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Disponibilização: Soryu
Tradução: Susana
Revisão Inicial: Gi Vagliengo
Revisão Final: Thaise Amorim
Leitura e Formatação Final: Marcia Campos

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Kathryn Smith

Kathryn Smith é uma autora relativamente nova no mercado


anglo-saxão, publicou sua primeira novela, Elusive Passion, em 2001,
apesar disso tem uma extensa bibliografia (em que abrange o gênero
histórico e, recentemente, o paranormal), suas novelas ganharam algum dos
prêmios mais prestigiados do gênero (vários de seus heróis receberam o
K.I.S.S.). Em 2007, graças ao Grupo Planeta, da mão de Essência e de La
Romântica Booket, podemos conhecer mais a fundo seu trabalho.
Começou a escrever quando ainda era uma menina e dedicou-se
de corpo e alma a inventar novas histórias. Descobriu as novelas românticas
quando estudava jornalismo, e decidiu que queria escrever como Lisa
Kleypas. Finalmente conseguiu que publicassem suas novelas românticas e
entregou-se a essa profissão.

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:

Para Lynda

Por levar sua irmãzinha quando saía para nadar com seus
amigos, por deixar que me pusesse no meio quando você e David se
sentavam no sofá, por permitir que eu me esparramasse no sofá, e porque
sempre me fez sentir como alguém especial. Mesmo não sendo tão especial
quanto você.

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O Visconde Blaine Underwood procura seu velho
amigo o Conde Gabriel Warren em busca de ajuda. Blaine
assegura que seu filho fora enganado em um clube de
cavalheiros dirigido por uma mulher, pois é de conhecimento
de todos que o Conde está tentando acabar com as casas de
jogos em toda a Inglaterra. O que ele jamais suspeitou foi
que a proprietária do clube não era outra que sua ex-noiva
Lilith Mallory, que fugiu dele há dez anos atrás e sumiu
como por passe de magia.
Gabriel e Lilith se enfrentam depois de todos esses
anos no clube dela. Lilith deseja odiar o homem que a
destruiu diante da sociedade, obrigando-a a fugir do
escândalo. Gabriel deseja odiar à mulher que o abandonou e
desprezou seu amor sem olhar para trás. Entretanto, os
sentimentos são profundos, apesar do rancor e desconfiança,
seria possível amar o odiado inimigo?

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Londres, primavera de 1818.

Dez anos.

Passara-se quase uma década desde que o deixou. Cento e


vinte meses. Em todos esses anos não deixou de pensar nela, por
exemplo, durante o tempo que passou na Nova Escócia. Em um lugar
estranho, com tantas coisas para ver e em que se concentrar, e ainda
assim, sentia falta dela. Mas agora que voltara a Londres, no cenário
familiar e tão próximo a data de sua traição, as lembranças dominavam
sua mente. Passaram-se dez anos desde que perdeu a mulher que
amava, assim como o coração, que ela levou consigo sem dar-se conta.

Ah, sim. Também era o aniversário da morte de seu pai, mas


isso já não lhe causava tanta dor quanto antes. A perda da mulher
amada sempre lhe doera muito mais, pois a deixou partir para limpar o
desastre que seu pai deixara atrás de si.

Em pé diante de uma das muitas janelas em seu escritório,


Gabriel Warren, conde de Angelwood, apoiou-se no lustroso batente de
carvalho da janela e inclinou a fronte no vidro. Os olhos fixos na
superfície polida refletiam não só a cor cinzenta do dia, mas também a
fria desolação de sua alma.

Estava sozinho. No Hotel Halifax, muitos desejavam entretê-


lo com histórias enquanto tomavam uma caneca de cerveja. Sempre
havia um baile ou reuniões sociais onde ir, sempre havia alguém para
recebê-lo em sua casa e abarrotá-lo com comida... Claro que no Halifax

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ele não era um conde, era simplesmente, o sócio de Garnet: um
negociante de certa importância.

Agora que havia retornado, encontrava-se outra vez em seu


próprio ambiente. Não se importara em voltar ao que lhe era familiar,
porque, em certas ocasiões, ser um "homem do mundo" era duro e
solitário, sentia a falta dos amigos. Julian ainda não voltara do
continente, e Brave, que se tornara pai recentemente, preferia
permanecer bem longe de Londres com a esposa e filho. Gabriel perdera
o nascimento de seu sobrinho de coração, e isso também o incomodava.

Seguindo o velho costume, olhou à rua com atenção. Ainda


tinha esperança de que aquele dia seria diferente, e de que ela surgiria
de repente, em frente a sua porta para lhe dizer onde se escondeu
durante aquelas oitenta e sete mil e seiscentas horas, por mais tolo que
isso parecesse, ainda desejava saber de seu paradeiro. Precisava saber.
Com um gemido de desgosto, afastou-se da janela. Não fazia nem uma
semana que estava em Londres e já caía nos velhos hábitos.

— Patético!

Precisava encontrar algo para fazer, algo que acabasse com


essa obsessão, talvez fosse o momento de prosseguir em sua luta contra
o jogo na Inglaterra.

Alguém bateu na porta. Zangado consigo mesmo, Gabriel


soltou um seco e desconsiderado. — O que quer?

A porta se abriu e surgiu Robinson, o mordomo. Por seu


aspecto físico mais parecia um estivador que um criado de tão alto
posto, com o pescoço grosso e ombros maciços, o sujeito tinha o par de
olhos azuis mais penetrantes que Gabriel já tinha visto, além de um
gênio mordaz. Sua família servia aos Condes de Angelwood a gerações, e

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era o único criado que o tratava mais como seu igual do que como um
superior. Gabriel acreditava que por terem crescido juntos, o homem
tomara tanta liberdade, no entanto, aquilo não o incomodava.

— Lorde Underwood chegou senhor. Diz que é um assunto de


grande importância.

Robinson usou um tom brusco e o olhou diretamente nos


olhos. Seu olhar insinuando que não acreditava em uma só palavra do
nobre.

Blaine Foster, visconde de Underwood, era amigo de Gabriel


há muitos anos, e também foi de Phillip, seu pai. Foi ele quem o ajudou
a recomeçar quando seu pai morreu, uma tarefa nada invejável. Gabriel
suspirou e esfregou a nuca com a mão, os músculos estavam tensos,
tinha dor de cabeça e nem ânimo para ver ninguém, mas Blaine não
teria dito a Robinson que era importante se assim não fosse.

— Diga-lhe para esperar um minuto. - Gabriel estremeceu,


seus dedos tinham encontrado o lugar mais dolorido na base do crânio.
— E o traga aqui.

Robinson assentiu com um seco: — Como queira. - E com


uma inclinação mais direta que suas palavras, saiu da sala e fechou a
porta com um leve estalo.

Gabriel deixou cair o braço e cruzou o tapete vermelho e


dourado até chegar à maciça mesa de mogno, onde várias garrafas de
cristal, cheias e tentadoras, prometiam um pouco de alívio. Pegou uma
pelo gargalo, grosso e frio, tirou a tampa e verteu uma dose generosa de
uísque no copo. Tinha que se acalmar antes que Blaine entrasse, e isso
implicava em tirá-la dos pensamentos, ou ao menos, afastá-la por
alguns momentos. Nunca conseguira tal proeza por muito tempo, e há

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muito Gabriel já aceitara o fato de que, provavelmente, nunca a
esqueceria. Esvaziou o copo de um só gole, que lhe queimou a garganta
e as vísceras. Há anos descobrira que embriagar-se não o livrava de
pensar nela, mas ao menos levaria o sabor amargo que sua lembrança
lhe deixava na boca.

