Você está na página 1de 6

“Estados Múltiplos do Ser”

Vejamos agora como Guénon apresenta o terceiro livro do núcleo doutrinal de sua obra:

"PREFÁCIO

Em nosso precedente estudo sobre O Simbolismo da Cruz, expusemos, segundo os dados providos pelas diferentes
doutrinas tradicionais, uma representação geométrica do ser que está baseada inteiramente na teoria metafísica dos estados
múltiplos. O presente volume será a este respeito como um complemento, já que as indicações que demos não bastam,
talvez, para fazer-se sobressair todo o alcance desta teoria, que deve considerar-se como inteiramente fundamental; em
efeito, devemos nos limitar então ao que se referia mais diretamente à meta claramente definida a que nos propúnhamos.
Por isso é que, deixando de lado agora a representação simbólica que temos descrito, ou ao menos não a recordando em
certo modo mais que incidentalmente quando houver lugar a nos referir a ela, consagraremos inteiramente este novo
trabalho a um desenvolvimento mais amplo da teoria de que se trata, seja, primeiramente, em seu princípio mesmo, seja em
algumas de suas aplicações, no que concerne mais particularmente ao ser considerado sob seu aspecto humano.
No que concerne a este último ponto, talvez não é inútil recordar a partir de agora que o fato de determo-nos nas
considerações desta ordem não implica de modo algum que o estado humano ocupe uma fileira privilegiada no conjunto da
Existência universal, ou que se distinga metafisicamente, em relação a outros estados, pela posse de uma prerrogativa
qualquer.
Em realidade, este estado humano não é mais que um estado de manifestação como todos outros, e entre uma
indefinidade de outros; na hierarquia dos graus da Existência, situa-se no lugar que lhe está atribuído por sua natureza
mesma, quer dizer, pelo caráter limitante das condições que lhe definem, e este lugar não lhe confere nem superioridade
nem inferioridade absoluta. Se às vezes devemos considerar particularmente este estado, é, pois, unicamente porque, sendo
o estado no qual nos encontramos de fato, por isso mesmo adquire para nós, mas para nós somente, uma importância
especial; assim, nisto não se trata mais que um ponto de vista completamente relativo e contingente, o dos indivíduos que
somos em nosso presente modo de manifestação. Por isso é que, concretamente, quando falamos de estados superiores e de
estados inferiores, é sempre com relação ao estado humano, tomado como termo de comparação, como devemos operar esta
repartição hierárquica, posto que não há nenhum outro que nos seja diretamente compreensível enquanto que indivíduos; e
é necessário não esquecer que toda expressão, sendo a envoltura em uma forma, se efetua necessariamente de modo
individual, de sorte que, quando queremos falar de algo, concernente às verdades de ordem puramente metafísica, não
podemos fazê-lo mais que descendo a uma ordem completamente diferente, essencialmente relativa e limitada, para as
traduzir à linguagem que é a das individualidades humanas.
Compreender-se-á sem esforço todas as precauções e as reservas que impõe a inevitável imperfeição desta
linguagem, tão manifestamente inadequada ao que deve expressar em tal caso; há aí uma desproporção evidente, e,
ademais, pode-se dizer o mesmo para toda representação formal, qualquer que seja, compreendidas aí as representações
propriamente simbólicas, não obstante incomparavelmente menos estreitamente limitadas que a linguagem ordinária, e por
conseqüência mais aptas para a comunicação das verdades transcendentes, daí o emprego que se faz delas constantemente
em todo ensino que possua um caráter verdadeiramente «iniciático» e tradicional. Por isso é que, como o temos feito
observar já em várias ocasiões, convém, para não alterar a verdade por uma exposição parcial, restritiva ou sistematizada,
reservar sempre a parte do inexpressável, quer dizer, aquilo que não poderia encerrar-se em nenhuma forma, e que,
metafisicamente, é em realidade o que mais importa, podemos dizer, inclusive, o mais essencial.
Agora bem, se se quer ligar, sempre no que concerne à consideração do estado humano, o ponto de vista individual
ao ponto de vista metafísico, como deve fazer-se sempre que se tratar de «ciência sagrada», e não só de saber «profano»,
diremos isto: a realização do ser total pode levar-se a cabo a partir de não importa qual estado tomado como base e como
ponto de partida, em razão mesma da equivalência de todos os modos de existência contingentes a respeito do Absoluto;
assim, pode levar-se a cabo a partir do estado humano da mesma maneira que desde todo outro, e inclusive, como já o
temos dito em outra parte, a partir de toda modalidade deste estado, o que equivale a dizer que é concretamente possível
para o homem corporal e terrestre, pensem o que pensem disso os ocidentais, induzidos a engano, quanto à importância que
convém atribuir a «corporeidade», pela extraordinária insuficiência de suas concepções concernentes à constituição do ser
humano.
Posto que este é o estado no qual nos encontramos atualmente, é daí de onde devemos partir efetivamente se nos
propomos alcançar a realização metafísica, a qualquer grau que seja, e essa é a razão essencial pela qual este caso deve ser
considerado mais especialmente por nós; Ademais, posto que desenvolvemos estas considerações precedentemente, não
insistiremos mais nisso, ainda mais por que nossa exposição mesma permitirá compreendê-las melhor ainda .
