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LICENCIATURA EM FILOSOFIA
CAMPO GRANDE
2018
GABRIEL DE ARAÚJO MARTINS
CAMPO GRANDE
2018
DEDICATÓRIA
Agradeço primeiramente à minha filha Letícia Sayuri, que soube muito bem entender a
importância dessa graduação para mim, sendo compreensiva quanto à falta de tempo devido a
minha dupla jornada de trabalho e estudo. Ela é uma grande inspiração para minhas reflexões,
sua companhia e amor durante esses anos foram inestimáveis para minha formação. Agradeço
a minha amiga, correspondente e companheira de vida Aline, que durante toda minha
graduação me deu o apoio necessário para seguir esse caminho. Seja discutindo algumas
ideias, seja apenas me escutando, sou imensamente grato por ela estar presente na minha vida
nesse momento e por todo o amor que temos vivido.
THOMAS S. KUHN
CONCEITOS DE CAUSA NO
DESENVOLVIMENTO DA FÍSICA (1971)
RESUMO
1. INTRODUÇÃO ................................................................................................. 9
2. QUESTÕES CENTRAIS DA CAUSALIDADE PARA KUHN ................................... 21
2.1 As noções de causa estrita e causa ampla .......................................................................... 21
2.2 O hylemorfismo aristotélico ............................................................................................... 26
2.3 A causa eficiente na filosofia natural dos modernos .......................................................... 30
2.4 A física moderna e o problema da causa eficiente ............................................................. 34
1. INTRODUÇÃO
Essa pesquisa tem o intuito de analisar a teoria da causalidade e a concepção de causa
formal em Thomas Kuhn, presente na obra A Tensão Essencial (2011), mais especificamente
no capítulo dois, o artigo: Conceitos de causa no desenvolvimento da física. Essa análise tem
como objetivo demonstrar uma perspectiva em que a teoria da causalidade esteja relacionada
com as principais teses de Kuhn, como o paradigma e a incomensurabilidade.
O significado mais geral sobre o termo causalidade, como descrito por Abbagnano,
está relacionado a um nexo entre duas coisas em virtude da qual a segunda é univocamente
previsível a partir da primeira (2012, p. 142). Sob uma perspectiva histórica, como afirma
Mario Vegetti, a idéia de que a natureza implique um nexo universal de causa e efeito torna-se
explícita ao longo da filosofia pré-socrática, e o conceito de causa é extraído da linguagem da
medicina, com sua origem no termo aítion que designa uma “queixa” ou “acusação” e
também pode ser entendido como simplesmente “causa” ou “explicação”. (2008, p. 334).
No pensamento platônico, “causa” era tida como o princípio pelo qual uma coisa é ou
torna-se o que é (2012, p. 142). Abbagnano explica que Platão: “[...] afirma que a verdadeira
causa de uma coisa é aquilho que, para a coisa, é “o melhor”, isto é, a idéia ou o estado
perfeito da própria coisa [...]”. (2012, p. 142). Neste sentido, enquanto ligada a uma noção de
perfeição, Platão considerava as causas “divinas”, como explica Abbagnano. (2012, p. 142).
Após definir a noção de causalidade em Platão, ele explica que a análise verdadeira da noção
de causa encontra-se em Aristóteles, ela apareceria pela primeira vez na Física: “[...] este
afirma, pela primeira vez, que conhecimento e ciência consistem em dar-se conta das causas e
nada mais são além disso. Mas, ao mesmo tempo, nota que, se pergunta a causa significa
perguntar o porquê de uma coisa [...]”. (2012, p. 142).
10
1
O conceito de essência de Aristóteles está relacionado à noção de causa formal: é o que define o que
um ente realmente é. Na definição de Nicola Abbagnano: “Por este termo, entende-se em geral qualquer
resposta à pergunta: o quê? Por exemplo, nas expressões ‘quem foi Sócrates? Um filósofo’, ‘O que é o
açúcar? Uma coisa branca e doce’, ‘O que é o homem? Um animal racional’, as palavras ‘um filósofo’,
‘um animal racional’ exprimem a essência das coisas a que se faz referência nas respectivas perguntas.”
(2012, p. 416). A causa formal é a essência das coisas, afirma Abbagnano: “[...] a causa é forma ou
modelo, isto é, a essência necessária ou substância verdadeira de uma coisa.” (2012, p.142).
11
No século XIX e XX, a causalidade passou por crescentes limitações quanto ao seu uso
no pensamento científico. Para Abbagnano, a principal ruptura das noções de causalidade
neste período aconteceu com o progresso da física subatômica e com a descoberta do
princípio de indeterminação de Heisenberg em 1927. (2012, p. 146). Ele explica que este
principio estabelece a impossibilidade de medir com precisão uma grandeza, sem prejuízo da
precisão na medida de uma outra grandeza coligada, e, com isso:
Foi com este princípio de incerteza que a causalidade sofreu um golpe decisivo (2012,
p. 146). Neste sentido, a explicação de fenômenos microscópicos em termos de causas
mecânicas, eram inadequadas e imprecisas.
Este artigo de Kuhn é a nossa principal referência, e, temos duas intenções – que estão
relacionadas a ele – para essa pesquisa; 1) Analisar a interpretação da causalidade em Kuhn –
que pode ser entendida como uma nova concepção de causa formal – aproximando-a com
suas principais teses: o paradigma e a incomensurabilidade; 2) Demonstrar que essa
aproximação pode contribuir com a perspectiva de uma racionalidade científica em Kuhn.
Essas intenções se mostram problemáticas, na medida em que pouco se comentou acerca da
concepção de causalidade em Kuhn na filosofia da ciência. Entretanto, ao notarmos que
determinadas questões dessa teoria debatidas por ele, também sejam muito discutidas por
filósofos de outras áreas – como a filosofia natural, metafísica e história da filosofia –
podemos, através de uma análise da causalidade dessas áreas filosóficas, encontrar as
aproximações que consideramos.
12
No sentido metafísico da causa ampla, explicaremos que ele não só atende ao conjunto
das quatro causas estabelecendo as relações entre elas, mas está fortemente associado à causa
2
Em algumas obras de história da filosofia é notório que a teoria das quatro causas seja relacionada a
algumas áreas da filosofia como a física, metafísica e teleologia. Utilizamos como referências nessa
pesquisa historiadores como: Nicola Abbagnano (2012), Jonathan Barnes (2013), Marilena Chauí
(2014), Giovanni Reale (2013), Bertrand Russel (1969) e Fillipo Selvaggi (1988). Tais autores tratam a
doutrina das quatro causas explicando essas relações com a física, metafísica e teleologia.
3
É importante explicar que, o conceito teleologia é diferente de teologia. O primeiro é um conceito da
filosofia natural que está relacionado ao finalismo, ou seja, explica os fins das coisas, como explicado
por Abbagnano: “[...] a parte da filosofia natural que explica os fins das coisas. O mesmo que
finalismo.” (2012, p. 1110). O segundo é o conhecimento que trata de Deus e das coisas divinas: “Em
geral, qualquer estudo, discurso ou pregação que trate de Deus ou das coisas divinas.” (2012, p. 1119).
4
Abordaremos a questão da abstração do conhecimento em Aristóteles na perspectiva de Filippo
Selvaggi nesta pesquisa. Para auxiliar o entendimento desta questão nesta introdução, podemos
comentar que há uma hierarquia do conhecimento em Aristóteles ditada pela abstração: quanto mais
abstrato é o conhecimento, mais superior ele é. As ciências teoréticas são superiores justamente por
serem conhecimentos com maior grau de abstração, como a física, a matemática e a metafísica. Dessas
ciências teoréticas, a física seria a menos abstrata, seguida pela matemática e pela metafísica, a mais
abstrata.
5
Para Giovanni Reale, a metafísica para Aristóteles era considerada como filosofia primeira, como
explica na passagem: “A metafísica é a ciência mais elevada, diz ele, justamente porque não está ligada
às necessidades materiais. A metafísica não é uma ciência dirigida a fins práticos ou empíricos. [...] a
metafísica é a ciência que vale em si e para si, porque tem em si mesma o seu fim e, neste sentido, é
ciência ‘livre’ por excelência.” (2013, p. 30-31).
13
formal, uma vez que pensa a essência. Com relação ao sentido físico da causa estrita,
explicaremos que ele está fortemente associado à causa eficiente, pois pensa a questão do
movimento.
Na segunda seção do capítulo 2 trataremos a teoria do hylemorfismo6 de Aristóteles.
Explicaremos que ela constitui a metafísica das causas material e formal, trataremos dela,
pois, a causa formal é o aspecto mais importante nesta pesquisa, uma vez que discutiremos a
interpretação de Kuhn sobre a mesma. Como analisaremos a questão da metafísica, é
importante ressaltar que trabalharemos com duas noções, a primeira é a definição que
Giovanni Reale apresenta de metafísica Aristotélica, e a segunda é uma noção metafísica de
Kuhn, corroborada através da análise que faremos de sua interpretação da causa formal. A
definição de Reale que utilizaremos como referência é a seguinte: “A metafísica aristotélica, é
com efeito, a ciência que se ocupa das realidades que estão acima das físicas, das realidades
transfísicas ou suprafísicas, e, como tal, opõe-se à física.” (2013, p. 27). A segunda noção de
metafísica é semelhante à de Aristóteles, mas está relacionada somente à forma como
entendemos que Kuhn interpreta alguns aspectos da ciência: as teorias científicas possuem
estruturas explicativas particulares7 na sua forma matemática e na sua linguagem, tais
estruturas são semelhantes às noções metafísicas de essência e forma em Aristóteles, então
nesse sentido, as teorias são explicações metafísicas8 (causais) para determinados fenômenos
da natureza.
Na terceira seção do capítulo 2, analisaremos a teoria das quatro causas na filosofia
moderna, explicaremos suas implicações para a nova filosofia natural, onde a transição da
física aristotélica para a filosofia moderna foi marcada por importantes rupturas: dentre as
quatro causas aristotélicas (causa material, formal, eficiente e final), as causas material e
formal se tornaram obsoletas, pois elas eram metafísicas (teoria do hylemorfismo), e a causa
final também se tornou desnecessária para a filosofia natural desse período, pois ela era
6
A teoria do Hylemorfismo afirma a existência de dois princípios básicos, a matéria e a forma. Em sua
etimologia Hylé significa matéria e morfismo significa forma, formato ou molde.
7
Quando falamos que estas estruturas são particulares, é que elas possuem características próprias,
determinados atributos particulares. Essa peculiaridade está relacionada à construção matemática e
conceitual dessas teorias. É importante ressaltar, que a classe de teorias científicas com o qual Kuhn
considera “peculiar” neste sentido, são algumas teorias da física contemporânea, bem como quaisquer
tipos de teorias separadas por revoluções científicas, como a astronomia ptolomaica e a copernicana,
que neste sentido, são particulares devido as fortes diferenças que possuem. Quando utilizarmos esse
termo nessa pesquisa, estaremos nos referindo somente a teorias científicas consideradas por Kuhn,
incompatíveis.
8
Entendemos que essa ideia de Kuhn, onde as estruturas explicativas de algumas teorias científicas
sejam incompatíveis, esteja relacionada à noção de essência e forma de Aristóteles, pois, neste sentido,
a estrutura de uma teoria é para Kuhn, como a essência ou forma de uma teoria, no sentido metafísico
de causa formal em Aristóteles. Portanto, entendemos que as teorias sejam explicações metafísicas (no
sentido de causalidade) de determinados fenômenos da natureza devido a essa incompatibilidade.
14
basicamente uma teoria teleológica, sendo assim, ainda metafísica. A causa eficiente foi a
única parte da teoria aristotélica que conseguiu se adaptar à filosofia moderna, pois, ela seria a
única das quatro causas livre de resquícios metafísicos, quando vista isoladamente das outras
três causas. Por condizer satisfatoriamente com o mecanicismo9 e a matemática10 da filosofia
moderna, a causa eficiente foi uma teoria aceita pela nova física11 em ascensão. Chamaremos
essa física através do termo “física pós-aristotélica”, pois consideramos prioritariamente a
questão da causalidade na revolução científica, embora consideremos, em determinados
momentos, tratar outros temas da física. Por esse motivo, também consideramos tratar a
filosofia moderna como uma nova filosofia natural.
Na última seção deste capítulo, abordaremos as implicações da causa eficiente na
física moderna dos séculos XIX e XX. Discutiremos que, embora a causa eficiente tenha sido
aceita nesta transição da física aristotélica para filosofia natural até o século XVIII, nota-se
uma nova fase da física a partir do século XIX onde há uma ruptura quanto ao entendimento
sobre temas como espaço, tempo, medidas e, como trataremos nesta pesquisa, a causa
eficiente. Tais mudanças demonstram a ineficiência da causa eficiente em se adaptar a essa
física, com isso, Kuhn faria uma nova interpretação à outra das quatro causalidades, a causa
formal. Para o filósofo, determinadas teorias da física moderna podem ser interpretadas sob o
viés da causa formal, o que representa um problema a ser tratado durante nossa pesquisa, pois
a causa formal é metafísica. Com isso, nos perguntaremos se é possível utilizar causalidade
9
Quando utilizarmos o termo “mecanicismo”, estaremos nos referindo a ele como um sistema filosófico
da modernidade, presente na nova física, que, como dito por Selvaggi: “[...] nega a existência de
qualidades sensíveis intrinsecamente variáveis e reduz toda a realidade material unicamente à
quantidade e movimento.” (1988, p. 284).
10
Quando nos referirmos à matemática nesta pesquisa, o sentido deste termo está vinculado a filosofia
moderna, e também ao mecanicismo. Neste período ela é determinante para o cientista, pois, como
enfatiza Selvaggi: “A redução da natureza a elementos matemáticos e mecânicos tem, não há dúvida,
favorecido, juntamente com outros fatores sociais, econômicos e técnicos, a intervenção ativa do
cientista na investigação da natureza, com a qual o cientista não se contenta com observar, mas
intervém ativamente para forçar a natureza a responder às suas perguntas.” (1988, p. 46). Selvaggi
esclarece que a geometria e o mecanicismo são características essenciais a ela: “A exigência de uma
ciência matemática do mundo é baseada por Galileu, o verdadeiro iniciador da ciência moderna, em
uma concepção platonizante da realidade, não estranha à própria linguagem bíblica, ou seja, em um
realismo matemático segundo o qual o mundo real e objetivo ‘é escrito em língua matemática, e os
caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas, sem as quais é impossível compreender
dela humanamente uma palavra.” (1988, p. 45). E explica também que essa perspectiva matemática da
filosofia moderna, se deu pela necessidade de a filosofia natural alcançar uma objetividade matemática:
“A matemática e a cinemática constituíram, assim, para todas aas outras ciências da natureza que se
achavam ainda em um estádio pouco menos que primitivo um modelo ideal, mas também,
consequentemente, fundaram a esperança de que todos os fenômenos naturais pudessem encontrar nelas
a sua explicação última e adequada.” (1988, p. 45).
