Você está na página 1de 5

Perda de uma chance.

Considerações acerca de uma


teoria
por Janaína Rosa Guimarães
Em decisão proferida pela 14ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o relator
da apelação, Sérgio Jerônimo Abreu Silveira condenou uma empresa que atua na área de
coleta e armazenamento de células-tronco a indenizar um casal por não ter recolhido células-
tronco do cordão umbilical da sua filha, nascida de cesariana em uma maternidade do Rio de
Janeiro. Ao que consta dos autos, o preposto da empresa encarregada do serviço não
compareceu ao hospital porque, segundo ele, teria sido vítima de furto em uma cidade vizinha.

Publicada em março de 2009, tal condenação não seria diferente dos milhares de recursos
proferidos pelos tribunais no país, no tocante a contratação de um serviço e seu
inadimplemento, bem como os danos relativos à responsabilidade civil, se não fosse por uma
vertente peculiar sobre a responsabilidade civil.

Há 3 anos, em 13 de março de 2006, era publicada mais uma decisão proferida pelo Superior
Tribunal de Justiça acerca da responsabilidade civil. No caso, a 4ª Turma, sob relatoria do
ministro Fernando Gonçalves, condenou uma empresa responsável pela produção de um
programa televisivo de entretenimento a indenizar o autor que teve frustrada sua expectativa
de ganhar um prêmio de um milhão de reais, em razão da formulação imprecisa de uma
pergunta e resposta.

Casos tão distintos, com particularidades tão singulares, acabam por se aproximar em razão da
perda de uma oportunidade dos autores. Em ambos os casos, vê-se a aplicação da teoria da
perda de uma chance.

A origem da teoria e o direito comparado

A perda de uma chance, ou perte d’une chance, trata-se de teoria difundida pelos tribunais
franceses ao aplicarem as regras da responsabilidade civil em casos envolvendo médicos.

A decisão que inaugurou na jurisprudência francesa os fundamentos da teoria adveio da 1ª


Câmara da Corte de Cassação, por ocasião da reapreciação de caso julgado pela Corte de
Apelação de Paris, em julho de 1964. O caso narrou a acusação e posterior condenação de um
médico ao pagamento de uma pensão devido à verificação de falta grave contra as técnicas da
medicina, considerado desnecessário o procedimento que adotara, consistente em amputar os
braços de uma criança para facilitar o parto.

Assim, a corte francesa considerou haver um erro de diagnóstico, que redundou em tratamento
inadequado. Entendeu-se, logo em sede de 1ª instância, que entre o erro do médico e as
graves consequências, a ser a invalidez do menor, não se podia estabelecer de modo preciso
um nexo de causalidade. A Corte de Cassação assentou que presunções suficientemente
graves, precisas e harmônicas podem conduzir à responsabilidade. Tal entendimento foi
acatado a partir da avaliação do fato de o médico haver perdido uma chance de agir de modo
diverso, condenando-o a uma indenização de 65.000 francos.

Diante de tal precedente, a doutrina estrangeira passou a reconhecer a teoria da perda de uma
chance como válida e existente. Na Itália, muitos foram os estudos e avanços da doutrina que
passou a reconhecer a possibilidade de se indenizar pela chance perdida, sempre que
pudessem ser consideradas atuais, sérias e reais as oportunidades de obtenção de uma certa
vantagem, que já existia no patrimônio da vítima no momento da lesão.

A aplicação da teoria no Brasil


A perda de uma chance surge, atualmente, como uma nova categoria de dano indenizável.

No Brasil, a adoção da responsabilidade civil baseada na perda de uma chance, é


relativamente nova. Seu estudo e aplicação ficam a cargo da doutrina e jurisprudência, uma
vez que o Código Civil de 2002 não fez menção a ela. Existe, ainda, ausência de critérios
argumentativos que tragam uniformidade aos casos.

Em linhas gerais, a teoria, de construções doutrinárias francesa e italiana, configura-se na


possibilidade de obter indenização em decorrência da perda da oportunidade de alcançar
determinado resultado ou evitar determinado prejuízo.

No que tange à indenização pela perda de uma chance é essencial que a oportunidade seja
plausível e não aponte uma simples quimera. Trata-se da probabilidade de que o evento
ocorresse, ou seja, não fosse a intervenção do agente, esta chance deveria ser séria e viável.
Assim, a chance deve ser considerável e não meramente eventual.

