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Oliveira, Manfredo de Araújo. Ética e sociabilidade.

Introdução:

O ÉTICO COMO MOMENTO DA “CIVILIZAÇÃO DA RAZÃO”:

VISÃO RETROSPECTIVA DA TRADIÇÃO ÉTICA OCIDENTAL

O autor inicia destacando uma espécie de incorporação das questões éticas pelas diversas
ciências do homem na contemporaneidade, o que conduz ao desaparecimento da perspectiva
mesma que conduziu os antigos a indagação ética, a perspectiva de que “o homem é um ser que
não tem garantido de antemão seu próprio ser mas deve conquista-lo com empenho de sua própria
liberdade.” (p.11).
Segundo o autor, essa intuição de base é retomada na contemporaneidade pela antropologia
comportamental que tem como fulcro a noção de que o homem revela-se exatamente como um ser
aberto, que não está acabado de uma vez por todas, e nem determinado por seus circuitos
instintivos, mas que deve, ele próprio, dar orientação básica a tais instintos, significando que a
experiencia originária do homem é a experiência de ter de conquistar-se no mundo e a partir dele:
“o homem, por tanto não é, pura e simplesmente, mas se faz no mundo através de sua ação.” (p.
13) Dessa ótica, se abre uma porta para o debate acerca da historicidade como característica
fundante do ser humano.
Os antigos, indica, compreenderam bem essa questão de fundo, muito embora a pensassem
por meio de um horizonte (última fronteira de seu pensamento) a-histórico e cosmocentrico. Se
indagaram sim pelo ser do homem, sua essência, por meio da disjunção convenção ou natureza.
A resposta platônica a essa questão é reveladora do pensamento clássico: a verdade e a validade
das ações do homem se encontram na natureza, no incondicionado da ideia do bem. O homem,
deixado em meio ao devir, se encontra preso numa individualidade e particularidade: para realizar
seu ser, deve superar essa individualidade por meio de um processo de universalização que lhe
abre a perspectiva do eidos, o horizonte atemporal do seu ser, eterno e estável. Por tanto, esse ser
aberto, que precisa conquistar-se deve, segundo a resposta Platônica, seguir em direção a sua
essência, a direção de sua conquista de si “o homem nesse caso, é livre enquanto efetivador, em
sua vida histórica, da própria essência, ela mesma imutável, que estabelece o lugar que ele ocupa
no cosmos, a ordem imutável do real.” (p.14). Aqui deve-se destacar que o problema só pode se
resolver articulando antropologia e ontologia, uma vez que o homem precisa se adequar e
conqusitar seu ser por meio da universalização da essência eterna, a histórica. Assim sendo, deve
se adequar a ordem essencial das essências e, por tanto, a sociabilidade humana aqui se
fundamenta na a-historicidade das normas.
O autor indica como grandeza desse pensamento a percepção de que a pergunta pelo ser
do homem se articula intimamente com a pergunta pelo todo da realidade, sendo a especificidade
de sua resposta uma interpretação cósmica dessa totalidade. A existência histórica do homem se
humaniza quando se alinha com a ordem eterna e fixa das ideias cósmicas, refletidas na
convivência humana como mundo das leis e das normas.
A originalidade aristotélica, segundo o autor, no horizonte dessa metafísica clássica é ler na
eticidade empírica a norma universal, a-histórica, que possibilita a realização o homem de acordo
com sua essência. A polis, na perspectiva aristotélica teria uma dimensão universal, uma
possiblidade de realização do homem (por tanto, uma transcendência em direção ao universal, a
realização do homem de acordo com sua essência eterna): “a polis, nesse sentido, emerge para
Aristóteles como a atualização da natureza do homem.” (p. 16)
Foi sob esse cenário que se desenvolveram as reflexões éticas do ocidente até a
modernidade quando pela percepção do início de um novo começo se dá a perspectiva do “início
de um esclarecimento (Aufklärung) e de uma transformação da humanidade através da razão.”
