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PENSADAS?
Começo este trabalho com algumas indagações: se recebo uma ordem, quanto
tempo devo dedicar a interpretá-la antes de executá-la? Quanto esforço devo fazer para
saber exatamente o que se espera de mim, quais são as partes essenciais e não-essenciais
de seu cumprimento; se a ordem é justa ou injusta, se é conveniente ou inconveniente?
Devo cumprir uma ordem apenas porque a recebi? Existe alguma diferença entre enten-
der a ordem e aceitá-la? Quem está apto a dar ordens e quem deve segui-las? Em que
momento dou-me por satisfeito e simplesmente faço o que se espera de mim? E se aque-
le que me deu a ordem não se satisfizer com o que apresento como o seu cumprimento?
Quem decide quando uma ordem foi cumprida ou não: quem dá as ordens, ou quem as
recebe? Quando sigo uma ordem, sigo também um conjunto de regras? Infiro as regras a
partir do comportamento humano ou elas estão listadas em um documento escrito? Se
nunca observei ninguém levar certas regras a cabo, como posso saber que as estou se-
guindo à risca? Quando estou pronto para saber se interpretei uma regra corretamente ou
incorretamente? Que tipo de comportamento conta como seguir uma regra, criar ou alte-
rar uma regra? Há uma distinção entre uma regra e os seus critérios de satisfação? É se-
quer essencial responder a todas estas perguntas antes de me lançar à ação, ou posso
deixá-las de lado?
Tal sorte não tem o filósofo. Continuando o tema da dualidade ação/reflexão e an-
corado no Visconde Medardo de Terralba, protagonista de O Visconde Partido ao Meio
do romancista italiano Italo Calvino1, Torquato Castro Jr. cria então a metáfora do Filó-
sofo-Partido-AoMeio. Em um momento inicial, o Filósofo contenta-se em fazer as suas
análises com a certeza da compreensão em algum ponto futuro. Depois, talvez frustrado
pelas dificuldades crescentes, passa a considerar a sua própria atitude em relação ao
mundo como objeto de análise e imagina a possibilidade de estar enleando-se em suas
divagações. Só então passa a duvidar da dúvida ela mesma.
Contudo, duvidar da dúvida não é, por si só, garantia de liberdade (CASTRO JR.,
2009, p.3).
Diante da sugestão proposta, faço um alerta: é preciso tomar cuidado com o artifí-
cio. Não é exagerado imaginar que, em seu íntimo, Ulisses tenha obtido mais satisfação
em ter ludibriado as sereias através de sua astúcia do que em ter escutado o seu canto.
Afinal de contas – passando de um texto clássico para um texto moderno – quando o pí-
caro João Grilo, um dos personagens principais de o Auto da Compadecida, tramava as
suas presepadas contra o padeiro, o padre, o bispo e o fazendeiro de Taperoá, fazia-o
1 O livro é parte de uma trilogia, a qual inclui também os romances “O Cavaleiro Inexistente” e “O Barão
nas Árvores”.
apenas para matar a fome ou também por esporte, por diversão? O amor pelo artifício
pode nos levar a esquecer o que nos levou a ele em primeiro lugar.
Não me estendi nestes exemplos à toa. Eles não só constituem uma plataforma ro-
busta para continuarmos a discussão sobre o seguimento de regras, como proporcionam
uma chave de leitura crucial para o entendimento da filosofia tardia de Wittgenstein. A
proposta sequer é original. Em seu “Manifesto do Surrealismo Jurídico” o argentino
Luis Alberto Warat antecipou este tipo de junção entre ficção e filosofia, com o alerta:
“Juntar o direito à poesia já é uma provocação surrealista” (WARAT, 1988, p.13). Deste
modo, escolhi utilizar livremente textos literários ao lado de textos científicos e técnicos
por algumas razões, reveladas a seguir.
Pois então, à luz do que foi dito, retorno à pergunta inicial: as regras estão postas
para serem seguidas ou para serem pensadas? A resposta, como é comum na filosofia,
vem qualificada por um condicional e, neste caso, depende da localização geográfica do
jurista que o lê; se está no subsolo, na superfície ou se consegue transitar entre os dois
mundos, deixando as vestes talares na chapelaria ao pé da escada e vestindo-as de novo
ao deixar o subsolo.
2.2 DUAS DIFICULDADES PRELIMINARES DA APLICAÇÃO DE WITTGENS-
TEIN Á FILOSOFIA DO DIREITO
“The most persistent mythology is generated when the historian is set by the
expectation that each classic writer (in the history, say, of ethical or political
ideas) will be found to enunciate some doctrine on each of the topics re-
garded as constitutive of his subject. It is a dangerously short step from under
the influence (however unconsciously) of such a paradigm to “finding” a
given author’s doctrines on all of the mandatory themes. The (very frequent)
result is a type of discussion which might be labelled the mythology of doc-
trines.” (SKINNER, 1969, p 7)
A mitologia das doutrinas pode se manifestar em diversas facetas. A primeira de-
las é a de se postular certo autor, partindo-se apenas de algumas de suas observações es-
parsas e incidentais, como sendo o formulador original ou o “pai” de uma “doutrina”
qualquer. (SKINNER, 1969, p. 8) Um dos perigos mais proeminentes quando se proce-
de desta maneira é o do anacronismo: dificilmente faria sentido, por exemplo, atribuir a
Aristóteles a criação da doutrina da separação dos três poderes, ainda que o filósofo gre-
go tenha falado sobre o papel dos juízes, do soberano, da ágora e de outros órgãos, fun-
cionários e institutos de sua época e lugar. Tampouco faz sentido encontrar uma “lacu-
na” na teoria de algum filósofo clássico quando o tema supostamente inexplorado se-
quer existia na época em que o pensador viveu: seria o caso de recriminar Hobbes por
não falar sobre teoria crítica, por exemplos. Apesar de estes serem exemplos de erros
crassos, improváveis de serem encontrados no trabalho de pesquisadores sérios, a mito-
logia das doutrinas pode ocorrer em situações mais sutis. É por isto que Skinner alerta
para a possibilidade de se atribuir a “descoberta” de uma suposta posição teórica tomada
por um certo autor baseado tão somente no caso fortuito de uma similaridade terminoló-
gica (SKINNER, 1969, pp. 7-8).
