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1. Delimitação do tema.
Este artigo concentra-se na análise da alienação fiduciária de bens móveis.
Portanto, não se incluem no escopo do trabalho questionamentos referentes à alienação
fiduciária de imóveis ou de direitos, institutos regulados, respectivamente, pela Lei nº
9.514/1997 (Sistema Financeiro Imobiliário) e pelo artigo 66-A da Lei nº 4.728/1965
(Lei do Mercado de Capitais, na redação dada pela Medida Provisória nº 2.160-
25/2001).
Tem-se, ainda, um enfoque direcionado aos aspectos materiais da alienação
fiduciária, pelo que não serão analisadas questões processuais, tais como a
constitucionalidade ou conveniência da prisão civil do devedor fiduciante.
Dentro dos aspectos materiais, o que se pretende é demonstrar,
fundamentadamente, que a alienação fiduciária constitui modalidade geral de garantia,
1
Este texto deve ser citado como: PARENTONI, Leonardo Netto. Da alienação fiduciária de bem móvel
como modalidade geral de garantia. IOBC/WPRS Bulletin. São Paulo: IOB, v. 07, p. 212-220, abr. 2005.
É expressamente vedada a utilização comercial, reprodução ou transferência deste texto, por qualquer
meio, sem prévia e expressa autorização por escrito do autor.
exigível por qualquer credor. Tal objetivo se justifica porque a Jurisprudência
majoritária e parte considerável da Doutrina entendem que a alienação fiduciária
constitui modalidade especial de garantia, exigível apenas pelas sociedades que atuam
no mercado financeiro e de capitais.
Desmistificar esse dogma é, portanto, o objeto do presente artigo.
2. Introdução.
Na década de 60, o Governo Federal pretendeu estimular as instituições
financeiras a concederem crédito direto ao consumidor, para a aquisição de bens de
consumo duráveis, como parte da política nacional de desenvolvimento econômico 2.
Entretanto, para que as instituições financeiras se dispusessem a conceder
tal crédito seria necessário fornecer-lhes uma garantia eficaz em caso de
inadimplemento do consumidor. Ocorre que as garantias então existentes eram
inadequadas para essa finalidade3, por dependerem da anuência de terceiros – aval e
fiança, em razão do custo de sua constituição – hipoteca ou, simplesmente, por
desapossarem o consumidor de um bem, como é o caso do penhor.
Assim, no intuito de viabilizar o financiamento ao consumidor, sobretudo o
de baixa renda, foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro uma nova modalidade
de garantia, a alienação fiduciária 4.
2
MARTINS, Fran. Contratos e Obrigações Comerciais. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 183.
“Tendo em vista melhor amparar o crédito em vendas de bens móveis, introduziu o Governo, no direito
brasileiro, a alienação fiduciária em garantia, instituto que passou a ser usado, em larga escala,
principalmente nas vendas de aparelhos eletrodomésticos e veículos automotores.”
3
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. v.
4. p. 271-272. “O direito brasileiro tem experimentado novos instrumentos de garantia, uma vez que a
complexidade da vida moderna não se satisfaz com aqueles de cunho tradicional. O penhor e a hipoteca
revelam-se demasiado rígidos para acompanharem a velocidade crescente do tráfico jurídico. O primeiro,
exigindo a afetiva traditio (salvo algumas exceções) da coisa apenhada, não satisfaz às exigências da vida
mercantil. A segunda, limitada aos bens imóveis, navios e aeronaves, tem o seu campo de incidência
estreito demais.
(...)
Foi então que o direito moderno acordou da poeira dos séculos o negócio fiduciário, que o Direito
Romano já conhecia nas duas figuras da fiducia cum amico e da fidúcia cum creditore.”
4
WALD, Arnoldo. A Alienação Fiduciária. Jornal Síntese. n.º 55, p. 9, set. 2001. “Inspirada no direito
norte-americano, a alienação fiduciária em garantia foi introduzida em nosso direito como um instituto
excepcional destinado a permitir o crédito ao consumidor, substituindo, em grande parte, a venda com
reserva de domínio e o penhor mercantil que, por motivos de ordem fiscal e processual, já não mais
cumpriam adequadamente a sua função. Inicialmente, sofreu restrições quanto à sua utilização, por se
tratar de instituto novo em relação ao qual o legislador não podia prever todas as conseqüências. Assim,
foi considerado como o instrumento adequado para permitir que as financeiras fornecessem recursos aos
compradores de bens duráveis, especialmente automóveis e eletrodomésticos, em vez de conceder crédito
às empresas vendedoras que, de muito, ultrapassariam o valor dos seus ativos. Permitiu-se,
2
Instituída pelo artigo 66 da Lei nº 4.728/1965 (Lei do Mercado de Capitais),
posteriormente alterada pelo Decreto-lei nº 911/1969, a alienação fiduciária demonstrou
ser uma modalidade de garantia extremamente ágil, eficaz e adequada à realidade
brasileira.
