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2 AS REGRAS ESTÃO AÍ POSTAS PARA SEREM SEGUIDAS OU PARA SEREM

PENSADAS?

“I am sitting with a philosopher in the gar-


den; he says again and again "I know that
that's a tree", pointing to a tree that is near
us. Someone else arrives and hears this, and
I tell him: "This fellow isn't insane. We are
only doing philosophy.””
L. Wittgenstein, On Certainty.

2.1 AS REGRAS, A INCOMPREENSÃO E A AÇÃO

Começo este trabalho com algumas indagações: se recebo uma ordem, quanto
tempo devo dedicar a interpretá-la antes de executá-la? Quanto esforço devo fazer para
saber exatamente o que se espera de mim, quais são as partes essenciais e não-essenciais
de seu cumprimento; se a ordem é justa ou injusta, se é conveniente ou inconveniente?
Devo cumprir uma ordem apenas porque a recebi? Existe alguma diferença entre enten-
der a ordem e aceitá-la? Quem está apto a dar ordens e quem deve segui-las? Em que
momento dou-me por satisfeito e simplesmente faço o que se espera de mim? E se aque-
le que me deu a ordem não se satisfizer com o que apresento como o seu cumprimento?
Quem decide quando uma ordem foi cumprida ou não: quem dá as ordens, ou quem as
recebe? Quando sigo uma ordem, sigo também um conjunto de regras? Infiro as regras a
partir do comportamento humano ou elas estão listadas em um documento escrito? Se
nunca observei ninguém levar certas regras a cabo, como posso saber que as estou se-
guindo à risca? Quando estou pronto para saber se interpretei uma regra corretamente ou
incorretamente? Que tipo de comportamento conta como seguir uma regra, criar ou alte-
rar uma regra? Há uma distinção entre uma regra e os seus critérios de satisfação? É se-
quer essencial responder a todas estas perguntas antes de me lançar à ação, ou posso
deixá-las de lado?

Quando pensamos o direito e os seus meios de criação, interpretação e aplicação,


questões sobre a natureza e o modo de manipulação de normas, regras e ordens são pra-
ticamente inevitáveis. A todo momento, ao lidarmos com a legislação, somos bombarde-
ados com instruções acerca de como devemos nos comportar no mundo, como das nos-
sas ações mundanas decorrem consequências jurídicas, como devemos ler os textos nor-
mativos, como podemos acessar os meios de prestação jurisdicional, etc. Os primeiros
artigos do Código Civil falam sobre a aquisição de personalidade jurídica: quem está
apto a ser sujeito de direito e como diferentes sujeitos possuem diferentes poderes le-
gais. A Constituição organiza o Estado, separa as competências entre os entes federati-
vos, cria órgãos, estabelece princípios de consecução de certos objetivos políticos. O
Código Penal estabelece tipos penais e prescreve sanções para quem neles incorre, in-
clusive com o uso da força e da violência estatal. Uma rápida consulta ao Código de
Processo Civil revela um sem número de procedimentos a serem atendidos pelas partes,
seus representantes legais, por juízes e outros partícipes do processo.

Submeter-se a um sentimento de insegurança é tentador quando há tantos detalhes


a serem levados em consideração e um passo em falso pode causar impactos profundos
na vida das pessoas. E se eu não levar todos os critérios relevantes em consideração?
Até que ponto um princípio deve guiar o meu entendimento de outros princípios e de re-
gras? Se entendo que há uma contradição entre regras, qual delas deve prevalecer? Inse-
gurança e prostração andam juntas: se não consigo me decidir quanto ao caminho a ser
tomado, a bifurcação na estrada, ao contrário de representar a multiplicidade de cami-
nhos, torna-se um beco sem saída. Quando tentamos examinar as regras de perto, pare-
cemos nos perder em meio a elas.

Trabalhando o famoso conflito entre Ulisses e as sereias descrito por Homero na


Odisseia, Torquato Castro Jr. argumenta que a solução utilizada pelo nativo de Ítaca
para lidar com o canto das sereias – amarrar-se ao mastro do navio para escutar o seu
canto sem ser levado às profundezas do oceano – é típica do Herói, não do Filósofo.
Atendendo aos conselhos de Circe, Ulisses amarra-se ao redor do mastro de sua nau e
obstrui o canal auditivo de seus companheiros de viagem como uma forma preventiva
de autocontrole. Ulisses, portanto, toma uma atitude pragmática, não-reflexiva: esquiva-
se de um obstáculo sem indagar-se o porquê de ele ter sido posto, de que é feito, como
foi parar ali, quais são as consequências de não transpô-lo. Não delibera sobre a melodia
ao mesmo tempo bela e fatal das sereias. A mente de Ulisses está livre do feitiço da con-
templação. Para o herói grego, basta a certeza de impor-se contra o mundo através de
suas ações.

Tal sorte não tem o filósofo. Continuando o tema da dualidade ação/reflexão e an-
corado no Visconde Medardo de Terralba, protagonista de O Visconde Partido ao Meio
do romancista italiano Italo Calvino1, Torquato Castro Jr. cria então a metáfora do Filó-
sofo-Partido-AoMeio. Em um momento inicial, o Filósofo contenta-se em fazer as suas
análises com a certeza da compreensão em algum ponto futuro. Depois, talvez frustrado
pelas dificuldades crescentes, passa a considerar a sua própria atitude em relação ao
mundo como objeto de análise e imagina a possibilidade de estar enleando-se em suas
divagações. Só então passa a duvidar da dúvida ela mesma.

Contudo, duvidar da dúvida não é, por si só, garantia de liberdade (CASTRO JR.,
2009, p.3).

Para explicar a embasbacação do Filósofo diante de certas questões, Castro ofere-


ce um símile inspirado: “algumas perguntas representam verdadeiras armadilhas: são
como plantas carnívoras, cujas flores encantam para devorar.” (CASTRO JR., 2009,
p.2). Em outro parágrafo, compara a atitude filosófica a uma prisão: “Enquanto ainda
sequer suspeita de sua prisão, o Filósofo permanece, atraído como uma mariposa pela
luz da lâmpada, crendo voar para a lua, mas não escapando do pequeno círculo vicioso
de sua própria reflexão. (CASTRO JR., 2009, p.3). A imagem pintada é de constrição,
aprisionamento, prostração e surpresa involuntária; o Filósofo enxerga problemas onde
outras pessoas só veem palavras, objetos ou situações corriqueiras. É o prodígio concre-
tizado: o Filósofo incorpora a dúvida da dúvida ao seu pensamento e, ao fazê-lo, parte-
se em dois. Uma está livre do aprisionamento das perguntas, enquanto a outra permane-
ce cativa delas (CASTRO JR., 2009, p.5).

A saída para uma Filosofia-partida-ao-meio, estaria, nas palavras do autor, em


uma “filosofia do artifício” ou numa “filosofia do engenho e arte” no lugar de uma “filo-
sofia terapêutica à moda wittgensteiniana” (CASTRO JR., 2009, p. 6).

Diante da sugestão proposta, faço um alerta: é preciso tomar cuidado com o artifí-
cio. Não é exagerado imaginar que, em seu íntimo, Ulisses tenha obtido mais satisfação
em ter ludibriado as sereias através de sua astúcia do que em ter escutado o seu canto.
Afinal de contas – passando de um texto clássico para um texto moderno – quando o pí-
caro João Grilo, um dos personagens principais de o Auto da Compadecida, tramava as
suas presepadas contra o padeiro, o padre, o bispo e o fazendeiro de Taperoá, fazia-o

1 O livro é parte de uma trilogia, a qual inclui também os romances “O Cavaleiro Inexistente” e “O Barão
nas Árvores”.
apenas para matar a fome ou também por esporte, por diversão? O amor pelo artifício
pode nos levar a esquecer o que nos levou a ele em primeiro lugar.

De todo modo, a metáfora da inatividade causada pelo pensamento reflexivo é útil


para o tema deste trabalho e foi retratada, talvez melhor do que qualquer texto filosófico
ou técnico possa fazê-lo, nos romances e na poesia; isto é, na literatura. Cabe aqui uma
pequena digressão para analisarmos alguns excertos extraídos de duas obras diferentes.

Fernando Pessoa, através de Álvaro de Campos, seu heterônimo conhecido pelo


sensacionismo e um certo niilismo na visão de mundo, escreveu um dos poemas mais
belos da língua portuguesa, “Tabacaria”. Nele, o Eu-lírico olha da janela do próprio
quarto para a rua e nota que “em todos os manicómios há doidos malucos com tantas
certezas!” e pergunta-se: “Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos
certo?” (PESSOA, 1996, p.52). Depois, literalmente abrindo parênteses em meio ao po-
ema, compara a sua condição de hesitação perpétua com a verdade com que uma meni-
na come doces, deixando transparecer a sua inveja em relação à possibilidade de gulodi-
ce irrefletida:
“(Come chocolates, peque-
na Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida)”
(PESSOA, 1996, p.54)(Grifos meus)
Pensar é “deitar tudo para o chão”, é quedar-se incapaz de comer o chocolate mes-
mo tendo-lhe aberto o embrulho.
Mas talvez tenha sido Dostoiévski quem melhor representou o dilema, e suas con-
sequências existenciais, em que se encontra o Filósofo-partido-ao-meio. Em um roman-
ce curtíssimo, narrado em primeira pessoa e publicado em 1866, Memórias do Subsolo,
o autor russo conta a história de um ex-funcionário público de quarenta anos, que se
apresenta como sendo um “homem doente”, um “homem mau” e um “homem desagra-
dável”. Este narrador, cujo nome jamais é revelado mas ficou conhecido pela alcunha de
“homem do subsolo”, conta que foi um funcionário público maldoso e grosseiro, e que
obtinha prazer em praticar condutas maléficas, só para depois se desmentir e afirmar que
jamais fora maldoso ou grosseiro. Aliás, diz o homem do subsolo que não conseguiu
chegar a nada, sem poder tornar-se mau, bom, canalha, honrado, herói ou inseto (DOS-
TOIÉVSKI, 2000, pp.15-17).
É em meio a lampejos de ódio gratuito como estes que o narrador descreve um
tipo social de seu tempo e de sua sociedade, o homem de ação, perguntando-se o seguin-
te: “Como é que faz, por exemplo, aquele que sabe vingar-se e, de modo geral, defen-
der-se?” (DOSTOIÉVSKI, 2000, p.21).

A resposta dada pelo próprio homem do subsolo merece ser transcrita:


“Quando o sentimento de vingança, suponhamos, se apodera dele, nada mais
resta em seu espírito, a não ser este sentimento. Um cavalheiro desse tipo
atira-se diretamente ao objetivo, como um touro enfurecido, de chifres abai-
xados, e somente um muro pode detê-lo. (Aliás, diante de um muro tais cava-
lheiros, isto é, os homens diretos e de ação, cedem terreno com sinceridade.
O muro para eles não é causa de desvio, como, por exemplo, para nós, ho-
mens de pensamento, e que, por conseguinte, nada fazemos; […] Não, eles
cedem terreno com toda a sinceridade. O muro tem para eles alguma coisa
que acalma; é algo que, do ponto de vista moral, encerra uma solução – algo
definitivo e, talvez, até místico).
(DOSTOIÉVSKI, 2000, pp.21-22)

Contraposto ao homem de ação está, naturalmente, o homem de pensamento, figu-


rando na narrativa como um “camundongo de consciência hipertrofiada”. Este camun-
dongo, quando se sente ofendido – atitude bastante comum em sua rotina, já que ele “se
ofende com facilidade, como um corcunda ou anão” (DOSTOIÉVSKI, 2000, p.20) –,
acumula rancor em proporção maior ao do homem de ação, e, ao contrário deste, não
considera a “sua vingança um simples ato de justiça” (DOSTOIÉVSKI, 2000, p.23), o
que o leva às raias do desespero:

“O infeliz camundongo já conseguiu acumular, em torno de si, além da torpe-


za inicial, uma infinidade de outras torpezas, na forma de interrogações e
dúvidas; acrescentou à primeira interrogação tantas outras não resolvidas que,
forçosamente, se acumula ao redor dele certo líquido repugnante e fatídico,
certa lama fétida, que consiste nas suas dúvidas, inquietações e, finalmente,
nos escarros – que caem sobre ele em profusão – dos homens de ação agrupa-
dos solenemente ao redor, na pessoa de juízes e ditadores, que riem dele a
mais não poder, com toda a capacidade das suas goelas sadias. Naturalmente,
resta-lhe sacudir a patinha em relação a tudo e, com um sorriso de fictício
desprezo, no qual ele mesmo não acredita, esgueirar-se vergonhosamente
para a sua fendazinha. Ali, no seu ignóbil e fétido subsolo, o nosso camun -
dongo, ofendido, machucado, coberto de zombarias, imerge logo num rancor
frígido, envenenado e, sobretudo, sempiterno.” (DOSTOIÉVSKI, 2000, p.23)

A diferença entre o homem de ação e o homem de pensamento está apresentada


simbolicamente através de suas diferentes atitudes em relação a um muro. Mas o que
significa este muro? A resposta é simples: “Bem, naturalmente, as leis da natureza, as
conclusões das ciências naturais, a matemática”. Se fica demonstrado, por meio de
“combinações lógicas inevitáveis”, que “descendeis do macaco” ou que “uma gotícula
de vossa própria gordura vos deve ser mais cara do que cem mil dos vossos semelhan-
tes”, não se deve contrariar este resultado nem tentar refutá-los, “porque dois e dois são
quatro”. Esta é, de todo modo, a postura do homem de ação. O homem de pensamento,
diametralmente oposto a este, consequentemente, não vê sentido em baixar a cabeça di-
ante do muro e questiona: “[…] que tenho eu a ver com as leis da natureza e com a arit -
mética, se, por algum motivo, não me agradam essas leis e o dois e dois são quatro?”. O
questionamento não se dirige, neste ponto, sequer à existência ou não de um muro, de
um limite objetivo ou não, trata-se mesmo até de uma questão de conveniência: “Está
claro que não romperei esse muro com a testa, se realmente não tiver forças para fazê-lo,
mas não me conformarei com ele unicamente pelo fato de ter pela frente um muro de
pedra e de terem sido insuficientes as minhas forças” (DOSTOIÉVSKI, 2000, p.25).