A chance de uma confusão surgir em razão da existência de uma semelhança ter-
minológica é particularmente perigosa no contexto desta dissertação. Um dos conceitos
wittgensteinianos mais lembrados, o de “seguir-uma-regra”, cujo lugar central ficará
claro ao longo deste trabalho, não foi pensado para responder a perguntas tipicamente li-
gadas às da teoria das regras, ou normas jurídicas, devendo a homografia dos termos ser
tratada com o máximo de cuidado. Neste sentido, Brian Bix afirma que a discussão so-
bre seguir-uma-regra refere-se a um fenômeno mais amplo e mais básico do ponto de
vista teórico do que aquele a que os juristas se referem quando falam sobre as regras ju-
rídicas, pois Wittgenstein teria utilizado o termo “regra” para se referir a todos os cons-
trangimentos normativos aplicáveis a uma variedade indefinida de casos em que pode-
mos falar de ações “corretas” ou “incorretas” (BIX, 1993, p. 36). Em um argumento se-
melhante, Hershovitz esclarece que as observações de Wittgenstein são dirigidas ao
“funcionamento da linguagem e da matemática” e que, mesmo que as observações de
Wittgenstein sobre regras estejam corretas neste escopo limitado, ele não estaria neces-
sariamente correto sobre as regras em todos os casos (HERSHOVITZ, 2002, p. 635).
Apesar de concordar com os autores citados acima quanto à distinção entre o con-
ceito de “regra” utilizado por Wittgenstein e o conceito de “regra” frequentemente alu-
dido e discutido por filósofos do direito, adianto que discordo de ambos quanto ao esco-
po que atribuem ao conceito de regra de Wittgenstein; a natureza desta discordância fi-
cará clara mais adiante, quando for feita uma explicação mais pormenorizada dos con-
ceitos básicos descritos nas Investigações Filosóficas, momento em que também defen-
derei a importância destes conceitos à pesquisa em filosofia do direito.
“The difference between legal principles and legal rules is a logical distincti-
on. Both sets of standards point to particular decisions about legal obligation
in particular circumstances, but they differ in the character of the direction
they give. Rules are applicable in an all-or-nothing fashion. If the facts of a
rule stipulates are given, then either the rule is valid, in which case the
answer it supplies must be accepted, or it is not, in which case it contributes
nothing to the decision.” (DWORKIN, 1977, p. 24)
Se é possível dizer que uma regra foi seguida ou não foi seguida, o mesmo não va-
leria para os princípios. O código binário de “foi seguido” ou “não foi seguido” seria lo-
gicamente incompatível com o funcionamento dos princípios, pois estes “não determi-
nam consequências jurídicas que decorrem automaticamente caso certas condições
preestabelecidas não sejam observadas” (DWORKIN, 1977, p. 25). Os princípios não
estabelecem, por assim dizer, um substrato fático em que se aplicam, nem mesmo con-
sequências claras. Os princípios teriam uma “dimensão de peso”, dimensão esta ausente
no caso das regras (DWORKIN, 1977, pp. 26-27). É por isto que, se houver uma colisão
de regras, uma delas necessariamente deveria ser considerada inválida, enquanto em
uma colisão de princípios faria sentido perguntar-se qual deles tem mais peso para a si-
tuação, e nenhum dos princípios envolvidos neste conflito teria que ser abandonado
(DWORKIN, 1977, p. 27).
Robert Alexy trilha um caminho semelhante ao de Dworkin e finda por nos alçar a
outro nó terminológico. Enquanto os pensadores brasileiros de teoria do direito, assim
como os alemães e os de outros países não pertencentes à tradição do common law, pre-
ferem os termos ‘norma’ e ‘norma jurídica’, os pensadores anglo-saxões costumam falar
em ‘legal rules’ num sentido mais amplo, sem se comprometerem com a distinção forte
entre regras e princípios feita por Dworkin. Em seu livro ‘Teoria dos Direitos Funda-
mentais’, Alexy vai mais a fundo na distinção entre regras e princípios, inclusive postu-
lando o conceito de norma como sendo gênero, cabendo aos de regra e princípio o sta-
tus de espécie, pois ambos “dizem o que deve ser” e podem ser descritos através de ope-
radores deônticos (ALEXY, 2008, pp. 87-91). Ele defende que o ponto decisivo na dis-
tinção está no fato de que princípios seriam mandados de otimização, ou “normas que
ordenam que algo seja realizado na maior medida do possível dentro das possibilidades
jurídicas e fáticas existentes”; e as regras seriam “normas que são sempre satisfeitas ou
não satisfeitas” (ALEXY, 2008, p. 90).
Mesmo em sua fase tardia, cristalizada nas Investigações Filosóficas (IF) e marca-
da por uma atitude menos austera e anti-essencialista, as dificuldades de compreensão
não se esvaem. Abandonada a estética impessoal e categórica (dir-se-ia até mesmo pom-
posa) do Tractatus, Wittgenstein abraça o uso de metáforas, símiles, figuras de lingua-
gem, diálogos imaginados, diagramas e outros artifícios talvez mais ligados às artes do
que ao que se espera de uma trabalho clássico de filosofia. P. M. S. Hacker compara,
por exemplo, o fascínio e lugar de dominância exercido por Wittgenstein no cenário da
filosofia analítica do século XX ao papel central de Picasso no mundo das artes plásticas
durante o mesmo período (HACKER, 2001, p. 1). Esta ligação entre teoria e arte não
passou batido sequer para o próprio Wittgenstein. Pensando sobre o seu processo de
pensamento e escrita, registrado em uma de suas anotações compiladas e publicadas sob
o nome de ‘Culture & Value’, ele diz o seguinte: “I think I summed up my attitude to
philosophy when I said: philosophy ought really to be written only as a poetic composi-
tion” (CV, p.24e). Salientando o seu modo errático de pensar e já próximo ao fim de sua
vida, comparou a sua atividade filosófica a uma senhora velha e esquecida que se esque-
ce constantemente de onde deixou as chaves e os óculos, e precisa procurá-los o tempo
todo (OC, 532).
