui e agora, ainda assim, no Absoluto, tal coisa
não existirá, pois todas as coisas compõem uma
única totalidade. Entretanto, lançar tal fórmula
vazia contra a totalidade organizada de
determinado conhecimento é a própria ingenuidade
da vacuidade. Um Absoluto como esse é como uma
noite em que todas as vacas são pretas.

Substância e sujeito
Muito da difícil linguagem de Hegel poderá ser
entendido como sendo um protesto contra o
desaparecimento das diferenças essenciais na
simplicidade de um vazio universal. Nesse ponto,
Spinoza tinha tanta culpa quanto Schelling.

Não há apenas a dificuldade já discutida de atribuir


espaço e pensamento à mesma substância mas,
Hegel insta de maneira especial, que a substância
de Spinoza é destituída de autoconsciência.
Poderíamos dizer que tal conceito de substância
deixa o próprio Spinoza de fora, olhando a
realidade como um espectador, quando, é claro, ele
é parte da realidade. Portanto, Hegel insiste
que tudo depende de apreensão e expressão da
verdade última, não meramente como substância,
mas também como sujeito.

Entretanto, este sujeito não pode ser precisamente


Spinoza ou Fichte enquanto indivíduos. Se o
pensamento for tomado como puramente
subjetivo, resultará na mesma perda de diferenças,
na mesma uniformidade abstrata vazia. Kant e
Fichte também eram individualistas. Ambos
partilhavam em demasia das ideias de Rousseau, e
do Iluminismo francês, em que a liberdade era
atribuída a homens, como indivíduos. Porém,
tentando torná-lo um deus, a Revolução
revelou que o indivíduo seria uma fera. A anarquia
e seu reverso, o terror da ditadura, são resultados do
individualismo. A ética e a religião, entretanto,
pressupõem relações definitivas entre os homens e
entre homens e Deus. Rejeitando itais relações e
obrigações definitivas, sob pretexto de serem
inconsistentes com a liberdade, o século 18 acabou
em desastre.

Ora, para Hegel, o reconhecimento de uma unidade


orgânica é necessário para corrigir a ideia abstrata
de liberdade. O universo é um organismotodo-
inclusivo. Mente e objeto, sujeito e substância, e
também os diversos sujeitos autoconscientes,
formam uma unidade. Ninguém está fora ou é
ipdépendente. Como particulares ou partes desse
organismo unitário,^osjiomehs são livres em suas
condições limitantes. O homem é livre porque é
determinado pela própria natureza, que, por sua
vez, é determinada por suas relações com a
totalidade da natureza. Nem mesmo a natureza
deve ser considerada alheia ao homem, pois, em
última instância, os dois são idênticos. A
identidade, entretanto, não é abstrata ou vazia, mas
é uma que preserva todas as diferenças, sem as
quais a verdade seria falsificada.

A verdade é a totalidade

A verdade, portanto, é a totalidade; e a totalidade


nada mais é do que o ser completando-se mediante
o próprio desenvolvimento. O Absoluto
é, essencialmente, um resultado; somente no final é
que será o que é na verdade. No princípio, ou
imediatamente expresso, o Absoluto é apenas o
universal. Supor que isto seja o que o Absoluto é
realmente equivaleria a tomar a expressão todos os
animais, pela ciência da zoologia. Nem a palavra
animal nem o termo absoluto expressam o que isso
implica. Ainda assim, meras palavras tais
como essas colocam a intuição como algo imediato.
A zoologia, entretanto, requer conceitos
combinados em proposições; mas a primeira
proposição já é um processo, uma forma de
mediação, e como tal, foi além da intuição
imediata.

Os românticos têm horror à mediação porque


ignoram que a realidade seja um processo.
Contrário à sua opinião, e contrário à opinião
comum, não há distinção entre a verdade e o
processo para chegar à verdade. Se excluirmos a
reflexão ou a mediação da verdade última, nós
teremos uma falsa noção da natureza da razão. Isso
é que constitui o resultado da verdade final, e ao
mesmo tempo, sai com o contraste entre o resultado
e seu processo de obtenção. Corresponde a dizer
que a razão é intencional, e que o resultado é o
mesmo que o início, porque é o propósito do início.
Os filósofos anteriores, tendq a geometria
como modelo, tentaram basear seus sistemas em
um primeiro princípio fundamental. A verdade
básica - assim chamada - mesmo que verdadeira, é
também falsa. Sua refutação consiste não em um
ataque externo, mas no desenvolvimento
dos próprios defeitos inerentes. E defeituosa porque
é meramente um princípio, isto é, um começo.
Em conformidade, o conhecimento é real quando
colocado de forma conceituai sistemática. A
verdade somente poderá ser entendida dentro de
um sistema, e Hegel expressa que essa substância é
essencialmente sujeito, representando o Absoluto
como o Espírito. O Espírito é a única realidade, o
ser interior do mundo. Ele assume determinada
forma e entra em relação consigo mesmo, pois é
exterioridade, ou ser-outro, e existe por si mesirio.
Ainda assim, nesse ser-outro, continua sendo um só
consigo mesmo, absolíito e completo em si. No
começo do processo histórico, nós é quem
conhecemos esse absoluto. O Absoluto é absoluto
para nós. Mais tarde, o Absoluto terá de se tornar
absoluto para si mesmo. Terá de se tornar
autoconsciente, consciente de si mesmo como o
próprio objeto. A Mente, assim desenvolvida, sabe
que é mente — e isto é ciência. A ciência (termo
que não deve ser limitado à conotação norte-
americana do século 20) é a realização do
Absoluto.

A ciência floresce na mente que conhece a si


mesma. Mas o autoconhecimento obtém seu
sentido somente por meio de longo processo de
desenvolvimento. A autoconsciência ingênua vê a
ciência apenas como preocupada com
objetos externos, separados da mente. Os objetos
estão ali fora; o conhecimento está aqui dentro.
Enfatize os objetos, e resultará em materialismo;
enfatize o conhecimento, e resultará em um
subjetivismo berkeliano. O primeiro fará a mente
parecer irreal, e o segundo, dependendo da
autenticação externa à ciência, fará a
ciência parecer irreal. Contrário à opinião ingênua,
a ciência mesma considera tal separação como a
própria oposição da ciência. As duas partes, cada
uma considerando a outra como perversão da
verdade, têm de ser combinadas. A combinação,
um processo longo que não pode ocorrer de uma só
vez, é o desenvolvimento da ciência e o tema do
livro Fenomenologia do Espírito. O
primeiro capítulo considera a mente em seu estado
ingênuo de autoconsciência, e depois, uma
laboriosa dialética por intermédio de muitos
estágios inesperados (percepção, entendimento,
certificação, razão, espírito, moralidade, religião),
apresentando-nos um quadro do conhecimento
absoluto.

Mente universal

Uma vez que a mente cuja fenomenologia Hegel


descreve não se trata de uma mente individual, mas
da Mente Universal, ou Espírito Absoluto,
faremos, aqui, uma digressão com o propósito de
esclarecer o conceito, observando algumas de suas
motivações históricas. Em filosofias anteriores,
com poucas exceções duvidosas, o pensamento era
sempre a atividade de uma pessoa individual.
Porém, para Hegel, a quem Fichte, de algum modo,
antecipou nesse ponto, há um sujeito pensante que
não é um ser humano individual, nem o Deus
pessoal do teísmo. Esse misterioso Absoluto, nem
homem nem Deus, é a conclusão à qual Hegel
era levado pela infeliz implicação da opinião
comum. Se o pensamento for mesmo essencial e
uma capacidade exclusivamente individual, então
parece não haver escape imparcial ao solipsismo.
Assim como no caso de Berkeley,
determinado objeto, tal como uma árvore, torna-se
miraculosamente real, vez após vez, nos
atos casuais separados da percepção de um sujeito
individual. Entretanto, se desejarmos dar crédito à
negação ilógica do solipsismo de Berkeley, o
resultado não será mais aceitável, pois, nesse caso,
os objetos geralmente supostos por muitos, como
sendo comuns, serão atualizados ou se tornarão
reais nos inumeráveis atos perceptivos de uma
pluralidade de indivíduos. A última forma do
problema, complicado pelas dificuldades da
causalidade, também não foi bem resolvida, pelo
menos, não tão explicitamente, por Kant. Em sua
visão, a nova propriedade que a “relação com
o objeto” confere à percepção, consiste meramente
em ser conectada com outras percepções, segundo
certas regras. Mas a categoria de causalidade a
priori pode facilmente ser tomada como uma
pomposa expressão germânica para repetir
a admissão direta de Hume, de um hábito subjetivo
inexplicável. Certamente, essa não era a intenção
de Kant. Quando faz uma afirmação, a pessoa
assume que a verdade da proposição não depende
simplesmente dela mesma. Observações de que
algo é apenas a opinião de uma pessoa, ou de que o
islamismo é verdadeiro para os árabes e o
cristianismo é verdadeiro para os cristãos, é uma
maneira polida de dizer que tais afirmações sequer
são verdadeiras. Portanto, Kant pretendia que as
categorias fossem as mesmas para todas as pessoas
e se aplicassem a um mundo que fosse comum a
todas elas. Mas como poderá um indivíduo
reconhecer que há um mundo unitário comum a
todos os que percebem? Certamente não é em
virtude de qualquer experiência essencialmente
individual. Tem de haver algum tipo de
universalidade de que todos os objetos e todas as
pessoas participem. Nesse sentido, todas as
experiências terão de ser uma única. Por essas e
outras razões, Hegel postula um Espírito Absoluto,
um Universal Concreto, do qual pessoas e coisas
são modificações. Uma vez que essas razões
estenderiam desnecessariamente esta digressão, é
melhor parar neste ponto e retornar ao Prefácio.

A história da filosofia

A fenomenologia do espírito diz respeito ao curso


da história de qualquer espírito individual à medida
que progride da opinião para um conhecimento
absoluto. Entretanto, uma vez que poucos, ou
ninguém, completam a jornada, o progresso tem de
ser visto no espírito geral ou na história da
filosofia. O progresso é evidente porque os tópicos
que em dias passados exigiram energia de
homens maduros, plenos de habilidades mentais,
foram tratados, depois, em termos de informação
para crianças. As crianças de um período posterior,
ou seja, as mentes individuais, tornaram-se
educadas ou aculturadas, adquirindo ou
absorvendo essa informação já pronta. A cultura,
no entanto, quando vista do ponto de vista da
Mente Universal, significa nada mais que a
informação atribuindo a si mesma a própria
autoconsciência, iniciando o próprio processo
inerente e a própria reflexão de si mesma.

A história da filosofia exibe o desenvolvimento da


cultura, não apenas em seus detalhes, mas,
sobretudo, em sua necessidade. O alvo a ser
alcançado é uma visão da mente quanto ao que é o
conhecimento. A impaciência deseja alcançar o
alvo sem passar pelo processo. Mas a longa jornada
tem de ser percorrida, pois cada passo é necessário.
Porque o espírito universal tem tido a paciência
de passar pelos vários estágios, e assumir o
prodigioso labor da história do mundo, e, porque
por nada menos que isso, esta Mente que a tudo
permeia poderia se tornar cônscia de si mesma, a
mente individual não pode esperar menor
trabalho para apreender o conteúdo da própria
substância (ou conhecimento). Felizmente, a obra é
um pouco mais leve, pois alguns dos processos já
ocorreram. Um número de conceitos filosóficos foi
elaborado. Não somos mais confrontadqs com a
mera existência imediata. A reflexão tem sido
acompanhada da redução de várias formas e figuras
à suas abreviações intelectuais, para determinações
do pensamento puro e simples. O que resta para ser
feito é transcender as noções que, agora, são
familiares, pois aquilo que é familiar não é
inteligentemente conhecido. Portanto, sujeito,
objeto, Deus, natureza, e daí em diante, retêm
o caráter de imediação incompreendida. E uma vez
que tais coisas sejam acriticamente pressupostas
como pontos fixos de referência, o argumento
nelas baseado é superficial.

A análise desses conceitos acaba com sua


familiaridade. Nós os separamos em seus elementos
últimos, retornando aos seus momentos - os
estágios pelos quais eles foram inicialmente
formados. Esses estágios iniciais não têm a
forma dos conceitos resultantes, mas são
propriedades imediatas do EU. Antigamente, o alvo
da filosofia era o de elevar o individual acima do
nível sensível - ao nível de uma ideia. Os gregos,
testando a vida em todos os pontos, às vezes, por
meio de reflexão casual sobre objetos aqui e ali,
criaram uma experiência completamente permeada
com universais. Porém, em tempos modernos, o
processo tem de ser retraçado. As formas abstratas
vêm, agora, já prontas, e a tentação é tomá-
las, imediatamente, como dadas. Portanto, o
presente método de estudo é o de atualizar o
universal e fornecer vitalidade ao espiritual,
decompondo e substituindo-o como um
pensamento fixo e determinado. Mas é mais difícil
fazer que pensamentos fixos se juntem com outros
para formar uma totalidade continuada, do que foi
elevá-los acima da existência sensível. A razão é
esta: as determinações do pensamento tomam sua
substância e existência do EU à medida que a
mente faz um julgamento negativo, um julgamento
de que algo não é outra coisa; mas determinações
dos sentidos encontram sua existência na imediação
impotente e abstrata. Pensamentos tornam-se
fluidos e misturados, quando o pensamento puro e
simples conhece a si mesmo como um momento no
processo, quando o caráter fixo do EU e dos
conceitos é concedido. Em virtude desse
processo, pensamentos puros tornam-se o que
realmente são, aquilo em que consiste
sua substância, a saber, entes espirituais.

Procedimento científico

O processo constitui a natureza do procedimento


científico em geral. E a expansão necessária e a
concatenação do conteúdo desses entes espirituais
em uma totalidade orgânica sistemática. Assim, até
mesmo as reflexões casuais e desconexas anteriores
deixam de ser como são, pois o caminho da ciência,
em sua necessidade racional, compreende a
totalidade do mundo da vida consciente. Portanto,
uma exposição sistemática tem de incluir o
momento da consciência sensível imediata, pois o
aspecto imediato da mente, se mais nada, é, pelo
menos, o início necessário.

A cada estágio na evolução do espírito, está


presente a oposição entre cognição e objetividade.
Uma vez que tais estágios são modos ou formas
fié consciência, a declaração científica do curso de
desenvolvimento é uma ciência da experiência. A
substância e seu processo são considerados como o
objeto da consciência. Isto é, uma vez que o
espírito consiste desse processo, e uma vez que o
processo poderá ser um objeto da ciência, o
espírito, por si mesmo, torna-se um objeto. Ele é
tanto sujeito quanto objeto. Ele é seu próprio
outro. A dissimilaridade entre o EU e seu objeto é
sua distinção interior, ou o fator de negatividade.
Um não é o outro. Embora essa negatividade possa
ser entendida como um defeito em cada um dos
termos opostos, ela é, realmente, sua própria alma e
espírito motor. Demócrito antecipou vagamente
isso, tomando o vazio, o não-átomo, como o
princípio do movimento, ainda que, é claro, não
tivesse pensado sobre si mesmo. Esse fator
negativo, conquanto inicialmente apareça como
uma desigualdade entre o EU e o objeto, somente é
uma desigualdade dentro da própria substância.
Aquilo que parece ocorrer fora do objeto, a
atividade de conhecer dirigida contra ele, e aquilo
que parece ocorrer fora do EU, a atividade do
objeto imprimir-se no Espírito, são de sua própria
realização. A substância mostra que, na realidade,
ela é sujeito. Quando tal identidade
é completamente evidenciada, o Espírito tornou sua
existência adequada e unida com sua natureza
essencial, sendo superada a separação entre
subjetividade e objetividade, entre conhecer e a
verdade conhecida. Com tal obtenção, o argumento
da Fenomenologia do Espírito estará concluído, e o
desenvolvimento de um sistema orgânico de
categorias será deixado para a Lógica.

História e matemática
Esse ponto de vista geral, com seus novos conceitos
de contradição e de evolução da verdade, deverá
responder a duas objeções que o
dogmatismo apresenta como exemplos de verdades
fixas. Não nos parece que as proposições da
história e da matemática sejam imutáveis? Poderá,
a data de nascimento de César, ou o Teorema de
Pitágoras, serem alterados?

É impossível considerar verdadeiro em matéria de


história, até mesmo um elemento puramente
histórico, tal como a data de nascimento de César
(que, talvez com alguma inconsistência, Hegel
caracteriza como pertencente à esfera
de particularidade contingente e arbitrária), sem a
atividade da autoconsciência. Para apreender esse
fato, alguém terá de consultar livros e manuscritos;
e um grande esforço de construção intelectual,
geralmente despercebido, é aplicado na história da
investigação. Mesmo quando testemunhamos algo,
podemos conhecê-lo somente à medida que
conhecemos as razões que subjazem o evento: um
fato despido de tudo, sem explanação ou contexto,
jamais será um fato da história.
Quanto à matemática, jamais consideraríamos que
um garoto tivesse conhecimento geométrico, se ele
apenas houvesse memorizado o teorema,
sem entender a prova. Uma regra comum de três-
quatro-cinco, aprendida pela experiência, será
igualmente insatisfatória. Ainda assim, embora
um conhecimento da prova seja essencial, não será
um momento no próprio resultado. A prova estará
finalizada e terá desaparecido quando chegarmos
ao resultado; ela não mais pertencerá ao teorema,
mas ao conhecedor. A totalidade do processo de
produção do resultado é uma tarefa de
conhecimento que toma seu próprio modo de
proceder; e a natureza de um triângulo não se
decompõe em frações, da maneira colocada na
prova. Na matemática, o entendimento requerido
é externo ao assunto. Sem dúvida, a construção ou
prova contém pressuposições verdadeiras; mas seu
conteúdo é falso. O triângulo é decomposto em
partes, e de suas partes são feitas outras figuras.
Somente no final da prova é que
encontraremos novamente o triângulo. No curso da
construção, ele ficou perdido de vista e esteve
presente somente em fragmentos que pertenciam a
outras totalidades. Essa é uma negatividade que
pode ser chamada de falsidade. Além disso,
os passos necessários da prova não vêm do
teorema. Nós escolhemos traçar certas linhas,
embora outras fossem possíveis, na esperança de
que elas servirão ao nosso propósito. Tal propósito,
que controla o processo, é externo, porque ele vem
a ser conhecido somente depois que a prova é
completada. Além de tudo isso, o orgulho da
matemática repousa na pobreza de seu propósito e
na imperfeição do seu material. A filosofia tem de
refutar sua participação nisso. Quantidade é não-
essencial e superficial. O espaço, em que a noção
concreta inscreve a diversidade que ela mesma
contém, é (como o receptáculo de Platão) um
elemento vazio e sem vida, cujas diferenças
subsistem em formas passivas e sem vida. Aquilo
que é concretamente atual não será algo espacial. O
material da matemática é irreal, e assim, nem
percepções sensoriais concretas, nem a filosofia,
têm a ver. Portanto, o caráter fixo das proposições
matemáticas é a fixidez de verdades irreais.

A filosofia, ao contrário, lida com aquilo que é real


e essencial. Esse real, não abstrato, mas vivo, cria
seu próprio momento à medida que se
desenvolve. A totalidade de seu processo constitui
o conteúdo positivo e verdadeiro do real. A
negatividade, que, se fosse considerada em
abstração, seria chamada de falsidade, também é
incluída no processo. Porém, embora esse elemento
desapareça, ele é essencial. Aparição e
desaparecimento são, ambos, partes do processo,
mas o próprio processo não vem a ser, nem
desaparece. Uma vez que seja este o caso, o método
científico não poderá ser geométrico, como pensou
Spinoza. A popularidade da matemática, de
axiomas, princípios, provas e teoremas, com a
igualmente rigorosa refutação de posições opostas,
pertencem a uma era passada. Mesmo aqueles que
não entendem claramente por que a matemática é
inadequada, consideram-na ultrapassada. E se
tivesse sido tão excelente como Spinoza
pensava, ela teria imposto sua aceitação. A rejeição
de tais provas fixas, entretanto, não significa a
aprovação da conjectura e inspiração romântica,
pois a última contém, também, procedimento
científico. O método filosófico adequado é o
da triplicidade dialética, que Kant redescobriu
instintivamente, mas que, infelizmente, deixou sem
vida e incompreendida. O formalismo resultante
toma a configuração do ensino de que pensamento
é eletricidade, animal é nitrogênio, ou de que
alguma determinação de esquema é o predicado de
determinado assunto. Embora possa parecer
impressionante para alguém que não
tenha experiência, tal procedimento meramente
confere aparência de unidade a seu material, e falha
quanto a expressar o sentido que subjaz às ideias
sensíveis. Finalmente, alguém poderá ficar
desgostoso com tais rótulos
esquemáticos, abandonará as distinções puramente
verbais, e deixará que toda a ciência recaia na
identidade sem forma de um vazio Absoluto. Esse é
o resultado de um entendimento sem vida e de um
processo de conhecimento externo.

Ser é pensamento

A ciência torna-seum sistema orgânico somente


mediante a vida inerente ao conceito. São
necessárias determinações que consistem na
autodireção da alma interior do conteúdo concreto.
O processo de esquematização do entendimento é
um processo de catalogação que nada mais fornece
do que um índice de conteúdo; o conteúdo,
propriamente dito, não é fornecido. Por exemplo, o
entendimento talvez possa predicar o magnetismo
de uma barra de aço. Contudo, como predicado, o
magnetismo é um ente inerte, não conhecido
como o princípio vivo da barra existente. O
entendimento também não pode compreender
como, nessa barra, uma maneira intrínseca e
peculiar se expressa e produz efeitos. A ciência, ao
contrário, tem de apreender a necessidade interior
de controlar o objeto. Afundando-se em seu próprio
material, o verdadeiro conhecimento retorna a si
mesmo, contudo não antes de o conteúdo ser
plenamente tomado, reduzido a determinada
característica, baixado ao nível de um aspecto
singular de um ente existente, e transformado em
sua verdade mais elevada. Por meio desse processo,
a própria totalidade emerge da riqueza onde
o simples reflexo parecia ter-se perdido.
É difícil não indagar se o entendimento e a
predicação, até mesmo, o entendimento
esquemático da fixação de rótulos, poderão estar
tão perdidos como Hegel parece estar, em relação a
este ponto em particular. Quem poderá escapar à
atribuição de predicados a sujeitos? E quem poderá
fazer mais do que isso? Dizer que “ser é
pensamento”, e que os livros de Hegel são cheios
de sentenças, é uma predicação. Não será paradoxal
construir proposições com o propósito de afirmar
que a relação sujeito-predicado falha quanto à
apreensão da verdade? O que há, no conceito ou
noção, que o faz mais adequado à ciência do que as
proposições? Quatro parágrafos adiante, Hegel
enfrenta tais questões e tenta distinguir seu método,
do procedimento comum de seus
predecessores. Mas é necessário decidir se ele
recomenda o seu próprio, apenas deixando
de especificar os defeitos do outro. Entretanto,
continuemos, agora, com a noção ou predicação de
que “ser é pensamento”.

Ser é pensamento e substância é sujeito. A


substância de algo é sua identidade Mas identidade
é pura abstração, e isso é pensamento. Qualidade,
um simples determinativo, distingue um do outro.
Por causa de sua qualidade, uma existência existe.
Mas é, portanto, essencialmente pensamento.
Existência é qualidade, determinativos idênticos,
simplicidade determinada, ou pensamento
determinado. Mas como identidade é também
negatividade, pois isto não é aquilo, a
existência fixa e estável porta o processo de sua
própria dissolução cfentro de si mesma. O fato de
ter a própria quaí/dade de outro dentro de si mesmo
- e não exteriormente forçada sobre si
mesmo/como, em princípio, parece ser o caso —
está implicado na própria simplicidade do
pensamento. Portanto, o entendimento é um
processo, e sendo processo, é racionalidade.

O processo e o ritmo da totalidade do organismo é


racionalidade. A forma concreta do conteúdo é
resolvida pelo seu próprio processo inerente, em
uma simples qualidade determinada. Portanto, ela é
elevada a uma forma lógica e (sombras do
argumento ontológico!) seu ser e sua essência
coincidem. A existência concreta é meramente o
processo que ocorre. Nenhum esquema formal
precisa ser aplicado, de maneira externa, ao
conteúdo concreto, pois, conquanto o conteúdo
seja, por pela própria natureza, uma transição para
uma figura formal, essa forma, longe de ser
externa, é o processo residente do próprio conteúdo
completo.

Consequentemente, o estudante de ciências é


obrigado a assumir a extenuante tarefa da reflexão
conceituai. A atenção será focada nas
determinações simples e últimas, tal como o ser-
em-si, identidade, e assim por diante. Os
conceitos são funções autodeterminadas de um tipo
que poderia ser chamado de almas, não fosse o fato
de que sua natureza conceituai denota algo mais
elevado do que a alma. O pensamento conceituai é
interrompido. Portanto, é perturbador para ambos, o
hábito de pensar em ideias figurativas (empirismo)
e o desmedido processo da inteligência formal
(racionalismo). Pensamento mediante imagens, ou
pensamento materializado como pode ser chamado,
é um estado mental fortuito, absorto com aquilo
que é material. Daí, tal hábito acha de mau
gosto sair de sua matéria e ficar confinado a si
mesmo. O racionalismo, entretanto, separa-se de
todo conteúdo com um ar de superioridade. Tal
liberdade arbitrária deveria ser abandonada; deveria
permear o conteúdo e imergir nele. Temos de nos
abster de interromper o ritmo imanente do
movimento do pensamento conceituai; e temos de
rejeitar a interferência arbitrária. Somente por meio
de tal refreamento, poderemos apreender a real
natureza do conceito. O processo de raciocínio
formal adota uma atitude negativa em relação ao
conteúdo, reduzindo-o a nada. Depois de observar o
que o conceito não é, o processo racionalista chega
a um beco sem saída. Sequer tem sua própria
negatividade para o conteúdo. Outros conteúdos
poderão ser obtidos somente a partir do exterior (tal
como Spinoza forneceu um status axiomático a
uma particular lei da física). Mas no pensamento
conceituai, o aspecto negativo recai no
próprio conteúdo e é a substância positiva desse
conteúdo, porque é a inteireza de seu caráter
inerente e princípio motor.
Proposições e conceitos

Hegel escreve com considerável extensão, em ufn


esforço para diferenciar seu método de pensamento,
do método de seus precursores. As
proposições racionalistas, ou, nesse assunto, as
empiristas, com suas distinções entre sujeito e
predicado, são subvertidas pelo método dialético.
Como exemplo, tome a proposição: Deus é Ser.
Uma vez que tem significado substantivo, o
predicado Ser absorve o sentido do próprio sujeito.
Ser não pretende ser um predicado, mas a natureza
essencial do sujeito. Portanto, Deus parece deixar
de ser o que ele era quando a proposição foi
inicialmente declarada, a saber, um sujeito fixo. A
reflexão ordinária é, assim, bloqueada, pois, em vez
de progredir do sujeito para o predicado, ela
apresenta ambos como idênticos, e não faz
nenhum progresso. Uma vez que o predicado
deveria ter expressado a natureza essencial do
sujeito, o pensamento perde sua base fixa objetiva,
que possuía no sujeito, tanto quanto o predicado é
lançado de volta ao sujeito.
As queixas quanto à não-inteligibilidade dos
escritos resultam, principalmente, do fato de que as
proposições não são aquilo que parecem. Uma
objeção feita é a de que muitas passagens têm de
ser lidas repetidas vezes antes que possam
ser entendidas. Se for certo que a escrita é
condenável, a filosofia nada poderá fornecer em
sua defesa. Uma vez que esta continua sendo uma
proposição, a proposição filosófica sugere a
costumeira relação do sujeito com o predicado,
e parece implicar que o procedimento usual é o
conhecimento. Então, descobre-se que a declaração
foi pretendida em um sentido diferente, e que a
totalidade terá de ser relida.

O pensamento especulativo, ao abolir a forma da


proposição, tem de fazê-lo não apenas de uma
maneira imediata, meramente pelo simples
conteúdo da proposição. Ao contrário, temos de dar
expressão explícita a esse processo
de cancelamento. Não apenas o pensamento tem de
ser confinado em sua própria substância, mas
também seu retorno da conceituação, de volta a si
mesmo, tem de ser expressamente declarado. Esse
processo, que constitui o que anteriormente tinha
de ser conseguido mediante provas, é o movimento
dialético interno da própria proposição. Em vez de
uma declaração sistemática desse
movimento dialético, as filosofias anteriores
frequentemente faziam o conteúdo residir
na intuição interior. Certamente, a exposição
dialética consiste de proposição, e assim, deve ser
visto que não conseguimos escapar às velhas
maneiras de pensar. Entretanto, tal objeção
recorrente é cancelada por uma dificuldade
semelhante no processo ordinário de prova: as
premissas que usa têm de ser, elas
mesmas, demonstradas por premissas anteriores, e
isso, em um retorno ad infinitum. Além disso, o
elemento do método dialético não é, estritamente,
uma proposição, mas um simples conceito. Isso
fornece um conteúdo que é plenamente, um sujeito
em si. Não há conteúdo colocado em relação a um
sujeito subjacente, obtendo seu significado por
causa da ligação a tal predicado. A
proposição, como aparece, é mera forma.

Um conceito deveria ser distinto de mera forma.


Por exemplo, “Deus” é um nome, e por essa razão,
deveria ser evitado. Entretanto, Ser, o Uno, e
Sujeito, são conceitos. A exposição filosófica da
verdade especulativa tem de reter fielmente a forma
dialética e excluir tudo que não seja apreendido
conceitualmente e seja uma concepção.

O estudo da filosofia encontra empecilho, também,


no conceito irracional que constrói a si mesmo
sobre verdades bem estabelecidas, as quais o
possuidor crê que não precisam de exame. Nas
esferas da arte e do artesanato, jamais se duvida
que, a fim de dominá-las, uma considerável dose de
esforço deverá ser aplicada em termos de
treinamento. É sabido que nem todos que têm olhos
e dedos, e um pedaço de couro, são capazes de
fazer sapatos. No que diz respeito à filosofia, ao
contrário, a tese consagrada é que todos entendem
de filosofia, simplesmente porque possuem o
critério para fazê-lo à luz da razão natural -como se
alguém possuísse, da mesma forma, o padrão de
sapateiro, nos próprios pés. Assim, a posse da
filosofia é equiparada à falta de conhecimento,
como uma forma desprovida de conteúdo
substancial. Uma direção divina direta ou o
sadio senso comum da humanidade, não
disciplinado nem perturbado pelo estudo e reflexão,
é tido como um bom substituto para a filosofia, tal
como a chicória usada como substituto para o café.
Ignorância inculta e barbarismo mental proclamam-
se ser liberdade intelectual e inspiração de gênio!

Não há tal coisa como um caminho real para a


ciência. Pensamentos verdadeiros e insights
científicos poderão ser obtidos apenas mediante o
trabalho do conceito. E conceitos somente
produzem universalidade no processo do
conhecimento.