Podemos falar agora, no lugar de um “Filósofo-partido-ao-meio”, de um “juris-


ta do subsolo”. Este subsolo está quase sempre localizado ao fim dos degraus poeirentos
pertencentes a escadas esquecidas. Enquanto dificilmente se encontram filósofos da ma-
temática, da física e da ciência em faculdades de matemática, de física ou de química e
biologia, as faculdades de direito e os seus homens de ação parecem achar oportuno
manter um jurista do subsolo sempre ao seu alcance, ainda que não tenham em mente
fazer-lhe um visita nem tão cedo.

Não me estendi nestes exemplos à toa. Eles não só constituem uma plataforma ro-
busta para continuarmos a discussão sobre o seguimento de regras, como proporcionam
uma chave de leitura crucial para o entendimento da filosofia tardia de Wittgenstein. A
proposta sequer é original. Em seu “Manifesto do Surrealismo Jurídico” o argentino
Luis Alberto Warat antecipou este tipo de junção entre ficção e filosofia, com o alerta:
“Juntar o direito à poesia já é uma provocação surrealista” (WARAT, 1988, p.13). Deste
modo, escolhi utilizar livremente textos literários ao lado de textos científicos e técnicos
por algumas razões, reveladas a seguir.

Em primeiro lugar, por influência do orientador deste trabalho, Torquato Castro


Jr., pois em sua produção teórica estão sempre presentes conexões com artefatos ficcio-
nais, dos quais a metáfora do Filósofo-partido-ao-meio e a alusão à atitude heroica de
Ulisses são exemplos. Por outro, parte justamente de uma reflexão de Wittgenstein acer-
ca de seu próprio trabalho. Em uma de suas anotações compiladas e publicadas sob o
nome de ‘Culture & Value’, Wittgenstein afirma: “I think I summed up my attitude to
philosophy when I said: philosophy ought really to be written only as a poetic composi-
tion” (CV, p.24e). Esta atitude teve reflexos amplos e perpetuou-se em autores como Ri-
chard Rorty e sua “filosofia sem espelhos”. Distinguindo entre dois tipos de filosofia,
uma “sistemática”, comparável à de Immanuel Kant, e uma “edificante” – relacionada a
Wittgenstein, Gadamer, Heidegger e Nietzsche –, Rorty afirma que esta última pode
consistir “na atividade poética de materializar novos objetivos, novas palavras, novas
disciplinas” em que a anormalidade do discurso não deve ser evitada, mas é até mesmo
um subproduto necessário à sua consecução (RORTY, 1979, p.360).

Filosofia edificante não se confunde com “construtiva”, no sentido de um progra-


ma de pesquisa em que se intenta, metaforicamente, empilhar tijolos sobre tijolos para
criar um edifício de conhecimento capaz de solucionar certos problemas filosóficos e
não meramente dissolvê-los. Para um tratamento deste tipo à pergunta “O que é
direito?” ver (OLIVEIRA, 2016).

O pragmático norte-americano toma a sério esta fungibilidade entre filosofia e po-


esia (dir-se-ia, antes, literatura) e, no livro “Contingency, irony, and solidarity”, passeia
com tranquilidade por entre Donald Davidson, George Orwell, Sigmund Freud, Vladi-
mir Nabokov e Nietzsche. Estou de acordo com esta visão, ao menos no que concerne o
escopo e o lema de trabalho desta dissertação. Negá-la seria entrar em conflito comigo
mesmo. Pois se desejo demonstrar que a postura da filosofia do direito e da dogmática
jurídica em relação às regras, normas, aplicações e interpretações devem ser vistas como
uma prática, descartando-se visões representacionais do significado, devo eu também
supor que estou inserido em uma prática na qual textos de ambos os mundos dialogam
entre si. Tomo as palavras de William de Baskerville, o monge-detetive do romance O
Nome da Rosa: “Frequentemente os livros falam de outros livros” (ECO, 1986, p.330).
E, às vezes, para compreendermos um livro devemos ler outros tantos.

Pois então, à luz do que foi dito, retorno à pergunta inicial: as regras estão postas
para serem seguidas ou para serem pensadas? A resposta, como é comum na filosofia,
vem qualificada por um condicional e, neste caso, depende da localização geográfica do
jurista que o lê; se está no subsolo, na superfície ou se consegue transitar entre os dois
mundos, deixando as vestes talares na chapelaria ao pé da escada e vestindo-as de novo
ao deixar o subsolo.
2.2 DUAS DIFICULDADES PRELIMINARES DA APLICAÇÃO DE WITTGENS-
TEIN Á FILOSOFIA DO DIREITO

O vocabulário criado por Wittgenstein nas Investigações Filosóficas foi apresenta-


do para lidar com certos problemas de filosofia da linguagem, filosofia da mente, filoso-
fia da matemática e da lógica, estudados especialmente sob o enfoque da chamada esco-
la analítica. Ele lidou com questões aparentemente alheias às dos juristas: as diferenças
entre explicação ostensiva e definição ostensiva, a natureza dos nomes, o status filosófi-
co das sensações privadas como o sentimento de dor física, a possibilidade de uma lin-
guagem privada, a gramática das palavras (em sentido muito próprio e exótico), o pro-
blema da existência de um mundo externo; as conexões entre a linguagem, a proposição
e a realidade, entre outras questões com que os juristas dificilmente depararão em suas
carreiras profissionais ou acadêmicas.

Wittgenstein, como é de se esperar dada a sua formação como engenheiro e o seu


envolvimento com os fundamentos da matemática e da lógica, jamais se referiu ao direi-
to em seus escritos, nunca se preocupou com questões caras à filosofia do direito, e as
suas menções a tribunais, juízes, sentenças, testemunhas e decisões são esparsas, infor-
mais e mais metafóricas do que explicativas, feitas apenas para ilustrar e caracterizar
certas perguntas teóricas. Diferentemente de filósofos cujos trabalhos abrangem áreas as
mais diversas – pense em Immanuel Kant, cujas contribuições para a epistemologia, ló-
gica e metafilosofia são tão lembradas quanto as suas proposições sobre ética, liberalis-
mo e teoria política; ou mesmo o sistema de Georg Friedrich Wilhelm Hegel, cujos ali-
cerces têm ramificações as mais variadas e serviu de fundamento até mesmo para o mar-
xismo. Wittgenstein, por outro lado, jamais falou sequer de política, dos fundamentos
do Estado, dos efeitos dos meios de produção sobre a cultura ou sobre qualquer outro
tema intuitivamente caro ao direito.

Este tipo de ausência temática na obra de um autor apresenta um claro obstáculo a


quem deseje utilizá-lo para responder certas perguntas, e a tentativa de superar este obs-
táculo pode levar o pesquisador a cometer erros grosseiros em sua tentativa de fundir
dois mundos distintos. O historiador Quentin Skinner, em um artigo influente sobre a
pesquisa em história das ideias, adverte para a existência de certos mitos metodológicos
em que se pode incorrer nesta situação:

“The most persistent mythology is generated when the historian is set by the
expectation that each classic writer (in the history, say, of ethical or political
ideas) will be found to enunciate some doctrine on each of the topics re-
garded as constitutive of his subject. It is a dangerously short step from under
the influence (however unconsciously) of such a paradigm to “finding” a
given author’s doctrines on all of the mandatory themes. The (very frequent)
result is a type of discussion which might be labelled the mythology of doc-
trines.” (SKINNER, 1969, p 7)
A mitologia das doutrinas pode se manifestar em diversas facetas. A primeira de-
las é a de se postular certo autor, partindo-se apenas de algumas de suas observações es-
parsas e incidentais, como sendo o formulador original ou o “pai” de uma “doutrina”
qualquer. (SKINNER, 1969, p. 8) Um dos perigos mais proeminentes quando se proce-
de desta maneira é o do anacronismo: dificilmente faria sentido, por exemplo, atribuir a
Aristóteles a criação da doutrina da separação dos três poderes, ainda que o filósofo gre-
go tenha falado sobre o papel dos juízes, do soberano, da ágora e de outros órgãos, fun-
cionários e institutos de sua época e lugar. Tampouco faz sentido encontrar uma “lacu-
na” na teoria de algum filósofo clássico quando o tema supostamente inexplorado se-
quer existia na época em que o pensador viveu: seria o caso de recriminar Hobbes por
não falar sobre teoria crítica, por exemplos. Apesar de estes serem exemplos de erros
crassos, improváveis de serem encontrados no trabalho de pesquisadores sérios, a mito-
logia das doutrinas pode ocorrer em situações mais sutis. É por isto que Skinner alerta
para a possibilidade de se atribuir a “descoberta” de uma suposta posição teórica tomada
por um certo autor baseado tão somente no caso fortuito de uma similaridade terminoló-
gica (SKINNER, 1969, pp. 7-8).
A chance de uma confusão surgir em razão da existência de uma semelhança ter-
minológica é particularmente perigosa no contexto desta dissertação. Um dos conceitos
wittgensteinianos mais lembrados, o de “seguir-uma-regra”, cujo lugar central ficará
claro ao longo deste trabalho, não foi pensado para responder a perguntas tipicamente li-
gadas às da teoria das regras, ou normas jurídicas, devendo a homografia dos termos ser
tratada com o máximo de cuidado. Neste sentido, Brian Bix afirma que a discussão so-
bre seguir-uma-regra refere-se a um fenômeno mais amplo e mais básico do ponto de
vista teórico do que aquele a que os juristas se referem quando falam sobre as regras ju-
rídicas, pois Wittgenstein teria utilizado o termo “regra” para se referir a todos os cons-
trangimentos normativos aplicáveis a uma variedade indefinida de casos em que pode-
mos falar de ações “corretas” ou “incorretas” (BIX, 1993, p. 36). Em um argumento se-
melhante, Hershovitz esclarece que as observações de Wittgenstein são dirigidas ao
“funcionamento da linguagem e da matemática” e que, mesmo que as observações de
Wittgenstein sobre regras estejam corretas neste escopo limitado, ele não estaria neces-
sariamente correto sobre as regras em todos os casos (HERSHOVITZ, 2002, p. 635).
Apesar de concordar com os autores citados acima quanto à distinção entre o con-
ceito de “regra” utilizado por Wittgenstein e o conceito de “regra” frequentemente alu-
dido e discutido por filósofos do direito, adianto que discordo de ambos quanto ao esco-
po que atribuem ao conceito de regra de Wittgenstein; a natureza desta discordância fi-
cará clara mais adiante, quando for feita uma explicação mais pormenorizada dos con-
ceitos básicos descritos nas Investigações Filosóficas, momento em que também defen-
derei a importância destes conceitos à pesquisa em filosofia do direito.