Há dez anos, Lilith Mallory saíra de sua vida sem sequer


uma despedida. Pouco depois do pai de Gabriel resolver suas
preocupações mortais, e apenas dias depois de Gabriel e ela
celebrassem seu compromisso fazendo amor pela primeira vez, ela saiu
do país. O pai não quis lhe dizer para onde foi, mas, uma vez
recuperado do choque provocado com a morte do próprio pai, isso não
impediu ao conde de vinte e um anos, sair pelo mundo a procurá-la.
Nunca a encontrou, e ela tampouco tentou entrar em contato com ele.
Simplesmente, parecia ter sumido da face da terra.

E, como um idiota apaixonado, Gabriel nunca a esqueceu.


Fora seu primeiro amor, tanto emocional quanto físico, e o coração não
se recuperava com facilidade de uma perda e traição assim, se é que
algum dia viria a se recuperar. Estava obcecado e sabia, compreendia e,
às vezes, até encontrava consolo nisso. A lembrança de Lilith e seu
abandono eram a única constante em sua vida. E embora o
entristecesse pensar nela, ainda que seu coração se apertasse a cada
vez que encontrava uma mulher de cabelos vermelhos como o fogo.

— Está doente, meu amigo?

— Blaine!

Um amplo sorriso cruzou o rosto de Gabriel quando seu


velho amigo entrou no escritório. Em três pernadas atravessou o
cômodo e o saudou com uma cordial palmada nos ombros, ao mesmo
tempo em que o conduzia ao centro da sala. Sempre respeitara Blaine, o

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único amigo de seu pai que lhe dera atenção. Ao sentar-se em uma das
poltronas confortáveis em frente à escrivaninha de madeira maciça,
Blaine comentou com carinho:

— Que alegria me dá ao vê-lo novamente em casa, Gabe.

Gabriel sorriu.

— A alegria é minha por ter voltado. Posso lhe oferecer uma


bebida?

Instantes depois, quando os copos estavam cheios, Gabriel


se apoiou na beira da escrivaninha e observou com atenção o amigo.
Sem ser tão velho quanto seu pai, embora muito mais velho que ele
mesmo, Blaine fora íntimo dos dois, e não tinha motivos para se sentir
desconfortável em sua presença, entretanto havia nele certa tensão,
certa rigidez na expressão e nos movimentos. Seu cabelo, um ano atrás
tão escuro quanto o de Gabe, agora estava grisalho, e seus olhos verdes
e vivos, pareciam cansados.

— Do que se trata? - Gabriel manteve o tom extrovertido,


ignorando a própria inquietação.

Blaine soltou uma risada e tomou um bom gole de uísque.

— Sinto levar a você meus míseros problemas, mas não


havia mais com quem falar, em quem poderia confiar.

A nobreza e a alta burguesia apreciava e respeitava Blaine.


O fato de que o considerasse o único a quem podia recorrer encheu de
alegria Gabriel, mas também o assustou.

— Aconteceu algo a Vitória?

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Blaine fez um gesto negativo.

— Não, minha mulher está bem. Trata-se de Frederick.

Frederick era seu filho primogênito e seu herdeiro, que devia


ter vinte e poucos anos, Gabriel não o via há muito tempo. Este bebeu
outro gole e perguntou:

— O que há com Frederick?

Blaine olhou seu copo e franziu o cenho.

— Meteu-se em confusões.

— Que tipo de confusão?

— Sempre está por aí com amigos: bebendo, correndo a


cavalo ou perseguindo mulheres.

Gabriel soltou um sorriso.

— A mim não parece tão impróprio à idade dele.

Mas então Blaine levantou a cabeça, e seu olhar preocupado


surpreendeu o amigo.

— Andou jogando.

Aquela frase simples gelou-lhe o sangue nas veias. Há anos


se entregara a campanha contra o jogo, que por desgraça, parecia ser o
passatempo preferido da maior parte dos mais ricos, era impossível
conseguir que o Parlamento aprovasse uma lei que tornasse o jogo

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ilegal. Sabia por experiência própria o quão perigoso podia ser o jogo,
em especial quando alguém se tornava viciado, como seu pai. Era
lamentável que Frederick se perdesse desta maneira.

— Conte tudo. - Queria saber sem demora.

Blaine bebeu outro gole de uísque e se recostou na poltrona.

— Só posso repetir o que ele me contou, e não é que duvide


nem por instante da honra de meu filho...

Gabriel não se incomodou em lembra-lo que um filho


mentiria descaradamente para evitar a cólera do pai, mas esse não era
o momento tratando-se de um assunto tão sério. Em uma partida
poderia se perder verdadeiras fortunas, mulheres vendiam sua virtude
por notas promissórias, e frequentemente famílias eram destruídas
somente porque um estúpido apostava tudo em uma carta ou em um
rolar de dados.

— Há quinze dias Frederick saiu com amigos, jantaram num


clube de King Street. Logo estavam jogando cartas, e um dos idiotas
propôs que provassem a sorte nos reservados.

Gabriel se ergueu. Não lhe era estranho que clubes de


cavalheiros dispusessem de mesas para baralho e outros jogos de azar,
mas os jogos com dados e roleta eram proibidos, embora houvesse salas
reservadas como a que mencionou Blaine. E eram nesses reservados
onde os cavalheiros jogavam pesado. Procurando manter um tom
indiferente, perguntou:

— E Frederick entrou?

Blaine fez um gesto negativo.

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— Não. - Voltou a soltar uma risada amarga. Embora não
teria se metido em encrencas se não tivesse seguido os amigos.

Gabriel acabou o uísque, pos o copo na mesa e cruzou os


braços.

— Se quer minha ajuda, não me esconda nada, Blaine.

Seu tom não exprimia censura nem aspereza, mas um tom


amável e sincero. Seu amigo suspirou e assentiu.

— Agradeço sua amizade, Gabe. O caso é que Frederick


acabou em uma partida de faraó. Creio que nunca tenha jogado isso.

Gabriel fez um gesto negativo, só tinha jogado uma vez na


vida. Bem antes de seu pai morrer, fora com amigos: Brave e Julian a
uma partida de cartas. Felizmente, nenhum gostou, e partiram logo
depois de perder algumas libras. Contudo, disse a Blaine que conhecia
as regras, o faraó era um jogo simples: o jogador apostava contra a
casa, e se acertasse...

Blaine prosseguiu.

— Frederick disse que estava com muita sorte.

Gabriel não duvidou. Quem acabava tendo mais problemas


eram os que acreditaram ter uma sorte duradoura.

— E então a sorte virou certo?

Blaine assentiu, olhando de novo o copo.

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— Acreditava que ganharia, subiu a aposta, mais do que
podia permitir-se.

O sorriso de Gabriel mostrava amargura e simpatia pelo


amigo.

— Mas perdeu.