(p.16) Contudo, indica o autor, se tratava em verdade do antigo ideal grego de uma civilização
racional, constituindo novidade apenas a interpretação dada a razão que “conservando o quadro
da universalidade e da a-historicidade elaborado pela reflexão clássica, vai ‘deslocar o eixo’ das
considerações do ético na vida humana.” (p.16)
Esse novo começo apontado pelo autor, desembocará na descoberta da “subjetividade”
como a nova incondicionalidade e absolutidade do agir humano, em oposição a filosofia da ordem
(uma forma específica de articulação da ética no medievo sustentada pela concepção da totalidade
como cosmo). Um exemplo claro dessa “filosofia da ordem” pode ser extraído do eminente Tomás
de Aquino para quem a essência indicaria o lugar de cada coisa na totalidade do real. Desse ponto
de vista, o sentido da ação humana é justamente o de encontrar seu lugar, por tanto sua essência,
na totalidade da realidade, lugar este já dado em sua essência. Esse é o ponto de partida para uma
articulação unitária das esferas políticas, culturais e religiosas na vida dos homens, um quadro
referencial de sua ação no mundo (guiado pelas essências, os lugares das coisas na totalidade).
Entretanto, é justamente no âmbito teológico que as primeiras fissuras desta “filosofia da
ordem” vão surgir, possibilitando o já designado “novo começo” moderno se o universo enquanto
cosmo, com toda sua hierarquia estabelecida, é o quadro referencial do agir medieval, a pergunta
dos nominalistas acerca da liberdade de deus e o universo, sua criação, como um ato livre, provoca
uma fratura: para salvar o deus onipotente e livre é preciso abandonar a “ontologia cosmocêntrica”
(p. 17) e o universo enquanto necessidade. Toda a visão do cosmo como necessário e, por tanto,
a ideia de lugares essenciais nesse universo se dissolve, produzindo uma crise normativa.
Essa fratura normativa indicada nas fissuras da “ontologia cosmocêntrica” que fornecia a
base referencial para a ação humana, produz uma indagação pelo outro incondicionado da ação
humana e, um deslocamento do eixo ético para o homem: o novo fulcro para pensar ação humana
é, agora, sua autodeterminação enquanto liberdade. A nova base para o agir ético é agora o sujeito
como consciência de si e ação por meio dessa consciência. “A passagem, por tanto, da ontologia
cosmocêntrica clássica para a filosofia moderna da subjetividade significou do ponto de vista ético,
a crise insuperável no nível da reflexão aberta pela ótica cosmocêntrica, “dos fundamentos do ético”
(p.18)
Nesse ponto, em crise flagrante e, por meio do deslocamento da questão da fundamentação
do ético do cosmo para o sujeito, a razão deixa de se tornar imitadora da ordem cósmica e se
constitui ela própria como articuladora de sentido, conferindo a ação humana uma qualidade ética
(a autodeterminação): aqui, ser ético iguala-se a ser racional e livre. O homem se distância diante
da facticidade por meio da razão e, por tanto, se torna livre por meio da razão. O homem é digno
porque se distância do fático, se distância da facticidade porque é livre, e é livre porque é racional.
Aqui é possível notar um traço típico da modernidade, “a razão é o grande instrumento de
emancipação da humanidade, a fonte de criação do começo novo para o homem, o penhor de sua
vida autônoma. “(p. 18-19)
A partir daqui, a razão [como toda poderosa razão, poderíamos ironizar] é a própria fonte de
construção do homem pelo homem de sua humanização; é ela quem, a exemplo de Hobbes, cria
uma esfera que media o conflito decorrente da igualdade original da natureza humana,
possibilitando uma humanização e o convívio humano. Em oposição a todo panorama político do
ocidente, o homem é visto essencialmente como indivíduo pré-politico, humanizado e tornado
político pela racionalidade. Esse primado do indivíduo, afirma o autor, é o “axioma fundamental da
teoria política dos tempos modernos.” E é a partir de Thomas Hobbes que se traça claramente o
papel do homem e da racionalidade como produtora de norma e de sociabilidade. Não há mais uma
norma dada, mas uma norma humanamente construída por meio da atividade racional.
A possibilidade de autoconservação do indivíduo, por tanto, a supressão de seu estado
natural de medo e conflito, é a criação pelo homem em sua atividade racional de uma segunda
natureza artificial, uma sociedade civil. Nesse momento “a ética deixa de ser a teoria da tradução
da ordem universal na esfera da convivência humana para transformar-se numa teoria da própria
construção ‘artificial’ dessa ordem pela razão humana.
