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DA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM MÓVEL COMO

MODALIDADE GERAL DE GARANTIA1

LEONARDO NETTO PARENTONI


Mestrando em Direito Empresarial pela UFMG.
Professor da Faculdade de Direito Pitágoras
Ex-bolsista de pesquisa científica do CNPq.
Advogado.

SUMÁRIO – 1. Delimitação do tema 2. Introdução 3. Modalidades de garantia 4.


Definição de alienação fiduciária 5. Fundamento legal da alienação fiduciária de bens
móveis 6. Jurisprudência dominante 7. Da alienação fiduciária como modalidade geral
de garantia 8. Conclusão 9. Bibliografia.

1. Delimitação do tema.
Este artigo concentra-se na análise da alienação fiduciária de bens móveis.
Portanto, não se incluem no escopo do trabalho questionamentos referentes à alienação
fiduciária de imóveis ou de direitos, institutos regulados, respectivamente, pela Lei nº
9.514/1997 (Sistema Financeiro Imobiliário) e pelo artigo 66-A da Lei nº 4.728/1965
(Lei do Mercado de Capitais, na redação dada pela Medida Provisória nº 2.160-
25/2001).
Tem-se, ainda, um enfoque direcionado aos aspectos materiais da alienação
fiduciária, pelo que não serão analisadas questões processuais, tais como a
constitucionalidade ou conveniência da prisão civil do devedor fiduciante.
Dentro dos aspectos materiais, o que se pretende é demonstrar,
fundamentadamente, que a alienação fiduciária constitui modalidade geral de garantia,

1
Este texto deve ser citado como: PARENTONI, Leonardo Netto. Da alienação fiduciária de bem móvel
como modalidade geral de garantia. IOBC/WPRS Bulletin. São Paulo: IOB, v. 07, p. 212-220, abr. 2005.
É expressamente vedada a utilização comercial, reprodução ou transferência deste texto, por qualquer
meio, sem prévia e expressa autorização por escrito do autor.
exigível por qualquer credor. Tal objetivo se justifica porque a Jurisprudência
majoritária e parte considerável da Doutrina entendem que a alienação fiduciária
constitui modalidade especial de garantia, exigível apenas pelas sociedades que atuam
no mercado financeiro e de capitais.
Desmistificar esse dogma é, portanto, o objeto do presente artigo.

2. Introdução.
Na década de 60, o Governo Federal pretendeu estimular as instituições
financeiras a concederem crédito direto ao consumidor, para a aquisição de bens de
consumo duráveis, como parte da política nacional de desenvolvimento econômico 2.
Entretanto, para que as instituições financeiras se dispusessem a conceder
tal crédito seria necessário fornecer-lhes uma garantia eficaz em caso de
inadimplemento do consumidor. Ocorre que as garantias então existentes eram
inadequadas para essa finalidade3, por dependerem da anuência de terceiros – aval e
fiança, em razão do custo de sua constituição – hipoteca ou, simplesmente, por
desapossarem o consumidor de um bem, como é o caso do penhor.
Assim, no intuito de viabilizar o financiamento ao consumidor, sobretudo o
de baixa renda, foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro uma nova modalidade
de garantia, a alienação fiduciária 4.

2
MARTINS, Fran. Contratos e Obrigações Comerciais. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 183.
“Tendo em vista melhor amparar o crédito em vendas de bens móveis, introduziu o Governo, no direito
brasileiro, a alienação fiduciária em garantia, instituto que passou a ser usado, em larga escala,
principalmente nas vendas de aparelhos eletrodomésticos e veículos automotores.”
3
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. v.
4. p. 271-272. “O direito brasileiro tem experimentado novos instrumentos de garantia, uma vez que a
complexidade da vida moderna não se satisfaz com aqueles de cunho tradicional. O penhor e a hipoteca
revelam-se demasiado rígidos para acompanharem a velocidade crescente do tráfico jurídico. O primeiro,
exigindo a afetiva traditio (salvo algumas exceções) da coisa apenhada, não satisfaz às exigências da vida
mercantil. A segunda, limitada aos bens imóveis, navios e aeronaves, tem o seu campo de incidência
estreito demais.
(...)
Foi então que o direito moderno acordou da poeira dos séculos o negócio fiduciário, que o Direito
Romano já conhecia nas duas figuras da fiducia cum amico e da fidúcia cum creditore.”
4
WALD, Arnoldo. A Alienação Fiduciária. Jornal Síntese. n.º 55, p. 9, set. 2001. “Inspirada no direito
norte-americano, a alienação fiduciária em garantia foi introduzida em nosso direito como um instituto
excepcional destinado a permitir o crédito ao consumidor, substituindo, em grande parte, a venda com
reserva de domínio e o penhor mercantil que, por motivos de ordem fiscal e processual, já não mais
cumpriam adequadamente a sua função. Inicialmente, sofreu restrições quanto à sua utilização, por se
tratar de instituto novo em relação ao qual o legislador não podia prever todas as conseqüências. Assim,
foi considerado como o instrumento adequado para permitir que as financeiras fornecessem recursos aos
compradores de bens duráveis, especialmente automóveis e eletrodomésticos, em vez de conceder crédito
às empresas vendedoras que, de muito, ultrapassariam o valor dos seus ativos. Permitiu-se,

2
Instituída pelo artigo 66 da Lei nº 4.728/1965 (Lei do Mercado de Capitais),
posteriormente alterada pelo Decreto-lei nº 911/1969, a alienação fiduciária demonstrou
ser uma modalidade de garantia extremamente ágil, eficaz e adequada à realidade
brasileira.
Desde então, vem sendo utilizada com sucesso em diversos negócios
jurídicos.

3. Modalidades de garantia.
O adimplemento de uma obrigação pode ser acautelado por meio das
seguintes modalidades de garantia 5:

1) Pessoal ou fidejussória; e

2) Real.