Por outra parte, para descartar toda confusão possível, devemos recordar a partir de agora que, quando falamos
dos estados múltiplos do ser, trata-se, não de uma simples multiplicidade numérica, ou inclusive mais geralmente
quantitativa, mas sim de uma multiplicidade de ordem «transcendental» ou verdadeiramente universal, aplicável a todos os
domínios que constituem os diferentes «mundos» ou graus da Existência, considerados separadamente ou em seu conjunto,
e, por conseguinte, fora e mais à frente do domínio especial do número e inclusive da quantidade sob todos seus
modos. Em efeito, a quantidade, e com maior razão o número que não é mais que um de seus modos, ou seja, a
quantidade descontínua, é somente uma das condições determinantes de alguns estados, entre os quais está o nosso; por
conseguinte, não poderia ser transportada a outros estados, e ainda menos aplicada ao conjunto dos estados, que escapa
evidentemente a uma tal determinação. Por isso é que, quando falamos deste em relação a uma multidão indefinida, sempre
devemos tomar cuidado de observar que a indefinidade de que se trata transborda todo número, e também tudo aquilo ao
que a quantidade é mais ou menos diretamente aplicável, como a indefinidade espacial ou temporal, que não dependem
igualmente mais que das condições próprias ao nosso mundo.
Impõe-se ainda outra observação, sobre o emprego que fazemos da palavra «ser», que, em todo rigor, já não pode
aplicar-se em seu sentido próprio quando se trata de alguns estados de não manifestação dos quais teremos que falar, e que
estão além do grau do Ser puro. Não obstante, em razão da constituição mesma da linguagem humana, e à falta de outro
termo mais adequado, estamos obrigados a conservar este mesmo termo em parecido caso, mas não lhe atribuindo então
mais que um valor puramente analógico e simbólico, sem o qual nos seria completamente impossível falar de uma maneira
qualquer daquilo do que se trata; e este é um exemplo muito claro dessas insuficiências de expressão às quais fazíamos
alusão faz um momento. É assim como poderemos, como já o temos feito em outras partes, continuar falando do ser total
como estando ao mesmo tempo manifestado em alguns de seus estados e não manifestados em outros, sem que isso implique
de modo algum que, para estes últimos, devamos nos deter na consideração do que corresponde ao grau que é propriamente
o do Ser.
A propósito disto recordaremos que o fato de deter-se no Ser e de não considerar nada além, como se o Ser fosse de
certo modo o Princípio supremo, o mais universal de todos, é um dos traços característicos de algumas concepções
ocidentais do início da Idade Média, que, embora continham incontestavelmente uma parte de metafísica que não se
encontra já nas concepções modernas, permanecem enormemente incompletas sob este aspecto, e também pelo fato de que
se apresentam como teorias estabelecidas para si mesmas, e não com vistas a uma realização efetiva correspondente. Isto
não quer dizer, certamente, que não tenha havido então outra coisa no ocidente; nisso, falamos somente do que se conhece
geralmente, e do que alguns, fazendo louváveis esforços para reagir contra a negação moderna, "têm tendência a exagerar
o valor e o alcance, posto que não se dão conta de que nisso se trata ainda sim de pontos de vista finalmente bastante
exteriores, e de que, nas civilizações onde, como no caso daqui, estabeleceu-se uma sorte de ruptura entre duas ordens de
ensino que se sobrepõem sem opor-se jamais, o «exoterismo» faz chamada ao «esoterismo» como seu complemento
necessário. Quando este «esoterismo» é desconhecido, a civilização, que já não está vinculada diretamente aos princípios
superiores por nenhum laço efetivo, não demora a perder todo caráter tradicional, já que os elementos desta ordem que
subsistem ainda nela são comparáveis a um corpo que o espírito tivesse abandonado, e, por conseguinte, impotentes em
adiante para constituir algo mais que uma sorte de formalismo vazio; é isso, muito exatamente, o que ocorreu no mundo
moderno.
Uma vez dadas estas poucas explicações, pensamos poder entrar em nosso tema mesmo sem nos deter mais em
preliminares dos quais todas as considerações que já temos exposto em outras partes nos permitem nos dispensar em grande
parte. Em efeito, não nos é possível voltar indefinidamente sobre o que já foi dito em nossas obras precedentes, o que não
seria mais que tempo perdido; e, se de fato algumas repetições forem inevitáveis, devemos nos esforçar em reduzi-las ao que
é estritamente indispensável para a compreensão do que nos propomos expor presentemente, sem prejuízo de remeter ao
leitor, cada vez que haja necessidade disso, a tal ou qual parte de nossos outros trabalhos, onde poderá encontrar
indicações complementares ou desenvolvimentos mais amplos sobre as questões que sejamos levados a considerar de novo.
O que constitui a dificuldade principal da exposição, é que todas estas questões estão ligadas em efeito mais ou
menos estreitamente umas às outras, e que importa mostrar este laço tão freqüentemente como é possível, embora, por outra
parte, não importa menos evitar toda aparência de «sistematização», quer dizer, de limitação incompatível com a natureza
mesma da doutrina metafísica, que deve abrir pelo contrário, a quem é capaz de compreendê-la e de «assenti-la»,
possibilidades de concepção não só indefinidas, mas sim, podemos dizê-lo sem nenhum abuso de linguagem, realmente
infinitas como a Verdade total mesma.”