Hegel conclui seu Prefácio, duvidando que sistema


tão difícil como o seu terá grande aceitação. Ainda
assim, é da natureza da verdade forçar seu
caminho para o conhecimento apenas no devido
tempo. Tal é a racionalidade do processo histórico,
que a verdade jamais surja tão cedo, e jamais
encontre um público não amadurecido para recebê-
la. Quanto à aplicação desse princípio ao
próprio sistema, Hegel estava longe de ser
desapontado.

Certeza sensível

Como o esforço intelectual de trabalhar a filosofia


de Hegel é tudo o que ele disse que é, não há muita
necessidade de destacar os pontos altos
da Fenomenologia do Espírito. Nem mesmo, um
capítulo poderá ser selecionado do meio do livro
para uma exposição mais cuidadosa, pois a
dialética produz cada passo posterior a partir do
passo precedente. O resultado não terá sentido
à parte do método usado para chegar a ele.
Portanto, além do sumario do Prefácio, nada mais
poderá ser feito, senão começar com o primeiro
capítulo sobre certeza sensível. As dificuldades
começam imediatamente com/o título alternado:
Das Dieses und das Meinen. A despeito da
ponderação literária, Hegel era espirituoso; de fato,
ele podia descer ao nível do jocoso. Das Dieses und
das Meinen poderia bem ser traduzido: “O isto e o
sentido”, ou “individualidade e significado”.
Mas Meinen é também o adjetivo possessivo meu.
Comojé que o sentido é meu está no ponto central
do capítulo?

A fenomenologia do Espírito começa com a mais


ordinária e ingênua visão de que, no conhecimento,
a pessoa deveria se ater aos fatos.
Interpretações são adornos; a verdade é a própria
coisa. Nosso objeto imediato do conhecimento é o
conhecimento do imediato, do existente. Devemos
tomá-lo como é, e nada mudar. A certeza sensível
parece o mais rico dos conhecimentos. Não há
limites quer na busca do tempo e do espaço, quer
nas mais diminutas porções do presente. Parece
também o mais verdadeiro dos conhecimentos, pois
não altera seu objeto. Entretanto, isso acaba sendo
o mais pobre dos conhecimentos, pois pode dizer
sobre seu objeto apenas que ele é. A verdade da
certeza sensível contém apenas a existência do
objeto. A consciência, por sua vez, sob
tais condições, meramente toma a forma de puro
ego. Eu sou, é apenas um puro isto; e seu objeto,
igualmente, existe apenas como puro isto. Eu, esse
eu consciente em particular, estou certo desse fato
diante de mim, não porque eu tenha
me desenvolvido em conexão com ele, e de
múltiplas maneiras, colocado o pensamento para
trabalhar sobre ele. E, não é porque esta coisa da
qual estou certo, em virtude de ela ter inumeráveis
qualidades, fosse repleta de possíveis modos de
relação e com uma variedade de conexões com
outras coisas. Nem o EU, nem a coisa, comportam
relações multiformes. O EU não pensa; nem a coisa
é isso que tem uma multiplicidade de qualidades. A
coisa é, meramente, o que ela é. O ponto essencial
do conhecimento sensível é o simples fato de
ser. Somente isso constitui sua verdade. Da mesma
maneira, a certeza, como relação, a certeza “de”
algo, é uma pura relação imediata. Consciência é
EU, nada mais, um puro isto. A consciência
individual conhece aquilo que é individual.

Entretanto, há muito mais implicado nesse simples


puro ser, que constitui o âmago dessa forma de
certeza e que é dado como sua verdade. Uma
das implicações é que, nas experiências sensoriais,
o ser puro se decompõe em duas partes, o EU e o
objeto, cada um deles um isto. Uma reflexão sobre
tal distinção mostra que nem um nem outro são
imediatos, nem são meramente na certeza sensível,
mas cada um é mediado. Eu tenho certeza por
intermédio do objeto e o objeto é certo por meu
intermédio.

Provaria isso ser possível conservar a imediação,


descobrindo que um desses dois não é essencial e
que a certeza pertence imediatamente ao outro?

Na certeza sensível, isto é, na mente ingênua


tomada como ela é em si mesm^enx^vêz^de-ser tal
como filosofamos sobre ela, o objeto parece um
fator essetícial. O EU é não-essencial à certeza
porque o EU como conhecer ou
como conhecimento existe apenas por intermédio
do objeto. O objeto permanece como é, quer eu o
conheça quer não; mas o EU não permanece o
mesmo, pois se o objeto for suprimido, o
conhecimento ou o EU se desvanece. Portanto,
o objeto parece a realidade essencial e a verdade
real.

Temos de perguntar, porém, se o objeto, de fato,


existe na própria certeza sensível, como a realidade
essencial que essa certeza sensível atesta ser. A
questão não é o que objeto possa ser na verdade,
mas, meramente, se seu significado e conceito, a
realidade essencial, corresponde à maneira como o
objeto está presente na certeza sensível. Com
efeito, estamos perguntando à certeza sensível: O
que é istóí A resposta mais clara é que o objeto está
aqui e agora. À questão: O que é agora?. -
respondemos que agora é noite. Para atestar a
veracidade dessa certeza, poderemos dá-la por
escrito. Uma verdade certamente não poderá ser
perdida, se dada por escrito e preservada. (No
alemão, há, aqui, um tipo de trocadilho, em que o
verbo preservar soa como que rebaixando a
verdade, no papel.) Se, agora, preservarmos a
verdade no papel por doze horas, e ao meio-
dia, examinarmos o agora, teremos de dizer que
nossa preservação da verdade terá sido falsa. O
agora que foi noite terá sido mantido fixo; foi
tratado como realidade sensível e veio a ser como
algo que é. Porém, na verdade, veio a ser algo que
não é. O agora continua a existir como agora; mas
existe como não-noite. Breve existirá como não-
dia, de novo. É sempre não-algo. Como um
negativo geral, entretanto, não é algo imediato; é
mediado, isto é, é determinado por meio de algo
mais. Sendo simplesmente agora, não é dia nem
noite, e é dia e noite. Isso quer dizer que o próprio
agora não é afetado pelo ser-outro. Um ente
simples desse tipo, que existe mediante negação,
que não é isto nem aquilo, que é um não-isto, e que,
com igual indiferença é isto e aquilo - tal coisa é
chamada de universal. Como matéria de fato,
portanto, a verdade da certeza sensível, o conteúdo
da experiência, é o universal.

Embora não imaginemos o universal, é o universal


que nós expressamos. Se dissermos isto é,
expressamos apenas o ser em geral. Contudo, uma
vez que ser em geral não é o que a certeza sensível
significa, não teremos expressado o que queríamos
dizer. Nossa linguagem, portanto, refuta
diretamente nosso sentido. Como verdade é
universal, e a expressão também, será impossível
expressar em palavras qualquer existência sensível
que queiramos “significar”.

A mesma dialética se aplica ao aqui. Aqui está uma


árvore, e aqui está uma casa. Negação e mediação
são essenciais ao ser puro da certeza
sensível. Consequentemente, esse ser puro não será
o que queríamos dizer. A conclusão é que o objeto
não mais é essencial. Tornou-se um universal e sua
certeza existe no conhecimento, o EU, o qual foi
posto de lado como sendo não-essencial. Sua
verdade está em seu objeto como meinen (meu);
isso quer dizer, como Meinen (sentido). Ele existe
porque eu o conheço. Eu sou o fator permanente e
essencial. O agora é dia porque eu vejof ,aqui está
uma casa porque eu estou apontando para ela.

Infelizmente, o outro-eu tem outro-agora, e em vez


de uma casa, eu vejo um rio, ae(ui. É este EU quem
tem este agora e este aqui. Mas a qualidade de
isto é uma universalidade. Será inútil apontar para
esse isto. Aponte para o agora e ele já será outro. O
agora que foi apontado é um já-foi (gewesenes),
não um é, ou Ser (Weseri). O que era, não é.
Similarmente, o aqui que foi apontado, não está
aqui. Antes, ele está atrás, sobre, sob; é um isto
negativo.
Aqueles que afirmam a certeza imediata de isto não
dizem e não podem dizer o que significam, pois a
linguagem pode expressar somente aquilo que
é universal. E isto é a mais universal de todas as
palavras. Tudo é esta coisa. Para designar algo
individual, devo tomá-lo tal como é na verdade
(Wahrheit), e em vez de conhecer um imediato, eu
tomo a verdade (nehme ich wahr), isto é,
eu percebo. A certeza sensível, portanto,
transforma-se em percepção. A percepção, por sua
vez, virará entendimento. E a Fenomenologia do
Espírito prosseguirá seu divertido caminho
dialético.

A LÓGICA

A Lógica, de Hegel, é mais fundamentada e ainda


mais técnica do que a Fenomenologia do Espírito.
Portanto, as limitações presentes nada poderão
permitir além de um particular índice de conteúdo e
uma pequena explanação na conclusão. Embora a
Lógica, de Hegel, possa bem ser chamada de uma
analogia da teoria das categorias de Kant, em vez
de um número exato, doze, Hegel deduz
centenas de categorias ou mais. Faz-se necessário,
sobretudo, demonstrar que essas categorias não
compõem um agregado ao acaso. A lista tem um
começo necessário, um final racional, e a
progressão dialética, de uma a outra ponta, é tão
rigorosa como, até mesmo, Spinoza teria desejado.

As categorias

Obviamente, a primeira categoria é a mais simples,


a mais vazia, e a mais abstrata: puro Ser. Porém,
ainda que seja explicitamente a mais vazia, ela
contém implícitas todas as outras. Dessa maneira, a
análise dialética descobrirá nela as suas antíteses e
preparará para a síntese. Do outro lado, o final, o
último, ou, em termos lógicos, a primeira categoria,
a Ideia Absoluta, não dá origem a nenhuma antítese
além dela, mas contém explicitamente todas as
categorias precedentes.

Puro Ser, como mera existência, não é verde nem


pesado, vivo ou consciente, qualificado ou
quantificado ou, de nenhum modo,
determinado. Puro Ser, portanto, é o equivalente de
Nada. Ele se tornou a própria antítese. Porém, se o
Ser se torna Nada, ele dá origem à categoria do
Tornando-se, que é a síntese do Ser e do Nada. O
método dialético procede por meio de tríades, e esta
é a primeira: Ser, Nada e Tornando-se. Essa síntese
se torna em Ser Determinado, isto é, qualidade sob
cujas subcategorias estão: realidade e
negação. Qualidade produz limite com suas
subcategorias, e daí, vem o verdadeiro infinito. A
lista continua tal como indicado a seguir, mas
nenhuma tentativa será feita para reproduzir o
procedimento dialético de um para outro item.

1. Qualidade
1. Ser
1. Ser
2. Nada
3. Tornando-se
2. Ser Determinado
1. Qualidade
2. Limite
3. Verdadeiro Infinito
3. Ser para-si
1. O Uno
2. O Múltiplo
3. Repulsão e atração

2. Quantidade {(subcategorias omitidas)

3. Medida{(subcategorias omitidas)
...
7. O Conceito Subjetivo

1. O Conceito como Conceito


1. O Universal
2. O Particular
3. O Singular
2. O Julgamento
(quatro [!] subcategorias)
3. O Silogismo
8. O Conceito Objetivo
1. Mecânica
2. Química
3. Teleologia

9. A Ideia
1. Vida
2. Cognição
3. A Ideia Absoluta

Neste ponto, as categorias, tecnicamente definidas


como predicados que se vinculam necessariamente
a tudo, sem exceção, chegam a seu fim, mas
Hegel continua a dedução de outros universais que
se aplicam a áreas restritas e não a tudo sem
exceção. Tal como foi com as categorias, algumas,
de uma longa lista, são selecionadas como
exemplos.

X. Arte

1. O Belo em Geral

2. Os Tipos de Arte

1. Arte Simbólica

2. Arte Clássica

3. Arte Romântica

3. As Artes Particulares
Y. Religião

1. Religião em Geral

2. Religião Definida

3. Religião Absoluta

Z. Filosofia

Comparações com Kant

O significado da teoria das categorias, de Hegel,


poderá ser mais bem entendido em relação ao
problema que Kant deixou sem solução.157 Das
categorias kantianas, a que recebeu mais atenção
foi a do conceito de causa. Na visão de Kant, esse
conceito não é apenas o predicado de um objeto,
quando, por exemplo, a corrente de um rio é
chamada de causa da flutuação de um navio curso
abaixo. Ele é também o predicado da mente que faz
o julgamento, no sentido que a causalidade é o
método de pensamento. Infelizmente, Kant deixou
esta união de subjetivo e objetivo com alguma
confusão. Do lado objetivo, as categorias
se aplicam a cada coisa individualmente e a seu
agregado, à totalidade do mundo fenomênico.
Assim, o mundo fenomênico é apenas uma quase
totalidade, não uma totalidade verdadeira, porque a
cadeia de causas e efeitos, como eventos temporais,
acaba sendo um infinito regresso. Kant, devemos
nos lembrar, tinha argumentado que nada poderia
suceder num vazio de tempo. A causalidade
é mecânica e uma primeira causa é incognoscível.
Portanto, o mundo que conhecemos é uma quase
totalidade, parcialmente definida mediante as
categorias.

Do lado subjetivo, as categorias são necessárias


porque temos de pensar sobre os objetos como
causalidade conectada. Causalidade é uma forma de
pensamento assim como uma forma de fenômeno.
Portanto, uma vez que o mesmo predicado, causa,
liga-se a ambos, ao objeto e à mente, parece haver
algum tipo de identidade entre sujeito e objeto.
Esse objeto é claramente fenomênico; as categorias
de Kant não se aplicam às coisas em si, mas são
meramente formas vazias de possível experiência.
O conteúdo somente poderá ser posto nessas
formas vazias, por meio da sensação. Portanto, o
mundo fenomênico de Kant, o mundo dos
objetos, não é atual e concreto, exceto como esta ou
aquela pessoa individual conhece esta/ou aquela
instância individual de causa e efeito.

Já foi apontado que isso não é tão diferente da


posição cética de Hume, de que causalidade seja
um hábito inexplicável de uma mente individual.
Kant, entretanto, pretendia que fosse diferente. Ele
não queria que a verdade dependesse do julgamento
de um indivíduo. Queria que as categorias
fossem elementos estruturais de um mundo que
fosse o mesmo para todos os
sujeitos experimentadores. Mas o que Kant
negligenciou, se confiarmos no insight de Hegel
sobre esse ponto, foi que um sujeito finito poderá
reconhecer o mundo da experiência, como o
mesmo mundo que outra pessoa experimenta,
somente enquanto reconhece a si mesmo como uma
mente mais-do-que-finita, um universal. Hegel
afirma que a consciência de um mundo comum
somente poderá pertencer a mentes finitas, se elas
forem diferenciações de uma mente universal.
Dessa maneira, Hegel crê que a teoria do Absoluto,
ausente em Kant, é requerida para evitar o
ceticismo de Hume.

Ora, para retornar ao ponto de que é a sensação que


provê o conteúdo para as formas categóricas vazias,
Kant sustentou que intuições sensíveis requerem
uma síntese que precede a análise. A análise é um
meio de abstrair ou produzir conceitos universais a
partir de intuições particulares. Para Locke, esse
processo exaure a natureza do julgamento. O que
Locke deixou de ver, e o que Kant insistiu
em afirmar, é que o processo de abstração usa
outras informações mais, do que simples ideias de
branco, amarelo, amargo, e assim por diante. As
abstrações fazem uso de informações que são, em si
mesmas, produtos de uma síntese. Isso não quer
dizer que a síntese vem primeiro no tempo e, então,
é seguida do processo de análise. A prioridade da
síntese é lógica, não temporal, pois, na visão de
Kant, o próprio tempo é um fator formal da
experiência e, não a pressuposição da própria
reflexão crítica. Análise e síntese são, portanto,
fatores inseparáveis em todo juízo. Porém, se for
assim, dados, informações, não são as ideias
simples, de Locke. O único dado é o pacote
sensível do que não estamos conscientes, pois tal
pacote é somente o resíduo informe, dado após o
julgamento. Conceitos, até mesmo, espaço e tempo,
são abstraídos de nossa experiência consciente.

Nebuloso que é, Kant não prossegue a tratar de tal


resíduo. De outra forma, a espontaneidade do
pensamento não seria baseada na receptividade dos
sentidos, os conceitos não seriam vazios, e uma
intuição intelectual teria de ser admitida.

Contudo, para Kant, o entendimento não cria o


objeto. Há uma imediação sensível. Essa sensação é
o teste da realidade. Inversamente, o material da
sensação, o mundo real, não pode ser reconstituído,
no pensamento, sem resíduo. Uma parte essencial
da realidade, portanto, permanece incognoscível.

A recusa em admitir uma intuição intelectual causa


dificuldade também para outros pontos. O que dizer
sobre os princípios reguladores, de Kant? Não há
mais razão para crer que eles regulem a
experiência, do que para crer que concedam
conhecimento do Ding an Sich. Eles não poderão
apenas ser aptidões subjetivas, meramente, mas,
também, pela mesma razão, poderão ser mente sem
tais aptidões. Para serem verdadeiramente
reguladores, tais princípios teriam de ser
constitutivos. Foi a mesma dificuldade também,
agravada pela restrição de Kant — de o
conhecimento do EU ser o do EU empírico como
objetos, para que o sujeito transcendental continue
incognoscível — que destruiu sua teoria
da moralidade. Finalmente, e em geral, todo
conhecimento se relaciona a intuições, e a filosofia
é limitada ao conhecimento do fenômeno; mas a
cooperação entre entendimento e sentido, no
conhecimento, não é uma intuição sensível ou
um objeto fenomênico. Consequentemente, tal
cooperação, que é a própria filosofia de Kant, não
pode ser conhecida. Aqui, devemos perceber que
Kant fez a pergunta, mas não deu resposta à
questão: O que é a experiência? O que é a
totalidade complexa de mente-cognição-objeto? O
conhecimento desse complexo, isto é,
o conhecimento do que é a experiência, tem de
conter uma intuição não-sensível. Pois, se a
experiência existe, não existe tal como existe o
objeto fenomênico. A conclusão de toda essa crítica
de Kant é que, quanto mais modestamente tentamos
limitar o escopo do conhecimento humano, tanto
mais impossível se torna a justificação do modesto
conhecimento que afirmamos.

Nada incognoscível

Hegel, portanto, nega que haja qualquer limite para


o conhecimento. Não há nada incognoscível, quer
o Dingan Sich, quer, o EU transcendental.
Conhecer o limitado ou o condicionado será
impossível sem saber o limite. E saber que algo é
um limite é saber que o material anterior não
continua além desse limite. Porém, se conhecemos
o que está além, não é limite nem é incognoscível.
Não somente serão possíveis a matemática e a
ciência, mas será possível, também, a metafísica.
Pois, se sabemos que o mundo fenomênico é
condicionado, teremos de já conhecer o
incondicionado ou absoluto. Tal como isso é
verdadeiro sobre o objeto, assim será verdadeiro
sobre o sujeito. Na mais comum das
experiências conscientes, Hegel encontra uma
revelação autotranscendente, do qual infere que
uma Mente Universal seja imanente na mente
finita. Portanto, o pensamento é intuitivo em seu
próprio contexto. As categorias de Hegel, então,
não são formas vazias da experiência possível; não
é nossa imposição delas que as torna válidas.
Nossas mentes constituem o objeto porque elas
mesmas são constituídas pela atividade da Mente
Universal dentro delas.

A pena de Herr Krug

No entanto, infelizmente, é mais fácil ver as faltas


de Kant do que aceitar as correções de Hegel. Sem
dúvida, suas críticas lamentáveis e muitos de
seus argumentos são profundos. Aqueles que, mais
tarde, no século 19, escolheram a divisa, “De volta
a Kant”, iam, certamente, na direção errada. Porém,
ainda que alguém não possa conter uma imensa
admiração por seu gênio, Hegel não se livrou das
inconsistências kantianas. Consideremos se não há
resíduo da sensação que não possa ser reconstituído
em pensamento, se não há incognoscível, se todas
as coisas podem ser explanadas - e explanação
significa, não a indicação de uma causa mecânica
que meramente é, mas a doação de uma
razão porque deve ser — se tudo isso for assim,
então, certo Herr Krug requer que Hegel
deduza, explique, e depois conheça a pena em sua
mão. Se ele não puder fazer isso, Hegel terá evitado
a nêmesis da informação? Parece que, na relação
entre as categorias e a pena, Hegel caiu novamente
na dificuldade platônica da participação dos
objetos sensíveis nas Ideias. Dizer que há algo na
coisa individual, além dos universais, é afirmar um
incognoscível. Contudo, se for assim, ele terá de
aceitar o desafio de deduzir a pena de Herr Krug.
De fato, ele esmagou o obscuro professor,
utilizando a pompa de sua posição. Hegel não
ocupava uma cadeira na Universidade de Berlim?
Não era o filósofo oficial do Estado prussiano?
Com efeito, ele fez mais do que usar a força do seu
peso. Ele se referiu ao primeiro capítulo
de Phänomenologie, escrito anos antes de Krug
levantar sua questão. O argumento mostrou que
é impossível falar de algo individual que queiramos
designar. A imediação sensível da pena é uma
inexpressividade “minha” que se transforma em
percepção, e daí, em entendimento, e assim em
diante por todo o sistema, de novo. E se Krug
não pôde falar sobre sua pena, Hegel precisará
deduzi-la.

Mas será que isso atende a dificuldade? A suspeita


de que um incognoscível Ding ainda espreita nas
sombras aumenta, quando Hegel, em outro lugar,
fala de individuais como sendo contingentes e
irracionais. Em sua filosofia da natureza, ele se
refere a umas espécies menores de plantas e
animais como sendo incapazes de dedução, tendo
como base o fato de a natureza ser tão irracional
que não pode permanecer dentro dos limites da
razão, mas corre em desordenada produtividade.
Não é esse um dado inexplicável? Se for assim,
Hegel não foi mais bem-sucedido do que Kant. Sua
falha é a mais visível, por causa do contraste com
suas reivindicações. Se, além disso, o Espírito
Absoluto realiza-se dialeticamente na totalidade do
processo histórico, então, todo evento menor e toda
espécie menor deverão ser rigorosamente
deduzidos. Porém, embora tenha conseguido forçar
o curso geral da história para ser algo de
desenvolvimento lógico, era demais para Hegel, a
produtividade irracional de inumeráveis
eventos. Ou estaríamos sendo demasiadamente
severos? Talvez possamos julgar mais justamente,
depois de ver a sequela deixada para os 100 anos
seguintes.
11 - IRRACIONALISMO
CONTEMPORÂNEO

Com a morte de Hegel, a história da filosofia


aproximou-se rapidamente do nosso tempo. Tal
proximidade, em vez de facilitar a tarefa
do historiador, aumentou a dificuldade. Os
historiadores são notoriamente míopes e quando
tentam focalizar aquilo que é recente, a imagem
torna-se nublada. Por exemplo, de meados para o
final do século 19 havia dois filósofos, o
alemão Rudolf Hermann Lotze (1817-1881) e o
britânico Herbert Spencer (1820-1903), que
ultrapassaram todos os seus contemporâneos.
Questionar sua permanente importância na filosofia
era considerado sinal de ignorância ou
preconceito. Ainda assim, em meados do século 20,
apenas 50 anos depois da morte do último, ambos
haviam caído no esquecimento e sua influência era
virtualmente nula. Longe de tal nulidade é a
influência de um jovem hegeliano que foi
obscuro para aquela geração: Karl Marx. Se, então,
os historiadores da década de 1850 não prestaram
atenção a Marx, seria provável que um autor de
hoje pudesse selecionar as mais importantes figuras
contemporâneas? Recentemente, na América, John
Dewey tem gozado de uma popularidade que já foi
comparada à de Lotze e Spencer. Questionar sua
onisciência ainda é sinal de perversidade, pelo
menos, em Nova York. Se tivessem um mínimo de
teísmo, poderíamos dizer que seus discípulos o
deificam. Porém, dentro dos próximos 50 anos,
é inteiramente possível que ele saia de cena e torne-
se apenas um pequeno parágrafo, no Geschitchte
der Philosopbie, de Überweg. Mas um autor tem de
manter sua história, de alguma maneira, atualizada.
Portanto, este capítulo de conclusão omitirá Lotze e
Spencer; selecionará, mesmo em um ou dois
pensadores obscuros, aquilo que parece um ponto
de vista distintivo da era pós-hegeliana;
omitirá muito mais, e esperará que outro século à
frente julgue o que ocorreu em seu passado recente.
Buscando esse objetivo de simplificação, este
capítulo será dividido em uma seção sobre o
desenvolvimento germânico e uma seção sobre
o pragmatismo, principalmente, na América.
No momento, o avanço distintivo, ou retrocesso,
durante os últimos cem anos tem sido o repúdio ao
racionalismo hegeliano. De fato, um anti-
hegelianismo tem ido a tal ponto que nosso período
talvez possa ser chamado de a época
do irracionalismo. Hegel foi feito o paladino da
razão. O real é o racional e o racional é o real.
Contudo, não antes que um caso real, mas
irracional, de cólera o tivesse removido de cena,
uma suspeita começou a alimentar uma
revolução riq pensamento, ultrapassando as
reivindicações da revolução copérnica de
Kant. Tanto Kant quanto Descartes tiveram a razão
em alta estima, conquanto diferissem quahto à
elaboração. Porém, se Hegel não pôde deduzir a
pena de Krug, o problema não pode ser meramente
se o objeto gira em torno do sujeito ou se o sujeito
gira em torno do objeto, mas se, no final das contas,
a existência real pode ser um objeto para a mente.
Kant havia perguntado: é, a razão, capaz
de conhecer a realidade? Mudando a frase, temos
outra conotação: é a realidade possível de ser
conhecida? Talvez o universo seja irracional. Tal
ousada conclusão tçimou algum tempo para se
desenvolver na mais virulenta de suas
formas. Igualmente, se isso parece bem claramente
em um escritor do século 19, Syren Kierkegaard,
este estranho homem, tal como Karl Marx,
permaneceu obscuro até o século seguinte. No
entanto, embora as alusões e antecipações fossem,
à primeira vista e popularmente, ignoradas, a
direção que o pensamento estava tomando parecia,
agora, clara. Nenhuma tentativa será feita para
explanar em detalhes sobre tais autores; muitos
deles ainda são considerados obscuros. Mas
o primeiro, contemporâneo de Hegel, obteve
grande popularidade.

Arthur Schopenhauer

Arthur Schopenhauer (1788-1860) é alguém cujo


irracionalismo é razoavelmente bem pronunciado,
embora ele não se encaixe perfeitamente aqui, em
função de ser mais um representante do
romantismo pós-kantiano, que o próprio Hegel
observou, do que um pós-hegeliano disposto a
destruir o “Sistema”. O Romantismo, é claro, não
descreve um cavaleiro em esplendente
armadura, lutando justamente por sua donzela
amada, ou um trovador, cantando líricos emotivos.
Schopenhauer odiava mulheres e, como pessimista,
ensinava que este era o pior de todos os mundos
possíveis. Antes, o romantismo poderá
ser considerado o sucessor secular do misticismo.
Tal como os místicos não tinham esperança de
conhecer Deus e tentavam experimentá-lo
irracionalmente, assim também os românticos
consideram superficial o intelecto e refugiam-se em
algum tipo de forma de vida mais profunda. Para
Schopenhauer, tal atividade mais profunda não era
a da indulgência sensível, tal como ocorria com
literatos e artistas românticos, mas a atividade da
vontade. Na visão de Schopenhauer, a vontade é o
Ding an Sich kantiano, e como tal, o entendimento,
que opera por meio de categorias, não pode
apreendê-la. A ciência é superficial; ela meramente
descreve os fenômenos e jamais penetra a natureza
interior das coisas. O conteúdo que preenche o
vazio das formas categóricas contém algo que não é
completamente conhecido, algo que não pode ser
explicado ou deduzido de outros fatores, algo que é
sem fundamento. Este algo é o Ding an Sich. Ele
não é um objeto do conhecimento, e
essencialmente, a forma categórica lhe é alheia.
Portanto, o entendimento não pode penetrar a
natureza interior das coisas. Quando
recebe privilégios além de seus direitos, a ciência
tende a reduzir a vida ao movimento físico-
químico. O movimento, por sua vez, é o assunto da
mecânica, e mecânica é matemática. Estas eram as
pretensões de Demócrito, na antiguidade, e as
de Pierre LaPlace, no fim do século 18. O rude
materialismo do século 19 negou uma força vital.
Assim, a luz seria, supostamente, uma vibração
mecânica em uih éter imaginário. Uma vibração de
483 bilhões de pulsações por segundo é vermelha, e
727 bilhões, é violeta. Isso torna a cegueira para
cores apenas uma incapacidade de contar! Porém,
conquanto possa descrever o como, a ciência
jamais dirá nada quanto a o quê. Pois o o quê é a
vontade, e a vontade não é sujeita nem às
/categorias nem ao tempo e ao espaço. Não sendo
tempo e espaço, não é individual, pois tempo e
espaço são os princípios da individuação. O
universo, portanto, é a manifestação de uma
vontade universal, mas incompreensível.

Fichte, também, atribuiu um papel decisivo à


vontade, mas seu irracionalismo foi menos
pronunciado do que o de Schopenhauer, posto
que, para Fichte, o processo mundial era tanto
racional quanto moral. No entanto, na visão de
Schopenhauer, a vontade não era, e a natureza seria
uma luta cega e sem propósito. A vida humana não
tem alvo, ou, no máximo, nada mais do que o alvo
budista de um Nirvana. É desnecessário, portanto,
perseguir o pessimismo de Schopenhauer, por meio
do qual ele se tornou o ídolo da diletante mulher
a quem ele odiava, pois o ponto principal é que o
romantismo pós-kantiano transmitiu um forte
irracionalismo ao período pós-hegeliano.

Durante os últimos 30 anos da vida de


Schopenhauer, enquanto ele decaía do nível da
filosofia pós-kantiana para o da literatura
superficial, havia um grupo de pensadores,
estimulados diretamente por Hegel, que, embora
representassem interesses diversos, concordavam
em se opor ao grande mestre e iniciaram um tom
anti-hegeliano que ainda caracteriza a filosofia
contemporânea. Seus interesses diversos eram
políticos, religiosos e científicos, dos quais os dois
últimos eram mais definidamente metafísicos, ou,
para evitar desentendimentos, mais violentamente
anti-meta-físicos. Há de ser dito, também, que os
interesses religiosos são, mais bem chamados, de
antirreligiosos.

