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http://dx.doi.org/10.1590/1982-3533.2016v25n2art3
Resumo
Este trabalho investiga o comportamento dos bancos centrais (BCs) dos EUA e do Brasil frente à
recente crise financeira global. O artigo avalia a atuação das autoridades monetárias por meio de uma
leitura sistemática das atas dos respectivos comitês de política monetária entre 2004 e 2011. Procura
também identificar conceitos necessários para uma correta leitura e reconhecimento da conjuntura
macroeconômica e logo uma possível antecipação ou reação adequada à eclosão da crise. Em ambos os
casos os BCs não parecem ter sido capazes de diagnosticar corretamente a evolução da conjuntura
macroeconômica, principalmente em termos de detectar a bolha no setor imobiliário dos EUA e se
antecipar ao estouro da mesma quando esta adquiriu proporções preocupantes. Quando os mercados
financeiros entraram em pânico, os BCs tiveram de reagir pragmaticamente de reagir, mas de forma
desorganizada, emergencial e, possivelmente, despreparada, em função da complexidade dos sistemas
monetário e financeiro e provavelmente dos respectivos interesses financeiros envolvidos. Finalmente,
argumenta-se também que parte desta incapacidade de antecipação pode derivar, entre outros, dos
modelos macroeconômicos convencionais empregados pelos BCs e de uma confiança absoluta na
hipótese dos mercados eficientes.
Palavras-chave: Banco Central; Política monetária; Crise financeira; Defasagens; Macroeconomia.
Abstract
Monetary policy and the financial crisis: could Central Banks have anticipated the crisis?
This study investigates the behavior of US and Brazilian central banks (CBs) regarding the recent global
financial crisis. The article evaluates their conduct through a systematic review of the minutes from the
respective committees’ meetings between 2004 and 2011. The key concepts necessary to carry out a
proper review were employed, in addition to an awareness of the macroeconomic conjuncture and
therefore the ability to anticipate or properly react to the crisis. In both cases, the CBs do not seem to
have been able to diagnose the evolution of the macroeconomic environment correctly, mainly in terms
of detecting the bubble in the US housing sector, and even to anticipate the bubble bursting when it
reached worrying levels. When financial markets panicked, both CBs had to react pragmatically, but in
a disorganized way and with haste. They were also possibly unprepared, given the complexity of
financial and monetary systems, and the financial interests behind it. Finally, it argues that the inability
to anticipate could be found, in part, in the use of conventional macroeconomic models used by the CBs
and in the blind faith in the efficient market hypothesis.
Keywords: Central Banking; Monetary policy; Financial crisis; Lags; Macroeconomics.
JEL E58, H12, E44, E65.
Artigo recebido em 25 de julho de 2014 e aprovado em 22 de janeiro de 2016.
**
Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais e dos Programas de Pós-Graduação
em Economia e em Estudos Estratégicos Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: marcelo.milan@ufrgs.br.
***
Mestrando em Análise Econômica pela Universidade Carlos III, Madri, ES. E-mail:
bernardo_cq@hotmail.com.
Introdução
Este artigo investiga a capacidade de antecipação dos bancos centrais (BCs)
frente a episódios de crises financeiras, tomando como experimento a crise
financeira global de 2007-2008, a mais profunda crise desde a Grande Depressão
(OCDE, 2009). Esta capacidade é importante em razão do argumento de que existem
defasagens entre a decisão sobre mudanças nos instrumentos de política monetária e
os efeitos sobre a economia (Kelton, 2006). Blinder (2004) discute os argumentos
tradicionais, postulados por Friedman (1948 e 1960) de que a política fiscal tem uma
longa defasagem interna (reconhecimento, decisão e implementação), mas apresenta
efeitos imediatos após implementada (isto é, uma defasagem externa curta). Já a
política monetária teria uma defasagem interna mais curta e uma defasagem externa
(impacto) mais longa. Por outro lado, Carlin e Soskice (2005) mostram que no novo
consenso macroeconômico (NCM), as expectativas são formadas de forma a
antecipar o futuro (forward-looking). Neste sentido, é importante avaliar o tempo
necessário para um BC diagnosticar corretamente a existência de bolhas nos
mercados de ativos em um contexto de reduzidas medidas de prevenção à formação
das mesmas1. Igualmente relevante é o tempo exigido para a autoridade monetária
reagir ao colapso de uma bolha e estabilizar os mercados financeiros, assumindo que
o laissez-faire é impraticável no mundo real e mais ainda no contexto de uma crise
financeira2. O tempo de reação da economia a estas políticas, por outro lado, se situa
fora do escopo deste trabalho.