***

Nota sobre tradução:

"Os estados múltiplos do ser" foi traduzido para o português por nosso amigo Giuliano Morais. Inicialmente, a
tradução foi realizada a partir da versão em espanhol disponível na Internet. No entanto, constatamos que havia algumas
imprecisões e mesmo alguns trechos mais ou menos obscuros; enviamos a Giuliano uma cópia do original em francês e
trabalhamos juntos em alguns trechos intrincados. O resultado final demonstrou-se muito satisfatório e, podemos dizer,
superior às duas traduções existentes em espanhol. As traduções da obra de Guénon para o inglês são muito boas sob a
direção editorial da Sophia Perennis.
De qualquer modo, temos que agradecer aos grupos espanhóis que traduziram, digitalizaram e publicaram na
Internet a obra completa de Guénon e dezenas de outros autores de primeiríssima linha, prestando uma ajuda inestimável aos
buscadores tradicionais de fala espanhola (e portuguesa) em todo o mundo.

Princípios do Cálculo Infinitesimal

Luiz Gambogi, professor de matemática, realizou muito boa tradução deste que constitui o quarto livro que está
incluído no núcleo doutrinal como um agente auxiliar que expande o entendimento e compreensão da magistral apresentação
de "O Simbolismo da Cruz" e "Os Estados Múltiplos do Ser", em especial no que respeita ao simbolismo matemático e
geométrico.