Assim como na França, a grande maioria dos julgados aplica a teoria em ações relativas à
prestação de serviços e métodos utilizados por médicos. Também encontramos com certa
regularidade juízes aplicando tal regra em ações envolvendo a atuação de advogados, onde,
embora tenham seus contratos pautados em uma obrigação de meio, acabam por perder um
prazo, deixando de interpor um recurso ou medida apta a garantir uma chance, uma
oportunidade mais concreta de sucesso em uma demanda, por exemplo.

Não obstante a aplicação da teoria da perda de uma chance ser comumente retratada nesses
dois casos, nos últimos três anos pudemos estudar a evolução da jurisprudência brasileira,
reconhecendo a existência da responsabilidade civil em decorrência da perda de uma
oportunidade, em outras pretensões de naturezas distintas.

Sobre a aplicação da teoria, pinçamos diversos julgados proferidos: de tribunais estaduais,


passando por tribunais federais e tribunais superiores.

Vejamos:

IMPROPRIEDADE DE PERGUNTA FORMULADA EM PROGRAMA DE TELEVISÃO -


PERDA DA OPORTUNIDADE. O questionamento, em programa de perguntas e
respostas, pela televisão, sem viabilidade lógica, uma vez que a Constituição Federal
não indica percentual relativo às terras reservadas aos índios, acarreta, como decidido
pelas instâncias ordinárias, a impossibilidade da prestação por culpa do devedor,
impondo o dever de ressarcir o participante pelo que razoavelmente haja deixado de
lucrar, pela perda da oportunidade. (STJ - REsp 788459/BA – Rel. Min. Fernando
Gonçalves – Publ. em 13-3-2006)

RESPONSABILIDADE OBJETIVA AMBIENTAL - TEORIA DO RISCO


ADMINISTRATIVO - PERDA DE UMA CHANCE. (...). A responsabilidade objetiva
ambiental significa que quem danificar o ambiente tem o dever jurídico de repará-lo.
Presente, pois, o binômio dano/reparação. (...). Repara-se por força do Direito Positivo
e, também, por um princípio de Direito Natural, pois não é justo prejudicar nem os
outros e nem a si mesmo. Facilita-se a obtenção da prova da responsabilidade, sem se
exigir a intenção, a imprudência e a negligência para serem protegidos bens de alto
interesse de todos e cuja lesão ou destruição terá consequências não só para a
geração presente, como para a geração futura. Nenhum dos poderes da República,
ninguém, está autorizado, moral e constitucionalmente, a concordar ou a praticar uma
transação que acarrete a perda de chance de vida e de saúde das gerações. (STJ -
REsp 745363/PR – Rel. Min. Luiz Fux – Publ. em 20-9-2007)

TÍTULO DE CAPITALIZAÇÃO PAGO E NÃO CADASTRADO - TEORIA DA PERDA DE


UMA CHANCE. Hipótese na qual o autor adquiriu título de capitalização, que foi pago
em 08/05/2002. Entretanto, não recebeu o título e, ao consultar a central de
atendimento da Federal Capitalização S/A, segunda ré, verificou que não havia título
em seu nome e CPF. Assim, resta caracterizada a falha no serviço. É caso de
inadimplemento contratual, e responsabilidade das rés pela inexecução do ajuste. A
abrangência do artigo 403 do CC não autoriza a reparação do dano remoto, o que
ocorreria se levado em conta o valor do prêmio que poderia ser obtido. A chamada
teoria da perda de uma chance, em caso como o dos autos, deve ser equacionada
dentro da reparação do dano moral, e sua carga lateral punitiva. Admitido que a ré
pudesse sair livre da situação, apenas devolvendo o valor aplicado, seria ofensa à
dignidade de todos os consumidores que, como o autor, fazem a sua fé na sorte. (TRF-
2ª Região - Ap. Cív. 2003.51.10.001761-6 – Rel. Des. Guilherme Couto – Publ. em 5-5-
2006)