Para um cristão ortodoxo, Hegel dificilmente


pareceria um forte defensor do luteranismo
germânico. Não apenas seu Absoluto estava mais
próximo da substância panteísta de Spinoza do que
de um Criador transcendente, mas também — e isto
era mais óbvio aos crentes não-filósofos — ele
negava os conteúdos particulares dos credos.
Entretanto, seus seguidores radicais queixavam-se
de que, ainda que negasse tais conteúdos, ele
retinha a forma, pois uma torcida de sua teoria
colocava-o na posição peculiar de parecer um
paladino do status quo, tanto na religião, quanto na
política. Quando o curso da história é
considerado como um desenvolvimento racional do
Espírito Absoluto, cada estágio é considerado como
certo, próprio e oportuno. Na conclusão do prefácio
à Fenomenologia, deve ser lembrado, Hegel
modestamente duvidou se um sistema dificultoso
como o seu poderia obter ampla aceitação. Ele se
conforta, não tão modestamente, com o comentário
de que é da natureza da verdade forçar seu caminho
para o reconhecimento, quando o tempo é chegado,
e que a racionalidade do processo histórico é tal
que a verdade jamais aparece muito cedo e jamais
encontra um público que não esteja maduro para
recebê-la. Aquilo que ele disse sobre o próprio
sistema aplica-se igualmente a todos
os desenvolvimentos religiosos e políticos. O
resultado é que Hegel sempre justifica o status quo.
E se o luteranismo de seus dias era sem vida e
formal, e se a Prússia era um poder emergente, tais
condições eram tanto certas e próprias quanto reais
e racionais. É claro que o sistema de Hegel também
implica que o Espírito Absoluto continuaria a
desenvolver enquanto o tempo permitisse, de
maneira que o luteranismo e o prussianismo
inexoravelmente desapareceriam. Mas
Hegel, tendendo em favor do sistema educacional
controlado pelo governo, estava disposto a
esconder da visão pública, seu “radicalismo
moderado” e mostrar-se como o justificador do
atual. Enquanto a igreja e a universidade fossem
controladas pelo governo, as reações contra suas
distorções hipócritas teriam de ser políticas e
religiosas. Uma vez que os principais envolvidos
nessa reação anti-hegeliana eram seus
contemporâneos, e que política, ciência e religião
estavam presentes, em variadas proporções, em
todos eles, com exceção única de Kierkegaard,
a ordem da exposição será arbitrária.

David Friedrich Strauss

Diferente de Schopenhauer, o pensamento de David


Friedrich Strauss (1808-1874) surge diretamente da
filosofia hegeliana. Ele foi o primeiro e o menos
importante dos radicais aqui mencionados, pois
seus escritos eram quase exclusivamente de
conteúdo religioso, com um mínimo de apreensão
científico filosófica. Ao mesmo tempo, seu
radicalismo religioso era parte de uma
revolução político religiosa mais geral, do meio do
século. A escolha de Strauss, da crítica do Novo
Testamento, talvez seja explanada como um
método mais fácil e seguro para iniciar um ataque
contra a política prussiana. Em 1835, com a
publicação de Leben Jesu, ele objetivou completar
a destruição do cristianismo que Schleiermacher e
Hegel haviam timidamente começado. Esses dois
haviam atacado os fundamentos do cristianismo.
Aqueles que tomavam os relatos bíblicos pelo seu
valor nominal, tal como Lutero havia feito, foram
reduzidos em número e despidos de influência. Nas
universidades, os acadêmicos deram
explicações naturalistas aos textos sobrenaturais. A
queda do homem, no Éden, foi interpretada como
se Adão tivesse comido algo venenoso que
prejudicara permanentemente o sistema digestivo
humano. Cristo teria multiplicado os pães e peixes
do jovem, induzindo a todos a compartilhar os
próprios lanches. Assim, algo
chamado cristianismo, que teria uma conexão bem
superficial com a Bíblia, manteve e foi mantido
pelas autoridades prussianas.
Strauss rasgou a roupagem dessa desonestidade
intelectual e revelou sua nua hipocrisia. Ele estava
disposto a começar com a tese de Hegel, de
que haveria verdades profundas e importantes, não
apenas no cristianismo, mas em todas as religiões.
Tais verdades, no entanto, ocorreriam em formas
históricas ou pictóricas, e a tarefa da filosofia, seria
a de elevar tais expressões inadequadas à forma da
verdade estritamente filosófica. Porém, conquanto
concordasse com essa tese hegeliana, Strauss
ensinava que ainda restava muito mais para ser
feito. Parecia-lhe inútil elevar a narrativa dos
Evangelhos ao nível de conceitos filosóficos, para,
depois, meramente rebaixá-los ao nível original.
Hegel não os havia rebaixado. Ele não era avesso à
crítica da veracidade dos Evangelhos, mas
certamente havia abandonado a afirmação de sua
historicidade. Todavia, Strauss não estava
interessado na preservação da verdade conceituai
da religião, mas em provar que a
alegada historicidade era produto de mitologização.
Jactando-se de que estava isento de pressupostos e
preconceitos (um autoengano, onde quer que
ocorra), ele afirmou que, embora seja possível que
tenha havido um homem chamado Jesus, a figura
de Cristo, tal como descrita nos Evangelhos, seria
resultado de séculos de acréscimos de lendas. Em
vez de Cristo ter criado a igreja, a igreja criou
Cristo.158

Embora achando que o cristianismo devesse ser


repudiado — e Strauss nega expressamente ser um
cristão - a religião poderia permanecer na forma
de um sentimento de dependência em relação ao
universo naturalista: não haveria um céu futuro, e
os tesouros de uma vida divina deveriam ser
realizados na sociedade terrena. Strauss, ainda que
tivesse sido, por um tempo, um
idealista, finalmente aceitou uma forma de
materialismo. Ele pelo menos negou que
houvesse qualquer diferença entre um idealismo
consistente e um materialismo consistente. O ponto
importante seria manter um monismo em oposição
ao dualismo cristão de espírito e matéria. Diferente
de sua teoria radical da mitologização, no entanto, a
tendência materialista não lhe era original. Suas
fontes, ou uma de suas fontes, e um esclarecimento
da ideia de céu na terra deverão ser buscadas em
um homem mais importante.

Ludwig Feuerbach

Ludwig Feuerbach (1804-1872) começou sua


carreira filosófica como um idealista hegeliano. Em
um dos primeiros tratados, ele argumentou contra
a teoria de que o pensamento fosse uma função do
cérebro. Ele notou a dificuldade epistemológica de
que o materialismo não pode manter uma distinção
entre declarações verdadeiras e falsas, nem pode, a
sensação pura e simples, limitada como está ao
presente imediato, fornecer proposições sobre o
futuro. Entretanto, ele finalmente veio a aceitar
uma explicação puramente psicológica para o
pensamento. A razão para tal reversão, pela qual
ele descartou todo o conteúdo da Lógica de Hegel,
retendo apenas o método dialético, foi, pictórica
e metodologicamente, a pena de Herr Krug. Isso
quer dizer que Feuerbach sustentava que a
realidade seria individual. Ele adotou um
nominalismo em que os universais seriam apenas
nomes. Quando argumentou sobre o aqui e o agora,
Hegel talvez tenha sido bem-sucedido em dissolver
ou sublimar o conceito de aqui; mas a pena
sensível, isto-aqui, ainda nos confronta. Dando
lugar para uma intuição sensível imediata, Hegel
eliminou-se da existência real. A dedução da
existência a partir da essência é um sonho. Ela
recebe uma aparência de credibilidade apenas
porque Hegel distorceu a sensação e contrabandeou
informação empírica para dentro de seus conceitos.
Mas somente a sensação pode desvelar a
existência real — não alguma autoconsciência
abstrata. Hegel, portanto, foi malsucedido
no campo da ciência natural, e somente as ciências
sensorialmente baseadas, podem fornecer um
entendimento do universo. O Espírito Absoluto, de
Hegel, é .simplesmente o fantasma de uma teologia
desacreditada: na realidade, o Espírito Absoluto
nada mais é do que o Professor Absoluto.

A ciência natural, por mais que se valha de penas e


coisas, encontra nos seres humanos o mais
importante objeto. Eles, também, são reais e
individuais. Aqui, novarúente, o hegelianismo foi
deficiente. Primeiro, não sobrepujou o solipsismo.
Segundo, considerou a natureza humana essencial
do homem como intelectual e cognitiva. Mas há
homens que jamais filosofam, e há um aspecto
de todo homem, até mesmo, do Professor Hegel,
que não filosofa. A natureza humana é
fundamentalmente emocional e passional, não
intelectual. O que Hegel e toda filosofia tradicional
negligenciou foi o homem ativo, limitado, temporal
e sofredor - o indivíduo, que nasce, que sente e que
terá de morrer. Embora negligenciados, os homens
são realidades. Os corpos desses homens poderão
ser determinados por algum tipo de mente ou
espírito - sem dúvida, nós conscientemente
escolhemos comer ou andar; mas, primeiro, a
atividade da escolha terá sido
inconscientemente determinada pelo corpo.
Escolhemos comer porque o corpo tem fome; e
comer alimento material é mais importante do que
fantasias idealistas. Em consonância com seu
materialismo, Feuerbach sobrepõe um trocadilho à
famosa declaração de Hegel, Der Mensch ist was er
isst. Uma vez que isso implicaria que
Hegel sofresse de uma dieta deficiente, Feuerbach,
descendo ao abismo da paixão anti-intelectual,
metafísica e acrítica, lamenta a dieta de batatas dos
pobres. Em vez de o esse est percipi, de Berkeley,
ele escreve: “Ser é o mesmo que comer ... Apenas
no comer, o vazio conceito de ser obtém conteúdo
... O alimento é o princípio da sabedoria”. A
revolução de 1848 falhou porque os pobres
somente comiam batatas; pela mesma razão, os
irlandeses jamais poderão expulsar os
ingleses. “Quer fazer o povo progredir? Então, em
vez de pregar contra o pecado, forneça-lhe melhor
alimento. O homem é aquilo que come.”

Se Feuerbach nega que sua explanação filosófica


do pensamento seja materialista, é somente porque
o termo matéria foi tomado para designar um
substrato incognoscível da sensação. Em vez de
materialismo, sensacionismo seria um termo mais
adequado, embora humanismo seja o termo que
veio a ser aceito. Feuerbach começa ou recomeça
um humanismo em que o homem é a medida de
todas as coisas. Ele recusa argumentar sobre o
solipsismo e sobre um mundo externo porque a
existência da humanidade é um fato primário da
vida. O indivíduo atual não é um neutro Das, mas é
um homem ou uma mulher, que foi gerado em
outro ser humano. Com essa insistência na
comunidade humana, ele esperava evitar a teoria
puramente individualista da verdade tal como
defendida por Protágoras. A distinção entre
subjetivo e objetivo poderia ser mantida porque a
verdade objetiva seria social. O que quer que algo
me pareça em um momento, o que quer que eu
sinta, deve ser conferido por aquilo que parece ou é
sentido por outras pessoas. A verdade consiste na
concordância; a humanidade é o padrão último.
Embora tenha falado de maneira tão elevada sobre
a verdade da sensação imediata e não derivada,
agora, ele diz que as sensações de indivíduos,
distorcidas por causa de suas imaginações acríticas,
são bastante caprichosas. Elas terão de ser
retratadas. A ciência não começa com objetos
sensíveis reais para operar pensamentos e
conceitos. As coisas reais ficam no final do
procedimento científico porque a ciência torna
objetivo ou visível aos olhos comuns, aquilo que
antes era invisível. Aqui, temos a semente da teoria
social da verdade, mais tarde desenvolvida por E C.
S. Schiller e John Dewey.
Feuerbach, naturalmente, continuou a atacar o
cristianismo. Seu método não foi o da crítica
histórica, tal como Strauss havia usado, mas um
exame psicológico feito em A Natureza do
Cristianismo - uma obra elogiada por Marx e
Engels. A religião é uma expressão na natureza
imediata do homem; e, é claro, a sua essência é,
como em Schleiermacher, o sentimento. Crenças
religiosas são disfarçadas em desejos, refletindo a
inabilidade humana para controlar a natureza. Em
sua frustração, o homem se conforma mediante a
invenção de histórias de milagres. Assim, a
ressurreição de Cristo torna objetivo o desejo de
sobreviver à morte. Quando alguém diz que tem
conhecimento de Deus, o que ele tem é realmente
um conhecimento, mas um confuso e indireto
conhecimento de si mesmo ou da natureza humana.
O progresso, na religião, consiste em
esclarecer esse conhecimento, atribuindo menos a
Deus e mais ao homem. Por isso, o protestantismo
é um avanço em relação ao catolicismo. O
protestantismo não está interessado naquilo que
Deus é em si mesmo. Não é especulativo
ou contemplativo como o catolicismo; não tem uma
teologia, mas apenas uma cristologia. Para
completar esse avanço do cristianismo para uma
antropologia religiosa, a deidade terá de ser
substituída pela humanidade. De fato, isso já
tem acontecido. O cristianismo, no máximo, existe
somente aos domingos; os outros dias da semana
ele é contraditado pelas companhias de seguro,
indústrias, ferrovias, barcos a vapor, teatros e os
mais efetivos implementos de guerra. Em vez
de oração, temos trabalho; em vez de religião e fé,
nós temos a política. Uma vez que o governo é
mandado da natureza humana estendida, sua força
depende de um ateísmo prático. A religião é uma
força divisora; ela jamais uniu uma nação. A ordem
eclesiástica é uma forma de política inimiga da
felicidade do homem sobre a terra. A religião e a
igreja, portanto, terão de ser destruídas, se é
que queremos inaugurar uma república
democrática. Para atingir tal finalidade, teremos de
lutar para aumentar todos os controles políticos, até
que um líder poderoso possa tornar o Estado
supremo. Assim, Feuerbach preparou o
caminho para Karl Marx.
KARL MARX

Depois de Feuerbach, o desenvolvimento seguinte


se concentra em Karl Marx (1818-1883) e em seu
assistente, Friedrich Engels (1820-1895),
os fundadores do comunismo. Embora, hoje, a
informação sobre o comunismo esteja bem
disseminada, ainda surpreende muita gente, saber
que Marx era um filósofo hegeliano. Surpreende
ainda mais quando há um melhor conhecimento de
Hegel. Pois que dois sistemas de pensamento
poderiam ser mais antagônicos do que o altamente
acadêmico e conservador idealismo de Hegel e o
brutalmente prático e radical materialismo de Marx
e Engels? Engels escreveu que a vida teria se
originado da matéria não-viva, que o homem seria
produto da natureza, e que o pensamento seria
produto do cérebro. Ele predisse que o esfriamento
do Sol extinguiria a Terra, e que finalmente as
estrelas perderiam seu brilho, deixando o universo
totalmente frio, escuro e morto. Sua sugestão de
que as colisões entre esferas celestes mortas, depois
de tudo, produziriam novas estrelas, com
a decorrente possibilidade de formação de vida,
dificilmente parece otimista o bastante para lembrar
um dos desdobramentos do Espírito Absoluto em
perfeita racionalidade. Ainda assim, por mais
antitéticos que o idealismo absoluto e o comunismo
materialista possam ser, Feuerbach já havia
demonstrado como o hegelianismo poderia
produzir resultados inesperados, e outros elementos
em Marx indicarão a ponte pela qual ele cruzaria
esse abismo.

O Materialismo dialético

Mais importante do que conectar os elos entre


Hegel e Marx, será entender o método dialético,
pois Marx se orgulhava do fato de seu materialismo
dialético ser distinto dos materialismos metafísicos
anteriores. Se um homem sem treinamento, mas de
boa habilidade intelectual, começasse a refletir
sobre a natureza, ele ficaria impressionado com o
fluxo que a permeia. Ele se tornaria imediatamente
um heraclitiano. Todas as coisas mudam; são, e não
são; nada permanece fixo. Essa visão da natureza é
essencialmente correta, mas em sua primeira forma
não fornece um relato do fenômeno em particular.
Assim como a noite de Schelling, em que todas as
vacas são pretas, esta, também, nada mais é do que
uma simples repetição. Para entender os detalhes da
natureza, seria preciso que a pessoa os separasse do
fluxo, isolasse-os, parasse seu movimento, e os
tornasse em coisas metafísicas fixas. Então, o
pensador diz: É isto e não aquilo; uma coisa não
pode ser ela mesma e outra coisa. O positivo e o
negativo, a causa e o efeito são contradições
rígidas. Tal pensamento abstrato, metafísico, ainda
que útil para certos propósitos limitados, distorce a
natureza e, finalmente, tropeça em paradoxos
insolúveis. A pessoa, então, terá de retornar ao
verdadeiro método científico dialético. Causa e
efeito, por exemplo, não são conceitos fixos; sua
validade é limitada às suas aplicações a instâncias
individuais. Quando uma instância é vista em sua
continuidade com o fluxo heraclitiano, causa e
efeito são fundidos e dissolvem-se na matriz de
ação e reação do universo. Conquanto a ênfase na
dialética e no processo mostre a influência de
Hegel, deveria ser notado que tanto agora quanto
depois, que a dialética marxiana não é uma
atividade lógica tal como a de Hegel, mas um
processo natural ou material.

Marx não abandonou a dialética, mesmo em seus


argumentos econômicos. Obviamente imitando a
dedução das categorias de Hegel, Marx toma
o proletariado e as riquezas como opostos que
formam uma totalidade; a propriedade privada
como sendo riqueza é forçada a manter a própria
existência, e, portanto, a existência do seu oposto, o
proletariado. Assim, pela lei da dialética,
o proletariado abole a si mesmo, abolindo,
portanto, o seu oposto que o fez tal como é... e
assim em diante.

Coletivismo

Outra conexão entre Marx e Hegel, uma


consequência do método dialético, é a oposição ao
individualismo. Se a totalidade é o fluxo
heraclitiano, ou o desdobramento de um Espírito
Absoluto original, não poderá ser uma
mônada leibniziana nem um indivíduo verdadeiro
que forme governos por meio do contrato social. O
individualismo, como cria Hegel, quebra a unidade
da sociedade; atomiza a raça humana e nega o
Absoluto ou Totalidade inclusiva. Essa visão
é irreconciliável com uma sociedade racionalmente
planejada, em que as escolhas de cada pessoa são
controladas pelo Estado. O individualismo é
egoísta: ele subordina o bem coletivo da totalidade
aos bens particulares de pessoas individuais. Com
tal coletivismo, Hegel e Marx se unem contra o
protestantismo. Lutero havia desafiado a sociedade
organizada; ele disse: Ich kann nicht anders; ele
pôs a própria consciência acima da autoridade
social. Hegel atacou explicitamente Cristo e seus
discípulos, por causa de sua moralidade divisora e
antissocial. Um apelo à consciência, ou aos direitos
naturais, pode ser, em determinados momentos, um
protesto contra a injustiça; mas tal negação da
prioridade do grupo sobre o indivíduo é anárquica.
Laços sociais existem antes de padrões morais, e
estes têm o propósito de reforçar aqueles. O
protestantismo é obviamente inconsistente com o
estado todo-poderoso. Marx, certamente, rejeitou o
idealismo de Hegel e forneceu uma base naturalista
para a sua teoria; mas seu socialismo e sua dialética
foram originariamente hegelianas.

Muito religioso

A crítica marxiana de Hegel seguiu e ultrapassou as


de Feuerbach. Segundo Engels, o sistema de Hegel
era fundamentalmente contraditório. Sua
insistência no processo e no fluxo era altamente
meritória, mas ele havia viciado sua contribuição à
filosofia pelo término do fluxo em um Absoluto
fixo. Os dois não podem coexistir. Se o universo é
um processo, como certamente é, um Absoluto é
impossível, e um Espírito Absoluto um impossível
dobrado. Não há necessidade de uma metafísica
misteriosa além das separadas
ciências materialistas. Tais ciências fornecem todo
o conhecimento sustentável. A lógica pura,
esquemática, tal como Hegel apreciava, somente
poderá se relacionar com formas de pensamento,
não com formas de ser. Estas somente poderão
se derivar, mais tarde, de mundos externos. Pois, a
menos que tais formas procedam do ser, seria
extremamente marcante que as leis do pensamento
e as leis do ser devessem ser intimamente
compostas.

Embora Hegel e Marx se unam em oposição ao


individualismo protestante, a negação materialista
do Espírito levou Marx a considerar Hegel e, até
mesmo, Feuerbach como sendo muito religiosos.
Ele se opõe veementemente a Hegel como sendo a
expressão especulativa dos dogmas cristãos
germânicos da oposição entre matéria e espírito. O
Absoluto é apenas “Deus”, de novo. Marx era
tão vigoroso no ataque a Hegel que alguns dos
conservadores — a despeito da
declaração anticristã de Hegel, de que “sem mundo
não há Deus”, e a despeito de sua oposição à
moralidade de Cristo e seus discípulos - começaram
a pensar a respeito de Hegel como sendo um
defensor da fé. Essa enganosa aceitação
do hegelianismo era mais plausível um século atrás,
por causa da então, opinião comum de que Hegel
fosse um expoente do status quo. Marx também via
Hegel dessa maneira. Mas Marx considerava que,
até mesmo, Feuerbach fosse cristão. Ainda que
fosse grande a influência de Feuerbach sobre Marx,
ele não hesitou em chamá-lo de uma ovelha em
pele de lobo. Os hegelianos
conservadores afirmavam compreender todas as
coisas, tão logo estas são reduzidas a categorias. Os
jovens hegelianos criticavam todas as coisas,
declarando-as serem questões teológicas. Ambos os
grupos, no entanto, pensavam que a religião
controlava o mundo existente, ainda que o último
considerasse tal controle usurpador. Contudo, tanto
a compreensão quanto a crítica estavam em falta. A
compreensão hegeliana assume o fato de que um
gato come um rato; então, por meio de reflexão, o
gato é equiparado à natureza e o rato é equiparado à
natureza; gato comer rato, portanto, é destruição da
natureza pela natureza, ou, a autodestruição da
natureza. Portanto, o fato de um gato comer um
rato está filosoficamente compreendido na
autodestruição da natureza. Entretanto, a crítica age
como se as pessoas pudessem ser salvas de um
afogamento, se tão-somente fossem persuadidas
a rejeitar a lei da gravitação como sendo
supersticiosa religião. Ambos os procedimentos são
muito abstratos. A filosofia tem sido uma avaliação
retrospectiva, quando deveria ser uma atividade
social antecipatória. O mundo existente talvez
precise ser entendido ou compreendido, se não,
racionalizado; mas certamente precisa ser mudado.

Atividade humana

O antigo materialismo metafísico, mesmo o de


Feuerbach, e o empirismo britânico que o
acompanha, caíram seriamente em falta, na visão
do homem como um ser essencialmente passivo.
Os idealistas, por causa de todas as suas fantasias,
devem receber o crédito pelo reconhecimento do
homem como um ser ativo. Pois, se o homem é
uma parte do fluxo, como ele poderia ser
menos ativo do que qualquer coisa? O homem não
é simplesmente empurrado desta ou daquela
maneira, por forças externas. Nem o pensamento,
nem mesmo uma simples percepção poderão ser
explicados mecanicamente. A sensação, em vez de
ser uma impressão passivamente recebida, é uma
interação entre aquele que percebe e a coisa
percebida. Isso não é o mesmo que afirmar que a
mente seja idealisticamente independente de
condições materiais. A interação é uma interação
entre dois corpos, na qual o corpo de um homem é
tão ativo como o outro corpo. A ação é tal que a
sensação poderá ser chamada de uma questão
de atenção voluntária. Como um homem vê o quê,
depende tanto dele quanto do objeto. Homens de
diferentes culturas, colocados juntos em um
ambiente estranho, verão as coisas de diferentes
maneiras. Aquilo que uma pessoa vê como
comida outra verá com algo nojento. Assim, o dado
— das Gegebenes — envolve a pessoa a quem é
dada. John Dewey parece ter tomado isso
emprestado da perspectiva de Marx, mas ele
implementou a linguagem, substituindo “o dado”
pela expressão “o tomado”. Uma pessoa toma um
escargot por comida, enquanto outra, não. Essa
atividade humana, socialmente condicionada, torna
a coisa o que ela é, tomando-a tal como é.

Infelizmente, os idealistas, embora tomem o


homem como sendo ativo, não o tornam
suficientemente ativo. Ações são eventos
concretos; e não somente o universal de Hegel era
muito abstrato, mas o humanismo de Feuerbach
era muito abstrato. Em vez de começar com os
individuais humanos reais em suas condições
econômica e social atuais, ele começou com o
“homem”, isto é, com a natureza humana abstrata.
Não inclinado à revolução, contente com seu
quadro de uma sociedade ideal, cultuando
abstrações não-históricas, Feuerbach era
muito religioso. Seu materialismo, segundo o qual a
realidade consistiria dos objetos à mão, falhou em
ver que os objetos são produtos da atividade
humana. Hegel, é claro, reconhecia que os objetos
fossem produtos da atividade humana, mas
sua atividade seria mera abstração mental. A base
de seus erros complementares -um, afirmando o
materialismo mediante a negação da atividade, e o
outro, afirmando a atividade, mas negando o
materialismo — é a sociedade burguesa, uma
sociedade de individualismo selvagem, que goza
sua comida sem ver que tudo o que ela consome
precisa, primeiro, ser produzido. Uma maçã é
resultado de seu cultivo em uma plantação; uma
cereja é uma importação comercial.
Feuerbach, aceitando a maçã sem o trabalho,
mostra sua afinidade com a doutrina da criação
divina. Quando o ateísmo consciente remove todos
os traços de religião, então os homens crerão neles
mesmos, e em vez de meramente interpretarem o
mundo como humanos, tal como fez Feuerbach,
eles transformarão o mundo humano por meio da
atividade revolucionária.

Tornando o homem humano

Não apenas o mundo deverá ser feito humano, mas,


o que é mais importante, o homem deverá se tornar
humano. Feuerbach considerava o homem
como sendo, principalmente, um produto biológico.
Se fosse assim, haveria pouca razão para
revoluções. Entretanto, a natureza humana é
determinada pela história, isto é, por forças
econômicas que moldam a sociedade. Aquilo que o
homem pensa, o reflexo ideológico formado em seu
cérebro, é o eco de seu processo de vida material. A
vida não é determinada pela consciência, mas a
consciência, pela vida. “A proposição fundamental
que monta o núcleo” do Manifesto Comunista “é,
que em cada época, um modo prevalecente de
produção e comércio econômicos, e a organização
social necessariamente decorrente, formam a
base sobre a qual é construída, e pela qual somente
poderá ser explicada a história política e intelectual
dessa mesma época”. O fato de que os
desenvolvimentos políticos são determinados por
fatores econômicos, qualquer um admitirá, é uma
hipótese plausível. No entanto, quando Marx e
Engels, na obra Ideologia Alemã, explicam o
sistema napoleônico com base na escassez de café e
de açúcar, eles pinçaram um detalhe que talvez
esteja aberto à discussão.

O comunismo, entretanto, não limita seus


princípios de determinismo econômico a reis,
capitães e conquistas. Ele é inclusivo, e inclui todo
pensamento e esforço humano. O tipo de
moralidade e religião que a nação aceita
depende de sua estrutura social. A instituição da
família é um correlato da sociedade privada, e a
abolição da economia é, de modo autoevidente,
inseparável da abolição da família. A sociedade
torna o homem aquilo que ele é; ou melhor,
o homem, na sociedade civil, tem um valor natural
e um valor venal. O único independente é o outro.
Todos os homens são o mesmo em termos de
valor natural (que é bem baixo), mas, na sociedade
civil, um homem é general, o outro é banqueiro.
Um homem é somente aquilo que ele é
particularmente, e isso é determinado
economicamente. Ignorando os operários, uma
burguesia considera a ela mesma como Homem,
quando ela é apenas a burguesia. O homem tem
de se livrar dessas distinções clássicas; tem de ser
feito homem, isto é, tem de ser feito humano. Ser
humano é quase o oposto de ser um individualista
atomista. Ser humano significa viver e ser formado
em um mundo humano. Somente na medida em que
não é um “animal político” e não é, portanto,
propriedade do Estado, uma pessoa privada poderá
parecer um verdadeiro homem. Para sublimar a
pessoa privada ou mero cidadão, será necessário
revolucionar a vida privada e pública, do zero. Os
homens deverão ser forçados a reconhecer que eles
mesmos são produtos da sociedade. Eles se
tornarão humanos em uma sociedade socializada
em que cada instituição humana seja coletivamente
controlada. Em uma sociedade que reconhece os
direitos privados, isto é, uma sociedade capitalista,
cada homem é forçado a uma divisão de trabalho da
qual não poderá escapar, se não quiser perder seu
meio de sustento. Porém, sob o comunismo, em que
cada pessoa pode se tornar especialista em qualquer
esfera de atividade que deseje, a sociedade regula a
produção geral, de maneira que eu possa caçar pela
manhã, pescar depois almoço, criar gado à tarde, e
criticar literatura ou música depois do jantar - tudo
sem me tornar um caçador, um pescador ou um
crítico.159

O abandono da razão

O presente relato tem pouco a ver com os deleites


do comunismo ou os males da luta de classe em
uma sociedade capitalista. Mais dentro do
propósito está a posição de Mane na história da
filosofia. Ele pode ser citado como um exemplo do
surgimento do irracionalismo contemporâneo. Uma
pequena evidência de seu abandono da razão, do
argumento ou da consistência lógica, é sua
invenção, com Engels, da técnica da linguagem
abusiva, que tem sido fielmente seguida como
permanente procedimento comunista. A distorção
da história, para desvantagem dos líderes
religiosos, capitalistas, e até mesmo, dos
socialistas menos revolucionários, é uma extensão
do princípio do abuso. Na Dialética da Natureza,
por exemplo, Engels escreveu: “Protestantes
superaram os católicos na perseguição da livre
investigação da natureza. Calvino mandou Serveto
ser queimado e morto na estaca, quando ele estava
no ponto para descobrir a circulação sanguínea”.
Ora, à parte da possibilidade de Calvino se importar
ou não com a circulação sanguínea, a história de
que Calvino tenha mandado matar Serveto é pura
invenção dos inimigos de Calvino. Pelo menos,
duas vezes, em seus escritos, Calvino, apela aos
juízes como testemunhas de que ele lhes rogou que
Serveto não fosse condenado ao fogo. Mas a
calúnia é tão boa que, mesmo hoje, permanece
como uma das favoritas entre aqueles que
não gostam da lógica reformada.
A lógica e a história sofreram nas mãos de Engels.
A fim de esmagar um professor socialista, que
desafiou sua liderança, ele simplesmente o citou
como que dizendo: “A pessoa que apenas pode
pensar mediante a linguagem, jamais aprendeu o
que significa abstração e pensamento puro”; e
então, retruca com esta joia ilógica: “Nessa base, os
animais são os mais abstratos e puros pensadores,
pois seus pensamentos jamais são obscurecidos
pelas intromissões oficiosas da linguagem”.