"PREFÁCIO ( René Guénon)


Ainda que o presente estudo possa parecer, à primeira vista ao menos, não termais que um caráter um pouco
«especial», pareceu-nos útil empreender-lhe para
precisar e explicar mais completamente algumas noções que nos sucedeu mencionar nas diversas ocasiões que nos servimos
do simbolismo matemático, e esta razão bastaria em suma para justificar-lhe sem que tenha lugar a insistir mais nisso. Não
obstante, devemos dizer que a isso se agregam também outras razões secundárias, que concernem sobretudo ao que se
poderia chamar o lado «histórico» da questão; efetivamente, este não está inteiramente desprovido de interesse desde nosso
ponto de vista, no sentido de que todas as discussões que se suscitaram sobre o tema da natureza e do valor do cálculo
infinitesimal oferecem um exemplo contundente dessa ausência de princípios que caracteriza às ciências profanas, isto é, as
únicas ciências que os modernos conhecem e que inclusive concebem como possíveis.
Já observamos freqüentemente que a maioria dessas ciências, na medida inclusive em que correspondem ainda a
alguma realidade, não representam nada mais que simples resíduos desnaturalizados de algumas das antigas ciências
tradicionais: é a parte mais inferior destas, a que, tendocessado de ser posta em relação com os princípios, e tendo perdido
por isso sua verdadeira significação original, acabou por tomar um desenvolvimento independente e por ser considerada
como um conhecimento que se basta a si mesmo, ainda que,certamente, seu valor próprio como conhecimento, precisamente
por isso mesmo, encontra-se reduzido a quase nada. Isso é evidente sobretudo quando se trata das ciências físicas, mas,
como explicamos em outra parte,1 as matemáticas modernas mesmas não constituem nenhuma exceção sob este aspecto, se
se as compara ao que eram para os antigos a ciência dos números e a geometria; e, quando falamos aqui dos antigos, nisso
é mister compreender inclusive a antigüidade «clássica», como um mínimo estudo das teorias pitagóricas e platônicas basta
para mostrá-lo, ou o deveria ao menos se não fosse mister contar com a extraordinária incompreensão daqueles que
pretendem interpretá-las hoje em dia. Se essa incompreensão não fora tão completa, ¿como se poderia sustentar, por
exemplo, a opinião de uma origem «empírica» das ciências em questão, enquanto, em realidade, aparecem ao contrário
tanto mais afastadas de todo «empirismo» quanto mais atrás nos remontamos no tempo, assim como ocorre igualmente com
todo outro ramo do conhecimento científico?
Os matemáticos, na época moderna, e mais particularmente ainda na época
contemporânea, parecem ter chegado a ignorar o que é verdadeiramente o número; e,
nisso, não estamos falando só do número tomado no sentido analógico e simbólico em
que o entendiam os Pitagóricos e os Cabalistas, o que é muito evidente, senão inclusive, o que pode parecer mais estranho e
quase paradoxal, do número em sua acepção simples e propriamente quantitativa.
Efetivamente, os matemáticos reduzem toda sua ciência ao cálculo, segundo a concepção mais estreita do que se
possa fazer dele, isto é, considerado como um simples conjunto de procedimentos mais ou menos artificiais, e que não valem
em suma mais do que pelas aplicações práticas às que dá motivo; no fundo, isso equivale a dizer que substituem o número
pela cifra e, ademais, esta confusão do número com a cifra está tão extendida em nossos dias que se poderia encontrá-la
facilmente a cada instante até nas expressões da linguagem corrente (2). Agora bem, em todo rigor, a cifra não é nada mais
que a vestimenta do número; nem sequer dizemos seu corpo, já que, em certos aspectos, é mais corretamente a forma
geométrica a que pode considerar-se legitimamente como constituindo o verdadeiro corpo do número, assim como o
mostram as teorias dos antigos sobre os polígonos e os poliedros, postos em relação direta com o simbolismo dos números;