Essa visão radicalmente diferente provocará uma revolução na percepção da normatividade,
uma revolução na compreensão do ético na vida humana: “Não se trata mais de acolher normas
preexistentes e pré-determinadas, mas está em jogo aqui o próprio ato instituidor de normas.”
(p.20). Agora cabe ao homem a responsabilidade de articular a dimensão normativa. Aqui a vida
deixa de ser uma ratificação de normas eternas e passa a ser uma tarefa, a tarefa de instituir a
moralidade por meio de atos racionais.
Mas isso de forma alguma significa arbitrariedade, pois, como vimos, a racionalidade
mantém o caráter de universalidade da ordem cósmica. Apesar de todas as diferenças, “o ético
emerge aqui como processo de libertação análogo ao pensado pela ontologia clássica: trata-se de
libertar-se do finito, do temporal, do mutável, para o infinito, o eterno e o imutável, que agora é a
própria subjetividade enquanto autonomia absoluta. O problema fundamental é o mesmo que o dos
gregos(...)” (p.21)
Contudo, não se pode negar a dimensão dessa rotura que ocorre na modernidade com
relação ao pensamento clássico. Se para os gregos a dimensão natural era a comunidade, na
modernidade essa dimensão é o indivíduo isolado, centro da reflexão. Na modernidade o homem
passa a se compreender não como aquele que se realiza enquanto homem na comunidade, mas
como um ser de necessidades que exigem satisfação. Aqui se identificam autorrealização e
autoconservação. Desse ponto de vista a razão, como meio de autorrealização, é a eficácia na
satisfação das necessidades de sua autoconservação. É aqui que surge a propriedade como
categoria antropológica fundamental, como meio de autoconservação do homem e, por
conseguinte, de sua autorrealização: “a propriedade vai emergir como categoria antropológica
fundamental: já que a felicidade consiste, fundamentalmente, na satisfação dos desejos ter o que
é necessário para isso é condição da humanização do homem.” (p.22), a liberdade se torna
liberdade para possuir.
Nesse ponto a própria vida em comunidade se redefine como “a associação de indivíduos
iguais e livres, relacionados entre si enquanto proprietários de si mesmos e das coisas.” (p.22) aqui
a sociabilidade é definida como sociabilidade de proprietários em relação de troca. Essa igualdade
entre proprietários inclusive possibilitará a alienação da força de trabalho sem danos a sua
autonomia: se ele é dono de sua força de trabalho, pode tranquilamente vende-la sem por isso
tornar-se menos autônomo.
Aqui, Segundo o autor, John Locke pode ser visto como completamente alinhado por esse
panorama, nessa ontologia humana da necessidade ou da carência. O homem é visto como um
ser de carências, e a própria natureza é vista como sua propriedade para satisfação de suas
necessidades e o trabalho é visto como o processo por meio do qual o homem se apropria da
natureza para sua satisfação. Para Locke o que caracteriza o homem em seu estado natural é sua
insegurança quanto a satisfação de suas necessidades, daí que o estado tenha origem em um
contrato que permitiria aos indivíduos a satisfação e uma vida melhor para todos. A finalidade do
estado então, nada mais é do que a garantia da propriedade - que em última instância é a sua
realização enquanto humano, sua humanização - e a regulação das ações dos homens para com
os outros. Já aqui surge “a distinção tipicamente moderna dos espaços de liberdade a esfera do
ético e a esfera do direito.” E um duplo sentido de liberdade, liberdade como determinação da
vontade de acordo com as leis sociais e liberdade como determinação da razão.