— Sim.

Gabriel suspirou. Sabia o que aconteceria a seguir.

— E você precisa pagar a dívida.

Blaine levantou a cabeça para enfrentar o olhar de seu


interlocutor, seus olhos mostravam a indignação de um pai
preocupado.

— Ele afirma que o crupier trapaceou.

Gabriel franziu o cenho. Não era uma acusação leviana.

— Ele tem certeza?

— Eu confio em meu filho, Gabriel. - A expressão de Blaine


endureceu.

Gabriel estendeu as mãos e fez um gesto negativo.

— Não digo que Frederick seja um mentiroso, mas se trata


de uma acusação grave. Sabe como o crupier o enganou?

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As bochechas de seu interlocutor se avermelharam um
pouco.

— Não exatamente, mas diz que havia algo estranho em sua


conduta. - Inclinou-se para frente. — Gabe, poderia me ajudar?

Gabriel não titubeou, depois de tudo o que Blaine fizera por


ele depois da morte de seu pai, faria quase qualquer coisa que lhe
pedisse.

— Certamente. Do que precisa?

— Quero ter certeza de que isso não aconteça a mais


ninguém. Quero que me ajude a provar que o crupier e o clube
trapacearam. Quero fechar aquele antro de perdição.

Algo na intensidade do olhar do amigo, fez Gabriel sentir-se


desconfortável. Ao lhe perguntar como, Blaine deixou o copo sobre a
escrivaninha.

— Gostaria que fosse a esse clube...

— Que vá ao clube! - Gabriel se levantou de repente e cruzou


meia a sala a pernadas. — Está louco? Não posso! Tomar-me-iam por
um hipócrita.

Blaine ficou em pé e se aproximou dele com uma expressão


de súplica que teria comovido qualquer amigo, por mais desumano que
fosse. Mas nisso não poderia ajudá-lo: aquilo ia contra seus princípios.

— Gabe, por favor. Alguém tem que acabar com eles, e


prometi a Frederick que eu não me meteria no assunto.

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— É um bom pai, Blaine. - Gabriel comentou sem muita
convicção. Estava a ponto de cair na gargalhada com o absurdo do que
lhe acabara de pedir.

— Então, irá? - A expressão do amigo estava iluminada de


esperança. — Vai nos ajudar?

Gabriel suspirou. Pelo amor de Deus! Seu pai fora um


patético jogador compulsivo de quem se contavam dezenas de histórias,
todo mundo estava a par de sua reputação. E Blaine não se dava conta
do que lhe pedia? Devia saber sua opinião sobre esse assunto, vira as
consequências da jogatina e não queria que acontecesse o mesmo ao
próprio filho, mas aquilo... Gabriel começou a fraquejar. Olhou o amigo
nos olhos.

— O que dirão quando virem o Conde Angelical em um clube


de jogos?

"O Conde Angelical" era como os janotas e dandis o


chamavam pelas suas costas. Pretendiam insultá-lo certamente, como
se Gabriel renegasse o próprio sangue por negar-se a jogar, ir a bordéis
e beber até perder os sentidos. A eles, parecia ridículo que não quisesse
esbanjar sua fortuna e juventude em diversões sórdidas.

— Pense no bem que fará a sua causa ir à Câmara dos


Lordes com provas de que um clube os está roubando e os fazendo de
tolos...

Era a única coisa que poderia dizer para convencê-lo a fazer


tal loucura, e Blaine sabia. A nobreza protegia energicamente seus
vícios de classe, até que algum se voltava contra eles. Se Gabriel
provasse que um clube os extorquia, semearia a semente da dúvida.
Talvez começassem a se perguntar se não estariam extorquindo-os

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também... Ou, quando menos, poderia convencê-los de que o jogo era
um risco social e que teriam de acabar com quem o promovia. Embora
também pudessem rir na sua cara e expulsá-lo da Câmara... Mas se
conseguisse provar, se conseguisse apoio suficiente, talvez pudesse
cumprir a promessa feita no leito de morte de seu pai.

Enquanto imaginava a satisfação que auferisse com aquilo,


Gabriel dirigiu a Blaine um sorriso frio e calculador.

— Como se chama esse clube?

Então se ouviu o suspiro de alívio de seu interlocutor, que


segurou-lhe a mão e a estreitou com efusão.

— Mallory's. Chama-se Mallory's.

Gabriel ficou gelado. O coração se apertou entre as costelas.

— Mallory's?

Blaine assentiu e sua testa se franziu ligeiramente.

— Sim. Conhece?

Gabriel sacudiu a cabeça, não como resposta, mas para


espantar a saudade que lhe tinha despertado ao ouvir aquele nome.

— Não.

— Não, claro. - Acrescentou Blaine com uma risadinha. - E


como poderia conhecer? Embora estivesse na cidade quando abriu, faz
um ano, creio que jamais poria os pés em um lugar tão escandaloso se
não fosse levado pelas circunstâncias.

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Como assim “escandaloso”? Ao que sabia até nos
verdadeiros baluartes da sociedade, havia clubes como o White's e
Brooke's que se convidava ao jogo. Diabos! O White's tinha inclusive um
famoso livro de apostas. Segundo o que Blaine tinha contado, o
Mallory's não seria nada além de outro clube para cavalheiros. Ou não?
A questão continuou a atormentá-lo durante o resto da visita, não lhe
saía da cabeça enquanto engendravam a investigação, quando se
assegurou de que Frederick não ficaria a par dos planos, quando Blaine
lhe agradecia efusivamente, já não contendo mais a curiosidade
perguntou ao amigo quando este se dispunha a partir.

— E o que tem de escandaloso nesse lugar?

Blaine olhou ao redor, como se o que estava a ponto de dizer


fosse tão terrível que não queria ninguém ouvindo.

— Uma mulher é a proprietária.

Uma mulher? Uma mulher que se chamava Mallory?...


Gabriel sentiu o sangue zumbir em seus ouvidos enquanto um frio
cortante lhe aguilhoava as veias. Sentiu-se vacilar. Era apenas uma
coincidência. Nada mais. Não podia ser ela. A Lilith que ele conheceu
nunca faria nada tão absurdo como ter um clube de jogatina.

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— Que absurdo! - Pensou com ironia.

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Lilith Mallory baixou o jornal até pousá-lo no colo e, rindo,
argumentou divertida:

— E ainda tem gente que paga para ler isto? Não posso
acreditar.

Sua acompanhante, Mary, sentada junto a uma das janelas


para aproveitar o que restava da luz do dia, levantou o olhar de sua
costura. Vestida com seus tons habituais de bege e creme, combinado
com a decoração da sala. Mesmo Lilith sabendo que não fora
premeditado, porque Mary, a mais velha das duas, nunca usava nada
que não fosse bege ou creme, de fato, seu lema parecia ser: "Quanto
menos cor, melhor".

— O que está lendo? - Perguntou Mary enquanto deslizava a


agulha na anágua que cerzia. — A coluna do reverendo Sweet?

— Isso mesmo. - Lilith respondeu com certa secura.

Mary tinha uma boca grande, mas quando seus lábios se


curvavam em um sorriso, suas feições esmaecidas adquiriram um ar
doce e quase delicado.