11
A nova física que nos referimos trata-se de um conjunto de teorias da física que podem ser entendidas
como marcos importantes a partir do século XVI, como a astronomia copernicana, a física de Newton e
Galileu, além da nova filosofia que muito influenciara no desenvolvimento das ideias da física, como a
filosofia de Descartes e Bacon.
15
em seu aspecto metafísico (a causa formal) como ferramenta para entender a ciência e as
teorias físicas atuais.
No capítulo 3, temos a pretensão de discutir de que forma Kuhn aponta para uma nova
forma de se entender a causalidade, e, consequentemente, uma novo entendimento para
determinadas teorias da física. Explicaremos que o seu posicionamento quanto a essa teoria
demonstra uma nova concepção de causa formal, e abre possibilidades para uma possível
interpretação metafísica da ciência, mais especificamente da física moderna a partir do século
XIX. Desta forma, através do artigo Conceitos de causa no desenvolvimento da física, temos a
intenção de relacionar essa interpretação da causa formal com as outras questões importantes
da obra de Kuhn, como o paradigma12 e a incomensurabilidade13.
Na primeira seção deste capítulo, esclareceremos sobre a abordagem internalista14 e
externalista15 da história da ciência, e de que forma Kuhn se define como um externalista,
bem como considera um posicionamento intermediário entre essas duas posições. O
externalismo de Kuhn entende que, uma melhor compreensão da história da ciência se faz
através da análise das relações dos diferentes ramos de conhecimento não científicos com o
conhecimento científico, essa perspectiva nos apresenta margem à interpretação que temos de
Kuhn: se ele considera a influência de outros ramos de conhecimento em sua compreensão
historiográfica da ciência, certamente podemos considerar a relação da metafísica com a
ciência, uma vez que a causa formal de Aristóteles seja uma teoria metafísica.
Na segunda seção, vamos considerar, hipoteticamente, de que forma a metafísica pode
ser percebida na filosofia da ciência de Kuhn. Vamos analisar de modo breve: como a
metafísica se relaciona com a filosofia da ciência e com a própria ciência de uma maneira
geral; como ela pode ser entendida por essa concepção de causa formal, e de que forma tal
concepção pode se aproximar das teses centrais de Kuhn, considerando-as, assim, também
relacionadas com a metafísica. Consideramos nesta seção, introduzir alguns dados biográficos
que demonstrem como Kuhn foi influenciado pela Física de Aristóteles, para demonstrar de
forma sugestiva que se ele considera um diálogo entre filosofia e ciência, desta forma,
possivelmente também considere um diálogo entre metafísica e ciência. Em consequência
12
Paradigma na teoria de Kuhn é tudo aquilo que é praticado por membros de uma comunidade
científica, de forma isolada e distinta de outras teorias e conhecimentos.
13
Incomensurabilidade para Kuhn é a incompatibilidade teórica que existe entre duas teorias científicas
distintas.
14
A abordagem internalista da história da ciência, em suma, entende que a ciência é uma só, por isso o
termo “interno”, ou seja, entendemos o que é a ciência analisando somente a própria ciência.
15
A abordagem externalista entende que as ciências são várias, por isso o termo “externo”, ou seja,
entendemos o que é a ciência analisando as relações dela com outras áreas de conhecimento.
16
16
A matriz disciplinar enquanto uma nova definição de paradigma se limita a entender dois aspectos
estruturais das teorias científicas: o componente matemático e linguístico. Neste sentido, da mesma
forma que o paradigma, a matriz disciplinar também está relacionada a tudo aquilo que é praticado por
membros de uma comunidade científica.
17
explicar o que é exatamente esse “mundo”, Hoyningen-Huene explica que na verdade Kuhn
estaria implicitamente pensando em dois tipos de mundo para explicar o que são as mudanças
científicas: o mundo dado pelo sujeito, que é um mundo teórico criado através das estruturas
matemáticas e conceituais, e o mundo dado pelo objeto, que é o próprio mundo físico ou a
natureza. A discussão acerca da matriz disciplinar e da incomensurabilidade será apresentada
de forma a encontrarmos nelas, as relações com a noção de causa formal.
No capítulo 4 desta pesquisa, defenderemos que essa interpretação onde aproximamos
o paradigma e a incomensurabilidade com a noção de causa formal, é importante, pois,
através dela percebemos que a filosofia da ciência de Kuhn tem uma compreensão racional do
desenvolvimento científico. Com isso, temos a intenção de advogar que em sua filosofia da
ciência, podemos encontrar importantes conceitos de racionalidade científica17. Consideramos
que é importante discutir essas questões, pois, reconhecemos que após a publicação da
E.R.C18 Kuhn foi acusado, dentre outras coisas, de ser um irracionalista. O professor Daniel
Laskowski Tozzini comentou e sistematizou as críticas que Kuhn recebeu, com isso,
utilizaremos o seu livro Filosofia da Ciência de Thomas Kuhn, Conceitos de Racionalidade
Científica (2012) para discutir essas críticas e argumentar o porquê de considerarmos que
Kuhn tenha uma interpretação racionalista.
Na primeira seção, vamos explicar as críticas que Kuhn recebeu e fazer as
considerações sobre elas. Comentaremos a obra A Crítica e o Desenvolvimento do
Conhecimento, pois nelas estão centradas as principais acusações de irracionalismo que ele
sofreu por importantes autores da filosofia da ciência: Paul Feyerabend, Imre Lakatos,
Margaret Masterman, Karl Popper, Stephen Toulmin, John Watkins e L. Pearce Williams.
Enfatizaremos qual era a perspectiva de Kuhn diante tantas interpretações negativas sobre a
E.R.C, da mesma forma, mostraremos como ele se preocupou em se defender do que ele
considerou como equívocos interpretativos de suas teses.
Na segunda seção, vamos tratar a fundo uma dessas críticas: a de que o paradigma era
um conceito vago e ambíguo, portanto, irracional. Temos a intenção de demonstrar que nas
17
Enfatizamos que, o conceito de racionalidade que utilizaremos aqui, trata-se somente da racionalidade
científica. Tozzini tem uma definição do termo que se encaixa nessa pesquisa, por isso a utilizaremos:
“Tradicionalmente, a racionalidade científica está vinculada à utilização de critérios por cientistas para
sustentar suas deliberações. Esses critérios deveriam ditar o que deve e o que não deve ser feito. Por
meio deles, as escolhas de teorias converter-se-iam em procedimentos algorítmicos – um conjunto de
regras bem definidas e ordenadas que, se seguidas adequadamente, produzem um resultado único e
certo. Um impasse teórico, uma situação no qual um grupo de cientistas precisa decidir entre aceitar um
ou outro conjunto de crenças para resolver um problema científico, seria trivialmente solúvel.” (2014, p.
4).
18
Estrutura das Revoluções Científicas (2013). E.R.C. Utilizaremos essa abreviatura quando citarmos
essa obra.
18
19
As matrizes disciplinas são trabalhadas no Posfácio da edição de 1969 da E.R.C e também no artigo
Reconsiderações acerca dos paradigmas escrito em 1974 presente no livro A tensão essencial (2011).
20
A ciência normal é atividade exercida regularmente por um grupo de cientistas através de um
paradigma. Ela é caracterizada por um conjunto de crenças desenvolvidas como tradições por esses
grupos, e a prática da solução de problemas gerados pelo paradigma. (2013, p. 87-101).
19
acerca das teorias e explicações sobre mundo, demonstrando a quão vasta e complexa é
possibilidade do entendimento humano do mundo. A racionalidade científica pode aperfeiçoar
o empreendimento científico no alcance desse entendimento.
20
21
21
O aspecto mais abrangente e filosófico da causalidade é noção metafísica de causa formal, pois pensa
a questão da essência.
22
Suas obras analisadas aqui são: Física I-II (2013) e Metafísica (1973).
22
relações com a física e metafísica. A doutrina das quatro causas de Aristóteles apareceu
primeiro em sua obra Física, sendo retratada posteriormente em seus livros23 da Metafísica.
Na primeira obra citada, nos dois primeiros livros, Aristóteles aponta a necessidade do estudo
da causalidade como uma ferramenta filosófica para os estudos da física:
O conceito das quatro causas constitui a base para o estudo das ciências naturais,
entretanto, como na citação acima, Aristóteles ressalta que, a causalidade pode possuir
múltiplos sentidos. Com isso vamos expor aqui, segundo a concepção de causalidade de
Aristóteles e Kuhn, que o conceito das quatro causas possua diferença do conceito de
“causalidade”. Citemos novamente Aristóteles demonstrando a pluralidade da noção de
causalidade e a restrição da noção das quatro causas:
23
Expliquemos aqui que a Metafísica não se trata de uma só obra do filósofo, mas de um conjunto de
quatorze livros de Aristóteles que, posteriormente foram reunidos e organizados por Andrônico de
Rodes, que intitulou tal conjunto desses escritos aristotélicos como Metafísica.
23
Assim como Aristóteles, Kuhn reconhece que, para uma análise bem sucedida que
diferencie o conceito de causalidade para com o conceito das quatro causas, se faz necessário
compreendê-las por dois aspectos distintos entre si: a causa ampla e a causa estrita.
Explicando agora de forma mais completa, a causa ampla é entendida como uma noção mais
abrangente de explicação sobre determinado fenômeno, questionamos eventos da natureza
através de perguntas gerais como “por que o fenômeno ocorre?”, são explicações que
envolvem eventos causais, mas não necessariamente obedecem a um critério mecanicista que
obedeça a determinadas leis restritas. Já a causa estrita, diferente da ampla, se mostra muito
próxima à teoria das quatro causas em especial a causa eficiente, pois, se apresenta como uma
justificação mecânica que explica a eficiência dos fenômenos causais através do movimento,
como dito por Kuhn:
24
A causalidade enquanto conceito presente na definição de filosofia de Aristóteles está relacionada a
uma noção de causa ampla: a filosofia é uma busca pelas causas em sentido mais abrangente, não a
busca pelo entendimento da natureza através de suas causas mecânicas. Portanto, a concepção de
causalidade é entendida como metafísica.
25
A busca teorética das causas, para Aristóteles se dá através das próprias ciências teoréticas que ele
classificou, como explicaremos em nota a seguir.
26
É importante explicar aqui que o termo “arte” é utilizado por Aristóteles no mesmo sentido que
“ciência teorética”, como se pode notar na citação que segue no próximo paragrafo.
27
Utilizamos aqui a classificação de Giovanni Reale (2013, p. 27).
25
Foi, com efeito, pela admiração que os homens, assim como no começo,
foram levados a filosofar, sendo primeiramente abalados pelas dificuldades
mais obvias, e progredindo em seguida pouco a pouco até resolverem
problemas maiores: por exemplo, as mudanças da Lua, as do Sol e dos astros
e a gênese do Universo. Ora, quem duvida e se admira julga ignorar: por isso,
também quem ama os mitos é, de certa maneira, filósofo, porque o mito
resulta do maravilhoso. Pelo que, se foi para fugir à ignorância que
filosofaram, claro está que procuraram a ciência pelo desejo de conhecer, e
não em vista de qualquer utilidade. (Aristóteles, 1973, p. 214)
Ao notar que as causas podem ter sentido amplo e estrito, podemos analisar a teoria de
Aristóteles e também notar que, cada uma das quatro causas (material, formal, eficiente e
28
Como dito por Reale (2013, p. 27), as ciências teoréticas para Aristóteles eram três: metafísica, física
e matemática, sendo a metafísica a mais elevada de todas. Com isso, frisamos esta relação de causa
ampla com a metafísica, pois, para Aristóteles, a causalidade em sentido metafísico é superior a
causalidade em sentido físico. Na medida em que ela não se restringe somente a compreensão causal do
movimento dos objetos do mundo físico – como seria a compreensão causal através da causa eficiente
de forma isolada – mas se aplica a noções mais filosóficas causais que remetem a todas as quatro causas
sendo aplicadas de forma conjunta. Dessa forma, uma noção causal ampla (metafísica) é mais teorética,
por esse motivo superior as outras.
29
Na Metafísica Aristóteles cita alguns dos filósofos pré-socráticos que indagaram as causas: Tales de
Mileto, Anaxímenes, Diógenes, Hípaso Metapontino, Heráclito, Empédocles, Anaxágoras e
Parmênides. (1973, p. 216-218).
30
Segundo Aristóteles, essas questões físicas e cosmológicas indagadas pelos filósofos pré-socráticos
diziam respeito às causas da própria natureza: “A maior parte dos primeiros filósofos considerou como
princípios de todas as coisas unicamente os que são da natureza da matéria. E aquilo de que todos os
seres são constituídos [...]”. (1973, p. 216).
26
final) pode ser tratada distintamente com determinadas características filosóficas, como
exemplo: a causa final contém relação com o teleologismo, a causa eficiente contém relação
com a física. Entretanto, partimos do pressuposto de que as quatro causas, em conjunto
constituem a metafísica aristotélica. Essa aproximação entre metafísica e causalidade pode ser
entendida na seguinte passagem, onde Reale afirma:
Assim, fica clara a relação entre a causalidade e metafísica em pelo menos duas
definições dadas por Reale: a metafísica como indagação das causas e princípios primeiros e
supremos, e a metafísica enquanto a indagação da substância31. Ora, para se indagar quais são
as causas primeiras, bem como indagar o que é a substância, devemos primordialmente
pensar nas quatro causas em conjunto como uma ferramenta que possa responder a tais
indagações.
31
A metafísica enquanto indagação da substância tenta resolver o problema de determinar o que é a
própria substância, segundo Reale: “Os predecessores de Aristóteles deram à questão da substância
soluções antitéticas: alguns viram na matéria sensível a única substância; Platão, ao invés, indicou nos
entes suprassensíveis a verdadeira substância, enquanto o senso comum parecia indica-la nas coisas
concretas. Aristóteles afronta ex novo a questão, estruturando-a de maneira exemplar. Depois de ter
reduzido o problema ontológico geral ao seu núcleo central, isto é, à questão da ousia, diz, com toda
clareza, que o ponto de chegada consistirá em determinar que substâncias existem: se somente as
sensíveis (como querem os naturalistas) ou também as suprassensíveis (como querem os platônicos).”
(2013, 45). Reale chama de ousia essas indagações sobre a substância, ele completa: “O estagirita diz
que por ousia podem-se entender, a título diverso, seja 1) a forma, seja 2) a matéria, seja 3) o sínolo de
matéria e forma.” (2013, 46). Portanto, a relação entre causalidade e metafísica pode ser entendida da
seguinte forma: a metafísica indaga o que é a substância (ousia), determinando o aspecto material e
formal das coisas.