O estilo literário de Wittgenstein tem sido causa tanto de aplausos quanto de sus-
peitas e Stanley Cavell tenta aclarar o porquê de os métodos tradicionais da filosofia bri-
tânica, o ensaio, e da filosofia alemã, a dissertação, não forneciam o substrato necessá-
rio para dar suporte a duas características das Investigações Filosóficas: o método do
autoconhecimento e o ineditismo do tipo de crítica empreendido (CAVELL, 1976,
p.70).
Apesar disto, há na história da filosofia outro pensador cujos escritos são erráti-
cos, poéticos e desprovidos de qualquer qualidade sistemática: Friedrich Nietzsche.
Após finalizar e publicar o seu primeiro livro, ‘O Nascimento da Tragédia’, Nietzsche
foi severamente criticado por seus pares acadêmicos da área de filologia por não ser su-
ficientemente rigoroso em seus argumentos e nas descrições histórias da Grécia Antiga
(Burnham & Jesinghausen, 2010, pp.154-155). O que faltava em rigor metodológico, é
certo, sobrava em vigor e impacto. Os demais livros de Nietzsche, talvez com a única
exceção de ‘A Genealogia da Moral’, conseguem ser ainda mais dispersos e desfocados
do que o seu trabalho inaugural. Em ‘A Gaia Ciência’, a primeira seção é constituída
exclusivamente por poemas escritos em alemão. Já em ‘Assim Falou Zaratustra’ há uma
narrativa em prosa, contando-se a história, perambulações e encontros do protagonista,
Zaratustra, escrita numa espécie de imitação de textos religiosos e sagrados.
3 Os conceitos da filosofia tardia de Wittgenstein e sua relação com a filosofia do
direito
Não é nenhum exagero afirmar que Wittgenstein realizou duas revoluções filo-
sóficas através de seu trabalho e, dada tanto a sua admissão de erro quanto às ideias pu-
blicadas no TLP quanto o seu diálogo consigo mesmo ao longo das IF (sempre crítico
ao “autor do Tractatus”), é natural que se pense em uma progressão. Deixando para trás
as ideias da juventude e empreendendo um esforço concentrado, chega-se a um territó-
rio do pensamento mais maduro. A epígrafe das Investigações, uma frase retirada de
uma peça de teatro, talvez sirva como um aviso de cautela: "Überhaupt hat der Fortsch-
ritt das an sich, dass er viel grösser ausschaut als er wirklich ist” (traduzida em portu-
guês como “De um modo geral, o progresso em si parece ser muito maior do que real-
mente é”; e, em inglês, como “It is in the nature of every advance, that it appears much
greater than it actually is.”)
As Investigações se abrem com uma citação das Confissões de Santo Agostinho,
em latim, na qual o santo católico fala sobre o modo universal de apreensão do signifi-
cado. Por sua importância e poder exemplificativo, reproduzo as palavras integralmente:
“When they (my elders) named some object, and accordingly moved towards
something, I saw this and I grasped that the thing was called by the sound
they uttered when they meant to point it out. Their intention was shewn by
their bodily movements, as it were the natural language of all peoples: the
expression of the face, the play of the eyes, the movement of other parts of the
body, and the tone of voice which expresses our state of mind in seeking, ha-
ving, rejecting, or avoiding something. Thus, as I heard words repeatedly
used in their proper places in various sentences, I gradually learnt to unders-
tand what objects they signified; and after I had trained my mouth to form
these signs, I used them to express my own desires.” (IF, 1)
“It is this: the individual words in language name objects — sentences are
combinations of such names. — In this picture of language we find the roots
of the following idea: Every word has a meaning. This meaning is correlated
with the word. It is the object for which the word stands. (IF, 1)”
Com efeito, esta concepção é comum a toda uma tradição filosófica em matéria de
linguagem. As palavras representam algo, o significado. O significado das palavras con-
corda ou discorda da realidade. As palavras são verdadeiras caso correspondam à reali-
dade corretamente e falsas caso contrário. Representar, portanto, forma a essência da
função da linguagem. A ideia do significado como representação está presente em toda
a filosofia ocidental, a começar por Platão. A famosa alegoria da caverna é um exemplo
claro dela: enquanto temos apenas acesso a sombras, formas imperfeitas, existem certas
essências universais e é trabalho do filósofo ser capaz de alcançá-las. É por isto que os
diálogos socráticos resultam sempre infrutíferos para o interlocutor que fornece uma de-
finição de justiça, por exemplo. Através da maiêutica, o questionamento incessante,
Sócrates é sempre capaz de descobrir um contraexemplo a qualquer definição que seja.
Nossas tentativas de exprimir a universalidade dos conceitos, sua essência, jamais se en-
caixam em todos os casos que somos capazes de imaginar.
A ideia de significado como representação permeia todo o Tractatus. Subordina-
das à proposição-mestra 2 – “What is the case—a fact—is the existence of states of af-
fairs” (TLP, 2), estão afirmações como “We picture facts to ourselves (TLP, 2.1), “A
picture is a model of reality” (TLP, 2.12), “In a picture objects have the elements of the
picture corresponding to them (TLP, 2.13), “What a picture must have in common with
reality, in order to be able to depict it — correctly or incorrectly — in the way it does,
is its pictorial form” (TLP, 2.17). Não desejo entrar nos pormenores do Tractatus aqui,
apenas ressaltar o quão sério Wittgenstein levou a ideia de significado como representa-
ção no início de sua carreira, pois é justamente contra ela que ele se insurgirá pelo resto
do livro e de sua obra.