Mais importante do que tais questões incidentais, o


que logo se nota é que, embora Feuerbach tenha
mencionado antes e, depois, esquecido as
dificuldades epistemológicas do materialismo,
Marx e Engels jamais se preocuparam
com qualquer delas. Ou melhor, o solipsismo é
rejeitado, não por causa de qualquer argumento
filosófico, mas porque é uma zombaria dos
esforços libertários da classe trabalhadora. O
problema com o empirismo não é a dificuldade
epistemológica para explicar nosso conhecimento
de uma coisa em que ideias simples estejam
ajuntadas, mas é a abstrata coleção de fatos mortos,
quando deveríamos começar com o homem real e
seus desenvolvimentos
econômicos. Desconsiderando a análise do
conhecimento matemático elaborado por Berkeley
e Kant, Engels assegura-nos de que a ideia do
número surge da contagem nos dedos. Ao mesmo
tempo, ela requer a habilidade de excluir de
consideração todas as propriedades dos objetos
contados, exceto seu número - uma habilidade que
é produto de uma longa evolução histórica baseada
na experiência. Por isso, forçando tanto um
problema para trás no tempo, e declarando-o,
assim, resolvido, Joãozinho, na escola, poderia
argumentar que sua prova do teorema terá de ser
corrigida, pois ele levou muito tempo para
solucioná-lo.

O relativismo de tal ponto de vista deve ser notado.


Marx e Engels eram definitiva e conscientemente
relativistas em sua teoria ética. Já foi
previamente afirmado que ideias de moralidade e
religião seriam produto de condições econômicas.
Elas não têm condições independentes das suas
próprias. Não há uma moralidade absoluta. Direitos
são demandas de classes que devem ser reforçados,
em vez de provados com argumento racional. A
demanda de uma classe tem de dar caminho para
outra; e somente a força decide qual seja. Todas as
teorias de direitos absolutos são apenas disfarces de
interesses escondidos de uma classe. Marx não
dogmatiza; ele prediz. O teste da verdade é
pragmático: a linha de ação proposta produzirá os
resultados desejados? Se o proletariado
puder arranjar as coisas de maneira que eu possa
pescar pela manhã e caçar à tarde, então o
comunismo será verdadeiro.

Entretanto, numerosas passagens, em Marx e


Engels, parecem apresentar o materialismo como
uma verdade fixa independente de condições
econômicas e de demanda de classes. Nesse caso, o
marxismo proveria seu relativismo ético com um
naturalismo dogmático. Talvez, Marx pensasse
assim. Porém, se a verdade muda para Hegel,
quanto mais ela mudará em um materialismo
dialético que não tenha absoluto? Se ela for
simplesmente um produto do cérebro, o
pensamento, sem dúvida, não poderá contradizer a
natureza. No entanto, então, nessa base, nenhum
pensamento poderá contradizer a natureza, e a
insanidade será tão natural como qualquer estado
da mente. Se todos os pensamentos forem assim
naturais, então não haverá razão lógica para crer
que alguns pensamentos, ideias do materialismo
dialético em vez do idealismo absoluto, sejam mais
naturais, mais verdadeiros, ou mais valiosos, do
que outros. O próprio Marx parece ter tido alguma
tênue apreciação disso, no sentido de que ele
reconheceu que, até mesmo a ciência pura, recebe
seu objetivo por meio da indústria e do comércio. O
que parece seguir é que a ciência poderia ser tão
pouco fixa como a indústria. Em concordância com
isso, Marx poderá não ter sido tão irracionalista e
tão consistentemente inconsistente como alguns
daqueles que vieram depois, mas, ainda assim, ele
claramente evitou uma explanação coerente do, até
então, proeminente problema da filosofia.

S0ren Kierkegaard (1813-1855), embora não possa


ser classificado junto de Karl Marx, pelo leitor
superficial, e ainda que um leitor mais atento possa
pensar que ele desafia toda classificação, ele é, em
alguns aspectos básicos, um típico representante
dos meados do século 19. Em sua revolta contra o
racionalismo sistemático de Hegel, seu ataque
contra o cristianismo oficial, e no meio do anti-
intelectualismo que permeava o movimento
romântico, este melancólico dinamarquês
expressou a opinião amplamente aceita, de que
haveria algo de podre no reino da Dinamarca, isto
é, na Europa ou no cristianismo. Ele
também concordava plenamente com Feuerbach e
Marx quanto aos sintomas da podridão; mas com
respeito às causas e à cura, ele divergia deles
radicalmente. É nisso, com seu estilo literário
peculiar, que ele parece desafiar uma classificação.

O indivíduo

Marx havia diagnosticado a doença da sociedade


como uma moléstia econômica; e com isso
concordavam os socialistas franceses e ingleses.
Mas Kierkegaard afirma que a reforma social que o
tempo requer é o oposto daquilo que é necessário.
A moléstia não é econômica; é espiritual e
religiosa. O espírito do tempo foi substituído pelo
Espírito Santo, o homem tomou o lugar de Deus,
e o tempo engoliu a eternidade. Se Marx, em seu
errôneo diagnóstico, criticou Hegel por ser muito
cristão e muito abstrato, Kierkegaard atacou a
ambos: Hegel, por não ser bastante cristão, e Marx
(ou pelo menos, o socialismo, pois não fica bem
definido se Kierkegaard teria Marx em mente), por
ser muito hegeliano.

A falha comum de ambos - pois, afinal, Hegel era


um socialista de fato, se não no nome — foi a
desconsideração do indivíduo. A pena de Herr
Krug, sem dúvida, foi suficiente para confrontar o
pensamento abstrato com o problema da existência
individual. Mas pessoas individualmente são mais
importantes do que penas e não podem ser
facilmente deixadas de lado. Pessoas são
importantes. Particularmente, para mim, eu sou
extremamente importante, e meu problema, isto é,
o problema da pessoa e de sua individualidade, é
basicamente religioso. Ora, Hegel havia perdido a
pessoa e a pena na universalidade do processo,
pois o racionalismo sistemático não pode fornecer
um relato da real existência individual. Não é
verdadeiro que o real seja o racional. A realidade,
afirma Kierkegaard, não pode ser apreendida por
meio da razão. A despeito do argumento na
Fenomenologia, o imediato, o agora, o isto, e
especialmente o meu, não pode ser aufgehoben ou
suprimido. Hegel tentou explicar nos termos do
movimento da ideia; mas não há movimento na
lógica nem há lógica no movimento. O movimento
é ilógico; tornar-se é aberto, não fechado; realidade
é acaso, e acaso não pode ser colocado na lógica.
Pela própria definição de essência e de existência,
Hegel conseguiu apenas uma existência conceituai,
enquanto a existência real o iludia. Sua inabilidade
para ver a diferença entre pensamento e ser foi
resultante de seu pensamento como pensador
profissional em vez de como homem. Talvez, para
a filosofia, a existência e a não-existência sejam
de igual valor. O sistema (e o proletariado) não se
preocupa com a pessoa individual. Mas para o
indivíduo existente, isto é, para mim, o EU e sua
existência são de imenso valor. Contrário a todo
abstracionismo, quer de Platão (que também era um
comunista) quer de Hegel, quer de Marx, o o quê
não era importante, e o isto era essencial. Portanto,
o dever do homem não é exemplificado na
atividade de estudo do professor Hegel. A realidade
não pode ser ensinada ou comunicada racional e
academicamente. Ela tem de ser apreendida
pessoalmente, de forma apaixonada e anti-
intelectual. Não são as conclusões que são
necessárias, mas as decisões.

A mesma crítica se aplica também a Marx e


Feuerbach. Eles são um pouco menos abstratos do
que Hegel. Na humanidade, tal como no Espírito
Absoluto, o indivíduo não poderá ser encontrado.
Movimentos de massas de homens sem face,
indubitavelmente têm o poder dos números, mas tal
nivelação e amalgamação certamente enfraquecem
a ética do indivíduo. O homem na massa perde
a responsabilidade e o poder para tomar decisões.
Enfrentar a confusão dos tempos e permanecer ante
a eternidade requer, não similaridade humana,
mas individualidade cristã.

A igreja estatal
Se Hegel e Marx são criticados, o cristianismo
tradicional, ainda mais. A reconciliação de Hegel
com o Estado produziu a mediocridade do cidadão
cristão. A opinião comum era a de que alguém é
cristão simplesmente em virtude de ter nascido na
Dinamarca. O próprio Estado é cristão, e
consequentemente, uma cristandade confere um
status de cristão. Quão diferente, quão oposto ao
cristianismo original! Se fosse perguntado a um
estadista romano, se o cristianismo seria um bom
Estado religioso, ele teria considerado a ideia
ridícula. Cristãos são aqueles que, resoluta e
apaixonadamente, renunciaram ao mundo, e o
mundo é concentrado no Estado. O Estado romano
indicaria, digamos, mil oficiais para perseguir
o cristianismo. Isso não chegaria nem perto do
perigo apresentado pela prática dos Estados
modernos, que indicam mil oficiais para
protegerem o cristianismo, pagos para assegurarem
que o povo se chame de cristão, permanecendo
ignorante quanto ao que é realmente o cristianismo.
Medíocre, sem face, homens-massa sem paixão ou
decisão! Na natureza, o indivíduo é meramente
uma instância das espécies; qualquer um que
promova um cruzamento de ovelhas muda todos os
indivíduos do rebanho. Mas a religião não é uma
questão de espécies, e será tolice supor que pais
cristãos automaticamente produzam filhos cristãos.
O desenvolvimento espiritual é essencialmente
individual; e a cura da sociedade é a cura de
indivíduos. Mas como a sociedade tem medo dos
individualistas, tal cura não será fácil. Ela
será sangrenta; não sanguinária como a revolução e
a batalha comunistas, mas um derramamento do
sangue de mártires.

Qualquer um, menos um hegeliano ou socialista,


poderá sentir o mínimo de simpatia por esse frágil
individualismo; e poderia aplaudir o sarcasmo
que Kierkegaard dirige contra um vazio e inseguro
formalismo religioso. Porém, quando alguém
retorna do negativo para o positivo, do destrutivo
para o construtivo, poderá seriamente concluir ou
decidir que as declarações de Kierkegaard
sejam verdadeiras? Sem dúvida, ele está certo
quando reconhece que a dissolução da teologia na
antropologia, causada por Feuerbach, foi
consequência necessária da integração de Hegel, do
cristianismo com a história do mundo. Sem
dúvida, seu julgamento é justo, quando ele
demonstra mais respeito em relação a um homem
que abertamente prefira o paganismo ao
cristianismo, do que a um homem que diga que os
dois são uma e a mesma coisa, e que um é o
cumprimento do outro. Então, também, ninguém
pode duvidar quando Feuerbach e Kierkegaard
reconhecem que o cristianismo é uma religião de
aflições. Tanto para o cristão como para Cristo, o
sofrimento é a condição natural, tal como saúde é a
condição natural para a pessoa sensorial.
Finalmente, embora a antítese não seja muito justa,
quer para os romanistas quer para os protestantes,
Feuerbach e Kierkegaard têm um ponto forte,
quando contrastam a exterioridade e “objetividade”
do Romanismo com a intensa experiência de
Lutero, de apropriação subjetiva, pela fé. Isso levou
Feuerbach a favorecer o protestantismo, tomando-
o como um avanço da direção da humanização de
Deus. Kierkegaard admitiu que o protestantismo
corria o risco de se tornar uma religião em favor
dos interesses dos homens, e depois, em uma
reação do homem contra o cristianismo. Para
evitar esse erro, Kierkegaard fornece uma teoria do
paradoxo, subjetividade e apropriação interna. E
sobre tal teoria alguém perguntará: É verdadeira?

Subjetividade da verdade

Para Kierkegaard, Deus é verdade; mas a verdade


existe apenas para o crente que internamente
experimenta a tensão entre ele próprio e Deus. Se
uma pessoa realmente existente é um descrente,
então, para ela, Deus não existe. Deus existe
somente na subjetividade. Tal ênfase na
subjetividade e a correspondente detração da
objetividade resultam na destruição da
historicidade objetiva do cristianismo. O histórico
não é o religioso e o religioso não é histórico. Se
fosse uma figura histórica que tivesse vivido há
longo tempo, Cristo não teria, agora, nenhuma
importância religiosa. Ao contrário, se Cristo é uma
figura religiosa, o intervalo histórico tem de ser
cancelado por uma contemporaneidade interior. A
religião real não consiste em entender alguma
coisa; é uma questão de sentimento, de uma paixão
anti-intelectual. A aceitação de qualquer
verdade objetiva Histórica depende de métodos
históricos; e o estudante objetivo da História é
bastante moderado para colocar seus sentimentos
nessas conclusões. Pensadores especulativos não
estão pessoalmente interessados em
sofrimentos; eles não estudam a verdade subjetiva
da apropriação.

Mas o cristianismo tem sido sempre considerado


como uma religião histórica, não meramente no
sentido de que tem uma história de dois mil
anos, mas especificamente no sentido de que é
baseada em eventos históricos que aconteceram há
muito tempo. Para Hegel, tais eventos e seu
significado são partes integrais da história
universal, considerada como expressões
desenvolvidas do Espírito Absoluto. Para
Kierkegaard, a relação entre o processo da história
e a verdade eterna é um paradoxo. Na linguagem de
Kierkegaard, e na de seus seguidores do século 20,
o termo paradoxo indica algo mais abrangente do
que aqueles enigmas que, depois de alguma
dificuldade, podem ser resolvidos
e intelectualmente entendidos. Um estudante de
física elementar fica confundido, quando lhe é dito
que a pressão da água no fundo de um receptáculo
é duas vezes a de outro receptáculo, mesmo que o
último tenha apenas metade do peso em água. Esse
é um paradoxo. Ele é resolvido mediante o
aprendizado da relação de peso e pressão. Mas um
paradoxo existencialista é insolúvel. Será uma
contradição supor que a bênção eterna possa estar
baseada na informação histórica. Portanto, a
subjetividade da apropriação não é uma
continuação, mas coloca-se em oposição a uma
disseminação histórica do ensino cristão. A
apropriação apaixonada, o momento da decisão,
desfaz o intervalo da história e torna a pessoa
internamente contemporânea de Cristo. O método
não é intelectual; é uma experiência de sofrimento
e desespero. A distinta verdade objetiva do
cristianismo não é para ser obtida. Começando com
a pregação dos apóstolos, todos os séculos
da história não têm nenhum valor como provas da
verdade. A verdade objetiva do cristianismo é
equivalente à sua indiferença subjetiva, sua
indiferença ao sujeito, isto é, a mim.
Esse tipo de pensamento provoca uma questão
óbvia. Se não houver uma verdade objetiva, se o
como superar o o quê, então, poderá a verdade ser
distinguida da fantasia? Não seria, um Satanás
sofredor, tão justo e verdadeiro como um Salvador
sofredor? Não seria, uma apropriação interna,
infinita e decisiva do diabo, tão digna de louvor
como uma decisão por Deus? A filosofia de
William James levantará a mesma questão, ainda
que James parecesse consciente dela. Kierkegaard
nota o dilema, mas dificilmente é possível dizer que
ele o tenha resolvido. Há um esforço dividido para
distinguir entre a interioridade do infinito e a
interioridade do finito; e ele parece dizer que a
infinitude da interioridade cristã se baseia em Deus,
enquanto a interioridade da finitude se refere a
algum objeto. Ora, se houvesse um conhecimento
objetivo de Deus e de outros objetos, um indivíduo
poderia julgar a qualidade de sua paixão com base
em sua referência objetiva. Porém, se Deus, e
talvez, o diabo, também estão escondidos, e se
alguém está limitado a uma apropriação subjetiva e
apaixonada, parece que não haveria diferenças
distinguíveis entre a verdade de Deus e a
verdade de Satanás. Objetivamente, será indiferente
se alguém cultua a Deus ou a um ídolo. Se Deus
existe ou não, é imaterial. O que conta é a relação
individual com o Algo incognoscível.

Em seu estilo vívido, Kierkegaard descreve dois


homens em oração. Um está em uma igreja luterana
e possui uma concepção verdadeira de Deus,
mas, porque ora com falso espírito, ele, de fato, ora
a um ídolo. O outro está em um templo pagão,
orando a ídolos, mas, porque ora com infinita
paixão, ele está, na verdade, orando a Deus. A
verdade reside no como interior, não no o quê
externo. Ou, de novo, Kierkegaard diz: “Uma
incerteza objetiva mantida em um processo de
apropriação da mais apaixonada interioridade é a
verdadeira, a mais alta verdade sustentável para um
indivíduo existente”.

Finalmente, outra declaração tão definitiva quanto a


precedente, também achada em seu Pós-escrito
Não-científico Conclusivo, expressa a subjetividade
de Kierkegaard. Depois de observar que a busca da
verdade objetiva não leva em conta a relação do
indivíduo com essa verdade, ele continua: “Se
alguém indaga subjetivamente sobre a verdade,
estará refletindo subjetivamente sobre a relação do
indivíduo; se apenas o como dessa relação está na
verdade, então o indivíduo está na verdade, embora
ele esteja, assim, relacionado com a mentira”.

Suponha, agora, que essas coisas sejam falhas no


“sistema” de Hegel. Suponha, também, que a
massa-homem comunista viole as prerrogativas
da moral individual. Supunha, em terceiro lugar,
que a igreja luterana dinamarquesa seja formal,
hipócrita e morta. Suponha, portanto, que
Kierkegaard tenha feito uma crítica reveladora de
seus contemporâneos. Isso implicaria que a cura
poderia ser afetada por um sofrimento ou paixão,
por um sentimento subjetivo para o qual a verdade
objetiva e a mentira fossem igualmente
indiferentes? Se isso for verdadeiro, não apenas um
ídolo seria tão satisfatório como Deus, mas Hegel
ou Marx seriam tão satisfatórios como Kierkegaard.

Desenvolvimento recente
O irracionalismo, uma vez que apelava a uma
reação apaixonada da parte daqueles que honram a
consistência lógica, recebeu, finalmente, ampla
aceitação. A morte do protestantismo europeu
continuou através da última metade do século 19, e
o protestantismo norte-americano logo foi
gradualmente se conformando. Um tipo de
pensamento, chamado de modernismo, veio a
controlar as igrejas com sua ênfase no progresso
natural e voluntário da raça humana. Segundo
Herbert Spencer, que, ainda que não fosse um líder
eclesiástico, vocalizou os
sentimentos prevalecentes nos seus dias: o mal
estava para se desvanecer da face da Terra. Mas a
Primeira Guerra Mundial mostrou à Europa, e a
Segunda Guerra, à América, que o pensamento
modernista estava baseado em uma ilusão. Entre as
duas guerras, Kierkegaard, que havia permanecido
no esquecimento, na Dinamarca, foi descoberto. A
primeira metade do século 20 estava madura para o
irracionalismo. Karl Barth foi o primeiro que atraiu
a atenção na Europa, e, um pouco menos, Emil
Brunner conquistou a liderança do protestantismo
norte-americano.
Embora este livro, exclua desta visão geral, em
princípio, os filósofos vivos, uma exceção menor
talvez seja permitida, com o propósito de
acrescentar uma pequena evidência que demonstra
a continuidade do irracionalismo nos movimentos
de nossos dias. Em seu Encontro Divino-Humano,
Brunner atribui às palavras um significado apenas
instrumental, e, para ele, mesmo seu
conteúdo conceituai, não seria a própria coisa, mas
apenas sua estrutura. As palavras, as sentenças, os
conteúdos conceituais não precisariam ser
objetivamente verdadeiros, e de fato, “Deus pode ...
falar sua Palavra a um homem, até mesmo, por
meio de falsa doutrina”. Os existencialistas, isto é,
Martin Heidegger (1889-1976) e Jean-Paul Sartre
(1905-1980), desenvolveram esse irracionalismo de
forma ateísta. Porém, se Deus puder mentir, e se
conceitos forem falsos, parecerá haver pouca
diferença restante entre ateísmo e fraseologia
piedosa.

Kierkegaard teve de esperar setenta anos antes de


conquistar uma audiência popular no
protestantismo. Fora do protestantismo, o
movimento anticristão, antes da Primeira Guerra
Mundial, continuou a disseminar o irracionalismo.

FRIEDRICH NIETZSCHE

Friedrich Nietzsche (1844-1900), no que diz


respeito à filosofia alemã, foi o ápice do século 19.
A segunda metade do século 19 trouxe grandes
avanços para a ciência. Os físicos consideravam ter
demonstrado plenamente a verdade do
mecanicismo. Fechner, conquanto tentasse
encontrar uma psicologia empírica, rejeitou o
mecanicismo sob a inspiração de grandes ideias
românticas e povoou seu universo com almas, anjos
e deuses. Lotze fez do intelecto, não um
instrumento para a representação, mas para a
transformação de coisas. O scr está no fluxo, e a
realidade é maior do que o pensamento. Lotze
permaneceu um monista. Wilhelm Wundt
abandonou o monismo e descreveu o
universo como uma pluralidade de vontades.
Charles Darwin, embora não fosse
alemão, revolucionou, não apenas a biologia, mas
todas as fases do pensamento filosófico. Dessas
fontes Nietzsche tomou o que lhe aprouve e
completou a cosmovisão ateísta, materialista e anti-
hegeliana do século 19.

Evolução

Num sentido bem profundo, Nietzsche poderá ser


chamado de o filósofo da evolução. Para ele, não
apenas a constituição física de animais e homens
teria evoluído, mas também religião, sociedade,
filosofia e lógica, seriam produtos de evolução. Isso
não significa, entretanto, que Nietzsche
concordasse com Darwin. Darwin cometeu
tremendos erros. Por exemplo, a noção de que
mudanças leves seriam úteis para a sobrevivência e
que seriam, portanto passadas às
gerações seguintes, nas quais tais mudanças
continuariam a se desenvolver em uma
direção fixa, é inteiramente sem justificativa.
Ocupado, durante grande parte do tempo, com a
formação de uma nova qualidade ou órgão,
Nietzsche argumenta que a mudança seria inútil e
impediria a sobrevivência. Mais ainda, cada espécie
teria sua limitação, além da qual a evolução não
poderia a levar. O homem, como espécie, não
estaria progredindo; nem está em adiantamento em
comparação com outros animais. Não haveria um
desenvolvimento do inferior para o superior, mas
todas as formas se desenvolveriam
simultaneamente e ao acaso. De fato, a expressão,
superior, designa aquelas formas que mais
facilmente perecem. Somente as formas inferiores
são aparentemente imperecíveis. A evolução não
favorece os indivíduos melhores ou superiores; ela
suprime as variações bem-sucedidas; e o medíocre
vence. O superior é fraco quando confrontado com
os instintos gregários organizados da maioria. As
falhas da teoria de Darwin talvez possam ser
reduzidas a duas, uma é um erro científico, a outra,
uma avaliação perversa. O erro científico é a ideia
de que o processo mundial se explica pelo conceito
de autopreservação. Tal conceito, entretanto, é uma
teleologia supérflua — um remanescente da ideia
de Deus. A avaliação errada, um erro fundamental
dos biólogos, é que as espécies sejam importantes.
Contra esses dois erros, Nietzsche proclamou a
“vontade de potência”. A autopreservação, mera
sobrevivência, não faz justiça ao fenômeno
natural. O que deveria ser abundantemente evidente
a todos, menos ao cego, é o tremendo poder interior
da natureza para criar formas. O fato de que essa
não é uma questão de sobrevivência fica claro a
partir das muitas instâncias em que a
liberação desse poder traz a morte. Darwin colocou
muita ênfase na adaptação passiva; e a vida é ativa,
é uma questão de desenvolvimento e expansão.
Conquanto a vida sempre viva à custa de outra
vida, a luta não é pela sobrevivência, é pelo
poder; é a luta para produzir mais, mais rápido e
com maior frequência. O ímpeto para a
autopreservação é uma restrição ao instinto
fundamental; é o resultado de uma condição
aflitiva. Mas não é a angústia e sim a extravagante
abundância que caracteriza a natureza. Kant e
pensadores anteriores, com seus
preconceitos teológicos, consideraram a natureza,
cuidadosa, surpreendentemente inspiradora, nada
fazendo em vão. Ao contrário, a natureza é pródiga
e esbanjadora.
O super-homem

A vontade de potência não apenas corrige o erro


científico de Darwin, mas aponta para a avaliação
apropriada. O que torna a natureza valiosa é a
existência de indivíduos especialmente afortunados,
gênios, super-homens. As espécies não têm valor,
exceto como meio para produzir essas pessoas
bem-dotadas. (Inicialmente, Nietzsche atacou com
frequência o Romantismo, assim como atacou
Schopenhauer, Wagner e quase toda fonte com a
qual tinha previamente se simpatizado. Não
obstante, seu apego ao super-homem, do qual
dependem todos os valores da sua filosofia, é
completamente romântico e anti-intelectual.) Deve-
se enfatizar que o super-homem, a despeito da
comparação do macaco com o homem e do homem
com o super-homem, não é uma espécie
evoluída. O super-homem é um indivíduo superior,
tal como César e Napoleão. A ideia da
individualidade porta a conotação de variedade. Ao
contrário da monótona similaridade das espécies, os
indivíduos superiores são todos diferentes.

O monoteísmo é mau porque a ideia de um só Deus


implica um único padrão para todos os homens. O
cristianismo, portanto, destrói a
individualidade, tentando tornar todos os homens
iguais. O politeísmo, entretanto, reconhece muitos
padrões, e consequentemente, concede valor
adequado ao indivíduo. O super-homem repudia a
conformidade com qualquer norma, exceto a
norma: Seja você mesmo. Cada um descobre seu
ser singular. Entender isso como
um desenvolvimento evolucionário em vez de
como uma conquista individual somente será uma
interpretação possível para os “bois acadêmicos”. O
alvo da humanidade, portanto, e a justificação da
vida é achada nos espécimes superiores; e estes
não são encontrados no final do processo evolutivo,
mas estão espalhados em ocorrências acidentais. O
valor de tais indivíduos superiores não depende
de nenhum bem que façam à sociedade. São
valiosos por eles mesmos como
suprema manifestação da vontade de potência.
Napoleão não é apreciado por ter salvado a França
da anarquia revolucionária. Ao contrário, a
Revolução foi boa porque fez Napoleão possível. A
existência de Napoleão justifica a Revolução. Para
que semelhante homem ocorra novamente, a
totalidade da civilização europeia teria de entrar em
colapso.

O eterno retorno

O valor dos indivíduos superiores, e, portanto, o


valor de toda a evolução e história, é tão grande que
não se pode imaginar que nenhum deles
tenha existido apenas uma única vez. Uma vez que
são supremamente valiosos, César e Napoleão têm
de ter ocorrido um infinito número de vezes. A
teoria da eterna recorrência, segundo Nietzsche, é a
mais científica de todas as hipóteses. Se a evolução
tivesse um alvo, tal alvo, a esta altura, já teria sido
atingido, pois o tempo é infinito. Portanto, a
evolução não tem alvo. Além disso, se o
espaço fosse infinito, um alvo na forma de
equilíbrio, a distribuição nivelada de
energia, conforme a segunda lei da termodinâmica,
já teria sido atingida. Como este estado ainda não
foi alcançado, ainda que o tempo seja infinito,
conclui-se que o espaço é finito. Nessas condições,
determinado estado do mundo retornará, quer dizer,
cada estado do mundo deverá se repetir, para
sempre. “Se o universo puder ser concebido como
uma quantidade de energia definida ...
seguirá, portanto, que o universo terá de passar por
um número calculável de combinações, no grande
jogo do acaso que constitui sua existência. No
infinito, em um momento ou em outro, toda
combinação possível terá de ter sido realizada,
pelo menos, uma vez; e não apenas isso, mas terá
de ter sido realizada um infinito número de vezes.”

Agostinho considerou pessimista essa visão dos


antigos estoicos. Nietzsche a considerou otimista.
“Todas as coisas”, ele disse, “parecem-me
demasiadamente importantes para serem fugazes;
eu busco uma eternidade para todas as coisas”. De
acordo com isso, a Revolução Francesa ocorreria
de novo e de novo, e seria justificada sempre pela
recorrência de Napoleão. “O universo é um
monstro de energia, sem princípio nem fim; uma
quantidade fixa e impudente de energia que não
cresce nem diminui... mas apenas altera sua face ...
Não se estende ao infinito, mas é um quantum de
energia em um espaço limitado ... com uma vazante
e uma crescente em sua forma ... dizendo sim a ela
mesma ... abençoando-se para sempre como algo
que retorna por toda a eternidade, um tomando-se
que não conhece saciedade, desgosto ou
preocupação ... sem alvo, a menos que haja um alvo
na felicidade de um círculo, sem vontade ... Este
mundo é a vontade de potência - e nada mais.”

As formas da razão

Essa é a cosmovisão de Nietzsche. Porém, será ela


verdadeira? Ou, melhor, é possível que ela seja
verdadeira? Qual será a lógica, a lógica evolutiva,
de supor tais conclusões? Teria, Nietzsche, usado
uma epistemologia que se sustenta? Ou teria se
contradito? E que efeito teria a evolução, na
contradição?

Kant, depois de negar que Deus tivesse implantado


um conjunto de conceitos originais, na mente
humana, que teriam sido pré-formados para
se adequarem ao mundo externo, permitiu um
conjunto de formas a priori, que nós impomos
sobre a experiência. Fazendo isso, entretanto, Kant
não permaneceu tão distante da teologia, tal como
pensava. Sua unidade transcendental
de apercepções, um sujeito, um cogito cartesiano,
uma substância, nada mais é senão uma fictícia ou
metafórica imagem de Deus. Na visão de
Nietzsche, não existe algo como uma mente; o
ponto de partida apropriado é o corpo tal como foi
desenvolvido. A crença em um corpo é mais
firmemente estabelecida do que a crença em um
espírito. Aquilo que Kant e Descartes tomaram
enganosamente por um EU, em vez de ser um
sujeito singular simples, é uma multiplicidade
de desejos e instintos. (Freud frequentemente traça
paralelos com Nietzsche.) Portanto, a noção de que
o mundo procede de maneira que a razão
humana tenha de ser verdadeira é absolutamente
simplória. Não menos simplória é a tese kantiana,
de que o intelecto pode criticar a si mesmo e fixar
os limites de sua validade. Ao contrário, tudo que
alcança nossa consciência é simplificado, ajustado
e interpretado. Nós jamais encontramos um fato da
natureza; jamais apreendemos as coisas tal como
elas são. A totalidade do aparato do conhecimento é
um artifício não dirigido à verdade, mas à
apropriação e utilização do nosso mundo. A
consciência se estende somente enquanto for útil;
todas as nossas percepções são permeadas pelas
nossas avaliações. Os filósofos têm crido que um
critério de realidade tenha sido encontrado nas
formas da razão, enquanto que o propósito de tais
formas é controlar a realidade, desentendendo-
a inteligentemente. Originalmente, havia um caos
em nossas ideias; então, algumas ideias pereceram
e outras sobreviveram. Assim, a lógica surgiu a
partir dos desejos mais poderosos.