EXTRAVIO DE AUTOS - INDENIZAÇÃO - PERDA DE UMA CHANCE. (...). Tal


pressuposto mostra-se equivocado, na medida em que não há garantia alguma de que
aquela ação seria, de fato, julgada procedente. A situação aqui tratada, na verdade,
consubstancia-se na responsabilidade civil pela perda de uma chance. O princípio
reitor da responsabilidade civil informa que aquele que violar direito e causar dano a
outrem, comete ato ilícito, tendo a obrigação de indenizar (CC, arts. 186 e 927).
Entretanto, a indenização mede-se pela extensão do dano (CC, art. 944, caput), e o
dano causado pelo Estado, na situação sob análise, é representado pela perda da
expectativa de obtenção de uma sentença judicial favorável, e não pela perda do
adicional pleiteado, eis que não havia, objetivamente, certeza da vitória quanto a esse
pedido. Configurada a perda de uma chance, a indenização pelo dano sofrido há de ser
reduzida, na proporção da chance de êxito da vítima, em atenção ao disposto no CC,
art. 944, e a fim de evitar o enriquecimento sem causa. (TRF-3ª Região - Ap. Cív.
823569)

ADVOGADO - RESPONSABILIDADE CIVIL - OBRIGAÇÃO DE MEIO - TEORIA DA


PERDA DE UMA CHANCE. (...) A denominada "teoria da perda de uma chance", de
inspiração francesa, empresta suporte jurídico para indenizações em caso de
frustração de demandas judiciais devido ao desleixo profissional de advogados
lenientes, contanto que estejam configuradas, de modo preciso, a seriedade da
probabilidade dos ganhos e sua relação de causalidade direta com os atos desidiosos.
À luz da "teoria da perda de uma chance", que elastece os contornos dos lucros
cessantes, o atendimento do pleito indenizatório está adstrito não apenas à
comprovação de que os serviços advocatícios deixaram de ser prestados segundo
parâmetros razoáveis de qualidade. Exige também a comprovação de que o autor da
demanda efetivamente titularizava os direitos pleiteados e que a repulsa judicial
derivou das faltas técnicas atribuídas aos serviços advocatícios. (TJ-DFT- Ap. Cív.
20040111230184 – Rel. Des. Jaime Eduardo Oliveira – Publ. em 26-7-2007)

RESPONSABILIDADE CIVIL - COLETA E ARMAZENAMENTO DE CÉLULAS-


TRONCO - AUSÊNCIA DE PREPOSTO DA EMPRESA NO MOMENTO DO PARTO.
Se os pontos que se pretendia demonstrar com a produção de novas provas podiam
ser averiguados através dos documentos que instruíram a inicial, mostra-se
desnecessária sua realização, inocorrendo, portanto, cerceamento de defesa.
Considerando que as células-tronco são o grande trunfo da medicina moderna no
tratamento de inúmeras patologias consideradas incuráveis, não se pode dizer que a
ausência da ré no momento do parto, com a perda da única chance existente para a
coleta desse material, trata-se de um simples inadimplemento contratual. Havendo
desperdício da única chance existente para a coleta das células-tronco por culpa
exclusiva da ré, que foi negligente ao deixar de encaminhar preposto qualificado para a
coleta no momento oportuno, evidente se mostra o dano moral suportado pelos autores
diante da frustração em ampliar os recursos para assegurar a saúde de seu primeiro
filho. (TJ-PR - Ap. Cív. 401.466-0 - Acórdão COAD 121952 - Rel. Des. Ronald
Schulman - Publ. em 1-6-2007)

DEFEITO NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO MÉDICO-HOSPITALAR MUNICIPAL -


TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO.(...) Laudo pericial conclusivo no sentido de
que houve nexo de causalidade, o que se confirma diante do conjunto probatório, não
tendo o município se esforçado para demonstrar que agiu adequadamente na
realização do exame causador do dano.(...) Orientação predominantemente em matéria
de falha médica ou hospitalar. Aplicação da teoria da perda de uma chance.
Precedentes do STJ. Configuração dos danos moral, estético e material, este, no
tocante ao lucro cessante. (TJ-RJ- Ap. Cív. 2008.001.20957 – Rel. Des. Custódio
Tostes – Julg. em 6-8-2008)

SORTEIO - EXCLUSÃO DE PARTICIPANTE - TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE


- DANO MORAL CONFIGURADO. Não tendo o requerido comprovado a existência de
fato extintivo do direito da autora em participar da segunda fase do sorteio por ele
promovido, necessário o reconhecimento do dano extrapatrimonial, face à frustração
em participar do sorteio objeto desta demanda. Aplicável, ao caso, a Teoria da Perda
de uma Chance. (...) (TJ-RS - Ap. Cív. 70.020.549.648 – Acórdão COAD 124762 - Rel.
Des. Umberto Guaspari Sudbrack - Publ. em 4-3-2008)