27
a substância. Dada essa questão, Reale aponta três sentidos para o termo: a forma, a matéria e
o sínolo de matéria e forma (2013, p. 46). A substância no sentido de forma “... não é
obviamente a forma extrínseca ou a figura exterior das coisas [...], mas é a natureza interior
das coisas, o que é ou essência íntima das mesmas.” (2013, p. 47). A substância no sentido de
matéria, ressalta Reale, por ser a forma dependente da mesma: “Neste sentido, também a
matéria resulta fundamental para a constituição das coisas e, portanto, poderá ser dita – pelo
menos dentro de certos limites – substância das coisas” (2013, p. 47). Na terceira definição de
substância, a matéria e a forma juntas podem ser consideradas substância:
Reale deixa claro que a indagação sobre a natureza da substância, requer tanto as
noções de matéria quanto de forma, com isso, podemos inferir que a teoria das quatro causas e
as causas material e formal, são ferramentas teóricas metafísicas que servem para responder a
indagação: o que é a substância? Tendo a metafísica como a indagação da substância, e
também a indagação das causas primeiras, temos como ponto de partida deste princípio a
teoria do hylemorfismo. Esta palavra em sua etimologia é entendida como união entre a
matéria (hylé) e a forma (morfismo). O hylemorfismo está relacionado com as causas material
e formal em sua etimologia, entretanto, Aristóteles aponta que essas duas causas, devem estar
necessariamente relacionadas com as outras duas, as causas eficiente e final. Citemos a
passagem da Física com o qual Aristóteles relaciona as causas material e formal com a causa
final:
uma justificação pela da causa final; essa causa implica não só uma finalidade no sentido
material como, por exemplo – uma estátua de mármore existe para ser apreciada
esteticamente em um museu – mas também finalidade no sentido de razão e de realização:
tudo o que existe tem uma razão para existir e a realização é o que completa essa existência.
Aristóteles demonstra também a relação da causa eficiente para com as causas
hylemorfísticas: “Naquilo que resulta da técnica, somos nós que fazemos a matéria ser em
vista de função, ao passo que, nos entes naturais, a matéria já se encontra em vista da função.”
(2013, p. 47).
Mas, muitas vezes, estas três convergem para uma só coisa; o ‘o que é’ e
aquilo em vista de quê são uma só, e lhes é especificamente idêntico aquilo
de que procede primeiramente o movimento, pois é um homem que gera um
homem – e, em geral, tudo quanto move sendo movido (mas tudo quanto
move sem ser movido não mais compete à ciência natural, pois não é por
terem em si mesmo movimento ou princípio de movimento que movem, mas
sendo imóveis [...]) Por conseguinte, o porquê é explicado por alguém na
medida em que se reporta à matéria, na medida em que se reporta ao ‘o que
é’ e na medida em que se reporta àquilo que primeiramente moveu [...] Algo
é de tal tipo na medida em que move sem ser movido (como aquilo que é
inteiramente imóvel e primeiro entre todos, assim como o ‘o que é’ e a
forma): isso é acabamento e o em vista de quê. Por conseguinte, dado que a
natureza é em vista de algo, é preciso conhecer também essa causa, e deve-se
explicar o porquê de todos os modos [...]. (Aristóteles, 2013, p. 56).
Como dito pelo filósofo, ser “em vista de quê” significa ser por uma causa final, e,
como fica claro na citação supracitada, a causa final de todas as coisas, devido a uma
29
regressão necessária das causas, nos conduz ao conceito de um agente causador inicial de toda
a existência, que, por isso, seria necessariamente imóvel.
“Por conseguinte, se há de existir uma casa, é necessário que tais e tais coisas
venham a ser ou estejam dadas, ou que, em suma, seja o caso a matéria que é
em vista de algo, por exemplo, tijolos e pedras, se há de existir uma casa. No
entanto, o acabamento não é devido a tais coisas (a não ser enquanto
matéria), tampouco é devido a tais coisas que ele viria a ser. Entretanto, se,
em suma tais coisas não forem o caso, nem a casa nem o serrote poderão ser
o caso – aquela, se não houver pedras, este, se não houver ferro; de fato,
tampouco lá seriam verdadeiros os princípios, se não fosse verdadeiro que o
triângulo tem dois ângulos retos.” (Aristóteles, 2013, p. 61).
Como dito por Aristóteles, o acabamento (causa formal) tem papel fundamental na
constituição dos entes, e, partindo desse pressuposto é que posteriormente analisaremos de
que forma determinados ramos científicos contemporâneos (século XIX e XX), em especial
na física, podem ser interpretados através dessa noção de causa formal como é proposto por
Kuhn em A Tensão Essencial (2011) no artigo Conceitos de Causa no Desenvolvimento da
Física (2011, p. 45-54).
Para concluir a noção das quatro causas com o qual trabalharemos posteriormente
neste trabalho, e, para esclarecer essas relações entre as quatro causas, podemos explicar de
forma mais sucinta as quatro causas da seguinte forma:
Marilena Chauí, em seu artigo Filosofia Moderna (2014) enfatiza a mudança que a
causalidade aristotélica sofreu na filosofia moderna, e de que forma ela se adaptou à nova
filosofia natural dos modernos. Das quatro causas (material, formal, eficiente e final), apenas
duas foram aceitas: a eficiente e a final. A causa eficiente foi aceita por condizer com o
mecanicismo em ascensão da física pós-aristotélica, como coloca Selvaggi: “A atividade da
natureza, ao invés, deve ser despojada de todo e qualquer caráter antropomórfico e reduzida a
uma força cega, pura causa eficiente e de modo algum intencional dos seus efeitos.” (1988, p.
47). Selvaggi enfatiza que, esse novo modo de compreensão da natureza através da causa
eficiente estaria vinculado às exigências de uma visão mais determinista32 do mundo, uma
visão matemática e mecanicista: “Unido ao caráter mecanicista, em parte raiz, em parte
32
Essa visão determinista está relacionada a um determinismo causal dos fenômenos no mundo.
Abbagnano, da mesma forma que Selvaggi, também a relaciona ao mecanicismo: “[...] a palavra
determinismo foi utilizada para designar o reconhecimento e o alcance universal da necessidade causal
[...] O determinismo vincula-se, por isso, ao mecanicismo [...]” (2012, p. 287).
31
consequência dele, está o caráter matemático da nova ciência e da nova visão do mundo: a
física qualitativa e descritiva das idades precedentes é substituída por uma física puramente
quantitativa e matemática” (1988, p. 46). Da mesma forma, afirma a importância de um
determinismo das questões causais para a ciência: “O rígido determinismo da concatenação
causal dos eventos do mundo é um outro aspecto fundamental, característico da concepção da
ciência moderna, diretamente vinculado à concepção matemática e mecanicista” (1988, p. 47).
A causa final, embora distinta do que era chamado de ciência na época, estaria
presente, pois, toda a tradição cristã ainda era permeada por uma noção de causa final
enquanto causa divina. É importante ressaltar que, nota-se no período moderno, o início de
uma distinção entre ciência e filosofia. Pensemos com isso a questão da causalidade, e, como
dito por Selvaggi, podemos inferir que a causa final, na filosofia moderna, seria tratada
somente no âmbito da filosofia, uma vez que ela não possuía uma visão determinista
matemática e mecanicista, diferente da causa eficiente, que por possuir essa visão seria tratada
somente no âmbito da ciência:
Como se percebe na citação de Selvaggi, inferimos que a causa final seria pensada
agora no âmbito da filosofia, ou seja, no âmbito do “espírito”, e, a causa eficiente seria
reduzida ao âmbito da ciência, ou seja, no âmbito da “matéria”. Com relação às causas
material e formal, elas também foram rejeitadas devido ao seu indeterminismo33 e por serem
causas com aspectos teoréticos34 sem um caráter experimental. Como dito por Selvaggi, se
33
As causas material e formal eram consideradas indeterministas para a filosofia, pois não podiam
estabelecer uma concatenação causal precisa dos fenômenos do mundo natural. Nesse sentido, não
podiam determinar com precisão matemática as próprias causas. Selvaggi escreve: “A esses caracteres
mais gerais prendem-se diretamente ainda outros dois aspectos mais particulares da ciência moderna, o
antifinalismo e o rígido determinismo, também estes em nítido contraste com a visão do mundo antiga e
medieval, essencialmente finalista e, em certo grau, indeterminista.” (1988, p. 47).
34
Selvaggi explica que: “Ao caráter matemático liga-se também o caráter operativo ou experimental da
ciência moderna, que se contrapõe ao caráter prevalente, senão exclusivamente teorético e observadora
da ciência antiga e medieval.” (1988, p. 45). As causas material e formal não possuem esse caráter
32
Como dito por Selvaggi, as causas material e formal se tornaram obsoletas por
possuírem princípios metafísicos, ora, contraditórios à física mecanicista. Com isso, a causa
eficiente seria a única ferramenta teórica das quatro causas que poderia relacionar-se com o
novo mecanicismo. O entendimento do funcionamento da natureza e do movimento tornaria
desnecessária a existência de uma essência35 da matéria. A causa eficiente seria suficiente
para explicar toda a ordem fenomenológica da natureza, tanto o devir da ordem cosmológica
da nova astronomia, como o da existência de fenômenos mais simples, como o movimento de
um objeto.
Como exemplo para se compreender a causa eficiente enquanto única causa necessária
ao mecanicismo, podemos analisar a seguinte questão: qual é a causa do movimento dos
planetas? Não é mais necessário pensar que os planetas possuam uma causa material, muito
menos uma essência (uma causa formal). Bastaria justificar toda a força mecânica causal
através de uma ordem de eficiência, ou seja, a gravidade, a expansão cósmica, a rotação e a
translação são a causa do movimento dos planetas. Selvaggi destaca o mecanicismo como
uma grande influência na reformulação da filosofia e física moderna:
operativo e experimental, neste sentido, essas noções de causa não podem “operar” nem “experimentar”
os fenômenos do mundo. Por exemplo: a causa material não pode explicar de forma objetiva o
movimento dos planetas da nova concepção astronômica de Copérnico, da mesma forma, a causa
formal não pode explicar o mesmo fenômeno pensando em um aspecto “formal” intrínseco ao
movimento dos planetas, ou seja, uma “essência” que descreva esses movimentos.
35
Na filosofia natural dos modernos era desnecessária a ideia de uma “essência” que explicasse a ordem
da natureza. Somente a compreensão do aspecto mecânico desses fenômenos traria uma visão com
suficiente poder explicativo.
33
Como citado, o mecanicismo teria valor prático para outras áreas do conhecimento,
uma vez que, como dito por Selvaggi, o homem poderia prever fenômenos naturais e
influenciar toda a ordem da natureza em favor de si próprio, ocasionando o progresso em
diversas áreas essenciais a vida do homem, como a industrialização, a tecnologia, a medicina
e outros. Essa nova filosofia natural determinista e mecanicista, serviria ao progresso não só
das clássicas áreas de conhecimento filosófico mais teóricas como a física, a matemática, mas
também seria útil para as áreas de conhecimento mais práticas do próprio homem como as
citadas anteriormente. Com isso, a física e matemática deixam de ser apenas o que Aristóteles
chamava de ciências teoréticas para compor essa nova filosofia natural, aquela que passou a
ser dotada de um novo conhecimento físico e matemático mais prático, como citado acima,
que pode influenciar na vida do homem.
Kuhn aponta que a causa eficiente viria a se tornar cada vez mais insuficiente para
explicar determinadas teorias surgidas a partir do século XIX. Com o mecanicismo da
filosofia natural dos modernos, na medida em que a física se matematizava, cada vez mais as
35
explicações passaram a obter um caráter subjetivo, com isso, esse determinismo causal passou
a se apresentar como um problema para a justificação de determinadas teorias:
Kuhn explica que, devido às particularidades de tais teorias da física, cada uma delas
deveria possuir uma estrutura explicativa própria, distintas de uma explicação mecanicista
causal. Citando exemplos da astronomia, Kuhn afirma que o problema do mecanicismo pode
ser representado através das anomalias cosmológicas. A ordem natural de tais fenômenos
cosmológicos, para Kuhn, é um claro exemplo de lacuna causal36, ou seja, há fenômenos
físicos que não podem ser explicados em termos físicos da causa estrita, por isso possuem
lacunas explicativas com relação as suas causas. Não há causa eficiente para fenômenos
astronômicos com o qual não se pode concluir dedutivamente que haja uma causa inicial e
uma causa eficiente:
Considerem, por exemplo, por que Marte se move numa órbita elíptica. A
resposta apresenta as leis de Newton aplicadas a um sistema isolado
composto de dois corpos maciços, interagindo segundo uma atração
inversamente proporcional aos quadrados das distâncias entre eles. Cada um
desses elementos é essencial à explicação, mas nenhum é a causa do
fenômeno. Também não são anteriores, mais do que simultâneos ou
posteriores, ao fenômeno que deve ser explicado. Ou então considerem a
questão mais limitada de Marte estar numa dada posição no céu num instante
particular. A resposta é obtida com base na anterior, incluindo na solução da
equação a posição e a velocidade de Marte num instante prévio qualquer.
Mas é despropositado chamar o evento anterior- que pode ser substituído por
uma infinidade de outros de causa da posição de Marte no instante
especificado pela questão. Se as condições de contorno fornecem a causa,
esta deixa de ser explicativa. (Kuhn, 2011, p. 50)
36
O termo lacuna causal é utilizado por Kuhn para mostrar que em algumas teorias científicas, não há
explicações causais (em termos de causa eficiente): “Hoje existem perguntas bem formuladas acerca de
fenômenos observáveis – por exemplo, o instante em que uma partícula alfa deixa o núcleo – que os
físicos declaram por princípio que não podem ser respondidas pela ciência. Como eventos particulares,
a emissão de uma partícula alfa e diversos fenômenos similares são não causados.” (2011, p. 52). Esses
fenômenos que não podem ser explicados por meio da causa eficiente, possuem lacunas causais.
36
Esse exemplo de uma lacuna causal com relação às explicações sobre o movimento
dos planetas, como citado por Kuhn, demonstra a restrição da causa eficiente. Ao tentar
explicar um fenômeno natural como o movimento do planeta Marte, nota-se que os elementos
explicativos, como por exemplo – as leis de Newton aplicadas a um sistema isolado composto
de dois corpos maciços, interagindo segundo uma atração inversamente proporcional aos
quadrados das distâncias entre eles – não demonstram que tal fenômeno tenha uma causa.
Kuhn entende que as teorias científicas (a partir do século XIX) utilizam uma nova forma de
explicação: as estruturas formais37.