A lógica começa com comparações simples, isto é,


equalizando-as: Isto é como aquilo, isto é o mesmo
que aquilo, estes dois são casos idênticos da mesma
classe. Quanto mais rudimentar for o órgão
perceptivo, tanto maior a semelhança vista. Porém,
certamente, duas coisas jamais serão
realmente idênticas. Entretanto, segundo o longo
processo evolutivo, a lógica, agora, presume que
existam esses casos idênticos. Isso significa que a
vontade de verdade lógica pressupõe uma
fundamental falsificação de todo fenômeno. Aquilo
que, agora, chamamos de verdadeiro, portanto, é
um tipo de erro sem o qual uma espécie não pode
viver. O objeto da atividade mental não é saber,
num sentido escolástico, mas esquematizar e impor
tanta regularidade sobre um caos quanto a
necessidade requeira. A razão e o espaço de
Euclides nada mais são do que idiossincrasias de
uma espécie de animal. Afinal, por que deveríamos
estar tão interessados na verdade? Falsidade não é
uma objeção a uma opinião. A questão importante
é: Tal opinião sustenta a vida? O culto da
objetividade, assiduamente prestado pelos
filósofos, é uma hipocrisia. Os místicos
abertamente alegam inspiração, mas os filósofos,
não tão honestos, defendem aqueles que não
desejam ser reconhecidos como advogados. “De
fato, para entender como as mais
difíceis afirmações metafísicas de um filósofo têm
chegado a esse ponto, o melhor será se perguntar:
Que tipo de moralidade ele objetiva”?160 Por trás
de toda lógica há uma demanda por um modo de
vida.

A lógica depende da lei da não-contradição, mas,


em vez dessa lei ser necessária, ela é apenas um
sinal de inabilidade — nossa inabilidade para
afirmar e negar uma e a mesma coisa. Aristóteles,
certamente, estava correto ao dizer que a lei da não-
contradição é a base de toda razão. Não podemos
falar sem usá-la. No entanto, exatamente por essa
razão, deveríamos examiná-la
mais cuidadosamente. A lei da não-contradição - tal
como foi de modo enfadonho explanado no
capítulo sobre Aristóteles - é tida como ontológica
e lógica. Ela assume algo sobre o Ser.161 Contudo,
supor que a lógica seja adequada à realidade requer
um conhecimento da realidade, anterior e
independente da lei. Obviamente, então, a lei da
não-contradição mantém-se boa somente em
relação à existência que tenhamos criado.

E garantido, também, que Aristóteles estava certo


ao dizer que não podemos pensar de outra forma.
Nossa inabilidade para pensar de outra forma é,
também, a base das categorias a priori, de Kant.
Nós cremos na causalidade porque não podemos
evitar a interpretação de um fenômeno como
resultado de um projeto. Mas isso não isenta a
causalidade de ser uma ilusão ou uma realidade
sujeita à lei da não-contradição. Essas maneiras de
pensamento foram internalizadas por nós por meio
de um longo processo evolutivo, e estão, agora, tão
entranhadas que nenhuma porção de experiência
poderá mudá-las. Elas, com efeito, são a priori para
o indivíduo, mas para a raça humana elas são
produtos evolutivos finais. A crença na causalidade
e na contradição pode ser e é útil; mas isso não a
torna verdadeira. De fato, elas têm de ser falsas,
pois conhecimento e evolução são mutuamente
excludentes. O caráter do mundo no processo de se
tornar não é suscetível de formulação intelectual.
Parmênides disse: Ninguém poderá formar um
conceito da não-existência. Nós nos colocamos no
outro extremo, e dizemos: Aquilo sobre o que um
conceito é formado é certamente fictício.

Visto que Parmênides era um racionalista,


Nietzsche pode contestar, logicamente, se o
chamássemos também de irracionalista? E mais, se
Nietzsche não pôde evitar o uso da lei da não-
contradição, até, é claro, que sua insanidade final
terminasse sua carreira literária, como poderemos
crer que suas produções “racionais” descrevam
corretamente o mundo irracional? Ou, ao contrário,
se o mundo é um irracionalismo evolutivo, que
esperança haverá para dizer qualquer coisa razoável
sobre ele? Se a teoria de Nietzsche fosse
verdadeira, ela seria falsa.

PRAGMATISMO

O desenvolvimento alemão precedente não foi a


única fonte da qual o pragmatismo aceitou algumas
de suas ideias principais. Especialmente no caso de
William James, o pragmatismo tomou emprestado
também da filosofia francesa.

Augusto Comte

Um dos mais vigorosos anti-hegelianos foi Augusto


Comte (1798-1875). Tal como Strauss e Feuerbach,
ele acolheu bem a insistência de Hegel sobre
a história, mas purgou-a de toda nuança metafísica.
A história da mente humana começa com uma
motivação teológica em que os eventos se referem
a ações imediatas de seres sobrenaturais. Por mais
insustentável que a teologia seja, ela não deixa de
ser o ponto de partida necessário para o
entendimento humano. Depois, a mente se eleva a
um estágio metafísico e dá explicações abstratas
aos fenômenos, tal como foi típico no
escolasticismo. Nesse tipo de pensamento, forças
abstratas foram substituídas por vontades pessoais.
O terceiro e último estágio da evolução intelectual,
jamais ultrapassado, é o da lei científica ou
positiva. A mente científica abriu mão da busca vã
por noções absolutas; ela não estava mais
interessada na origem e destino do universo nem
nas causas do fenômeno. Ela passou a estudar
apenas as leis, isto é, as relações invariáveis entre
sucessão e aparência. Por exemplo, a lei da
gravitação não é a causa do movimento, mas, sim, a
descrição de como as coisas se movem. Cada uma
de nossas principais concepções passa por esses
três estágios. A astronomia e a física, por causa
de sua generalidade, simplicidade e independência,
foram as primeiras a chegar ao estágio positivo. Os
fenômenos sociais, por serem mais complicados e
mais dependentes de outras ciências, serão os
últimos a chegar; mas seu tempo é chegado, e em
breve estarão livres das noções metafísicas do
direito divino, da soberania do povo, e de outras
palavras capciosas do pensamento adolescente.

Émile Durkheim

A invenção de Comte, da ciência da sociologia, sua


classificação super simplificada das ciências, sua
curiosa religião com catecismo e dias santos, e a
maior parte da sua filosofia positivista, serão
omitidos. Mas seu método genético de explanação
de conceitos, com, talvez, alguma ajuda de
Nietzsche, resulta no irracionalismo de Emile
Durkheim (1858-1917), um positivista francês do
começo do século 20.

Nossos juízos, afirmava Durkheim, dependem das


categorias de tempo, espaço, gênero, número,
causa, substância, e daí em diante. O pensamento
não poderia escapar deles. Ora, tais categorias, para
eles, são nascidas na e da religião; isto é, elas são
produtos sociais, produtos de ritos que têm o
propósito de modificar os estados mentais dos
adoradores. Tome o tempo como exemplo. O
tempo está relacionado não apenas às mudanças
mentais subjetivas do indivíduo, mas está
relacionado a outras pessoas. O tempo não é o meu
tempo; é o tempo de minha civilização. Ele surge
da periodicidade ritual e de cerimônias públicas. O
tempo, portanto, é um produto social. Do mesmo
modo se dá com o espaço. Os australianos e os
índios norte-americanos concebem o espaço
como circular porque suas aldeias eram circulares.
A lei da não-contradição também é social, pois ela
varia de tribo para tribo. Aquilo que uma nação
pensa ser contraditório; aquilo que os homens
modernos pensam ser mitologia, outros povos têm
como realidade. Essa visão das categorias resolve o
dilema entre os empiristas e Kant. O último não
poderia explicar por que todos os homens têm as
mesmas categorias embora divirjam em outros
pensamentos. Nem os empiristas poderiam explicar
por que seríamos incapazes de pensar sem
as categorias. Mas os aprioristas, com suas ideias
inatas, uma vez que se recusam a tornar
homogêneas as categorias e as sensações, são
forçados a esvaziar completamente as categorias e a
reduzi-las a nomes vazios. Outros tentam resolver o
problema apelando para uma Razão Suprema. Não
há técnica científica para provar a existência de
nenhum Deus. O dilema é este: se a razão for
apenas uma forma de experiência individual, não
haverá razão; mas, se for mais do que individual,
estará além da ciência. A solução será elaborar as
categorias sociais. Elas são representações coletivas
resultantes de uma experiência larga no espaço e
imensa no tempo. Explicar as categorias em termos
de um processo longo e gradual remove todas as
dificuldades. As categorias são necessárias porque,
de outra forma, seria impossível haver sociedade.
Portanto, quando disputa as categorias com sua
tribo, um indivíduo é tratado como insano. No
presente, o costume de longas gerações previne que
pensemos de maneira diferente.
Charles Bernard Renouvier e Emile Boutroux

Além do positivismo, houve outra corrente francesa


de filosofia que contribuiu com o pragmatismo,
especialmente com o pragmatismo de
William James. Em consonância com os cientistas
físicos e sua teoria mecânica derivada de Spinoza,
Hume e Kant, Comte havia falado de invariáveis ou
invioláveis leis da natureza. Essa perspectiva
“científica”, contudo, jamais foi
universalmente aceita. Fichte, para citar um,
defendeu a moralidade e a liberdade humana.

Na França, Charles Bernard Renouvier (1815-


1903) e Émile Boutroux (1845-1921)
argumentaram que a regularidade do mecanicismo
é uma ilusão superficial; até mesmo, na física, a
rigorosa necessidade é inconcebível; e na mais
complicada e rica forma de experiência,
contingência e liberdade são facilmente vistas. Tal
como Nietzsche, ainda que presumivelmente em
completa independência, Boutroux defendeu que
não existiriam casos idênticos. Portanto, nenhuma
fórmula geral seria adequada à espontaneidade
sempre mutável da realidade. Renouvier,
com quem James reconheceu grande débito,
também enfatizou pluralidade e
diferenças. Infelizmente, os detalhes de tais
argumentos não podem ser reproduzidos,
aqui. Igualmente sujeita ao máximo de
encurtamento, está a obra do filósofo norte-
americano, Charles Sanders Peirce (1839-1914).
Peirce forneceu a James o termo pragmatismoe
confirmou sua inclinação para o indeterminismo,
embora ele não aprovasse totalmente a maneira
como James trabalhou suas ideias.

WILLIAM JAMES

William James (1842-1910), professor em Harvard,


foi um homem muito interessante e enérgico. Ele
teve uma grande quota de participação em um
laboratório de psicologia da Alemanha; sua
obra, As Variedades da Experiência
Religiosa, apresenta alguns dos surpreendentes
resultados de sua pesquisa em física; e ainda temos
seus diversos livros de filosofia, escritos em um
estilo tão vívido que os pedantes Spinoza, Kant e
Hegel, se pudessem lê-los, teriam ficado
escandalizados.

A serpente do racionalismo

James continua o ataque geral a Hegel. Sobre o


domínio do teísmo e do absolutismo, ele escreveu:
“Você encontra o rastro da serpente do
racionalismo, ou do intelectualismo”.162 O
intelectualismo é uma serpente porque seus
princípios transcendentais são inúteis. O Absoluto,
diz James, deve ter pensado, e assim, “fez qualquer
um de um milhão de universos exatamente como
este”. Spinoza, que era um tipo de absolutista e,
certamente, um intelectualista, teria tomado
as dores para dizer que este é o único mundo
imaginável e possível; e Hegel, com todo o
embaraço da, agora, familiar pena, também teria
encontrado alguns desajustes nos comentários de
James. A pena, entretanto, possibilita que
James continue: “Você não poderá deduzir nenhum
só atual particular dessa noção. E o Deus teísta é
quase tão estéril como um princípio. O teísmo é
mais insípido, mas ambos são igualmente remotos e
vagos”.

James repete também a acusação de que Hegel


confunde o fluxo conceituai com o fluxo físico;
razão pela qual o conceito do fluxo da realidade é
inadequado. Isto é, inadequado à própria realidade.
O conhecimento tem de vir por meio
da experiência. Não a experiência que consiste de
ideias discretas, simples ideias atômicas, mas a
experiência como uma corrente de consciência em
perene fluxo. Não há dado discreto; nada é
separado ou distinto; as coisas constantemente se
fundem umas às outras. Não há distinções tais
como matéria e forma, substância e relação.
Certamente, os conceitos têm valores práticos; nós
selecionamos porções da experiência e
arbitrariamente as estruturamos. O processo
serve bem aos nossos propósitos, mas esses
conceitos estão longe de satisfazer as demandas da
especulação racionalista; eles são puramente
práticos.

James também achava que a existência do mal


fosse uma dificuldade insuperável para o
absolutismo. Mal e dor teriam de ser partes da
experiência do Absoluto, mas de tal maneira que o
Absoluto conheça a dor, sem sofrê-la. Ora, se o
caso fosse esse, resultaria em uma ausência de
simpatia entre o homem e o Absoluto. O homem
permaneceria com medo do universo ou, pelo
menos, ele careceria da intimidade que uma
filosofia diferente lhe proporcionaria. Mas a própria
visão é perdida. Se a palavra for o
desdobramento racional do Espírito Absoluto, o
mal que está tão dolorosamente
presente, simplesmente, jamais teria ocorrido.

Então, também, outra evidência do irracionalismo


de James é sua adoção, com Nietzsche e Durkheim,
da explicação evolutiva do intelecto. Nossas
maneiras fundamentais de pensamento, as
categorias e a lei da não-contradição,
são descobertas de ancestrais muito remotos.
Lagostas e abelhas, sem dúvida, têm outras
maneiras de apreender experiências. Crianças e
cães não usam nossas categorias adultas; sua
experiência é virtualmente caótica. Espaço e tempo
não são intuições kantianas, mas, patentemente,
construções artificiais, pois a maioria da raça
humana usa diversos tempos e diversos espaços.
Embora nossas categorias sejam bastante úteis, não
podemos negar dogmaticamente que outras
categorias, hoje inimagináveis, poderiam ter-se
provado tão úteis como as que usamos. Nesse caso,
se pudéssemos aplicar os princípios de James à
seleção de um exemplo, a forma primária do
silogismo, chamada BArbArA nos livros de lógica,
teria se tornado uma falácia, e juntando o
consequente, teria formado um argumento válido.
Tal sugestão não deveria ser desprezada como se
fosse ilógica, pois as formas presentes de lógica
não são completamente seguras. Quaisquer
categorias que fossem, dado um diferente processo
evolutivo, nossos modos familiares de pensamento
rapidamente afundariam em paradoxos insolúveis.
A infinita divisibilidade de uma linha, a
continuidade do movimento, e todos os deleites
de Zenão, o eleata, estão além do entendimento
intelectual. Quando vêm a reconhecer que o mundo
real escapa a suas fórmulas puras, os racionalistas
inventam mundos irreais em que tais fatos
obstinados são barrados. A vontade racional de
Kant emigrou para o mundo do noúmeno; F. H.
Bradley escapou de toda contradição, no Absoluto;
e T. H. Green apoiou-se em uma Mente
transcendente. Mas isso diz apenas que os
conceitos humanos falsificam a realidade.

Verdade e falsidade

Rejeitando as invenções de escape do


intelectualismo, e dizendo sim tão sinceramente
como Nietzsche, ao mundo real com suas
continuidades e descontinuidades, sua unidade e
multiplicidade, suas totalidades e suas partes,
James fornece uma teoria do conhecimento ou da
verdade que é, pelo menos, um passo adiante da
teoria de Nietzsche. Há passagens em Nietzsche,
talvez, inconsistentes com sua derivação evolutiva
das categorias, que parecem pressupor a antiquada
distinção entre verdade e falsidade. Não é que
Nietzsche fosse particularmente amigável em
relação à verdade. Ao contrário, ele diz: “A
falsidade de uma opinião não é, para nós, nenhuma
objeção a ela... A questão é, até que ponto uma
opinião promove a vida... a opinião mais falsa...
será a mais indispensável a nós... Reconhecer a
mentira como condição de vida: isto é certamente
impugnar a ideia tradicional de valor”.163 Se,
entretanto, alguém não deseja interpretar essas
linhas como uma admissão semiconsciente da
distinção tradicional, pelo menos Nietzsche não
atribui o título de verdade às falsidades que
promovem a vida: James o faz, e chama sua teoria
de pragmatismo.

O método pragmático, diz James, é primariamente


um método que põe ordem nas disputas metafísicas
que, de outra forma, seriam intermináveis.
Todo conceito — monismo, livre-arbítrio,
materialismo - deveria ser interpretado, traçando
suas consequências práticas. Se nenhuma diferença
prática for encontrada, digamos, entre idealismo e
materialismo, então esses dois conceitos têm o
mesmo significado, e as disputas entre seus
proponentes serão puramente verbais. C. S. Peirce,
de quem James aproveitou a deixa, havia dito que
uma crença é uma regra de ação. Para desenvolver
o sentido de uma opinião, alguém precisará apenas
determinar a conduta que mais promete resultado;
tal conduta é todo o seu significado. Tome, por
exemplo, o próprio conceito de pragmatismo. O
que ele significa? A que conduta ele se dirige? Uma
das diferenças práticas que o pragmatismo fazia, na
época, é que professores pragmáticos não
seriam apontados para ocupar posições nas
universidades. O jovem kantiano e o
hegeliano ficariam gelados. Certamente, esse não é
todo o sentido do pragmatismo, mas é parte da
conduta resultante e, portanto, uma parte do sentido
do termo. O pragmatismo, como qualquer teoria,
não é uma resposta a um enigma; é um instrumento
para guiar a ação. A teoria será verdadeira, se a
ação for bem-sucedida. Ideias são verdadeiras
enquanto nos ajudam a manter uma
relação satisfatória com o restante da nossa
experiência. Qualquer ideia que nos conduza à
prosperidade será, até aí, verdadeira; será
instrumentalmente verdadeira. A teoria será
verdadeira na proporção do seu sucesso; mas
sucesso na solução de um problema é uma questão
eminentemente de aproximação. Uma teoria
será mais satisfatória do que outra, isto é, mais
satisfatória para nós mesmos. Indivíduos
enfatizarão seus pontos de satisfação de maneiras
diferentes. Aquilo que é verdadeiro para uma
pessoa poderá ser falsidade ou, pelo menos, não
tão verdadeiro para outra. Até o atomismo poderá
ser verdadeiro, para pessoas de certos
temperamentos. Assim também, o absolutismo. A
crença no Absoluto significa que um mal finito já
terá sido sublimado ou abolido, e que, portanto, nós
podemos confiar que tudo irá bem no universo; isso
significa, ainda mais, que nós podemos dispensar
nossos medos e preocupações, relaxar nossa
responsabilidade, e gozar feriado moral, sabendo
que o universo está em melhores mãos do que as
nossas. Ora, feriados morais são ocasionalmente
bons; portanto, o absolutismo é verdadeiro - nesse
sentido e daí em diante. Negar o Absoluto seria
insistir que o homem jamais devesse descansar.

Incidental e parenteticamente, poderia um


absolutista relaxar, poderia ele ser um absolutista,
se cresse que o significado total do Absoluto seria
exaurido em sua própria ação de relaxamento? Na
hora da adversidade, poderia um homem confiar
em Deus, se “Deus” é simplesmente sua própria
conduta?

Empirismo religioso

Um dos orgulhos de James era que o empirismo


seria próprio de mentes decididas; o racionalismo,
por sua vez, seria a escolha de indivíduos
menos decididos, pois a filosofia de uma pessoa
depende mais da escolha e do temperamento do que
da razão objetiva. O racionalismo é, geralmente,
otimista e religioso; ele assume o livre-arbítrio
(Spinoza?); é dogmático, monista e explica as
partes pelo todo. O empirismo é a escolha daqueles
que não têm medo de enfrentar os fatos; ele é
materialista, começando a partir das partes e
construindo as totalidades que conseguir.

Ainda assim, nem todas essas características são


essenciais ao empirismo. Em particular, não
precisará ser irreligioso, pois, ao contrário à opinião
de muitos cientistas, há uma boa defesa em favor
da adoção de uma atitude crente, em questões
religiosas, sem coerção lógica. T. H. Huxley (1825-
1895) e W. K. Clifford (1845-1879), tal como
citados por James em seu famoso ensaio, A
Vontade de Crer, representam a filosofia científica
prevalecente. Huxley considerava ser a mais baixa
imoralidade, uma pessoa ter a pretensão de
crer naquilo em que não tem razão para crer.
Clifford afirma: “Será sempre errado, em qualquer
lugar e para qualquer pessoa, crer em qualquer
coisa que não tenha evidência suficiente”. Porém,
replica James, todos nós, e cientistas também,
cremos em muitas coisas sem evidência, desde a
doutrina de Monroe até a possibilidade da verdade.
Nós escolhemos crer naquilo que precisamos.
Huxley e Clifford não precisavam do cristianismo,
enquanto que Newman precisava do papa e de
bispos. Cientistas escolhem ignorar as evidências
da telepatia ou das percepções extrassensoriais,
porque, mesmo se forem verdadeiras, devem ser
suprimidas e canceladas. A própria perspectiva
científica é uma escolha voluntária. O
próprio Clifford não atacou o cristianismo com
base na insuficiência de evidências: ele estava
infalivelmente certo de que o cristianismo estava
errado.

A declaração de confiar em evidência conclusiva é


ilusória, porque não existe uma evidência objetiva.
Toda verdade concreta tem sido posta em
dúvida. Olhe as teorias contraditórias sustentadas
pelos filósofos; aliste seus vários critérios de
verdade; por que Hegel teria duvidado da lógica
aristotélica? Não obstante, o empirista ainda crê
que possa ter alguma verdade ou, pelo menos,
aproximar-se dela; e se a verdade vem a ele por
meio de uma escolha apaixonada ou por meio de
coerção intelectual, não faz nenhuma diferença.

Com referência à motivação de Clifford e


Descartes, James pergunta se alguém deveria
buscar a verdade ou evitar o erro. Descartes tinha
temor do erro de se contentar com pouca verdade,
se apenas pudesse evitar ser enganado. Creia em
nada, ele teria dito, em vez de arriscar crer em uma
mentira. Mas por que não agir segundo o conselho:
aceite a verdade, mesmo se algum erro
a acompanhar? Agora, observe: qualquer conselho
que alguém siga, será uma escolha volitiva sem
razões lógicas coercitivas. Os cientistas creem que
não deveriam crer sem evidência suficiente, e
creem nisso sem evidência suficiente para tanto.

Tal crença volitiva não é apenas uma inconsistência


infeliz que um cientista pode corrigir; é uma
necessidade inescapável. Quanto a certas
trivialidades, será seguro suspender o julgamento e
evitar o erro, mas as questões especulativas
e morais importantes não podem esperar evidência
coercitiva. Esperar, será negar, será fazer uma
escolha negativa. Por exemplo, deveremos nos
engajar na investigação científica? A ciência não
tem prova de que a ciência é boa; no máximo, a
ciência afirma produzir outros bens que não
poderão ser provados bons. Ou, então, você gosta
de mim? A resposta, geralmente, depende de se eu
estou disposto a crer que você gosta de mim. Se me
recuso a crer, até que haja evidência objetiva de
que você gosta de mim, certamente você jamais irá
gostar de mim. Aqui, o desejo de que alguma coisa
seja verdadeira, torna-a verdadeira. A fé faz o fato.
Estaria Huxley certo em chamar esta de a mais
baixa forma de imoralidade?

Ora, a religião diz: (1) as melhores coisas são as


eternas; e (2) seremos melhores, se cremos na
proposição (1). Suponha que (1) e (2) sejam
ambas verdadeiras: então a religião será uma opção
benéfica momentânea. Nós não poderemos evitar a
escolha. O ceticismo poderá evitar o erro, se (1) e
(2) forem falsas, mas perderá o bem, caso sejam
verdadeiras. De fato, o ceticismo ou a suspensão de
juízo tem alguns efeitos práticos, isto é, significa a
mesma coisa que a negação dogmática. O ceticismo
diz: Melhor será arriscar perder a verdade do que
ter a possibilidade de errar. Ele está apostando tanto
em um lado quanto no outro; ele crê que é melhor
ceder ao medo do erro do que esperar a
verdade. Porém, por que seria o engano da
esperança, pior do que o engano do medo? Posto
que temos de ser amigáveis para fazer um amigo,
uma pessoa que tentasse extorquir o favor de Deus
teria aleatoriamente confiscado sua única
oportunidade de se familiarizar com ele.

A visão científica objetiva de Clifford e Huxley, em


princípio, poderá soar empírica e plausível, mas
uma regra que nos previna de reconhecer certas
verdades, até quando essas estão realmente aí, é
uma regra irracional.

A Vontade de Crer, de imediato, poderá parecer


uma defesa do teísmo ortodoxo. O Deus em quem
cremos parece mais objetivo e absoluto do que “as
mudanças de comportamento” de uma pessoa.
Entretanto, tal entendimento conflitaria com o
maior princípio do pragmatismo, que o pleno valor
de troca de qualquer conceito é exaurido nas
mudanças que faz em minha experiência. Ora,
poderá ser o caso, e quase certamente é, que o
próprio James estivesse confuso e incoerente
quanto a esse ponto. Ele oscila entre a ideia de que
o independentemente real se provaria útil, e a ideia
de que o subjetivamente útil seria o único
real. Então, de novo, embora a vontade de Crer
pareça nos permitir a crença ortodoxa no Deus
Todo-poderoso, teremos de nos lembrar que James
repetidamente denunciou o teísmo como uma
posição insustentável. Portanto, para colocar esse
ensaio na perspectiva correta, seria necessário
compará-lo com outro material, tal como o último
capítulo do livro sobre Pragmatismo.

Incerteza e risco

Argumentando contra o monismo e o racionalismo,


James nega sua afirmação de que unidade e bem
existam ante rem, como um princípio
necessário; tais ideais são somente um
possível terminus ad quem. A importância
desses conceitos intelectualistas reside na diferença
moral que fazem. O conceito do Absoluto significa,
embora o absolutista não o queira significar assim,
que todas as coisas boas são certas e todas as coisas
más são impossíveis. O conceito é uma limitação
colocada sobre possibilidades e a garantia de um
resultado desejável. Isso quer dizer que o
absolutismo e o pragmatismo significam duas
atitudes religiosas diferentes. Um homem insiste
que o mundo tem de ser e será salvo; o outro crê
que possa ser. Há também outra visão, a saber, que
o mundo jamais poderá ser salvo. O pragmatismo,
portanto, é uma atitude entre pessimismo
e otimismo que poderá ser chamada de
“melhorismo”. O mundo poderá se tornar melhor
porque nós poderemos fazê-lo melhor. Mas será
que poderemos torná-lo melhor de maneira que
valha a pena?

James, então, oferece esta escolha. Suponha que o


autor do mundo tivesse vindo até você, antes da
criação, e dito: Vou criar um mundo para o qual
não há certeza de salvação; ele poderá ser salvo
somente se todo agente fizer o melhor possível; [se
qualquer um deles relaxar no trabalho, o resultado
será uma desgraça]. Ora, você desejaria a chance de
participar desse mundo, com seus riscos reais, sem
garantia de salvação, ou preferiria recair no sono do
não-ser, da qual teria acabado de surgir?

Note que Deus ou James não teria oferecido a


escolha entre esse mundo perigoso e outro em que
o bem é absolutamente garantido. O absolutismo
parece, aqui, ter sido esquecido. A escolha é entre o
perigo e o Nirvana. E James está pronto para fazer
uma escolha por nós. Qualquer pessoa
“normalmente constituída”, com “leveza de
sanidade mental”, acharia que esse mundo é do
seu agrado. Apenas algumas “mentes mórbidas”,
“budistas” com “medo da vida”, recusariam a
oportunidade. Os últimos poderão ser religiosos em
um sentido, mas não serão morais. “No final, será
nossa fé, e não a lógica, que decidirá toda a
questão.” Será a fé em nosso próximo, isto é, a
confiança de que todos os homens farão o melhor
possível. Será, também, a fé em forças sobre-
humanas, pois há um deus, não o Deus Todo-
poderoso que controla o resultado, mas um deus
finito e limitado que ajuda, de fato, de tal maneira
que o perigo é consideravelmente reduzido. A
crença nesse tipo de deus é verdadeira
porque funciona. E claro que não sabemos
exatamente se esse deus existe, “pois não sabemos
com certeza que tipo de religião funcionará melhor
a longo prazo”. É uma questão de decisão pessoal.
“Se você for radicalmente forte, a agitação dos
fatos sensíveis da natureza lhe será suficiente e não
haverá necessidade de religião... Porém, se você
não for forte nem fraco... o tipo de religião
pluralista e moralista que eu lhe ofereço é uma
síntese religiosa tão boa como qualquer uma que
você possa achar.”

Na seção sobre Soren Kierkegaard, a questão da


decisão pessoal foi também grave - uma decisão à
parte de qualquer conhecimento objetivo.
Kierkegaard, pessoalmente, fez uma escolha não
muito diferente da escolha de James. Embora o
cristianismo de Kierkegaard não seja a preferência
de James, ainda assim, ambos, com Nietzsche,
dizem sim ao universo. Contudo, quando James
chama sua escolha de moral e a outras escolhas, de
mórbida, ele parece implicar que haja mais do que
uma escolha pessoal. Como poderia, James,
distinguir entre uma escolha moral e outra imoral?
Se ele diz que a verdadeira é a que funciona, e o
que funciona é aquilo que produz satisfação, então
o homem que escolhe o Nirvana em vez dos
perigos parece ter obtido maior satisfação do que
um pragmático obteria. É de se esperar que todos
os homens façam o seu melhor possível? A fé na
humanidade é uma divisa inspiradora, mas os duros
fatos sugerem que um ou dois homens, na história,
não trabalharam em tempo integral para melhorar
este mundo. Certamente, James é consistente,
escolhendo para si mesmo o perigo, uma vez que
sua teoria depende de sua decisão pessoal. No
entanto, precisamente por causa dessa razão
irracional, ele não pode concluir que qualquer
pessoa faça a mesma escolha.

Infelizmente, tais objeções são alegadamente


baseadas na lei da não-contradição, e há um pouco
mais que se pode dizer sobre esse ponto.

F. C. S. SCHILLER

E C. S. Schiller (1846-1937) foi um escritor tão


interessante quanto James. Algumas vezes, o
interesse é derivado do choque de sua vigorosa
condenação daqueles que discordam dele:
espectador indolente, formalista oficioso,
mero caluniador, grotesco impertinente, pedante
estéril, uma fraude gigantesca. Felizmente, o
interesse geral depende mais da inteligente
argumentação. E, algumas vezes, é uma questão de
escrita vívida e de bom estilo literário.

Consequências práticas
Em oposição ao Absolutismo, que começa com a
verdade e atrasa o máximo possível a consideração
do erro, Schiller abre seu livro, Estudos no
Humanismo, com o problema da distinção entre
verdade e erro. Os absolutistas são sábios em evitar
a questão porque o intelectualismo racionalista,
realmente não tem respostas. A única solução para
o racionalismo é não admitir as consequências
práticas da proposição a ser testada.