— Ah sim, e tem gente que paga muito dinheiro para lê-lo.

Lilith arregalou os olhos incrédula, abismada balançou a


cabeça e uma de suas presilhas repuxou-lhe o couro cabeludo. Esboçou
um gesto de dor, malditas porcarias: onze anos usando o cabelo
recolhido em um coque austero e ainda não se acostumou aos puxões e
espetadas.

— Se têm pessoas que estão dispostas a comprar tolices


como esta, parece que investimos no negócio errado, minha amiga. -

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Com um estalo nas folhas para estirá-las, voltou a endireitar o jornal e
continuou a ler.

— Dizem que um ninguém só vira alguém quando o


reverendo o esmaga em um dos seus artigos. - Comentou Mary cheia de
admiração.
— Ouvi dizer que algumas damas começaram a usar sua coluna
como guia para preparar as listas de convidados desta temporada.

Que uma dama fizesse algo tão pretensioso não surpreendia


a Lilith, até mesmo sua própria mãe teria cometido essa estupidez. E
quando seus olhos pousaram em um parágrafo particularmente risível
da coluna "Doces prêmios", produto da mente irascível do bom
reverendo, ela replicou:

— Então se prepare, Mary. Parece que os convites começarão


a chegar aos montões.

— Como assim?

Enquanto abaixava o jornal, Mary disparou sobre o tapete


espesso e, de um pulo já se sentava no sofá junto a ela.

— Ele mencionou o Mallory's?

Lilith lançou a amiga um olhar malicioso, para uma mulher


que afirmava aos quatro ventos que estava farta do sexo oposto, ela
parecia sentir grande interesse no reverendo Geoffrey Sweet.

— Não exatamente. Escreveu sobre mim.

Com uma risada que só podia definir como sendo de júbilo,


Mary lhe arrebatou o jornal das mãos.

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— Deixe-me ver isso!

Lilith se limitou a sorrir diante de tanto entusiasmo. Houve


um tempo em que pensou que Mary perdera a alegria de viver.

Na primeira vez em que a viu, seu marido a levara arrastada


até a rua e fizera uma espécie de ritual bárbaro de divórcio. Tentara
leiloá-la pelo melhor preço, porque já não lhe servia: não conseguira lhe
dar um filho, e quem a quisesse teria de lhe dar um preço justo. Pelo
visto, leiloar uma esposa, em plena rua, não parecia ser novidade para
as classes baixas, cuja ideia de casamento não coincidia com a que
tinha a aristocracia, e tampouco, com as da Igreja, o mesmo se passava
com os divórcios.

Indignada, e consciente além de como se sentia uma pessoa


ao ver-se tão desprezada quanto uma mala velha, Lilith pagou o preço.
Seu criado, Latimer, fez-se passar pelo futuro marido. Fora uma das
melhores coisas que fizera na vida, não só comprou a liberdade daquela
mulher, mas também encontrou uma grande amiga, algo que lhe fez
falta por muito tempo.

Entre elas só havia um segredo: o sobrenome verdadeiro de


Mary. Isto ela nunca revelou, disse apenas que se chamava Mary Smith
se por acaso seu marido decidisse aparecer, ninguém procuraria por
Mary Smith, devia haver milhares. A Lilith, que levava boa parte dos
últimos dez anos esperando que alguém a encontrasse, não entendia
aquele desejo de anonimato.

Nada mau: conseguira passar seis horas sem pensar em


Gabriel Warren.

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— Aqui está! Encontrei! - Os olhos castanhos aveludados de
Mary se arregalaram de alegria. — Ouça.

Lilith já tinha lido boa parte do que o senhor Sweet tinha a


dizer dela, mas se isso fazia Mary feliz não se aborreceria em ouvir
novamente. Possivelmente serviria para manter longe por mais alguns
minutos as lembranças dolorosas de Gabriel e sua traição...

Mary começou a ler dando a voz um tom de severidade


zombadora, como se fosse um pregador diante de seu rebanho:

— "Um dos males mais inquietantes e perigosos que invadem


nossa sociedade é o jogo. Mas se o homem que conduz seu próximo
destino caminha por este caminho dissoluto, mais ainda inquietante é
saber que as portas do Inferno são guardadas por alguém cujo sexo exige
ser a companheira do homem, não seu Judas. Por isso os aviso com
seriedade, queridos leitores, que resistam a atração de um certo clube
pertencente a certa mulher de cabelos flamejantes, cujo mesmo nome
revela sua verdadeira natureza." O que quer dizer com que seu nome
revela sua verdadeira natureza?

Lilith arqueou uma sobrancelha. Que Sweet mencionasse a


origem de seu nome indicava que conhecia outras culturas, pois na
mitologia Babilônica "Lilith" era um demônio feminino, sem mencionar o
Antigo Testamento judeu, que se referia a ela como a suposta Eva que
tentou Adão até ser expulsa do Paraíso. Nem sua mãe, que gostava
tanto deste nome, era consciente da carga simbólica que depositou
sobre os ombros de sua única filha. Se soubesse, teria sido batizada
com um nome mais doce e muito mais inglês.

— Em algumas culturas Lilith é o nome da primeira mulher


do Paraíso. - Respondeu. — Alguns historiadores afirmam que ela

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antecedeu Eva. Foi a primeira esposa de Adão, e que a expulsaram do
Paraíso por negar-se a deitar junto de seu marido.

Mary abriu mais os olhos. Com uma risadinha, Lilith


prosseguiu:

— Alguns a reverenciavam como uma deusa e outros a


chamam de demônio, certamente o reverendo me encaixou nesta última
categoria. Que mais diz?

— "É meu dever, como defensor de Deus, avisá-los de que,


uma vez cercados por tanta sordidez e libertinagem, o antro chamado L.
M. Parece tão tentadora e saborosa quanto o fruto que ofereceu a Adão.”

— Parece que o reverendo tem um interesse anormal por


meu “antro”. - Comentou Lilith levantando-se do sofá. — Sinceramente,
poderia ter me descrito com mais lascívia? "Tentadora e saborosa..." Por
Deus!

Mary sorriu, e as rugas que rodeavam seus olhos se


afundaram.

— Maravilhoso, graças a essa coluna, esta noite encheremos


os salões.

Com as mãos nos quadris, Lilith voltou a atenção ao som do


fru-fru da seda verde escuro de suas saias. Uma ideia tomava forma,
um pensamento picante e travesso, desenhou em seus lábios um
sorriso de satisfação e prazer.

— Mary, quero que mande uma carta de agradecimento ao


bom reverendo.

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Sua amiga a olhou boquiaberta.

— Não fala a sério!

Sorridente, Lilith cruzou rebolando sobre o tapete até a


grande escrivaninha de carvalho. Destrancou uma das gavetas
superiores e vasculhou dentro, retirou fichas de jogo no valor de vinte
libras.

— Coloque isto junto à carta. Diga-lhe o quanto agradeço a


notoriedade que sua coluna proporcionou ao Mallory's. Diga-lhe... -
Estacou. Qual seria o melhor meio para deixar nervoso aquele clérigo
pretensioso e arrogante? — Diga-lhe que se algum dia desejar cair em
tentação, minhas portas estão abertas.