Desde então, vem sendo utilizada com sucesso em diversos negócios
jurídicos.
3. Modalidades de garantia.
O adimplemento de uma obrigação pode ser acautelado por meio das
seguintes modalidades de garantia 5:
1) Pessoal ou fidejussória; e
2) Real.
3
transferida ao credor em caso de inadimplemento do devedor. Nesta categoria inserem-
se os direitos reais de garantia7, dentre os quais a alienação fiduciária.
A alienação fiduciária é mais vantajosa do que as demais modalidades de
garantia:
1) Prevalece sobre o aval e a fiança porque pode ser prestada pelo próprio
devedor, sem a necessidade do concurso de terceiros, estranhos à relação jurídica.
7
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direitos Reais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002. v. 5. p. 451-452.
“O conceito de direitos reais de garantia, tal como hoje conhecemos, passou por longa evolução. A
princípio, a garantia não se desvinculava da própria pessoa do devedor, até que depois passasse seu
patrimônio a responder pelas dívidas. Longa construção prática e doutrinária foi necessária para que a
garantia se ligasse a um bem, com eficácia de direito real, erga omnes, não vinculando estrita e
unicamente o devedor, mas a coisa. A noção de garantia pessoal é mais antiga, ocorrendo quando alguém
se responsabilizava pela dívida de outrem, utilizada com maior freqüência no Direito Romano.”
8
Código Civil:
“Art. 1.473. Podem ser objeto de hipoteca:
I – os imóveis e os acessórios dos imóveis conjuntamente com eles;
II – o domínio direito;
III – o domínio útil;
IV – as estradas de ferro;
V – os recursos naturais a que se refere o art. 1.230, independentemente do solo onde se acham;
VI – os navios;
VII – as aeronaves.”
4
6) É também favorável ao credor pois, em caso de inadimplemento, fornece-
lhe instrumento eficaz para reaver o bem: a ação de busca e apreensão conversível em
depósito9.
9
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 29. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2002. v. 3. p. 67. “O mecanismo procedimental de excussão desse novo tipo de garantia real, disciplinado
pelo Dec.-Lei nº 911/69, impõe certos condicionamentos ao credor fiduciário para o manejo da ação de
depósito.
Em primeiro lugar, não está o credor autorizado a ingressar diretamente em juízo com actio depositii,
pelo simples fato da mora ou inadimplemento do devedor fiduciante. Antes terá de recorrer à ação de
busca e apreensão e somente depois de comprovado em seu bojo o desvio do bem gravado, é que poderá
pretender a conversão em ação de depósito (Dec.-Lei nº 911, art. 4º).”
10
São quatro os elementos da propriedade: direito de usar ou gozar, fruir, dispor e reivindicar (ius utendi,
fruendi et abutendi). Usar um bem é colocá-lo a serviço de seu titular sem alterar-lhe a substância. Fruir
significa perceber os frutos – naturais ou civis – gerados pela coisa. Dispor é a faculdade de consumir o
bem, alterando-lhe a substância, de gravá-lo ou de transferir-lhe o domínio. Por fim, reivindicar é a
faculdade de reaver o bem de quem indevidamente o possua. No mesmo sentido: VENOSA, Sílvio de
Salvo. Direito Civil: Direitos Reais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002. v. 5. p. 158-159.
11
Trata-se de propriedade resolúvel sujeita a condição e não a termo, porque apesar de possível a
previsão de data para o adimplemento da última prestação, até que ocorra o efetivo pagamento este
continua sendo evento futuro e incerto, face ao risco da inadimplência. LISBOA, Roberto Senise. Manual
Elementar de Direito Civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. v. 4. p. 191. “Propriedade
resolúvel ou revogável é aquela que importa sujeição da transferência definitiva do domínio da coisa à
verificação ou não de um fato jurídico, que pode ser:
a) um evento futuro e incerto (condição);
b) um evento futuro e certo ou determinável (termo); ou
c) uma causa superveniente.