Deve ser dito, outra vez, que a importância do


pragmatismo, ou do humanismo, tal como Schiller
prefere chamar, não reside no fato de que a
verdade tem consequências práticas. Um
intelectualista estaria disposto a admitir até aí. Por
exemplo, um cristão diria que a crença no Deus
transcendente traz as consequências práticas da
bênção de Deus; e ele não relutaria em admitir que
as consequências celestiais configuram o teste da
verdade dessa crença. Mas não é isso que o
pragmatismo quer dizer. Embora James, algumas
vezes, recaia inconsistentemente em uma expressão
intelectualista, e talvez Schiller também cometa
uma ou duas escorregadelas, Dewey, de maneira
bem marcante, mostra que, para o pragmatismo, a
verdade consiste em suas consequências. Se a
crença em Deus resulta em uma personalidade
integrada, tal personalidade integrada é Deus. A
fim de não repetir esse ponto, a posição de Dewey
pode ser antecipada: “isso significa que, quando
tomada e empregada, a noção intelectualista
assume um valor em termos de resultados e,
consequentemente, tem o próprio valor, ou que, a
fim de ordenar o trançado da vida, o próprio
conceito intelectual tem de ser determinado em
termos das mudanças efetuadas”? No último
sentido, o humanismo não deixa espaço para um
Deus transcendente, mas apenas para
o termo Deus tal como aplicado para certas
mudanças na experiência.

Geralmente, Schiller é bastante claro. Não há um


mundo supracelestial, a priori e imutável. Nem há
um “intelecto puro”. Verdades precisam ser
feitas; elas têm de ser feitas verdadeiras por meio
de produção, não meramente em função de uma
consequência ou outra, mas de uma boa
consequência. Se produzirem a consequência de
entreter um racionalista, os conceitos de
intelecto puro e de verdade imutável serão
verdadeiros até esse ponto trivial e limitado. Mas
divertimento não é intrinsecamente respeitável.
Então, teremos de excluir também os conceitos
mórbidos, mesmo que eles possam produzir
resultados que satisfaçam a algumas pessoas. Serão
verdadeiros somente os conceitos bem-sucedidos
ou os planos de ação que sejam sérios.

A teoria do homem-medida

Schiller não diz exatamente como aquilo que é


venerável e sério seria distinguido daquilo que é
mórbido e trivial, mas indica bastante
claramente o queou quem faz a determinação. Se
fosse tudo uma questão de preferência, tal como as
expressões pragmáticas geralmente sugerem, cada
pessoa teria uma verdade privada e o resultado
seria o subjetivismo. Esse foi o mal-entendido
de Platão, da teoria do homem-medida, de
Protágoras. Schiller foi bem duro com Platão.
Olhando de fora, alguém podería pensar que o
grande Platão entendesse qualquer teoria proposta
por qualquer filósofo. Mas Schiller afirma que
Platão não teria “a menor ideia do escopo e sentido
de um argumento”.164 Embora Protágoras fizesse
um uso confuso do termo verdade, ele baseou sua
teoria em um juízo de valor. Ele deveria ter dito
que juízos de valor seriam verdadeiros, mas, por
causa de insuficiência técnica quanto a esse ponto,
ele não pôde distinguir o significado de suas
repetidas afirmações, de que algumas opiniões são
boas ou melhores do que outras. Então, quando diz
que o homem é a medida, ele, indubitavelmente,
quer dizer que cada homem é a medida, cada
homem é juiz da própria condição. Fosse esse todo
o significado, e ainda não seria tão individualmente
subjetivo, tal como foi formulado por Platão. O que
Schiller, assim como James e Dewey, assume é que
há, pelo menos, uma ampla concordância entre os
homens sobre aquilo que é bom. É claro que
sempre haverá indivíduos discordantes; e isso
conduz a um pleno entendimento da teoria do
homem-medida. Não é somente que cada homem
seja a medida — Platão entendeu isso - mas o
significado ulterior é que o Homem [humanidade] é
a medida. A verdade objetiva é produzida pelos
homens, em cooperação. A verdade não é
meramente subjetiva; ela é coletivamente social. Os
indivíduos que discordam da maioria são
considerados loucos ou doentes. A sociedade tem
de persuadir ou coagir tais pessoas; produzir uma
lavagem cerebral; ou em casos recalcitrantes, isolá-
los em campos de concentração. O ataque
antiempirista de Platão contra Protágoras faz
paralelo com o ataque intelectualista contra o
pragmatismo. Mas tal ataque falhará precisamente
porque não pode comandar os serviços de
um executor (38); hoje, é o pragmatismo que
mantém o poder de coerção.

Pessimismo e discordância

Talvez, Schiller esteja apenas descrevendo a


natureza humana atual e a sociedade. Não apenas
tiranos e ditadores são frequentemente intolerantes,
mas, igualmente, as maiorias democratas.
Kierkegaard e outros protestaram contra as forças
niveladoras do socialismo. Porém, ainda que
estivesse descrevendo a natureza humana, o próprio
Schiller não parece aprovar um completo poder
de coação, pois, pelo menos, em um trabalho
anterior, ele não foi tão brutalmente totalitário. O
humanismo é tolerante, ele disse, enquanto que o
barbarismo, ainda que também humano, é
intolerante e mostra-se no sectarismo.
Isso, entretanto, é ridículo - insistir que todos
deveriam ter o mesmo credo absoluto.165 Embora o
prefácio dessa obra contenha uma quantidade de
injúrias, o sentimento parece admitir que o credo
pragmático não é inquestionável e não pode
exigir persuasão universal. Schiller parece bastante
sério em suas considerações da visão pessimista da
vida, opondo-se tanto ao otimismo racionalista
quanto ao “melhorismo” pragmático. O pessimismo
é uma visão que não pode ser
refutada racionalmente. Ele, simplesmente, terá de
ser aceito ou rejeitado. “É uma das alternativas
finais a escolha que repousa essencialmente sobre
um ato da vontade.”166 Para ser um pessimista, não
é necessário afirmar que, na vida, há mais dor do
que prazer; o prazer poderá predominar, e ainda
assim, uma vez que é mesquinho, haverá bem
poucas outras boas finalidades, muito pouco de
virtude e conhecimento. Isto é, a vida simplesmente
não vale a pena de ser vivida. Tal perspectiva
pessimista, Schiller admite, é teoricamente
sustentável e é uma questão de extrema
importância.167 Tal admissão torna o pragmatismo
também uma escolha irracional sem, ao mesmo
tempo, torná-lo teoricamente sustentável.

O irracionalismo, uma vez que não opera sob as


limitações da consistência, poderá ser tanto
tolerante quanto intolerante. Em outra passagem
tolerante, Schiller discute sobre o solipsismo. Para
aqueles que se emaranham em
enigmas epistemológicos, a tentação de uma batida
em retirada para o solipsismo é esmagadora. Mas
os humanistas escapam ao solipsismo, escolhendo
simplesmente crer na existência de outros seres. A
teoria de que há outros seres funciona muito bem, e
será verdadeira, isto é, útil, enquanto funcionar.
Além disso, ela ajuda a pessoa a escapar à tão
grande responsabilidade. Mas o solipsismo não
é teoricamente absurdo; ele sofre uma sina pior.
Uma vez que nega a real existência de outras
pessoas, o solipsismo pode aprender a entender e
gerenciar seus sonhos unicamente por meio de
métodos empíricos. E pragmaticamente
impossível distinguir o solipsismo do pragmatismo.

Lógica pragmática

Se for verdadeiro, tal como de Schiller implica, que


o intelectualismo não prova a existência de outros
seres, será ainda mais devastador, se a
própria lógica, a cidadela do racionalismo, provar-
se sem valor. Para Nietzsche, James e Durkheim
era uma evolução que explodia as pretensões da
lógica. Mas Schiller usa uma aproximação
diferente, mais analítica que genética. Não há
necessidade de empurrar o problema das categorias
de volta a épocas passadas; as presentes aplicações
da lógica mostram sua fragilidade.

A lógica tradicional, diz Schiller, entrou em


colapso num estado de impotente ceticismo, pois
suas pressuposições intelectualistas forçam a
conclusão de que os atuais processos do
conhecimento humano sejam
inerentemente irracionais e logicamente inválidos.
Embora os homens estejam
constantemente predicando, inferindo, provando,
descobrindo e conhecendo, todas essas atividades
são paradoxos impossíveis e enigmas insolúveis.
Depois de fazer tal confusão dos procedimentos
cognitivos ordinários, a lógica se retira para
um mundo ideal da própria invenção, um mundo
fora do espaço, fora do tempo, e quase fora da
mente.

Essa situação desesperada sugere que o problema é,


em grande parte, produto do próprio fazer lógico.
Não é o mundo atual que está em falta, mas é
o infeliz conceito de lógica que precisa ser
emendado. Originalmente, o especialista em lógica
assumiu a tarefa de fornecer uma teoria razoável do
conhecimento atual. O conhecimento atual é um
fato empírico. Ele é o datum [elemento
ou quantidade conhecida que serve de base à
resolução de um problema ou formação de um
juízo — ponto de partida] e a pedra angular das
teorias lógicas. Se ele falha no entendimento disso
sua falha não abole o fato. E se sua falha for
resultado dos ideais do pensamento construído,
então, pior para os ideais. Uma teoria
do conhecimento tem de começar com a psicologia;
isto é, o primeiro passo é uma descrição dos
processos mentais de mentes individuais. Todo
conhecimento é primariamente um processo físico,
e tal processo pertence à ciência da
psicologia. Esses processos cognitivos comuns têm
de ser descritos tais como são, sem
tentativas arbitrárias no sentido de reservar alguns
de seus aspectos, que são de exclusiva consideração
de outras ciências. O processo cognitivo é,
naturalmente, produtor de conhecimento e, como
tal, valioso. A vida mental está plena de valores; e é
do âmbito da psicologia a tarefa de registrar o fato
e descrever os valores.

A diferença entre outros valores e o processo


cognitivo é que o último reivindica ser verdadeiro.
É essa distinção que faz dos processos
cognitivos, depois de terem sido objetos da
psicologia, objetos da lógica.

A lógica, então, desenvolvendo-se a partir da


psicologia, é a avaliação sistemática do
conhecimento atual. Suas funções normativas
surgem naturalmente dos nossos procedimentos
atuais, quando observamos que alguns
processos cognitivos são mais valiosos do que
outros. As duas ciências são contíguas. Nada
psicológico poderá ser afirmado a priori que seja
irrelevante para a lógica. Embora um lógico,
motivado por conveniência prática, frequentemente
ignore características triviais do atual processo
psíquico, somente a experiência o ensinará sobre o
que é possível deixar de lado com segurança. O
risco de tomar algo significativo por algo trivial
poderá ser fatal para o argumento do
lógico. Portanto, o lógico formal poderá jamais
chegar a ser o juiz final do valor de um argumento.
Suas regras, as regras do silogismo, a lei da não-
contradição, e daí em diante, jamais se
pronunciarão sobre o próprio valor material. Por
mais formalmente perfeito que um silogismo possa
ser, uma falha fatal sempre espreita sua aplicação
atual.

Entretanto, por mais grotesca que seja a falácia,


ainda assim ela poderá ser um caminho para a
verdade. Ainda poderá ser um bom arrazoado,
pois “bom raciocínio é aquele que nos dirige
corretamente e habilita-nos a descobrir aquilo que
estamos dispostos a aclamar como
verdadeiro”.168Ninguém jamais saberá, portanto, se
a própria resposta a uma reivindicação lógica não
tomaria a forma de uma explanação psicológica. À
parte de casos de êxtases místicos e desarranjos
mentais, até lidando com o sano, é geralmente mais
efetivo persuadir, em vez de convencer.

Todo pensamento atual é inerentemente


condicionado por processos psicológicos; todo ele é
impulsionado por interesses psicológicos; ele tem
um motivo e um alvo. Se afirmar que o interesse
especificamente lógico na validade e na verdade
é sui generis, e que não deve ser confundido com
outros interesses, um racionalista estará meramente
emitindo um fiat arbitrário. E esse mesmo fiat
é induzido por motivos encobertos. As mais
fundamentais concepções da lógica, isto é,
necessidade, autoevidência, certeza e verdade, são
primariamente descrições de processos
psicológicos. Uma vez que os conceitos de
necessidade e certeza, em inferências necessárias,
configuram o último reduto do intelectualista, é
instrutivo observar seu embaraço para separar a
lógica, da necessidade psicológica. A conclusão
lógica seguiria necessária e certamente a
premissa? Sentimos que sim. A certeza, então, será
um sentimento psicológico. O lógico tenta
distinguir entre certeza psicológica e certeza lógica.
O sentimento da certeza psicológica geralmente
ocorre antes que a prova lógica esteja
completa. Inversamente, até mesmo quando um
teorema matemático foi demonstrado, um estudante
não tão esperto falha quanto a ter certeza. O fato é
que certeza lógica é uma extensão da certeza
psicológica. Com efeito, nós paramos de
pensar quando estamos psicologicamente
satisfeitos. Porém, algumas vezes,
concebemos outras circunstâncias, propósitos
ulteriores, ou outras mentes que requeiram mais
evidências. Isso gera o ideal de uma prova
completa, capaz de compelir o assentimento de
outras mentes. Tal ideal é insustentável; e, mesmo
que tivesse sustentação, sua certeza, ainda assim,
haveria de ser psicológica.

Outro obstáculo insuperável, para o lógico


racionalista, é o sentido da proposição. O sentido
de uma sentença depende de seu contexto. Os
lógicos reconhecem esse fato, mas identificam o
contexto como se fosse a totalidade
do conhecimento. Consequentemente, tal como é
bem evidente em Platão e Hegel, alguém terá de ser
onisciente para apreender, simplesmente, o sentido
de uma única sentença. Isso, obviamente, anula
todo o conhecimento humano. Para evitar tal
impasse intelectual, temos de ver que o sentido é
primariamente psicológico em vez de lógico.
Questões de sentido são questões concernentes
ao que a pessoa que fez a afirmação realmente quis
dizer. Isso, por sua vez, é determinado pela
totalidade de sua personalidade concreta.169 Ou,
para referir-se a outro grande filósofo: “Quando eu
uso uma palavra”, disse Humpty Dumpty em um
tom de desdém, “quero dizer exatamente aquilo que
escolho significar -nada mais, nada menos”. Alice
teve dificuldade para adivinhar o sentido
de algumas das palavras de Humpty Dumpty. Por
exemplo: “impenetrável”, que significa “que já
tratamos demais desse assunto e seria igualmente
bom que você dissesse o que pretende fazer a
seguir....” O ponto é que palavras, como
símbolos verbais, são sempre ambíguas. Elas
poderão significar aquilo que seu uso
pretenda significar. Deixando Humpty Dumpty
para trás em favor de uma ilustração do século 20,
muitos de nós estamos familiarizados com o fato de
que o termo democracia significa uma coisa,
quando usado por um norte-americano, e outra bem
diferente, quando usado por um comunista. Não
apenasdemocracia e liberdade, mas todas as
palavras são, como sempre foram, formas em
branco a serem preenchidas com sentidos
completos, segundo requeridos. Por isso, não há
garantia de que alguém tome o sentido que o
outro pretende empregar. Nem é certo que uma
pessoa sempre pretenda usar a mesma palavra com
o mesmo sentido. Objetividade não depende da
inter-relação de verdades absolutas estáticas em
uma esfera supracelestial, mas da adaptação do
mundo do fluxo e da congruência de opiniões e
alvos de muitas pessoas. Consequentemente, a
determinação do significado de um juízo é um
problema social, geralmente de caráter complicado.

A produção da verdade

A verdade também é ambígua. A verdade é uma


proposição a qual o atributo verdadeiro está, de
alguma forma, ligado. Infelizmente, o
adjetivo verdadeiro é, algumas vezes, aplicado
indevidamente e nossas verdades se provam falsas,
assim como nossos bens se provam maus. Portanto,
a verdade é ambígua, pois temos de distinguir a
afirmação inicial, de o que quer que seja que a
verifique. A verdade poderá significar uma
afirmação que poderá ou não acabar sendo válida;
ou poderá significar uma afirmação depois de ter
sido validada. Tal distinção é algo que os
intelectualistas jamais apreenderam, desde Platão
até o mais recente crítico do pragmatismo com sua
patética inabilidade de fazer mais do que reiterar as
confusões doTeeteto. Neste ponto,170 Schiller cita e
analisa um parágrafo de Teeteto, com o propósito
de mostrar que Platão, inconscientemente, ia e
voltava da afirmação para a validade, de maneira
que sua refutação de Protágoras é uma confusão. Se
Platão, e, até mesmo, Protágoras, fez ou não
a distinção de Schiller, e se o fez, se a identificação
de Schiller, dos dois sentidos da passagem, está
correta, ou se ocorre precisamente o reverso, tudo
isso é deixado ao prazer de um estudante
interessado. Em todos os eventos, é improvável que
qualquer intelectualista tenha falado de uma
afirmação da verdade no mesmo sentido de
Schiller, de que todas as proposições, mesmo a
mais ridícula, sejam presumidamente verdadeiras.
A declaração de que a verdade clama ao
nosso reconhecimento e confirmação é uma justa
fraseologia intelectualista; mas que a proposição
“todos os triângulos têm quatro lados” reivindique
ser verdadeira, essa é uma ideia ou expressão
estranha a Platão e a seus discípulos.

Entretanto, Schiller insiste que o intelectualista tem


de demonstrar como ele mesmo faz distinção entre
a declaração falsa (que meramente afirme
ser verdadeira) e uma declaração verdadeira (que
tenha sido verificada). Isso não poderá ser feito por
meio de um exame da própria declaração, pois toda
afirmação é ambígua, e como não dá indicação
externa daquilo que significa,
dificilmente poderemos dizer que sabemos o
sentido de qualquer que seja a afirmação. A lógica
formal, que abstrai de toda aplicação concreta, não
é de nenhuma ajuda, pois o sentido de uma
afirmação somente poderá ser determinado em suas
aplicações concretas. O sentido depende do
propósito, do uso das palavras no conhecimento
atual, das várias conotações das palavras na
linguagem comum. E a lógica formal nada tem a
ver com isso.

Descrever como a verdade é produzida não é uma


tarefa tão difícil, pelo menos, em linhas gerais.
Primeiro nós admitimos que as ciências
são conhecimentos reais. Esse é um fato que não
pode ser negado. O que é necessário fazer,
portanto, é simplesmente descobrir quais os
procedimentos que as diversas ciências têm em
comum. Tais procedimentos são os métodos de
produção da verdade. Um dos procedimentos
comuns é o de descartar fatores irrelevantes. Uma
declaração verdadeira, em qualquer ciência, deverá
ser relevante em relação à pergunta que a ciência
levanta. Não tem nenhuma importância, se a
declaração de um físico recende um realismo bruto
ou se o cálculo de um engenheiro carece de
exatidão, desde que estejam certos o bastante para
servir ao propósito imediato. Além disso, toda
ciência (exceto a psicologia?) trata de uma área
limitada da experiência humana. As ciências,
portanto, surge por meio da seleção arbitrária de
uma perspectiva adotada pelo cientista. Isto é, a
ciência depende do propósito do cientista.
Declarações que sirvam a esse propósito serão
verdadeiras. E declarações verdadeiras são boas
declarações - boas quanto àquilo que
produzem. Tal teoria não corre o risco de licença
subjetiva, pois um cientista não trabalha sozinho.
Os propósitos que um indivíduo escolhe são
restritos pelo severo controle da sociedade, sendo
prevenidos de elaborar tantas verdades quanto
queiram. (Somente um indivíduo da monta de um
Joseph Stalin poderia desafiar e controlar a coerção
social.)

Adicional convergência à objetividade é produzida


pela tendência natural de subordinar todos os
propósitos a um fim último: o Bem. As verdades de
todas as ciências são finalmente unificadas e
validadas segundo sua relação com o
Bem Supremo. Os atuais conflitos entre valores e
propósitos não devem ser considerados finais ou
absolutos. Cada valor deverá ser reavaliado em
referência à mais elevada concepção do bem último
que, no momento, parecer acessível. Há,
portanto, graus de verdade. Algumas verdades
satisfazem apenas um ou poucos propósitos triviais.
Outras verdades satisfazem mais, e assim por
diante, até “aquele ideal inefável que satisfaria todo
propósito e unificaria todas as
empreitadas”.171 Essa “perfeita harmonia que
forma nossa aspiração final” parece requerer uma
visão otimista ou, pelo menos, “melhorista”, dos
recursos humanos. Schiller toma como “evidente”
que a reação proposital sobre o universo confira
dignidade e grandeza aos embates da vida humana.
Contudo, ele nem sempre parece considerar essa
nobreza evidente. Em outro lugar, ele disse que o
pessimismo não poderia ser refutado, e que a
escolha entre o pessimismo e o otimismo seria um
ato de pura vontade. Ora, suponha que o progresso
para a unificação de todos os propósitos seja tão
lento que não valha a pena a luta; suponha que o
sucesso esteja tão distante no futuro que eu não vá
viver para usufruí-lo; ou pior, suponha que a
unificação de todos os propósitos seja um mal, e
que a coerção social já tenha produzido demasiada
unidade. Em tais casos, poderia um
pragmático, persuadir alguém mais, senão outro
pragmático irracionalista, a prosseguir na batalha?
Vejamos se Dewey nos convence.

JOHN DEWEY

John Dewey (1859-1952) escreveu alguns livros —


muitos livros. Suas obras sobre problemas
educacionais, tanto particulares quanto gerais,
alteraram a natureza e o propósito do sistema
escolar público norte-americano; ele se expressou
sobre negócios internacionais. A obra, Uma Fé
Comum apresenta sua visão sobre religião; há um
livro sobre estética; ele criticou a alegada falha do
sistema judicial nos tribunais da América; e além
disso tudo, há muitos outros livros em que ele
explica sua filosofia global. Nestas páginas de
conclusão, será inteiramente impossível resumir
todo esse material. Uma vez que era pós-hegeliana
(e Dewey começou como hegeliano) é tipicamente
anti-intelectual, este relato sobre Dewey, em
conformidade com a totalidade do capítulo, se
restringirá a uma exposição e crítica de suas ideias
fundamentais.

Pseudoproblemas

O irracionalismo básico de Dewey é visto


claramente em seu desprezo pela epistemologia.
Embora os filósofos, de Platão a Hegel, tenham
dividido as escolas por suas diferentes posições em
relação a esse problema crucial, Dewey considerou
a epistemologia uma perda de tempo. É certo que,
logo antes de sua morte, Dewey colaborou com
Arthur F. Bentley, em um livro
intitulado Knowing and the Known, no qual ele
afirma que sua teoria é “total e exclusivamente
uma teoria do conhecimento”.172 Também é
verdade que suas outras obras discutem
o conhecimento ainda de maneira mais
extensamente. Porém, quando seus pontos de vista
são sumariados, a epistemologia tradicional,
qualquer que seja, empírica, racionalista, platônica
ou hegeliana, recebe pouca aceitação. Por exemplo,
a disputa entre Descartes e Locke ou entre Hume e
Kant, quanto à existência de ideias inatas ou se uma
criança nasce com um mente em branco, é
evidência de obtusidade surgida do amor ao status
quo e de indisposição contra a reforma
das instituições sociais. Pode não ficar exatamente
claro como os chamados políticos reacionários
explicam Locke e Kant, mas Dewey é definitivo em
seu repúdio das ideias inatas e da mente em branco.
Em vez de qualquer delas, teria de ser atribuído à
criança “o surgimento de atividades nativas
específicas.”173

Outro pertinente exemplo do desprezo de Dewey


pelas dificuldades epistemológicas é o seu
tratamento do solipsismo, em Experiência e
Natureza. Os filósofos precedentes, tal como
Berkeley, tentaram explicar, às vezes de
maneira confusa, como alguém poderia chegar a
conhecer que outra pessoa existe. O irracionalismo
de Dewey é visto, não na rejeição da teoria de
Berkeley ou de Descartes sobre esse conhecimento,
mas na recusa da admissão da existência de um
problema. Para ele, era inacreditável que tal
problema, até mesmo, tivesse sido levantado, pois,
se toda pessoa nasce de pais, é indiscutivelmente
óbvio que outra pessoa existe. Tal perspectiva foi
derivada de Ludwig Feuerbach e é passível de
questionamento. Presumivelmente, o mais
racionalista dos filósofos não estará tão disposto a
negar a existência de outras pessoas, incluindo os
pais; mas o problema é: como chegamos a esse
conhecimento? Dizer que sabemos que
outras pessoas existem porque temos pais é
circundar o problema. Neste, e em muitos outros
casos, Dewey conclui por aquilo que deveria ser
arguido.174
Aqui, a menção de Ludwig Feuerbach torna
conveniente fazer também a relação, ainda mais
detalhada, de Dewey com Karl Marx, para mostrar
a continuidade da tradição pós-hegeliana. Tal como
já foi indicado, Marx antecipou Dewey, insistindo
que a filosofia deveria ser uma atividade social,
com os olhos no futuro. Dewey também seguiu
Marx na crítica do empirismo britânico, em função
de tornar o homem muito passivo. Deve ser
mencionado, ainda, que Dewey implementou a
terminologia de Marx, falando sobre o “tomado”
em vez de “dado”. E ambos enfatizaram eventos
concretos e ações ostensivas. Então, finalmente,
em A Busca da Certeza, vem de Feuerbach a ideia
de que o homem moderno é uma personalidade
dividida, porque suas ações são mundanas
e seculares, enquanto seus pensamentos estão,
emocionalmente, ligados a credos antigos. Dewey,
portanto foi um herdeiro da tradição irracionalista.
Agora, de volta à epistemologia.

O desprezo de Dewey pela epistemologia e a


presunção do que ainda precisa ser provado, fica
bem evidente em seu tratamento dos temas
kantianos. Em Conhecer e o Conhecido, Dewey e
Bentley não veem necessidade de uma síntese
kantiana da imaginação. Kant, e também Agostinho
à sua própria maneira, argumentaram que, para que
percebamos casas e poesia, o momento da
sensação terá de ser sintetizado. As várias
sensações auditivas ou visuais têm de ser guardadas
na memória e concatenadas a fim de que aquele que
percebe apreenda a totalidade. Mas as passagens
referidas negam que seja necessário explicar
como objetos e homens estão conectados. Negam
também a necessidade da síntese com base no fato
de que a ciência não presta atenção nisso.175

Tal arrazoado revela os posicionamentos mais


fundamentais de Dewey. Ele desejava, a todo custo,
ser científico. Para ele, os processos da ciência
seriam os métodos mais óbvios e bem-sucedidos do
conhecimento. Portanto, se a ciência negligenciar
algo, esse algo será nada. E impensável a hipótese
de que poderia haver problemas a serem resolvidos
antes das ciências naturais poderem começar. O
intelectualista naturalmente contesta que Dewey
estivesse empobrecendo a questão e fugindo de
problemas. Dewey teria replicado, dizendo que
teria escolhido um ponto de partida diferente. Qual
seja tal ponto de partida, talvez seja mais difícil de
explicar, mas faremos uma tentativa, continuando,
por um pouco, com a ênfase de Kant sobre a
imaginação. Locke havia concebido as sensações
atomisticamente, e o problema de Kant foi o de
juntar os desconexos bits da experiência.
Entretanto, Dewey argumenta, em Reconstruction
in Philoso-phy, que, quando as sensações são
concebidas como um contínuo processo de vida,
não há necessidade de uma faculdade sintética para
conectá-las.176 Seria possível que, mesmo
sensações discrepantes — cuja consideração
desempenhou papel importante na refutação de
Platão a Protágoras, e levou Aristóteles à sua teoria
do senso comum - não precisem de integração. Se
for assim, torna-se claro, como muito pouco
sobreviveu dos pensamentos dos primeiros
filósofos. Para Dewey, a experiência não consistiria
de sensações “atomísticas” ou de qualidades
separadas. Ao contrário, o material da experiência
direta seria ou, pelo menos, incluiria
coisas.177 Por coisas, nesse contexto, Dewey tem
de significar livros, pedaços de papel, canetas,
casas, e daí em diante.

Ora, há alguma plausibilidade em começar com tais


coisas em vez de com qualidades separadas, que
precisem ser compostas ou sintetizadas. A
admissão de Kant, de que sua síntese seria uma
função inconsciente, torna tudo isso
suspeito. Certamente, na vida adulta, nós não
construímos coisas mediante laboriosa composição
de qualidades separadas. Por que, então, não fazer o
ponto de partida do conhecimento, a percepção
direta das coisas?

Entretanto, há outras passagens nos escritos de


Dewey que poderão ser interpretadas em sentido
contrário, pois a colocação das coisas como ponto
de partida, leva-nos de volta ao capítulo de Hegel
sobre “A Coisa e Engano”, na Fenomenologia, e
leva-nos aquém, ao nominalismo e realismo da
Idade Média. Problemas como esses seriam, para
Dewey, pseudoproblemas. Ele rejeita tanto o
nominalismo quanto o realismo, embora seja mais
severo contra o realismo. Classificações não seriam
fixas na natureza, mas seriam humanamente
construídas em função de propósitos práticos.
Quando dizemos que esta coisa é um livro, estamos
fazendo uma classificação - estamos fazendo desta
coisa, um livro. Para usar um exemplo de Dewey,
cerejeiras são uma coisa para um carpinteiro,
outra para o artista, e outra para um
botânico.178 Para Dewey, as coisas não são
tanto dadas, quantotomadas: elas são tomadas para
ser alguma coisa segundo nosso propósito no
momento. Perguntar o que a coisa realmente é, e
contrastar essa realidade com sua aparência, ou
discutir essência e acidente, será cair em
outro pseudo problema.

Contudo, se for assim, poderíamos dizer que


teríamos começado com a percepção direta das
coisas? Dewey pode ter rejeitado a função kantiana
da síntese de sensações, mas para levar em conta
as tomadas, ele teve de substituir o que ele mesmo
chamou de “coordenações sensório-
motoras”.179Essas, então, em vez de coisas, seriam
seu ponto de partida. Mas quais seriam
suas coordenações? O prefixo sensório parece reter
algo da antiga consciência empírica. Entretanto, o
termo motor sugere movimento muscular e lembra
a teoria behaviorista do conhecimento. Discutimos
formas de behaviorismo em seções anteriores desta
história da filosofia e o conectamos com resultados
céticos. Aqui, a questão é, se Dewey escolheu ou
não o behaviorismo como base para sua filosofia.

Behaviorismo

William James havia publicado um artigo, em


1904, intitulado “A Consciência Realmente
Existe?”, no qual ele aceitava a visão
behaviorista. O fluxo do pensamento, ele disse,
consiste principalmente do fluxo da respiração. O
“eu penso” kantiano ou cartesiano é, na realidade,
“eu respiro”. Certamente, James não equiparou
rigidamente o pensamento com a respiração; ele
incluiu ajustamentos musculares intracefálicos, etc.,
mas na totalidade da respiração está a “essência da
qual os fdósofos construíram o ente conhecido
como consciência. Tal ente é fictício...
pensamentos concretos são feitos do
mesmo material que as coisas são feitas”.