Assim, o artigo procura entender se os BCs podem se antecipar a episódios
de crise em um contexto de crescente instabilidade financeira, diagnosticando-os
corretamente e adotando as medidas apropriadas a partir de uma determinada
fundamentação macroeconômica. Para tanto, a questão a ser respondida é: em que
medida a crise recente corrobora a existência de uma curta defasagem interna,
principalmente a fase de diagnóstico e reconhecimento dos problemas, na
implementação da política monetária? Para respondê-la, o artigo apresenta as
interpretações da conjuntura macroeconômica feitas pelo FED e pelo Bacen entre
2004 e 2011, considerando um intervalo que se estende de três anos antes da eclosão
da crise em 2007 até três anos após o seu aprofundamento e transformação em uma
crise global em 2008. O intervalo de três anos é arbitrário, mas suficiente para tratar
as questões de antecipação e reação discutidas no texto. Além disso, o artigo avalia
(1) Blanchard (2011) mostra que o consenso no mainstream antes da crise era de que a política monetária
deveria ter como único objetivo a estabilização dos preços por meio de mudanças na taxa de juros (um objetivo, um
instrumento). Alan Greenspan, ex-presidente do FED, foi um incansável defensor da desregulamentação dos
mercados financeiros e monetários (Milan, 2012).
(2) A falência do banco Lehman Brothers em setembro de 2008 sugere que as tentativas de implementação
de políticas de laissez-faire não funcionam em períodos de graves perturbações financeiras. Estas tentativas,
generalizadas nos anos 1980 e 1990, provavelmente contribuiram para a crescente instabilidade financeira que
redundou na eclosão de muitas crises (Bresser-Pereira, 2010).
(3) Kelton não discute a atuação do FED frente a crises. Ela discute as mudanças nos objetivos e
procedimentos do FED durante os anos 1990 (publicação das minutas, divulgação da meta para a taxa de juros e o
viés da mesma) e em que medida as mesmas refletem transformações na economia (aumentos de produtividade
proporcionados pela “nova economia”) ou na teoria macroeconômica mainstream (“novo consenso” sintetizado na
Regra de Taylor). Segundo a autora, a abordagem permite entender as motivações do FED de forma direta, sem a
necessidade de inferi-las a partir das políticas adotadas.
(4) O autor relata a resistência acadêmica a esta abordagem em estudos monetários, mas defende seu
emprego em função da capacidade de identificação de choques e de detalhes sobre diferentes políticas monetárias.
(5) Tymoigne (2009) e Bullio et al. (2011) discutem outros trabalhos que tratam do mesmo assunto.
(6) As divergências não se limitam a episódios de crise. Kelton (2006) mostra a divisão no FED sobre um
aumento na taxa de juros em 1999, quando os aumentos na produtividade elevaram o crescimento e o nível de
emprego sem afetar a inflação. Parte dos membros do FOMC era a favor da elevação com base em relatórios técnicos
empregando a regra de Taylor, e outros preferiam esperar para ver se a inflação iria mesmo aumentar, o que não
ocorreu.
(7) Esta posição é questionável no caso da bolha no mercado imobiliário norte-americano, avaliada em
US$ 8 trilhões no período de pico, um valor facilmente identificável. A bolha por definição não se forma já no valor
de pico, mas de forma gradativa e cumulativa por um período de tempo que vai muito além do imediato (Baker,
2009).
(8) Esta perspectiva é compatível com a abordagem Keynesiana sobre o emprego de convenções para
neutralizar a incerteza intrínseca em decisões cujos resultados acontecem no futuro. Por outro lado, o argumento
levanta a questão de porque os agentes adotariam estratégias de investimento distintas a partir da posse da mesma
nova informação disponível, principalmente sobre o valor esperado da variável no futuro. Isto é, as transações
financeiras refletem expectativas distintas sobre o futuro, que continua sendo incerto, não importa quanta informação
o BC torne pública.
das crises como para evitar o aparecimento das mesmas. Isto requer fortalecer a
estrutura regulamentadora e prudencial e a capacidade de resposta da política
monetária a desequilíbrios financeiros que redundem em depressão e deflação.