Soltando uma risada maliciosa, Mary jogou o jornal sobre a


almofada que tinha ao lado e se levantou.

— Lilith, você é uma desavergonhada!

Não pretendia insultar, mas mesmo assim a palavra


queimou-lhe um pouco. Com um sorriso tenso, Lilith encolheu os
ombros.

— Minha cara, preciso manter minha reputação.

Uma reputação tão escandalosa como a de sua antecessora,


e que não fizera nada além de entregar-se ao homem, não, ao rapaz que
amava. Dez anos antes Gabriel Warren lhe tirou muito mais que a
honra: tirou-lhe o direito de mostrar seu rosto na alta sociedade sem
levantar falatórios, tirou-lhe todos os bailes, convites e festas que uma
jovem de sua idade e classe social tinha direitos, tirou-lhe a proteção de

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sua família e nome, sobretudo, arrancou-lhe o coração, e também o
orgulho.

Mas de certo modo, também lhe fizera um favor. Conviver


com sua tia Imogen a tinha brindado com muito mais aventuras do que
teria proporcionado com uma vida passada entre os pais. Tivera mais
liberdade e independência que qualquer uma de suas amizades que
ficaram na Inglaterra, conheceu pessoas interessantes e fez novos
amigos. Entretanto, durante todo esse tempo, só desejara que Gabriel a
encontrasse. Mas ele sequer tentara.

— Tenho que ir trabalhar. - Afirmou se afastando do


passado e entrando no presente. — Tenho que fiscalizar as coisas antes
de abrirmos. Traga-me a carta quando tiver terminado de escrevê-la,
sim! Quero lê-la antes de mandarmos ao reverendo Sweet.

Mary pareceu surpresa.

— Mas fala a sério sobre mandar a carta?

Desta vez a voz de Lilith soou mais natural.

— Minha querida Mary, alguma vez já me viu não falar a


sério?

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No piso abaixo, o clube já fervia em atividade quando Lilith
surgiu. Segundo seu costume, parou um instante no corredor que
separava o salão principal da entrada de sua ala particular, mirou-se no
grande espelho dourado, dando uma olhada em sua aparência. Como
sempre, Luisa, sua criada de quarto, fizera maravilhas: os cabelos

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rebeldes estavam recolhidos no alto da cabeça em um penteado
sofisticado e impecável. Um toque de pó, apenas perceptível, realçava o
nariz delicado e os traços faciais, enquanto que um sutil toque de
carmim dava um brilho natural as maçãs do rosto e lábios. Usava
brincos de topázio que lhe roçavam o rosto ao mover a cabeça, e no
pescoço um colar combinando.

Satisfeita, Lilith alisou as saias do vestido de seda âmbar,


não poderia estar com melhor aspecto. Nenhuma dama da sociedade
encontraria uma falha nela, e naquela noite haveria mais de uma no
clube. Sempre havia, porque o Mallory's era o único clube de Londres
aberto tanto às senhoras quanto aos cavalheiros, com reservados para
jogar, jantar ou descansar, além de outras salas onde, se o desejassem,
desfrutariam tanto a companhia de homens e mulheres.

A princípio Lilith hesitou em admitir senhoras, temendo que


se tornassem mais um estorvo do que chamariz para os clientes.
Estivera enganada. As damas da nobreza e burguesia se aborreciam
com seus maridos ainda mais do que eles se aborreciam com elas, e iam
em massa ao Mallory's para jogar, conversar e flertar com cavalheiros
que Lilith sabia não serem seus maridos. De fato, atender ambos os
sexos abriu um mundo de possibilidades, através das mulheres lhe
chegavam as fofocas mais quentes da cidade: quem se aventurava com
quem, ou quem estava a beira do ostracismo social, enquanto que
através dos homens descobria quem estava a ponto de perder uma
fortuna ou com quem enganava sua esposa.

Não teria planejado melhor. Os que frequentavam seu clube


tinham uma péssima opinião dela, mas pagavam para estar ali,
comendo, bebendo ou perdendo vultuosas quantias nas mesas de jogo.
E jamais saberiam que ainda podiam pagar um preço mais alto, pois
Lilith sabia de coisas que a maioria deles desejava manter em segredo.
E, se fosse preciso, usaria tais informação em seu benefício.

29
Afinal, ninguém lhe tinha estendido a mão há dez anos
atrás.

Percorreu o corredor a passo rápido, deixando para trás os


quadros nas delicadas molduras que cobriam as paredes de azul
celeste. O tapete azul escuro estampado com flores de lis, amortecia
suas passadas, de modo que no vestíbulo só se ouvia o som leve de
suas saias e o sussurro de conversas.

O som aumentou de volume quando entrou no vestíbulo


principal, onde a cerâmica substituía o tapete. Um piso de ladrilhos
bege, com detalhes em azul escuro e dourado combinando à perfeição
com quatro colunas revestidas em mármore, no mesmo padrão, uma
em cada canto sustentando o teto. O espaço central era ocupado por
uma grande estátua de Vênus saindo de uma concha, sobre ele uma
cúpula de vidro a banhava de sol durante o dia, e na luz da lua
cintilava. O escultor italiano que a fizera afirmava que a modelo fora a
própria Lilith, mas ela não achava nenhuma semelhança na peça, salvo
que a deusa era exuberante nas curvas.

— Boa noite, senhor Dunlop.

Saudou um bonito cavalheiro escocês que admirava à Vênus


e que, com um vivo interesse em seus olhos azuis, respondeu:

— Boa noite, Lady Lilith. Agora a pouco, notei que essa


dama tão atraente tem certa semelhança com a senhora.

O senhor Dunlop era um jovem e rico comerciante que tinha


feito uma fortuna no negócio têxtil. Tinha mais dinheiro e encanto que
algumas das famílias mais ricas da Inglaterra, mas não era arrogante
como eles. Lilith sorriu diante do flerte.

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— Acha?

— De certo, senhora. E como escultura esta é uma


preciosidade. - Dunlop exibiu um largo sorriso. — Vai ao clube, minha
Lady?

— De fato.

— Então talvez me conceda a honra de acompanhar-me a


uma das mesas. Uma mulher tão bela quanto a senhora não pode
trazer mais que boa sorte.

Lilith inclinou levemente a cabeça em sinal de assentimento


e aceitou o braço que lhe oferecia.

— Ficarei encantada, senhor Dunlop.

Era uma sorte que lhe agradasse o jovem comerciante,


porque, se não, teria de pensar em uma boa desculpa. Em seu negócio
não era conveniente contrariar os que gostavam de jogar. O senhor
Dunlop ganhava em suas mesas tantas vezes quanto perdia, mas
gastava uma quantia enorme agradando os seus amigos e futuros
investidores com toda a comida e álcool que desejassem. Naquele ano
Lilith fizera muito dinheiro com ele e seus conhecidos, e procuraria
satisfazer qualquer capricho que viesse a ter, até abaná-lo com folhas
de palmeira se desejasse, para que continuasse a frequentar o seu
clube.

O senhor Dunlop era um dos poucos homens que se atrevia


a flertar com ela, mas nunca avançava os limites que ela havia imposto,
era encantador e a fazia rir, e, além disso, a fazia lembrar de outro
descarado encantador, com cabelos negros, que em outros tempos a fez

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rir e agora chorar em silencio. A comparação não parecia favorável para
o senhor Dunlop, mas era.

