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Transferência e desejo do analista: os nomes do amor na experiência analítica ou


“Amar é dar o que não se tem”

Palavras-chave: Transferência, Desejo do analista, Formação

“Que haja amor à fraqueza, está aí


sem dúvida a essência do amor.
Amar é dar o que não se tem,
ou seja, aquilo que poderia reparar
essa fraqueza original”
Jacques Lacan 1

Amar é dar o que não se tem é uma frase musical, exige música, Música Popular
Brasileira, nome próprio.

A descoberta dessa frase de Lacan, subtítulo do trabalho, deveu-se a um pedido de


Danilo Caymmi. Conhecendo-a há muito, gostando de sua ressonância, de sua força,
pediu-me a referência, ou a frase inteira, pois pretendia musicá-la. O interessante é que a
frase, forte e bonita, conceitua o amor à fraqueza como a essência do amor. Coisa que
me parece perfeitamente lógica, dentro da lógica dos opostos.

Encontrei-a no Seminário 17 2, assim por acaso, quando pesquisava a relação entre saber
e gozo, preparando uma aula. Agorinha, enquanto refletia sobre o trabalho a ser escrito
sobre o amor, voltou-me à lembrança. O impacto surpresivo, a subversão do sentido, a
negatividade - coisas tão lacanianas! - associadas à discrição quase triste, quase
romântica, diante da fraqueza e da impotência, me fizeram pensar em conspiração.

Nessa conspiração do amor, ou sobre o amor, que são a transferência e o desejo do


analista.

1
LACAN, Jacques. O Seminário – livro 17. O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1992, p. 49.
2
Porém, a famosa frase foi cunhada por Lacan durante o Seminário da Transferência.
LACAN, Jacques. O Seminário – livro 8. A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992, p. 41.
2

O amor marca o início da psicanálise, com Anna O. e Breuer. Marca o princípio da


experiência analítica com o amor de transferência e, no final, marca também o desejo do
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analista, acossado por um amor sem limite. Um desejo que poderá surgir no final da
experiência, não está dado a priori. Como uma aposta. Uma aposta que o desejo inédito,
sustentado no agalma, possa aparecer quando houver a passagem de psicanalisante a
psicanalista, como ensina Lacan na Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o
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psicanalista da Escola.

Diria que a experiência analítica é percorrida pelo amor, de cabo a rabo, esse amor onde
se dá o que não se tem, amor onde se doa a falta, sendo que, no princípio e no final, há
nomes próprios para designá-lo: transferência e desejo do analista, respectivamente.

Conspiração é conluio, maquinação, trama: entendimento secreto dirigido contra alguém


ou contra o Estado 5. Por que, então, haveria uma conspiração amorosa a caracterizar a
transferência e o desejo do analista? Quem seria o adversário?

Lacan, ao falar de O Banquete 6, de Platão, diz haver ali uma teoria do amor, enunciada
por Sócrates e Alcibíades, teoria esta que adotará como própria ao discurso analítico e
como capaz de esclarecer a natureza da transferência. É a teoria do amor como falta:
amar é dar o que não o se tem. É na falta que o amor se junta ao desejo, onde o amante
elege um outro, o amado, como aquele ao qual poderá doar sua própria falta, fazendo
dele o objeto que lhe falta.

Quando Alcibíades entra embriagado na casa de Agatão, durante O Banquete, e declara


seu amor a Sócrates, eis aí um bom exemplo da conspiração amorosa. Alcibíades pensa
amar Sócrates, mas é o agalma socrático que visa, seu objeto precioso. Visa o que lhe
falta, visa em Sócrates o objeto que causa seu próprio desejo, para extraí-lo, arrancá-lo e

3
LACAN, Jacques. O Seminário – livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p. 187.
4
LACAN, Jacques. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: Outros Escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 248.
5
KOOGAN/HOUAISS. Enciclopédia e Dicionário Ilustrado da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora
Guanabara Koogan, 1993.
6
PLATÃO. O Banquete. In: Diálogos. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1950, p. 109.
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incorporá-lo a si. Como um adereço ou uma prótese ou um semblante. Nessa cena Lacan
isola a dialética do amor e as funções do amante e do amado.

