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24/04/2007

O Globo
Opinião
Página 07
CANO, Ignacio

Faltam investigação e inteligência

Nas últimas semanas, o noticiário sobre violência no Rio tem sido


dominado por matérias sobre vítimas de "balas perdidas". De fato, as "balas
perdidas" são uma conseqüência natural da suposta "guerra" que a cidade
enfrenta. Muito embora a deterioração da segurança pública no Rio não
constitua uma guerra, a ciência social nos ensina que o que se define
socialmente como real é real nas suas conseqüências.
Assim, o elevado número de vítimas, o deslocamento forçoso de
populações, a disputa pelo controle do território ou o calibre utilizado em
alguns dos confrontos lembram conflitos bélicos. Com efeito, é possível
concluir que uma parte significativa da população fluminense não recebe
sequer o grau de proteção que as Convenções de Genebra estabelecem
para populações civis em tempo de guerra.
Não é à toa que várias organizações internacionais que lidam com civis
em países em guerra estejam refletindo sobre qual pode ser o seu papel
nas metrópoles brasileiras atuais. A própria reação do poder público, no seu
empenho para "derrotar o inimigo", tem contribuído para o incremento da
insegurança. Nesse cenário bélico, vítimas de "balas perdidas" não são mais
do que "baixas colaterais" de um conflito infindável.
Está na hora de mudar o paradigma e passar da estéril tentativa de
vencer a "guerra contra o crime" a uma abordagem que privilegie a redução
da violência e da insegurança, nem que seja pelo fato de que o modelo
tradicional tem se revelado comprovadamente ineficaz.
Num momento em que o poder público tem mostrado maior grau de
sensibilidade e receptividade, é preciso discutir políticas alternativas que
consigam evitar que as autoridades do setor passem o seu tempo apenas
gerenciando crises cíclicas.
É claro que a resolução definitiva do problema precisa de políticas
estruturais de longo alcance, como a inserção social dos jovens das áreas
de risco ou a valorização dos profissionais da segurança pública. Mas
existem diversas políticas de curto prazo que podem ser executadas sem
grandes investimentos financeiros e sem mudanças legislativas. Entre elas
podemos mencionar:
1. Plano de redução dos homicídios, cujo elevado patamar constitui o
grande diferencial do Rio, priorizando o combate aos crimes e grupos que
provocam maior número de vítimas fatais, reforçando e reformulando as
Delegacias de Homicídio ou até criando um Departamento de Homicídios,
enfatizando o controle das armas de fogo etc.
2. Diminuição da letalidade policial, estabelecendo metas e um
trabalho específico com os batalhões e delegacias que concentram um
maior número de casos, oferecendo prêmios para policiais que resolvam
situações de tensão com um mínimo de força e investigando
cuidadosamente casos em que há suspeita de execução sumária. A criação
de uma comissão para analisar todos os casos de policiais e civis feridos e
mortos em intervenções policiais pode ajudar a derivar políticas de
prevenção.
3. Adoção de um novo modelo de patrulhamento preventivo
permanente em favela que tenha como meta central a diminuição dos
confrontos e a melhora do relacionamento com as comunidades. O Rio
conta com a experiência do Gepae, que deve ser avaliada e melhorada, mas
que já mostrou que há uma alternativa melhor do que a incursão policial
periódica com os subseqüentes tiroteios.
4. Fortalecimento das corregedorias policiais, oferecendo aos policiais
que trabalham nelas uma gratificação, formação específica e garantia de
estabilidade. É imperativo contar com os melhores policiais na Corregedoria,
pois os desvios de conduta de alguns policiais impedem um efetivo combate
à criminalidade e desmoralizam as corporações. Por outro lado, as
corregedorias devem ganhar independência em relação à estrutura das
polícias para possibilitar que eventuais denúncias contra as cúpulas policiais
sejam de fato investigadas.
O conjunto dessas políticas poderia permitir uma inversão do círculo
vicioso "criminalidade violenta-resposta violenta do estado-criminalidade
ainda mais violenta" e estimular uma dinâmica na qual uma intervenção
mais contida e criteriosa do estado, pautada na investigação e na
inteligência, ajude a reduzir os índices de violência. Nesse contexto, seria
possível, inclusive, tentar induzir uma diminuição da violência por parte dos
próprios criminosos, na medida em que o estado priorize na sua atuação o
combate a uma violência que muitas vezes é excessiva até para os
propósitos criminais.

Ignacio Cano
Laboratório de Análise da Violência – LAV
UERJ

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