Adicionalmente, os autores rejeitam as objeções ao uso da política monetária
como resposta a bolhas: a identificação, em um estágio inicial, de desequilíbrios
financeiros que garantam uma margem confortável para implementar as medidas, o
risco de desestabilizar a economia em função da imprevisibilidade dos efeitos da
política e a necessidade de justificar a resposta ao público. Para Borio e Lowe estes
argumentos ficam aquém de excluir uma resposta da política monetária. Isto porque,
por exemplo, as objeções superestimam a dificuldade de identificar desequilíbrios
financeiros. Eles argumentam que as regras de política monetária devem estar atentas
para o fato de que desequilíbrios no sistema financeiro podem ocorrer mesmo em
conjunturas de baixa inflação ou desinflação, por diversas razões. É importante notar
que, embora os autores reconheçam a importância da estabilidade financeira, eles a
veem como um subproduto da estabilidade de preços propriamente definida.
Cecchetti, Genberg e Wadhwani (2005) defendem que os preços dos ativos
não devem ser parte da política monetária, nem na função objetivo do BC nem na
medida de inflação adotada como meta pelo BC. Porém, acreditam que a reação dos
BCs a desalinhamentos nos preços dos ativos, para além da estabilidade de preços e
hiato do produto nas regras de Taylor, podem melhorar o desempenho e a
estabilidade macroeconômica. Os motivos são as distorções criadas por esses
desalinhamentos sobre o consumo e o investimento. Essa reação a desalinhamentos
nos preços dos ativos seria feita por meio das taxas de juros, elevando-as
moderadamente quando os preços dos ativos sofrem um aumento além do que é
justificado, e reduzindo-as moderadamente quando eles ficam abaixo de certos
níveis. Compensa-se, assim, os efeitos das bolhas sobre o produto e a inflação.
Os autores se baseiam no trabalho de Bernanke e Gertler (1999) para
corroborar o argumento de que a política monetária deve responder a mudanças nos
preços dos ativos apenas quando os mesmos sinalizem mudanças na inflação
esperada, nos marcos de um regime flexível de metas de inflação. O trabalho de
Bernanke e Gertler é importante em um outro aspecto fundamental. Os autores
mostram que crises financeiras geram impacto negativo sobre o produto apenas
quando a política monetária permanece sem resposta aos efeitos deflacionários das
crises, mas que políticas agressivas de metas de inflação, ignorando o preço dos
ativos, são efetivas em reduzir a ocorrência de uma crise financeira sem outros
prejuízos macroeconômicos. Portanto, a negligência da evolução financeira pela
política monetária é fundamentalmente benigna nos marcos do regime de metas em
um dos poucos modelos DSGE com papel para distúrbios financeiros. Esta visão da
‘negligência benigna’ aos preços dos ativos, todavia, é rejeitada por Bordo e Jeanne
(2002), para quem uma simples regra de política do tipo considerada no regime de
metas não permite abarcar todas as situações em que reversões nos preços
financeiros podem ter consequências importantes para a economia. A política
monetária deve ser preventiva.
Goodfriend (2005), embora argumente que os preços dos ativos
desempenhem indiretamente um papel importante para a política monetária nas
previsões de demanda agregada e inflação, também é contra a reação direta da
política monetária aos preços dos ativos na determinação da taxa de juros. Para ele,
um aperto monetário em um panorama de aumento das expectativas inflacionárias
faz o preço dos ativos cair devido à elevação das taxas nominais e reais de longo
prazo e à deficiência de demanda agregada. Referindo-se aos preços das ações,
Goodfriend argumenta que essa queda na demanda causa um declínio nos lucros
presentes e futuros das empresas. Esse fato, aliado à maior taxa de juros usada para
trazer a valor presente os lucros futuros, faz com que os investidores precifiquem
para baixo o preço as ações. Em épocas de inflação estabilizada, se o BC reduz as
taxas de juros para estimular o consumo, ocorre o inverso, ou seja, os preços das
ações tendem a subir, respondendo assim a maiores expectativas de lucros e menores
taxas de juros no desconto dos lucros futuros. Dessa forma, o BC não deve se
antecipar às bolhas.
Adicionalmente, Goodfriend tenta explicar como as taxas de juros e os
preços de ativos se relacionam com diferentes combinações de choques de demanda
e de oferta. Existem três situações em que os preços dos ativos podem enganar a
política monetária: medo da inflação, compressão de lucros e aumentos na tendência
de crescimento da produtividade. Essas três situações, em que, diante de um choque
de oferta, seria mais apropriado para as autoridades monetárias moverem as taxas de
juros em sentido oposto ao movimento dos preços dos ativos, sustentam o argumento
de que a política monetária não deveria reagir diretamente a esses preços.