Trata-se de propriedade não definitiva, cujo advento da condição final ou do termo final pode acarretar a
perda ou a resolução da propriedade, que retornará ao patrimônio do anterior proprietário.
O proprietário resolúvel não poderá mais exercer os direitos inerentes ao domínio do bem, cuja
propriedade poderá ser reivindicada pelo beneficiário da resolução.”
5
pleno direito quando o devedor adimplir a obrigação. Exemplificando: o consumidor
que adquire um automóvel transfere a propriedade deste ao credor, no ato da compra,
como forma de garantir o pagamento parcelado do preço do veículo, mas continua
utilizando-o normalmente. Em caso de inadimplemento, o credor, por ser proprietário,
pode reaver o bem, inclusive por meio de ações reais12. Por outro lado, o consumidor
torna-se automaticamente proprietário quando quitar todas as prestações,
independentemente de manifestação do credor, pois, com o adimplemento da obrigação
principal, a garantia perde a sua finalidade.
Essa idéia geral está contida nas definições Doutrinárias:
(...)
6
“Inscrevendo-se como ‘direito real de garantia’, cuja
conceituação genérica vem estabelecida acima, pode-se definir
a alienação fiduciária como a transferência, ao credor, do
domínio e posse direta de uma coisa, independentemente de sua
tradição efetiva, em garantia do pagamento de obrigação a que
acede, resolvendo-se o direito do adquirente com a solução da
dívida garantida.”15
2) A alienação fiduciária é ora definida como contrato ora como direito real.
15
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. v.
4. p. 273.
16
Seção 7, intitulada: Da alienação fiduciária como modalidade geral de garantia.
17
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direitos Reais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002. v. 5. p. 167-
168. “O Código alemão de 1896 instituiu a transferência de propriedade fundada no registro imobiliário.
Pelo sistema alemão, há um exame prévio do título que serve de instrumento para a transferência da coisa,
perante juízes do registro imobiliário. Essa modalidade exige cadastro rigoroso e confiável dos imóveis.
Efetuado o registro nesse sistema, o ato assume caráter de negócio jurídico abstrato. Desvincula-se o
negócio da causa anterior, seja ela contrato de compra e venda, doação, permuta etc. Destarte, o conteúdo
do registro estabelece presunção absoluta de propriedade.”
18
Ob. cit. p. 167. “Para o sistema francês, a transcrição no registro imobiliário não é constitutiva de
direito real. O efeito translativo decorre do próprio contrato de compra e venda, doação, permuta etc. O
contrato é, ao mesmo tempo, obrigação e fato gerador do direito real. Transfere-se a propriedade pelo
simples consentimento.”
19
Para uma análise mais aprofundada da distinção entre direito real e direito obrigacional consulte-se:
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Execução de hipoteca. Embargos de terceiro manejados por
7
Frise-se: a transferência da propriedade de bens móveis se perfaz com a
tradição, independentemente de registro. Quem compra um televisor, uma camisa ou
um livro, por exemplo, torna-se deles proprietário a partir da tradição do bem, não
sendo necessário qualquer registro. Quem compra um imóvel, ao contrário, somente se
torna proprietário com a transcrição do contrato de compra e venda no Cartório de
Registro de Imóveis. Assim, a expressão popular segundo a qual “quem não registra não
é dono” aplica-se apenas aos imóveis.
Essa distinção parece óbvia. Entretanto, torna-se controversa quando o
objeto de estudo é a alienação fiduciária de bens móveis, pois a própria lei22 determina
que a aquisição da propriedade resolúvel do bem depende do registro do contrato. Ter-
se-ia, aqui, exceção à regra geral?
O professor Caio Mário da Silva Pereira entende que sim:
promissário comprador sem inscrição no registro imobiliário. Súmula 84 do STJ. Inaplicabilidade. Revista
de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 27, n.º 106, p. 255-272, abr./jun. 2002.
20
Código Civil:
“Art. 1.226. Os direitos reais sobre coisas móveis, quando constituídos, ou transmitidos por atos entre
vivos, só se adquirem com a tradição.”
21
Código Civil:
“Art. 1.227. Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se
adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247),
salvo os casos expressos neste Código.”
22
Lei nº 4.728/1965:
“Art. 66. (...)
