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Fábio Belo1
Sumário
Blanchot2
Lorena3
“Minhas cicatrizes contam uma história, espero que fique inspirado.” (MSN,
203): Lorena a todo momento convida seu leitor a ir além da mera contemplação de
suas cicatrizes e mortes. Como na frase da epígrafe: o leitor deve dar palavras à morte
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Fábio Roberto Rodrigues Belo é formado em Psicologia, pela UFMG. Mestrado em Teoria Psicanalítica,
pela FAFICH – UFMG. Doutorado em Literatura Brasileira, pela FALE – UFMG. É professor de
Psicologia, na Graduação em Direito, da Faculdade de Direito Milton Campos e, no Mestrado em Direito
Empresarial, da mesma instituição, onde leciona “Linguagem e Pesquisa Jurídica”.
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Blanchot, 1969: 15. [A resposta é a desgraça da pergunta.]
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MSN, 120.
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sem nome que ela mostra repetidas vezes. Mas, afinal, o que dizem as cicatrizes e
personagem-narradora: “Morta, meus pedaços contam uma história que ninguém quer
ler. Pedaço por pedaço, vou sendo esquecida. Coletando impressões, fios, dentes,
peritos chegam a uma conclusão. / (...) Como mulher eu sempre fui um ótimo quebra-
cabeça.” (MSN, 131). Diante do suicídio em série da personagem, Lorena exige que a
Contra a leitura fácil da identificação com o personagem, Lorena adverte que ela
não é espelho do leitor. Se ela pede para ser amada, é para que a razão não seja um
anteparo à experiência que ela oferece. Entre o espelho e a janela, Lorena nos convida a
A frase de Maurice Blanchot que epigrafa esse texto me ajuda a resumir a tese
de seu L’Entretien Infini. Como o próprio título do livro indica, ele é avesso às sínteses,
mas, de forma geral, a questão que preocupa Blanchot é tentar dizer algo sobre o fundo
de silêncio sobre o qual se erige toda possibilidade de palavra. Mas, dizer “fundo de
silêncio” já é colocar em palavra aquilo que não pode ser dito, mas é possibilidade e
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partir do qual tudo é dito?”, toda resposta é infeliz porque remete novamente à palavra,
Acredito que a idéia de que o sujeito humano seja um ser pulsional leva a
também pode se perguntar: o que seria esse pulsional sem a mediação da palavra? Como
que dizer sobre esse antes da palavra, quando, no entanto, existíamos sem saber que
existíamos?
No que tange à morte, isso fica ainda mais claro. Toda nossa linguagem existe
para dizer aquilo que é, que existe e não aquilo que desaparece, que se perde. A
não há mais instância alguma para narrar esse momento. O tormento da linguagem é
voltar-se a isso que falta sempre e precisar ser isso que falta para dizê-lo. (cf. Blanchot,
1969: 50) É assim que interpreto o lugar de onde Lorena enuncia sua narrativa: “Perdi a
consciência, tudo bem. Foi daí que comecei a lembrar...” (MSN, 10). Não podemos nos
identificar com Lorena porque o que ela deseja é levar adiante o paradoxo de falar desse
pode responder a isso (cf. Blanchot, 1969: 68). É preciso pensar, a partir disso, no que é
essa resposta. A meu ver, A Morte sem Nome, de Santiago Nazarian, é um exemplo de
Blanchot lembra que a literatura pode muitas vezes se aproximar disso que
limite. Diz o autor: “A experiência-limite é a resposta que encontra o homem, tão logo
“experiência disso que há fora de tudo, pois tudo exclui tudo fora, disso que resta a
alcançar (atteindre), depois que tudo é alcançado, depois que tudo é conhecido: o
Os suicídios sucessivos de Lorena não seriam uma metáfora para esse radical
apesar das tentativas de auto-extermínio. Não: Lorena se mata de fato diversas vezes.
Esse impossível é uma forma imprecisa de dizer deste “excesso de morrer”, desse
momento da morte que só pode ser experimentado como infinito. Lorena deixa-se
apreender pelo “infinito do fim”: “Afinal, a vida é só. É só mais uma doença longa,
paciente e terminal. / Não quero mesmo viver para sempre, apenas experimentar mais
Falar desse lugar Fora não é apenas uma impossibilidade lógica. Como pretendo
radicalmente em questão. Todavia, como sabemos, as razões que nos impedem são
permanecer obscuro.