Finalmente, uma perspectiva mainstream escrita no período após a eclosão
da crise de 2007-2008 é proporcionada pelo relatório Rethinking Central Banking,
da Brookings Institution (Eichengreen et al., 2011). O relatório argumenta que as
autoridades monetárias, ao invés de tentar identificar bolhas que estão acontecendo
junto a um rápido crescimento do crédito ou outros indicadores de excesso
financeiro, devem estar atentas se as condições financeiras aumentam a
probabilidade de reversões nos preços de ativos que seriam prejudiciais à atividade
econômica. O uso de testes de estresse é recomendado para medir os impactos de
mudanças no crédito. O relatório reafirma a importância da estabilidade financeira,
argumentando que esta deveria se tornar um objetivo explícito dos BCs, podendo ser
perseguida principalmente por meio de medidas macroprudenciais, como
mecanismo explícito de estabilização macrofinanceira. Estas devem ter como
objetivo a identificação de acúmulos de riscos à estabilidade financeira, e como
instrumentos as exigências anticíclicas de capital e os controles de capital, não a taxa
(9) Em suas palavras (Borio, 2012, p. 1, 23): “The notion of the financial cycle, and its role in
macroeconomics, is no exception. (…). But for most of the postwar period it fell out of favour. It featured, more or
less prominently, only in the accounts of economists outside the mainstream (eg, Minsky, 1982 e Kindleberger,
2000). Indeed, financial factors in general progressively disappeared from macroeconomists’ radar screen. Finance
came to be seen effectively as a veil – a factor that, as a first approximation, could be ignored when seeking to
understand business fluctuations (eg, Woodford, 2003). And when included at all, it would at most enhance the
persistence of the impact of economic shocks that buffet the economy, delaying slightly its natural return to the
steady state (eg, Bernanke et al, 1999). (…) Modelling the financial cycle raises major analytical challenges for
prevailing paradigms. It calls for booms that do not just precede but generate subsequent busts, for the explicit
treatment of disequilibrium debt and capital stock overhangs during the busts, and for a clear distinction between
non-inflationary and sustainable output, ie, a richer notion of potential output – all features outside the
mainstream.”
efeitos, e não suas causas, combatidos geralmente por meio da defesa do uso da
política fiscal. De fato, Minsky (1975, 1979, 1982, 1985, 2008) argumenta que a
instabilidade intrínseca do capitalismo deriva de estruturas financeiras. Ou seja, o
problema vai além da existência de episódios de bolhas nos preços de ativos. Quando
a instabilidade financeira se processa na forma de crises, a política monetária
desempenha um papel relevante, com o BC (big bank) reagindo como emprestador
de última instância e os déficits fiscais do governo central (big government)
estabilizando a demanda efetiva. Assim, não há uma extensa literatura sobre a
efetividade de mecanismos ex ante ou de prevenção às crises, seja por meio de
instrumentos de política monetária, seja por meio de regulação, pois aquelas são
inevitáveis em uma economia capitalista. Por outro lado, há maior convergência em
torno dos instrumentos necessários para gerenciá-la ex post. Novamente, nesta
perspectiva o BC não pode se antecipar, dada a incerteza fundamental postulada por
Keynes, mas sua atuação é fundamental para evitar que uma recessão se aprofunde
e se transforme em uma depressão. Além do ceticismo de Minsky, a existência de
incerteza fundamental lança dúvidas sobre a capacidade dos BCs se anteciparem de
forma precisa, ainda que medidas prudenciais para regulamentar o sistema financeiro
sejam defendidas (Tymoigne, 2009).
Em um dos poucos trabalhos a tratar do assunto, Palley (2011) considera que
a tendência recente de repensar o BC e seu papel na prevenção de bolhas tem duas
vertentes. A primeira é composta daqueles economistas operando dentro das
instituições e aceitando o status quo. Neste caso, a opção é por melhorar a supervisão
bancária e evitar bolhas em ativos, nos moldes do mainstream. A segunda inclui
aqueles economistas trabalhando fora dos BCs e do mainstream da profissão e a
quem caberia a discussão sobre governança e independência, reformas no arcabouço
de metas inflacionárias e a introdução de reservas baseadas em ativos. O autor afirma
que as propostas internas e externas divergem em termos da teoria macroeconômica
por trás das mesmas, com as primeiras assumindo a visão mainstream e as segundas
uma interpretação pós-keynesiana.