Na primeira modalidade, um terceiro, estranho à relação jurídica, obriga-se


a adimplir a obrigação caso o devedor originário não o faça. São exemplos desta
modalidade o aval e a fiança.
A garantia real6, por seu turno, consiste no oferecimento de um ou vários
bens, integrantes do patrimônio do devedor ou de terceiro, cuja propriedade será

conseqüentemente, a pulverização dos riscos e, conseqüentemente, a maior segurança para o credor e se


atingiu a mesma finalidade, facilitando o processo de reintegração de posse do bem pelo banco, mediante
simples e rápida busca e apreensão. Foi, na realidade, essa técnica financeira, concebida no plano jurídico
e prático, que permitiu a um grande número de pessoas o acesso a bens que elas, anteriormente, não
tinham condições financeiras de adquirir.”
5
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. v.
4. p. 202-203. “A garantia pode ser de duas espécies: a) pessoal ou fidejussória, consistindo em que uma
pessoa estranha à relação obrigatória principal se responsabilize pela solução da dívida, caso o devedor
deixe de cumprir a obrigação. Desta espécie é a fiança ou o aval; b) real mais eficaz do que as garantias
pessoais, quando se vincula ao pagamento um determinado bem do devedor, o que se concretiza com a
afetação de um ou vários bens ao pagamento do credor. (...) desenvolveu-se modernamente entre nós a
alienação fiduciária, a que já nos referimos em o nº 257-A, supra (volume III), e que no nosso direito,
como em outros sistemas, retoma a sua função romana de garantia real.
(...)
Na verdade, historicamente o conceito de garantia real era uno, e ao lado do pignus e da hipoteca
inscrevia-se a fiducia, que a ambas precedeu, consistindo na alienação da coisa ao credor, como o pacto
de remancipação, isto é, recompra pela restituição ao devedor com a extinção da obrigação. Aliás, in
principio, a garantia real somente se compreendia com a alienação do objeto, somente vindo a nascer o
conceito técnico de direito real de garantia quando se passou a admitir sem transmissão do domínio.”
6
O termo garantia real deriva do latim res, que significa coisa. É, portanto, a garantia representada por
um bem corpóreo.

3
transferida ao credor em caso de inadimplemento do devedor. Nesta categoria inserem-
se os direitos reais de garantia7, dentre os quais a alienação fiduciária.
A alienação fiduciária é mais vantajosa do que as demais modalidades de
garantia:

1) Prevalece sobre o aval e a fiança porque pode ser prestada pelo próprio
devedor, sem a necessidade do concurso de terceiros, estranhos à relação jurídica.

2) Prevalece sobre os demais direitos reais de garantia porque constitui um


direito sobre coisa própria (propriedade resolúvel do credor fiduciário), ao passo que os
demais direitos reais de garantia, como o penhor e a hipoteca, constituem-se sobre coisa
alheia.

3) Como o bem dado em garantia é o próprio objeto da prestação na


obrigação principal, assegura-se, em regra, que o valor da garantia seja equivalente ao
da obrigação acautelada.

4) Prevalece especificamente sobre o penhor porque permite ao devedor


continuar utilizando o bem, enquanto ainda não adimplida a obrigação.

5) Sobre a hipoteca, tem a vantagem de recair sobre bens móveis,


normalmente de valor menor do que o dos passíveis de hipoteca 8.

7
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direitos Reais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002. v. 5. p. 451-452.
“O conceito de direitos reais de garantia, tal como hoje conhecemos, passou por longa evolução. A
princípio, a garantia não se desvinculava da própria pessoa do devedor, até que depois passasse seu
patrimônio a responder pelas dívidas. Longa construção prática e doutrinária foi necessária para que a
garantia se ligasse a um bem, com eficácia de direito real, erga omnes, não vinculando estrita e
unicamente o devedor, mas a coisa. A noção de garantia pessoal é mais antiga, ocorrendo quando alguém
se responsabilizava pela dívida de outrem, utilizada com maior freqüência no Direito Romano.”
8
Código Civil:
“Art. 1.473. Podem ser objeto de hipoteca:
I – os imóveis e os acessórios dos imóveis conjuntamente com eles;
II – o domínio direito;
III – o domínio útil;
IV – as estradas de ferro;
V – os recursos naturais a que se refere o art. 1.230, independentemente do solo onde se acham;
VI – os navios;
VII – as aeronaves.”

4
6) É também favorável ao credor pois, em caso de inadimplemento, fornece-
lhe instrumento eficaz para reaver o bem: a ação de busca e apreensão conversível em
depósito9.

7) Além disso, é mais vantajoso ao credor empresário obter como garantia


um bem relacionado à sua atividade empresarial, dada a maior facilidade de revenda
deste em caso de execução da garantia. Assim, para uma distribuidora de veículos, é
mais conveniente receber a alienação fiduciária do próprio automóvel adquirido pelo
consumidor do que, por exemplo, o penhor de jóias.

4. Definição de alienação fiduciária.


Antes de adentrar nas noções técnicas de alienação fiduciária, é interessante
fornecer ao leitor uma visão geral do instituto.
Na alienação fiduciária ocorre um desmembramento dos elementos da
propriedade10. O adquirente do bem tem para si a posse direta e o direito de usar e fruir,
enquanto o alienante conserva a propriedade resolúvel11 da coisa, a qual se extinguirá de