Há ainda mais confusões terminológicas a serem esclarecidas pois existe uma


oposição estabelecida, especialmente por influência dos trabalhos de Ronald Dworkin e
Robert Alexy, entre regras e princípios.

Para Dworkin, o positivismo defendido por H. L. A. Hart e outros teóricos da


mesma linha seria o modelo de um “sistema de regras” e também um modelo para um
“sistema de regras” (DWORKIN, 1977, p. 22). Este modelo, focado exclusivamente nas
regras – pois para os positivistas como Hart há casos em que existe uma demarcação
clara entre direito e moral, demarcação esta indicada pela existência de regras – seria in-
completo, pois os princípios teriam ficado de fora da análise. Nas palavras de Dworkin:

“The difference between legal principles and legal rules is a logical distincti-
on. Both sets of standards point to particular decisions about legal obligation
in particular circumstances, but they differ in the character of the direction
they give. Rules are applicable in an all-or-nothing fashion. If the facts of a
rule stipulates are given, then either the rule is valid, in which case the
answer it supplies must be accepted, or it is not, in which case it contributes
nothing to the decision.” (DWORKIN, 1977, p. 24)
Se é possível dizer que uma regra foi seguida ou não foi seguida, o mesmo não va-
leria para os princípios. O código binário de “foi seguido” ou “não foi seguido” seria lo-
gicamente incompatível com o funcionamento dos princípios, pois estes “não determi-
nam consequências jurídicas que decorrem automaticamente caso certas condições
preestabelecidas não sejam observadas” (DWORKIN, 1977, p. 25). Os princípios não
estabelecem, por assim dizer, um substrato fático em que se aplicam, nem mesmo con-
sequências claras. Os princípios teriam uma “dimensão de peso”, dimensão esta ausente
no caso das regras (DWORKIN, 1977, pp. 26-27). É por isto que, se houver uma colisão
de regras, uma delas necessariamente deveria ser considerada inválida, enquanto em
uma colisão de princípios faria sentido perguntar-se qual deles tem mais peso para a si-
tuação, e nenhum dos princípios envolvidos neste conflito teria que ser abandonado
(DWORKIN, 1977, p. 27).

Robert Alexy trilha um caminho semelhante ao de Dworkin e finda por nos alçar a
outro nó terminológico. Enquanto os pensadores brasileiros de teoria do direito, assim
como os alemães e os de outros países não pertencentes à tradição do common law, pre-
ferem os termos ‘norma’ e ‘norma jurídica’, os pensadores anglo-saxões costumam falar
em ‘legal rules’ num sentido mais amplo, sem se comprometerem com a distinção forte
entre regras e princípios feita por Dworkin. Em seu livro ‘Teoria dos Direitos Funda-
mentais’, Alexy vai mais a fundo na distinção entre regras e princípios, inclusive postu-
lando o conceito de norma como sendo gênero, cabendo aos de regra e princípio o sta-
tus de espécie, pois ambos “dizem o que deve ser” e podem ser descritos através de ope-
radores deônticos (ALEXY, 2008, pp. 87-91). Ele defende que o ponto decisivo na dis-
tinção está no fato de que princípios seriam mandados de otimização, ou “normas que
ordenam que algo seja realizado na maior medida do possível dentro das possibilidades
jurídicas e fáticas existentes”; e as regras seriam “normas que são sempre satisfeitas ou
não satisfeitas” (ALEXY, 2008, p. 90).

Apesar de a distinção descrita acima ter alcançado um alto grau de disseminação


entre a comunidade jurídica, não pretendo utilizar o termo ‘regra’ neste sentido altamen-
te restrito por um arcabouço teórico
Estabeleço, então, uma convenção terminológica. Os termos ‘norma’, ‘norma ju-
rídica’ e ‘regra jurídica’ serão tratados como sendo essencialmente sinônimos a menos
que o contrário esteja expressamente indicado ou o contexto em que eles aparecerem for
suficientemente indicativo de um significado alternativo. Os termos ‘normativo’, ‘nor-
matividade’ e correlatos não seguirão esta convenção. Afirmar que “certo comporta-
mento é normativo” não quer dizer que este comportamento esteja necessariamente en-
volvido na produção de normas, normas jurídicas ou regras jurídicas no sentido descrito
no início deste parágrafo. Descrever as instruções e ensinamentos de um professor para
um aluno como sendo “normativos” seria, portanto, um uso válido do termo. A palavra
‘regra’, por si só, não será reservada para um uso específico ou pré-definido. Ela pode
aparecer tanto como um uso ordinário – fazendo sentido falar-se das regras de um jogo,
regras de etiqueta, regras gramaticais, regras de convivência, etc. – mas também em sen-
tido mais peculiar, como quando Wittgenstein fala em “regra segundo a qual ele proce-
de”, ou “seguir-uma-regra é uma prática”.
O segundo problema em se trazer Wittgenstein para uma discussão sobre a deter-
minação das regras jurídicas está intimamente relacionado ao primeiro e consiste no es-
tilo aforístico, fragmentado e anti-sistemático dos escritos legados pelo autor. No Trac-
tatus Logico-Philosophicus (TLP), seu primeiro e único livro publicado em vida, não há
argumentos, discussões ou justificativas. No prefácio, Wittgenstein faz uma advertência
inusitada: “[…] não indico fontes, porque me é indiferente que alguém mais já tenha,
antes de mim, pensado o que pensei” (WITTGENSTEIN, 2008, p. 131). O TLP foi
apresentado, defendido e aceito como tese de doutoramento de Wittgenstein na Univer-
sidade de Cambridge em 1929 (MONK, 1991, p. 271). Contudo, basta folheá-lo por al-
guns segundos para perceber que ele em nada se assemelha a uma tese ou dissertação
acadêmica comum, como esta mesma, em que se deve aderir a certas convenções arbi-
trárias, burocráticas e estilísticas em relação a capa, sumário, título, nome dos capítulos,
modo de apresentação do conteúdo, etc. Sentenças declarativas são feitas e enumeradas
em um sistema numérico e hierárquico, sendo sete as proposições mais básicas, às quais
outras se submetem e extraem importância e sentido. Deste modo, talvez não seja sur-
preendente que Wittgenstein tenha afirmado do TLP que “este livro talvez seja entendi-
do apenas por quem já tenha alguma vez pensado por si próprio o que nele vem expres-
so” (WITTGENSTEIN, 2008, p. 131).

Mesmo em sua fase tardia, cristalizada nas Investigações Filosóficas (IF) e marca-
da por uma atitude menos austera e anti-essencialista, as dificuldades de compreensão
não se esvaem. Abandonada a estética impessoal e categórica (dir-se-ia até mesmo pom-
posa) do Tractatus, Wittgenstein abraça o uso de metáforas, símiles, figuras de lingua-
gem, diálogos imaginados, diagramas e outros artifícios talvez mais ligados às artes do
que ao que se espera de uma trabalho clássico de filosofia. P. M. S. Hacker compara,
por exemplo, o fascínio e lugar de dominância exercido por Wittgenstein no cenário da
filosofia analítica do século XX ao papel central de Picasso no mundo das artes plásticas
durante o mesmo período (HACKER, 2001, p. 1). Esta ligação entre teoria e arte não
passou batido sequer para o próprio Wittgenstein. Pensando sobre o seu processo de
pensamento e escrita, registrado em uma de suas anotações compiladas e publicadas sob
o nome de ‘Culture & Value’, ele diz o seguinte: “I think I summed up my attitude to
philosophy when I said: philosophy ought really to be written only as a poetic composi-
tion” (CV, p.24e). Salientando o seu modo errático de pensar e já próximo ao fim de sua
vida, comparou a sua atividade filosófica a uma senhora velha e esquecida que se esque-
ce constantemente de onde deixou as chaves e os óculos, e precisa procurá-los o tempo
todo (OC, 532).

O estilo literário de Wittgenstein tem sido causa tanto de aplausos quanto de sus-
peitas e Stanley Cavell tenta aclarar o porquê de os métodos tradicionais da filosofia bri-
tânica, o ensaio, e da filosofia alemã, a dissertação, não forneciam o substrato necessá-
rio para dar suporte a duas características das Investigações Filosóficas: o método do
autoconhecimento e o ineditismo do tipo de crítica empreendido (CAVELL, 1976,
p.70).

Apesar disto, há na história da filosofia outro pensador cujos escritos são erráti-
cos, poéticos e desprovidos de qualquer qualidade sistemática: Friedrich Nietzsche.
Após finalizar e publicar o seu primeiro livro, ‘O Nascimento da Tragédia’, Nietzsche
foi severamente criticado por seus pares acadêmicos da área de filologia por não ser su-
ficientemente rigoroso em seus argumentos e nas descrições histórias da Grécia Antiga
(Burnham & Jesinghausen, 2010, pp.154-155). O que faltava em rigor metodológico, é
certo, sobrava em vigor e impacto. Os demais livros de Nietzsche, talvez com a única
exceção de ‘A Genealogia da Moral’, conseguem ser ainda mais dispersos e desfocados
do que o seu trabalho inaugural. Em ‘A Gaia Ciência’, a primeira seção é constituída
exclusivamente por poemas escritos em alemão. Já em ‘Assim Falou Zaratustra’ há uma
narrativa em prosa, contando-se a história, perambulações e encontros do protagonista,
Zaratustra, escrita numa espécie de imitação de textos religiosos e sagrados.
3 Os conceitos da filosofia tardia de Wittgenstein e sua relação com a filosofia do
direito

3.1 O abandono da concepção referencialista do significado e os conceitos de “jogos


de linguagem”, “significado como uso” e “semelhanças de família”

Wittgenstein, no prefácio das Investigações Filosóficas, compara a sua coleção de


escritos a uma série de esboços preliminares de paisagens, rabiscados com rapidez ao
longo de uma jornada. Ele acreditou um dia ser capaz de dar mais coerência ao livro,
mas logo percebeu que as suas tentativas eram inúteis e aceitou que as suas observações
tomassem o seu caminho natural, sem serem forçadas a conformar-se num encadeamen-
to artificial. Além disso, deixou registrado que desejava publicar o seu trabalho antigo, o
Tractatus, em conjunto com as Investigações. Isto se deveu ao fato de ele ter reconheci-
do “erros graves” no TLP, graças às suas conversas com o matemático inglês Frank
Ramsey, morto precocemente, e com o economista italiano Piero Sraffa (WITTGENS-
TEIN, 2009, p.viii).

Não é nenhum exagero afirmar que Wittgenstein realizou duas revoluções filo-
sóficas através de seu trabalho e, dada tanto a sua admissão de erro quanto às ideias pu-
blicadas no TLP quanto o seu diálogo consigo mesmo ao longo das IF (sempre crítico
ao “autor do Tractatus”), é natural que se pense em uma progressão. Deixando para trás
as ideias da juventude e empreendendo um esforço concentrado, chega-se a um territó-
rio do pensamento mais maduro. A epígrafe das Investigações, uma frase retirada de
uma peça de teatro, talvez sirva como um aviso de cautela: "Überhaupt hat der Fortsch-
ritt das an sich, dass er viel grösser ausschaut als er wirklich ist” (traduzida em portu-
guês como “De um modo geral, o progresso em si parece ser muito maior do que real-
mente é”; e, em inglês, como “It is in the nature of every advance, that it appears much
greater than it actually is.”)
As Investigações se abrem com uma citação das Confissões de Santo Agostinho,
em latim, na qual o santo católico fala sobre o modo universal de apreensão do signifi-
cado. Por sua importância e poder exemplificativo, reproduzo as palavras integralmente:

“When they (my elders) named some object, and accordingly moved towards
something, I saw this and I grasped that the thing was called by the sound
they uttered when they meant to point it out. Their intention was shewn by
their bodily movements, as it were the natural language of all peoples: the
expression of the face, the play of the eyes, the movement of other parts of the
body, and the tone of voice which expresses our state of mind in seeking, ha-
ving, rejecting, or avoiding something. Thus, as I heard words repeatedly
used in their proper places in various sentences, I gradually learnt to unders-
tand what objects they signified; and after I had trained my mouth to form
these signs, I used them to express my own desires.” (IF, 1)

Em seguida, Wittgenstein escreve: “These words, it seems to me, give us a parti-


cular picture of the essence of human language” (IF, 1). Observe que a palavra utilizada
é picture (em alemão, Bild), ou, figura. O termo escolhido aqui é importante. Perceba
que não se trata de “uma teoria”, não “uma explicação”, não “uma descrição”: uma figu-
ra. É óbvio que Santo Agostinho não está empreendendo uma demonstração rigorosa de
como a linguagem funciona, está apenas fornecendo uma impressão. Continuando o ra-
ciocínio, Wittgenstein explica que figura é esta:

