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2012/ 12/23

O Egipto tem uma nova constituição. Terá também


estabilidade?

Alexandre Reis Rodrigues

Com a conclusão da segunda volta


do referendo constitucional,
realizada anteontem, o Presidente
Morsi e a Irmandade Muçulmana
conseguiram ver aprovada a nova
constituição. Na primeira volta,
tinham obtido 57% de votos a
favor; terminaram o processo com
64% de aprovação.1 Não restam
dúvidas de que, à semelhança das primeiras eleições legislativas, não lhes
será difícil ganhar as que obrigatoriamente terão que se seguir à entrada
em vigor da nova constituição. Isto é, não havendo surpresas (que ninguém
espera), acabarão por ganhar tudo em que se submeteram ao voto popular.

No entanto, não obstante as sucessivas vitórias nas urnas, estes resultados


não vão ser sinónimos de estabilidade. O País está muito dividido, com
largos setores da população a considerarem que a constituição não reflete
devidamente a composição da sociedade egípcia. No entanto, a oposição,
embora recentemente reunida numa Frente de Salvação Nacional, não se
mostra capaz de se organizar para ter expressão política útil. Prevendo que
não conseguiria vencer o referendo, optou por tentar boicotá-lo, sem
sucesso como se viu. O pior está para vir quando se tornar incontornável
começar a cortar nos subsídios que têm amenizado as dificuldades
económicas em que a população vive e for indispensável aumentar os
impostos para pagar o empréstimo pedido ao FMI.

O Poder Judicial, com uma estrutura ainda dominada por nomeações feitas
por Mubarack (o seu “último bastião”) e com um largo setor que se mostra
muito crítico da Irmandade Muçulmana, demorará algum tempo a adaptar-
se à nova situação e à provável perda de algumas prerrogativas que o
anterior regime lhes concedia. Muito politizado, tem procurado interferir em
todo o processo - obviamente para não facilitar a vida ao Presidente Morsi -
aproveitando as ambiguidades e vazios resultantes da falta de uma
constituição e dos diferendos iniciais de Morsi com o Conselho Supremo das
Forças Armadas (CSFA). Só não se envolveu no processo de substituição da

1
Aguardam-se ainda os resultados oficiais.

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liderança do CSFA, que Morsi conseguiu conduzir com grande habilidade.2


Daqui para a frente terá que se conformar com o facto de que não lhe cabe
fazer leis.

Os militares continuarão a ser a principal incógnita. De momento, parecem


ter desistido de evitar, como fizeram durante quase um ano e meio, que o
Egipto passasse a ter um governo civil, democraticamente eleito. A maioria
dos observadores considera que se contentarão em controlar os
desenvolvimentos políticos,3 em função dos resultados eleitorais, não se
envolvendo no dia-a-dia da governação mas mantendo-se prontos para
intervir se entenderem que a situação o exige. Sabendo que a Irmandade
Muçulmana não terá dificuldades, pelo menos no curto prazo, em continuar
a ganhar as eleições e tendo conseguido ver aceites e consagradas na
constituição praticamente todas as suas exigências de autonomia4, terão
optado por tentar mostrar-se neutrais. Resta saber como interpretarão, na
prática, a sua neutralidade se os protestos se agravarem e deixarem de ter
hipótese de negociarem com o poder civil uma saída de qualquer eventual
crise futura, como fizeram, entretanto, com o Presidente Morsi.

Presume-se que os militares estão a olhar cuidadosamente para as


experiências por que passaram o Paquistão e a Turquia, quer na tentativa
de fazer seguir o País para uma democracia com raízes islâmicas, quer no
modelo adotado para as Forças Armadas, acautelando os erros que os
outros cometeram. Ao contrário do que fizeram os militares turcos, que
optaram pelo “confronto” com o Justice and Development Party, os egípcios
procuram desenvolver uma relação de trabalho com a Irmandade
Muçulmana. Neste aspeto, estarão a seguir a via adotada pelos generais
paquistaneses que, em função da sua própria experiência, passaram de