9
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 29. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2002. v. 3. p. 67. “O mecanismo procedimental de excussão desse novo tipo de garantia real, disciplinado
pelo Dec.-Lei nº 911/69, impõe certos condicionamentos ao credor fiduciário para o manejo da ação de
depósito.
Em primeiro lugar, não está o credor autorizado a ingressar diretamente em juízo com actio depositii,
pelo simples fato da mora ou inadimplemento do devedor fiduciante. Antes terá de recorrer à ação de
busca e apreensão e somente depois de comprovado em seu bojo o desvio do bem gravado, é que poderá
pretender a conversão em ação de depósito (Dec.-Lei nº 911, art. 4º).”
10
São quatro os elementos da propriedade: direito de usar ou gozar, fruir, dispor e reivindicar (ius utendi,
fruendi et abutendi). Usar um bem é colocá-lo a serviço de seu titular sem alterar-lhe a substância. Fruir
significa perceber os frutos – naturais ou civis – gerados pela coisa. Dispor é a faculdade de consumir o
bem, alterando-lhe a substância, de gravá-lo ou de transferir-lhe o domínio. Por fim, reivindicar é a
faculdade de reaver o bem de quem indevidamente o possua. No mesmo sentido: VENOSA, Sílvio de
Salvo. Direito Civil: Direitos Reais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002. v. 5. p. 158-159.
11
Trata-se de propriedade resolúvel sujeita a condição e não a termo, porque apesar de possível a
previsão de data para o adimplemento da última prestação, até que ocorra o efetivo pagamento este
continua sendo evento futuro e incerto, face ao risco da inadimplência. LISBOA, Roberto Senise. Manual
Elementar de Direito Civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. v. 4. p. 191. “Propriedade
resolúvel ou revogável é aquela que importa sujeição da transferência definitiva do domínio da coisa à
verificação ou não de um fato jurídico, que pode ser:
a) um evento futuro e incerto (condição);
b) um evento futuro e certo ou determinável (termo); ou
c) uma causa superveniente.
Trata-se de propriedade não definitiva, cujo advento da condição final ou do termo final pode acarretar a
perda ou a resolução da propriedade, que retornará ao patrimônio do anterior proprietário.
O proprietário resolúvel não poderá mais exercer os direitos inerentes ao domínio do bem, cuja
propriedade poderá ser reivindicada pelo beneficiário da resolução.”

5
pleno direito quando o devedor adimplir a obrigação. Exemplificando: o consumidor
que adquire um automóvel transfere a propriedade deste ao credor, no ato da compra,
como forma de garantir o pagamento parcelado do preço do veículo, mas continua
utilizando-o normalmente. Em caso de inadimplemento, o credor, por ser proprietário,
pode reaver o bem, inclusive por meio de ações reais12. Por outro lado, o consumidor
torna-se automaticamente proprietário quando quitar todas as prestações,
independentemente de manifestação do credor, pois, com o adimplemento da obrigação
principal, a garantia perde a sua finalidade.
Essa idéia geral está contida nas definições Doutrinárias:

“Por alienação fiduciária entende-se aquele negócio em que


uma das partes (fiduciante), proprietário de um bem, aliena-o
em confiança para a outra (fiduciário), a qual se obriga a
devolver-lhe a propriedade do mesmo bem nas hipóteses
delineadas em contrato.

(...)

Trata-se de contrato instrumental de mútuo, em que o mutuário-


fiduciante (devedor), para garantia do cumprimento de suas
obrigações, aliena ao mutuante-fiduciário (credor) a
propriedade de um bem. Essa alienação se faz em fidúcia, de
modo que o credor tem apenas o domínio resolúvel e a posse
indireta da coisa alienada, ficando o devedor como depositário
e possuidor direto desta. Com o pagamento da dívida, ou seja,
com a devolução do dinheiro emprestado, resolve-se o domínio
em favor do fiduciante, que passa a titularizar a plena
propriedade do bem dado em garantia.”13

“Consiste a alienação fiduciária em garantia na operação em


que, recebendo alguém financiamento para aquisição de bem
móvel durável, aliena esse bem ao financiador, em garantia do
pagamento da dívida contraída.”14

GUIMARÃES, Jackson Rocha. Aspectos da alienação fiduciária em garantia. Revista da Faculdade de


Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, ano XXI, n. 13, p. 103-122, out.
1973. p. 105. “Nessas rápidas pinceladas, podemos observar que a fidúcia representou sempre uma forma
de garantia que implicava na transferência da coisa que o devedor faz ao credor. No direito romano, a
transferência da coisa dada em garantia, feita pelo credor ao devedor, uma vez paga a dívida, era uma
obrigação pessoal. No direito germânico, no entanto, era diferente. A coisa era dada ao credor em
garantia, sob condição resolutiva de pagamento da dívida. Cumprida a condição, a propriedade retornava
imediatamente às mãos do devedor.”
12
LISBOA, Roberto Senise. Manual Elementar de Direito Civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002. v. 4. p. 35. “Ações reais são aquelas que versam sobre a defesa da posse, da propriedade, ou de
outro direito sobre coisas.”
13
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 463-464.
14
MARTINS, Fran. Contratos e Obrigações Comerciais. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 183.

6
“Inscrevendo-se como ‘direito real de garantia’, cuja
conceituação genérica vem estabelecida acima, pode-se definir
a alienação fiduciária como a transferência, ao credor, do
domínio e posse direta de uma coisa, independentemente de sua
tradição efetiva, em garantia do pagamento de obrigação a que
acede, resolvendo-se o direito do adquirente com a solução da
dívida garantida.”15

Do cotejo entre as definições percebe-se que:

1) As duas primeiras, da lavra de comercialistas, vinculam a alienação


fiduciária ao contrato de mútuo, ao passo que a última, proveniente de um civilista,
define o instituo com modalidade geral de garantia; e

2) A alienação fiduciária é ora definida como contrato ora como direito real.

A primeira questão diz respeito ao cerne deste estudo e será objeto de


análise em tópico específico 16. A segunda, entretanto, será agora examinada.
A resposta a tal questão demanda análise dos possíveis efeitos de um
contrato no ordenamento jurídico brasileiro: se meramente obrigacionais – tal como na
Alemanha17 – ou se constitutivos de direitos reais – tal como em França18.
No Brasil, o contrato gera somente efeitos obrigacionais 19. A constituição de
direitos reais requer ato complementar: a tradição20, para bens móveis, ou a transcrição
do título aquisitivo no registro público, para imóveis21.