“It is this: the individual words in language name objects — sentences are
combinations of such names. — In this picture of language we find the roots
of the following idea: Every word has a meaning. This meaning is correlated
with the word. It is the object for which the word stands. (IF, 1)”
Com efeito, esta concepção é comum a toda uma tradição filosófica em matéria de
linguagem. As palavras representam algo, o significado. O significado das palavras con-
corda ou discorda da realidade. As palavras são verdadeiras caso correspondam à reali-
dade corretamente e falsas caso contrário. Representar, portanto, forma a essência da
função da linguagem. A ideia do significado como representação está presente em toda
a filosofia ocidental, a começar por Platão. A famosa alegoria da caverna é um exemplo
claro dela: enquanto temos apenas acesso a sombras, formas imperfeitas, existem certas
essências universais e é trabalho do filósofo ser capaz de alcançá-las. É por isto que os
diálogos socráticos resultam sempre infrutíferos para o interlocutor que fornece uma de-
finição de justiça, por exemplo. Através da maiêutica, o questionamento incessante,
Sócrates é sempre capaz de descobrir um contraexemplo a qualquer definição que seja.
Nossas tentativas de exprimir a universalidade dos conceitos, sua essência, jamais se en-
caixam em todos os casos que somos capazes de imaginar.
A ideia de significado como representação permeia todo o Tractatus. Subordina-
das à proposição-mestra 2 – “What is the case—a fact—is the existence of states of af-
fairs” (TLP, 2), estão afirmações como “We picture facts to ourselves (TLP, 2.1), “A
picture is a model of reality” (TLP, 2.12), “In a picture objects have the elements of the
picture corresponding to them (TLP, 2.13), “What a picture must have in common with
reality, in order to be able to depict it — correctly or incorrectly — in the way it does,
is its pictorial form” (TLP, 2.17). Não desejo entrar nos pormenores do Tractatus aqui,
apenas ressaltar o quão sério Wittgenstein levou a ideia de significado como representa-
ção no início de sua carreira, pois é justamente contra ela que ele se insurgirá pelo resto
do livro e de sua obra.

O filósofo israelense Avner Baz define três características básicas para que uma
posição filosófica possa ser chamada de referencialista, figurativa, ou representaciona-
lista. Em primeiro lugar, os referencialistas acreditam que para praticamente cada pala-
vra existente há uma entidade chamada de “significado” que pode ser teoricamente se-
parada de seu uso corrente ou ordinário. (BAZ, 2012, pp.13-16) Além disso, cada sen-
tença, ou frase, também possui uma entidade chamada de significado, que pode ser ana-
lisada independentemente do contexto em que possa ser utilizada. O significado da frase
é uma função do significado intrínseco das palavras que a constituem, permitindo a for-
mulação de frases inéditas com significados apreensíveis.

Há mais detalhes acerca da visão agostiniana da linguagem. Para Wittgenstein, a


ideia de que a linguagem possa ser utilizada para fazer representações não deve ser des-
cartada. É por isto que a figura dada por Santo Agostinho não está propriamente errada,
ela está incompleta. A concepção figurativa encontra guarida numa ideia primitiva de
como a linguagem funciona, mas ela também pode ser vista como uma ideia de uma lin-
guagem mais primitiva – não há nenhuma conotação negativa nesta palavra – do que
aquela com que estamos acostumados (IF, 2). Trata-se de uma visão anterior a qualquer
tentativa de teorização do tema, e é nela que se encontra a raiz dos problemas filosóficos
(BAKER & HACKER, 2005, p. 48). O primeiro jogo de linguagem (JdL1) inventado
por Wittgenstein é apresentado também na primeira seção:

Now think of the following use of language: I send someone shopping. I give
him a slip marked "five red apples". He takes the slip to the shopkeeper, who
opens the drawer marked "apples"; then he looks up the word "red" in a table
and finds a colour sample opposite it; then he says the series of cardinal num-
bers—I assume that he knows them by heart—up to the word "five" and for
each number he takes an apple of the same colour as the sample out of the
drawer.——It is in this and similar ways that one operates with words.
——"But how does he know where and how he is to look up the word 'red'
and what he is to do with the word 'five'?"——Well, I assume that he acts as
I have described. Explanations come to an end somewhere.—But what is the
meaning of the word "five"?—No such thing was in question here, only how
the word "five" is used. (IF, 1) (Grifos meus)

Podemos extrair algumas conclusões preliminares a partir do JdL1. Quando o lo-


jista depara com a frase “cinco maçãs vermelhas” ele realiza três operações distintas
para dar ao cliente o que ele deseja. Para a palavra “vermelho”, utiliza uma tabela de co-
res; para a palavra “maçãs”, uma gaveta com o signo “maçãs”; para a palavra “cinco”,
recita a série dos números cardinais tomando o cuidado de retirar de dentro da gaveta
apenas um objeto para cada número recitado. A ideia é mostrar que para diferentes pala-
vras há diferentes ações realizadas para determiná-las e a questão do significado, além
das operações, é considerada irrelevante (BAKER & HACKER, 2005, p. 51), pois “as
explicações encontram um fim em algum lugar”.

Esta afirmação sobre o fim das explicações permanece praticamente intocada até o
fim da vida de Wittgenstein e é repetida em outros livros. Por exemplo, em Sobre a
Certeza, ele se pergunta: “If someone is taught to calculate, is he also taught that he
can rely on a calculation of his teacher's? But these explanations must after all someti-
me come to an end” (SC, 34)” e “What counts as its test? […] As if giving grounds did
not come to and end sometime” (SC, 110). Ela também servirá de trampolim, mais tar-
de, para afastar a ideia de interpretação como um suporte necessário para que alguém
possa seguir uma regra e será utilizada pelos positivistas como prova de que a filosofia
de Wittgenstein afasta a possibilidade de indeterminação radical das regras.

Se as explicações sobre o uso de certas palavras e expressões simplesmente “che-


gam a um fim”, quer dizer que nenhum conceito pode ser plenamente explicado? Esta é
uma objeção natural à proposta de Wittgenstein e ainda está atrelada a uma visão figura-
tiva da linguagem. É como se, para podermos manipular as palavras, elas precisassem
ter sido circunscritas detalhadamente de antemão. Mas isto não acontece no mundo real.
Pense em como um aluno matriculado num curso de direito aprende o conceito de “ca-
pacidade” no direito civil, por exemplo. Suponho que ele já tenha, ao longo de sua vida,
escutado ambas as palavras e delas tenha feito algum uso. Afinal de contas, são palavras
absolutamente corriqueiras. A explicação de um professor se dá, em geral, através de
uma descrição esquemática, da leitura de algum texto normativo pertinente, de certos
exemplos simples e outras estratégias pedagógicas. Os alunos, por sua vez, são testados
em seu conhecimento sobre estes conceitos através de provas em que precisam utilizá-
los apropriadamente, seguindo o que leram no código, em algum manual introdutório ou
em anotações pessoais. O professor diz que o aluno “entendeu” ou “sabe” a matéria caso
seja capaz de responder ao professor de maneira apropriada, e uma evidência adicional
acerca desse novo “saber” pode se dar num ambiente forense, caso não sejam levantadas
dificuldades quanto ao uso dos conceitos.

Caso eu pergunte a um destes alunos o que ele compreende por “capacidade ju-
rídica”, será que ele me dará como explicação algo a mais do que o próprio professor o
ensinou? Recitará a definição do Código Civil, dará alguns exemplos, talvez cite possí-
veis efeitos jurídicos de atos praticados por um menor de idade – “um contrato assinado
por um absolutamente incapaz é nulo”. Talvez ele faça alguns testes simples comigo.
Aponta para uma criança e me interpela: ele é capaz ou incapaz? Se eu, ingenuamente,
responder que “a criança é capaz pois ela sabe ler, escrever e já consegue expressar seus
desejos”, talvez receba um sorriso como resposta: “Não é isto que eu tinha em mente
com capacidade, estou falando da capacidade jurídica.”

Wittgenstein utiliza esta dialética do aprendizado para fazer uma distinção entre o
ensino ostensivo e a definição ostensiva. Ele apresenta um segundo jogo de linguagem
(JdL2) da seguinte maneira.

Um pedreiro “A” está construindo um prédio e precisa da ajuda do assistente “B”.


Quando “A” grita as palavras “bloco”, “coluna”, “laje” ou “viga”, o assistente “B” vai
até o componente correspondente e o devolve a “A”. Sobre este jogo ele afirma, mais
adiante, que uma parte substanciosa do treinamento de “B” consistirá em o instrutor
apontar para objetos, chamando a atenção e o foco da criança para eles, ao mesmo tem-
po que profere uma palavra. É durante este momento de pré-compreensão que Wittgens-
tein dá o nome de ensino ostensivo porque a criança sequer sabe perguntar pelo nome
do objeto (IF, 6). Agora pode parecer que a figura de Santo Agostinho está correta: ao
passar por este treinamento a criança cria uma associação entre o objeto e a palavra, di-
gamos, a palavra “viga”. Assim, quando a criança escutar a palavra “viga”, uma imagem
do objeto se formará em sua mente. Mas, Wittgenstein questiona “Mas mesmo que isso
aconteça – é essa a finalidade da palavra?” (IF, 6) Está claro que no Jdl2 o pedreiro não
deseja simplesmente conjurar imagens mentais em seu assistente – ainda que isto possa
ser útil –, pretende que ele, ao ouvir a palavra “viga”, seja capaz de dar-lhe o objeto
apropriado. O ensino ostensivo não ocorre em um vácuo, por assim dizer:
[...]With different training the same ostensive teaching of these words would
have effected a quite different understanding.
“I set the brake up by connecting up rod and lever."—Yes, given the whole of
the rest of the mechanism. Only in conjunction with that is it a brake-lever,
and separated from its support it is not even a lever; it may be anything, or
nothing. (IF, 6)

O ensino ostensivo ocorre, necessariamente, dentro de uma situação específica,


com vistas a atender a certas finalidades. A alavanca do nomear, como no caso do JdL2,
só pode ser ativada quando se compreende o jogo de linguagem em sua completude: não
há “nomear” em isolamento naquele caso. O pedreiro não deseja meramente produzir
um efeito de representação em seu ajudante, deseja que ele realize uma ação. O nomear
deve ser visto como uma preparação para certos tipos de ação: “To repeat–naming is
something like attaching a label to a thing. One can say that this is preparatory to the
use of a word”, mas, uma preparação para o quê? (IF, 26)

O jogo de linguagem de nomear objetos é analisado a fundo por Wittgenstein e


esta discussão é empreendida, basicamente, entre as seções 27-64 (BAKER, HACKER,
2005, p.93) das Investigações Filosóficas. Trata-se de um ponto importante para o pro-
jeto de elucidar os erros cometidos no Tractatus e conecta-se diretamente com as duas
presenças intelectuais que exerceram influência sobre Wittgenstein durante o seu pri-
meiro período: Bertrand Russell e Gottlöb Frege. Não pretendo ir a fundo sobre este
tema específico, pois julgo que ele esteja fora do escopo desta dissertação. É preciso, de
todo modo, tê-lo em mente, pois trata-se justamente da postura filosófica contrariada
por Wittgenstein. Russell, o círculo de Viena e o “primeiro” Wittgenstein estavam ocu-
pados em definir significado segundo uma teoria da correspondência, tomando a propo-
sição como objeto linguístico fundamental.

O matemático e filósofo austríaco Gottlöb Frege, conhecido de Bertrand Russell,


foi um dos pioneiros no tratamento lógico-semântico da tradição analítica. Em seu arti-
go “Sense and Reference” ele tenta resolver o desafio apresentado pelo princípio da
identidade perguntando-se: a identidade é uma relação entre objetos ou entre nomes?
(FREGE, 1947, p.209)

A inovação de Frege consiste em separar o sentido e o referente de um nome. Para


Frege os signos (um nome, uma palavra, uma combinação de letras) estão conectados a
algo a que o signo se refere, o referente, mas também estão conectados a um sentido. No
entanto, todo nome, diz Frege, possui um sentido mas não necessariamente possui um
referente. Pense no personagem Odisseu, protagonista da Odisseia, como um exemplo.
Ao nome ‘Odisseu’ não há nenhuma entidade correspondente, mas uma frase como
“Odisseu voltou a Ítaca” tem um certo sentido. Além disso, diferentes nomes podem ter
sentidos diferentes ainda que o seu referente seja o mesmo, pois um nome próprio ex-
prime um sentido (Sinn) e refere-se ou designa o seu referente (Bedeutung).