A conspiração amorosa poder-se-ia caracterizar, então, pela falta; pela extração do objeto
causa de desejo (a) do Outro e pela conseqüente troca das posições: de amante passa-
se a amado. Como diz Lacan no Seminário 10, a função da angústia é indicar o momento
preciso no qual o sujeito está usurpando o (a) do Outro, doador. Assim, surge o sujeito no
lugar do Outro e introduz-se a divisão, a barra, tanto no sujeito quanto no Outro. 7

Retomando, então, Alcibíades aponta Sócrates como detentor do agalma, objeto


precioso, acima de todos os bens, causa de desejo. O matema da transferência é idêntico
ao agalma, escreve Lacan na Proposição, pois é um guia para análise e articulação do
desejo na instância do sujeito. O objetivo é formar uma equação cuja constante é o
agalma e a incógnita, x, o desejo do psicanalista. O mesmo x cuja solução entrega
ao psicanalisante seu ser e cujo valor tem a notação de castração (-φ), hiância que
designamos como a função do falo, isolada no complexo de castração, ou objeto
(a)... 8 É nessa hiância, nessa falta única, que o agalma (o objeto a) se sustenta.

...a questão que diz respeito ao que pode ser o desejo do analista, é que é
necessário partir da experiência do amor, como fiz no ano de meu Seminário sobre
9
a transferência, para situar a topologia onde essa transferência pode se inscrever.

Então, para se obter algum saber sobre o desejo do analista - essa transferência - é
necessário colocar sua função no plano do amor e não somente no plano da luta, no
plano da conspiração (referência a Hegel, ainda no Seminário 10). 10

O desejo do analista adquire o estatuto de conceito quando Lacan coloca a experiência


do real no coração da experiência analítica, a partir do Seminário 7. Então, o conceito se
desenvolve tomando certa distância do registro do imaginário com o objetivo de
diferenciá-lo, radicalmente, da contratransferência. Ao mesmo tempo, conceituando
desejo do analista, Lacan responde aos teóricos do emprego ativo da contratransferência

7
LACAN, Jacques. O Seminário – livro 10. A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p. 179.
8
LACAN, Jacques. Op. cit., 2004, p. 257.
9
LACAN, Jacques. Op. cit., 2005, p. 170.
10
LACAN, Jacques. Op. cit., 2005, p. 169.
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no tratamento analítico, particularmente a Paula Heimann. 11 O desejo do analista se


dirige ao real que causa o desejo do analisante. Nessa medida, o analista pode ocupar o
lugar de semblante do objeto a do sujeito e levá-lo, na experiência, ao encontro de sua
diferença absoluta, de sua particularidade, o S1.

O desejo do analista não é um desejo puro. Diferente do desejo puro da lei moral. É o
desejo de obter a diferença absoluta, aquela que intervém quando, confrontado
com o significante primordial, o sujeito vem, pela primeira vez, à posição de se
assujeitar a ele. Só aí pode surgir significação para um amor sem limite, porque fora
dos limites da lei... 12 Esta é uma descrição de Lacan ‘com palavras’ do matema do
Discurso do Analista:

a → s1

s2 $

Penso, com base nas citações e articulações anteriores, poder afirmar que o desejo do
analista, além da transferência, é um dos nomes do amor na experiência analítica. Um
amor sem limite, a princípio com uma função operativa vazia de conteúdo próprio, que
trata de promover no analisando o bem-dizer sobre o desejo, encarnada pelo analista em
posição de objeto (a), causa de desejo. No final, trás em si o resto, o dejeto, a marca do
rebotalho, do gozo intolerável, porém irresistível, do sofrimento do sujeito.

Em 1973, na Nota Italiana, 13 Lacan afirma que aceder ao desejo inédito é saber ocupar
(na análise, ao analisando) o lugar de objeto-rebotalho, objeto perdido, objeto do gozo
intratável pelos dispositivos simbólicos próprios aos discursos social e terapêutico.

Levado o analisando aos paroxismos de sua particularidade, no final da análise, o desejo


do analista opera, mais ainda, como depositário dos restos de gozo do analisando, para
dar passagem a um novo psicanalista.

11
COSENZA, Domenico. Scilicet dos Nomes do Pai. Volume preparatório ao VI Congresso da AMP. Belo
Horizonte: EBP / AMP, 2005, p. 40.
12
LACAN, Jacques. Op. Cit., 1988, p. 260.
13
LACAN, Jacques. Nota Italiana, Op. Cit., 2003, p. 313.
5

...a transferência não é sombra das antigas tapeações do amor: é isolamento, no


atual, de seu funcionamento de puro engano. Por trás do amor de transferência há
14
afirmação do laço do desejo do analista com o desejo do paciente.

Para dar passagem a um novo desejo de analista.

Maria do Carmo Dias Batista

14
LACAN, Jacques. Op. Cit., 1988, p. 240.

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