A ordem natural dos fenômenos do mundo, como descrita por Kuhn, não podendo
mais ser justificada por uma causa eficiente, pode ser explicada através de sua própria
estrutura formal com o qual tais teorias da física podem ser descritas: “O que pode exigir mais
ênfase, talvez, é que a semelhança com a explicação aristotélica apresentada pelas explicações
nesses campos é apenas estrutural.” (2011, p.51). Sendo que tais teorias são dotadas de tais
estruturas, então essa própria estrutura teórica representa para Kuhn, em sentido aristotélico, a
causa formal de um fenômeno. Com isso, Kuhn está explicitamente propondo que o problema
do mecanicismo como ferramenta teórica para justificar as teorias modernas da física, poderia
ser resolvido através da aplicação da causa formal aristotélica:
explicações formais ou estruturas explicativas dos fenômenos, não mais com as causas
eficientes. Explicitaremos nos capítulos a seguir o porquê de um retorno a uma causalidade
em sentido metafísico e de que forma isso estaria relacionado com as principais teorias da
filosofia da ciência de ciência de Kuhn, como a teoria do paradigma e da
incomensurabilidade.
38
39
Na avaliação da ciência, levar em conta todos os elementos que nela concorrem, como
os racionais e experimentais, objetivos, psicológicos, seria para Kuhn, de forma semelhante a
Selvaggi, levar em conta os fatores internos e externos da ciência. Kuhn trabalhou com esses
termos nos textos Tradição matemática versus tradição experimental no desenvolvimento das
ciências físicas e A história da ciência em A tensão essencial (2011). Ele explica o problema
de uma abordagem internalista da historia da ciência: seria possível reduzir todos os campos
do conhecimento científico humano a uma só ciência? Quanto a isso, Kuhn afirma:
40
“[...] o tema de estudo dessa suposta empreitada mostra-se demasiado vasto, demasiado
dependente de detalhes técnicos e demasiado difuso coletivamente para ser esclarecido pela
análise histórica.” (2011, p. 57).
Por isso, o internalismo é considerado a-histórico38 por Kuhn, pois tem a pretensão de
se focar em conteúdos técnicos do desenvolvimento, bem como tem a tendência a se restringir
em um período histórico ou uma nação em particular: “Se o historiador tem de trabalhar com
empreitadas que ocorreram nos períodos que lhe dizem respeito, então os relatos tradicionais
do desenvolvimento das ciências individuais são muitas vezes profundamente a-históricos.”
(2011, p.57). Na seguinte passagem Kuhn deixa claro sua crítica a respeito da abordagem
internalista da história da ciência:
Como citado, para Kuhn a abordagem internalista é a-histórica, pois, não contribui
para a compreensão das relações que os próprios campos particulares da ciência possuem com
outras áreas de conhecimento, bem como não relaciona de forma satisfatória a relação
histórica entre esses diversos campos particulares e distintos, como ciências separadas por
revoluções. Em suma, é como se o historiador internalista negasse que o ambiente religioso
em que um cientista viveu o influenciou em sua própria teoria, ou negar que a forma como
uma determinada comunidade estabelece seus compromissos sociais também possa
influenciar na criação científica de um teórico dessa mesma comunidade: “Compromissos
sociais e filosóficos que promoveram o desenvolvimento de um campo específico em
determinada época dificultaram-no em outra.” (2011, p. 58). Da mesma forma, Kuhn reitera
que: “Se especificarmos o período considerado, as condições que promovem avanços em uma
ciência parecem com frequência adversas a outras.” (2011, p. 58).
38
Por este termo podemos entender “a” como uma negação ou disjunção, portanto, “a-histórico”
significa estar separado ou ser distinto da história.
42
Embora Kuhn tenha sido declaradamente um externalista, ele nunca tentou descrever a
história externalista como a correta, ambas as abordagens são dependentes, ou seja, para uma
correta historiografia se faz necessário tanto o entendimento de que o internalismo é muito
estreito e restrito, bem como o externalismo por si só seja insuficiente para a compreensão da
ciência como um todo. Quanto a essa dependência dessas abordagens, ele explica que elas
sejam: “[...] de fato, vieses complementares. Até que sejam praticadas desse modo, cada uma
extraindo elementos da outra, é improvável que certos aspectos importantes do
desenvolvimento científico sejam compreendidos.” (2011, p. 142). Com isso, fica claro que,
embora Kuhn se assuma como um historiador externalista, ele entende a importância de um
posicionamento intermediário entre as duas:
Mesmo denotando que a visão internalista tenha que estar conectada a externalista,
nessa pesquisa, nos interessa mais os aspectos externalistas presentes na historia da ciência de
Kuhn. Retornamos assim a um questionamento central desta pesquisa: a causa formal como
um aspecto metafísico presente na ciência moderna, segundo a interpretação de Kuhn. A
análise de que a ciência contenha aspectos metafísicos é um exemplo claro de abordagem
externalista da ciência. Retomamos uma citação que utilizamos anteriormente onde Kuhn
afirma: “[...] a estrutura da explicação física é muito semelhante à desenvolvida por
Aristóteles na análise das causas formais.” (2011, p. 52). Também citamos que, para Kuhn:
“[...] a ideia de que explicação formal funciona hoje de modo muito eficaz na física.” (2011,
p. 49). Com isso, esclareceremos que, em sua abordagem externalista, é possível aproximar a
metafísica em sua filosofia da ciência, como demonstraremos na próxima seção.
ampla possua relação direta com a metafísica, sendo isso percebido tanto pela concepção de
causalidade de Kuhn como diretamente nas obras Física e Metafísica do Aristóteles nas
citações presentes nesta pesquisa. Demonstramos também que, na teoria das quatro causas
aristotélica, todas as causas estavam estritamente ligadas e dependentes entre si, por esse
motivo pode-se considerá-las, a rigor, como uma teoria metafísica, ainda que a causa eficiente
tivesse um componente mecanicista (físico), e, mesmo a causa final um componente
teleológico. Por fim explicamos que a separação entre ciência e filosofia no período da
filosofia moderna, fez com que os componentes metafísicos da doutrina das quatro causas
fossem isolados da física moderna em ascensão na época, sobrevivendo apenas a causa
eficiente de forma isolada por ter sentido mecanicista. E que este mecanicismo ou causa
eficiente tornou-se ineficaz com o aparecimento da física moderna dos séculos XIX e XX.
Com essas noções que propomos da causalidade, queremos desde o início defender que
Kuhn possua indiretamente um posicionamento metafísico, embora ele não deixe isso
explicito em suas obras. Por esse motivo tentemos explorar um pouco o que consideramos um
conteúdo metafísico de sua obra. De início, é oportuno demonstrar que na filosofia da ciência,
a percepção da relação entre ciência e metafísica não é única. Abraham Moles, no início de
sua obra A criação científica (1971), diferente de Kuhn, deixa bem clara esta relação entre
ciência e metafísica na seguinte passagem:
Essa distinção entre filosofia e ciência com início na filosofia moderna, a partir da
física pós-aristotélica e mecanicista, como já tratamos anteriormente, está relacionada com a
distinção entre matéria e espírito, como dito por Selvaggi em citações anteriores (capítulo 2,
seção 3, p. 25). O retorno para uma troca de ideias entre o cientista e o filósofo citado por
Moles, seria semelhante ao retorno de uma união entre matéria e espírito citado por Selvaggi.
Como já dito, Selvaggi explica que na filosofia dos modernos a matéria seria tratada no
âmbito da ciência, e o espírito no âmbito da filosofia (1988, p. 49). Podemos supor com isso,
44
que Kuhn, de forma semelhante a Moles e Selvaggi, também propõe uma forma de diálogo
entre a filosofia e ciência, mais especificamente a física moderna que Moles cita. Tal diálogo
pode se dar através dessa nova concepção de causa formal proposta por Kuhn. Da mesma
forma que Moles, podemos retornar a Selvaggi que demonstra um aspecto positivo desta
relação entre ciência e metafísica, afirmando-a como consequência da própria restrição
mecanicista imposta a ciência do período moderno:
De que forma então, Kuhn estabeleceria um diálogo entre ciência e metafísica com a
sua concepção da causa formal? Entendemos que, se para Kuhn há uma semelhança entre as
estruturas explicativas na física atual com as explicações aristotélicas de causa formal (2011,
p. 52), então para ele a metafísica deve estar presente nas mesmas, pois, não só a teoria das
quatro causas é uma teoria metafísica, mas a causa formal de modo isolado – como nas
explicações sobre o hylemorfismo – é um componente metafísico da causalidade. Propomos
45
com isso, que Kuhn seja um aristotélico39, na medida em que encontra semelhanças entre
essas explicações, embora as interprete de seu modo particular. Tal modo consiste em pensar
a causa formal de modo isolado, diferente de Aristóteles que entendia que as quatro causas
são dependentes entre si.
39
Quando nos referirmos a Kuhn como um aristotélico, o fazemos de forma hipotética. Como tratamos
nessa seção, a metafísica na obra de Kuhn está presente de forma implícita, e somente através de uma
leitura atenta e até um pouco conjectural podemos perceber a relação de sua teoria com a metafísica, e
em que sentido Kuhn seja um aristotélico. Pela sua concepção de causa formal podemos entender um
certo aristotelismo. O estudo da Física de Aristóteles exerceu uma influência na teoria de Kuhn, na
medida em que ele passou a se interessar pelas revoluções científicas, e, também a refletir sobre a
própria teoria aristotélica. Desta forma, em Conceitos de causa no desenvolvimento da física ele
demonstra o que entendemos como uma maneira “aristotélica” de se analisar as teorias da física:
comparando a teoria de Aristóteles – e forma como ele explicava os fenômenos pelas causas formais, ou
essências – com as próprias explicações das teorias da física contemporânea: “[...] a explicação formal
funciona hoje de modo muito eficaz na física.” (2011, p. 49). Continua explicando que: “[...] no século
XIX, uma mudança que já havia começado na mecânica propagou-se a pouco por toda a física. À
medida que o campo se matematizava, a explicação dependia cada vez mais da apresentação de formas
apropriadas e da derivação de suas consequências. Com relação à estrutura, mas não em substância, a
explicação ainda era a da física aristotélica.” (2011, p. 50). Kuhn termina a explicação, mostrando de
que forma as explicações das teorias físicas a partir do século XIX se tornaram, em sua perspectiva,
aristotélicas: “Impelido a explicar um fenômeno natural, o físico escrevia uma equação diferencial
apropriada e dela deduzia, talvez em conjunto com condições de contorno especificadas, o fenômeno
em questão. Seguramente podia ter de justificar a escolha das equações diferenciais, mas o que podia
ser contestado era a formulação empregada, e não o tipo de explicação oferecida. Tivesse ou não
escolhido a correta, era uma equação diferencial, uma forma que dava a explicação para o ocorrido.”
(2011, p. 50). Kuhn entende que o aspecto “aristotélico” das teorias físicas que ele cita, está na
explicação que os cientistas utilizam para descrever os fenômenos da natureza, que é semelhante à
forma utilizada por Aristóteles pelas causas formais. Ao analisarmos o termo “aristotelismo”, também
podemos entender que Kuhn em certo sentido (em sua concepção de causa formal) seja um aristotélico,
Abbagnano o define da seguinte forma: “Por esse termo entendem-se alguns fundamentos da doutrina
de Aristóteles que passaram à tradição filosófica ou que inspiraram as escolas ou os movimentos que se
reportam mais diretamente ao próprio Aristóteles [...].” (2012, p. 90). Nesse sentido, em sua concepção
de causa formal, Thomas Kuhn se reporta diretamente a Aristóteles para analisar as teorias físicas
contemporâneas e utiliza o próprio pensamento aristotélico para isso. Abbagnano delimita os tipos de
“fundamentos da doutrina de Aristóteles” que estão relacionados ao conceito de “aristotelismo” em seis
tipos, em um deles ele escreve: “Importância atribuída por Aristóteles à natureza e o valor e a dignidade
das indagações a ela dirigidas. [...]. Aristóteles considerava que nada há na natureza tão insignificante
que não valha a pena ser estudado, visto que, em todos os casos, o verdadeiro objeto da pesquisa é a
substância das coisas.” (2012, p. 90). Embora Kuhn não atribua – pelo menos diretamente – certo valor
as indagações da natureza, e também não entenda que o “verdadeiro objeto de pesquisa” seja a
substância, sua concepção de causa formal, em certo sentido contém relação com esses conceitos. O
termo “ousia” diz respeito à indagação da substância como explicamos anteriormente (capítulo 2,
seções 2 e 3): qual é a matéria e a forma das coisas? Em outro tipo de pensamento ou teoria de
Aristóteles, fica mais clara a nossa afirmação que Kuhn possa, em certo sentido, ser um aristotélico.
Segundo Abbaganano, a teoria das quatro causas é outro exemplo de fundamento da doutrina de
Aristóteles tradicionalmente discutido por pensadores “aristotélicos” (2012, p. 90). Portanto, por Kuhn
se reportar a essa teoria, e mais especificamente dar importância à causa formal, de alguma forma
podemos atribuir certo “aristotelismo” em sua concepção de causalidade. Abbagnano entende que, com
relação a esses tipos de fundamentos presentes nesse “aristotelismo” – das quais, dois deles explicamos
e relacionamos com a concepção de Kuhn – as várias correntes de pensamento “aristotélicas” se
reportam, habitualmente a alguns deles. (2012, p. 91). Neste sentido, podemos pensar que, se Kuhn
utiliza tais fundamentos da teoria de Aristóteles para discutir sobre algumas teorias físicas
contemporâneas, então a sua concepção de causa formal é de alguma forma um “aristotelismo”.
46
Propomos que Kuhn seja um aristotélico, não apenas pela relação que ele encontra
entre dois conhecimentos distintos – a física aristotélica e a moderna – mas também pela obra
aristotélica ter exercido grande influência em seu modo de pensar, além de influenciar os
próprios rumos que Kuhn seguiu após sua formação acadêmica, como ressalta Hoyningen-
Huene (2012, p. 50-51), podemos entender que a gênese da filosofia da ciência de Kuhn
acontece com o primeiro contato com a física de Aristóteles: “Em 1947, refletindo sobre a
obra de Aristóteles, Kuhn fez uma observação que definiu a agenda de muitos dos seus
estudos posteriores.” (2012, p. 50). Tal aspecto biográfico, é enfatizado por Hoyningen-Huene
para compreender a formação do pensamento de Kuhn, em seguida, ele explica sobre a
observação:
O interesse pela física Aristotélica fez com que Kuhn muito refletisse acerca das
mudanças científicas, sendo a passagem da física aristotélica para a física moderna seu
principal tema de interesse, tanto que, em 1957 publicou sua primeira obra: A Revolução
Copernicana (2002). Essa obra era sobre a marcante mudança da física antiga aristotélica e
ptolomaica para a física copernicana. Em uma análise do texto de Kuhn40, percebemos que a
sua compreensão sobre as mudanças científicas ele utiliza os termos “forma” e “formal” da
causalidade, assim como Aristóteles, em sentido metafísico da causa formal, que remete ao
termo essência. Com isso, fica claro que pra nós que sua interpretação sobre as mudanças
científicas seja metafísica, em sentido causal:
40
Conceito de causa no desenvolvimento da física. (2011)
47
Quanto à questão das mudanças científicas, Kuhn muito fala sobre as mudanças de
forma, como na citação anterior. Cada ciência particular pode ser explicada por termos de
causa formal, neste sentido, cada uma possui uma “forma”. Kuhn prossegue: “Aventarei, em
breve, a ideia de que explicação formal funciona hoje de modo muito eficaz na física.” (2011,
p. 49). Com isso podemos explicar o seguinte: de que forma as explicações de teorias em
termos de causa formal seriam explicações metafísicas sobre as ciências para Kuhn? O que
podemos supor de metafísico nessas explicações?