Pense nas expressões “estrela matutina” e “estrela vespertina”. Como se sabe hoje,
a estrela matutina e a estrela vespertina são o mesmo objeto, Vênus, que sequer tem o
status de estrela. Os signos “estrela matutina”, “estrela vespertina” e “Vênus” têm um
certo objeto celeste como referente, mas o sentido expresso por eles é diferente. Alguém
que não esteja a par de que os três nomes têm a mesma referência, ainda pode fazer cer-
tas inferências lógicas a partir delas, a informação obtida via o signo

Em um artigo influente, chamado On Denoting, Russell faz um contraponto a Fre-


ge e descreve a sua teoria dos nomes e da denotação, baseando-a em termos lógicos –
isto é, proposições como “Scott was the author of Waverley” e “The King of France is
not bald” são analisadas em termos lógico-semânticos – e num tratamento exaustivo,
uma “análise”, das referências feitas em certas proposições. Já que o argumento pode
ser feito nos mesmos termos de Russell, deixemos a inexistente monarquia francesa de
lado e consideremos a igualmente inexistente monarquia brasileira. Se digo “o sucessor
ao trono brasileiro é careca”, trata-se de uma proposição verdadeira ou falsa? Em lógica
de primeira ordem, em sintaxe ordinária e supondo-se o uso de semântica tarskiana,
trata-se de uma proposição predicativa do tipo: “a é C” ou “C(a)”. Os problemas são es-
tes: a) a que entidade se referem as palavras “o sucessor ao trono brasileiro”; e b) a pro-
posição faz sentido? O Brasil, como é óbvio, adota a forma republicana de governo e
não há família real, príncipes, imperadores, Coroa, Corte, nem nada do tipo, do que se
depreende o problema “a”. O problema “b” tem relação com nossas intuições linguísti-
cas: a proposição pode ser plenamente compreendida, seus termos estão sintaticamente
bem construídos e as suas palavras constituintes são perfeitamente inteligíveis.

O nó deste tipo de asserção estaria, segundo Russell, no artigo definido singular


“the” (em língua inglesa) ou “o” e “a” (em língua portuguesa) e a solução postulada por
ele é a de distinguir entre ocorrências “primárias” e ocorrências “secundárias” de deno-
tação.

Em primeiro lugar, Russell argumenta, quando falamos sobre “o sucessor ao trono


brasileiro” não estamos tratando de uma frase do tipo “a é C”, mas sim da seguinte fra-
se: “existe uma e apenas uma entidade a que chamamos ‘sucessor ao trono brasileiro’ e
esta entidade é careca”. Isto vale também para uma frase como “Scott é o autor de Wa-
verley2”, pois ela torna-se “há apenas uma entidade a ter escrito Waverley e a esta enti-
dade dou o nome de Walter Scott”. A forma completamente “analisada” destas frases
acima, diz Russell, seria esta: "It is not always false of ‘x’ that ‘x’ wrote Waverley, that
it is always true of ‘y’ that if ‘y’ wrote Waverley ‘y’ is identical with ‘x’, and that Scott
is identical with ‘x’” (RUSSELL, 1905, p. 488).Este trava-línguas mental seria a forma
básica de proposições denotativas.

Deste modo, pode-se dizer que a frase “O sucessor ao trono brasileiro é careca” é
falsa, pois, como dito acima, a sua estrutura subjacente é a de uma conjunção lógica do
tipo “A e B”: “existe uma e apenas uma entidade a que chamamos ‘sucessor ao trono
brasileiro’ e esta entidade é careca”. Como é falso que “existe uma e apenas uma entida-
de a que chamamos ‘sucessor ao trono brasileiro’”, a frase é falsa mas não sem sentido.
A análise funciona não só para entidades reais como também para entidades fictícias a
exemplo de “o rei da França”, “Brás Cubas”, “quadrado redondo” e “o número primo
par diferente de 2”, etc.

Tomei este desvio para contrastar os métodos, pressupostos e problemas lidados


por filósofos ligados às concepções referencialistas da linguagem e o que expus sobre
Wittgenstein até o momento. Deve estar claro o grau de especificidade e formalidade
com que Russell, Frege e outros filósofos tratavam a questão do significado e o quão in-
terligada ela estava com as noções de proposição e valor de verdade. Para eles, o impor-
tante era realizar um processo de decomposição das frases em linguagem natural, sepa-
rando os seus elementos essenciais, depois traduzi-los para uma sentença altamente for-
malizada e exprimível em termos lógicos, comparar o conteúdo desta frase a certas enti-
dades e, finalmente, decidir pela veracidade ou falsidade da proposição em virtude de
seu conteúdo proposicional. Uma proposição refere-se a objetos ou a estados de coisas,
e ela pode corresponder à realidade ou não corresponder à realidade.

2 Waverley” é um romance histórico escrito em 1814 pelo escritor inglês Walter Scott.
Compare agora a abordagem referencialista com o que Wittgenstein tem a dizer
sobre o tema dos nomes, fazendo uma analogia com jogos de tabuleiro. Imagine que eu
diga “este é o rei no xadrez” para uma pessoa enquanto aponto para um objeto qualquer.
Segundo Wittgenstein, a pessoa que ouviu a minha sentença declarativa só poderia “en-
tender o uso da peça caso soubesse as regras do xadrez até este último ponto: a forma da
peça do rei” (IF, 31). Observe como o que importa aqui não é se a proposição é verda-
deira ou falsa, mas a sua utilidade.

Isto pode parecer surpreendente a nós que já jogamos ou vimos alguém jogar xa-
drez ou até mesmo outros jogos de tabuleiro. Sabemos que estes jogos costumam ter pe-
ças, que estas peças podem se movimentar em padrões diferentes, que algumas delas
podem ser capturadas e que o jogo pode acabar quando isto acontece. Também toma-
mos por certo que o material de que são feitas as peças não é essencial ao modo de jo-
gar xadrez e que pode haver certa variação no próprio formato da peça (lembre-se de
conjuntos de xadrez vendidos em feiras de artesanato onde as peças são feitas a seme-
lhança de cangaceiros e outras figuras da cultura popular brasileira).
Isto não quer dizer que tenhamos lido um manual de regras ou sequer que alguém
nos tenha as explicado do começo ao fim; pois o jogo pode ser apreendido puramente
através da observação (IF, 31): o espectador percebe que certas peças, com certo forma-
to, andam apenas “na diagonal”, enquanto outras andam apenas para frente, outras verti-
calmente ou horizontalmente, etc. No começo, aprender o jogo de xadrez deste modo
pode parecer desafiador. Imagine que o espectador fixe o olhar sobre a peça a que os jo-
gadores dão o nome de “rainha” e conte quantas casas a peça anda. Na primeira jogada,
três casas; na segunda jogada, três casas; na terceira jogada, três casas. Mas, de repente,
o jogador move-a ao longo de seis casas e o seu oponente não diz nada! Pareceu-lhe, até
a terceira jogada, que a rainha tinha um limite de movimentos, mas a expectativa lhe é
frustrada. Quantos jogos ele precisaria assistir para se assegurar de como se movem
cada uma das peças? Quantos jogos ele precisaria assistir para aprender o que é uma
“peça” do jogo? O espectador limita-se a ruminar em silêncio por um tempo até ver que
um dos objetos de plástico deslocados pelos jogadores movimenta-se de modo estranho:
não vai para um lado nem para o outro, não anda na diagonal e chega a passar por cima
de outros objetos! (Até então, ele percebera, os objetos agiam como obstáculos que não
podiam ser transpostos) Neste ponto, ele não se aguenta de ansiedade e pergunta: “qual
é o nome desta peça que se movimenta diferentemente das demais?” Os jogadores, sur-
presos, respondem-lhe: “cavalo”.

A surpresa dos jogadores se explica pois a pergunta do observador demonstra que


ele dominou algo ao ser capaz de perguntar o nome de uma peça com sucesso. Este
exemplo pode ser generalizado para muitas outras categorias: números, cores, materiais,
formas, etc. Em (IF, 29) Wittgenstein pergunta-se se podemos definir ostensivamente o
número dois do seguinte modo:

The definition of the number two, "That is called 'two' "—pointing to two
nuts—is perfectly exact.—But how can two be defined like that? The person
one gives the definition to doesn't know what one wants to call "two"; he will
suppose that "two" is the name given to this group of nuts!——He may sup-
pose this; but perhaps he does not. He might make the opposite mistake;
when I want to assign a name to this group of nuts, he might understand it as
a numeral. And he might equally well take the name of a person, of which I
give an ostensive definition, as that of a colour, of a race, or even of a point
of the compass. That is to say: an ostensive definition can be variously inter-
preted in every case. (IF, 28)

Os parágrafos acima, com suas perguntas e respostas, suas dúvidas e certezas,


expõem o quão longe Wittgenstein estava da visão referencialista do significado neste
momento de seu desenvolvimento filosófico. Enquanto Russell e Frege preocupavam-se
apenas com as condições de verdade das proposições, Wittgenstein chamava atenção a
um momento muito anterior a este, a saber, como aprendemos a usar as palavras em
momentos concretos no tempo. A noção de jogo de linguagem serve para trazer as dis-
cussões sobre o significado de volta para a terra, para situações práticas, incertas, per-
meadas por acidentes e confusões.

É a estas situações individuais e à totalidade delas que Wittgenstein dá o nome de


“jogos de linguagem”:

We can also think of the whole process of using words in (2) as one of those
games by means of which children learn their native language. I will call
these games “language-games” and will sometimes speak of a primitive lan-
guage as a language-game. And the processes of naming the stones and of re-
peating words after someone might also be called language-games. Think of
much of the use of words in games like ring-a-ring-a-roses. I shall also call
the whole, consisting of language and the actions into which it is woven, the
"language-game (IF, 7)

Alguém poderia apresentar a objeção de que a “definição” de jogo de linguagem


oferecida acima define tudo e não define nada. Ora um jogo de linguagem pode ser uma
descrição de uma “linguagem primitiva”, de uma situação linguística qualquer, ou mes-
mo de toda a linguagem associada a certas ações subjacentes. Pode-se levantar conceitos
como “vagueza” e “ambiguidade” contra o conceito. Tais críticas são antecipadas e re-
batidas pelo próprio Wittgenstein. Ele imagina um interlocutor dizendo o seguinte:
“You talk about all sorts of language-games, but have nowhere said what the essence of
a language-game, and hence of language, is [...]” (IF, 65). Mas considere que, se apren-
demos as palavras mais básicas e úteis de nossa linguagem natural através de procedi-
mentos de erro e acerto, de investidas e retraída, por que deveríamos fazer exigências
socráticas quanto a uma definição de “jogos de linguagem”? Deve-se aprendê-la com o
seu uso, e as observações contidas nos diversos escritos tardios de Wittgenstein consti-
tuem justamente um terreno fértil para incorporar o conceito ao nosso kit de ferramentas
filosófico: “Here the term "language-game" is meant to bring into prominence the fact
that the speaking of language is part of an activity, or of a form of life” (IF, 23).

É por isto que a definição ostensiva, por si só, não é capaz de fornecer o significa-
do das palavras e “only someone who already knows how to do something with it can
significantly ask a name” (IF, 31). Quem imagina, como Agostinho, que apontar e no-
mear objetos é suficiente para impregnar-lhes de significado parece imaginar que a cri-
ança já possui uma linguagem interna, como se ela pudesse “falar consigo mesma” (IF,
32). A linguista Helena Martins detém-se sobre este ponto e vale a pena trazer as suas
considerações. Para ela, essa linguagem “prévia” do pensamento seria uma “conquista
individual”, um resultado direto da aplicação dos processos cognitivos da criança às si-
tuações da sua vida. A estas faculdades cognitivas se sucederia o contato com os demais
humanos, a vida pública, e estaria “motivada por um impulso descritivo: ‘falar das coi-
sas’” (MARTINS, 2000, p.25). É por isto que dizer simplesmente “a etiqueta é uma pre-
paração para o uso” é um erro. Dar nome a um objeto pode fazer parte de um jogo de
linguagem, mas não se pode dizer que à criança faltava apenas um “nome” para que ela
pudesse começar a se referir às coisas.