e, ademais, isto concorda com o fato de que toda «incorporação» implica necessariamente uma «espacialização».
Não obstante, não queremos dizer que as cifras mesmas sejam signos inteiramente arbitrários, cuja forma não
teria sido determinada mais do que pela fantasia de um ou de vários indivíduos; com os caracteres numéricos deve ocorrer
o mesmo que com os caracteres alfabéticos, dos que, em algumas línguas, não se distinguem (3), e se pode aplicar a uns
tanto como aos outros a noção de uma origem hieroglífica, isto é,ideográfica ou simbólica, que vale para todas as escrituras
sem exceção, pordissimulado que possa estar esta origem em alguns casos devido a deformações ou alterações mais ou
menos recentes.
O que há de certo, é que os matemáticos empregam em sua notação símbolos cujo sentido já não conhecem, e que
são como vestígios de tradições esquecidas; e o que é mais grave, é que não só não se perguntam qual pode ser esse sentido,
senão que nem sequer parecem querer que tenham algum. Efetivamente, tendem cada vez mais a considerar toda notação
como uma simples «convenção», pela qual entendem algo que está proposto de uma maneira inteiramente arbitrária, o que,
no fundo, é uma verdadeira impossibilidade, já que jamais se faz uma convenção qualquer sem ter alguma razão para fazê-
la, e para fazer precisamente essa mais bem do que qualquer outra; é só àqueles que ignoram essa razão a quem a
convenção pode parecer-lhes arbitrária, de igual modo que não é senão àqueles que ignoram as causas de um
acontecimento a quem este pode parecer-lhes «fortuito»; efetivamente, isso é o que se produz aqui, e se pode ver nisso uma
das conseqüências mais extremas da ausência de todo princípio, ausência que chega até fazer perder à ciência, ou
supostamente tal, pois então já não merece verdadeiramente esse nome sob nenhum aspecto, toda significação plausível.
Ademais, devido ao fato mesmo da concepção atual de uma ciência exclusivamente quantitativa, esse
«convencionalismo» se estende pouco a pouco desde as matemáticas às ciências físicas, em suas teorias mais recentes, que
assim se afastam cada vez mais da realidade que pretendem explicar; insistimos suficientemente sobre isto em outra obra
como para dispensar-nos de dizer nada mais a este respeito, tanto mais quanto que é só das matemáticas do que vamos
ocupar-nos agora mais particularmente. Desde este ponto de vista, só acrescentaremos que, quando se perde tão
completamente de vista o sentido de uma notação, é muito fácil passar do uso legítimo e válido desta a um uso ilegítimo,
que já não corresponde efetivamente a nada, e que às vezes pode ser inclusive completamente ilógico; isto pode parecer
bastante extraordinário quando se trata de uma ciência como as matemáticas, que deveria ter com a lógica laços
particularmente estreitos, e, no entanto, é muito certo que se podem assinalar múltiplos ilogismos nas noções matemáticas
tais como se consideram comumente em nossa época.
Um dos exemplos mais destacáveis dessas noções ilógicas, e que teremos que
considerar aqui antes de mais nada, ainda que não será o único que encontraremos no
curso de nossa exposição, é o do pretendido infinito matemático ou quantitativo, que é a fonte de quase todas as
dificuldades que se suscitaram contra o cálculo infinitesimal, ou, talvez mais exatamente, contra o método infinitesimal, já
que nisso há algo que, pensem o que pensem os «convencionalistas», ultrapassa o alcance de um simples «cálculo» no
sentido ordinário desta palavra; só há que fazer uma exceção com aquelas, das dificuldades que provém de uma concepção
errônea ou insuficiente da noção de «limite», indispensável para justificar o rigor deste método infinitesimal e para fazer
dele outra coisa que um simples método de aproximação. Ademais, como o veremos, há que fazer uma distinção entre os
casos em que o suposto infinito não expressa mais do que uma absurdidade pura e simples, isto é, uma idéia contraditória