Propostas mais recentes que tratam da instabilidade financeira incluem
Tymoigne (2009). O autor defende a criação de uma Comissão de Resolução e
Supervisão Financeira para estabilizar o sistema financeiro. Neste caso o BC não
executaria uma política monetária de estabilização do nível de preços e da atividade
econômica, mas uma política sistemática de estabilidade financeira, investigando
posições de risco e avaliando a introdução de inovações financeiras. O autor rejeita
a centralidade da estabilidade de preços e da necessidade de se manter um regime de
metas de inflação. Especificamente, políticas anti-inflacionárias não deveriam ser
conduzidas pelo BC, mas por outros órgãos do governo, já que a inflação não tem
apenas origens monetárias. Palley (2003, 2011) adota uma visão parecida,
defendendo o uso de reservas lastreadas em ativos, não em passivos, para controlar
(10) Palley (2006) defende a introdução do regime de metas de inflação em um arcabouço pós-keynesiano
como mecanismo para operacionalizar o nível de fixação da taxa de juros, mas não subsume a busca pela estabilidade
financeira a este arcabouço.
(11) Kelton (2006) mostra também como as anedotas são importantes na tomada de decisão do FED e como
muitas vezes as decisões contrariam as próprias orientações da instituição: por exemplo, assumir que a estabilidade
de preços foi alcançada e mesmo assim aprovar uma elevação na taxa de juros – o que sugere a importância de se
entender a economia política dos bancos centrais. Na mesma linha, Ritholtz (2014) destaca o aumento no número
de risos nas transcrições das atas do FOMC até um pico em junho de 2007.
(12) Este comportamento do BC levanta dúvidas sobre a abordagem das expectativas racionais, a qual
fundamentaria a formação de expectativas futuras por parte de agentes e instituições.
2.1 Análise qualitativa das Atas do Comitê Federal de Mercado Aberto (FOMC)
Ao longo de 2004, o FOMC percebeu o aquecimento no setor imobiliário. A
ata da reunião de janeiro sustenta que a atividade no mercado imobiliário seguia
robusta. Na ata da reunião de março, o FED citou relatórios que sugeriam um
crescimento especulativo dos preços em algumas regiões, conduzindo-os a um nível
acima do que seria consistente com os fundamentos. Citou-se na mesma ata que
alguns membros do comitê estavam preocupados com as políticas de estímulo
monetário por meio de taxas reduzidas de juros, pois elas poderiam intensificar o
aumento da alavancagem e a tomada de riscos excessivos, além de aumentar a
chance de instabilidade financeira quando a política se tornasse restritiva. Apesar
disso, a meta para a taxa de juros foi mantida em 1% ao ano em função da inflação
baixa e do mercado de trabalho sem pressões. Já o FED possui um mandato legal
dual de estabilizar os preços, mas sem uma meta explícita, e também o de manter
baixas taxas de desemprego. Assim, existia a suspeita do problema. O FED elevou
as taxas de juros gradualmente até meados de 2006. Como a crise irrompeu em 2007,
gerando uma recessão ao final daquele ano, esta elevação, a única medida em três
anos tomada pelo FED, se mostrou inefetiva em reverter o aumento nos preços dos
imóveis. Como o aumento nas taxas pode refletir também um receio de inflação, é
preciso entender o que aconteceu neste intervalo de tempo.
A ata de setembro destacou o aumento do número de pedidos de hipotecas.
Ao final do ano a atividade no setor imobiliário continuava forte, com vendas
próximas de níveis recordes, em função de taxas de juros reduzidas. Na reunião de
dezembro de 2004, assim como na de março do mesmo ano, alguns participantes
strong economic fundamentals,’ such as strong growth in jobs, incomes and the
number of new households.” (Henderson, 2005). Assim, sem um diagnóstico correto
da conjuntura, a capacidade de antecipação se torna irrelevante. Por outro lado, na
reunião de dezembro, os participantes começaram a discutir os primeiros sinais de
que a atividade no setor imobiliário estava começando a desacelerar, mas os dados
não mostravam um enfraquecimento significativo, sem qualquer menção à bolha.
Nota-se, assim, que o FOMC, em particular o presidente do FED, não conseguiu
detectar uma bolha de US$ 8 trilhões que acontecia no preço dos imóveis (Baker,
2009)13.
O ano de 2006 foi marcado por um arrefecimento no mercado imobiliário
norte-americano, com uma desaceleração no crescimento dos níveis de preços dos
imóveis no início do ano e uma queda no final do ano. Esse declínio foi discutido na
ata da reunião de março de 2006. Para o comitê, uma desaceleração nos preços das
residências poderia levar a um menor crescimento do consumo das famílias e da
demanda agregada. Mas o comitê não via a desaceleração no setor de construção
como significativa. Na ata de maio, o FOMC alertou para ‘os produtos não
tradicionais de hipoteca’ e seu potencial de trazer dificuldades financeiras para as
famílias e para os credores. A queda no crescimento do consumo das famílias
aconteceu no segundo trimestre do ano. O comitê apontou entre os motivos os
aumentos no preço da energia, a redução da apreciação dos preços de imóveis e o
aumento das taxas de juros, e não o processo de reversão da bolha.