O filósofo israelense Avner Baz define três características básicas para que uma
posição filosófica possa ser chamada de referencialista, figurativa, ou representaciona-
lista. Em primeiro lugar, os referencialistas acreditam que para praticamente cada pala-
vra existente há uma entidade chamada de “significado” que pode ser teoricamente se-
parada de seu uso corrente ou ordinário. (BAZ, 2012, pp.13-16) Além disso, cada sen-
tença, ou frase, também possui uma entidade chamada de significado, que pode ser ana-
lisada independentemente do contexto em que possa ser utilizada. O significado da frase
é uma função do significado intrínseco das palavras que a constituem, permitindo a for-
mulação de frases inéditas com significados apreensíveis.
Now think of the following use of language: I send someone shopping. I give
him a slip marked "five red apples". He takes the slip to the shopkeeper, who
opens the drawer marked "apples"; then he looks up the word "red" in a table
and finds a colour sample opposite it; then he says the series of cardinal num-
bers—I assume that he knows them by heart—up to the word "five" and for
each number he takes an apple of the same colour as the sample out of the
drawer.——It is in this and similar ways that one operates with words.
——"But how does he know where and how he is to look up the word 'red'
and what he is to do with the word 'five'?"——Well, I assume that he acts as
I have described. Explanations come to an end somewhere.—But what is the
meaning of the word "five"?—No such thing was in question here, only how
the word "five" is used. (IF, 1) (Grifos meus)
Esta afirmação sobre o fim das explicações permanece praticamente intocada até o
fim da vida de Wittgenstein e é repetida em outros livros. Por exemplo, em Sobre a
Certeza, ele se pergunta: “If someone is taught to calculate, is he also taught that he
can rely on a calculation of his teacher's? But these explanations must after all someti-
me come to an end” (SC, 34)” e “What counts as its test? […] As if giving grounds did
not come to and end sometime” (SC, 110). Ela também servirá de trampolim, mais tar-
de, para afastar a ideia de interpretação como um suporte necessário para que alguém
possa seguir uma regra e será utilizada pelos positivistas como prova de que a filosofia
de Wittgenstein afasta a possibilidade de indeterminação radical das regras.
Caso eu pergunte a um destes alunos o que ele compreende por “capacidade ju-
rídica”, será que ele me dará como explicação algo a mais do que o próprio professor o
ensinou? Recitará a definição do Código Civil, dará alguns exemplos, talvez cite possí-
veis efeitos jurídicos de atos praticados por um menor de idade – “um contrato assinado
por um absolutamente incapaz é nulo”. Talvez ele faça alguns testes simples comigo.
Aponta para uma criança e me interpela: ele é capaz ou incapaz? Se eu, ingenuamente,
responder que “a criança é capaz pois ela sabe ler, escrever e já consegue expressar seus
desejos”, talvez receba um sorriso como resposta: “Não é isto que eu tinha em mente
com capacidade, estou falando da capacidade jurídica.”
Wittgenstein utiliza esta dialética do aprendizado para fazer uma distinção entre o
ensino ostensivo e a definição ostensiva. Ele apresenta um segundo jogo de linguagem
(JdL2) da seguinte maneira.
Pense nas expressões “estrela matutina” e “estrela vespertina”. Como se sabe hoje,
a estrela matutina e a estrela vespertina são o mesmo objeto, Vênus, que sequer tem o
status de estrela. Os signos “estrela matutina”, “estrela vespertina” e “Vênus” têm um
certo objeto celeste como referente, mas o sentido expresso por eles é diferente. Alguém
que não esteja a par de que os três nomes têm a mesma referência, ainda pode fazer cer-
tas inferências lógicas a partir delas, a informação obtida via o signo
Deste modo, pode-se dizer que a frase “O sucessor ao trono brasileiro é careca” é
falsa, pois, como dito acima, a sua estrutura subjacente é a de uma conjunção lógica do
tipo “A e B”: “existe uma e apenas uma entidade a que chamamos ‘sucessor ao trono
brasileiro’ e esta entidade é careca”. Como é falso que “existe uma e apenas uma entida-
de a que chamamos ‘sucessor ao trono brasileiro’”, a frase é falsa mas não sem sentido.
A análise funciona não só para entidades reais como também para entidades fictícias a
exemplo de “o rei da França”, “Brás Cubas”, “quadrado redondo” e “o número primo
par diferente de 2”, etc.
2 Waverley” é um romance histórico escrito em 1814 pelo escritor inglês Walter Scott.
Compare agora a abordagem referencialista com o que Wittgenstein tem a dizer
sobre o tema dos nomes, fazendo uma analogia com jogos de tabuleiro. Imagine que eu
diga “este é o rei no xadrez” para uma pessoa enquanto aponto para um objeto qualquer.
Segundo Wittgenstein, a pessoa que ouviu a minha sentença declarativa só poderia “en-
tender o uso da peça caso soubesse as regras do xadrez até este último ponto: a forma da
peça do rei” (IF, 31). Observe como o que importa aqui não é se a proposição é verda-
deira ou falsa, mas a sua utilidade.
Isto pode parecer surpreendente a nós que já jogamos ou vimos alguém jogar xa-
drez ou até mesmo outros jogos de tabuleiro. Sabemos que estes jogos costumam ter pe-
ças, que estas peças podem se movimentar em padrões diferentes, que algumas delas
podem ser capturadas e que o jogo pode acabar quando isto acontece. Também toma-
mos por certo que o material de que são feitas as peças não é essencial ao modo de jo-
gar xadrez e que pode haver certa variação no próprio formato da peça (lembre-se de
conjuntos de xadrez vendidos em feiras de artesanato onde as peças são feitas a seme-
lhança de cangaceiros e outras figuras da cultura popular brasileira).