Este tipo de aprendizado pode ser igualado a quando temos aulas de uma segunda
ou terceira língua. Um professor de francês diz: “cette voiture est blanche”. Depois, ex-
plica: “blanche significa o mesmo que a cor branca”. Nós o entendemos de imediato
não porque simplesmente colacionamos o signo “blanche” a uma representação, mas
sim porque já dominamos uma técnica, já temos uma noção de que branco é uma cor e
de que não faz sentido, por exemplo, perguntar pela “extensão do branco” ou o “formato
do branco”. Este tipo de dúvida não nos ocorre pois, “To understand a sentence means
to understand a language. To understand a language means to be master of a techni-
que” (IF, 151). Ao longo de nossa vida passamos por diversos jogos de linguagem em
que usamos a palavra cor, dizemos que branco é uma cor, e isto é tudo. Quando apren-
demos a nova palavra, o novo nome, em francês, já sabemos o que fazer com ele. Para
martelar a ideia à exaustão: “No jogo de linguagem de nomear – que, note-se, deve ser
aprendido –, estabelecer ligações entre palavras e objetos não coincide com revelar ou
conhecer os seus significados (MARTINS, 2000, p.31)”.

Chega-se, afinal, a uma das ideias mais memoráveis de Wittgenstein: “For a lar-
ge class of cases—though not for all—in which we employ the word "meaning" it can
be defined thus: the meaning of a word is its use in the language (IF, 43)”. A restrição
contida em “for a large class of cases” não deve causar surpresa. O objetivo aqui é afas-
tar a noção de que possa haver um critério final, estático e essencial para toda a investi-
gação acerca do significado e nos forçar a pensar sobre os diferentes tipos de palavras,
os diferentes tipos de frases e até mesmo os diferentes tipos de usos de uma mesma pa-
lavra. Diversas metáforas são invocadas para ilustrar esta pluralidade de usos. Em uma
delas, as palavras são comparadas a ferramentas: martelos, pregos, parafusos, serrotes,
chaves de fenda, etc (IF, 11). Em outra, a cabine de uma locomotiva, com seus vários ti-
pos de alavanca, que podem ser pressionadas, apertadas, rotacionadas, rosqueadas, etc
(IF, 12). A questão da “completude” da linguagem também pode ser vista nestes termos.
Wittgenstein pede que consideremos um povo que só se comunica através de ordens e
ações correlatas. Talvez, pensa ele, poderíamos pensar que se trata de uma linguagem
pobre e rudimentar, a ela falta algo de essencial. O alerta é o seguinte: nossa linguagem
estava “completa” antes de termos inventado o cálculo proposicional ou os símbolos da
química orgânica? A linguagem seria como uma cidade antiga, com um núcleo original
de habitação em que o traçado urbana forma um labirinto de ruas, becos, camboas, pra-
ças, travessas, mas cujos subúrbios foram desenhados ao longo de uma malha, em que
os prédios são padronizados e uniformes (IF, 18).
Esta multiplicidade de jogos de linguagem é tributária do caráter exclusivamente
público da linguagem e dos significados: “If language is to be a means of communicati-
on there must be agreement not only in definitions but also (queer as this may sound) in
judgments” (IF, 242). O requisito da concordância é, em (BAKER & HACKER, 2005,
pp.138), incompatível com o logicismo atômico de Russell e Frege (para quem os julga-
mentos – Gedanke – eram internos e privados (BAKER & HACKER, 2005, p.137)) e
da teoria pictórica exposta no Tractatus. A concordância pública confere alguma estabi-
lidade aos jogos de linguagem e, portanto, aos significados. Os signos obtêm seu signifi-
cado pelo uso: “Every sign by itself seems dead. What gives it life?—In use it is alive. Is
life breathed into it there?—Or is the use its life?” (IF, 432). Uma frase semelhante a
esta aparece já no Livro Azul, mostrando a persistência da ideia durante a vida de Witt-
genstein: “But if we had to name anything which is the life of the sign, we should have
to say that it was its use” (LA, p. 4).
“Mas isto é estranho”, pode-se dizer. Porque as definições públicas dos significa-
dos não estão realmente determinadas pelos jogos de linguagem, há buracos, linhas em-
baçadas, gargalos e dúvidas quanto aos seus pontos limítrofes. É possível caminhar sem
um chão onde se apoiar? É para responder a este tipo de indagação que Wittgenstein re-
corre ao conceito de semelhanças de família ao mesmo tempo que começa a esboçar o
que entende por regra. A sua exposição das semelhanças de família ao conceito de
“jogo” (Spiel) é suficientemente importante e memorável para ser apresentada integral-
mente:

Consider for example the proceedings that we call "games". I mean board-
games, card-games, ball-games, Olympic games, and so on. What is common
to them all?—Don't say: "There must be something common, or they would
not be called 'games' "—but look and see whether there is anything common
to all.—For if you look at them you will not see something that is common to
all, but similarities, relationships, and a whole series of them at that. To repe-
at: don't think, but look!—Look for example at board-games, with their mul-
tifarious relationships. Now pass to cardgames; here you find many corres-
pondences with the first group, but many common features drop out, and
others appear. When we pass next to ballgames, much that is common is re-
tained, but much is lost.—Are they all 'amusing'? Compare chess with nough-
ts and crosses. Or is there always winning and losing, or competition between
players? Think of patience. In ball games there is winning and losing; but
when a child throws his ball at the wall and catches it again, this feature has
disappeared. Look at the parts played by skill and luck; and at the difference
between skill in chess and skill in tennis. Think now of games like ring-a-
ring-a-roses; here is the element of amusement, but how many other characte-
ristic features have disappeared! And we can go through the many, many
other groups of games in the same way; can see how similarities crop up and
disappear. And the result of this examination is: we see a complicated
network of similarities overlapping and criss-crossing: sometimes overall si-
milarities, sometimes similarities of detail. (IF, 66)

É notável que Wittgenstein nos exorte a “olhar” e não a “pensar” sobre o que há
de comum entre os jogos. Quando nos limitamos a simplesmente observar não caímos
na tentação de tentar procurar “aquilo que é comum”, criando uma nova entidade reifi-
cada para ser designada ou referenciada pela palavra “jogo”. Se não podemos definir
jogo extensivamente – dando todos os exemplos possíveis de jogos –, devemos pelo me-
nos poder definir a palavra intencionalmente, através de uma descrição precisa do con-
ceito. Este é o modus operandi tradicional da filosofia desde os diálogos platônicos às
teorias do significado, da mente, da justiça, da democracia, etc. É apenas quando para-
mos para refletir sobre a palavra que ela nos aparece como algo estranho e então nos
quedamos duvidosos de como explicá-la para nós próprios ou para um terceiro.

No lugar da referência final, impossível de ser decomposta, entram as semelhan-


ças de família. Frequentemente ouve-se de alguém dizer: “Fulano puxou ao pai!”, “Ele
tem os olhos da mãe!” e outras exclamações semelhantes. Irmãos, pais, primos, tios cos-
tumam compartilhar certas características: altura; fisionomia; cor dos olhos, dos cabe-
los, da pele; proporção entre tronco e pernas, etc. Não se aplica uma versão restrita do
princípio da identidade quando dizemos: “Ela é a cara da avó!”, mas chama-se a atenção
para uma parecença. Do mesmo modo “jogo” forma uma família (IF, 67). Entre os jo-
gos de bola parece haver uma semelhança incontestável, mas veja a variedade de modos
como a bola é manipulada. Em alguns jogos como tênis, golfe e críquete não se encosta
com as mãos na bola, mas utiliza-se um objeto intermediário. Em futebol a maioria dos
jogadores em campo não pode usar as mãos enquanto a bola está em jogo, mas as mãos
são liberadas na hora de se cobrar lateral. Em basquete a bola deve ser quicada continu-
amente enquanto o jogador está em movimento, exceto por alguns passos de tolerância.
Em um jogo infantil como queimado, tocar a bola para arremessá-la contra alguém é
visto como algo positivo, mas se alguém sofrer o impacto da bola, diz-se que está “mor-
to”. Em todos estes tipos de brincadeiras e jogos está presente algo em comum: um sis-
tema de pontuação e um meio de se aferir quem é o “vencedor”. Mas pense em outras
brincadeiras de bola em que não há perdedores ou vencedores definitivos, mas temporá-
rios. Nas ruas do Brasil as crianças costumam brincar de “bobinho” ou “dois-toques-é-
o-doido”: forma-se um círculo em que cada brincante realiza um passe para o outro com
a intenção de fazer com que a bola toque nele duas vezes. Quando isto acontece, este
brincante é chamado de “doido” (a sensibilidade com os distúrbios de natureza mental
não está plenamente desenvolvida nas crianças) e os que restaram esforçam-se para im-
pedi-lo de dominar a bola pelo maior tempo possível. Aqui já não há pontuação, e a vi-
tória é transitória: o próximo “doido” pode ser você.
Não vire o rosto em razão de eu ter utilizado termos coloquiais, encontrados na
linguagem ordinária das brincadeiras de rua. Pois onde mais se aprende a falar de jogos
e brincadeiras? Certamente não nos trabalhos acadêmicos e bancas de defesa. Lançar
suspeitas contra o papel central da linguagem cotidiana não é nada de novo e Bertrand
Russell, ataca os filósofos de Oxford ligados ao que se chama hoje de “filosofia da lin-
guagem ordinária” afirmando que fora:

[…] persuaded that common speech is full of vagueness and inaccuracy, and
that any attempt to be precise and accurate requires modification of common
speech both as regards vocabulary and as regards syntax. Everybody admits
that physics and chemistry and medicine each require a language which is not
that of everyday life. I fail to see why philosophy, alone, should be forbidden
to make a similar approach towards precision and accuracy. (RUSSELL,
1957, p.387)
Para ele a linguagem do cotidiano era por demasiado imprecisa para servir aos
propósitos delicados da filosofia, uma palavra para a qual ele dá a seguinte explicação
no prefácio ao seu livro de História da Filosofia Ocidental:

Philosophy, as I shall understand the word, is something intermediate


between theology and science. Like theology, it consists of speculations on
matters as to which definite knowledge has, so far, been unascertainable; but
like science, it appeals to human reason rather than to authority, whether that
of tradition or that of revelation. All definite knowledge—so I should contend
—belongs to science; all dogma as to what surpasses definite knowledge be-
longs to theology. But between theology and science there is a No Man’s
Land, exposed to attack from both sides; this No Man’s Land is philosophy.
(RUSSELL, 2004, p.16)
A filosofia, no que pese estar fincada na terra de ninguém entre a especulação
dogmática da religião e a autoridade epistêmica da ciência, precisa retirar o seu ideal de
precisão e claridade desta última. Contraste a opinião de Russell com a de Wittgenstein:

Here it is difficult as it were to keep our heads up,—to see that we must stick
to the subjects of our every-day thinking, and not go astray and imagine that
we have to describe extreme subtleties, which in turn we are after all quite
unable to describe with the means at our disposal. We feel as if we had to re -
pair a torn spider's web with our fingers. (IF, 106)
O contraste não poderia ser maior. Enquanto Russell deposita as suas esperanças
teóricas na possibilidade de refinamento, detalhamento e uma busca incessante por uma
clareza derradeira, Wittgenstein considera esta postura como algo a que se deve resistir.
É preciso deixar os preconceitos de lado ao se filosofar e agarrar-se ao que há de mais
comum em nossas interações.

Uma dúvida pode emergir a partir desta explicação: “mas se não podemos falar
em algo comum entre os jogos então não entendemos o que queremos dizer quando di-
zemos ‘jogos’; logo não podemos nem mesmo explicar o que é um jogo!” (IF, 69). Esta
dúvida, é claro, jamais nos ocorreu quando começamos a falar sobre qualquer assunto
ou quando tentamos explicar o significado de um substantivo qualquer, nem mesmo
quando nos explicaram o que são jogos.

As semelhanças de família também podem ser utilizadas para se explicar a varie-


dade de frases e seus usos em diferentes jogos de linguagem. Wittgenstein lista algumas
situações em que os usos das palavras assumem fisionomias diferentes, justamente por
estarem inseridos em jogos de linguagem diversos: dar ordens e obedecê-las; descrever
a aparência de um objeto e medi-lo com instrumentos apropriados; construir um objeto
a partir de uma descrição (veja como um marceneiro experiente recebe projeções geo-
métricas de um móvel e é capaz de “reproduzi-lo” na vida real); relatar um evento (“Isto
aconteceu!”); especular sobre um evento (“Isto aconteceu? Como aconteceu? Onde?
Quando?”); formular e testar uma hipótese, apresentar os resultados de um experimento
através de gráficos; contar piadas; resolver problemas matemáticos de aritmética básica;
agradecer; xingar; etc (IF, 23). Algumas destas situações requerem que utilizemos frases
afirmativas do tipo que podem ser testadas e chamadas de verdadeiras ou falsas, mas em
outros tantos casos isto sequer faz sentido (CHILD, 2011, p. 93).