em si mesma, como a do «número infinito», e aqueles em que só se emprega de uma maneira abusiva no sentido de
indefinido; mas seria mister não crer por isso que a confusão mesma do infinito e do indefinido se reduz a uma simples
questão de palavras, já que recai verdadeiramente sobre as idéias mesmas.
O que é singular, é que esta confusão, que tivesse bastado dissipar para atalhar tantas discussões, tenha sido
cometida por Leibnitz mesmo, a quem se considera geralmente como o inventor do cálculo infinitesimal, e a quem
chamaríamos mais corretamente seu «formulador», já que este método corresponde a algumas realidades, que, como tais,
têm uma existência independente daquele que as concebe e que as expressa mais ou menos perfeitamente; as realidades de
ordem matemática, como todas as demais, só podem ser descobertas e não inventadas, enquanto, pelo contrário, é de
«invenção» do que se trata quando, assim como ocorre muito freqüentemente neste domínio, alguém se deixa arrastar,
devido a um «jogo» de notação, à fantasia pura; mas, certamente, seria muito difícil fazer compreender esta diferença a
matemáticos que se imaginam gostosamente que toda sua ciência não é nem deve ser nada mais que uma «construção do
espírito humano», o que, se fosse mister crer-lhes, a reduziria certamente a ser muito pouca coisa em realidade. Seja como
seja, Leibnitz não soube nunca se explicar claramente sobre os princípios de seu cálculo, e isso é o que mostra que tinha
algo nesse cálculo que lhe ultrapassava e que se impunha em certo modo a ele sem que tivesse consciência disso; se se
tivesse dado conta, certamente não teria se enredado numa disputa de «prioridade» sobre este tema com Newton, e,
ademais, esse tipo de disputas são sempre perfeitamente vãs, já que as idéias, enquanto são verdadeiras, não poderiam ser a
propriedade de ninguém, apesar do «individualismo» moderno, já que é só o erro o que pode atribuir-se propriamente aos
indivíduos humanos.
Não nos estenderemos mais sobre esta questão, que poderia levarnos
bastante longe do objeto de nosso estudo, ainda que quiçá não seja inútil, em alguns
aspectos, fazer compreender que o papel do que se chama os «grandes homens» é
freqüentemente, numa boa medida, um papel de «receptores», de sorte que, geralmente, eles mesmos são os primeiros em
iludir-se sobre sua «originalidade».
O que nos concerne mais diretamente pelo momento, é isto: se temos que
constatar tais insuficiências em Leibnitz, e insuficiências tanto mais graves quanto que
recaem especialmente sobre as questões de princípios, ¿que será então com os demais filósofos e matemáticos modernos,
aos que, certamente, Leibnitz é muito superior apesar de tudo? Esta superioridade, deve-se, por uma parte, ao estudo que
tinha feito das doutrinas escolásticas da idade média, ainda que nem sempre as tenha compreendido inteiramente, e, por
outra, a alguns dados esotéricos, de origem ou de inspiração principalmente rosacruciana (4), dados evidentemente muito
incompletos e inclusive fragmentários, e que, ademais, às vezes lhe ocorreu aplicar bastante mal, como veremos alguns
exemplos disso aqui mesmo; para falar como os historiadores, é a estas duas «fontes» às que convém referir, em definitivo,
quase tudo o que há de realmente válido em suas teorias, e isso é também o que lhe permite responder, ainda que
imperfeitamente, contra o cartesianismo, que representava então, no duplo domínio filosófico e científico, todo o conjunto
das tendências e das concepções mais
especificamente modernas.
Esta precisão basta em suma para explicar, em poucas palavras, tudo o que foi Leibnitz, e, se se lhe quer
compreender, seria necessário não perder de vista nunca estas indicações gerais, que, por esta razão, cremos bom formular
desde o começo; mas é tempo de deixar estas considerações preliminares para entrar no exame das questões mesmas que
nos permitirão determinar a verdadeira significação do cálculo infinitesimal.