Isto não quer dizer que tenhamos lido um manual de regras ou sequer que alguém
nos tenha as explicado do começo ao fim; pois o jogo pode ser apreendido puramente
através da observação (IF, 31): o espectador percebe que certas peças, com certo forma-
to, andam apenas “na diagonal”, enquanto outras andam apenas para frente, outras verti-
calmente ou horizontalmente, etc. No começo, aprender o jogo de xadrez deste modo
pode parecer desafiador. Imagine que o espectador fixe o olhar sobre a peça a que os jo-
gadores dão o nome de “rainha” e conte quantas casas a peça anda. Na primeira jogada,
três casas; na segunda jogada, três casas; na terceira jogada, três casas. Mas, de repente,
o jogador move-a ao longo de seis casas e o seu oponente não diz nada! Pareceu-lhe, até
a terceira jogada, que a rainha tinha um limite de movimentos, mas a expectativa lhe é
frustrada. Quantos jogos ele precisaria assistir para se assegurar de como se movem
cada uma das peças? Quantos jogos ele precisaria assistir para aprender o que é uma
“peça” do jogo? O espectador limita-se a ruminar em silêncio por um tempo até ver que
um dos objetos de plástico deslocados pelos jogadores movimenta-se de modo estranho:
não vai para um lado nem para o outro, não anda na diagonal e chega a passar por cima
de outros objetos! (Até então, ele percebera, os objetos agiam como obstáculos que não
podiam ser transpostos) Neste ponto, ele não se aguenta de ansiedade e pergunta: “qual
é o nome desta peça que se movimenta diferentemente das demais?” Os jogadores, sur-
presos, respondem-lhe: “cavalo”.
The definition of the number two, "That is called 'two' "—pointing to two
nuts—is perfectly exact.—But how can two be defined like that? The person
one gives the definition to doesn't know what one wants to call "two"; he will
suppose that "two" is the name given to this group of nuts!——He may sup-
pose this; but perhaps he does not. He might make the opposite mistake;
when I want to assign a name to this group of nuts, he might understand it as
a numeral. And he might equally well take the name of a person, of which I
give an ostensive definition, as that of a colour, of a race, or even of a point
of the compass. That is to say: an ostensive definition can be variously inter-
preted in every case. (IF, 28)
We can also think of the whole process of using words in (2) as one of those
games by means of which children learn their native language. I will call
these games “language-games” and will sometimes speak of a primitive lan-
guage as a language-game. And the processes of naming the stones and of re-
peating words after someone might also be called language-games. Think of
much of the use of words in games like ring-a-ring-a-roses. I shall also call
the whole, consisting of language and the actions into which it is woven, the
"language-game (IF, 7)
É por isto que a definição ostensiva, por si só, não é capaz de fornecer o significa-
do das palavras e “only someone who already knows how to do something with it can
significantly ask a name” (IF, 31). Quem imagina, como Agostinho, que apontar e no-
mear objetos é suficiente para impregnar-lhes de significado parece imaginar que a cri-
ança já possui uma linguagem interna, como se ela pudesse “falar consigo mesma” (IF,
32). A linguista Helena Martins detém-se sobre este ponto e vale a pena trazer as suas
considerações. Para ela, essa linguagem “prévia” do pensamento seria uma “conquista
individual”, um resultado direto da aplicação dos processos cognitivos da criança às si-
tuações da sua vida. A estas faculdades cognitivas se sucederia o contato com os demais
humanos, a vida pública, e estaria “motivada por um impulso descritivo: ‘falar das coi-
sas’” (MARTINS, 2000, p.25). É por isto que dizer simplesmente “a etiqueta é uma pre-
paração para o uso” é um erro. Dar nome a um objeto pode fazer parte de um jogo de
linguagem, mas não se pode dizer que à criança faltava apenas um “nome” para que ela
pudesse começar a se referir às coisas.
Este tipo de aprendizado pode ser igualado a quando temos aulas de uma segunda
ou terceira língua. Um professor de francês diz: “cette voiture est blanche”. Depois, ex-
plica: “blanche significa o mesmo que a cor branca”. Nós o entendemos de imediato
não porque simplesmente colacionamos o signo “blanche” a uma representação, mas
sim porque já dominamos uma técnica, já temos uma noção de que branco é uma cor e
de que não faz sentido, por exemplo, perguntar pela “extensão do branco” ou o “formato
do branco”. Este tipo de dúvida não nos ocorre pois, “To understand a sentence means
to understand a language. To understand a language means to be master of a techni-
que” (IF, 151). Ao longo de nossa vida passamos por diversos jogos de linguagem em
que usamos a palavra cor, dizemos que branco é uma cor, e isto é tudo. Quando apren-
demos a nova palavra, o novo nome, em francês, já sabemos o que fazer com ele. Para
martelar a ideia à exaustão: “No jogo de linguagem de nomear – que, note-se, deve ser
aprendido –, estabelecer ligações entre palavras e objetos não coincide com revelar ou
conhecer os seus significados (MARTINS, 2000, p.31)”.
Chega-se, afinal, a uma das ideias mais memoráveis de Wittgenstein: “For a lar-
ge class of cases—though not for all—in which we employ the word "meaning" it can
be defined thus: the meaning of a word is its use in the language (IF, 43)”. A restrição
contida em “for a large class of cases” não deve causar surpresa. O objetivo aqui é afas-
tar a noção de que possa haver um critério final, estático e essencial para toda a investi-
gação acerca do significado e nos forçar a pensar sobre os diferentes tipos de palavras,
os diferentes tipos de frases e até mesmo os diferentes tipos de usos de uma mesma pa-
lavra. Diversas metáforas são invocadas para ilustrar esta pluralidade de usos. Em uma
delas, as palavras são comparadas a ferramentas: martelos, pregos, parafusos, serrotes,
chaves de fenda, etc (IF, 11). Em outra, a cabine de uma locomotiva, com seus vários ti-
pos de alavanca, que podem ser pressionadas, apertadas, rotacionadas, rosqueadas, etc
(IF, 12). A questão da “completude” da linguagem também pode ser vista nestes termos.