Tendo em mente a multiplicidade de jogos de linguagem a inexistência de uma es-


sência comum às palavras que possa ser objeto de uma definição exaustiva em termos
de condições de verdade, Wittgenstein volta-se contra algumas das crenças mais arrai-
gadas de seus contemporâneos. Referindo-se a Frege, para quem por trás de uma frase
do tipo “as coisas estão assim e assado” há sempre uma asserção, pois sempre é possível
reescrevê-la como “assevero que as coisas estão assim e assado”, Wittgenstein faz o co-
mentário irônico e mordaz de que por trás de cada asserção haveria também uma per-
gunta: “We might very well also write every statement in the form of a question fol-
lowed by a “Yes”; for instance: “Is it raining? Yes!” Would this shew that every state-
ment contained a question?” (IF, 22). O problema central está justamente no fato de que
as considerações de Frege não constituem uma “jogada” em nossa linguagem (IF, 22).

Volte a considerar o exemplo dos jogos de bola, já discutido acima. Pois agora
pode-se dizer: “certo, posso até não conseguir dar uma definição final de o que seja um
jogo, mas se digo que estou falando de um jogo de bola não há nenhuma dúvida sobre
aquilo que falo e aqui a definição é final; só dou o nome ‘jogo de bola’ aos jogos em
que há ao menos uma bola presente”. Esta, é claro, pode ser uma definição perfeitamen-
te exata para fins de uma explicação legítima. Um professor de educação física pode
muito bem anunciar aos alunos “na aula de hoje praticaremos jogos de bola” e pedir que
eles escolham entre futebol, basquetebol, handebol, voleibol ou qualquer outro jogo de
bola. Então dois alunos vão ao depósito em que estão guardados os equipamentos de
educação física, pegam luvas de boxe, uma bola de speedball e se revezam para ver
quem consegue passar mais tempo esmurrando a bola sem perder o ritmo, do mesmo
jeito a que assistem nos filmes de Hollywood sobre o esporte. O professor retorque “vo-
cês sabem que eu não quis dizer isto” e força-os a guardar o equipamento. Nosso senti-
mento diante de uma tal situação pode ser o de acusar os alunos de serem engraçadi-
nhos, de terem feito uma escolha estranha de propósito, apenas por provocação. Quem
vai dizer que esta acusação também não é perfeitamente legítima?

A perplexidade filosófica que busca um significado ocorre quando tentamos ver as


palavras sub specie aeternitatis, descoladas dos jogos de linguagem em que elas são uti-
lizadas. Nietzsche, no Crepúsculo dos Ídolos, aponta o dedo contra os filósofos, acu-
sando-os de “egipcismo”. Para ele, os filósofos acreditam na possibilidade de ser retirar
a história das coisas e que tudo o que tiveram nos últimos milênio foram múmias con-
ceituais, e nada de vital jamais lhes passou pelas mãos. Os filósofos, ao adorarem, “ma-
tam”, “empalham”,

3.2 A gramática das palavras como alternativa à essência e a centralidade da lin-


guagem comum

Deixando

Talvez o maior impedimento à compreensão do que significa “gramática” para


Wittgenstein esteja no uso completamente exótico e idiossincrático que ele faz da pala-
vra. O segundo impedimento é a mutação conceitual pelo qual o conceito passou, desde
que apareceu nas Observações Filosóficas até o seu uso posterior nas Observações So-
bre os Fundamentos da Matemática, nas Investigações Filosóficas, nos Livro Azul e Li-
vro Castanho e no Sobre a Certeza. Gostaria, antes de oferecer algumas palavras descri-
tivas sobre o que é gramática, trazer algumas passagens em que ela é utilizada ao longo
das Investigações Filosóficas para acostumar o leitor aos modos como ela ganha vida.

3.3 Os argumentos contra a utilização de Wittgenstein em filosofia do direito

Agora que discuti (mesmo que em termos esquemáticos) e apresentei uma parte
do vocabulário básico de Wittgenstein, apresento uma justificativa de porque não consi-
dero absurda a tentativa de trazê-lo para a filosofia do direito como uma chave de inter-
pretação. Mais do que isso. Entendo que muitas das questões comumente levantadas por
filósofos do direito, como a existência de lacunas em um sistema jurídico, a forma lógi-
ca da norma (se A, deve B), a separação lógica das normas entre regras e princípios, in-
terpretação autêntica e interpretação não-autência, etc, podem se beneficiar do método
de análise gramatical para a sua dissolução. Tratá-las, é claro, está fora do escopo deste
trabalho, mas espero que as minhas propostas para o caso da determinação das regras
jurídicas e da distinção entre casos fáceis e casos difíceis possa demonstrar que é possí-
vel desipnotizar-se de certos impulsos filosóficos.

Começo com os obstáculos apresentados por Brian Bix. Entendo que ele não dese-
ja proibir ou afastar de todo a importância de Wittgenstein (BIX, 2005, p.217) e seus ar-
gumentos são interessantes o suficiente para serem discutidos e servem como platafor-
ma para gerar boas respostas.
Após

4 O problema da determinação das regras entre iluminados e obscuros

Uma das teses mais influentes de Herbert Hart para a teoria da interpretação ju-
rídica e da determinação das regras jurídicas é, sem dúvidas, a da divisão entre casos fá-
ceis e casos difíceis, atrelada aos conceitos correlatos de “textura aberta”, “zona de pe-
numbra”, “vagueza”, “núcleo estável de significado” e “discricionariedade”. Proposta
em meio ao projeto hartiano de posicionar-se entre a rigidez formalista e a flexibilidade
excessiva do realismo americano (como na teoria de Austin) (BIX, 1993, p.7), Hart bus-
cou um meio termo aceitável para o seu neopositivismo. Esta postura permitiu-lhe a
manter um grau de separação entre direito e moral sem descuidar da natureza social do
direito, caracterizando-o como um sistema composto por regras primárias e secundárias.
Este tipo de receptividade a um esquema mais elástico de em relação a uma teoria
do significado e da interpretação deve-se em grande parte ao contexto acadêmico em
que Hart se encontrava. É que a Universidade de Oxford dos meados do século XX ob-
servou o nascimento e desenvolvimento de um novo modo de filosofar, um movimento
que ficou conhecido como o da “Filosofia da Linguagem Ordinária” (comumente cha-
mado de OLP devido ao seu nome em inglês, Ordinary Language Philosophy), capitane-
ado por figuras como Peter Strawson, Gilbert Ryle e John L. Austin (BAZ, 2012, p.1).
Austin, por sinal, chegou a enviar uma mensagem de congratulações a Hart quando este
assumiu a cadeira de jurisprudência em Oxford: “It is splendid to see the empire of phi-
losophy annex another province in this way—not to mention the good you’re going to
do them” (LEFEBVRE, 2011, p.99).
Havendo um relacionamento intelectual entre Hart e os expoentes da Filosofia da
Linguagem Ordinária, é natural estabelecer uma ligação estreita entre Hart e Wittgens-
tein. Há, inclusive, evidências textuais encontradas no próprio The Concept of Law co-
nectando os dois. Em uma nota ao primeiro capítulo, chamado de Persistent Questions,
Hart convida o leitor a se aprofundar no conceito de semelhanças de família e defende
que os conselhos de Wittgenstein sobre a dificuldade em se apresentar definições exatas
e imutáveis das palavras são importantes para a análise do direito e da política (HART,
1994, p. 280). Em outra nota, desta vez ao capítulo VII, justamente aquele em que
expõe as suas ideias sobre a textura aberta do direito, Hart aponta que Wittgenstein faz
diversas observações relevantes sobre a comunicação de regras através de exemplos e
sobre o ensinar e seguir regras (HART, 1994, p. 297). À parte isto

Não tenho como objetivo me perguntar se a teoria de Hart é de fato uma teoria
wittgensteiniana, se o The Concept of Law é um livro wittgensteiniano ou não. influên-
cia de Hart faz-se sentir até hoje e atinge em cheio o problema tratado nesta dissertação.
Pode-se dizer que Hart é o antepassado natural da literatura anglófona quando o assunto
é determinação ou indeterminação das regras jurídicas, de modo que o tratamento da
questão é apresentado a partir de seus pressupostos, seu vocabulário e regras internas.

Com efeito, é no mínimo razão de incômodo (mas não de surpresa!) que Witt-
genstein venha sendo levantado como marco teórico por dois campos extremamente an-
tagônicos: um que vê na impossibilidade de as normas determinarem-se a si próprias e
precisam passar por um processo de interpretação em que questões culturais, políticas,
etc, entram em cena; e um em que a interpretação é deixada de lado e a doutrina dos ca-
sos fáceis é, em alguma medida, preservada. Os resultados do levantamento bibliográfi-
co não deixam dúvidas quanto a este antagonismo paradoxal e é preciso deixá-lo bem
claro antes de partir à exposição da teoria de Hart, até porque as próximas seções deste
capítulo lidarão diretamente com estes rebentos do hartianismo e seus antagonismos.

Marmor, um dos pioneiros na utilização de Wittgenstein para defender a doutrina


dos casos fáceis e a separação entre direito e moral, apresentou seu argumento justa-
mente no contexto de uma tentativa de solução do debate travado entre Lon Fuller e
Hart (BERTEA, 2003, pp. 515-16). Por outro lado, Allan Hutchinson, crítico ferrenho
da possibilidade de existirem casos fáceis,

O já citado Brian Bix dedicou um livro inteiro à determinação das regras, chama-
do Law, Language, and Legal Determinacy em que ele buscou explorar as relações en-
tre linguagem e direito, focando-se em como as duas interagem no contexto da determi-
nação (BIX, 1993, p.1). O primeiro capítulo do livro é um esboço das teorias de Hart so-
bre a textura aberta, o segundo, uma descrição do conceito de “seguir-uma-regra” de
Wittgenstein e, o terceiro, uma discussão ampla sobre o conceito paradigmático de “ca-
sos fáceis”, o que constitui um caso fácil e qual a sua relação com a linguagem. A espe-
culação sobre os casos fáceis de Bix faz uso da metáfora de claridade (oposta a penum-
bra): “The clarity of the language in a legal rule, that is straightforward relative to the
facts to which the rule will be applied, is not sufficient (and perhaps may not be neces-
sary) for the application of that rule to be a clear case” (BIX, 1993, p. 67).

A distinção entre casos fáceis e difíceis é corolário direto das ideias de Hart quan-
to ao funcionamento da linguagem. Então, antes de mais nada, é preciso expor tal con-
cepção.
Para Hart, o conceito de regra está intimamente ligado a uma ideia de controle so-
cial. (HART, p. 124, 2012) Isto é, certos padrões normativos são dirigidos a uma coleti-
vidade, uma entidade geral, e não a indivíduos específicos. No caso específico do direi-
to, afirma Hart, dois são os instrumentos de comunicação destes padrões normativos: a
legislação e o precedente. Enquanto a legislação se dá de forma eminentemente lin-
guística (por meio de um código ou uma lei em sentido formal, por exemplo), o prece-
dente se dá de forma exemplificativa. Para ilustrar a diferença, Hart alude à figura de
um pai e o seu filho entrando na igreja. Se, por um lado, o pai pode dizer o filho: “todos
devem retirar o chapéu da cabeça antes de entrarem na igreja”, ele poderia também di-
zer: “Olhe: devemos nos portar assim diante desta situação” e em seguida retirar o pró-
prio chapéu e entrar na igreja. No primeiro caso, há um comando verbal. No segundo,
uma explicação através do exemplo O filho, nas duas ocasiões, deve escutar ou observar
o pai e repetir o seu comportamento (HART, 2012, p.125).

Apesar de o exemplo parecer suficientemente claro, Hart adverte quanto à possibi-


lidade do surgimento de dúvidas. Imagine o segundo caso descrito acima. Pode ser que
o filho se indague: faz diferença com que mão eu retiro o chapéu? De que lado devo se-
gurá-lo? Basta segurar o chapéu ao entrar ou ele deve permanecer fora da cabeça duran-
te todo o tempo?