Ora, em um lugar Dewey despreza o behaviorismo,


dizendo que ele não é mais comportamentista do
que mentalista.180 O “não é mais” talvez seja
um pouco de exagero. Dewey era um incansável
antimentalista, que falava sobre a “orientação
maligna” de alguns lógicos, na direção de um
“operador mental fictício”. Mas sua objeção ao
behaviorismo se estendia somente a certas
formas restritas. Por exemplo, ele não fez objeção a
frases tais como: “a linguagem é da essência do
pensamento”, e “linguagem é o próprio homem em
ação”.181 Ele se recusou a separar mente e corpo,
ou a supor que os mecanismos mentais fossem de
tipos diferentes das operações
corpóreas. Volição significaria hábitos, e
hábitos seriam ajustamentos do ambiente, não
meramente no ambiente. Diversas passagens
implicam a identificação da consciência como
comportamento explícito. A mente seria o
complexo dos hábitos corporais. E os hábitos
formados no exercício de aptidões biológicas
seriam os únicos agentes da observação, recordação
e julgamento - a mente que realizaria tais funções
seria um mito. Hábitos concretos fariam toda a
percepção e raciocínio que é feito. O
conhecimento viveria nos músculos, e não na
consciência.182 Essa fraseologia, ainda
que reproduzida em forma condensada, e não citada
de forma literal, é claramente behaviorista. Se,
então, Dewey e Bentley, num lugar, rejeitam o
behaviorismo, Dewey, em outros lugares, explana
seu significado. Ele se opôs a uma forma
de behaviorismo que localiza o pensamento na
laringe ou que o localiza “abaixo da pele superficial
do organismo”.183 De fato, Dewey explicitamente
designou sua teoria como uma forma de
behaviorismo; ele apenas quis evitar a limitação do
comportamento ao sistema nervoso, ou a qualquer
coisa sob a pele. O comportamento incluiria o
ambiente, algumas vezes, à grande distância,
e outras vezes, envolvendo pessoas.184
A forma restrita de behaviorismo preserva, ainda
que pouco, a infeliz noção de filósofos antigos
confusos, de que a experiência é privada. Há
muito tem sido considerado que duas pessoas não
podem ver, lembrar ou experimentar exatamente a
mesma coisa. Eu não posso sentir a sua dor de
dente; e o efeito do Sol na minha retina ou cérebro
é somente meu. Embora essa noção tenha
parecido tão óbvia desde Protágoras até o presente,
Dewey é incapaz de ver o que o estímulo da retina
tem a ver com a privacidade da percepção ou com
seu caráter mental. O fato de que o Sol afeta a
retina mostra, antes, que a percepção é
um complexo evento objetivo que ocorre no mundo
objetivo. A percepção ou interação não é diferente,
exceto quanto à complexidade de fatores dos
eventos físico-químicos que constituem o próprio
brilho do Sol. Inferir que a experiência na retina é
privada, com base em que duas pessoas jamais
experimentarão o mesmo evento, não é mais válido
do que concluir que uma reação em um tubo de
ensaio é privada porque ela mesma não ocorrerá em
outro. Privacidade e mentalismo somente poderão
ser sustentados mediante um retorno à psicologia
dualista pré-científica. Schiller, deve ser lembrado,
mantinha uma posição mentalista, se não dualista.
Ele começou com os processos de mentes
individuais e aceitou tal conhecimento como
informação empírica. Conquanto tenha descartado
o mentalismo, e as mentes, pois não queria nenhum
dualismo de sujeito e objeto, Dewey, contudo,
desejou manter o conhecimento como fato
observável. Embora a palavra conhecimento seja a
primeira de uma lista de termos vagos, as
coisas conhecidas e o homem conhecedor são
componentes fatuais de um cosmos fatual. Dewey e
Bentley assumiriam o “organismo falante...como
ele vem”.185 O ponto de partida, então, é o
composto de homens e coisas, e esse
composto poderá ser chamado de experiência.

Experiência

Na reação pós-hegeliana contra o a priori e o


transcendental, o apelo padrão tem sido o da
experiência; mas, se ainda não foi notado, Dewey
reconhece que experiência é uma palavra
escorregadia. A ambiguidade particular, aqui
indicada, está entre o método empírico da ciência
moderna e o subjetivismo puramente privado dos
antigos psicólogos. Tal como já foi mencionado,
Dewey rejeitou o sentido de experiência como
sendo privada e mental, para defini-la como
método científico. Embora tenha se referido a
coisas do dia-a-dia, da vida prática, ele cria ser
mais seguro não começar com essa experiência nua
e crua, mas com declarações mais autênticas dos
métodos recomendados da
ciência.186 Daí, deveríamos voltar, eventualmente,
aos fatos familiares da experiência cotidiana. De
outra forma, até mesmo um cientista poderá
empregar, e os filósofos cientistas professos têm
empregado, as descobertas mais remotas da ciência,
de maneira a perverter os fatos imediatos da
experiência bruta. Isso é um suicídio
filosófico. Porém, se começar com fatos familiares,
um filósofo, quase inevitavelmente, sucumbirá a
teorias prévias do subjetivismo. Nisso, a
experiência supostamente pertencerá a alguém, a
algum indivíduo, e tal indivíduo supostamente
terá sensações de marrom, forma, etc., que ele
reconstrói em uma cadeira. Entretanto, essa
aproximação, diferente do que diz sua exposição,
não começa com a experiência bruta, mas com uma
teoria de psicologia previamente elaborada. A
experiência primária não é tanto uma experiência
de marrons, tal como na cadeira, e permanece mais
perto da física do que da psicologia. Portanto,
teríamos de sustentar que a experiência é alguma
coisa bem diferente de consciência. De maneira
contrária às primeiras perspectivas de James, a
experiência não seria um fluxo; ela incluiria
enfrentar as barreiras da constituição natural e
hábitos adquiridos, além dos sentimentos e ideias
que flutuam na superfície. A experiência deveria
ser equiparada à história e não à fisiologia das
sensações: experiência é Sol, Lua, estrelas,
montanhas, florestas, chuva e vento, assim como
atitudes humanas, interesses, registros e
interpretações.

Não experimente significar todas as coisas, e se for


todas as coisas, a palavra não se tornou tão
inclusiva, a ponto de ser filosoficamente inútil? O
sentido antigo de sensações privadas era, pelo
menos, definido. Dewey acolheu essas objeções
como demonstrações de que a experiência não
deveria ser equiparada com nenhum assunto
específico, mas com um método de investigação. O
método começa e termina com denotação, com
apontamento; e é claramente distinguível do
método do racionalismo com suas deduções
lógicas. Até mesmo as deduções lógicas têm de ser
apontadas de maneira que o máximo na
racionalidade receba sanção do sub-racional, ou,
como Dewey prefere chamar, do supra
racional. “Experiência [é] a manifestação de
interações de um organismo aculturado...
ao ambiente.”187 A experiência, portanto, é o
método científico, e a palavra é usada, a despeito de
ser abrangente, para nos lembrar que a realidade
não é meramente lógica, mas inclui o que quer que
seja significativamente encontrado.

A ciência realmente descobre a verdade?

Se o conhecimento começa com um apontamento


significativo para coisas e procedimentos, por meio
de experimentação laboratorial, alguém
poderia facilmente supor que o fim do processo, o
conhecimento acabado, fosse um conhecimento das
coisas originalmente denotadas. O cientista teria,
primeiro, sua atenção dirigida para a água, depois,
por meio da eletrólise, descobriria que a água é
H20, e o resultado seria o conhecimento de o que é
a água. Infelizmente, nada poderia ser mais distante
da perspectiva de Dewey.

A noção de que a ciência descobre a natureza real


das coisas é um resíduo do antigo ideal da
especulação, que separava o saber, do fazer. Isso,
por sua vez, é um reflexo da política conservadora
com sua esnobe divisão de classes. Ainda hoje, os
resultados das ciências são controlados por poucos,
em função do egoísmo dos interesses de classes. A
sociedade deveria ser reconstruída.188 A
ciência moderna não está interessada em espelhar
aquilo que existe, ou em descobrir a realidade
antecedente. Ela está principalmente interessada em
saber como as coisas mudam. Em todos os
experimentos, o cientista inicia mudanças.
Até mesmo na astronomia, em que ele não pode
mudar as estrelas, o cientista altera os instrumentos.
Tudo isso, claramente, é uma ação muscular, e
deveria remover a velha noção de que o
conhecimento é algo superior às artes práticas. Mas
o que é velho não morre com facilidade, e os
periódicos filosóficos ainda discutem epistemologia
e consciência, como se consciência fosse algo
menos obscuro e mais observável do que os
procedimentos públicos da ciência. A ação
ostensiva da experimentação científica coloca o
objeto em diferentes relações, não a esmo, mas
segundo um procedimento planejado. Olhamos um
cristal, rodamos, imergimos em ácido, cortamos
com um disco, aplicamos uma corrente
elétrica, moemos a peça, ou fazemos qualquer coisa
para descobrir qualidades previamente não
percebidas. As consequências dessas operações
planejadas formam o objeto que tem a propriedade
de ser conhecido. O cristal original apresenta,
então, um problema: o novo objeto construído é
que é o objeto conhecido. Assim, conhecimento é
um modo de ação. Seu ideal não é o da especulação
aristotélica, mas a produção ou o controle de
qualidades.

A moderna ciência matemática e quantitativa,


quando combinada com a visão de que a ciência
descobre o que a realidade verdadeiramente é,
produz a impressão de que qualidades percebidas e
valores de diferentes tipos não são reais. A água,
dizem alguns, não é úmida, não é transparente, não
é líquida; a água é, realmente, H20. Além disso, o
conhecimento sumariado ou implicado na fórmula
H20 habilita-nos a produzir água úmida para beber,
se assim o quisermos. A ciência, então, é uma
busca de relações, dentre as quais as relações
matemáticas são excepcionalmente importantes,
das quais depende a ocorrência de
qualidades concretas. Com esse conhecimento,
podemos regular suas ocorrências. A ciência não
nos informa que a realidade seja nada mais do que
uma interação de massas em movimento, vazias de
som, cor, e de outras qualidades que tornam a
vida interessante. A ciência é o método de controlar
suas produções. Isso quer dizer que o conhecimento
é uma maneira de operar as coisas da experiência
ordinária; é um modo prático de ação.

Operacionalismo

As antigas escolas mantiveram que o pensamento


fosse refletivo, em vez de original. O idealismo
pôde ter seu pensamento como construtor da
realidade ideal, mas a aparência concreta, a pena de
Herr Krug, ainda permanece obstinada. O
empirismo sensorial, obviamente, negou que o
pensamento originasse algo; qualquer origem seria
um erro. Em contraste, comecemos com o
pressuposto de que tudo o que é possível saber
sobre as ideias, derivam de seu uso
em procedimentos experimentais. Essa é a visão
moderna do operacionalismo. Para encontrar,
digamos, a extensão de uma coluna de mercúrio,
teremos de realizar certas operações físicas com as
mãos e os olhos. O operacionalismo afirma que o
conceito do termo extensão ésinônimo de
particulares operações. Assim seria com todo
conceito. Massa não seria uma quantidade de
matéria, mas um conjunto de manipulações. Ideias
seriam, então, empíricas, mas seriam atos
realizados em vez de recepção de sensações.
Portanto, o teste de uma nova ideia não mais seria a
descoberta de um ser antecedente, mas de suas
consequências na operação evidente. “Ideias são
declarações, não daquilo que foi, mas de atos
realizados.”189 “Uma ideia ou conceito é uma
afirmação, prescrição, ou plano para agir
de maneira a chegar ao esclarecimento de uma
situação específica.”190

Dewey estendeu esse instrumentalismo ou


operacionalismo à matemática pura e à lógica. A
diferença principal entre física e lógica seria que,
na última, as operações seriam realizadas com
símbolos. Não obstante, a lógica seria tão funcional
e operacional como a física. “O status da
matemática é tão empírico como o da
metalurgia.”191 Ora, se a física newtoniana e todos
os seus conceitos, tal como Dewey explica
extensamente, foram modificados, transferidos, e
substituídos pela física de Einstein, e se a tarefa e o
progresso da ciência jamais acabam, os conceitos
da lógica, especialmente a lei da não-contradição,
terão sido alterados. Nietzsche e outros negaram o
caráter fixo das formas lógicas, com base na
evolução biológica ou na história antropológica
extensa. Nesse caso, as formas lógicas correntes,
provavelmente, permanecerão as mesmas,
pelo menos, por diversas gerações. Porém, se forem
mudadas com a mesma rapidez da ciência, não
haverá garantia de que a lógica permaneça válida
para a década seguinte. Poderá ser não apenas que
as premissas atualmente verdadeiras se tornem
falsas, mas que a implicação, hoje válida, seja
manipulada para se tornar uma falácia. Assim,
talvez o argumento de Dewey em favor do
instrumentalismo não continue sendo verdadeiro
por mais muito tempo. Contudo, tal como
a natureza suicida do relativismo tem sido muitas
vezes sugerida, a crítica talvez deva ser dirigida a
outro ponto.

Dewey disse, repetidamente, que uma ideia é um


plano de ação a ser realizado, e que o conhecimento
não é a descoberta de um ser antecedente. O
conhecimento seria inventivo, não reflexivo. Tal
instrumentalismo, entretanto, parece conflitar com
aquele que foi designado como o ponto de partida
de Dewey. Seu desprezo pelo solipsismo chegou à
afirmação de que nós começamos com
o conhecimento de outras pessoas. Em oposição às
sensações atomistas de Locke, Dewey quis começar
com livros, montanhas e fatos familiares da
existência cotidiana. Explicitamente conectado com
o problema epistemológico, está o
seu behaviorismo. A mente, ele disse, é o complexo
de hábitos corporais, e o conhecimento reside nos
músculos. Contudo, se ideias são planos de ação,
se conhecimento mira o futuro e jamais o passado,
poderão, tais realidades antecedentes sobre as quais
o processo é baseado, ser conhecidas? Será,
esse músculo em que o conhecimento habita, um
plano para a ação futura? Indubitavelmente, todos
os planos de ação são ideias, mas será verdadeiro
que todas as ideias sejam planos de ação? Ou
Dewey teria restringido o conceito
de conhecimento? Que razão haveria para assumir
que tudo o que poderíamos saber sobre ideias seria
derivado de seu uso experimental? Poderá ser que
toda ciência seja prática e não especulativa ou
refletiva. É bem possível que HzO não seja água,
mas um método para produzir água. E um termo
poderá bem ser inventado para designar tais
métodos. O termo poderá ser ciência. Entretanto,
se o termo for conhecimento, e se nossa percepção
de umidade e água não for conhecimento, mas for
chamado de prazer ou de qualquer coisa, todo o
velho problema epistemológico ainda será
encontrado, espreitando por trás do termo prazer ou
de outro usado pelo teórico.

Implicações éticas

Em vários lugares deste livro, temos nos referido às


implicações da ciência e da epistemologia em
relação à ética e à moralidade. As seções sobre
Platão, Agostinho, Kant e James são alguns
exemplos. Alguns deles, embora a ênfase, aqui, seja
completamente epistemológica, sugerem que a
moral, não o conhecimento, seja a base do
problema. Assim parece, também, com relação
a Dewey. Pelo menos, ele sugere que o verdadeiro
problema da filosofia diz respeito à relação entre
ciência e valores.192 Perpassando muito dos
escritos de Dewey, está o tema de que a moralidade
seja, ou deveria ser tomada como contínua
à ciência. O método experimental deveria ser
transferido do campo técnico da física e aplicado ao
campo mais amplo da vida humana. Padrões de
conduta, ele diz, deveriam ser obtidos das
descobertas das ciências naturais.193 Educação
e moral deveriam avançar para algum caminho que
a indústria química tenha trilhado.194 O sucesso da
ciência em campos limitados seria a promessa
de integração efetiva no campo mais amplo da
experiência humana coletiva.

No presente, crenças sobre valores, segundo


Dewey, estariam no mesmo estado que as crenças
sobre a natureza estavam antes do surgimento da
ciência moderna. Duas atitudes são proeminentes.
Primeira, há aqueles que desacreditam da
capacidade da experiência de produzir padrões de
conduta, apelando para um Ser Supremo que lhes
teria revelado valores eternos. Mas isso seria
muito antiquado. Hoje, os interesses seculares têm
se multiplicado grandemente. O senso de valores
transcendentes foi enfraquecido. A autoridade da
igreja foi restringida. Os homens podem, até
professar a velha religião, mas agem de maneira
secular. A crença em Deus, portanto, poderá ser
abandonada com toda a segurança. A segunda
atitude, talvez característica de homens que têm
quase abandonado a crença em Deus, mas que
ainda não abraçaram um ponto de
vista completamente naturalista, é o desfrute de
valores independentemente do método usado para
produzi-los. Tal perspectiva é uma confusão
irresponsável e em nada melhor do que o teísmo.
Valor é algo que não pode ser definido como
um desfrute que aconteça de qualquer maneira. O
método de produção é essencial. Valor é uma
fruição consequente de uma ação inteligente. A
pessoa tem de considerar a regulação do desfrute,
mediante a reconstrução das
instituições econômica, política e religiosa. Na
ciência, nós voltamos nossas costas às qualidades
imediatamente perceptíveis, por exemplo, a
umidade da água, e formamos conceitos, por
exemplo, H20, pelos quais podemos produzir
mais seguras e significantes experiências das
coisas. Coisas desejadas ou desfrutadas deveriam
ser tratadas da mesma maneira. Elas são
possibilidades de valores a serem atingidos. O
desfrute se torna um valor somente quando
descobrimos suas relações e causas.

Quem ousaria traduzir tal teoria em um exemplo


que Dewey não tivesse dado? Suponha que o
senhor Dewey, nos dias de sua mocidade,
incidentalmente, tenha encontrado o senhor James,
na rua. O professor de Harvard, em um impulso do
momento, convida o senhor Dewey para jantar em
sua casa. Completamente desconhecido para
ambos, e especialmente para o senhor
Dewey, havia o fato de que a senhora James havia
assado, o dia todo, um generoso peru.

Ela havia utilizado os melhores métodos culinários


para produzir aquele triunfo gastronômico. À mesa
do jantar, embora a senhora James e o senhor
Dewey se deliciassem com o prato, para o senhor
Dewey, o peru era um prazer, uma fruição, e para a
senhora James, era uma questão de valor. Ora, se
Dewey, o filósofo, desejava, arbitrariamente,
limitar o termo valor da maneira como
havia limitado o termo ideia, ninguém poderia
impedi-lo. A senhora James, no entanto, se não
concordasse com os dois homens pragmáticos aos
quais alimentava, poderia sentir que seu prazer e
seu valor tivessem diminuído em função das
quentes ações da cozinha e da prospectiva de lavar
a louça. Ela poderia invejar o senhor Dewey,
esperando que, um dia, pudesse se assentar e
desfrutar um jantar que ela não tivesse preparado. A
Busca da Certeza dá impressão de que o valor de
um prazer é proporcional ao esforço para a sua
obtenção. Isso não poderia ser inversamente
proporcional?

É certo que alguém deveria prontamente admitir


que prazeres sejam mais prováveis de ocorrer
mediante previsão inteligente do que por meio da
confiança em meros acidentes. Caricaturando,
Dewey, engenhosamente, contrastou uma conquista
mítica do espaço, revisando o conceito kantiano
com a conquista científica do telefone e do avião.
Muito do que Dewey disse é óbvio. Mas ele
foi além do óbvio. Ele esperava não apenas
inventar meios para atingir fins, mas argumentava
também que a ciência poderia estabelecer tais fins
ou normas. Os padrões de conduta e os
procedimentos técnicos seriam obtidos dos
métodos da ciência natural. Quase uniformemente,
ao longo da história, isso tem sido visto como algo
impossível e absurdo. Em dois lugares, pelo menos,
Dewey, referindo-se a Platão, colocou o problema
da maneira mais aguçada que se poderia desejar. O
clínico poderá, com seu conhecimento médico,
curar um enfermo. Porém, Platão insiste, o
conhecimento médico jamais poderá decidir se isso
seria uma boa coisa.195Construamos uma ilustração
moderna. Suponha que Stalin, em 1933 ou 1943,
tenha estado seriamente enfermo. A ciência
médica, presumivelmente, teria restaurado seu
vigor. Mas não teria sido melhor deixá-lo morrer?
Certamente, os padrões pelos quais os clínicos
teriam governado suas ações seriam apenas
políticos, em vez de médicos. A luz de tudo o que
conhecemos, talvez alguém, em 1953, realmente
poderia ter decidido deixar que Stalin
morresse. Assim, Platão não estaria certo ao negar
que os métodos da ciência poderiam determinar
quais fins fossem valiosos, bons ou certos?

Embora Dewey tenha colocado a questão de


maneira tão incisiva, as páginas que seguiram a
última referência dificilmente poderão ser julgadas
como uma resposta. Ele insistiu, de novo, na
necessidade de meios para a obtenção de
fins. Falou sobre exame inteligente das
consequências e sobre modificações
intencionais das instituições e costumes; e concluiu
pela importância da transferência de técnicas
científicas para o campo mais amplo da vida
humana. O estudante terá de examinar
pessoalmente o texto para verificar se a resposta de
Platão fica escondida em algum lugar, nas
entrelinhas.

Não há fim último

Dois outros elementos são acrescentados a essa


teoria, que. se nãc contribuem para encontrar a
resposta ausente, poderão, pelo menos, disfarçar
o fato de que ela está faltando. Schiller havia
desejado organizar a totalidade ca vida tendo um
Bem último. O enigma moral da escolha
entre doisrins subordinados, incompatíveis, mas
desejáveis em isolamento, deveria ser solucionado
mediante a descoberta de qual deles levaria mais
efetivamente ao Summum Bonum. Dewey negou
que houvesse um fim último. Todo fim seria
um meio. Mesmo a morte, que em outro sentido é
um termo final para o indivíduo, não é final do
ponto de vista da sociedade, pois instituições e
costumes são fins e meios através das sucessivas
gerações. Consequentemente, conquanto
Schiller pudesse teoricamente decidir entre dois
cursos de ação, o melhor que Dewey poderia fazer,
seria, cada vez, tentar, para ver o que haveria de
acontecer. As crenças, crenças a respeito do que é
bom, deveriam ser testadas na ação.
Nenhuma crença seria inerentemente verdadeira. E
nenhuma crença deveria ser rigidamente abraçada,
mas, assim como as crenças da física, deveriam ser
abandonadas quando perdessem a utilidade. Leis
morais não deveriam ser cabalmente afirmadas
e sustentadas a todo custo. Sua validade e
pertinência em relação a uma situação específica
deveriam ser testadas pelo que acontece quando
postas em ação.196 Infelizmente, há algumas partes
das crenças morais que não podem
ser experimentalmente testadas. Um jovem poderá
argumentar que saúde, vigor e muito das coisas
boas da vida deveriam ser encontradas antes dos 25
anos de idade; depois disso, haverá pesos de
responsabilidade, diminuição de
força, enfermidades e dor. Não seria melhor, então,
cometer suicídio e escapar a tais infortúnios?
Alguém poderia sugerir que a honra e a experiência
da idade mais avançada seriam melhores do que os
prazeres da mocidade. Assim, há duas hipóteses
para a ação. Qual delas, segundo a teoria de
Dewey, deveria ser tentada em primeiro lugar?
Evidentemente, qualquer que seja a escolha, a outra
tentativa estará barrada. Então, como decidir? Se há
um Bem Supremo determinável, tal como ocorre
com Schiller, a questão poderia ser respondida. Ou,
se houver um Deus Supremo conhecível, a questão
deveria ser respondida. Mas tais crenças são
precisamente as opções que Dewey jamais tentaria.

Há muitos pares de hipóteses incompatíveis. Há


também alternativas que, ainda que não sejam
incompatíveis, estão praticamente perto de ser.
Deveríamos tentar o vício de drogas, só por algum
tempo? Ou, menos extremado, deveria alguém ser
médico por dez anos e, um estudante de cultura e
história oriental, por outra década? Ou, já que
Dewey fala constantemente sobre problemas
sociais e política, o totalitarismo seria a abordagem
correta ou outro caminho deveria ser escolhido?
Hitler tentou aniquilar os judeus. Na medida em
que o padrão de conduta deveria emergir na
tentativa empírica, fica difícil ver como, na teoria
de Dewey, alguém poderia achar seu curso
mediante uma escolha que não fosse cega.

Nós concordamos?

Entretanto, o segundo elemento dos dois itens


anteriores disfarça melhor o fato de que falta uma
resposta, e que há uma confusão resultante.
Explicitamente em, pelo menos, duas passagens, e
implicitamente em diversos dos seus argumentos,
Dewey presume uma uniformidade quase mundial
de padrões morais. Nenhuma pessoa honesta, ele
disse, poderá se convencer de que um assassinato
teria consequências benéficas, e novamente, uma
pessoa normal imediatamente ressentiria e
condenaria tal ato de tamanha
crueldade.197 Embora tal uniformidade de crença
esteja perigosamente perto do intuicionismo
que Dewey desprezava, embora seja inconsistente
com a ênfase de Dewey sobre variedade e
mudança, e com os fatos antropológicos, e embora
tais padrões não tenham sido produzidos por meio
de método científico, um pouco dessa uniformidade
parece indispensável a fim de evitar um patente
absurdo. Se assassinato e, portanto, suicídio, puder
ser conhecido como um erro a priori, uma das
linhas de experimentação estará automaticamente
fechada. Uma vez que não podia aceitar nenhum
costume a priori, ou nenhum comando
divino a priori, Dewey presumiu tal uniformidade
como sendo um fato da experiência. Porém,
claramente, esse não é um fato da experiência. Os
comunistas consideram o assassinato e outras
crueldades flagrantes, como meios satisfatórios
para a obtenção de seus fins sociais. Tortura e
massacre foram meios para a reconstrução de
costumes e hábitos sociais dos países em que o
comunismo foi instalado. Sua teoria funcionou na
prática. Seu sucesso estabeleceu normas e padrões
de conduta. E similar crueldade funcionou,
também, na antiguidade.

Aparentemente, a conclusão é que Dewey não pôde


fornecer um argumento racional em favor ou contra
nenhum padrão moral. Ele não teve razão,
aplicável a todos os homens, para se opor ao
suicídio ou a crueldade. Ele não deu razão, válida
para os oponentes, que suportassem os ideais
sociais, aos quais ele mesmo estava ligado. A
ciência, portanto, teria de ser considerada,
puramente, como um meio para a obtenção de um
fim, e a verdade seria o plano que me
fornece aquilo que me ocorra querer.
No entanto, se havia qualquer crítica que
importunasse Dewey, seria a acusação de
objetivismo. Em sua Reconstrução, Dewey
enfaticamente afirma que o instrumentalismo não
significa que a ciência exista para atingir uma
vantagem unilateral privada, proposta no coração.
Tão “repulsiva” é a concepção da verdade como
sendo um instrumento da ambição privada, que é de
admirar que críticos tenham atribuído tal noção a
um homem mentalmente
sadio.198 Semelhante repúdio ocorre em Os
Problemas dos Homens. O bem, ele insistiu, não é
definido segundo o que me apraz.199 Ora, essas
declarações mostram claramente que Dewey
reconhecia a acusação de objetividade e que ele
cria que era infundada. Mas um repúdio, ainda que
explícito, não é um substituto para um
argumento racional; o instrumentalismo terá de ser
julgado pelos próprios méritos.

A referência imediatamente citada toma


conhecimento de desejos subjetivos. Alguns deles
são “amplos e generosos”; outros, é claro, são
privados e estritos. Para evitar um subjetivismo
generalizado quanto aos fins da ação,
Dewey cautelosamente apontou para um tipo de
teoria ética que investigaria cientificamente as
causas dos desejos. Se essa teoria pudesse ser
construída, seria possível manipular a natureza
humana, por meio de suas técnicas, de maneira tão
bem-sucedida como manipulamos a natureza física.
Presumivelmente, Dewey não estaria antecipando
técnicas de lavagem cerebral. Ele contestou o
desejo de alterar a natureza humana por meio de
forças externas. Ele jamais revelou o que tinha em
mente. Possivelmente, queria dizer que um grupo
de pessoas que já compartilhasse seus desejos,
poderia assumir o controle da educação,
prevenindo as crianças de pensarem segundo linhas
não provadas. Então, em uma ou duas gerações,
seria objetivo, pois a população estaria habituada a
desejar apenas a reconstrução social que Dewey
demandava.

Aqui, de novo, tem-se a impressão de que Dewey


havia imposto um significado estranho ao
termo objetividade, tal como fez com os
termos conhecimento e valor. A objetividade da
uniformidade pública, produzida pela manipulação
política da natureza humana, não é a mesma
objetividade que os racionalistas teístas tinham
sempre demandado. A objetividade de Dewey
surge das preferências pessoais subjetivas de alguns
políticos ou reformadores iniciais. Entretanto, como
em qualquer situação histórica há preferências
diferentes, diferentes planos e desejos, somos
forçados a perguntar se haveria um
argumento racional para escolher o ideal de Dewey
em vez de outro. Para algumas pessoas, a ideia de
Dewey será tão repugnante como a delas seria para
ele. Até mesmo, para um “liberal”, especialmente
se ele estiver cansado, o sucesso não parecerá valer
a pena o esforço. Por que simplesmente não
cometer suicídio e livrar-se da preocupação? Por
que não?

NOTA CONCLUSIVA

A história da filosofia começou com o naturalismo,


e quanto ao que diz respeito a este livro, ela termina
com o naturalismo. O naturalismo pré-
socrático dissolveu-se no sofismo, do qual surgiu
uma metafísica; e a metafísica perdeu-se em transe
místico. Depois, sob a influência de fonte
alienígena, a Europa ocidental apelou para a
revelação divina. No século 16, um grupo
colocou completa confiança na revelação, enquanto
outro desenvolvimento seguiu a razão humana
autônoma. O último movimento, hoje, abandonou a
metafísica, seu racionalismo, e até mesmo, as
verdades fixas da ciência naturalista. Ele dissolveu-
se no sofismo. Isso significaria que os filósofos e as
épocas culturais nada mais seriam do que crianças
que pagam ingresso para mais uma rodada no
carrossel? Seria esse o eterno retorno, de
Nietzsche? Ou será que uma escolha tem de ser
feita entre a futilidade cética e o mundo de Deus?
Para responder a essa questão, uma vez que não
poderá viajar ao futuro para descobrir o que será
em uma nova época, o estudante terá de começar
retornando à primeira página para ponderar tudo
novamente. Isso suspenderá o suicídio, pelo
menos, por mais alguns dias.
NOTAS
1 [N.T.]: O escritor do prefácio refere-se a
Grundrisse der Geschichte derPhilosophie, de
Friedrich Ueberweg (1826-1871). O termo alemão
Grundrisse tem, entre outros, o sentido de
“contornos”.
2 Astrônomos modernos calcularam que esse
eclipse começou, na Ásia Menor, depois das 18
horas. Não se deve supor que Tales tenha predito o
minuto, a hora ou, até mesmo, o dia. Se ele tivesse
especificado o mês, teria feito um excelente
trabalho.
3 Cf. F. M. Cornford, Principium Sapientiae
(Cambridge, University Press, 1952), 171-178.
4 A delicadeza da investigação histórica e da
divergência de opiniões poderá ser vista mediante a
comparação das palavras de F. M. Cornford ej. E.
Raven.
5 [N.T.]: Rupert Brooke (Inglaterra, 1887-1915).
Só para um gosto da citação, os últimos dois versos
do poema Heaven dizem: “And in that Heaven of
all their wish, there shall be no more land, say fish”
(E neste céu de todos os desejos / não haverá mais
terra, diz o peixe).
6 Sócrates foi executado em 399 a.C. Platão viveu
entre 427-347 a.C.
7 Werner Jaeger. Paideia (Oxford University
Press, 1939), II, 96: “Quando escreveu as primeiras
palavras de seus diálogos socráticos, ele [Platão]
conhecia a totalidade do que isso era uma parte”.
Certamente esse é um extremo.
8 Essa dor de dente reaparece, no final do capítulo
sobre John Dewey, 430.
9 Cf. p. 50.
10 Platão, Fédon, XLVII. Citação segundo a
tradução de Carlos Alberto Nunes, disponível em
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv00003
.pdf em 28/ 04/2011.