15
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. v.
4. p. 273.
16
Seção 7, intitulada: Da alienação fiduciária como modalidade geral de garantia.
17
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direitos Reais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002. v. 5. p. 167-
168. “O Código alemão de 1896 instituiu a transferência de propriedade fundada no registro imobiliário.
Pelo sistema alemão, há um exame prévio do título que serve de instrumento para a transferência da coisa,
perante juízes do registro imobiliário. Essa modalidade exige cadastro rigoroso e confiável dos imóveis.
Efetuado o registro nesse sistema, o ato assume caráter de negócio jurídico abstrato. Desvincula-se o
negócio da causa anterior, seja ela contrato de compra e venda, doação, permuta etc. Destarte, o conteúdo
do registro estabelece presunção absoluta de propriedade.”
18
Ob. cit. p. 167. “Para o sistema francês, a transcrição no registro imobiliário não é constitutiva de
direito real. O efeito translativo decorre do próprio contrato de compra e venda, doação, permuta etc. O
contrato é, ao mesmo tempo, obrigação e fato gerador do direito real. Transfere-se a propriedade pelo
simples consentimento.”
19
Para uma análise mais aprofundada da distinção entre direito real e direito obrigacional consulte-se:
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Execução de hipoteca. Embargos de terceiro manejados por

7
Frise-se: a transferência da propriedade de bens móveis se perfaz com a
tradição, independentemente de registro. Quem compra um televisor, uma camisa ou
um livro, por exemplo, torna-se deles proprietário a partir da tradição do bem, não
sendo necessário qualquer registro. Quem compra um imóvel, ao contrário, somente se
torna proprietário com a transcrição do contrato de compra e venda no Cartório de
Registro de Imóveis. Assim, a expressão popular segundo a qual “quem não registra não
é dono” aplica-se apenas aos imóveis.
Essa distinção parece óbvia. Entretanto, torna-se controversa quando o
objeto de estudo é a alienação fiduciária de bens móveis, pois a própria lei22 determina
que a aquisição da propriedade resolúvel do bem depende do registro do contrato. Ter-
se-ia, aqui, exceção à regra geral?
O professor Caio Mário da Silva Pereira entende que sim:

“O requisito formal é da essência do ato, pois que sem o


instrumento escrito não haverá arquivamento no Registro de
Títulos e Documentos para ‘valer contra terceiros’, e é óbvio
que se a alienação fiduciária não for oponível a terceiros não
transmite a propriedade, uma vez que é da essência desta a
oponibilidade erga omnes (Introdução, supra). Argumenta
Pontes de Miranda que o problema é de prova e que a
confissão supre a ausência do instrumento. Não nos parece
aceitável, pois teria como conseqüência tolerar uma
propriedade exclusivamente inter partes, sem validade erga

promissário comprador sem inscrição no registro imobiliário. Súmula 84 do STJ. Inaplicabilidade. Revista
de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 27, n.º 106, p. 255-272, abr./jun. 2002.
20
Código Civil:
“Art. 1.226. Os direitos reais sobre coisas móveis, quando constituídos, ou transmitidos por atos entre
vivos, só se adquirem com a tradição.”
21
Código Civil:
“Art. 1.227. Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se
adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247),
salvo os casos expressos neste Código.”
22
Lei nº 4.728/1965:
“Art. 66. (...)
§ 1º A alienação fiduciária somente se prova por escrito e seu instrumento, público ou particular, qualquer
que seja o seu valor, será obrigatoriamente arquivado, por cópia ou microfilme, no Registro de Títulos e
Documentos do domicílio do credor, sob pena de não valer contra terceiros, e conterá, além de outros
dados, os seguintes:
(...)”
Código Civil:
“Art. 1.361. (...)
§ 1º Constitui-se a propriedade fiduciária com o registro do contrato, celebrado por instrumento público
ou particular, que lhe serve de título, no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor, ou,
em se tratando de veículos, na repartição competente para o licenciamento, fazendo-se a anotação no
certificado de registro.”

8
omnes, e que poderia haver transmissão de posse pelo
constituto possessório sem a existência de cláusula expressa.”23

Adotamos esse entendimento, com uma única ressalva. O constituto


possessório não requer, necessariamente, cláusula contratual expressa. Pode decorrer da
própria lei, como no caso alienação fiduciária. Esta circunstância, aliás, já havia sido
vislumbrada por Orlando Gomes24.
Conclui-se, portanto, que o negócio jurídico (contrato bilateral) de alienação
fiduciária gera apenas efeitos obrigacionais para os contratantes. O direito real de
garantia, consistente na transferência da propriedade resolúvel do bem ao credor
fiduciário, decorre do registro do contrato, por força de disposição legal 25. Tem-se,
assim, que o registro público é constitutivo da garantia fiduciária:

“A alienação fiduciária, o ato de alienar em si, é negócio


contratual. Trata-se de instrumento, negócio jurídico, que
almeja a garantia fiduciária, esta sim direito real.”26