2
Calcula-se, ao que tem sido referido, que tenha tirado partido do clima existente entre os membros
mais jovens do SCAF, onde existia a ideia de que alguma renovação seria necessária.
3
«The Egyptian’s military chief constraint is that it does not want to govern directly. It prefers to work
behind the scenes, letting a civilian government be held responsible for a troubled economy,
unemployment and myriad other economic, social and structural problems in the country. The military
seeks to protect its own vested interests in the military-industrial complex and its control over Suez
canal while retaining a decisive voice in national security affairs», in “Egyptian’s brewing constitutional
crisis”, 30 November 2012, Stratfor.
4
Os chamados “Selmi Principles” (que adotaram o nome do vice-primeiro-ministro responsável pela sua
redação) sob os quais a Constituição se desenvolveu consagraram tudo o que de essencial os militares
pretendiam, como se pode verificar do seguinte extrato:
«(9) The State alone shall establish the Armed Forces, which belong to the people and whose mission is
to protect the country and its territorial integrity as well as its security and preserving the unity and the
protection of the constitutional legitimacy. No organization, group or party is allowed to carry out the
formations of military or paramilitary forces. The Supreme Council of the Armed Forces - without any
other - is in charge of handling all the affairs of the armed forces and discussing its budget. Such budget
should be set as one item and one figure in the State budget. The Supreme Council of the Armed Forces
- without any other - is also concerned with the approval of any legislation relating to the armed forces
before issuing it. The President is the Supreme Commander of the Armed Forces; and the Minister of
Defense is the commander of the armed forces. The President of the Republic declares war after
approval of the Supreme Council of the Armed Forces and the People’s Assembly.
(10) A council shall be called the "Council of National Defense" is to be established, and the President of
the Republic shall chair it. This council is in charge with handling the affairs relating to the ways of
securing the country and ensuring its safety. The law shall specify the terms of reference and the other
authorizations of this Council. Defending the motherland is a sacred duty, and conscription is regulated
according to the law. The law also regulates the general military mobilization».

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uma relação hostil para uma relação de cooperação com o Pakistan People’s
Party.5 Se vão conseguir evitar todos os sobressaltos por que passou o
relacionamento civil-militar no Paquistão, nas últimas três décadas, é algo
muito incerto.

No entanto, como a Irmandade Muçulmana também precisa do apoio


militar, o entendimento sobre uma fórmula que não afaste totalmente os
militares da cena política, evitando o que aconteceu na Turquia, parece
possível, pelo menos no curto prazo. Depois será, provavelmente, mais
difícil até porque a situação de privilégio que os militares conseguiram
manter - não fazendo sentido numa democracia - será contestada, mais
tarde ou mais cedo; se não for pela Irmandade Muçulmana será pelos
partidos liberais que, aliás, já se manifestaram nesse sentido. Os militares
vão precisar destes partidos para equilibrar o seu relacionamento político.

Em qualquer caso, é bom ter presente que a questão egípcia nunca estará
limitada às suas fronteiras. Estamos a falar de um país que é geralmente
considerado como o centro do mundo árabe e o equilíbrio precário em que
toda a região se encontra não está imune ao que suceder no seu interior.
Qualquer alteração da política interna egípcia, com reflexos nas relações
exteriores, precisa de ser cuidadosamente gerida, em particular se alterar o
relacionamento com os EUA e levantar interrogações sobre o acordo de paz
dom Israel.

Por um lado, algum distanciamento em relação a Washington é já patente;


por outro lado, o tema Israel, tal como tem estado abordado desde o tempo
de Sadat, não é consensual, principalmente agora que a Irmandade
Muçulmana chegou ao poder. Neste segundo ponto, os militares não vão
permitir “tocar”; no primeiro, vai imperar, pelo menos para já, a
dependência em que o Egipto se encontra para evitar o colapso financeiro e
poder continuar a receber ajuda militar. Estas duas circunstâncias vão
obrigar Morsi a ser cauteloso mas tudo continua precário.

5
“Egypt´s military and the Pakistani Model”, 18 December 2012.

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