Wittgenstein pede que consideremos um povo que só se comunica através de ordens e
ações correlatas. Talvez, pensa ele, poderíamos pensar que se trata de uma linguagem
pobre e rudimentar, a ela falta algo de essencial. O alerta é o seguinte: nossa linguagem
estava “completa” antes de termos inventado o cálculo proposicional ou os símbolos da
química orgânica? A linguagem seria como uma cidade antiga, com um núcleo original
de habitação em que o traçado urbana forma um labirinto de ruas, becos, camboas, pra-
ças, travessas, mas cujos subúrbios foram desenhados ao longo de uma malha, em que
os prédios são padronizados e uniformes (IF, 18).
Esta multiplicidade de jogos de linguagem é tributária do caráter exclusivamente
público da linguagem e dos significados: “If language is to be a means of communicati-
on there must be agreement not only in definitions but also (queer as this may sound) in
judgments” (IF, 242). O requisito da concordância é, em (BAKER & HACKER, 2005,
pp.138), incompatível com o logicismo atômico de Russell e Frege (para quem os julga-
mentos – Gedanke – eram internos e privados (BAKER & HACKER, 2005, p.137)) e
da teoria pictórica exposta no Tractatus. A concordância pública confere alguma estabi-
lidade aos jogos de linguagem e, portanto, aos significados. Os signos obtêm seu signifi-
cado pelo uso: “Every sign by itself seems dead. What gives it life?—In use it is alive. Is
life breathed into it there?—Or is the use its life?” (IF, 432). Uma frase semelhante a
esta aparece já no Livro Azul, mostrando a persistência da ideia durante a vida de Witt-
genstein: “But if we had to name anything which is the life of the sign, we should have
to say that it was its use” (LA, p. 4).
“Mas isto é estranho”, pode-se dizer. Porque as definições públicas dos significa-
dos não estão realmente determinadas pelos jogos de linguagem, há buracos, linhas em-
baçadas, gargalos e dúvidas quanto aos seus pontos limítrofes. É possível caminhar sem
um chão onde se apoiar? É para responder a este tipo de indagação que Wittgenstein re-
corre ao conceito de semelhanças de família ao mesmo tempo que começa a esboçar o
que entende por regra. A sua exposição das semelhanças de família ao conceito de
“jogo” (Spiel) é suficientemente importante e memorável para ser apresentada integral-
mente:
Consider for example the proceedings that we call "games". I mean board-
games, card-games, ball-games, Olympic games, and so on. What is common
to them all?—Don't say: "There must be something common, or they would
not be called 'games' "—but look and see whether there is anything common
to all.—For if you look at them you will not see something that is common to
all, but similarities, relationships, and a whole series of them at that. To repe-
at: don't think, but look!—Look for example at board-games, with their mul-
tifarious relationships. Now pass to cardgames; here you find many corres-
pondences with the first group, but many common features drop out, and
others appear. When we pass next to ballgames, much that is common is re-
tained, but much is lost.—Are they all 'amusing'? Compare chess with nough-
ts and crosses. Or is there always winning and losing, or competition between
players? Think of patience. In ball games there is winning and losing; but
when a child throws his ball at the wall and catches it again, this feature has
disappeared. Look at the parts played by skill and luck; and at the difference
between skill in chess and skill in tennis. Think now of games like ring-a-
ring-a-roses; here is the element of amusement, but how many other characte-
ristic features have disappeared! And we can go through the many, many
other groups of games in the same way; can see how similarities crop up and
disappear. And the result of this examination is: we see a complicated
network of similarities overlapping and criss-crossing: sometimes overall si-
milarities, sometimes similarities of detail. (IF, 66)
É notável que Wittgenstein nos exorte a “olhar” e não a “pensar” sobre o que há
de comum entre os jogos. Quando nos limitamos a simplesmente observar não caímos
na tentação de tentar procurar “aquilo que é comum”, criando uma nova entidade reifi-
cada para ser designada ou referenciada pela palavra “jogo”. Se não podemos definir
jogo extensivamente – dando todos os exemplos possíveis de jogos –, devemos pelo me-
nos poder definir a palavra intencionalmente, através de uma descrição precisa do con-
ceito. Este é o modus operandi tradicional da filosofia desde os diálogos platônicos às
teorias do significado, da mente, da justiça, da democracia, etc. É apenas quando para-
mos para refletir sobre a palavra que ela nos aparece como algo estranho e então nos
quedamos duvidosos de como explicá-la para nós próprios ou para um terceiro.
[…] persuaded that common speech is full of vagueness and inaccuracy, and
that any attempt to be precise and accurate requires modification of common
speech both as regards vocabulary and as regards syntax. Everybody admits
that physics and chemistry and medicine each require a language which is not
that of everyday life. I fail to see why philosophy, alone, should be forbidden
to make a similar approach towards precision and accuracy. (RUSSELL,
1957, p.387)
Para ele a linguagem do cotidiano era por demasiado imprecisa para servir aos
propósitos delicados da filosofia, uma palavra para a qual ele dá a seguinte explicação
no prefácio ao seu livro de História da Filosofia Ocidental:
Here it is difficult as it were to keep our heads up,—to see that we must stick
to the subjects of our every-day thinking, and not go astray and imagine that
we have to describe extreme subtleties, which in turn we are after all quite
unable to describe with the means at our disposal. We feel as if we had to re -
pair a torn spider's web with our fingers. (IF, 106)
O contraste não poderia ser maior. Enquanto Russell deposita as suas esperanças
teóricas na possibilidade de refinamento, detalhamento e uma busca incessante por uma
clareza derradeira, Wittgenstein considera esta postura como algo a que se deve resistir.
É preciso deixar os preconceitos de lado ao se filosofar e agarrar-se ao que há de mais
comum em nossas interações.