Por fim, há quem sustente que a alienação fiduciária não transfere a


propriedade do bem ao credor-fiduciário27. Com esse entendimento não se pode

23
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. v.
4. p. 277.
24
GOMES, Orlando. Alienação Fiduciária em Garantia. Revista da Faculdade de Direito Cândido
Mendes. Rio de Janeiro, ano II, n. 4, p. 7-25, abr. 1977. p. 15. “(...) nada impossibilita a admissão de um
‘constitum ex lege’. Manifesta-se esse modo de tradição quando na alienação ‘é necessariamente conexo
o efeito da aquisição da posse’. Esse efeito conexo está previsto na lei quando prescreve que o adquirente
ficará com a posse indireta da coisa, o que importa admitir que o alienante fica com a posse direta.”
25
GUIMARÃES, Jackson Rocha. Aspectos da alienação fiduciária em garantia. Revista da Faculdade de
Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, ano XXI, n. 13, p. 103-122, out.
1973. p. 107. “Deve ser salientado que nesse negócio jurídico duas relações aparecem: uma de ordem
obrigacional, outra de ordem real. A obrigacional é a dívida contraída. A de ordem real é a transferência
da propriedade do bem móvel do devedor ao credor, para fins de garantia, com a esperança de voltar a ser
proprietário do mesmo, com o adimplemento da obrigação.”
Registre-se, por respeito ao Mestre, o entendimento contrário de Orlando Gomes: 25 GOMES, Orlando.
Alienação Fiduciária em Garantia. Revista da Faculdade de Direito Cândido Mendes. Rio de Janeiro, ano
II, n. 4, p. 7-25, abr. 1977. p. 16.
26
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direitos Reais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002. v. 5. p. 537.
27
PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Código Civil Anotado. Porto Alegre: Síntese, 2004. p. 957. “A
alienação fiduciária é uma forma de direito real de garantia e não uma forma de propriedade. Neste
sentido, o credor em momento algum titulariza a propriedade gravada. O que é titularizado é a garantia
real, na forma de alienação fiduciária, como dá conta a própria literalidade do art. 43 do Decreto-Lei nº
413/69. O próprio sistema veda a aquisição do bem pelo credor (art. 1.361), assim como atribui ao
instituto a normatividade dos direitos reais de garantia (art. 1.367). Ainda que seja possível interpretar-se
o instituto como uma forma de propriedade, onde o credor teria direito real na coisa própria, mediante
uma propriedade resolúvel em favor do devedor, não parece tratar-se esta da melhor interpretação, em
perspectiva necessariamente dialógica e sistemática. Sequer parece ser uma interpretação razoável.

9
concordar. Para afastá-lo, basta uma ponderação. Segundo entendimento jurisprudencial
consolidado, o bem alienado fiduciariamente não pode ser objeto de penhora em
execuções movidas contra o devedor fiduciante, justamente por não integrar o
patrimônio deste, uma vez que sua propriedade foi transferida ao credor-fiduciário 28.

5. Fundamento legal da alienação fiduciária de bens móveis.


A alienação fiduciária de bens móveis foi introduzida em nosso
ordenamento jurídico pelo artigo 66 da Lei nº 4.728/1965 (Lei do Mercado de Capitais),
posteriormente alterado pelo Decreto-lei nº 911/1969.
Durante décadas, esse foi o fundamento legal da matéria.
Contudo, o “novo” Código Civil tratou da propriedade fiduciária nos artigos
1.361 a 1.368. Em razão destas normas, passou-se a questionar se o Código Civil teria
revogado as disposições da Lei nº 4.728/1965.
Há quem afirme que houve abrogação:

“Nos artigos 1.361 a 1.368 o Código regula a propriedade


fiduciária resolúvel de coisa infungível, com o escopo de
garantia. Essa disciplina revoga o Dec.-Lei nº 911/69, ex vi do
artigo 2.046.”29

Uma norma revoga outra quando assim o disponha, expressamente, ou


quando regule toda a matéria tratada na anterior30.
No caso, o artigo 2.045 do Código Civil não revogou expressamente a Lei
nº 4.728/1965. O novo Código também não trata inteiramente da matéria contida na Lei
nº 4.728/1965.

(...)
Não obstante a literalidade do art. 1.363, o devedor é proprietário do bem, usando, fruindo e possuindo-o
no exercício de suas faculdades reais in re. Sua conduta não é de depositário e não há resquício de
contrato de depósito na espécie.”
28
Súmula 242 do TFR. “O bem alienado fiduciariamente não pode ser objeto de penhora nas execuções
ajuizadas contra o devedor fiduciário.”
29
COSTA, Dilvanir José da. Sistemas de Direito Civil à luz do novo Código. Rio de Janeiro: Forense,
2003. p. 430. No mesmo sentido: VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direitos Reais. 2. ed. São
Paulo: Atlas, 2002. v. 5. p. 536.
30
Lei de Introdução ao Código Civil:
“Art. 2º (...)
§ 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível
ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.”

10
Isso porque a Medida Provisória nº 2.160-25/2001 introduziu na referida lei
o artigo 66-A, que disciplina a alienação fiduciária de bens fungíveis e de direitos.
Assim, tem-se que as matérias reguladas por cada diploma legal são
distintas:

Código Civil Lei nº 4.728/1965 artigos 66 e 66-A


 Bens móveis infungíveis;
 Alienação fiduciária de
 Bens fungíveis; e
bens móveis infungíveis
 Direitos

O Código Civil revogou apenas o artigo 66 da Lei nº 4.728/1965, por tratar


inteiramente da matéria nele prevista (alienação fiduciária de bens móveis infungíveis).
Permanecem em vigor as disposições processuais do Decreto-lei nº
911/1969, por força do artigo 2.043 do Código Civil 31, bem como o artigo 66-A da Lei
nº 4.728/1965.

6. Jurisprudência dominante.
A Jurisprudência majoritária entende que a alienação fiduciária é
modalidade especial de garantia, exigível apenas pelas sociedades que atuam no
mercado financeiro e de capitais. Os argumentos são, basicamente, os seguintes:

1) A alienação fiduciária foi introduzida em nosso ordenamento jurídico


pela Lei do Mercado de Capitais (Lei nº 4.728/1965). Como as disposições desta lei
constituem normas especiais, aplicáveis exclusivamente às sociedades que atuam no
mercado financeiro e de capitais32, somente estas estariam autorizadas a exigir garantia
fiduciária.