O autor destaca que “no pensamento liberal, uma tendência clara a acentuar o espaço de
autodeterminação individual, em contraposição à esfera das determinações jurídicas, consideradas
um mal inevitável.”(p.23) tendendo a reduzir a liberdade a interioridade, em oposição a tradição
democrática fundada por Rousseau, que dirigirá suas energias ao problema da “efetivação da
liberdade na esfera da exterioridade.” (p. 23)
Rousseau concebe o homem enquanto homem livre, e por tanto, do ponto de vista de sua
identidade consigo mesmo, daí que a perda da liberdade signifique sua desumanização, “a perda
ou a renúncia à liberdade significa a perda da especificidade do ser-homem.” (p.24) daí que toda
autoridade de um homem sobre o outro é ilegítima e a única autoridade legitima é a que parte de
um contrato. Apesar de conceber o homem como indivíduo, ele consideraria o dado fundamental
que é a inserção do homem em uma comunidade, daí que seu problema central seja encontrar uma
comunidade que não destrua a autonomia e permaneça tão livre quanto antes. Entra em jogo a
relação do indivíduo com a comunidade, e se põe a pergunta “Como a vida política e estatal pode
fazer-se efetivação do homem como ser livre?” (p. 24) A situação, de paz autárquica do estado
natural é perturbada pelo egoísmo, o amor de si se transforma se converte em amor próprio
introduzindo todo tipo de mazelas como a divisão social do trabalho e ao conceito de propriedade,
segue-se daí relações de dependência e dominação de um homem sobre o outro. Se, por tanto, o
homem é homem enquanto homem livre, essa situação compromete a própria realização do
homem, sua humanização. A questão social e política aparece sobre o cenário da efetivação do
homem como como homem livre. Só a esfera política pode possibilitar a efetivação do homem nos
termos já descritos. O contrato que supera o isolamento não elimina o egoísmo dos homens, mas
suprime seus efeitos colaterais danosos. A saída Rousseauniana é justamente a vontade universal
como vontade racional, universal. Aqui ele se depara com a questão ética na modernidade por
excelência: “Rousseau encontra o nível específico em que a questão ética vai ser tratada na
modernidade: o ético é o universal, de tal modo que o homem virtuoso é aquele cuja vontade
individual se deixa normar pela vontade universal, a qual é, assim criadora da comunidade entre
os homens.” (p. 25).
O pressuposto dessa comunidade é a igualdade de direitos na qual “cada um é parte desse
todo e se dá igualmente ao todo.” (p.25) Por essa razão o estado justo vincula necessariamente
liberdade com igualdade. O que significa essa comunidade igualitária? Uma questão proposta por
Rousseau que será retomada com Hegel, Kant e Marx (p. 25).
Em todas as elaborações contratualistas o autor, citando Schultz, enxerga uma espécie de
moral da coação que enxerga no estado uma instância que coage os indivíduos em nome de certo
bem: “O estado deixou de ser a totalidade dos indivíduos eticamente vinculados para transformar-
se no protetor e defensor dos interesses individuais, “somente um poder comum é capaz de agregar
politicamente indivíduos iguais.”
A questão que permanece é “quando a particularidade é reconhecida como legítima, como
construir a comunidade?” (p.27) Segundo o autor essa pergunta constitui uma herança
incontornável da modernidade e o substrato das reflexões de Kant, Fichte, Hegel e Marx.
Kant enquanto o grande teórico da autonomia do homem, demonstrando que a dignidade do
homem é constituída por sua capacidade de autodeterminação a partir da liberdade. O autor ainda
indica que o filósofo de Koinsberg “deu um passo fundamental, já vivendo em uma sociedade
moderna, para o que chamamos ‘ética pós-convencional’: trata-se não mais do estabelecimento de
normas, mas antes do princípio de validade das normas de nossas ações.” (p. 27)
Hegel, por sua vez, que essa formalização da reflexão ética implica um mero formalismo
vazio e “redução da liberdade a esfera da autonomia subjetiva”; ele pensará a liberdade não
somente do ponto de vista da interioridade, mas como processo de efetivação no mundo, um
processo de síntese entre individualidade e sociabilidade.
Por fim, tal qual Hegel, Marx pensará o ético localizado na esfera da história analisando
prioritariamente a “negação estrutural do ético na sociedade capitalista: o mundo da produção
capitalista caracteriza-se como processo em que o sujeito é o capital e o homem reduz-se a
elemento indispensável a esse processo, à medida que o capital se valoriza pela mediação do
trabalho. “ (p. 28) situação na qual a sociabilidade se encontra invertida, transformada em processo
autônomo e auto reflexivo de coisificação do homem. Por tanto, a única saída para o homem é a
proposição de uma sociabilidade alternativa, livre dessa inversão, onde o homem e não o capital
seja o sujeito verdadeiro.
Entretanto, essa nova eticidade faz desaparecer a questão proposta por Kant? para além da
história e sua efetivação, permanece a inelutável pergunta: que fazer ? como “mediar a tarefa da
fundamentação da normatividade normas com a questão da efetividade histórica das normas ?” (p.
29)

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