Uma dúvida pode emergir a partir desta explicação: “mas se não podemos falar
em algo comum entre os jogos então não entendemos o que queremos dizer quando di-
zemos ‘jogos’; logo não podemos nem mesmo explicar o que é um jogo!” (IF, 69). Esta
dúvida, é claro, jamais nos ocorreu quando começamos a falar sobre qualquer assunto
ou quando tentamos explicar o significado de um substantivo qualquer, nem mesmo
quando nos explicaram o que são jogos.
Volte a considerar o exemplo dos jogos de bola, já discutido acima. Pois agora
pode-se dizer: “certo, posso até não conseguir dar uma definição final de o que seja um
jogo, mas se digo que estou falando de um jogo de bola não há nenhuma dúvida sobre
aquilo que falo e aqui a definição é final; só dou o nome ‘jogo de bola’ aos jogos em
que há ao menos uma bola presente”. Esta, é claro, pode ser uma definição perfeitamen-
te exata para fins de uma explicação legítima. Um professor de educação física pode
muito bem anunciar aos alunos “na aula de hoje praticaremos jogos de bola” e pedir que
eles escolham entre futebol, basquetebol, handebol, voleibol ou qualquer outro jogo de
bola. Então dois alunos vão ao depósito em que estão guardados os equipamentos de
educação física, pegam luvas de boxe, uma bola de speedball e se revezam para ver
quem consegue passar mais tempo esmurrando a bola sem perder o ritmo, do mesmo
jeito a que assistem nos filmes de Hollywood sobre o esporte. O professor retorque “vo-
cês sabem que eu não quis dizer isto” e força-os a guardar o equipamento. Nosso senti-
mento diante de uma tal situação pode ser o de acusar os alunos de serem engraçadi-
nhos, de terem feito uma escolha estranha de propósito, apenas por provocação. Quem
vai dizer que esta acusação também não é perfeitamente legítima?
Deixando
Agora que discuti (mesmo que em termos esquemáticos) e apresentei uma parte
do vocabulário básico de Wittgenstein, apresento uma justificativa de porque não consi-
dero absurda a tentativa de trazê-lo para a filosofia do direito como uma chave de inter-
pretação. Mais do que isso. Entendo que muitas das questões comumente levantadas por
filósofos do direito, como a existência de lacunas em um sistema jurídico, a forma lógi-
ca da norma (se A, deve B), a separação lógica das normas entre regras e princípios, in-
terpretação autêntica e interpretação não-autência, etc, podem se beneficiar do método
de análise gramatical para a sua dissolução. Tratá-las, é claro, está fora do escopo deste
trabalho, mas espero que as minhas propostas para o caso da determinação das regras
jurídicas e da distinção entre casos fáceis e casos difíceis possa demonstrar que é possí-
vel desipnotizar-se de certos impulsos filosóficos.
Começo com os obstáculos apresentados por Brian Bix. Entendo que ele não dese-
ja proibir ou afastar de todo a importância de Wittgenstein (BIX, 2005, p.217) e seus ar-
gumentos são interessantes o suficiente para serem discutidos e servem como platafor-
ma para gerar boas respostas.
Após
Uma das teses mais influentes de Herbert Hart para a teoria da interpretação ju-
rídica e da determinação das regras jurídicas é, sem dúvidas, a da divisão entre casos fá-
ceis e casos difíceis, atrelada aos conceitos correlatos de “textura aberta”, “zona de pe-
numbra”, “vagueza”, “núcleo estável de significado” e “discricionariedade”. Proposta
em meio ao projeto hartiano de posicionar-se entre a rigidez formalista e a flexibilidade
excessiva do realismo americano (como na teoria de Austin) (BIX, 1993, p.7), Hart bus-
cou um meio termo aceitável para o seu neopositivismo. Esta postura permitiu-lhe a
manter um grau de separação entre direito e moral sem descuidar da natureza social do
direito, caracterizando-o como um sistema composto por regras primárias e secundárias.
Este tipo de receptividade a um esquema mais elástico de em relação a uma teoria
do significado e da interpretação deve-se em grande parte ao contexto acadêmico em
que Hart se encontrava. É que a Universidade de Oxford dos meados do século XX ob-
servou o nascimento e desenvolvimento de um novo modo de filosofar, um movimento
que ficou conhecido como o da “Filosofia da Linguagem Ordinária” (comumente cha-
mado de OLP devido ao seu nome em inglês, Ordinary Language Philosophy), capitane-
ado por figuras como Peter Strawson, Gilbert Ryle e John L. Austin (BAZ, 2012, p.1).
Austin, por sinal, chegou a enviar uma mensagem de congratulações a Hart quando este
assumiu a cadeira de jurisprudência em Oxford: “It is splendid to see the empire of phi-
losophy annex another province in this way—not to mention the good you’re going to
do them” (LEFEBVRE, 2011, p.99).
Havendo um relacionamento intelectual entre Hart e os expoentes da Filosofia da
Linguagem Ordinária, é natural estabelecer uma ligação estreita entre Hart e Wittgens-
tein. Há, inclusive, evidências textuais encontradas no próprio The Concept of Law co-
nectando os dois. Em uma nota ao primeiro capítulo, chamado de Persistent Questions,
Hart convida o leitor a se aprofundar no conceito de semelhanças de família e defende
que os conselhos de Wittgenstein sobre a dificuldade em se apresentar definições exatas
e imutáveis das palavras são importantes para a análise do direito e da política (HART,
1994, p. 280). Em outra nota, desta vez ao capítulo VII, justamente aquele em que
expõe as suas ideias sobre a textura aberta do direito, Hart aponta que Wittgenstein faz
diversas observações relevantes sobre a comunicação de regras através de exemplos e
sobre o ensinar e seguir regras (HART, 1994, p. 297). À parte isto
Não tenho como objetivo me perguntar se a teoria de Hart é de fato uma teoria
wittgensteiniana, se o The Concept of Law é um livro wittgensteiniano ou não. influên-
cia de Hart faz-se sentir até hoje e atinge em cheio o problema tratado nesta dissertação.