Com relação a essa matematização, Kuhn pretende demonstrar que, cada teoria, possua
sua própria lógica interna criada através de equações ou fórmulas matemáticas. Uma teoria é
diferente ou particular, pois possui ferramentas teóricas matemáticas com poder explicativo
que é apropriado a ela mesma. Em suma, é como se um cientista criasse fórmulas explicativas
que só podem ser aplicadas à própria teoria. Assim, entendemos que essas explicações são
metafísicas, pois essas formalizações representam o que é a essência de cada teoria científica.
Mas com relação ao uso da linguagem como estrutura explicativa particular, Kuhn as entende
como ferramenta para entender as mudanças científicas, como diz Hoyningen-Huene:
Nesse sentido, entendemos que explicações das teorias em termos de causa formal,
quando relacionadas ao uso da linguagem, seriam metafísicas, pois, a linguagem que o
48
cientista utiliza para explicar sua teoria também é dotada de uma essência, pois, ela possui
conceitos próprios, apropriáveis à sua própria teoria. Entender a linguagem particular de uma
teoria é entendê-la através da causa formal, esse entendimento é metafísico em sentido causal.
Podemos concluir que, mesmo que o termo metafísica não esteja tão presente na obra
de Kuhn, entendemos que sua interpretação das mudanças e da própria natureza das teorias
científicas seja metafísica, em sua uma intepretação de causa formal. Entretanto, queremos
ressaltar que o significado de metafísica na obra de Kuhn se limita ao que tratamos aqui até
agora, e ao que será tratado a seguir.
Apresentamos na introdução desse trabalho que utilizaríamos duas noções para o termo
metafísica, a definição aristotélica como descrito por Reale: “A metafísica aristotélica é, com
efeito, como logo veremos, a ciência que se ocupa das realidades que estão acima das físicas.”
(2013, p. 27). Porém, a noção de metafísica que interpretamos na obra de Kuhn está
relacionado à forma como uma teoria pode ser compreendida, podemos descrevê-lo de forma
objetiva do seguinte modo: a interpretação metafísica de Kuhn é aquela que entende que as
teorias científicas sejam dotadas de estruturas explicativas particulares em seu conteúdo
matemático e linguagem, que denotem sentido de “essência” ou “forma” de maneira
semelhante à metafísica aristotélica.
com seus críticos41 e com as interpretações que recebeu após a publicação da E.R.C, Kuhn
voltou a escrever e debater o paradigma em escritos posteriores. O texto Reconsiderações
acerca dos paradigmas presente na obra A tensão essencial (2011), foi uma das respostas que
Kuhn dera aos seus críticos publicada, originalmente em 1974. Como dito pelo próprio título,
o texto é uma resposta e uma reconsideração das noções sobre o paradigma. No texto, o termo
paradigma é intitulado com um novo conceito: matriz disciplinar. Para Kuhn, esse conceito
pode explicar, objetivar e resumir o paradigma em suas noções mais importantes:
Eu poderia agora adotar a notação “paradigma” para ele, mas será menos
confuso se, em vez disso, eu o substituir pela expressão “matriz disciplinar” –
“disciplinar” porque é de posse comum dos praticantes de uma disciplina
profissional, e “matriz” porque é composta de elementos ordenados de vários
tipos, cada um com especificações adicionais. Os constituintes da matriz
disciplinar incluem a maioria ou todos aqueles objetos do compromisso do
grupo descritos no livro como paradigmas, partes de paradigmas ou
paradigmáticos. (Kuhn, 2011, p. 315).
41
Quando nos referimos aos críticos de Kuhn nesta pesquisa, queremos nos referir exclusivamente aos
autores que debateram sua obra no Colóquio Internacional sobre Filosofia da Ciência em 1965, esses
debates estão presentes na obra A critica e o desenvolvimento do conhecimento. Os autores são: Paul
Feyerabend, Imre Lakatos, Margaret Masterman, Karl Popper, Stephen Toulmin, John Watkins e L.
Pearce Williams.
50
Com isso, Selvaggi aponta para outro fator importante com o qual Kuhn também
discutiu: a base formal para uma teoria nunca deve ser meramente pura, ou seja, mesmo sendo
abstrata e metafísica em sentido causal, ela deve possuir alguma relação com a realidade
física, ou seja, mesmo que a matematização possa tornar as teorias abstratas, a negação dos
seus aspectos ontológicos não pode ocasionar a negação da relação entre as realidades física e
metafísica de uma teoria:
42
Como já explicamos na introdução em nota de rodapé, a causa formal busca a essência das coisas.
52
Portanto, as generalizações simbólicas podem ser vistas como metafísicas, pois, são
estruturas explicativas particulares dotadas de uma matematica em um determinado grau de
abstração que nos remeta a uma “essência” ou “forma”, que, como afirmamos anteriormente,
se assemelha as noções metafísicas de causa formal aristotélica. Podemos analisar agora o
segundo tipo de matriz disciplinar denominado modelos e de que forma, também podemos
relacionar ele à metafísica.
Os modelos podem ser definidos como crenças fundamentadas criadas pelos cientistas
através de metáforas ou analogias. Há dois subtipos: os modelos heurísticos e os objetos de
compromisso metafísico. Pelo fato de Kuhn possuir mais interesse sobre o terceiro tipo de
matriz disciplinar, pouco se comenta sobre os modelos, entretanto, citemos o comentário de
53
Kuhn justamente por um dos subtipos de modelos utilizar o termo metafísico. Por modelos
heurísticos, entende-se como aqueles aspectos mais intuitivos em determinadas teorias. E no
extremo oposto estão os modelos enquanto objetos de compromisso metafísico, esses são os
que fornecem um conteúdo formalmente mais análogo à própria teoria:
O modelos, sobre os quais não terei mais nada a dizer neste artigo, são os que
fornecem ao grupo suas analogias preferidas ou, quando profundamente
mantidas, sua ontologia. Num extremo, são heurísticos: o circuito elétrico
pode ser visto, de maneira proveitosa, como um sistema hidrodinâmico em
estado estacionário, ou um gás, como uma coleção de bolas de bilhar
microscópicas em movimento aleatório. No outro extremo, são objetos de
compromisso metafísico: o calor de um corpo é a energia cinética de suas
partículas constituintes ou, mais obviamente metafísico, todos os fenômenos
perceptíveis são devidos ao movimento e à interação de átomos
qualitativamente neutros no vazio. (Kuhn, 2011, p. 316).
Os modelos podem ser entendidos como aspectos formais da matriz disciplinar, pois, o
uso de metáforas e analogias como ferramenta dos cientistas para explicação interna da
funcionalidade da própria teoria, depende de uma ontologia. Cremos que, através do uso das
metáforas e analogias só se pode alcançar essa ontologização da funcionalidade científica
quando elas possuam uma estrutura bem formalizada. As metáforas e analogias científicas
presentes na matriz disciplinar de uma comunidade científica destoam de meras metáforas e
analogias não científicas, justamente por possuírem um aspecto formal bem estruturado. Por
exemplo: a gravidade como consequência da curvatura espaço-tempo sendo demonstrada
através de um objeto redondo e pesado sendo colocado em um lençol esticado e dependurado.
Em outro exemplo Tozzini fala sobre um modelo de explicação do físico J.J Thompson: “Os
elétrons estariam mergulhados em uma massa homogênea, como ameixas em um pudim.”
(2014, p. 68).
O terceiro tipo de matriz disciplinar foi denominado exemplares. Por esse tipo de
matriz, embora Kuhn a considere como a mais importante, não se têm muito interesse em
tratá-la nesta pesquisa, pois, mesmo que Kuhn a trate como uma matriz semelhante aos
modelos, poucas relações com a causalidade podemos nela encontrar. Com isso, ao
analisarmos as relações que encontramos entre a causalidade e esses três tipos de matrizes, os
exemplares são as matrizes com uma análise mais hipotética dessa relação. Os exemplares são
as soluções bem estabelecidas dos problemas, são as ferramentas responsáveis pela própria
manutenção de uma prática científica naquela matriz disciplinar
54
Por estarem relacionados com resolução dos problemas presentes nas matrizes, a sua
estrita relação com uma causalidade formal pode se atribuída apenas a relação desses
exemplares para com os modelos. No caso, os exemplares são as soluções encontradas para
resolver os problemas ditados pelo modelo. Como exemplo: cálculos matemáticos para
precisar como se dá a curvatura espaço-tempo ou a gravidade. Kuhn escreve:
“Os exemplares, por fim, são soluções de problemas aceitas pelo grupo
como, no sentido causal do termo, paradigmáticas. Muitos de meus leitores já
descobriram que o termo “exemplar” é outro nome para o segundo, e mais
fundamental, sentido de “paradigma” no livro.” (Kuhn, 2011, pág. 316).
Por fim, conclui-se que a relação do paradigma com a causalidade, pode ser
reconhecida através das noções de causa formal presentes na noção de matriz disciplinar e nos
seus três tipos destacados por Kuhn. Entretanto, como comentamos anteriormente, está
presente principalmente nas generalizações simbólicas, ainda que possamos encontrar
determinadas relações nos outros tipos de matrizes, os modelos e os exemplares.
43
Na E.R.C Kuhn entende que as revoluções científicas sejam diferentes, ele afirma: “[...] A introdução
deste ensaio sugere a existência de revoluções grandes e pequenas [...]” (2013, p. 122-123). Os grupos
afetados por elas é que determina se a revolução é “grande” ou “pequena”, ele continua: “[...] algumas
afetando apenas os estudiosos de uma subdivisão de um campo de estudos. Para tais grupos até mesmo
a descoberta de um fenômeno novo e inesperado pode ser revolucionária. [...]” (2013, p. 123). Também
explica em outra passagem que as revoluções são validas: “[...] não apenas para as mudanças
importantes de paradigma, tais como as que podemos atribuir a Copérnico e Lavoisier, mas também
para as bem menos importantes, associadas com a assimilação de um novo tipo de fenômeno [...] as
revoluções científicas precisam parecer revolucionárias somente para aqueles cujos paradigmas sejam
afetados por elas.” (2013, p. 178).
55
verdadeiramente incomensurável com aquela que precedeu.” (2013, p. 191). Com vários
exemplos ele explica a incomensurabilidade, vale citar o seguinte:
Paul Feyerabend foi outro filósofo da ciência que tratou a incomensurabilidade, como
afirma Hoyningen-Huene, ele teve notoriedade antes mesmo de Kuhn e foi uma importante
ferramenta para auxiliar na difusão das ideias de Kuhn entre os filósofos (2012, p. 35). No
início dos anos 60, Feyerabend e Kuhn eram professores da mesma universidade, e
Feyerabend havia lido os manuscritos da E.R.C chegando citar em algumas de suas palestras
que um livro seria lançado que reforçaria e sustentaria, mediante exemplos extraídos da
história da ciência, as próprias opiniões formuladas anteriormente por ele (2012, p.35).
57
Para uma análise sobre a diferença entre essas concepções seria necessário um estudo
mais profundo, que não cabe realizar nessa pesquisa, com isso, podemos explicar que a
incomensurabilidade para Feyerabend: “[...] caracteriza a relação que existe entre duas teorias
sucessivas abrangentes. [...] Duas teorias serão ditas incomensuráveis quando o significado
dos seus principais termos descritivos dependerem de princípios mutuamente inconsistentes”
(2012, p. 54).
3 – Mudança do mundo após a revolução: esse tipo de mudança seria um dos conceitos
mais problemáticos em Kuhn, não só Hoyningen-Huene como diversos outros comentadores
de Kuhn apontaram ambiguidade a este termo presente no capítulo nove da E.R.C a intitulado
as revoluções como mudanças de concepções de mundo, logo de início Kuhn afirma: “O
historiador da ciência que examinar as pesquisas do passado a partir da perspectiva da
historiografia contemporânea pode sentir-se tentado a proclamar que, quando mudam os
paradigmas, muda com eles o próprio mundo.” (2013 p. 201).
Tratar esses conceitos de mudança científica em Kuhn faz com que inevitavelmente
pensemos também em Feyerabend, afinal, a obra de Hoyningen-Huene é mais um ensaio
comparativo entre esses autores do que uma obra apenas sobre Kuhn. Embora aqui seja um
trabalho voltado para a filosofia da ciência de Kuhn, é impossível tratar a
incomensurabilidade sem falar de Feyerabend. Com relação à diferença entre as concepções
Hoyningen-Huene destaca:
44
A mudança de mundo é metafísica no sentido de causal. Nossa interpretação de concepção de causa
formal em Thomas Kuhn caminha para a ideia de que as mudanças de mundo são mudanças
metafísicas: nas teorias científicas separadas por uma revolução ou distintas, os “mundos” são
incomensuráveis, pois suas estruturas explicativas são distintas em seu conteúdo matemático e
linguagem. Essas estruturas explicativas, para Kuhn são semelhantes à desenvolvida por Aristóteles na
análise das causas formais. (2011, p. 52). Kuhn, com isso pretende afirmar que as explicações são
aspectos formais das teorias em um sentido semelhante à essência de Aristóteles, que se aproxima da
causa formal, como na definição de Reale: “A causa formal é, como dissemos, a forma ou essência das
coisas. A alma para os animais, as relações formais determinadas para as diferentes figuras geométricas
[...] (2013, p. 33). A essência ou causa formal, neste sentido, compreende uma concepção metafísica de
determinados aspectos da natureza com o qual os cientistas concebem suas estruturas explicativas,
através de paradigmas, como por exemplo: f = ma. Em que sentido Kuhn entende que paradigmas como
esse sejam explicações sobre fenômenos semelhantes à forma desenvolvida por Aristóteles na análise
das causas formais? São semelhantes, pois, diante um fenômeno da natureza, Aristóteles concebia a
causa formal para determinar a sua essência, e, de forma análoga, os cientistas também concebem
estruturas matemáticas e conceituais que explicam tais fenômenos. Para Kuhn, portanto, é neste sentido
é que as explicações por causas formais se aproximam das explicações dos cientistas. Ao afirmar que,
quando mudam os paradigmas, muda com eles o próprio mundo, o conceito “mundo” não esse refere ao
mundo físico ou a natureza, mas a forma como o cientista interpreta a natureza: “[...] embora o mundo
não mude com uma mudança de paradigma, depois dela o cientista trabalha em um mundo diferente.”
(2013, p. 214) Nas próximas seções explicaremos mais sobre as mudanças de mundo, nesta perspectiva
de causa formal.