§ 1º A alienação fiduciária somente se prova por escrito e seu instrumento, público ou particular, qualquer
que seja o seu valor, será obrigatoriamente arquivado, por cópia ou microfilme, no Registro de Títulos e
Documentos do domicílio do credor, sob pena de não valer contra terceiros, e conterá, além de outros
dados, os seguintes:
(...)”
Código Civil:
“Art. 1.361. (...)
§ 1º Constitui-se a propriedade fiduciária com o registro do contrato, celebrado por instrumento público
ou particular, que lhe serve de título, no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor, ou,
em se tratando de veículos, na repartição competente para o licenciamento, fazendo-se a anotação no
certificado de registro.”
8
omnes, e que poderia haver transmissão de posse pelo
constituto possessório sem a existência de cláusula expressa.”23
23
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. v.
4. p. 277.
24
GOMES, Orlando. Alienação Fiduciária em Garantia. Revista da Faculdade de Direito Cândido
Mendes. Rio de Janeiro, ano II, n. 4, p. 7-25, abr. 1977. p. 15. “(...) nada impossibilita a admissão de um
‘constitum ex lege’. Manifesta-se esse modo de tradição quando na alienação ‘é necessariamente conexo
o efeito da aquisição da posse’. Esse efeito conexo está previsto na lei quando prescreve que o adquirente
ficará com a posse indireta da coisa, o que importa admitir que o alienante fica com a posse direta.”
25
GUIMARÃES, Jackson Rocha. Aspectos da alienação fiduciária em garantia. Revista da Faculdade de
Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, ano XXI, n. 13, p. 103-122, out.
1973. p. 107. “Deve ser salientado que nesse negócio jurídico duas relações aparecem: uma de ordem
obrigacional, outra de ordem real. A obrigacional é a dívida contraída. A de ordem real é a transferência
da propriedade do bem móvel do devedor ao credor, para fins de garantia, com a esperança de voltar a ser
proprietário do mesmo, com o adimplemento da obrigação.”
Registre-se, por respeito ao Mestre, o entendimento contrário de Orlando Gomes: 25 GOMES, Orlando.
Alienação Fiduciária em Garantia. Revista da Faculdade de Direito Cândido Mendes. Rio de Janeiro, ano
II, n. 4, p. 7-25, abr. 1977. p. 16.
26
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direitos Reais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002. v. 5. p. 537.
27
PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Código Civil Anotado. Porto Alegre: Síntese, 2004. p. 957. “A
alienação fiduciária é uma forma de direito real de garantia e não uma forma de propriedade. Neste
sentido, o credor em momento algum titulariza a propriedade gravada. O que é titularizado é a garantia
real, na forma de alienação fiduciária, como dá conta a própria literalidade do art. 43 do Decreto-Lei nº
413/69. O próprio sistema veda a aquisição do bem pelo credor (art. 1.361), assim como atribui ao
instituto a normatividade dos direitos reais de garantia (art. 1.367). Ainda que seja possível interpretar-se
o instituto como uma forma de propriedade, onde o credor teria direito real na coisa própria, mediante
uma propriedade resolúvel em favor do devedor, não parece tratar-se esta da melhor interpretação, em
perspectiva necessariamente dialógica e sistemática. Sequer parece ser uma interpretação razoável.
9
concordar. Para afastá-lo, basta uma ponderação. Segundo entendimento jurisprudencial
consolidado, o bem alienado fiduciariamente não pode ser objeto de penhora em
execuções movidas contra o devedor fiduciante, justamente por não integrar o
patrimônio deste, uma vez que sua propriedade foi transferida ao credor-fiduciário 28.
(...)
Não obstante a literalidade do art. 1.363, o devedor é proprietário do bem, usando, fruindo e possuindo-o
no exercício de suas faculdades reais in re. Sua conduta não é de depositário e não há resquício de
contrato de depósito na espécie.”
28
Súmula 242 do TFR. “O bem alienado fiduciariamente não pode ser objeto de penhora nas execuções
ajuizadas contra o devedor fiduciário.”
29
COSTA, Dilvanir José da. Sistemas de Direito Civil à luz do novo Código. Rio de Janeiro: Forense,
2003. p. 430. No mesmo sentido: VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direitos Reais. 2. ed. São
Paulo: Atlas, 2002. v. 5. p. 536.
30
Lei de Introdução ao Código Civil:
“Art. 2º (...)
§ 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível
ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.”