***

Notas:

(1) Ver "Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos".


(2)Ocorre o mesmo com os «pseudo-esoteristas» que sabem tão pouco do que querem falar que nunca deixam de cometer esta mesma confusão
nas elucubrações fantásticas com as que têm a pretensão de substituir à ciência tradicional dos números!
(3) O hebreu e o grego estão nesse caso, e o árabe o estava igualmente antes da introdução do uso das cifras de origem índia, que depois,
modificando-se mais ou menos, passaram daí à Europa da idade média; pode-se destacar a este propósito que a palavra «cifra» mesma não é outra
coisa que o árabe Cifr, ainda que este não seja em realidade mas que a designação do zero. Por outra parte, é verdade que em hebreu, saphar
significa «contar» ou «numerar» ao mesmo tempo que «escrever», de onde sepher «escritura» ou «livro» (em árabe sifr, que designa
particularmente um livro sagrado), e sephar, «numeração» ou «cálculo»; desta última palavra vem também a designação dos Sephiroth da Cabala,
que são as «numerações» principais assimiladas aos atributos divinos.
(4) A marca inegável dessa origem se encontra na figura hermética colocada por Leibnitz na portada de seu tratado Da Arte combinatória: é uma
representação da Rota Mundi, na que, no centro da dupla cruz dos elementos (fogo e água, ar e terra) e das qualidades (quente e frio, seco e
úmido), a quinta essência está simbolizada por uma rosa de cinco pétalas (que corresponde ao éter considerado em si mesmo como
princípio dos outros quatro elementos); claro, esta insígnia passou despercebida para todos os comentadores acadêmicos!
IX - Livros conexos e compilações
Como poderão ter notado, alguns livros não foram mencionados nos grupos de estudo que estabelecemos a título de
orientação geral ao estudo da obra magistral de René Guénon.
De início, os dois tomos de "Franco-Maçonaria e Companheirismo", resultado da compilação de vários estudos
sobre o tema e resenhas de livros e revistas relacionados ao tema, que podemos integrar ao primeiro grupo de livros a
estudar; é natural que o ocidental contemporâneo que inicia suas buscas através dos estudos tradicionais procure alguma
alternativa que esteja em seu próprio território histórico-intelectual, digamos. Irá fazer verificações no que restou da Igreja
Católica Apostólica Romana, depois nas Igrejas Ortodoxas e, frequentemente, nos místicos medievais e, quase sempre, junto
à Maçonaria. Estas obras disssipam as dúvidas mais frequentes, pautam rigorosamente os critérios de regularidade e
ortodoxia, e ao final das contas, acabam por descartar as inúmeras enganações que pululam por aqui e lá fora.
"Estudos Sobre o Hinduísmo" é a compilação de estudos sobre esta doutrina e se presta a esclarecimentos adicionais
para "O Homem e Seu Devir Segundo o Vedanta".
"Considerações Sobre o Esoterismo Islâmico e Sobre o Taoísmo" é uma importante compilação de estudos sobre
estas duas formas tradicionais, acrescidos de resenhas de livros e revistas ligados ao tema. "Mélanges", publicado em 1972
pela Gallimard é uma compilação de estudos variados, extremamente interessantes; ali encontramos "O Demiurgo",
"Silêncio e Solidão" (sobre nativos norte-americanos), um interessantíssimo estudo sobre "O simbolismo dos números" e
vários outros.
O estudioso poderá reunir uma bliblioteca a partir das centenas de indicações que Guénon nos oferece em todos seus
livros; o IRGET (Instituto René Guénon de Estudos Tradicionais) possui uma biblioteca que é um verdadeiro tesouro
tradicional (ver "Raízes e Folhas de nossa Biblioteca", neste site.)

***

Notas bibliográficas
"O Erro Espírita" em português.

Andrea Patrícia : este é o nome da tradutora de "O Erro Espírita", que nos informa "ter sido fácil, pois não sou
tradutora !" e que realizou o trabalho a partir da versão em espanhol.
Reiteramos a importância fundamental desta obra de Guénon, não apenas aos desencaminhados pelo espiritismo, mas
para toda comunidade de estudiosos da Tradição. Ver em postagens anteriores neste mesmo tópico outras considerações
relativas a este livro.
Andrea Patrícia, todos agradecemos por esta tradução tão importante.

Grande notícia! "O Teosofismo" em breve traduzido!

“Luiz, fui motivada a traduzir este livro porque fui espírita/neo-espiritualista e percebi a enganação na qual estava
metida, em grande parte, graças a René Guenón. Meu pai é espírita desde antes de eu nascer, minha família infelizmente é
envolvida com espiritismo/neo-espiritualismo/nova era. Muitos de meus amigos também.
O primeiro livro de Guenon que li foi El Teosofismo e depois li El Error Espiritista seguido de A Crise do Mundo Moderno.
Li outras mais, mas ainda não li tudo. Admiro muito Guenon, pela seu conhecimento e sabedoria. Creio que ele foi um
homem muito caridoso, pois dedicou muito de seu tempo para alertar as pessoas sobre os erros da modernidade. Ele fez um
belo trabalho, pelo qual sou muito grata.
Estou traduzindo El Teosofismo, logo que estiver pronta, avisarei a você.

Fique com Deus!