Em agosto de 2006, o comitê ainda não via deterioração nas condições
financeiras das famílias em termos de pedidos de falência e taxas de inadimplência.
Na ata de setembro, o FOMC afirmou que a contração na construção de imóveis
estava amortecendo a expansão econômica dos EUA. A construção e as vendas de
residências tinham diminuído e as taxas de juros para hipotecas tinham aumentado,
enquanto o aumento no preço dos imóveis no segundo trimestre de 2006 tinha se
dado em taxas muito baixas comparativamente com o que tinham crescido até então.
Na última reunião de 2006 o comitê continuou observando a desaceleração no setor
imobiliário, com um menor ritmo de construção e declínios nos preços residenciais,
sem adotar nenhuma medida com relação a estes eventos.
O ano de 2007, da deflagração da crise e início da recessão segundo o NBER,
começou com o FOMC avaliando que a chance de uma contração maior no setor
habitacional tinha diminuído e que os impactos sobre o crescimento seriam
arrefecidos ao longo do ano. Na reunião de março de 2007, o comitê percebeu um
(13) Ferrara e Carvalho (2014) interpretam estas percepções de outra forma. Para os autores, o FED
reconhecia a existência de uma bolha de ativos ou pelo menos de desequilíbrios entre os preços e os fundamentos,
mas não considerava prudente intervir em função do papel que a elevação dos preços dos imóveis desempenhava na
recuperação da economia dos choques sofridos no início da década.
nos EUA, os riscos financeiros tinham aumentado apenas modestamente, com pouco
impacto potencial sobre a estabilidade financeira, o que também se mostrou
equivocado. Na ata da reunião de julho, embora o comitê seguisse avaliando que o
cenário externo continuava benigno, notava-se que havia riscos associados à
correção no mercado imobiliário norte-americano, turbulências nos fundos hedge e
uma possível contaminação dos mercados emergentes, mas não se discutiu o que
fazer em caso de contágio. Após a reunião de julho, houve turbulências nos mercados
financeiros internacionais, geradas pelo mercado imobiliário subprime, e isso é
mostrado na ata da reunião do Copom de setembro, em que o comitê utilizou a
palavra crise para se referir aos problemas no mercado de crédito e outros ativos
financeiros. Nota-se também que houve uma mudança substancial na avaliação do
cenário externo, considerado de alta volatilidade. Os BCs dos principais países
passaram a injetar liquidez nos mercados financeiros por meio de operações de
mercado aberto e de redesconto, desfazendo o quadro otimista pintado pelo comitê
até então.
Sobre a futura conjuntura econômica, o comitê sugeria que as preocupações
continuariam. Nesse aspecto, também foi afirmado na ata que havia a incerteza
normal associada à conjuntura econômica e à resposta dos BCs. Reconhecia-se que
a crise contagiaria o setor real da economia nos EUA, mas a economia mundial seria
menos afetada. Ou seja, o comitê subestimava o contágio da crise e não previa
grandes choques na economia mundial. E como fator agravante, em 2008 o Bacen
elevou as taxas de juros em meio ao colapso dos mercados financeiros mundiais. No
início de 2007 a meta para a taxa Selic estava fixada em 13,25% ao ano, sendo
reduzida até atingir 11,25% em abril de 2008, quando a economia dos EUA já se
encontrava em recessão. A partir de então a taxa aumentou até atingir 13,75% em
janeiro de 2009, quando voltou a cair. Portanto, enquanto a crise se agravava em
setembro de 2008, a taxa básica de juros, já elevada para padrões internacionais,
estava em meio a um período de elevação. Neste caso, o fato de a economia brasileira
não ter sido impactada tanto quanto outras economias dificilmente pode ser atribuído
à política monetária. E em que medida o regime de metas de inflação contribui para
explicar este comportamento é uma questão a ser explorada em outro trabalho.
(14) As transcrições completas das reuniões do FED, como já mencionado, são disponibilizadas apenas
com um atraso de cinco anos e não foram empregadas nesta análise, sendo mantida a análise das atas publicadas.
número de reuniões não é o mesmo para o período anterior a 2006, ano em que o
Copom passou a se reunir oito vezes ao ano, assim como o FED, que o faz desde
1981. Assim, faz mais sentido comparar a evolução para cada país separadamente.
A frequência no uso dos termos mede, ainda que indiretamente, a importância destes
conceitos no diagnóstico da conjuntura feito pelos membros que decidem sobre as
ações dos BCs15. O diagnóstico correto da conjuntura por parte da autoridade
monetária, que fundamenta as ações de política monetária, exige uma definição clara
da situação, e os termos empregados refletem, ainda que imperfeitamente, os
fenômenos considerados. A escolha dos termos não necessariamente exaure todos os
conceitos que poderiam refletir as preocupações dos respectivos BCs sobre a
evolução macroeconômica em um quadro de instabilidade financeira. Além disso,
termos sinônimos podem ter sido discutidos e não captados pela análise. Contudo,
os termos escolhidos fazem parte do vernáculo macroeconômico e são de uso
disseminado na academia, no mercado financeiro e na imprensa especializada.