10
Isso porque a Medida Provisória nº 2.160-25/2001 introduziu na referida lei
o artigo 66-A, que disciplina a alienação fiduciária de bens fungíveis e de direitos.
Assim, tem-se que as matérias reguladas por cada diploma legal são
distintas:
6. Jurisprudência dominante.
A Jurisprudência majoritária entende que a alienação fiduciária é
modalidade especial de garantia, exigível apenas pelas sociedades que atuam no
mercado financeiro e de capitais. Os argumentos são, basicamente, os seguintes:
31
Código Civil:
“Art. 2.043. Até que por outra forma se disciplinem, continuam em vigor as disposições de natureza
processual, administrativa ou penal, constantes de leis cujos preceitos de natureza civil hajam sido
incorporados a este Código.”
32
Além das instituições financeiras, stricto sensu, outras empresas podem praticar alienação fiduciária em
virtude de autorização legal, ainda que expressa em ato administrativo decorrente de delegação, tal como
ocorre com as administradoras de consórcios.
O tema encontra-se pacificado no Supremo Tribunal Federal desde o seguinte julgado: STF, Plenário, RE.
n.º 90.636/SP, j. 03.05.1979, Rel. Ministro Moreira Alves: “Ementa: Alienação fiduciária em garantia. A
garantia real (propriedade fiduciária) decorrente da alienação fiduciária em garantia pode ser utilizada nas
11
2) A alienação fiduciária confere ao credor fiduciário prerrogativas únicas
para a cobrança de seu crédito. Em contrapartida, restringe sobremaneira as
possibilidades de defesa do devedor fiduciante. O credor pode ajuizar ação de busca e
apreensão do bem dado em garantia, obtendo a satisfação liminar de sua pretensão. Por
outro lado, o devedor, na contestação, só poderá alegar o pagamento do débito ou o
regular cumprimento de suas obrigações. Não poderá, por exemplo, alegar vícios do
consentimento, desequilíbrio superveniente das obrigações contratuais ou mesmo
incompetência relativa do Juízo 33. Além disso, caso o bem não seja encontrado, a ação
de busca e apreensão pode ser convertida em depósito, redundando na prisão civil do
devedor34. Essa situação de desequilíbrio somente deve ser admitida em situações
excepcionais35, em razão do interesse público 36 que a justifica.
operações de consórcio, que se situam no terreno do Sistema Financeiro Nacional, e que se realizam sob
fiscalização do Poder Público, da mesma forma como ocorre com as operações celebradas pelas
financeiras em sentido estrito. Recurso Extraordinário conhecido e provido.”
No mesmo sentido: WALD, Arnoldo. A Alienação Fiduciária. Jornal Síntese. n.º 55, p. 9, set. 2001.
“Tendo sido introduzida em nosso direito pela Lei nº 4.728, de 1965, e regulamentada, quanto aos seus
aspectos processuais, pelo Decreto nº 911, de 1969, a alienação fiduciária foi reservada, inicialmente, às
operações das financeiras e posteriormente estendida, pela jurisprudência, aos consórcios.”
33
Decreto-lei nº 911/1969:
“Art. 3º O Proprietário Fiduciário ou credor, poderá requerer contra o devedor ou terceiro a busca e
apreensão do bem alienado fiduciariamente, a qual será concedida Iiminarmente, desde que comprovada a
mora ou o inadimplemento do devedor.
§ 1º Despachada a inicial e executada a liminar, o réu será citado para, em três dias, apresentar
contestação ou, se já tiver pago 40% (quarenta por cento) do preço financiado, requerer a purgação de
mora.
§ 2º Na contestação só se poderá alegar o pagamento do débito vencido ou o cumprimento das obrigações
contratuais.”
34
Constituição da República:
“Art. 5º (...)
(...)
LXVII – não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e
inescusável de obrigação alimentícia e do depositário infiel;”
Decreto-lei nº 911/1969:
“Art 4º Se o bem alienado fiduciariamente não for encontrado ou não se achar na posse do devedor, o
credor poderá intentar ação de depósito, na forma prevista no Título XII, Livro IV, do Código de
Processo Civil.”