Pode-se dizer que Hart é o antepassado natural da literatura anglófona quando o assunto
é determinação ou indeterminação das regras jurídicas, de modo que o tratamento da
questão é apresentado a partir de seus pressupostos, seu vocabulário e regras internas.
Com efeito, é no mínimo razão de incômodo (mas não de surpresa!) que Witt-
genstein venha sendo levantado como marco teórico por dois campos extremamente an-
tagônicos: um que vê na impossibilidade de as normas determinarem-se a si próprias e
precisam passar por um processo de interpretação em que questões culturais, políticas,
etc, entram em cena; e um em que a interpretação é deixada de lado e a doutrina dos ca-
sos fáceis é, em alguma medida, preservada. Os resultados do levantamento bibliográfi-
co não deixam dúvidas quanto a este antagonismo paradoxal e é preciso deixá-lo bem
claro antes de partir à exposição da teoria de Hart, até porque as próximas seções deste
capítulo lidarão diretamente com estes rebentos do hartianismo e seus antagonismos.
O já citado Brian Bix dedicou um livro inteiro à determinação das regras, chama-
do Law, Language, and Legal Determinacy em que ele buscou explorar as relações en-
tre linguagem e direito, focando-se em como as duas interagem no contexto da determi-
nação (BIX, 1993, p.1). O primeiro capítulo do livro é um esboço das teorias de Hart so-
bre a textura aberta, o segundo, uma descrição do conceito de “seguir-uma-regra” de
Wittgenstein e, o terceiro, uma discussão ampla sobre o conceito paradigmático de “ca-
sos fáceis”, o que constitui um caso fácil e qual a sua relação com a linguagem. A espe-
culação sobre os casos fáceis de Bix faz uso da metáfora de claridade (oposta a penum-
bra): “The clarity of the language in a legal rule, that is straightforward relative to the
facts to which the rule will be applied, is not sufficient (and perhaps may not be neces-
sary) for the application of that rule to be a clear case” (BIX, 1993, p. 67).
A distinção entre casos fáceis e difíceis é corolário direto das ideias de Hart quan-
to ao funcionamento da linguagem. Então, antes de mais nada, é preciso expor tal con-
cepção.
Para Hart, o conceito de regra está intimamente ligado a uma ideia de controle so-
cial. (HART, p. 124, 2012) Isto é, certos padrões normativos são dirigidos a uma coleti-
vidade, uma entidade geral, e não a indivíduos específicos. No caso específico do direi-
to, afirma Hart, dois são os instrumentos de comunicação destes padrões normativos: a
legislação e o precedente. Enquanto a legislação se dá de forma eminentemente lin-
guística (por meio de um código ou uma lei em sentido formal, por exemplo), o prece-
dente se dá de forma exemplificativa. Para ilustrar a diferença, Hart alude à figura de
um pai e o seu filho entrando na igreja. Se, por um lado, o pai pode dizer o filho: “todos
devem retirar o chapéu da cabeça antes de entrarem na igreja”, ele poderia também di-
zer: “Olhe: devemos nos portar assim diante desta situação” e em seguida retirar o pró-
prio chapéu e entrar na igreja. No primeiro caso, há um comando verbal. No segundo,
uma explicação através do exemplo O filho, nas duas ocasiões, deve escutar ou observar
o pai e repetir o seu comportamento (HART, 2012, p.125).
O que deve ficar claro a partir neste ponto é que a distinção caso fácil/difícil não
está ligada em absoluto a uma ideia de complexidade. Casos longos, repletos de docu-
mentos, testemunhas, provas a serem produzidas e outras dificuldades de ordem prática
ou teórica podem ser fáceis. Enquanto casos extremamente simples, como o de decidir
se uma bicicleta é um veículo, podem ser difíceis. A dificuldade está, para Hart, nas de-
ficiências da linguagem. O antônimo de um caso fácil não é um caso complexo, assim
como o antônimo de caso difícil não é um caso simples. Devemos aceitar os obstáculos
e falhas da sua linguagem sem com isso desistir de regras preestabelecidas como sendo
padrões de conduta a serem observados por juízes. Feito este percurso, chegamos a uma
conclusão: o modelo de regras do neopositivismo hartiano depende, no caso limite, da
aceitação de um núcleo comum estável, acessível a todos. Não fosse por este núcleo,
nossas palavras estariam imersas na escuridão e não saberíamos como continuar.
It is this [o núcleo estável] which the scorer is not free to depart from, and
which, so far as it goes, constitutes the standard of correct and incorrect sco-
ring, both for the player, in making his unofficial3 statements as to the score,
and for the scorer in his official rulings. It is this that makes it true to say that
the scorer’s ruling are, though final, not infallible. The same is true in law.”
(HART, p.144, 2012) (Grifos meus)
Os casos fáceis estão encapsulados neste núcleo estável de significado, enquanto
os casos difíceis estão na fronteira dos conceitos e ainda mais além. O espaço entre o
núcleo, a área de penumbra e o absurdo deve ser preenchido pelo poder discricionário
do julgador. Apesar de haver decisões incorretas, há um limite ao qual elas devem obe-
decer, o apontador não pode “errar” indefinidamente sem que haja consequências.
Quando o apontador se excede, não se está mais jogando o jogo original e sim o “jogo-
de-se-adivinhar-as-decisões-do-apontador” (HART, 2012, pp.144-145).
Esta propriedade é apresentada por Hart com as seguintes palavras: “A supreme
tribunal has the last word in saying what the law is and, when it has said it, the state-
ment that the court was 'wrong' has no consequences within the system: no one's rights
or duties are thereby altered.” (HART, 1994, p. 141)
O argumento completo pode ser fragmentado e apresentado da seguinte maneira:
1. Os jogadores são capazes de se entenderem quanto à pontua-
ção do jogo mesmo antes da instituição de um árbitro.
REFERÊNCIAS
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