Desta forma, no caso do FOMC (Tabela 1), atividades especulativas
estiveram presentes nas análises em todo o período, mas o potencial desestabilizador
das mesmas não foi considerado. A instabilidade foi ignorada durante todo o período.
Da mesma forma, a volatilidade financeira, característica intrínseca de uma
economia financeirizada e mecanismo central em muitos desarranjos financeiros, só
passa a ser considerada de forma mais frequente quando a bolha estoura. O setor
imobiliário, que figura entre as preocupações dos BCs mesmo em períodos de
estabilidade, ganhou maior importância nos anos próximos à crise. Ainda, a recessão
só foi discutida após a economia passar a figurar oficialmente nesta situação. A
possibilidade de uma desaceleração, sintomaticamente, não foi objeto de maior
atenção por parte dos membros do FOMC. Já o declínio da atividade ganhou
destaque apenas após o país entrar em recessão. Mas o aspecto mais importante é a
ausência do termo ‘bolha’ durante todo o período, sendo mencionado uma única vez
em 2010, apesar da ampla discussão acadêmica antes e durante a formação da bolha.
Não surpreende, portanto, que a palavra “crise” só tenha sido discutida a partir de
2008. No período anterior, os BCs, se a interpretação da afirmação de Borio (2012)
é correta, empregavam modelos sem finanças e, com base nos mesmos, discutiam
apenas a grande moderação16, fenômeno incompatível com bolhas em preços de
ativos e crises e pânicos financeiros.
O caso do Bacen apresenta os mesmos equívocos (Tabela 2). As atividades
financeiras especulativas desaparecem da discussão entre 2007 e 2009, justamente
(15) Cabe notar que a regulação financeira também é importante na prevenção de crises, e as agências
responsáveis por esta atividade, junto com o banco central, também deveriam ser consideradas. Mas em função do
escopo deste trabalho, ficaram de fora da análise.
(16) Segundo Bernanke (2004), a grande moderação foi o período entre o final do século XX e início do
século XXI, caracterizado pela redução da volatilidade macroeconômica.
Tabela 1
Frequência de utilização dos termos relacionados a crises nas atas do FOMC (2004 a 2011)
(17) De acordo com a revista The Economist (2010), o FED descobriu Minsky muito tarde, mas haveria
uma incompatibilidade entre a visão do FED e a de Minsky sobre o funcionamento das economias capitalistas. Este
é justamente o ponto.
Tabela 2
Frequência de utilização dos termos relacionados a crises nas atas do Copom (2004 a 2011)
mesmo com um aumento no número de episódios de crise desde os anos 1980. Sem
um setor financeiro, não há como identificar bolhas financeiras de forma acurada,
contribuindo para uma longa defasagem interna.
Uma quarta explicação estaria na crença na capacidade autorreguladora dos
mercados financeiros frente a estes desequilíbrios, como ficou claro no testemunho
de Alan Greenspan ao Congresso norte-americano, conforme exposto em Milan
(2012)18. Esta crença é igualmente compatível com a visão de Bernanke e Gertler
(1999) de que um regime de metas de inflação agressivo faz com desequilíbrios
financeiros sejam irrelevantes caso não afetem a trajetória da inflação. Por sua vez,
a fé cega no livre mercado financeiro se fundamenta na hipótese dos mercados
eficientes (HME). Jones (2015) resume algumas conclusões sobre o papel da HME
e seus efeitos na crise. Retoma em primeiro lugar o testemunho acima de Greenspan
e enfatiza a afirmação do mesmo de que o edifício intelectual da HME entrou em
colapso. Cita texto de Paul Volcker sobre a fé irracional em expectativas racionais e
mercados eficientes como causas da crise. Mostra como, para Krugman, a fé em
mercados financeiros eficientes cegou os economistas para a maior bolha financeira
– não diagnostica – da história. Por fim, resgata a avaliação de Grantham19. A
afirmação sugere que a fé na HME leva à subestimação dos riscos de colapso das
bolhas, o que é equivalente à uma defasagem interna longa.