HOSPITAL - RESPONSABILIDADE OBJETIVA - OMISSÃO - NEGATIVA DE


ATENDIMENTO POR FALTA DE PAGAMENTO - MORTE - PERDA DE UMA
CHANCE. (...) no que tange à alegação de que o nexo de causalidade estaria excluído
em razão de que a vítima faleceria de qualquer modo. Embora seja forçoso reconhecer
que a gravidade de seu estado de saúde, como afiançado pelo Perito Médico Legista.
Não há como se ter certeza de que se o paciente tivesse recebido pronto e adequado
atendimento médico teria falecido da mesma forma. Aplicável aos fatos narrados na
exordial a teoria da perda de uma chance. (...) (TJ-RS - Ap. Civ. 70025575002 - Rel.
Des. Jorge Luiz Lopes do Canto - Publ. 19-11-2008)

Para a maioria da doutrina, a perda da chance configura-se um dano material e autônomo, eis
que se baseia na perda da oportunidade de obter um lucro/vantagem ou evitar um dano. Esta
perda apenas ocorre porque um fato ilícito interrompe o curso normal dos acontecimentos
antes da concretização da oportunidade.

Sabido é que o dano patrimonial deve sempre ser atual e certo, de modo a se identificar com
clareza os danos emergentes e lucro cessantes no momento da indenização.

Em decisão proferida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, também vemos


aplicação da teoria:

RESCISÃO INDIRETA DO CONTRATO DE TRABALHO - ATO ILÍCITO DO


EMPREGADOR - PERDA DE UMA CHANCE - DANO PATRIMONIAL INDENIZÁVEL.
A teoria da responsabilidade civil pela perda de uma chance torna indenizável a
probabilidade séria de obtenção de um resultado legitimamente esperado que é
obstado por ato ilícito praticado pelo agente ofensor. Se o reclamante tinha como justa
e real a probabilidade de um ganho salarial decorrente de sua promoção ao cargo de
supervisor de vendas da reclamada, porque aprovado em processo seletivo interno da
empresa, mas viu perdida a chance de conquistar esse resultado em razão de ato
ilícito praticado pelo empregador, quando da sua dispensa, manifestamente abusiva e
ilícita, faz jus à reparação patrimonial decorrente deste ilícito. E aqui,
independentemente dos ganhos perdidos, o que se indeniza é o prejuízo consistente
na perda dessa oportunidade, a perda da chance real de alcançar a promoção
legitimamente esperada. (TRT-3ª Região - RO 1533-2007-112-03-00-5 - Acórdão
COAD 127370 - Rel. Des. Emerson José Alves Lage - Publ. em 2-10-2008)

Analisando os julgados em epígrafe, vê-se que a teoria embasa o direito à reparação em


virtude de dano, assim considerado como perda da oportunidade de alcançar determinado
resultado ou evitar determinado prejuízo. Perde-se aí uma oportunidade, não necessariamente
de alcançar, mas de tentar alcançar.

Neste caso coexistem um elemento de certeza e um elemento de incerteza. Aquele, justificado


pela não realização do evento danoso e, em consequência, o prejudicado manteria a
esperança de, no futuro, obter um lucro real ou evitar uma perda patrimonial. Este, noutra
ponta, em virtude de não se haver produzido tal evento prejudicial e, com isso, mantido a
chance, não se teria certeza da obtenção do lucro ou se a perda teria sido evitada.

Na lição de Sérgio Cavalieri Filho, não se deve considerar a chance como a perda de um
resultado certo, haja vista a sua incerteza de realização. Deve-se, sim, pensar na chance como
a perda da possibilidade de alcançar um resultado ou evitar que este resultado se concretize.
Para a configuração do dano motivado na aplicação da perda de uma chance, há que se fazer
a distinção entre o resultado perdido e a possibilidade de consegui-lo.

Neste sentido, para que seja configurada a responsabilidade civil fundada na teoria, a chance
perdida reparável deverá caracterizar um prejuízo material ou imaterial resultante de um fato
consumado, não hipotético.

Diante de tais considerações, vê-se que, em determinados casos, a chance ou oportunidade


poderá ser considerada um bem integrante do patrimônio da vítima, uma entidade econômica e
juridicamente valorável, cuja perda produz um dano, na maioria das vezes atual, o qual deverá
ser indenizado sempre que a sua existência seja provada, ainda que segundo um cálculo de
probabilidade ou presunção.

Revista Jus Vigilantibus, Quinta-feira, 30 de julho de 2009

Você também pode gostar