— Poderia me dar alguns instantes de seu tempo, senhora.

Enquanto falava, os lacaios abriram as portas do clube.

— Creio que havíamos combinado que me chamaria de


Lilith.

O gesto que dedicou aos lacaios não a impediu de seguir o


olhar ao redor do salão opulento, suntuosamente masculino, diante de
si. Na maior parte das mesas se jogava, embora muitos estivessem no
salão de jantar ou no salão azul, destinado especificamente aos
fumantes, sem mencionar as salas particulares nas áreas mais
afastadas do palacete. A meia-noite as salas estariam lotadas, e o
volume das conversas tornaria difícil se falar usando um tom normal.

— Só se me chamar de Stephen.

Junto à porta, já dentro e perto de uma palmeira que crescia


em um vaso, Lilith estacou e fitou seu acompanhante, sorrindo
francamente.

— Muito bem. Qual é o assunto, Stephen?

O sorriso dele lhe marcava as covinhas e os olhos se


iluminaram.

— Esta noite vim acompanhado de um certo cavalheiro que


lhe é desconhecido, soube que fará algumas perguntas sobre você e
sobre o clube.

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Imediatamente, Lilith arqueou uma sobrancelha.

— Um cavalheiro? É bonito?

Seu tom ligeiro dissimulou o bater acelerado em seu peito.


Seria Bronson, ou um de seus homens? E se fosse, que maldade estaria
tramando?

— Não tão bonito quanto eu. - Respondeu o senhor Dunlop


com forte sotaque escocês. — Mas na verdade é um sujeito de boa
pinta: um homem alto, com cabelos negros e os olhos claros.

Desta vez seu coração quase parou. Seria verdade? Dias


atrás, em uma loja, ouviu uma mulher comentar que o conde de
Angelwood estava em Londres. Atreveria-se a colocar os pés em seu
clube? Vinha por fim procurá-la?... Pois agora é muito tarde. Mas
estava se precipitando. Não havia certeza de que esse homem misterioso
fosse Gabriel. Havia muitos homens de cabelos negros e olhos claros,
Samuel Bronson, por exemplo. Bronson também era alto, e embora
Gabriel também o fosse, certamente, não era tão corpulento, claro que a
última vez que o viu só tinha vinte e um anos.

“Meu Deus. E se for ele?” Pensou ansiosa.

— Lilith?

Lilith levantou o olhar e viu a expressão preocupada no


senhor Dunlop.

— Algum problema, está tudo bem?

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— Sim, tudo bem, Stephen, obrigada pelo aviso. - Sorriu
embora temesse que o rosto se rachasse ao fazê-lo. — Acaso sabe onde
se encontra esse cavalheiro?

O senhor Dunlop fez um gesto negativo.

— Eu o levei até Latimer.

Latimer era o gerente do clube, além dos olhos e os ouvidos


de Lilith. Conhecia todas as pessoas importantes e influentes de
Londres, e se não conhecesse alguém, se certificaria de conhecê-lo o
mais rápido possível. Ele lhe diria quem era o visitante intrometido. Se
fosse Bronson, já o teria despachado, Latimer não gostava que o rival de
Lilith bisbilhotasse seu clube. Não confiava em Bronson, e Lilith
tampouco, desde que se tornou mais insistente em suas ofertas de
comprar o Mallory's. Ultimamente houvera vários incidentes de
vandalismo contra ela e o clube, e acreditavam ser ele o mandante.

Lilith suavizou seu sorriso.

— Meu caro, correrei o risco de aborrecê-lo se lhe pedir para


que se divirta sem minha companhia esta noite? Adoraria saber quem é
esse cavalheiro e o que deseja.

O senhor Dunlop esboçou um meio sorriso.

— Se há alguém que venha a saber sobre os desejos de um


homem, é você Lilith. Vá, minha cara. Eu sei o que é estar casado com
os negócios. Mas ficarei contente em voltar a ter sua companhia, se não
achar nada interessante neste cavalheiro.

Lilith lhe dedicou um sorriso de agradecimento, lhe acariciou


o braço, e avançou entre os clientes. A maior parte dos homens se

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vestia com trajes semelhantes, o que dificultava identificar um em
particular, entretanto, procurou por um com estatura avantajada,
ombros largos e de cabelos negros. Não encontrou nenhum. Onde
estaria?

Com o coração mais triste e o estômago mais tenso do que


estava disposta a reconhecer, caminhou sem pressa até o outro lado do
clube, onde as janelas abertas permitiam que a brisa noturna
refrescasse a sala. Não queria admitir, nem sequer a si mesma, que
tinha esperado ver Gabriel. Estava tão farta por não saber o que
aconteceu, e embora ele não a quisesse tanto quanto ela o queria, nesse
momento só desejava a verdade... E também, fazê-lo engolir os dentes
com um murro.

Ao passar junto às mesas foi murmurando frases de ânimo.


À maioria dos homens não importava sua reputação: sorriam e a
cumprimentavam. Embora não se dirigissem a ela quando outras
mulheres estavam presentes. Se algum deles lançasse uma insinuação
maldosa, prudentemente, calava-se em meio à frase. O último que lhe
fez propostas desrespeitosas fora expulso do clube a pontapés, e
ninguém mais quis arriscar-se a receber semelhante castigo. O orgulho
de Lilith sempre os mantivera longe, nas poucas vezes em que se
atreveram a desgostá-la, ela demonstrava o trunfo que tinha sobre eles,
e esta ideia lhe agradava.

Estava rindo de uma piada que lhe contava o Duque de


Wellington quando viu sair e voltar ao terraço, um homem alto e
robusto, com uma abundante cabeleira negra que lhe chegava até o
pescoço. Seu corpo ficou gelado. Não conseguia ver-lhe o rosto, só a
largura dos ombros cobertos, o fraque e as calças eram de corte preciso,
mas o caimento do tecido dissimulava a posição econômica de quem os
vestia. Lilith estava convencida de que, embora não fosse Gabriel, e por

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certo era alguém muito maior que o moço que ela recordava, sem
dúvida se tratava do homem que a estava procurando.

Absorta em sua presa, foi atrás dele e ignorou quem tentou


chamar-lhe a atenção a sua passagem, mas o desconhecido se afastou
até perder-se de vista. Então se apressou no caminho e se afundou na
escuridão do terraço. Ao sentir-se rodeada pelo frio ar noturno,
estremeceu, em abril ainda fazia um pouco de frio, e ainda mais depois
da chuva intensa dos últimos dias, mas não voltou atrás. Ficou por
alguns instantes quieta em meio à luz projetada pelas portas abertas,
assim que seus olhos se acostumaram à escuridão, avançou com
cautela.