“E, se eu estive sonhando todas as minhas mortes, onde esteve a minha vida?”
vida entregue à repetição como uma espécie de vida sem vida. Se o sonho é a realização
de um desejo inconsciente, qual o desejo Lorena realiza ao sonhar todas as suas mortes?
Para responder a isso, devo fazer um breve resumo do que entendo, a partir da obra de
A pulsão não é inata. Ela advém da relação originária: dos cuidados que um
adulto dispensa ao bebê. Mas, o adulto é sempre atravessado por seu inconsciente. Ao
mesmo tempo que a mãe oferece elementos narcísicos que irão ajudar na constituição
do eu do seu bebê, ela também deposita, à sua revelia, excitações contra as quais o
sujeito ainda incipiente deve se defender. É a partir do conflito entre esses elementos
“sem nome”.
conjunto dessas excitações passam a ser nomeadas “pulsão sexual de morte”. Para
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Sobre a leitura de Laplanche do conceito de pulsão de morte, recomendo, além do clássico Vida e Morte
em Psicanálise, o artigo citado na bibliografia: cf. Laplanche, 1999.
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funcionamento da pulsão sexual no seu aspecto mais mortífero, mais “demoníaco”, para
utiliza para explicar a “força impelente interna ao organismo vivo que visa restabelecer
um estado anterior que o ser vivo precisou abandonar devido à influência de forças
perturbadoras externas” (Freud, 2006 [1920]: 160). Essa força para retornar ao “estado
anterior” é como a força de um elástico esticado: quanto mais ele se afasta de sua forma
original, maior é a tensão para voltar a ele. Pois bem, na releitura de Laplanche, qual é
esse “estado original”? Certamente, não tem nada a ver com o vôo migratório das aves
ou a desova dos peixes rio acima, como Freud argumenta em parágrafo próximo à
bebê desamparado está entre ao adulto que cuida dele e, inevitavelmente, tem seu corpo
excitado das formas mais diversas, boas e más. São constitutivas de um “envelope
corporal” ao mesmo tempo em que “abrem” e “penetram” esse mesmo envelope. Para
passividade. Esse “corpo aberto” ao outro deve ser recalcado, mas é a ele que desejamos
inanimado já existia antes do vivo.” (Freud, 2006 [1920]: 161). De fato, na experiência-
limite da constituição do ego, éramos como que inanimados que existem, passivos, mas
reais. Para se apropriar de si mesmo, é preciso retornar a esse momento, mas não de
qualquer forma:
Que fique claro, então: não pertence ao sujeito, à sua livre e consciente escolha,
alguém se matar. Obviamente, há relações poderosas entre esses dois eventos, mas não
são coincidentes. O retorno ao inorgânico, tal como estou interpretando-o, não precisa
verdade, o estado no qual existíamos ainda sem existir, em que havia apenas um corpo
excitado pelo outro, onde deveria haver um eu.7 Tentar descrever esse momento é tentar
obscuro se daria na sua obscuridade?” (Blanchot, 1969: 62). Do ponto de vista clínico,
sensação desse obscuro que, no entanto, só pode ser sentida nesse estado limite. Do
colocar em palavras aquilo que não pode ser dito. É uma resposta oriunda à experiência-
limite. Há, todavia, sempre a tentativa de “tamponar” essa experiência com um sentido
bem comportado. Isso se dá por razões não apenas de ordem lógica, mas de ordem
afetiva. De fato, reconhecer esse estado no qual éramos sem ser, no qual existíamos,
mas sem consciência de si, é admitir uma passividade aterradora. Entretanto, é para esse
estado, lugar paradoxal da constituição do sujeito psíquico, que o sujeito deseja retornar.
Por quê? Ora, para se assenhorar desse momento terrível. Para não ser mais passivo. É
aqui, justamente, que reside o risco do engano: muitas vezes, o sujeito vai dar um nome
para esse momento, cuja nomeação é sempre impossível, mas cuja ausência de nome é
insuportável. Na próxima seção, mostro que há um convite para esse tipo de nomeação
queixas:
Aos pés do meu pai, eu me atirava. Não precisava fazer mais nada, a
não ser derreter. Em lágrimas e soluços, eu era sua filha preferida.