O Supremo Tribunal Federal considera constitucional a prisão civil do depositário infiel: STF, Plenário,
HC. n.º 72.131/RJ, j. 23.11.1995, Rel. Ministro Marco Aurélio. “Ementa: ‘Habeas corpus’. Alienação
fiduciária em garantia. Prisão civil do devedor como depositário infiel. Sendo o devedor, na alienação
fiduciária em garantia, depositário necessário por força de disposição legal que não desfigura essa
caracterização, sua prisão civil, em caso de infidelidade, se enquadra na ressalva contida na parte final do
artigo 5º, LXVII, da Constituição de 1988. Nada interfere na questão do depositário infiel em matéria de
alienação fiduciária o disposto no § 7º do artigo 7º da Convenção de San José da Costa Rica. ‘Habeas
corpus’ indeferido, cassada a liminar concedida.”
No mesmo sentido: STF, 1ª T., RE. n.º 345.345/SP, j. 25.02.2003, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence.
“Ementa: Prisão civil de depositário infiel (CF, art.5º, LXVII): validade da que atinge devedor fiduciante,
12
3) Complementando o argumento anterior, entende-se que os empresários
autorizados a exigir alienação fiduciária devem se submeter à fiscalização do Poder
Público, a fim de certificar que as prerrogativas que lhe foram concedidas não estão
sendo utilizadas de forma abusiva. Assim é que os bancos e as administradoras de
consórcios, por exemplo, devem se sujeitar à fiscalização do Banco Central do Brasil.
vencido em ação de depósito, que não entregou o bem objeto de alienação fiduciária em garantia:
jurisprudência reafirmada pelo Plenário do STF, mesmo na vigência do Pacto de São José da Costa Rica
(HC 72.131, 22.11 .95, e RE 206.482, 27.5.98), à qual se rende, com ressalva, o Relator, convicto da sua
inconformidade com a Constituição.”
Recentemente, contudo, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que em caso de furto do bem depositado,
sem culpa do depositário, seria descabida a prisão civil. No caso, deve-se promover a avaliação indireta
do bem, a fim de que o valor apurado seja depositado em Juízo pelo devedor: STJ, 3ª T., HC. n.º
29.426/SP, j. 11.05.2004, Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros. In: Informativo 208 do STJ.
35
STF, 1ª T., RE. n.º 105.143/MG, j. 11.09.1987, Rel. Ministro Sydney Sanches. “Ementa: (…)
Sociedade comercial não financeira (em sentido estrito ou amplo) não pode se valer, em suas operações
de venda de bens, da garantia de alienação fiduciária, prevista em legislação específica e de aplicação
restrita a outras entidades.”
No mesmo sentido: STF, 2ª T., RE. n.º 111.219/RJ, j. 10.12.1987, Rel. Ministro Aldir Passarinho.
“Ementa: Alienação fiduciária em garantia. Firmou-se a jurisprudência do STF no sentido de que somente
as instituições financeiras e os consórcios autorizados de automóveis é que podem utilizar-se do instituto
da alienação fiduciária em garantia. Admite a doutrina que as entidades estatais ou para-estatais são
igualmente legitimadas para receber tal tipo de garantia, como resulta do art. 5º do Decreto-lei nº 911-69.
Recurso conhecido e provido.”
36
Vide seção 2 (Introdução).
13
5) Por fim, o simples fato de restringir as possibilidades de defesa do
devedor justificaria a utilização restritiva da alienação fiduciária em garantia, sobretudo
face aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa37.
37
Constituição da República:
“Art. 5º (...)
(...)
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o
contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;”
38
MARTINS, Fran. Contratos e Obrigações Comerciais. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 183.
39
Cumpre destacar que, atualmente, a alienação fiduciária encontra-se prevista em diversos diplomas
legais. À guisa de ilustração, cite-se: Lei nº 6.404/1976, art. 40, Lei nº 7.565/1986, art. 148 e Decreto-lei
nº 413/1969, art. 13. É prevista, inclusive, em norma de caráter eminentemente geral, a Lei de Registros
Públicos: Lei nº 6.015/1973, art. 129, 5º.
14
destinada a regulamentar o mercado de capitais. De todos, este é o argumento mais
frágil. O caráter geral ou abstrato é da norma jurídica, do comando legal, e não do
veículo normativo que o introduziu no ordenamento jurídico. Assim, nada impede que
uma lei dita “especial” contenha, em seu bojo, uma ou algumas normas gerais:
15
dinâmico de garantia, do que os tradicionais, e as instituições
financeiras agindo sob a fiscalização das autoridades
monetárias, entendeu o legislador de boa política ali inserir
esta modalidade de garantia, sem exclusividade entretanto.”40
Ademais, a Lei nº 4.728/1965 não diz que a alienação fiduciária deve estar
restrita ao sistema financeiro. Quando o legislador pretendeu restringir determinada
disposição da lei às instituições financeiras, o fez expressamente, como no caso dos
artigos 26, III e 28 caput, que se referem, respectivamente, às “instituições financeiras
especialmente autorizadas pelo Banco Central” e às “instituições financeiras que
satisfizerem as condições gerais fixadas pelo Banco Central” 41.