Andra Patrícia”

Traduttore...traditore

Estivemos passando os olhos na tradução para o português de "O Erro Espírita" e constatamos várias imperfeições
perfeitamente compreensíveis para quem declaradamente não é do ramo e Andrea mesma não escondeu este fato .
É que o espanhol, por ser muito próximo do português, proporciona as mais variadas ciladas e armadilhas. "Largo", por
exemplo, significa em português "profundidade" e há várias palavras com grafia idêntica e significado não tanto...
Mesmo assim, no conjunto, o mais importante está preservado e a leitura ou estudo pode ser empreendido sem maiores
prejuízos à compreensão.
Sempre se perde algo em qualquer tradução e a máxima italiana que titula esta postagem é mais que justificada; o ideal
sempre é traduzir desde o original - mas o francês hoje, lamentavelmente, está em terceiro plano em nosso país e fora dele; o
próprio governo francês, com sua característica arrogância, parece não conceder maior importância ao fato.
Giuliano Morais havia traduzido "Os Estados Múltiplos do Ser" a partir do espanhol mas quando lhe passamos
É
uma cópia do original francês novas luzes trouxeram maior nitidez e clareza como resultado final. É a melhor (e
provavelmente a única) tradução desta obra para nossa língua.
A língua espanhola é muito antipatizada pelos brazucas e há um sentimento de rivalidade que jamais poderia ser
justificado quando tratamos de assuntos tradicionais. Portugal e Brasil juntos não produziram nem 10% do que os espanhóis
em matéria de livros tradicionais e só isto seria motivo suficiente para a aquisição de um bom dicionário espanhol-português
e uma gramática.
Quando (há décadas... estudamos árabe (uma experiência única e insubstituível) na USP com o então catedrático
Helmi Nasr, soubemos que é reconhecido oficialmente o fato de "pelo menos 30% das palavras em português terem raiz
árabe. A verdade é que a porcentagem que foi deixada de fora por "haver dúvidas" levaria certamente o total para quase
40%, o que é notável.
No caso do espanhol, tal porcentagem é ainda maior e não é difícil compreender se tivermos em mente quase oito
séculos de presença árabe-islâmica na Península Ibérica.
Todos os buscadores tradicionais deveriam ler e estudar o magnífico e arrebatador livro de Titus Burckhardt “A
Civilização Hispano-Árabe” onde a importância da civilização islâmica é descrita magistralemente, seja sob o aspecto
intelectual/espiritual, seja na arquitetura, literatura, etc.
Voltemos à língua árabe; a antipatia que no geral nós brasileiros a ela atribuímos preconceituosamente, nos impede
de ver (ouvir) a incomparável riqueza de sons ali presente, e grande parte destes recursos vocais têm origem no árabe e, de
todas as línguas de raiz greco-latina, sem dúvida o espanhol teve o privilégio único de ser enriquecido pela língua árabe que,
lembremos, é língua sagrada, pois através dela foi revelado o Sagrado Alcorão.

"Palavra é Ritmo"

Se falamos do espanhol com surpreendente entusiasmo para nossos estimados/as leitores/as, em parte tal fato se
deve a nossos correspondentes de língua espanhola de várias partes do mundo; o site do Instituto René Guénon de Estudos
Tradicionais possui versão nesta língua e, acreditem, no cômputo geral, várias páginas apresentam maior visitação de
espanhóis do que brasileiros, fato que não deixa de ser notável; nossos amigos de confiança na Alemanha, Itália e França
realizaram a tradução para suas respectivas línguas .
Para quem gosta de literatura e línguas, o estudo atento da terceira parte do "Baú dos Relâmpagos Fulgurantes"
(Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus) irá revelar profunda compreensão da natureza e origem da linguagem,
cujo fundamento essencial é o ritmo. No site IRGET todos poderão apreciar a trasncrição de memorável palestra de Charles
Vachot no Museu Guimet , "A Guirlanda das Letras".
Os que tiveram oportunidade de estudar uma língua sagrada, como nós em relação ao árabe, poderão testemunhar o poder de
evocação que a pronúncia correta de uma palavra instantaneamente nos traz. É como se fôssemos arrebatados à raiz e à
essência mesmo do conceito que a palavra pronunciada "quer dizer".

Luiz Pontual

Você também pode gostar