Única em seus braços. Ele se sentia homem ao me fazer mais criança.
Chorando, eu o fazia mais pai. E ele contente por conseguir me fazer
parar. Deitar. Dormir. (MSN, 14)
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Eis o curto-circuito: derreter nos braços do pai. Assim, ela o fazia mais homem e
ele a fazia mais criança. Nesse pacto, cujo resultado era o sono (uma forma de morte),
Lorena mantinha-se presa ao infantil. Mas, por que esse pacto se constitui assim?
“Você ainda não comeu nada. Não deixe a comida esfriando, Letícia.”
Meu nome era Lorena. Há dezenove anos, ele ainda não percebera.
Sempre me chamou de Letícia, meu pai, porque Lorena era nome
escolhido por minha mãe. Nem sei se eu mesma concordava ou não,
talvez não, mas continuava com o mesmo cartão de visita. Lorena é
meu nome, eu não tenho escolha. (MSN, 21-2)
Para ser a Letícia do pai, a Lorena (da mãe) deve morrer. Mas, ela “não tem
escolha”. De fato: não somos nós quem escolhemos nossa identidade. O que não quer
dizer que devemos nos conformar com a identidade que temos. Lorena está presa nesse
curto-circuito: ela deve retornar ao momento de sua constituição para, a partir daí, se
refazer enquanto Letícia. Eis o paradoxo: no momento de sua morte como se lembrar de
retornar como Letícia? Se Lorena morre, morrem também seus desejos, inclusive o de
ser Letícia. Por isso a infinita repetição: ela só pode chegar nesse momento limite e
Diante desse paradoxo, muitas vezes, Lorena vai cair em estado de profunda
especialmente revelador, nesse sentido (cf. MSN, 107-9). Chama a atenção seu apelo ao
pai nesse momento: “Penteei os cabelos e procurei pelo pai. Como filha, procurei pelo
meu. Para nos seus braços me fazer menos mãe. Para nos seus braços me fazer mais
menina. Uma mulher a menos. Com seus braços ao meu redor, sou uma mulher a menos
neste mundo.” (MSN, 107). Adiante ela conclui: “Será que sou filha? Me coloco frente
a frente, na frente do espelho, com meu pai e seus filhos, sua filha sou eu, e meus
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amantes, seu pai. (...) Cada um com poder de ser pai, e filha. E filho, e mãe. (...) Uma
mulher a menos, com um homem a mais, dentro de mim.” (MSN, 109). Tudo se
confunde: quando ela se vê na posição de mãe e mulher, deseja retornar ao colo do pai
para voltar a ser menina. Diante do espelho, tudo se perde, as identidades se confundem.
o pai, ser Letícia, morrer por ele. Sua escolha incide sobre a última opção:
Sublinhemos essa linha: “Deveria me dar seu sangue.”. Como nos pacientes que
outro. Se amar é morrer pelo outro, só há uma forma de se saber amada: quando o outro
usamos sua história como metáfora para compreender o que encontramos diariamente
convite da própria Lorena de “sair da frente do espelho” e olhar pela janela. Tratá-la
torná-la real é esquecer que para dizer “essa mulher”, “é preciso que de uma maneira ou
de outra eu lhe retire sua realidade de carne e osso, que a torne ausente e a aniquile”; é
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esquecer ainda que “a palavra me dá o ser, mas ele me chegará privado de ser”
real, lembrar dessa ausência necessária que ela evoca. É esse o risco sobre o qual
do sujeito psíquico. Desejar fazê-lo é sempre perder de vista o horror dessa experiência.