Por fim, uma última explicação é fornecida por Bullio et al. (2011).
Discutindo exclusivamente o papel do FED antes e depois da crise, os autores
defendem que o FED foi leniente com a formação da bolha por acreditar que a
elevação no preço dos imóveis ajudaria a mitigar os problemas financeiros
associados ao estouro da bolha das empresas ponto-com, por acreditar nos benefícios
da desregulamentação financeira (como na quarta explicação acima) e por priorizar
a estabilidade de preços. Com a eclosão da crise, o FED abandonou a adesão a regras
que fundamentam o receituário do Novo Consenso Macroeconômico e passou a
operar de forma pragmática, ou seja, sem fundamentação teórica e discricionária,
intervindo na economia enquanto emprestador de última instância à la Bagehot. Na
mesma linha, Ferrara e Carvalho (2014) atribuem a leniência do FED à crença na
resiliência do sistema financeiro norte-americano, à confiança na abordagem
pragmática de gerenciamento de riscos da política monetária e à aceitação da
(18) O testemunho se deu na audiência do comitê de supervisão e reforma governamental da câmara dos
deputados, em 23 de outubro de 2008. Greenspan admitiu ter tido muita fé no poder de autocorreção dos mercados
e no autointeresse das instituições financeiras.
(19) “The incredibly inaccurate efficient market theory was believed in totality by many of our financial
leaders, and believed in part by almost all. It left our economic and government establishment sitting by confidently,
even as a lethally dangerous combination of asset bubbles, lax controls, pernicious incentives and wickedly
complicated instruments led to our current plight. ‘Surely, none of this could be happening in a rational, efficient
world,’ they seemed to be thinking. And the absolutely worst part of this belief set was that it led to a chronic
underestimation of the dangers of asset bubbles breaking” (Jones, 2015, p. 19, n. 42).
Conclusão
A literatura sobre política monetária, bolhas nos preços de ativos e crises
financeiras não é conclusiva, mas sugere que há espaço para a incorporação da
estabilidade financeira nas preocupações do BC. A visão mainstream, ainda que
diversa, é mais reticente com relação a esta possibilidade. A visão heterodoxa, ainda
mais heterogênea, mesmo que não tenha desenvolvido formalmente um arcabouço
para avaliar a questão, desloca-a para o âmbito da regulação temporária dos
mercados financeiros, para os interesses de classe subjacentes ao regime de metas de
inflação e mesmo para a incapacidade de antecipação das autoridades monetárias em
função da incerteza fundamental. Do ponto de vista empírico, a análise das atas das
reuniões dos BCs permite concluir que o FED tinha percebido um crescimento
incomum nos preços dos imóveis, porém subestimou os impactos dessa evolução,
como mostra a declaração de Bernanke de que não havia uma bolha no setor
imobiliário no auge da mesma. Assim, certamente não se poderiam implementar
ações apropriadas. Como o FED não reagiu às elevações nos preços e só identificou
tardiamente os desequilíbrios financeiros ocasionados pelo estouro da bolha, não se
pode rejeitar a caracterização, com base neste episódio, de que as autoridades
monetárias podem não ser capazes de identificar os desequilíbrios financeiros com
suficiente antecedência, levantando dúvidas sobre o comportamento forward-
looking. Isto não é surpreendente, dada a inexistência do setor financeiro nos
modelos macroeconômicos empregados por esta instituição, ao mesmo tempo em
que se assume a HME, e também em razão de o regime de metas de inflação –
implícito no caso do FED, como já mencionado anteriormente, em função do
mandato dual para estabilizar o nível de preços e assegurar o pleno emprego – impor
inúmeras restrições à capacidade de reação do BC à instabilidade financeira. Já o
Bacen não percebeu o crescimento especulativo nos preços dos imóveis nos EUA e
acreditava na resiliência financeira da economia norte-americana, sugerindo uma fé
parecida na HME. Quando os primeiros sinais de crise foram vistos, a instituição
assumia que os problemas não seriam tão sérios para a economia mundial,
subestimando os efeitos da crise. Em meio ao colapso financeiro global, o Bacen
implementou uma política de aperto monetário. Se o Bacen opera com base na
evolução macroeconômica futura, isto é, ele se antecipa por ter comportamento
forward-looking, como suposto na abordagem mainstream padrão, esta política de
aperto sugere que o mesmo esperava uma rápida recuperação e riscos elevados de
inflação nos próximos meses, uma leitura que se mostrou equivocada. O mais
provável é que o Bacen agiu com base nos eventos imediatos de curto prazo ou
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