31
Código Civil:
“Art. 2.043. Até que por outra forma se disciplinem, continuam em vigor as disposições de natureza
processual, administrativa ou penal, constantes de leis cujos preceitos de natureza civil hajam sido
incorporados a este Código.”
32
Além das instituições financeiras, stricto sensu, outras empresas podem praticar alienação fiduciária em
virtude de autorização legal, ainda que expressa em ato administrativo decorrente de delegação, tal como
ocorre com as administradoras de consórcios.
O tema encontra-se pacificado no Supremo Tribunal Federal desde o seguinte julgado: STF, Plenário, RE.
n.º 90.636/SP, j. 03.05.1979, Rel. Ministro Moreira Alves: “Ementa: Alienação fiduciária em garantia. A
garantia real (propriedade fiduciária) decorrente da alienação fiduciária em garantia pode ser utilizada nas

11
2) A alienação fiduciária confere ao credor fiduciário prerrogativas únicas
para a cobrança de seu crédito. Em contrapartida, restringe sobremaneira as
possibilidades de defesa do devedor fiduciante. O credor pode ajuizar ação de busca e
apreensão do bem dado em garantia, obtendo a satisfação liminar de sua pretensão. Por
outro lado, o devedor, na contestação, só poderá alegar o pagamento do débito ou o
regular cumprimento de suas obrigações. Não poderá, por exemplo, alegar vícios do
consentimento, desequilíbrio superveniente das obrigações contratuais ou mesmo
incompetência relativa do Juízo 33. Além disso, caso o bem não seja encontrado, a ação
de busca e apreensão pode ser convertida em depósito, redundando na prisão civil do
devedor34. Essa situação de desequilíbrio somente deve ser admitida em situações
excepcionais35, em razão do interesse público 36 que a justifica.

operações de consórcio, que se situam no terreno do Sistema Financeiro Nacional, e que se realizam sob
fiscalização do Poder Público, da mesma forma como ocorre com as operações celebradas pelas
financeiras em sentido estrito. Recurso Extraordinário conhecido e provido.”
No mesmo sentido: WALD, Arnoldo. A Alienação Fiduciária. Jornal Síntese. n.º 55, p. 9, set. 2001.
“Tendo sido introduzida em nosso direito pela Lei nº 4.728, de 1965, e regulamentada, quanto aos seus
aspectos processuais, pelo Decreto nº 911, de 1969, a alienação fiduciária foi reservada, inicialmente, às
operações das financeiras e posteriormente estendida, pela jurisprudência, aos consórcios.”
33
Decreto-lei nº 911/1969:
“Art. 3º O Proprietário Fiduciário ou credor, poderá requerer contra o devedor ou terceiro a busca e
apreensão do bem alienado fiduciariamente, a qual será concedida Iiminarmente, desde que comprovada a
mora ou o inadimplemento do devedor.
§ 1º Despachada a inicial e executada a liminar, o réu será citado para, em três dias, apresentar
contestação ou, se já tiver pago 40% (quarenta por cento) do preço financiado, requerer a purgação de
mora.
§ 2º Na contestação só se poderá alegar o pagamento do débito vencido ou o cumprimento das obrigações
contratuais.”
34
Constituição da República:
“Art. 5º (...)
(...)
LXVII – não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e
inescusável de obrigação alimentícia e do depositário infiel;”
Decreto-lei nº 911/1969:
“Art 4º Se o bem alienado fiduciariamente não for encontrado ou não se achar na posse do devedor, o
credor poderá intentar ação de depósito, na forma prevista no Título XII, Livro IV, do Código de
Processo Civil.”
O Supremo Tribunal Federal considera constitucional a prisão civil do depositário infiel: STF, Plenário,
HC. n.º 72.131/RJ, j. 23.11.1995, Rel. Ministro Marco Aurélio. “Ementa: ‘Habeas corpus’. Alienação
fiduciária em garantia. Prisão civil do devedor como depositário infiel. Sendo o devedor, na alienação
fiduciária em garantia, depositário necessário por força de disposição legal que não desfigura essa
caracterização, sua prisão civil, em caso de infidelidade, se enquadra na ressalva contida na parte final do
artigo 5º, LXVII, da Constituição de 1988. Nada interfere na questão do depositário infiel em matéria de
alienação fiduciária o disposto no § 7º do artigo 7º da Convenção de San José da Costa Rica. ‘Habeas
corpus’ indeferido, cassada a liminar concedida.”
No mesmo sentido: STF, 1ª T., RE. n.º 345.345/SP, j. 25.02.2003, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence.
“Ementa: Prisão civil de depositário infiel (CF, art.5º, LXVII): validade da que atinge devedor fiduciante,

12
3) Complementando o argumento anterior, entende-se que os empresários
autorizados a exigir alienação fiduciária devem se submeter à fiscalização do Poder
Público, a fim de certificar que as prerrogativas que lhe foram concedidas não estão
sendo utilizadas de forma abusiva. Assim é que os bancos e as administradoras de
consórcios, por exemplo, devem se sujeitar à fiscalização do Banco Central do Brasil.

4) Note-se que a redação original do caput do artigo 66 da Lei nº


4.728/1965 não previa tratamento tão severo para o devedor fiduciante. Tal tratamento
foi instituído quando a redação do dispositivo foi alterada pelo Decreto-lei nº 911/1969,
reforçando a necessidade de fiscalização pelo Poder Público.

Redação original do art. 66 Redação dada pelo


da Lei nº 4.728/1965 Decreto-lei nº 911/1969
“Art. 66. Nas obrigações garantidas por “Art. 66. A alienação fiduciária em garantia
alienação fiduciária de bem móvel, o credor transfere ao credor o domínio resolúvel e a
tem o domínio da coisa alienada, até a posse indireta da coisa móvel alienada,
liquidação da dívida garantida.” independentemente da tradição, efetiva do
bem, tomando-se o alienante ou devedor em
possuidor direto e depositário com todas as
responsabilidades e encargos que lhe
incumbem de acordo com a lei civil e penal.”
(sem grifos no original)