Em toda sua vida aprendera que a segurança estava na luz e


nos números, e ali fora, à noite, sentia-se vulnerável, vulnerável diante
de um homem que não era nem amigo ou inimigo... Mas ali não havia
ninguém. Lorde Braxton e Lorde Somerville fumavam charutos logo
mais a frente e estavam tão entrosados na conversa que não lhes
perguntou se tinham visto o cavalheiro misterioso, provavelmente nem
sequer a viram também. O terraço se prolongava a direita até sumir em
um negrume quase total no outro extremo, ali havia um pequeno
escritório que costumava usar para receber seus empregados e
comerciantes, com as cortinas corridas para que ninguém soubesse se
havia ou não alguém dentro. O clube já sofrera um arrombamento,
nada de importante fora levado, mas Lilith atribuíra o incidente a
Bronson, e não queria atrair mais ladrões deixando o lugar totalmente
aberto.

Passou junto aos grandes vasos de barro, uma mesa e


cadeiras onde os cavalheiros podiam sentar-se a tomar uma taça de
champanhe tranquilamente. Tinha chegado quase ao final do terraço e
continuava sem encontrar sua presa, mas estava ali. Tinha de estar.
Com o som de sua própria respiração, Lilith chegou ao outro extremo

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da balaustrada. Ali só havia escuridão. Franziu o cenho, deu a volta e
olhou para trás, Somerville e Braxton continuavam a conversar, e não
viu ninguém mais. Onde estava o sujeito? Não podia ter virado fumaça.

Voltou a olhar o terraço mais a frente e de repente sentiu


uma sensação de sufoco: a porta da saleta estava aberta. Aquele
desgraçado entrara, e ela sabia com que ideias. Não toleraria mais isso,
se Bronson achava que podia intimidá-la tão facilmente, estava
enganado. Apanharia seu assecla, uma pequena vingança contra
Bronson e contra seu clube, o Hazards.

Devagar e em silêncio, Lilith se aproximou nas pontas dos


pés até a porta, empregaria o elemento surpresa, e gritaria tão alto que
certamente Somerville e Braxton correriam em seu auxílio, ou, ao
menos, assustaria o ladrão que tentava escapar diante deles. Se
passasse por eles e entrasse correndo no clube, Latimer ou algum
empregado o pegaria. Nem quis pensar se o desconhecido decidisse
atacá-la.

Os dedos tremiam quando tocou o vidro frio, conteve o fôlego


e empurrou um pouco a porta. Esta se abriu com tanta força e tão
rápido que Lilith perdeu o equilíbrio. Nem sequer teve tempo de gritar.
Mãos fortes a agarraram pelos ombros e a endireitaram. Então levantou
o olhar e não gritou, mesmo desejando fazê-lo, porque o homem que a
segurava tinha os olhos fixos nela, olhos tão azuis e claros que se via
refletida em suas pupilas. E também por aquele homem ser realmente
um ladrão.

Um ladrão que lhe roubou o coração há dez anos atrás.

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Gabriel estava preparado para a
bofetada. E a agradeceu. O ardor na pele e o zumbido nos ouvidos o
fizeram se recuperar quase instantaneamente o ar que prendera nos
pulmões ao ver Lilith.

Maldição, mas como os anos lhe assentaram bem... À luz


fraca das lamparinas na parede, Lilith parecia um estudo perfeito de cor
carmim, marfim e ouro, e cada tom ameaçava lhe cortar a respiração
outra vez. Estava ainda mais bela do que nas lembranças, sem contar
com os cosméticos que usava para avermelhar os lábios e bochechas, e
sombrear os olhos. O corpo escondido naquele vestido sensual era mais
amadurecido, as generosas curvas dos seios e quadris apenas
sublinhavam o fato de ter se tornado mulher... Uma mulher cujo clube
talvez tivesse roubado de Frederick Foster.

Esfregou a bochecha onde tinha recebido o tapa, ficaria


marcado por alguns dias. Tudo bem. Amanhã precisaria de algo que
comprovasse o que estava vendo.

— Olá, Lil.

Lilith cravou os olhos enfurecidos nele, e as sobrancelhas


formaram dois perfeitos vs invertidos, os lábios se abriram como se
estivesse vendo algo que não esperava realmente ver. Quanto tempo ela
acreditou que poderia se esconder dele? Devia saber que, algum dia, ele
apareceria em seu clube. Tinha voltado a Inglaterra há poucos dias,
mas devia ter imaginado que, uma vez que soubesse onde estava, teria
que enfrentá-lo... Ou pensou que Gabriel não a encontraria? Seu pai lhe

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deixara muito claro que, embora a tivesse desonrado, um homem, ou
melhor, um moleque como ele, com pais que eram uma vergonha e que
tinham dilapidado a própria fortuna, nunca seria um bom partido para
sua filha.

A lembrança de como Lilith sumira de sua vida sem olhar


para trás diminuiu qualquer sentimento de ternura que o reencontro
poderia ter suscitado em Gabriel. Apertou as mandíbulas e sentiu uma
pontada onde tinha recebido o tapa, arqueou uma sobrancelha e
perguntou mordaz:

— Não diz nada? Eu ao menos, esperava um "olá". Quanto


tempo? Oito, nove anos...?

— Dez. - Declarou com os dentes trincados e uma expressão


assassina.

Ah, então ainda se lembrava. Bom.

— O que faz aqui, Lorde Angelwood?

Uma pontada de dor aguilhoou seu peito ao ouvi-la


empregar seu título, mas se esforçou em ignorar.

— Bem, minha cara Lady Lilith, ninguém a avisou de minha


presença aqui?

Lilith soltou as mãos e as apoiou nos quadris, o olhava com


tanta frieza que Gabriel sentiu um calafrio na espinha.

— É um pouco tarde para isso, não? E ninguém precisaria


me avisar do que Sua Senhoria é capaz.

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Com os anos sua voz se tornara mais profunda, mas seguia
tão seca e cortante como a vara de um professor de escola. E também
fez Gabriel desejar beijá-la e acariciá-la até que se tornasse em um
grave sussurro.

— Do que sou capaz?

Deu um passo para ela e não se surpreendeu por ela não


recuar. Quase se tocavam. Gabriel se inclinou para frente e sorriu ao
ver que ficava rígida.

— Minha querida Lilith. - Murmurou junto à concha


aveludada de sua orelha. — Passaram-se dez anos. Não tem a menor
ideia do que sou capaz.

Ela estremeceu, mas não fez movimento algum para escapar.


Gabriel sentiu que um tremor lhe percorria o corpo. Um perfume de
laranjas e flores encheu seus sentidos. Era tão bom: como algo maduro
e suculento, com o toque picante que envolvia toda aquela sensualidade
latente. Ainda se lembraria daquela noite, quando fora impossível saber
aonde um começava e o outro terminava? Quando esteve tão dentro
dela, tão apaixonado, que eram um só de corpo e alma?

Impulsionado por algo muito mais forte que a sensatez ou


razão, percorreu a ponta da orelha com a língua. Com os olhos
fechados, inspirou profundamente seu perfume para se encher dela na
mente e na alma. Então os dedos de Lilith lhe rodearam o antebraço
com a força de um torno, não soube se era para afastá-lo ou para puxá-
lo para si.

— Parece que não mudou nada. - Sussurrou Gabriel


levantando a cabeça. E enfrentando seu olhar duro e frio, mas a face e
colo coraram, e as aletas do nariz estavam dilatadas.

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— Está tomando liberdades, Sua Senhoria.