Em relação à alienação fiduciária, entretanto, a lei não faz restrição,
utilizando termos genéricos como “credor” e “devedor” ao invés de “mutuante” e
“mutuário”. Assim, seguindo os princípios básicos de hermenêutica, o intérprete não
deve distinguir onde o legislador não o fez (ubi lex non distinguit nec nos distinguere
debemus).
Os demais argumentos expostos na seção anterior não questionam a
natureza jurídica da alienação fiduciária. Limitam-se a afirmar que o tratamento
processual dado ao instituto deve ser utilizado restritivamente. Ora, uma coisa não tem
nada a ver com a outra. A natureza jurídica de um instituto não se confunde com seu
tratamento processual.
Os partidários da posição tradicional se apóiam em argumentos muito mais
sociológicos e econômicos do que jurídicos.
O que querem, de fato, é manter um tratamento processual privilegiado
para as instituições financeiras. Tal tratamento, previsto no Decreto-lei nº 911/1969,
desequilibra a relação processual em favor dessas instituições. Sua aplicação ao
mercado de capitais “justifica-se” por um interesse social maior, a manutenção do
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PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
v. 4. p. 275-276.
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Lei nº 4.728/1965:
“Art. 26. As sociedades por ações poderão emitir debêntures ou obrigações ao portador ou nominativas
endossáveis, com cláusula de correção monetária, desde que observadas as seguintes condições:
(...)
III – subscrição por instituições financeiras especialmente autorizadas pelo Banco Central, ou a
colocação no mercado de capitais com a intermediação dessas instituições.”
“Art. 28. As instituições financeiras que satisfizerem as condições gerais fixadas pelo Banco Central,
para esses tipos de operações, poderão assegurar a correção monetária a depósitos a prazo fixo não
inferior a 1 (um) ano e não movimentáveis durante todo o seu prazo.”
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financiamento ao consumidor. Entretanto, não se admite aplicá-lo fora do sistema
financeiro. Isso não significa que fora dele não possa existir alienação fiduciária,
apenas que seu tratamento processual não deve ser o do Decreto-lei nº 911/1969.
O que os autores não dizem é que é possível a utilização da alienação
fiduciária como modalidade geral de garantia, desde que se estabeleça para ela um
tratamento processual distinto do previsto no Decreto-lei nº 911/1969.
As palavras do Ministro Moreira Alves, elaborador das disposições do
Código Civil que tratam da propriedade fiduciária, evidenciam bem esse aspecto:
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STF, Plenário, RE. n.º 90.636/SP, j. 03.05.1979, Rel. Ministro Moreira Alves.
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8. Conclusão.
Desde a sua introdução em nosso ordenamento jurídico, nos idos de 1965, a
alienação fiduciária permaneceu restrita ao sistema financeiro, em decorrência do
posicionamento doutrinário e jurisprudencial dominantes.
O que este artigo pretendeu demonstrar é que a posição dominante não se
sustenta do ponto de vista técnico jurídico, sendo, na realidade, uma opção política.
A evolução do Direito pátrio demonstrou o equívoco do posicionamento
tradicional, não mais permitindo sustentá-lo sequer sob o aspecto da política legislativa,
uma vez que o novo Código Civil tratou da propriedade fiduciária, conferindo-lhe foros
de generalidade.
De fato, a natureza jurídica do instituto não é incompatível com a sua
utilização pelos particulares. O que se questiona é o tratamento processual traçado pelo
Decreto-lei nº 911/1969.
Posta em termos atuais, portanto, a questão não é mais a de saber se a
alienação fiduciária em garantia pode ser utilizada fora do sistema financeiro, mas sim
qual deve ser seu tratamento processual quando celebrada fora desse sistema.
9. Bibliografia.
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2003.
COSTA, Dilvanir José da. Sistemas de Direito Civil à luz do novo Código. Rio de
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MARTINS, Fran. Contratos e Obrigações Comerciais. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2000.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 15. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2001. v. 4.
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