vencido em ação de depósito, que não entregou o bem objeto de alienação fiduciária em garantia:
jurisprudência reafirmada pelo Plenário do STF, mesmo na vigência do Pacto de São José da Costa Rica
(HC 72.131, 22.11 .95, e RE 206.482, 27.5.98), à qual se rende, com ressalva, o Relator, convicto da sua
inconformidade com a Constituição.”
Recentemente, contudo, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que em caso de furto do bem depositado,
sem culpa do depositário, seria descabida a prisão civil. No caso, deve-se promover a avaliação indireta
do bem, a fim de que o valor apurado seja depositado em Juízo pelo devedor: STJ, 3ª T., HC. n.º
29.426/SP, j. 11.05.2004, Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros. In: Informativo 208 do STJ.
35
STF, 1ª T., RE. n.º 105.143/MG, j. 11.09.1987, Rel. Ministro Sydney Sanches. “Ementa: (…)
Sociedade comercial não financeira (em sentido estrito ou amplo) não pode se valer, em suas operações
de venda de bens, da garantia de alienação fiduciária, prevista em legislação específica e de aplicação
restrita a outras entidades.”
No mesmo sentido: STF, 2ª T., RE. n.º 111.219/RJ, j. 10.12.1987, Rel. Ministro Aldir Passarinho.
“Ementa: Alienação fiduciária em garantia. Firmou-se a jurisprudência do STF no sentido de que somente
as instituições financeiras e os consórcios autorizados de automóveis é que podem utilizar-se do instituto
da alienação fiduciária em garantia. Admite a doutrina que as entidades estatais ou para-estatais são
igualmente legitimadas para receber tal tipo de garantia, como resulta do art. 5º do Decreto-lei nº 911-69.
Recurso conhecido e provido.”
36
Vide seção 2 (Introdução).

13
5) Por fim, o simples fato de restringir as possibilidades de defesa do
devedor justificaria a utilização restritiva da alienação fiduciária em garantia, sobretudo
face aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa37.

Essas, em suma, as razões que justificariam a restrição da alienação


fiduciária às sociedades que atuam no mercado financeiro e de capitais.

7. Da alienação fiduciária como modalidade geral de garantia.


Primeiramente, há que se destacar que a alienação fiduciária em garantia era
praticada no Brasil antes mesmo do advento da Lei nº 4.728/1965. Obviamente, na
época, não se tratava de direito real, porque este exige previsão em lei. Constituía-se, de
fato, como direito obrigacional decorrente de contrato:

“Se bem que, anteriormente a essa introdução legislativa, a


alienação fiduciária em garantia fosse bastante usada através
de negócios simulados, só com a Lei nº 4.728, de 14.07.1965,
que disciplinou o mercado de capitais, foi regulada
legislativamente a alienação fiduciária em garantia.”38

Portanto, o instituto era uma realidade muito antes de receber


regulamentação jurídica39.
Quanto aos argumentos delineados no tópico anterior, cumpre destacar,
primeiramente, que nenhum deles afirma que a natureza jurídica da alienação fiduciária
é incompatível com sua utilização fora do sistema financeiro. Ao contrário, não há no
instituto nada que autorize essa conclusão. Aliás, repita-se, antes de regulamentada, a
alienação fiduciária era praticada por qualquer pessoa, inclusive não empresários.
O primeiro argumento delineado na seção anterior é o de que a alienação
fiduciária estaria restrita ao sistema financeiro por ter sido instituída por lei especial,

37
Constituição da República:
“Art. 5º (...)
(...)
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o
contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;”
38
MARTINS, Fran. Contratos e Obrigações Comerciais. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 183.
39
Cumpre destacar que, atualmente, a alienação fiduciária encontra-se prevista em diversos diplomas
legais. À guisa de ilustração, cite-se: Lei nº 6.404/1976, art. 40, Lei nº 7.565/1986, art. 148 e Decreto-lei
nº 413/1969, art. 13. É prevista, inclusive, em norma de caráter eminentemente geral, a Lei de Registros
Públicos: Lei nº 6.015/1973, art. 129, 5º.

14
destinada a regulamentar o mercado de capitais. De todos, este é o argumento mais
frágil. O caráter geral ou abstrato é da norma jurídica, do comando legal, e não do
veículo normativo que o introduziu no ordenamento jurídico. Assim, nada impede que
uma lei dita “especial” contenha, em seu bojo, uma ou algumas normas gerais:

“O argumento de que a alienação fiduciária foi introduzida


num texto legal que veio disciplinar o mercado de capitais e
estabelecer medidas para o seu desenvolvimento, não prova
nada. Como bem salientou Euler da Cunha Peixoto (Ob. cit.
idem), a lei 4.728 contém uma seção inteira – A XI, artigos 53 a
59 – que trata de ‘tributação de rendimentos de títulos de
crédito e ações’, assunto estranho ao mercado de capitais, uma
vez que cuida do desconto do imposto de renda na fonte.
Poderíamos acrescentar o artigo 77 da mesma lei, que trata do
aspecto tributário. Seria o caso de indagar: apesar de estarem
na chamada vulgarmente ‘Lei do Mercado de Capitais’, não
seriam normas tributárias? Como se sabe, é comum
encontrarmos textos legais com disposições de ordem civil,
penal, administrativa, etc. Lembraríamos a lei 4.591 ( de
16/12/64 – Condomínio e Incorporações) que traz no seu bojo
normas penais e administrativas. Pergunta-se: deixam de ser
penais e administrativas só por estarem numa lei civil?

Seria preciso que nossos juízes e tribunais examinassem com


maior profundidade e argúcia o problema e dessem à alienação
fiduciária em garantia um campo mais vasto de aplicação (já
que não existe no texto legal limitação). Assim fazendo, o novo
negócio jurídico poderia, em razão da segurança e eficácia
indiscutíveis, substituir as formas de garantia tradicionais.”

“Em relação à capacidade jurídica para ser sujeito ativo da


alienação fiduciária (adquirente) levanta-se controvérsia séria
entre os autores. De um lado, aqueles que somente reconhecem
esta aptidão nas instituições financeiras pelo fato de a
regulamentação do negócio fiduciário constar na Lei nº 4.728,
de 14 de julho de 1965, cuja finalidade precípua foi a disciplina
do mercado de capitais, e ainda de se fazer menção a que veio
o instituto atender à política de crédito no campo específico dos
valores mobiliários. De outro lado, os que não enxergam nesta
circunstância uma exigência de caráter subjetivo, mas
consideram aquele diploma apenas o veículo legislativo de seu
aparecimento.