59
Afirmar que teorias incomensuráveis são intraduzíveis entre si, significa que elas
possuem linguagens distintas, com isso, a afirmação de que elas estão em “mundos
diferentes” está relacionada ao processo de mudança de linguagem em sentido mais profundo.
Isso significa que o uso da linguagem na constituição das teorias científicas é importante na
medida em que Kuhn trata as mudanças linguísticas como mudanças de mundo, então caberia
a pergunta: por que as mudanças de linguagem seriam tão importantes no processo de
mudança de uma teoria? A linguagem é a ferramenta com o qual os cientistas conseguem
mudar a visão de mundo, no sentido de que com as revoluções científicas mudam o mundo:
Pode-se supor que tal aspecto denote uma questão ontológica referente ao que
percebemos como mundo físico, através de uma metáfora, entretanto, como perceberemos nas
próximas explicações desta teoria, advogamos que se trata de uma questão metafísica. Ao
notar dois mundos diferentes na proposição de Kuhn, fica claro que podemos interpretar que
os dois mundos possuem aspectos diferentes em um sentido metafísico. O próprio Kuhn seria
incapaz de explicar o que queria dizer com essa proposição acerca da mudança dos mundos,
para Hoyningen-Huene ele afirma que: “[...] é incapaz de explicar o sentido da afirmação de
que após uma revolução praticam suas atividades em mundos diferentes, mas assevera ‘que
devemos aprender a compreender o sentido de proposições semelhantes a essas’.” (2012, p.
76). Hoyingen-Huene fez sua própria interpretação quanto a essa questão, para ele, tais
mundos kuhnianos podem denominados: o mundo dado pelo sujeito e o mundo dado pelo
objeto:
1 – Mundo dado pelo sujeito: o sujeito é quem cria o mundo. É definido também como
o mundo das aparências, pois depende do sujeito que cria tais aparências quando percebe o
mundo, com isso, o sujeito percebe o mundo e cria o mundo através de suas percepções. Tal
premissa de um mundo dado pelo sujeito impõe a ideia de que não podemos acessar
plenamente o mundo dado pelos objetos, acessamos parcialmente tal mundo pelos conceitos
que criamos dos objetos. Dado esse conceito de que o homem “cria” esse mundo, logo, as
mudanças de paradigma implicam a “mudança de um mundo” em um sentido mais humano:
Para Hoyningen-Huene, Kuhn teria a percepção de que a ciência seria uma criação
humana, as teorias são criações humanas, bem como mudanças científicas ocasionadas por
62
mudanças de paradigmas também são humanas e, portanto, a mudança de mundo nesse caso
seria a mudança de mundo em um sentido humano: “[...] Kuhn teve a impressão – no curso de
suas pesquisas sobre história da ciência – de que esses conceitos são de origem humana, ou
seja, nós impomos uma estrutura ao mundo [...]” (2012, p. 77). Com isso, ao se analisar a
ideia de um mundo dado pelo sujeito, pensa-se em mudança de mundo através da mudança de
paradigmas como mudanças de conceitos humanos. Propomos aqui que se trata de uma
mudança metafísica de conceitos, pois, como conceituamos anteriormente, a interpretação
metafísica da ciência em Kuhn é aquela que entende que as teorias científicas sejam dotadas
de estruturas explicativas particulares em seu sentido matemático e linguagem, que denotem
sentido de “essência” ou “forma” de maneira semelhante à metafísica aristotélica em sentido
causal. Portanto, essa mudança de mundo implica relação com as estruturas explicativas
relacionadas especificamente ao sentido linguístico: o cientista cria um mundo, cria uma
linguagem e, portanto, podemos perceber que cada mudança de paradigmas está relacionada à
mudança de uma “essência” ou “forma” em sentido linguístico.
A interpretação de que não temos acesso ao mundo dado pelos objetos, parece
metafísica ao nosso ver. Pensar que os objetos desse mundo sejam inacessíveis é como pensar
que eles exitem “em si” em um sentido metafísico. Da mesma forma, essa inacessibilidade do
mundo dado pelos objetos faz com que pensemos no seguinte problema: se o homem não
pode acessar ao mundo dado pelos objetos, então o conhecimento científico que o homem tem
do mundo diz respeito ao mundo ou ao próprio homem? A teoria da constituição do mundo
63
Com isso, o cerne de tal teoria é a seguinte pergunta: como o homem enquanto sujeito
racional cria o mundo das aparências? Ou nas palavras do autor: “[...] como os sujeitos do
conhecimento constituem seu mundo de aparências?” (2012, p. 78). Para a resposta de tal
pergunta deve-se retomar ao conceito de comunidade científica em Kuhn, e pensar no acesso
ao mundo das aparências através da visão de um cientista. Desse modo podemos substituir o
termo sujeito de conhecimento por cientista. A pergunta com essa modificação necessária à
análise ficaria então: como o cientista cria o seu mundo das aparências? Através das relações
de similaridade entre o mundo das aparências (mundo dado pelo sujeito), e o mundo dos
objetos. Hoyningen-Huene explica:
45
Entendemos que esse ceticismo de Kuhn quanto ao conhecimento científico do mundo, pode ser
pontualmente explicado: a ciência pode explicar de forma satisfatória o próprio mundo físico? A
interpretação kuhniana apresentada por Hoyningen-Huene entende que não: o mundo dado pelos
objetos é distinto do mundo dado pelo sujeito, portanto, o conhecimento científico é uma criação
ocasionada pelas relações de similaridade que o cientista encontra entre esses dois mundos.
64
mundo dado pelo sujeito, ele altera tais relações de similaridade entre esse mundo e o mundo
dado pelo objeto. Em que sentido podemos perceber as relações de similaridade com relação
à mudança metafísica de mundo dos cientistas? Sendo que o mundo dado pelos objetos não
muda, então somente o mundo dado pelo sujeito pode mudar. Podemos fazer um resumo
dessas noções para facilitar a compreensão dessas mudanças da seguinte forma:
explicativa, com o qual, Kuhn afirma ser possível uma compreensão através das noções
metafísicas de causa formal.
Poderíamos pensar a partir de outro exemplo: como o cientista pode criar um mundo
“quântico”? Através das relações de similaridade entre o ‘objeto’ quântico (mundo dos
objetos), o cientista cria um mundo (dado pelo sujeito). Tais relações de similaridade
poderiam mudar, por exemplo, se um cientista surgisse com uma teoria rival à teoria quântica,
caso o paradigma desta nova teoria substituísse a vigente, então o cientista estaria em outro
mundo. Para cada diferente “mundo” da ciência, com base nesta pesquisa temos a hipótese de
que cada um deles possa ser explicado por uma causa formal. Portanto, através desses
argumentos ousamos em criar um conceito correspondente: incomensurabilidade formal. As
teorias são incomensuráveis, pois possuem “formas” diferentes no sentido de causa formal
aristotélica.
67
68
Mesmo que concordemos com Cupani, não temos a intenção de neutralizar ou esvaziar
o filósofo da ciência norte-americano de suas críticas debatidas ao longo dos cinquentas anos
da publicação da E.R.C. Tais críticas e debates, a nosso ver, não só foram essenciais47 ao
aperfeiçoamento do sistema filosófico de Kuhn, como também ajudaram a tornar mais clara a
sua visão de racionalidade científica.
46
Conforme explicamos em nota de rodapé na introdução, a racionalidade científica está vinculada à
utilização de critérios por cientistas para sustentar suas deliberações. (2014, p. 4). Tais critérios servem
para ditar escolha de teorias, escolha de valores para as teorias, escolha de procedimentos no
empreendimento científico e determinação de regras para o que seria uma boa ciência.
47
Dizemos que as críticas e debates foram essenciais ao desenvolvimento do sistema filosófico de
Kuhn, pois, muito do que Kuhn escrevera após a publicação da E.R.C foi para responder os seus
críticos. Da mesma forma, ele sempre considerou reformular e aperfeiçoar o que escrevera nessa obra,
pois reconheceu que certo descuido e imprecisão de seus termos foram responsáveis pelos vários
equívocos interpretativos e acusações de irracionalismo.
69
tal abordagem ser irracional48 – temos a intenção de defendê-lo como um conhecimento com
racionalidade científica. Como esclarecemos, entendemos que Kuhn tenha uma interpretação
metafísica (em sentido causal) de algumas ciências, pois, ele demonstra que algumas teorias
como as da física contemporânea49 podem ser entendidas de forma semelhante ao sistema de
causa formal de Aristóteles: elas possuem uma “essência” ou “forma” no sentido aristotélico.
Vale citar novamente Kuhn se referindo a essas teorias: “[...] a estrutura da explicação física é
muito semelhante à desenvolvida por Aristóteles na análise das causas formais. [...]” (2011, p.
52). Queremos demonstrar que essa interpretação de causalidade é um exemplo de
externalismo em Kuhn, pois pensa a relação da ciência com um conhecimento externo à
ciência: um conhecimento metafísico (em sentido causal). Com isso, entendemos que esse
tipo de interpretação possa ser visto como um conhecimento com racionalidade científica,
conforme defenderemos.
Para advogar sobre tal racionalidade a partir dessa relação, antes de tudo, podemos
destacar porque a abordagem externalista, é importante para a compreensão do conhecimento
científico. Kuhn faz uma importante comparação para argumentar que, enquanto internalismo
48
Quanto a essa acusação dos críticos de Kuhn, trata-se de uma irracionalidade científica. Segundo
Tozzini, é uma crítica geral, que está relacionada aos possíveis problemas na E.R.C: ambiguidade,
descritividade, existência de revoluções, incomensurabilidade, base empírica, dogmatismo e referencial
comum e método científico. As críticas à Kuhn mostram que esses possíveis problemas demonstram,
segundo os críticos de Kuhn, uma irracionalidade científica. (2014, p. 51). É oportuno também pensar o
que é irracionalidade sob outra perspectiva, para pensar por que esses possíveis problemas na E.R.C
sejam vistos como uma irracionalidade em Kuhn. Gilles Gaston Granger divide a irracionalidade em
três tipos: o irracional como obstáculo, irracional como recurso e irracional por renúncia. Quanto ao
primeiro: “É no objeto criado – tomado “objeto” no sentido amplo – que aparece então uma oposição às
regras da própria criação, cuja aplicação se torna contraditória e impossível. Mas o cientista jamais se
contenta com essa prova de fracasso; ele continua sua obra [...]” (2002, p. 14). O segundo tipo de
“irracional” Granger explica: “Ele manifesta-se na criação, particularmente na criação artística, quando
as regras são deliberadamente violadas ou abandonadas [...]” (2002, p. 14) O terceiro tipo de
“irracional”, Granger explica: “[...] o irracional por renúncia, ou se quisermos por abandono, é pelo
contrário uma verdadeira recusa do racional. Neste caso, o produtor da obra renega de certo modo o
sistema originário de enquadramento do seu pensamento, e, adotando a contrapartida, dá, sem controle,
livre curso a sua fantasia. Exemplos notórios desse irracional nos serão fornecidos por certas alterações
de um pensamento originariamente criador de saber científico que, em determinado momento, liberta-se
de qualquer controle [...]” (2002, p. 14)
49
Kuhn em Conceitos de causa no desenvolvimento da física cita algumas teorias da física que possam
ser vistas sob uma perspectiva aristotélica de causa formal. Um dos exemplos conforme explicamos em
citação (p. 35) é a mecânica celeste, onde Kuhn considera o movimento de Marte para mostrar que a
explicação de tal fenômeno possui semelhança com as explicações pelas causas formais de Aristóteles.
(2011, p. 50-51) Ele segue citando outras áreas da física com situação semelhante: “Esses exemplos da
mecânica celeste podem ser repetidos em outras áreas da mecânica, na acústica, na eletricidade, na
óptica ou na termodinâmica, tal como se desenvolveram no fim do século XVIII e início do século
XIX.” (2011, p. 51). Também fala sobre o eletromagnetismo: “O campo eletromagnético, como uma
entidade física não mecânica fundamental, cujas propriedades formais são passíveis de descrição apenas
em equações matemáticas [...]” (2011, p. 51).
70
Com isso, entendemos que um dos quesitos para uma ciência racional, sob a
perspectiva de Kuhn: para melhor entender a natureza da ciência deve existir um diálogo entre
as ciências e outras áreas de conhecimento não-científicos. O próprio desenvolvimento de
uma ciência é influenciado por fatores externos, como Kuhn afirma: “Tanto o fascínio da
ciência como carreira quanto os diferenciados atrativos dos diversos campos são
condicionados significativamente, por exemplo, por fatores externos a ciência.” (2011 p. 142).
Portanto, se uma área científica tem seu desenvolvimento influenciado por fatores externos,
fica claro que a história da ciência tem que entender de que forma tais fatores influenciam. O
conhecimento científico tem origem e relação com outras áreas de conhecimento, portanto há
como desliga-lo epistemologicamente. Negar a relação do conhecimento metafísico com a
ciência, por exemplo, a nosso ver é negar a própria compreensão das ciências, portanto se há
uma busca da compreensão da natureza da ciência, deve haver necessariamente a busca da
compreensão das outras formas de conhecimento não científicos ligados a ela.
71
Daniel Lakowski Tozzini soube sistematizar muito bem as principais críticas que Kuhn
recebeu, elaborando através delas o que ele considera ser a racionalidade de Kuhn. Como já
deixamos claro, compartilhamos esse posicionamento de Tozzini e com isso temos a intenção
de debater através de sua obra: Filosofia da ciência de Thomas Kuhn. Conceitos de
racionalidade científica (2014). Logo no capitulo introdutório é comentada a recepção que
Kuhn obteve com a publicação da E.R.C:
50
Debateremos algumas críticas de forma rápida e objetiva, enquanto outras que consideramos
importantes nesse trabalho debateremos de forma mais detalhada, pois tal debate ocuparia muito espaço
nessa pesquisa, nos desviando de nosso foco principal, que é a questão da causalidade em Kuhn.
Portanto, temos a intenção de demonstrar que essa abordagem externalista na filosofia da ciência de
Kuhn, e mais especificamente a interpretação de causalidade de Kuhn seja racional. Nas apresentações
das críticas não detalharemos os autores das mesmas, pois, como foi dito, temos a intenção de tratá-las
de forma rápida e objetiva. Com isso, como já dissemos anteriormente, as críticas de Kuhn tratadas aqui
são as presentes da obra A Crítica e o Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento (1979), através
dos autores: Popper, Feyerabend, Toulmin, Lakatos, Masterman, Watkins e Willians.