Talvez não seja por acaso que não ler seja anagrama quase perfeito (por um til!) de
Lorena. Mas, se o leitor não pode ler, se ele não pode tomá-la como real, o que lhe resta,
diga algo acerca de sua estrutura narrativa. Trata-se de um romance pós-moderno, nisso
“trechos” de sua história, são apenas aludidos. Parece faltar uma “costura” firme e
por Nazarian. O que quero lembrar, entretanto, é aquilo que André Green diz sobre a
escrita literária seria, por assim dizer, um trabalho de ligação ainda mais complexo.
se dá essa “transformação” – talvez Laplanche usaria ainda aqui tradução – dos aspectos
“seus aspectos mais violentos, menos discursivos, mais selvagem” torna-se objeto da
escritura:
Esse tipo de trabalho com a linguagem, obviamente, tem um limite. “Não é fácil
livrar-se da representação; ela exige o pagamento de um mínimo vital, sem o qual deixa
de ser escritura.” (Green, 1994: 31). Como mostrei, Blanchot tem o mesmo problema: é
escritura é feito de maneira a transformar Lorena na própria escritura. Como que para
lembrar, afinal, que seu corpo é um corpo de letras, que sua vida é um romance:
“Edição após edição, a vida nos ensina novas formas de morrer. Tento todas. E no final
de cada uma tenho certeza de que poderá haver mais uma. Será que terminei? Será que
tempo deixar pistas que permitem ver sua insuficiência. Nazarian passa de uma escritura
5. O leitor-pai
Para concluir, selecionei três trechos nos quais uma temática do romance se
repete. Lorena seduz e provoca seu leitor. Apesar de ter nos advertido para não tratar
sua história como a um espelho, ela a chama “nosso romance”. De repente, é o leitor
Assim termina nosso romance. Vírgula, acento agudo, ponto final. Não
preciso lhe dizer, conhece as regras. E sabe quando deve transgredir.
Sabe quando deve cortar um capítulo com uma faca. Sabe quando deve
pular um parágrafo pela janela. Sabe quando deve terminar uma frase
com um tiro. Bang! Com um tiro. (MSN, 204)
Como citei no início, Lorena pede para ser amada. Agora, no duplo sentido da
palavra “romance” (narrativa literária ou relação amorosa), revela-se o que ela deseja do
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leitor. Se ela convida para o romance é nos dois sentidos. Mas, o leitor não sabe tanto
quanto ela diz. A ênfase no suposto saber do leitor é irônica, afinal, a vida humana não é
um romance. Ninguém tem a autonomia de cortar uma parte de sua existência como se
cortasse uma linha, como se apagasse uma palavra. Isso só se faz enquanto personagem.
palavra plena que deseja apagar a experiência sem nome das origens.
Mas os doutores não foram feitos para abstrair. Me coloca nos eixos.
Me tira as rodas. Me corta as asas. Cirurgião. Nutricionista.
Homeopata. Regra minha história e acentua minhas perversões. Pontua
meus parágrafos. Me tire daqui. Não quero ficar presa entre duas
sentenças. Não quero ficar presa entre duas sentenças. (...) Me tire
daqui. Desligue as máquinas. Me salve deste parágrafo. (MSN, 53).
dizer e, ao fazê-lo, vão perder exatamente o essencial. Vão retirá-la da escrita, vão
pai, cujo sangue é a única prova de amor possível para ela. Quem é esse leitor-pai? É o
leitor que não sabe quem é a filha-personagem ou, o que dá na mesma, é aquele que
julga saber tudo sobre ela, leitor-perito que, no entanto, vai certamente trocar seus
nomes e chamá-la pelo nome que lhe convém: Letícia, edípica, psicótica, perversa.
Para ver Lorena, no entanto, é preciso deixar que a faca escape de suas mãos e
que nos fure os olhos, abra nossos corpos, corte nossa garganta, que, enfim, nos mate. E
no Lá-Fora da consciência, nos faça lembrar, sem nenhuma memória, que o que
incomoda na morte é que, morrendo, não somos mais capazes de morrer, mesmo se
Bibliografia
Blanchot, Maurice. A parte do fogo. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
_______. L’entretien infini. Paris: Gallimard, 1969.
Freud, Sigmund. Além do Princípio do Prazer. In. ____. Escritos sobre a psicologia do inconsciente, vol.
II. Trad. (Coord). Luiz Alberto Hanns. Rio de Janeiro: Imago, 2006 [1920].
Green, André. O desligamento: psicanálise, antropologia e literatura. Trad. Irène Cubric. Rio de Janeiro:
Imago, 1994.
Laplanche, Jean. La soi-disant pulsion de mort: une pulsion sexuelle. In. _____. Entre séduction et
inspiration: l’homme. Paris: Quadrige/PUF, 1999, pp.189-218.
Nazarian, Santiago. A morte sem nome. São Paulo: Planeta, 2004.