Se a criança tem dificuldade de seguir o exemplo do pai no caso de um preceden-


te, será que o mesmo se daria com o caso da comunicação verbal? Para Hart, os teóricos
de seu tempo haviam confiado demais no poder das palavras, e esquecido-se de que
mesmo uma regra aparentemente clara pode levantar dúvidas, já que ela se dirige a uma
coletividade e faz parte de um corpo de regras interligadas. (HART, 2012 p. 126) Para
ele, há um limite inerente à linguagem quando precisamos utilizar termos gerais. Se, por
exemplo, na frente de um parque há uma placa em que se lê “proibida a entrada de veí-
culos”, qualquer pessoa, diz Hart, acharia que um automóvel é um veículo, mas poderia
se perguntar: e uma bicicleta (HART, p. 126, 2012)?

Deste modo, conclui: tanto os precedentes quanto a legislação lançam incertezas


ao futuro: “[…] uncertainty at the borderline is the price to be paid for the use of general
classifying terms in any form of communication concerning matters of fact”. (HART,
p.128, 2012) Antecipando possíveis críticas, Hart esclarece que seria impossível cons-
truir ordens extremamente detalhadas e específicas, pois os seres humanos são incapa-
zes de conhecer todas as possibilidades do futuro em seus mínimos detalhes e, mesmo
que o fossem, uma regra tão precisa não cumpriria seu objetivo de regular ações em ge-
ral e abstrato. Mesmo o emprego de cânones interpretativos não seria capaz de afastar o
perigo de incerteza linguística. Os casos fronteiriços (borderline cases) estariam numa
espécie de zona de penumbra, cuja falta de clareza absoluta é suprida pelo poder discri-
cionário dos juízes (HART, p. 135, 2012).

O que deve ficar claro a partir neste ponto é que a distinção caso fácil/difícil não
está ligada em absoluto a uma ideia de complexidade. Casos longos, repletos de docu-
mentos, testemunhas, provas a serem produzidas e outras dificuldades de ordem prática
ou teórica podem ser fáceis. Enquanto casos extremamente simples, como o de decidir
se uma bicicleta é um veículo, podem ser difíceis. A dificuldade está, para Hart, nas de-
ficiências da linguagem. O antônimo de um caso fácil não é um caso complexo, assim
como o antônimo de caso difícil não é um caso simples. Devemos aceitar os obstáculos
e falhas da sua linguagem sem com isso desistir de regras preestabelecidas como sendo
padrões de conduta a serem observados por juízes. Feito este percurso, chegamos a uma
conclusão: o modelo de regras do neopositivismo hartiano depende, no caso limite, da
aceitação de um núcleo comum estável, acessível a todos. Não fosse por este núcleo,
nossas palavras estariam imersas na escuridão e não saberíamos como continuar.

Aí está, em linhas gerais, a doutrina da textura aberta da linguagem.

Seria natural sentir um certo temor diante de um tal esquema. Se as situações do


mundo escapam às descrições normativas feitas pelo legislador, corremos sempre o pe-
rigo de haver arbitrariedades e decisões tomadas por motivos escusos, não-reguladas
pela lei. É o argumento dos céticos quanto regras. No entanto, Hart recusa de imediato
um cenário apocalíptico como este. De modo apropriado, ele traça a dificuldade de um
outro modo. A textura aberta da linguagem parece ferir de morte o paraíso dos juristas e
uma concepção ultra-formalista do direito, do qual os céticos concluem por sua indeter-
minação radical. Mas ele logo rejeita esta visão, chamando-a de absurda (HART, p.139,
2012) e, numa atitude algo tributária à Wittgenstein, afirma que “to argue in this way is
to ignore what rules actually are in any sphere of real life” (HART, p.139, 2012).
Quando o cético se dá conta de que os homens não são deuses, capazes de falar em uma
língua perfeita, logo conclui pela inutilidade completa da linguagem e isto, diz Hart, é
absurdo.
Cabe um pequeno interlúdio antes de proceder. É que o argumento de Hart quanto
a este ponto parece refletir com bastante precisão uma passagem de Wittgenstein, que
reproduzo na íntegra:

Quanto mais precisamente considerarmos a linguagem real, tanto mais forte


se torna o conflito entre ela e a nossa exigência. (A pureza cristalina da lógica
não se deu a mim como um resultado, ela era, sim, uma exigência.) O confli-
to torna-se insustentável. A exigência corre o risco de se converter em algo
vazio. –Entramos por um terreno escorregadio, onde falta o atrito, portanto,
onde as condições, em certo sentido, são ideais, mas nós, justamente por isso,
também não somos capazes de andar. Queremos andar. Então precisamos do
atrito. De volta ao chão áspero! (IF, 107)

O cético parece impor exigências inatingíveis ao poder das palavras e do prece-


dente. Quando o conflito entre a imposição e os resultados observados no modo como
os tribunais lidam com o direito, o cético logo descarta a própria possibilidade de haver
regras. Para utilizar a metáfora de Wittgenstein, é como se o cético, ao adentrar a super-
fície lisa, negasse a utilidade de se voltar ao chão áspero. Hart, pelo contrário, afirma
que nossas ideias sobre o comportamento normativo advém do chão áspero, e é nele que
devemos buscar uma definição útil de regras.

Em seguida, Hart enfrenta o slogan mais conhecido do realismo jurídico: o direito


é o que os tribunais dizem que ele é.

O realista percebe que, em todo sistema jurídico, há um tribunal supremo, um ór-


gão cuja decisão é sempre final, ao qual não cabe apelação. Quando um caso chega à
apreciação de um tribunal supremo e ele decide por ‘x’, ‘não-x’ ou ‘y’, de nada adianta
afirmar que a decisão tomada está errada. De um certo modo, este órgão é completa-
mente infalível, e é ele quem diz o que é ou o que não é o direito.

Como defensor do modelo de regras, Hart rechaça a afirmação acima. Em um de


seus contra-argumentos contra os céticos Hart propõe uma comparação entre o que
ocorre no sistema de pontuação de certos jogos e esportes com o que ocorre efetivamen-
te no direito. Na literatura especializada em teoria da argumentação o argumento ficou
conhecido pelo nome de “metáfora do apontador do jogo”, e será apresentada a seguir.
O tema é de extrema importância pois lida com uma peculiaridade específica da prática
forense, e constitui um pilar da investigação dogmática: a infalibilidade da decisão judi-
cial. Em qualquer ordenamento jurídico organizado dogmaticamente há um órgão espe-
cial, responsável por dar a palavra final em um processo judicial, fechando a possibili-
dade de recursos e a continuação indefinida das contendas jurídicas. O processo sempre
chega a um fim, e a obrigatoriedade de chegada a este fim constitui um componente im-
portante dos jogos de linguagens envolvidos na adjudicação. É a vedação do non liquet.

Hart considerada o exemplo do jogo como sendo “análogo” ao da decisão judicial.


Em seguida faz notar, apesar de não dar exemplos concretos, que há muitos jogos com-
petitivos em que o sistema de pontuação prescinde de um apontador oficial e que mes-
mo sob estas condições os jogadores são capazes de entrar em acordo quanto a quem
está na frente ou quando dar um ponto a um time ou ao outro. Nesta altura, adiciona: “a
statement of the score made by a player represents, if he is honest, an effort to assess
the progress of the game by reference to the particular scoring rule accepted in that
game” (HART, 1994, p. 142).

Imagine um jogo competitivo, em que há ao menos dois jogadores num embate


qualquer. O jogo, naturalmente, possui uma regra para determinar como e quando um
dos jogadores marca um ponto. Em um estágio inicial, não há a figura de um árbitro, e
ainda assim os jogadores são capazes de entrar em consenso quanto à pontuação. De
tempos em tempos conflitos e disputas podem surgir mas, no geral, o sistema permane-
ce algo estável. Digamos que, à medida que o jogo se torna mais complexo, os jogado-
res sentem a necessidade de incluir um indivíduo para marcar a pontuação do jogo.
Quando este indivíduo afirma “o jogador tal pontuou”, ambos os times devem se sub-
meter à decisão. Supondo que o slogan “direito é o que os tribunais dizem que ele é” es-
teja correto, o apontador do jogo tornar-se-ia, de fato, a única medida para decidir acer-
ca da pontuação. Contudo, rebate Hart, mesmo que a decisão do apontador seja final, a
regra de pontuação não deixa de existir. O apontador do jogo não têm poder discricioná-
rio absoluto, ainda existe uma regra para regular o seu comportamento, e ele deve tentar
concretizá-la ao máximo. Os jogadores, naturalmente, também tentarão aplicar a regra
dentro do jogo. Eles tentarão pontuar de acordo com o que diz a regra, não tomarão
como base uma previsão daquilo que o apontador diria. Em outras palavras: os jogado-
res continuam jogando o “jogo original” e não o “jogo-de-adivinhar-as-decisões-do-
apontador”, como seria o caso estivesse a tese realista correta.
Esta confusão entre os dois tipos de jogos não ocorre, segundo Hart, pois há um
núcleo estável de sentido do qual nem os jogadores nem o apontador podem se afastar:

It is this [o núcleo estável] which the scorer is not free to depart from, and
which, so far as it goes, constitutes the standard of correct and incorrect sco-
ring, both for the player, in making his unofficial3 statements as to the score,
and for the scorer in his official rulings. It is this that makes it true to say that
the scorer’s ruling are, though final, not infallible. The same is true in law.”
(HART, p.144, 2012) (Grifos meus)
Os casos fáceis estão encapsulados neste núcleo estável de significado, enquanto
os casos difíceis estão na fronteira dos conceitos e ainda mais além. O espaço entre o
núcleo, a área de penumbra e o absurdo deve ser preenchido pelo poder discricionário
do julgador. Apesar de haver decisões incorretas, há um limite ao qual elas devem obe-
decer, o apontador não pode “errar” indefinidamente sem que haja consequências.
Quando o apontador se excede, não se está mais jogando o jogo original e sim o “jogo-
de-se-adivinhar-as-decisões-do-apontador” (HART, 2012, pp.144-145).
Esta propriedade é apresentada por Hart com as seguintes palavras: “A supreme
tribunal has the last word in saying what the law is and, when it has said it, the state-
ment that the court was 'wrong' has no consequences within the system: no one's rights
or duties are thereby altered.” (HART, 1994, p. 141)
O argumento completo pode ser fragmentado e apresentado da seguinte maneira:
1. Os jogadores são capazes de se entenderem quanto à pontua-
ção do jogo mesmo antes da instituição de um árbitro.

1.1 Se o jogador estiver sendo honesto ele está se esforçando


para mapear o progresso do jogo fazendo referência a uma regra.

2. Quando o apontador é introduzido, ele deve arvorar-se na


mesma regra utilizada pelos jogadores.

2.1. Qualquer distanciamento por parte do apontador do jogo das


regras é observado pelos jogadores e pode levá-lo a ser afastado.

3. Se os jogadores acatarem o “arbítrio” do apontador do jogo,


não estarão mais jogando o jogo original, mas sim o “jogo-de-
se-adivinhar-as-decisões-do-apontador”.
De que modo podemos analisar a metáfora do apontador do jogo em termos de
jogo de linguagem, gramática e seguir-uma-regra? Tratemos a metáfora do mesmo
modo que Wittgenstein às vezes trata seus jogos de linguagem: supondo que eles sejam
“completos”, que possam ser vistos em si, sem precisarmos tomar emprestado critérios e
regras de outros jogos de linguagem.
Como podemos transformar a metáfora em um jogo de linguagem? Retomemos o
jogo de linguagem número dois, doravante “JdL2”, envolvendo o pedreiro A e o assis-
tente B, descrito no capítulo anterior.
Quando “A” grita “laje” ou “coluna”, o assistente vai até uma pilha de objetos,
pega um deles e o leva até o pedreiro. Como podemos torná-lo mais próximo do que
fala Hart? Introduzindo, é claro, um terceiro indivíduo ao jogo, o fiscal “C”. Agora, no
lugar de “B” dirigir-se diretamente a “A”, ele vai até “C” e o fiscal, após verificar o ob-
jeto nas mãos do assistente, libera ou não a sua passagem até “A”. No entanto, isto não é
suficiente para igualar o JdL2 à metáfora de Hart, pois há um componente competitivo
no comportamento dos jogadores, bem como um componente de liberdade de informa-
ção. Neste sentido, adicionemos uma suposição adicional: sempre que o objeto levado
pelo assistente é aceito pelo fiscal, o assistente ganha um ponto, e o pedreiro ganha um
ponto para cada objeto recusado pelo fiscal.

Como se daria a atividade dos indivíduos no jogo de linguagem descrito acima?

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