72
Tozzini sistematizou as críticas a Kuhn presentes nessa obra, de uma forma geral,
como acusações de irracionalidade e subjetivismo científico. Entretanto, ele faz uma
subclassificação em oito tipos de críticas, são elas: a ambiguidade, descritividade,
dogmatismo, método científico, base empírica, existência de revoluções, incomensurabilidade
e racionalidade na ciência normal. Temos a necessidade de expor essas críticas, pois,
necessitaremos delas para utilizar um ponto de defesa sob o que consideramos ser a
racionalidade de Kuhn, bem como demonstrar que através de nossa interpretação desse
aristotelismo Kuhniano podemos encontrar uma perspectiva de racionalidade, e, finalmente,
51
Em diversas passagens do A Crítica encontramos acusação de Kuhn ser um “irracional”. Em um
comentário de John Watkins, por exemplo, ele discute a questão da ciência normal, de modo pejorativo
ele afirma: “[...] por que um autor de um livro excelente sobre a revolução copernicana e de outro livro,
ainda mais famoso, sobre as revoluções científicas em geral, veio a ter uma espécie de aversão
filosófica pelas revoluções científicas? Por que está tão enamorado da laboriosa e não-crítica Ciência
Normal?” (1979, p. 41). Imre Lakatos crítica muitos conceitos da E.R.C, por exemplo as revoluções
como espécie de “conversão”, de forma contundente, também critica Kuhn: “O que me interessa é que
Kuhn, tendo reconhecido o fracasso do justificacionismo e do falseacionismo no proporcionar
explicações racionais do desenvolvimento científico, parece agora recair no irracionalismo. [...] Para
Kuhn a mudança científica – de um ‘paradigma’ a outro – é uma conversão mítica, que não é, nem pode
ser, governada por regras da razão e cai totalmente no reino da psicologia (social) da descoberta. A
mudança científica é uma espécie de mudança religiosa.” (1979, p. 112). Stephen Toulmin crítica
também a questão do “dogma” na prática da ciência normal, da mesma forma que os outros críticos de
Kuhn, afirma de forma provocativa: “[...] embora a sua escolha da palavra ‘dogma’ servisse
perfeitamente no título de um trabalho muito interessante na reunião do Worcester College, bastou um
exame um pouco mais atento para revelar que sua própria efetividade provinha de certo exagero retórico
implícito ou de um jogo de palavras. (Dizer que ‘toda a ciência normal repousa numa base de dogma’
equivalia a dizer ‘somos todos realmente loucos’; o que talvez funcione numa ou noutra ocasião,
mas...)” (1979, p. 50). Comentaremos nas próximas páginas essas críticas.
73
Crítica à descritividade: esta crítica diz respeito à questão dos objetivos da filosofia da
ciência de Kuhn. Antes da publicação da E.R.C, a visão mais tradicionalista era a de que a
filosofia da ciência teria o objetivo de encontrar a normatização das atividades científicas, ou
seja, existem regras que regem o mundo científico, portanto os filósofos da ciência teriam que
se preocupar em entendê-las. Para seus críticos, Kuhn encontraria um grande obstáculo à
imposição de regras na compreensão do desenvolvimento das ciências, portanto sua filosofia
da ciência teria o objetivo de apenas descrever a atividade científica. Pelo fato de Kuhn não
acreditar que haja normas tão claras para o empreendimento científico, logo a própria ciência
supostamente seria interpretada por ele como uma atividade subjetiva e irracional. (2014, p.
52).
tinha a intenção de demonstrar que a ciência é subjetiva e irracional, mas sim demonstrar que
a ciência é complexa. (2014, p. 64–68).
Para expor o que é entendido como um equívoco dessa crítica, Tozzini afirma: “[...]
não é verdade que não há método em sentido algum na concepção de ciência de Thomas
Kuhn. Depois de estabelecido o primeiro paradigma há regras e padrões a serem seguidos
pelos membros de comunidade que o detêm [...]” (2014, p. 84). Neste sentido, a crítica quanto
à inexistência de um método em Kuhn, como é demostrado por este comentador, não procede.
A começar pela própria análise do comportamento do cientista na ciência normal, onde Kuhn
supõe haver uma metodologia tão forte, que, por esse motivo os paradigmas podem ser
considerados dogmáticos. Portanto, em nosso entendimento, claramente não procede não
haver metodologia científica na compreensão de Kuhn: ele apresenta extrema importância a
analise da metodologia da ciência normal. Ao afirmar que as metodologias mudam conforme
75
A resposta de Kuhn que podemos apontar, com base nos argumentos de Tozzini, é a
seguinte: entre duas teorias distintas separadas por uma revolução científica, uma única base
empírica é insuficiente para escolha. Neste sentido, a teoria revolucionária não
necessariamente deve ter sua base empírica como critério último para os cientistas optarem
por ela. A afirmação de que as bases empíricas não sejam o suficiente para o cientista escolher
entre duas teorias, para Kuhn não significa que não exista racionalidade nesta escolha. Há
diversos outros fatores para a escolha de teorias com os quais podemos considerar plenamente
racionais, como por exemplo, a opção que os cientistas têm por alguns valores da matriz
disciplinar: precisão, consistência, alcance, simplicidade e fecundidade. (2014, p. 85-93).
Deixaremos para tratar esses valores a seguir na crítica da racionalidade da ciência normal,
então, em suma, como na afirmação de Tozzini: “Não significa, contudo, tal como em outros
casos, que não haja bons motivos para que cientistas escolham entre um e outro paradigma. A
base empírica é somente um deles, e não o único. Isso de maneira alguma torna a ciência um
empreendimento irracional.” (2014, p. 93).
revolução sejam tão distintas, logo não há uma objetividade no progresso das ciências. Deve
haver um critério universal e objetivo que delimite de que forma as ciências mudam. Kuhn
não pode descrevê-lo, com isso, ele estaria entendendo o progresso científico de forma
irracional. (2014, p. 58–59).
Para respondermos a essa crítica, primeiro podemos dizer que Kuhn aborda diversos
tipos de mudanças científicas com as quais ele considera revolucionária, entretanto,
claramente umas podem ser revoluções maiores que as outras. A dificuldade em perceber até
que ponto uma teoria pode ser considerada revolucionária para Kuhn, seria respondida: há
graus de revolução, há diferentes crises, e as revoluções tem significados distintos para aquele
que participa. Ele esclarece:
diferentes (como as teorias separadas por uma revolução), ainda assim tem que haver algo
comum entre elas. Como na crítica a existência de revoluções é explicado que não há
mudanças drásticas como as propostas por Kuhn, logo por isso, as teorias rivais não podem
ser tão incomparáveis, sempre haverá algum tipo de comunicação entre elas. Afirmar que as
teorias sejam tão distintas é o mesmo que afirmar que existem várias ciências, o que por si só
foi entendido como um subjetivismo e irracionalismo. (2014, p. 59–61).
Crítica à racionalidade na ciência normal: essa crítica diz respeito à prática da ciência
normal. Os críticos de Kuhn concordaram com sua análise sobre o comportamento do
cientista praticante de uma ciência normal, tal comportamento consiste em estar numa
constante batalha na resolução dos problemas do paradigma de sua comunidade. Sempre
haverá anomalias em teorias científicas, e é racional o cientista estar envolto nas resoluções
destas anomalias. Tais resoluções promovem o aperfeiçoamento das teorias, por isso tal
perspectiva da prática da ciência normal em Kuhn foi entendida como racional. Discutiremos
essa crítica com mais detalhes em uma seção posterior. (2014, p. 61–62).
Tozzini demonstra que, como pano de fundo de todas essas críticas, estão o
irracionalismo e o subjetivismo científico, como tentamos expor acima. É importante ressaltar
que após a publicação da E.R.C, a maior parte dos escritos de Kuhn visava debater essas
críticas através de reformulações de sua própria teoria, como por exemplo, o notável posfácio
escrito e publicado em posteriores edições da E.R.C a partir de 1969. Este posfácio visava
basicamente tratar a crítica à ambiguidade do termo paradigma. As obras A tensão essencial
(2011) e O caminho desde a estrutura (2006) também contém diversos escritos do autor que
tratam essas e outras críticas. Passemos agora a discutir as críticas que consideramos mais
importantes para esta pesquisa.
Este livro foi publicado pela primeira vez há quase sete anos. Nesse intervalo,
graças às reações dos críticos e ao meu trabalho adicional, passei a
compreender melhor numerosas questões que ele apresenta. Quanto ao
fundamental, meu ponto de vista permanece quase sem modificações, mas
agora reconheço aspectos de minha formulação inicial que criaram
dificuldades e mal-entendidos gratuitos. Já que sou responsável por alguns
desses mal-entendidos, sua eliminação me possibilita conquistar um terreno
que servirá de base para uma nova versão do livro. (Kuhn, 2013, p. 279).
Em todo o posfácio, ele tenta reconstruir o paradigma em conceitos mais claros. Ele o
fizera também no artigo Reconsiderações acerca dos paradigmas presente na obra A tensão
essencial, que tratamos anteriormente. Como esclarecemos, neste artigo, ele renomeia o termo
paradigma por matriz disciplinar, e especifica três características da matriz disciplinar que
tornam mais racional e objetivo o conceito de paradigma: as generalizações simbólicas, os
modelos e os exemplares. Tozzini acrescenta outra característica que ele interpretou como
sendo da matriz disciplinar, que também discutiremos posteriormente: os valores.
52
Falamos que por vezes podemos nos referir a Kuhn como um aristotélico, pois, ele tem uma
interpretação aristotélica quando analisamos sua concepção de causa formal em Conceitos de causa no
desenvolvimento da física. Portanto, esse “aristotelismo” está restrito a semelhança dessa concepção
com a noção de causa formal e essência de Aristóteles.
79
Os exemplares são o tipo de matriz disciplinar que para Kuhn mais se encaixam no
conceito de paradigma, embora não consigamos encaixá-los em um conceito de causalidade
mais objetivo, podemos afirmar o seguinte: eles são ferramentas necessárias para a prática
científica na medida em que servem para a resolução dos problemas de uma comunidade
científica. Ao se pensar em um exemplo de modelo como o que citamos da demonstração da
curvatura espaço-tempo, obrigatoriamente, tais modelos necessitam de exemplares. Os
exemplares neste caso seriam as fórmulas matemáticas ou lógicas que demonstrem
seguramente como justificar ou comprovar a existência de um modelo, então nesse caso, os
exemplares desse exemplo seriam as próprias fórmulas matemáticas que comprovem ou
assegurem a existência da curvatura espaço-tempo como um modelo racional. Portanto,
concluímos disso que os modelos possuem uma relação direta com os exemplares e são
totalmente dependentes.
53
Podemos encontrar uma defesa as acusações de subjetivismo e irracionalidade em alguns artigos de
Kuhn: Posfácio (1969); Lógica da descoberta ou psicologia da pesquisa? (1979); Reflexões sobre os
meus críticos (1979); Reconsiderações acerca dos paradigmas (2011); Racionalidade e escolha de
teorias (2006).
80
Certos aspectos das teorias científicas como, a forma com o qual os seus problemas são
resolvidos, só podem ser descritos em termos matemáticos próprios. Kuhn entendeu com isso,
que as explicações dos físicos contemporâneos se assemelham muito a noção de causa formal
de Aristóteles:
Ao lermos a obra de Kuhn podemos notar que neste sentido ele é um aristotélico, com
isso, advogamos que seu entendimento acerca da natureza da ciência seja metafísico em
sentido causal. Ao pensarmos nas generalizações simbólicas, modelos e exemplares como
características da matriz disciplinar que possam ser entendidas pela noção de causa formal,
podemos assim afirmar uma visão metafísica de Kuhn. Com base nesses argumentos que
criamos podemos concluir que: as propriedades formais das teorias cientificas são aquelas que
81
54
Em A Função do Dogma na Investigação científica (2012) Kuhn aborda esta questão. Embora seus
críticos de uma forma geral concordassem com Kuhn quanto à racionalidade na ciência normal, eles
discordavam quanto ao uso do termo “dogmático” que ele utilizava para definir a prática da ciência
normal.
82
Uma boa teoria tem que possuir valores, os principais referidos por Kuhn são cinco:
precisão, consistência, alcance, simplicidade e fecundidade. Uma teoria que não contenha
nenhum desses valores, dificilmente pode ser considerada para uma comunidade científica.
Com isso, os valores são importantes por auxiliarem na escolha de teorias, além de delimitar
quais são os critérios teóricos necessários para se manter aquela ciência normal. Kuhn explica
cada um deles da seguinte forma:
Se Kuhn classifica os valores em cinco, pensa-se nos seguintes problemas: pode uma
teoria possuir todos esses valores simultaneamente? Apenas um só valor pode sustentar a
racionalidade de uma teoria? A resposta para as duas perguntas é claramente não. Tozzini
comenta sobre tais problemas quanto aos valores:
Por que a escolha de valores para uma teoria científica é tão complexa? Em nossa
perspectiva isso ocorre, pois, os valores são metafísicos em sentido causal. Dizemos que são
metafísicos, pois, não há como todos eles serem compatíveis com todas as ciências possíveis.
Caso os valores fossem tão objetivos, todas as teorias possuiriam os mesmos valores.
Percebemos com isso, que em alguns casos, os valores podem ser subjetivos, na medida em
que podem ser diferentes de uma teoria para outra. E também podem ser objetivos, na medida
em que são determinantes para a prática de uma ciência normal. Pensemos em um exemplo: a
teoria da evolução de Darwin possui o valor de abrangência, a aplicação da teoria atinge uma
enorme quantidade de fenômenos evolutivos na natureza, portanto tal valor confere
objetivismo à prática dessa teoria enquanto ciência normal. O valor de abrangência para a
teoria da evolução de Darwin confere objetivismo científico na medida em que, enquanto
aplicada, é fértil, ou seja, traz sempre o fortalecimento da teoria através de novas pesquisas
com base nesse valor.
formal de uma teoria mostra como é a “essência” de um fenômeno da natureza através das
explicações. Com isso, os valores também podem denominar as essências: Aristóteles
concebia a causa formal para determinar a essência das coisas, e, de forma análoga, os
cientistas concebem as explicações (também através dos valores) em estruturas matemáticas e
conceituais que explicam tais coisas (fenômenos).
Ao afirmar que a natureza é definida mais pela forma do que pela matéria, Aristóteles
estava na verdade enfatizando o que comentamos anteriormente: as ciências teoréticas são as
superiores. Explicando de forma mais clara: as melhores ciências são aquelas mais vinculadas
à teoria do que a prática, ou seja, a melhor forma de se entender a natureza é através de seu
aspecto mais prontamente formalizável (teorético). Embora em nossas ciências atuais, essa
ideia aristotélica de que as ciências teóricas são superiores não seja aceita, entendemos que
Kuhn oferece clara importância aos aspectos formais das teorias. Então, mesmo entendendo
que o aspecto formal para se compreender a natureza em Aristóteles seja um pouco diferente
do aspecto formal para se compreender a natureza da ciência em Kuhn, ambas as ideias de
causalidade são metafísicas em sentido causal. Portanto, que o paradigma de uma teoria possa
ser visto como a causa formal de uma teoria se torna claro para nós, também, na medida em
que os valores (precisão, consistência, alcance, simplicidade, fecundidade) das matrizes
disciplinares sejam formais, ou seja, metafísicos quando pensados sob a perspectiva de uma
essência.