11 Cf. Aristóteles, Metafísica, 990a34—991a8 e


1.078b32-1.079bl0; L. Robin, La
ThéoriePlatonicienne, 121-198.
12 Platão, Parmênides, VL Citação segundo a
tradução de Carlos Alberto Nunes, disponível em
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv00005
28/ 04/2011.
13 Platão, Timeu 28b. Embora a resposta possa ser
suficiente para o atual argumento, A. E. Taylor, em
seu Comentário, questiona o argumento. A
conclusão requereria, de fato, que a totalidade do
mundo, e não meramente algumas de suas partes,
fosse visível? Ninguém jamais viu a totalidade do
mundo.
14 Cf. Platão, Teeteto, 183a.
15 Cf. Aristóteles, Metafísica 1,042a21, 1,053b21,
em que gênero é removido da categoria de
substância.
16 Aristóteles, Posterior Analytics I 9, 76a26. The
Works ofAristotle, editado por W. D. Ross (Oxford
University Press).
17 Aristóteles, Física VIII, 5,256a 13-20.
18 Ibid, 256 a 22-54.
19 Aristóteles, De Generatione Animalium II, 3,
736b27.
20 Aristóteles, De Generatione et Corruptione
1,4, 319b8-17.
21 Ibid., I,3,317a32-b6.
22 Aristóteles, Metafísica VII, 3, 1.029a20-21.
23 Aristóteles, De Generatione et Corruptione
1,3,319a29-b5.
24 Cyxil Bailey, The Greek Atomists andEpicurus
(Oxford University Press, 1928), 482e87, dá a
impressão de que a ética depende da física, ou,
mais acuradamente, que ambas dependem da
sensação. Essa impressão é um pouco modificada
na página 504. Seria difícil defender a tese de que a
ética epicurista é uma implicação de uma
física independente e puramente objetiva.
25 Diógenes Laércio, TheLivesand Opinions
ofEminentPhilosophers [Vidas e Opiniões dos
Filósofos] X, 60, cita Epicuro como tendo negado
um “acima” e “abaixo” — isto é, um zénite e um
nadir - no espaço infinito. Compare com Cícero,
DeFinibus I, vi. Destes, e com referência a
Lucrécio, De Rerum Natura II, 18, v, 215, L. Robin
parece negar um movimento descendente pelo
espaço infinito. Mas considere Lucrécio II, 216-
218, e a pertinente continuação em Diógenes
Laércio X, 60. Robin mesmo continua com
a interpretação usual.
26 Diógenes Laércio, X, 79.
27 Ibid, X, 64-117.
28 Diógenes Laércio, X, 32.
29 Diógenes Laércio, X, 34, 129, 137.
30 Diógenes Laércio, X, 6.
31 Ibid, X, 131.
32 Ibid, X, 32.
33 Diógenes Laércio, X, 6.
34 Ibid., X, 35, 151.
35 Ibid., X, 120.
36 Diógenes Laércio, X, 118, 119.
37 Cf. Bailey, The Greek Atomists e Epicurus,
441-467.
38 Diógenes Laércio, X, 145.

39 Ibid..X. 126.
40 Alexandre Afrodisio, em H. von Arnim,
Stoicorum Veterum Fragmenta,
Hildesheim 1964,11,310.
41 Plutarco, em H. von Arnim, Stoicorum
Veterum Fragmenta, Hildesheim 1964, II, 380.
42 Agostinho. A cidade de Deus, V, i, ix.
43 No A cidade de Deus, XII, vi, Agostinho toma
emprestada esta ilustração para provar a liberdade
de vontade. Ele pressupõe, entretanto, que os dois
homens sejam iguais em termos de mente e de
caráter.
44 No judaísmo dos tempos romanos, por
exemplo, por mais hipócritas que tenham sido, os
fariseus professavam uma virtude estrita, enquanto
os saduceus ultrapassavam os epicureus quanto à
vida negligente. Contudo, eram os meticulosos
fariseus, e ainda mais os estritos essênios, que eram
deterministas; e os saduceus eram os que criam no
livre-arbítrio. A proximidade dos fariseus em
relação ao estoicismo, pelo menos nos pontos
mencionados, pode ser vista em Antiguidades
dosJudeusXSI\\\, i, 3, de Flavio Josefo; “Os
fariseus... vivem com simplicidade e desprezam
finuras dietéticas, seguindo a conduta da razão... e
enquanto afirmam que todas as coisas ocorrem
mediante o fado, também não retiram a liberdade
do homem, de agir do modo como julgar adequado,
uma vez que sua noção é a de que aprouve a Deus
estabelecer uma maneira pela qual sua vontade seja
feita e, ao mesmo tempo, o homem possa agir de
modo virtuoso ou vicioso” Cf. Antiguidades XIII,
v, 9; e Guerras II, viii, 14.
45 Há fortes declarações de teologia negativa, em
Plotino. Contudo, Paul Henry recentemente
chamou a atenção para um veio positivo do
pensamento de Plotino. Em V, iv, 2 e V, vi, 2, o
Uno é chamado de inteligível. Em cerca de sessenta
casos, pronomes masculinos são usados para
indicar o neutro Uno. Isso fica obscurecido em
textos impressos porque os editores modernos têm
feito conexões linguísticas erradas a fim de
conformar o texto a regras de gramática. Assim, em
VI, viii, 13 e VI, viii, 16, o Uno é descrito
como alma viva racional. Embora tal passagem seja
prefaciada por um comentário sobre a falta de
precisão da descrição, alguns de seus termos
ocorrem em seções mais técnicas. Henry conclui
que a teologia negativa de Plotino deva ser
complementada por uma teologia positiva.
46 W. T. Jones, A History ofWestern Philosophy
(Hardcourt, Brace & co., 1952), Vol. 1,298,300,
301.
47 E. Vernon Arnold, Roman Stoicism
(Cambridge University Press, 1911), XVII.
48 C. Ackermann, O Elemento Cristão em Platão
(T&T. Clark, 1861).
49 Para mais detalhes, ver]. Gresham Machen,
The Origin ofPaul’s Religion (Macmillan, 1921).
Uma tradução de quatro dos tratados e de algumas
notas é encontrada em Sélection from
HellenisticPhilosophy, do autor deste livro (E S.
Croît & Co, 1940).
50 Vittorio D. Macchioro, From Orpheus to Paul
(Henry Holt & Co., 1930), 203-204.
51 Filo, De Opificio IV, 16.
52 Filo, De Opificio II, 8.
53 Filo, De Opificio VI, 24.
54 Esta é a interpretação de H. A. Wolfson em
Philo (Harvard University Press, 1947). Cf. James
Drummond, Philo fudaeus, 1888; e Emile Bréhier,
Les Idées philosophiques et religieuses de Philon
dAlexandrie (Paris, 1925)
55 Filo, Interpretação Alegórica II, 1.
56 Filo, Interpretação Alegórica III, xxxiii, 100-
102.
57 Filo, DeMutationeNominum, II, 7-11.
58 Filo, Quaestiones in Genesin, II, 54.
59 Cf. B. B. Warfield, Studiesin Tertullian
andAugustine (Oxford University Press, 1930).
60 Para saber mais sobre a doutrina e seu
significado, ver Atanásio, De Decretis e W G. T.
Shedd, A History of Christian Doctrine (Charles
Scribner, 1864).
61 Agostinho, A cidade de Deus, XI, 26; Cf. De
Libero Arbítrio [O livre-arbítrio] II, 3.
62 Agostinho, Confissões, V, iv, 7 (São Paulo,
Nova Cultura, 1.999, tradução de J. Silveira Santos,
S. J. e A. Ambrósio de Pina, S. J.).
63 Agostinho, De Trinitate [A Trindade] V, 10,ii.
64 Ibid., VI, 7,8.
65 Ibid., V, 2, 3.
66 Ibid., VIII, 5,10.
67 Agostinho, De Ordinell, 16 ,44 e 18,47.
68 Em latim, facio tem ambos os sentidos, fazer,
produzir, e realizar, criar, que são difíceis de
traduzir para o português. O argumento soa melhor
em latim: Antequamfaceret deus caelum et terram,
no faciebat aliquid. Si enim faciebat, quid nisi
creaturum facie bat? Agostinho, ConfissõesXl, xii,
14.
69 Agostinho, A cidade de Deus, XI, 6; XII, 15.
70 Agostinho, ConfissÕesYA, xiv, 17.
71 Agostinho, A cidade de Deus, VIII, xi.
72 Ibid., XII, ii.
73 Agostinho, ConfissõesVII, xii, 18.
74 W. T. Jones, A History ofWestem Philosophy
(Nova York; Harcourt, Brace and Co., 1952),Vol.
1,390, 346.
75 Cf. “A Era Helénica”, cap. 4, p. 127s.
76 Agostinho, Confissões I, i, 1.
77 [N.R.] Tradicionalmente chamado nos escritos
acadêmicos contemporâneos como Pseudo-
Dionísio Areopagita.
78 Pseudo-Dionísio, De mystica theologia 1:1
79 Pseudo-Dionísio, Divine Names 2:10.
80 Eriu ou Erian: Escócia Maior na língua celta
(NR).
81 Anselmo, Monologium XVII.
82 Anselmo, Proslogium, II (Open Court
Publishing Co., 1926), cap. II.
83 No original inglês as citações de Tomás, aqui
traduzidas, são da edição de Anton C. Pegis, Basic
Writings of St. Thomas Aquinas (Random House,
1945), citadas com permissão.
84 Tomás, De Veritate, Questão 14, Artigos 1, 2 e
9.
85 Ibid., Questão 10, Artigo 12.
86 Tomás, Summa Theologica, Parte 1, Questão 2,
Artigo 2.
87 Tomás, Summa Theologica Parte 1, Questão 2,
Artigo 3.
88 Tomás, Summa Theologica Parte I, Questão
17, Artigo 3.
89 Snark é uma palavra inventada por Lewis
Carrol, provavelmente uma mistura de serpente
(snake) e tubarão (sharp) para denominar seu
animal imaginário, no poema “Caça ao Snark".
90 W. R. Newbold e R. G. Kent, The
CipherofRogerBacon (University of
Pennsylvania Press, 1928).
91 Tais frases vêm de “Discurso sobre o Método”,
de Descartes, mas a ma.cc pocK Óz exposição se
encontra nas Meditações Metafísicas.
92 Descartes, Principia Philosophiae, I, xli.
93 Descartes, Principia Philosophiae., II, iv.
94 Ihid., II, x.
95 [N.T.] O leitor deve se lembrar do neologismo
já citado, formado das palavras inglesas snake
(cobra) mais shark (tubarão).
96 Spinoza, Ethica Ordine Geométrico
Demonstrata, Parte II, Definição i.
97 Spinoza, Ethica Ordine Geométrico
Demonstrata, Parte II, xiii, Lema 3.
98 Ibid., Parte III, xii.
99 Spinoza, Ethica Ordine Geométrico
Demonstrata, Parte III, ii
100 Spinoza, Ethica Ordine Geométrico
Demonstrata, Parte II, vii, nota.
101 Ibid., Parte II, xiii, nota.
102 Spinoza, Ethica Ordine Geométrico
Demonstrata, Parte I, Apêndice
103 Spinoza, Ethica Ordine Geométrico
Demonstrata, Parte IV, Prefácio.
104 Ibid., Parte IV, xxvii.
105 Spinoza, Ethica Ordine Geométrico
Demonstrata, Parte IV, lxxiü, nota.
106 Ibid., Parte IV, i, nota.
107 Spinoza, Ethica Ordine Geométrico
Demonstrata, Parte V, vi, nota.
108 Spinoza, Ethica Ordine Geométrico
Demonstrata, Parte V, xxix, nota; ver II, xlv, nota.
109 Spinoza, Ethica Ordine Geométrico
Demonstrata, Parte V, xxx e xxxi, nota.
110 Ibid., Parte V, xx, nota.
111 Ibid., Parte V, xxiii.
112 Spinoza, Ethica Ordine Geométrico
Demonstrata, Parte V, xxc.
113 Ibid., Parte V, xxii
114 Leibniz, Discurso sobre MetafisicaXll.
115 Leibniz, Discurso sobre Metafísica XXII.
116 Ibid.
117 Ibid., X.
118 Locke, Um Ensaio Acerca do Entendimento
Humano II, i.l.
119 Ibid. ,1, i, 8
120 Ibid., II, i, 2.
121 Locke, Um Ensaio Acerca do Entendimento
Humano II, viii, 7.
122Locke, Um Ensaio Acerca do Entendimento
Humano II, xxiii, 1.
123Locke, Um Ensaio Acerca do Entendimento
Humano II, xxiii, 2.
124 Locke, Um Ensaio Acerca do Entendimento
Humano II, xxiii, 16.
125 Locke, Um Ensaio Acerca do Entendimento
Humano IV, iv, 1.
126 Locke, Um Ensaio Acerca do Entendimento
Humano IV, iv, 4-12.
127 Ibid., IV, iv, 4-12.
128 Locke, Um Ensaio Acerca do Entendimento
Humano IV, iv, 12.
129 Berkeley, Tratado Sobre os Princípios do
Conhecimento Humano, parágrafo ix.
130 Ibid., parágrafo x.
131 Berkeley, Tratado Sobre os Princípios do
Conhecimento Humano., parágrafo xiii.
132 Ibid., parágrafo xii.
133 Berkeley, Tratado Sobre os Princípios do
Conhecimento Humano, parágrafo xxii.
134 Ibid., parágrafo xxiv.
135 Berkeley, Tratado Sobre os Princípios do
Conhecimento Humano, parágrafo i-iv.
136 Berkeley, Tratado sobre os Princípios do
Conhecimento Humano, parágrafos xxxv, xl.
137 Ibid., parágrafo xxvii.
138 Berkeley, Tratado Sobre os Princípios do
Conhecimento Humano, parágrafo cxl.
139 Ibid., parágrafos cxlv, cxlvi.
140 Ibid., parágrafo cl.
141 Berkeley, Tratado Sobre os Princípios do
Conhecimento Humano, parágrafo cvii.
142 Hume, Tratado da Natureza Humana, 1.
143 Hume, Investigação Acerca do Entendimento
Humano (Seção II).
144 Hume, Tratado da Natureza Humana, nota de
rodapé 1.
145 Na Advertência do Autor, ao seu livro
Investigação, Hume aparentemente se retrata de seu
trabalho inicial, Tratado da Natureza Humana. Ele
o teria enviado muito cedo para publicação. A obra
continha algumas negligências no arrazoado e, mais
ainda, na expressão. Teria sido um trabalho juvenil
que o autor jamais reconheceu; e “doravante
o autor deseja que as seguintes peças sejam
consideradas como apenas contendo seus
princípios filosóficos”. Ora, uma vez que o
argumento contra a substância espiritual está
fundamentado somente no Tratado, Hume parece
repudiar o argumento. Entretanto, a Advertência
do Autor fala de algumas, não de muitas
negligências, e admite que muito do arrazoado
feito na Investigação é encontrado no Tratado. A
concordância substancial entre as duas obras,
e especialmente a premência que a negação do
espírito é derivada de seus princípios comuns, toma
improvável que Hume tenha deixado
conscientemente de manter o ponto em
questão. Certamente ele jamais veio a afirmar a
existência do espírito, nem jamais substituiu a
noção omitida, por outra. Até mesmo, no caso de
ele haver abandonado sua posição inicial,
o argumento contra a existência do espírito
desempenhou um papel na história da filosofia e
deveria ser notado.
146 Hume, Tratado da Natureza Humana, I, iv, 6.
147 Hume, Investigação Acerca do Entendimento
Humano, IV, ii
148 Hume, Investigação Acerca do Entendimento
Humano, IV, ii
149 Hume, Investigação Acerca do Entendimento
Humano, V, i.
150 Hume, Investigação Acerca do Entendimento
Humano, seção XI.
151 Surge aqui, um ponto interessante, ainda que
menor. Kant diz que uma contradição poderá
ocorrer apenas em conexão com juízos analíticos,
jamais com juízos sintéticos (B. 626). Porém, uma
vez que juízos sintéticos apriori são universais e
necessários, não seria uma contradição afirmar seus
sujeitos enquanto seu predicado é negado? E claro,
os racionalistas não dizem que “Deus existe” seja
um julgamento sintético a priori.
152 Immanuel Kant. Critique ofPractical Reason,
tradução inglesa deT. K. Abbott (Longmans,
Green&Co., 1909), 189-191.
153 Kant, Princípios Fundamentais da Metafísica
da Moralidade, cap. III (final).
154 O sumário seguinte cobre os parágrafos 62-
76.
155 [N.T.] Dingan sich é uma expressão alemã
usada por Kant para dizer: a coisa em si mesma.
156 Nas últimas sentenças, voltamos ao próprio
Pretaoc
157 A comparação entre Hegel e Kant segue G. R.
G Mure, Introduction an Hegel (Oxford University
Press, 1940), cap. IX.
158 Bruno Bauer, ao contrário, argumentou que a
figura de Cristo é fabricação autoconsciente dos
autores dos Evangelhos. Eles sequer foram bem-
sucedidos em traçar a conexão do “Jesus histórico”
com o “Cristo teológico”.
155 Marx, The German Ideology, editada por R.
Paschal, 22.
160 Cf. p. 129.
161 Cf. p. 99.
162 William James, Pragmatismo, 19.
163 Nietzsche, Além do Bem e do Mal, 1.4.
164 Schiller, Studies in Humanism (Macmillan
Co., 1907), 37-38.
165 Schiller, Studies in Humanism xxvi.
166 Ibid., 157.
167 Schiller, Studies in Humanism, 164.
168 Schiller, Studies in Humanism, 92.
169 Schiller, Studies in Humanism, 86.
170 Schiller, Studies in Humanism, 145-146.
171 Schiller, Studies in Humanism, 158.
172 John Dewey e Arthur E Bentley, Knowing
and the Known [O conhecer e o conhecido]
(Boston: Beacon Press, 1949), 317.
173 Dewey, Human Nature and Conduct (Henry
Holt e Co, 1922), 93.
174 Dewey, Experience and Nature (Open Court
Pub. Co., 1922), 278-279.
175 Dewey, Knowing and the Known, 51-52, 55-
56.
176 Dewey, Reconstruction in Philosophy (Henry
Holt and Co., 1920), 89-90, 138.
177 Paul Arthur Schilpp, The Philosophy of John
Dewey (Evanston: Northwestern University, 1939),
535.
178 Reconstruction in Philosophy, 150-154.
179 Reconstruction in Philosophy, 91.
180 Dewey, Knowing and the Known, 77, nota 15.
181 Dewey, Knowing and the Known 5, 33, 38.
182 Dewey, Human Nature and Conduct, 33, 52,
87, 175-177.
183 Dewey, Experience and Nature, 282.
184 Schilpp, The Philosophy of John Dewey, 555.
185 Dewey, Knowing and the Known, 6, 47, 48,
50.
186 Dewey, Experience and Nature, 2.
187 Schilpp, The Philosophy of John Dewey, 535.
188 Dewey, The Quest for Certainty, cap. IV.
189 Dewey, The Quest for Certainty, 110.
190 Dewey, Reconstruction in Philosophy, 156.
191 Ibid., 137.
192Dewey, The Quest for Certainty, 18; Experience
and Nature, 394.
193 Dewey, The Quest for Certainty, 273.
194 Dewey, Reconstruction in Philosophy, 73.
195 Dewey, The Questfor Certainty, 269;
Reconstruction in Philosophy, 15.
196 Dewey, The Quest for Certainty, 278.
197 John Dewey e James H. Tufts, Ethics (Nova
York: Henry Holt, 1908), 265, 292.
198 Dewey, Reconstruction in Philosophy, 146,
157.
199John Dewey, The Problems of Men (Nova York:
Philosophical Library, 1946),

178-179.

ÍNDICE DAS ESCRITURAS

Gênesis Isaías Atos

40.18,25,
17.34, 210
1.1, 162 178

2.5, 7, 170 44.7, 178

16.16, 170 46.5,9, 178 Romanos 1.20, 231

Levíticos, 181 Hebreus


1 Coríntios 15.25-28,
24.16, 177, 178 11.1, 229
186

Deuteronômio,
181 Mateus

11.15-27,
2Pedro
182

Neemias 3.7, 10, 165

9.6, 162 Lucas

10.21,22,
Colossences
182

Salmos 1.16,17, 162


14.1, 218 João 2.18, 167

90.2, 162 17.5, 162 Apocalipse 4.11, 162


BIBLIOGRAFIA SELECIONADA
HISTÓRIAS DA FILOSOFIA

Fuller, B. A. G. A History of Philosophy, revisado


por Sterling M. McMurrin. Terceira edição, Henry
Holt and Company, 1955.

Jones, W. T. A History ofWestern


Philosophy. Harcourt, Brace and Company, 1952.

Martin, S. G., G. H. Clark, F. P. Clarke, e C. T.


Ruddick. A History of Philosophy. F. S. Crofts and
Company, 1941.

Windelband, W. A History of Philosophy. J. H.


Tufts, tradutor. The Macmillan Company, 1893.

ANTIGUIDADE EM GERAL

Burnet, John. Early Greek Philosophy. Quarta


edição, A. and C. Black, 1930.
Caird, Edward. The Evolution of Theology in the
Greek Philosophers. James MacLehose and Sons,
1904. Cornford, F. M. Principium
Sapientiae.Cambridge University Press, 1932.

Diogenes Laertius. Lives and Opinions of Eminent


Philosophers, R. D. Hicks, tradutor. The Loeb
Classical Library, G. P. Putnam’s Sons, 1925.

Robin, L. Greek Thought. Kegan Paul, 1928.

Zeller, E. Outlines of the History of Greek


Philosophy. Décima terceira edição, Henry Holt
and Company, 1931.

CAPÍTULO 1. Os PRÉ-SOCRÁTICOS

Beare, J. I. Greek Theories of Elementary


Cognition. Oxford University Press, 1906.

Fuller, B. A. G. History of Greek Philosophy:


Thales to Democritus. Henry Holt and Company,
1923. Nahm, M. Selections from Early Greek
Philosophy. F. S. Crofts and Company, 1934.
Verdenius, W. J. Parmenides. J. B. Wolters, 1942.

CAPÍTULO 2. Os SOFISTAS, SÓCRATES E PLATÃO

Cornford, F. M. Before and After Socrates. The


Macmillan Company, 1932.

-. Plato’s Theory of Knowledge. Harcourt, Brace


and Company, 1935.

Plato. The Phaedo, The Protagoras, The


Theaetetus, etc., in The Loeb Classical Library. G.
P. Putnam’s Sons.

Ritter, C. The Essence of Plato's Philosophy. The


Dial Press, 1933.

Shorey, Paul. What Plato Said. University of


Chicago Press, 1933.

-. Platonism, Ancient and Modem. University of


California Press, 1938.

Stewart, J. A. Plato’s Doctrine of Ideas. Oxford


University Press, 1909.
Taylor, A. E. Plato, the Man and his Work. The
Dial Press, 1927.

CAPÍTULO 3. ARISTÓTELES

Grote, George. Aristotle. John Murray, 1872.

Mure, G. R. G. Aristotle. Oxford University Press,


1932.

Ross, W. D. The Works of Aristotle. Oxford


University Press.

Armstrong, A. H. The Intelligible Universe in


Plotinus. Cambridge University Press, 1940.

Arnold, E. V. Roman Stoicism. Cambridge


University Press, 1911.

Bailey, Cyril. The Greek Atomists and


Epicurus. Oxford University Press, 1928.

Bevan, E. R. Stoics and Skeptics. Oxford


University Press, 1913.
Cicero. Academia; De Finibus; etc., in The Loeb
Classical Library. G. P. Putnam’s Sons.

Clark, G. H. Selections from Hellenistic


Philosophy. F. S. Crofts and Company, 1940.

Hicks, R. D. Stoic and Epicurean. Charles


Scribner’s Sons, 1910.

Inge, W. R. The Philosophy of Plotinus. Longmans,


Green, and Company, 1918.

Katz, Joseph. Plotinus' Search for the Good. King’s


Crown Press, 1950.

Lucretius. De Rerum Natura, Cyril Bailey, tradutor.


Oxford University Press, 1910.

Merlan, Philip. From Platonism to


Neoplatonism. Martinus Nijhoff, 1953.

Plotinus. The Enneads, Stephen Mackenna,


tradutor. Charles T. Branford Company.

Rosan, L. J. The Philosophy of Proclus. Cosmos,


1949.

Sextus Empiricus. Adversus


Mathematicos, Volume IV in The Loeb Classical
Library. Harvard University Press, 1949.

Whittaker, Thomas. The Neo-Platonists. Segunda


edição. Cambridge University Press, 1928.

CAPÍTULO 5. O PERÍODO PATRISTICO

Augustine. De Civitate Dei; Confessionum; De


Libero Arbitrio; De Magistro; etc., in Basic
Writings of St.

Augustine, W. J. Oates, organizador. Random


House, 1948.

Drummond, James. Philo Judaeus. Williams e


Norgate, 1888.

Machen, J. G. The Origin of Paul’s Religion. The


Macmillan Company, 1921.

Warfield, B. B. Studies in Tertullian and


Augustine. Oxford University Press, 1930.

Wolfson, H. A. Philo. Harvard University Press,


1947.

CAPÍTULO 6. O PERÍODO ESCOLÁSTICO

Anselm. Monologium; Proslogium, S. N. Deane,


tradutor. Open Court Publishing Company, 1926.
Aquinas, Thomas. Summa Contra Gentiles; Summa
Theologica, in Basic Writings of St. Thomas
Aquinas, A. C. Pegis, organizador. Random House,
1945.

Carré, M. H. Realists and Nominalists. Oxford


University Press, 1946.

DeWulf, M. The History of Medieval


Philosophy. Longmans, Green and Company, 1935.

-. The Spirit of Medieval Philosophy. Charles


Scribner’s Sons, 1936.

Gilson, E. The Philosophy of St.


Bonaventura. Sheed and Ward, 1938.
-. The Philosophy of St. Thomas Aquinas. B. Herder
Book Company, 1937.

Harris, C. R. S. Duns Scotus. Oxford University


Press, 1927.

Moody, E. A. The Logic of William of


Occam. Sheed e Ward, 1935.

CAPÍTULO 7. O RACIONALISMO DO SÉCULO 17

Descartes, René. Meditations, John Veitch,


tradutor. William Blackwood and Sons, 1897.

Joachim, H. H. A Study of the Ethics of


Spinoza. Oxford University Press, 1901.

Leibniz, G. W. The Monadology, in Selections, P.


P. Wiener, organizador. Charles Scribner’s Sons,
1951. Spinoza, B. Ethics, W. Hale White, tradutor.
Oxford University Press, 1923.

Wolfson, H. A. Philosophy of Spinoza. Harvard


University Press, 1932.
Capítulo 8. British Empiricism

Berkeley, George. A Treatise Concerning the


Principles of Human Knowledge. E. P. Dutton and
Company, 1910.

Hume, David. Dialogues Concerning Natural


Religion, N. K. Smith, organizador. Oxford
University Press, 1935.

-. An Enquiry Concerning Human


Understanding, L. A. Selby-Bigge, organizador.
Oxford

University Press, 1894.

Locke, John. An Essay Concerning Human


Understanding. Oxford University Press, 1894.

CAPÍTULO 9. IMMANUEL KANT

Handyside, J. Kant’s Inaugural Dissertation. Open


Court Publishing Company, 1929.

Kant, Immanuel. Critique of Practical Reason, T.


K. Abbott, tradutor. Longmans, Green and
Company, 1909.

-. Critique of Pure Reason, N. K. Smith, tradutor.


The Macmillan Company, 1929.

-. Fundamental Principles of the Metaphysics of


Morality. Longmans, Green and Company,

1909.

-. Prolegomena to Any Future Metaphysics, Paul


Carus, organizador. Open Court Publishing

Company, 1929.

Lindsay, A. D. Kant. Oxford University Press,


1934.

Paton, H. J. Kant’s Metaphysics of Experience. The


Macmillan Company, 1936.

Pritchard, H. A. Kant’s Theory of


Knowledge. Oxford University Press, 1909.
Smith, N. K. A Commentary on Kant’s Critique of
Pure Reason. The Macmillan Company, 1923.

CAPÍTULO 10. G. W. E. HEGEL

Caird, Edward. Hegel. William Blackwood and


Sons, 1883.

Lowenberg, J. Hegel: Selections. Charles


Scribner’s Sons, 1920.

Mure, G. R. G. An Introduction to Hegel. Oxford


University Press, 1944.

Stace, W. T. The Philosophy of Hegel. The


Macmillan Company, 1923.

CAPÍTULO 11. IRRACIONALISMO CONTEMPORÂNEO

Dewey, John. Experience and Nature. Open Court


Publishing Company, 1925.

-. Human Nature and Conduct. Henry Holt and


Company, 1922.
-. Logic, the Theory of Inquiry. Henry Holt and
Company, 1938.

-. The Quest for Certainty. Minton, Balch and


Company, 1929.

-. Reconstruction in Philosophy. Henry Holt and


Company, 1920.

Durkheim, Émile. The Elementary Forms of


Religious Life, J. W. Swain, tradutor. The Free
Press, 1947. James, William. A Pluralistic
Universe.Longmans, Green, and Company, 1909.

-. Pragmatism. Longmans, Green, and Company,


1907.

-. Radical Empiricism. Longmans, Green and


Company, 1912.

-. The Will to Believe, in Selected Papers on


Philosophy. E. P. Dutton, 1917.

Kierkegaard, Soren. Concluding Unscientific


Postscript, D. F. Swenson, tradutor. Princeton
University Press, 1941.

Martineau, H. The Positive Philosophy of A.


Comte. The Macmillan Company, 1896.

Marx-Engels. The Communist Manifesto. Charles


H. Kerr and Company, 1945.

Nietzsche, F. Beyond Good and Evil. The Tudor


Publishing Company, 1931.

Schiller, F. C. S. Humanism. The Macmillan


Company, 1912.

-. Studies in Humanism. The Macmillan Company,


1907.

Schleiermacher, F. On Religion, John Oman,


tradutor. Ungar, 1955.

Schopenhauer, Arthur. The World as Will and


Idea. Simon and Schuster, 1928.

Você também pode gostar