Não vemos motivo para a restrição. Antes da lei disciplinadora


do mercado de capitais já o nosso direito admitia, posto que em
caráter atípico, o negócio fiduciário. Quando o legislador lhe
concedeu foros de negócio jurídico nominado, deu-lhe abrigo
naquela lei especial por uma razão de conveniência: o
comércio monetário, necessitando de um instrumento mais

15
dinâmico de garantia, do que os tradicionais, e as instituições
financeiras agindo sob a fiscalização das autoridades
monetárias, entendeu o legislador de boa política ali inserir
esta modalidade de garantia, sem exclusividade entretanto.”40

Ademais, a Lei nº 4.728/1965 não diz que a alienação fiduciária deve estar
restrita ao sistema financeiro. Quando o legislador pretendeu restringir determinada
disposição da lei às instituições financeiras, o fez expressamente, como no caso dos
artigos 26, III e 28 caput, que se referem, respectivamente, às “instituições financeiras
especialmente autorizadas pelo Banco Central” e às “instituições financeiras que
satisfizerem as condições gerais fixadas pelo Banco Central” 41.
Em relação à alienação fiduciária, entretanto, a lei não faz restrição,
utilizando termos genéricos como “credor” e “devedor” ao invés de “mutuante” e
“mutuário”. Assim, seguindo os princípios básicos de hermenêutica, o intérprete não
deve distinguir onde o legislador não o fez (ubi lex non distinguit nec nos distinguere
debemus).
Os demais argumentos expostos na seção anterior não questionam a
natureza jurídica da alienação fiduciária. Limitam-se a afirmar que o tratamento
processual dado ao instituto deve ser utilizado restritivamente. Ora, uma coisa não tem
nada a ver com a outra. A natureza jurídica de um instituto não se confunde com seu
tratamento processual.
Os partidários da posição tradicional se apóiam em argumentos muito mais
sociológicos e econômicos do que jurídicos.
O que querem, de fato, é manter um tratamento processual privilegiado
para as instituições financeiras. Tal tratamento, previsto no Decreto-lei nº 911/1969,
desequilibra a relação processual em favor dessas instituições. Sua aplicação ao
mercado de capitais “justifica-se” por um interesse social maior, a manutenção do

40 40
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
v. 4. p. 275-276.
41
Lei nº 4.728/1965:
“Art. 26. As sociedades por ações poderão emitir debêntures ou obrigações ao portador ou nominativas
endossáveis, com cláusula de correção monetária, desde que observadas as seguintes condições:
(...)
III – subscrição por instituições financeiras especialmente autorizadas pelo Banco Central, ou a
colocação no mercado de capitais com a intermediação dessas instituições.”
“Art. 28. As instituições financeiras que satisfizerem as condições gerais fixadas pelo Banco Central,
para esses tipos de operações, poderão assegurar a correção monetária a depósitos a prazo fixo não
inferior a 1 (um) ano e não movimentáveis durante todo o seu prazo.”

16
financiamento ao consumidor. Entretanto, não se admite aplicá-lo fora do sistema
financeiro. Isso não significa que fora dele não possa existir alienação fiduciária,
apenas que seu tratamento processual não deve ser o do Decreto-lei nº 911/1969.
O que os autores não dizem é que é possível a utilização da alienação
fiduciária como modalidade geral de garantia, desde que se estabeleça para ela um
tratamento processual distinto do previsto no Decreto-lei nº 911/1969.
As palavras do Ministro Moreira Alves, elaborador das disposições do
Código Civil que tratam da propriedade fiduciária, evidenciam bem esse aspecto:

“Continuo convencido do acerto dessa tese [a de que a


alienação fiduciária deve se manter restrita ao sistema
financeiro]. Com base nela aliás, é que redigi o capítulo ‘Da
Propriedade Fiduciária’ (art. 1.393 a 1.400) que integra o
Projeto do Código Civil, ora em tramitação no Congresso
Nacional. Sua inclusão no Projeto de Código Civil se faz, para
estender o instituto ao uso comum, mas – e é necessário que se
note – nessa disciplina não se inclui qualquer preceito de
ordem processual que coloque o credor em plano de tal
superioridade que possibilite – como ocorre com as normas
processuais existentes no decreto-lei n. 911/69 – a prática
desenfreada e, de certa forma, protegida de usura. A matéria
processual relativa à alienação fiduciária em garantia, se
aprovado o Código Civil com essa generalização, deverá ser
disciplinada por lei especial que, pelo menos do plano da
utilização do instituto por particulares cuja atuação não seja
fiscalizada por entidade pública, saberá equilibrar a posição
processual de ambas as partes, para impedir se incentive a
ususra.”42

Por fim, o caráter de generalidade da propriedade fiduciária foi confirmado


com o advento do novo Código Civil, que regulou o instituto nos artigos 1.361 a 1.368.
Resta apenas definir qual será seu tratamento processual, uma vez que é improvável que
as benesses atualmente conferidas às instituições financeiras sejam estendidas aos
particulares.

42
STF, Plenário, RE. n.º 90.636/SP, j. 03.05.1979, Rel. Ministro Moreira Alves.

17
8. Conclusão.
Desde a sua introdução em nosso ordenamento jurídico, nos idos de 1965, a
alienação fiduciária permaneceu restrita ao sistema financeiro, em decorrência do
posicionamento doutrinário e jurisprudencial dominantes.
O que este artigo pretendeu demonstrar é que a posição dominante não se
sustenta do ponto de vista técnico jurídico, sendo, na realidade, uma opção política.
A evolução do Direito pátrio demonstrou o equívoco do posicionamento
tradicional, não mais permitindo sustentá-lo sequer sob o aspecto da política legislativa,
uma vez que o novo Código Civil tratou da propriedade fiduciária, conferindo-lhe foros
de generalidade.
De fato, a natureza jurídica do instituto não é incompatível com a sua
utilização pelos particulares. O que se questiona é o tratamento processual traçado pelo
Decreto-lei nº 911/1969.
Posta em termos atuais, portanto, a questão não é mais a de saber se a
alienação fiduciária em garantia pode ser utilizada fora do sistema financeiro, mas sim
qual deve ser seu tratamento processual quando celebrada fora desse sistema.

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18
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