86
Kuhn utiliza o termo matriz disciplinar para tornar mais claro e objetivo o conceito de
paradigma, são as matrizes disciplinares: generalizações simbólicas, modelos, exemplares e
valores. Entendemos que elas contenham relação com a interpretação que Kuhn tem com a
causa formal: elas apresentam sentido metafísico, pois são interpretadas em sentido
semelhante às noções de essência e forma de Aristóteles. Defendemos essa semelhança, pois,
na intepretação de Kuhn da causa formal, ele entende que as teorias científicas sejam dotadas
de estruturas explicativas particulares quanto ao seu conteúdo matemático e linguístico: essa
matematização, bem como a formação de um sistema linguístico (conceitual), são
particulares, pois são incompatíveis de uma teoria para outra, ou seja, são incomensuráveis.
Para ser claro: as fórmulas ou explicações matemáticas de uma teoria, não podem ser
totalmente aplicáveis à outra teoria incomensurável, da mesma forma, através dos conceitos
de uma teoria, não é possível formular completamente a outra. Explica Hoyningen-Huene
que: “Kuhn notou que tais tipos de diferenças conceituais eram indicadores de rupturas entre
diferentes modos de pensar [...]” (2012, p. 51). Completa afirmando: “[...] a
incomensurabilidade caracteriza a relação entre duas tradições científicas separadas por uma
revolução científica [...]” (2012, p. 51).
Aristóteles na teoria de Kuhn. Ele afirmou que o contato de Kuhn com a física de Aristóteles
fez com que ele despertasse um interesse pela história da ciência, onde o foco maior seria a
questão dos progressos ou mudanças nas teorias científicas. A sua visão sobre a ruptura entre
a física aristotélica e a moderna, teria influenciado a criação de seus conceitos, sendo
paradigma e incomensurabilidade os principais deles. Ao notar a incompatibilidade entre a
física aristotélica e a moderna, Kuhn se interessou em entendê-la melhor, e posteriormente
enfatizou que os progressos ou mudanças das teorias são marcados por essa incompatibilidade
que ele chamou de incomensurabilidade, e, entender a natureza dessas mudanças nos ajuda a
demonstrar porque consideramos a incomensurabilidade de Kuhn uma teoria racional.
Hoyningen-Huene classificou essas mudanças em três: mudança nos problemas, mudança nos
métodos e conceitos e mudança do mundo. Através da compreensão de que as teorias sejam
incomensuráveis, podemos argumentar que esses três tipos de mudanças marcados pela
incomensurabilidade demonstrem essa racionalidade.
Por notar que a mudança de métodos e conceitos esteja relacionada à criação de uma
nova estrutura matemática e linguística (conceitual), nesse sentido, particulares pela sua
incomensurabilidade para com um paradigma anterior, podemos perguntar: onde encontrar
racionalidade científica quanto a questão de mudança? A racionalidade está relacionada à
escolha de valores: a utilização de valores é uma escolha racional. O conceito de
incomensurabilidade foi entendido como irracionalista, pois os críticos de Kuhn entenderam
que ele implique total incompatibilidade conceitual e matemática entre teorias rivais, o que
demonstra um entendimento de que há subjetividade entre teorias científicas. Tozzini
comenta:
escrevemos, são os valores: um novo paradigma deve possuir valores bem estabelecidos que
sirvam para explicar satisfatoriamente a nova teoria.
E.R.C Kuhn afirmou que, quando mudam os paradigmas, muda com eles o próprio mundo
(2013, p. 201). Essa afirmação foi descrita por Hoyningen-Huene como controversa, uma vez
que não fica claro o significado do termo “mundo”, ocasionando assim uma impressão de
subjetivismo, uma vez que essa afirmação pode ser interpretada como uma metáfora. Ele se
pergunta: “O que quer dizer o mundo muda com uma revolução? O uso do termo ‘mundo’
aqui é apenas metafórico? Ou neste caso ‘mundo’ significa, de fato, realidade, no sentido de
uma realidade objetiva?” (2012, p. 76).
“Mas como uma realidade poderia mudar com e através de algo que acontece
exclusivamente nas cabeças de um grupo de cientistas? Essas questões não
são respondidas no ERC; todavia Kuhn viu claramente a urgência delas
naquele escrito.” (Hoyningen-Huene, 2012, p. 76).
Para entender em que sentido Kuhn entende a mudança nas concepções de mundo dos
cientistas, Hoynigen-Huene explica a teoria da constituição do mundo. Nessa teoria, “mundo”
é dividido sob dois tipos: o mundo dado pelo sujeito e o mundo dado pelos objetos. No
mundo dado pelo sujeito, o próprio cientista é sujeito, nesse sentido, é ele quem cria o mundo.
Através de suas explicações, concepções e teorias, o cientista tem a capacidade de criar,
portanto, o novo “mundo”, que neste sentido é um novo conhecimento: os cientistas criam
novas estruturas explicativas através de novos conceitos ou explicações matemáticas.
Podemos repetir a seguinte passagem onde Hoyningen-Huene explica esse tipo de mundo:
“Podemos perceber e descrever tal mundo [...] Esse mundo possui uma certa
estrutura conceitual [...] Kuhn teve a impressão – no curso de suas pesquisas
sobre história da ciência – de que esses conceitos são de origem humana ou
seja, nós impomos uma estrutura ao mundo por meio desses conceitos, e que
nós não retiramos esses conceitos do próprio mundo [...].” (Hoyningen-
Huene, 2012, p. 77).
Quanto ao outro – o mundo dado pelos objetos – é o mundo físico e natural que existe
independente do homem, neste sentido, ele não é totalmente acessível ao homem. Nas
revoluções científicas, a mudança de mundo está relacionada somente ao mundo dado pelo
sujeito, o mundo dado pelo objeto – que é a própria natureza – não muda. Hoyningen-Huene
92
explica que: “[...] se todas as contribuições humanas forem subtraídas – ou seja, toda aquela
estruturação perceptiva e conceitual do mundo no primeiro sentido. Então, resta um mundo
que é completamente independente de nossas percepções e concepções [...].” (2012, p. 77). A
divisão de mundo em dois tipos implica que as teorias científicas sejam criações humanas:
uma teoria científica tem mais a ver com o homem do que com a natureza, pois é a própria
forma como o cientista interpreta a natureza, ou seja, sua visão de mundo. Hoyningen-Huene
entende que essa interpretação se dá através das relações de similaridade55 entre o mundo
dado pelo sujeito com o dado pelos objetos. O cientista tem que encontrar tais similaridades
entre os dois mundos, pois através delas é que se pode construir uma estrutura teórica racional
para a teoria. Sobre isso, Hoyningen-Huene coloca:
Ainda que não seja possível impor toda e qualquer estrutura ao mundo, é
certo que mais de uma é possível. A mudança histórica dessas estruturas
conceituais mostra isso. Portanto, conforme Kuhn frisa em ERC, paradigmas
– independemente do que sejam – são constitutivos de um mundo perpectual
e conceitualmente subdividido. (ERC, p. 145, 161). Dito com uma
terminologia mais tradicional: os sujeitos do conhecimento contribuem para a
constituição dos objetos do conhecimento (por meio dos paradigmas –
independentemente do que sejam), na medida em que eles estruturam o
mundo desses objetos. (Hoyningen-Huene, 2012, p 77).
55
Explicamos anteriormente que para Hoyningen-Huene, a forma como os cientistas encontram as
relações de similaridade entre os dois mundos são três: através da percepção, dos conceitos empíricos e
da região respectiva do mundo das aparências. No processo de mudança de paradigma, o cientista muda
o mundo dado pelo sujeito: através da forma como ele utiliza os sentidos para entender a teoria
(percepção), através da forma como ele cria as classes de conceitos da teoria pela experiência (conceitos
empíricos), e, através da forma como ele estrutura a teoria pela união entre a percepção e os conceitos
empíricos (região respectiva do mundo das aparências). (2012, p. 77-80).
93
Sendo que o mundo dado pelos objetos é inacessível, e que não é possível “impor”
qualquer tipo de estrutura ao mundo, o cientista deve criar de forma satisfatória, ou seja,
racional, o estabelecimento da conexão entre os dois mundos: na mudança do mundo dado
pelo sujeito, ocasionada pela mudança de paradigma, o cientista deve estabelecer uma
estrutura formal para a nova teoria científica, como escreve Kuhn:
relações de similaridade entre esses mundos. Essa estruturação também implica uma escolha
racional entre as teorias: mudar sua visão de mundo é a consequência da própria mudança de
paradigma, pois, se os cientistas escolhem os melhores paradigmas, o “novo” mundo é uma
consequência dessa escolha, como escreveu Kuhn: “[...] as mudanças de paradigma realmente
levam os cientistas a ver o mundo definido por seus compromissos de pesquisa de uma
maneira diferente.” (2013, p. 202). E consequência dessa maneira diferente de ver o mundo,
os cientistas coletam diferentes dados, como afirma Kuhn: “[...] os dados que os cientistas
coletam a partir desses diversos objetos são, como veremos em breve, diferentes em si
mesmos.” (2013, p. 214). Kuhn explica as diferenças estruturais das mudanças de mundo pelo
exemplo do pêndulo56:
56
Kuhn utiliza como exemplo de mudança de mundo a teoria do pêndulo de Galileu, para demonstrar
como a explicação de Aristóteles para esse fenômeno é diferente o suficiente, para se crer que, o mundo
de alguma forma mudou após a transição da física aristotélica para a moderna, Kuhn explica que:
“Estou, por exemplo, profundamente consciente das dificuldades criadas pela afirmação de que, quando
Aristóteles e Galileu olharam para as pedras oscilantes, o primeiro viu uma queda constrangida e o
segundo um pêndulo. As mesmas dificuldades estão presentes de uma forma ainda mais fundamental
nas frases iniciais deste capítulo: embora o mundo não mude com uma mudança de paradigma, depois
dela o cientista trabalha em um mundo diferente.” (2013, p. 214).
95
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entendemos que a causalidade é um importante conceito para se pensar como o
conhecimento se apresenta, em especial para o desenvolvimento do que hoje chamamos de
ciência, e do que em outros períodos históricos foi conhecido por filosofia natural. Ao
analisarmos algumas questões sobre a causalidade, notamos que dentre todos os sentidos e
conceitos filosóficos a ela relacionados, a metafísica se mostra como o que mais pode ampliar
o conhecimento e as ideias dessa teoria. Pensamos que a ciência não pode estar livre do
conhecimento metafísico, e, além disso, defendemos que a metafísica é uma ferramenta que
pode ajudar a compreender melhor o desenvolvimento das ideias científicas. Entretanto, é
necessário delimitar que tipo de compreensão metafísica que propusemos: embora
semelhante, não se trata de uma metafísica exatamente como a de Aristóteles, mas uma
metafísica em sentido causal reformulada e fundamentada na racionalidade científica.
57
Como explicamos anteriormente (Introdução: capítulo 3, seção 3), Selvaggi mostra que a hierarquia
do conhecimento para Aristóteles acontece pelos seus graus de abstração: o conhecimento físico, o
matemático e o metafísico são considerados de acordo com o seu grau de abstração. Quanto mais
abstrato ou teórico um conhecimento é, mais superior ele deve ser considerado, por esse motivo, a
metafísica era superior para Aristóteles.
98
as noções de movimento, a ampla está ligada a noções mais generalistas, nesse sentido, mais
metafísicas.
O paradigma foi definido por Kuhn como aquilo que os membros de uma comunidade
científica, e apenas eles, compartilham. (2011, p. 312-313). O conceito tem estrita relação
com a prática das comunidades científicas: uma vez que elas estabelecem regras ou normas
que ditam como deve ser a atividade de um grupo de cientistas, o paradigma demonstra que
isso ocorre de forma isolada, por isso um paradigma é praticado apenas por um grupo. Em
suma, o entendimento de um determinado fenômeno da natureza é submetido a determinadas
normas fechadas que são praticadas somente por um grupo de cientistas. Ao analisar o
conceito de paradigma e delimitar suas principais aplicações, Kuhn utilizou o termo matriz
disciplinar para explicar três aspectos do paradigma: as generalizações simbólicas, os modelos
e os exemplares.
Essas matrizes delimitam o entendimento dos aspectos formais das teorias científicas
em Kuhn; os três tipos mostram de que forma os cientistas estabelecem as estruturas teóricas:
as generalizações simbólicas são estruturas matemáticas e lógicas com certo grau de abstração
que servem para generalizar os conceitos da teoria, como o exemplo citado Kuhn: f = m.a; os
modelos são as demonstrações teóricas feitas através de analogias ou metáforas em que se
fornecem os conceitos ou ideias de uma teoria, como no exemplo que citamos (capítulo 3,
seção 3; capítulo 4 seção 2): a gravidade como consequência da curvatura espaço-tempo
sendo demonstrada através de um objeto redondo e pesado sendo colocado em um lençol
esticado e dependurado; e os exemplares estão relacionados à solução concreta dos problemas
nos modelos: enquanto os modelos fornecem a metáfora ou analogia explicativa da teoria, os
exemplares fornecem os cálculos matemáticos.
58
Explicamos anteriormente (capítulo 3, seção 4.2; capítulo 4, seção 4.3) que na teoria da constituição
do mundo, Paul Hoyningen-Huene entende que o mundo dado pelo objeto, ou seja, a própria natureza
não seja totalmente acessível ao homem. Por isso, uma de suas característica, segundo o autor, é que
existe “em si”.
101
A conclusão de nossa pesquisa aponta naturalmente a ideia de que Kuhn tem uma
compreensão metafísica da ciência, e essa ideia é importante, pois nos leva a entender sua
diferente perspectiva sobre a causalidade, uma compreensão que muito pode contribuir para a
filosofia da ciência; ela demonstra a importância de se pensar a ciência a partir de uma
concepção filosófica. Pensamos que essa nova concepção de causa formal seja importante
para as áreas da física moderna e da filosofia da ciência, uma vez que a causalidade foi e é
pouco tratada e estudada nessas áreas. Temos os seguintes motivos para atribuir essa
importância: a possibilidade de uma retomada sobre os estudos da causalidade; uma nova
perspectiva sobre uma nova interpretação de um sistema filosófico antigo, o aristotélico; a
possibilidade de uma maior conexão entre o conhecimento científico com outras áreas do
conhecimento, como a psicologia, a sociologia, a história, entre outros; uma maior
compreensão sobre os critérios de cientificidade nessas áreas, ou seja, uma psicologia
científica, uma história ou uma sociologia científica; o entendimento de que empreendimento
científico pode muito bem ser fundamentado pela filosofia da ciência, ou seja, que as ciências
devem ser interpretadas filosoficamente; e a compreensão sobre a complexidade do próprio
desenvolvimento científico.
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