Ao soltar-se, Lilith o empurrou, e Gabriel sentiu o timbre


gutural de sua voz como um murro em meio ao peito. E acusou o golpe.
Se perguntando se seu sorriso parecera tão forçado como o sentia, mas
se recompôs.

— Liberdades? Esqueceu-se de que houve um tempo em que


me implorou para que o fizesse?

Por Deus! O que estava acontecendo? Ficara excitado. Isso


não era uma liberdade, era uma tortura. Desejava-a. E acima de tudo
desejava castigá-la e depois perdoá-la, queria saber se fora o único
homem que estivera em sua cama apaixonado. Inferno! Queria saber
por que o abandonara.

Com os lábios tensos, Lilith afirmou:

— Gostaria de pudesse esquecer isso.

Pretendia que fosse um insulto, mas Gabriel não pôde evitar


de tornar a rir. Ela tampouco o tinha esquecido. Pois bem, se sua
lembrança lhe causava uma pequena fração da dor que ele sentia ao
pensar nela, já estaria feliz. Então, como se percebesse que se delatou e
precisasse pôr certa distância entre ambos, Lilith se afastou.

— Perguntei-lhe o que faz aqui.

Gabriel encolheu os ombros. Seu corpo também acusou esse


afastamento, e se sentiu incomodado.

— Vim aqui para vê-la, minha querida.

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Agora foi a vez dela rir: uma gargalhada que lhe oprimiu o
coração e o encheu de um pesar agridoce, porque embora fosse um
prazer ouvi-la, mostrava que não acreditava nele. Claro que não fora de
todo sincero, mas que Lilith duvidasse de sua palavra provava que o
tinha em muito pouca estima.

Gabriel se aproximou de uma escrivaninha que havia atrás


dele e se sentou em frente a brilhante superfície de carvalho. Todo o
lugar, dos tapetes em tons terrosos até ao revestimento de madeira
escura nas paredes, tinha um ar masculino, conforme os informes de
vários conhecidos, tratava-se do escritório de Lilith. Era uma amostra
do quão pouco seus clientes a conheciam. Talvez fosse seu escritório
durante o horário de funcionamento do clube, mas Gabriel estava
convencido de que tinha outro, um particular, em algum lugar do
edifício, ali encontraria certamente as provas de que aquele
estabelecimento não era tão honrado como devia. Se houvesse alguma,
ele as descobriria, não descansaria até encontrá-las.

Lilith tinha os olhos fixos nele, com a cabeça um pouco


inclinada, como se contemplasse um enigma especialmente fascinante.
E embora não acreditasse, Gabriel achou agradável que o olhasse
assim, sem frieza. Continuou a observá-la enquanto ela percorria a
pequena distância sobre o tapete marrom e bordô para sentar-se em
uma das poltronas que havia frente à escrivaninha. Bem em frente a
ele. Um novo indício de que aquele não era seu escritório, se fosse, teria
certamente se sentado atrás da mesa, onde tinha poder de decisão.
Lilith cruzou as pernas, o torturando com um vislumbre de um de seus
tornozelos, e adotou uma postura preguiçosa, como um felino
embriagado de sol, e com um tom menos agressivo, perguntou:

— Pareceu-lhe estranho que ninguém me tivesse "prevenido"


sobre sua presença aqui. O que quer, Gabe?

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Ah, como era talentosa! Não se esquecera de como podia
manipulá-lo: a postura lânguida, o tornozelo a mostra, a suavidade na
voz ao pronunciar-lhe o nome... Tudo planejado para tirar-lhe o que
desejava saber. E ele quase confessou. Quase se jogara a seus pés para
declarar o quão triste fora sua vida sem ela, quase quis lhe falar sobre a
promessa que fizera a Blaine, e implorar que lhe dissesse que não era
verdade, que continuava a ser a sua Lil, e que todo aqueles anos
passados não a mudaram tanto... Mas houvera mudanças, mesmo não
querendo admitir. Lilith era dona de um clube de jogos e usava
maquiagem, se tornara fria e cínica, e parecia muito mais amargurada
que a garota que ele tinha conhecido. Deixou de ser sua Lil na noite em
que o abandonou, e Gabriel não confiaria nela uma segunda vez.

— Vim ver o que se tornou, Lil.

Os grandes olhos de Lilith se estreitaram.

— E para se felicitar?

Felicitar-me? De que diabos estava falando?

— Não creio que nenhum de nós tenha feito algo que mereça
isso. E você?

Ao ouvir aquilo Lilith se avermelhou, o rubor lhe subiu do


decote pronunciado de seus seios até seu rosto.

— Parece que estou a ponto de me tornar seu inimigo. -


Acrescentou Gabriel.

Cruzou os braços, o fraque agarrou-se aos seus ombros, e se


sentiu incomodado. Ela sorriu com tristeza.

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— Sua Senhoria nunca deixou de ser.

Outra vez aquela conversa.

— Se o sou, então deve conhecer meus planos?

— Sei muitas coisas sobre o senhor, mas o modo como lhe


funciona a cabeça não é uma delas. - Respondeu recuperando o tom
tranquilo. — Talvez deseje esclarecer-me isso antes que o mande jogar
na rua.

Gabriel viu a verdade em seus olhos, sem duvida não


hesitaria em submetê-lo a tal humilhação.

— Surpreende-me que ninguém a tenha informado da causa


que abracei depois da morte de meu pai.

A palidez que se estendeu no rosto de Lilith lhe bastou para


entender que a notícia a tinha comovido. Ótimo. Queria que ela se
recordasse das semelhanças entre suas famílias, o falecido conde
sempre quis que fosse seu par nas partidas de whist, os dois eram
jogadores... O pai de Gabriel se sentiria orgulhoso de quão rica ela era
agora. Mas estaria ela igualmente orgulhosa se soubesse o muito que
seu vício custou ao Conde e a seu filho?

— Que causa? - Perguntou Lilith com voz tensa.

O lado perverso de Gabriel estava desejando ver sua reação.

— A proibição do jogo na Inglaterra.

Não esperava que reagisse rendendo-se.

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Não foi o riso alegre e autêntico de antes, mas sim um
sorriso que expressava incredulidade, como uma mãe que ouvia seu
filho anunciar seu plano de ser rei... Que logo se desvaneceu ao ver a
expressão de seu interlocutor.

— Está falando a sério?

Gabriel assentiu, doeu-lhe a mandíbula o esforço que fez


para mantê-la fechada. Então ela pareceu lamentar sinceramente.

— Nunca aprovarão tal medida.

— Por que não?

Lilith soltou outra risadinha, pelo visto adorava rir dele.

— Porque noventa por cento dos homens a quem tentará


convencer estão entre meus melhores clientes. Nunca aprovarão nada
que traga consequências negativas sobre suas vidas.

— Realmente, acredita nisso? - Perguntou ele em tom de


desafio.

— Não só acredito como tenho certeza. - Respondeu Lilith


com um sorriso arrogante.

Gabriel nunca desejara tanto pôr alguém em seu devido


lugar.

— E o que me diz dos dez por cento que veem suas fortunas
em risco ou arruinadas em estabelecimentos como o seu? E das
famílias que perdem seus entes queridos, aqueles que tiram a própria

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vida por causa das dívidas de jogo? - Sua voz se elevou, levada pela
emoção. — E os que se arruínam no jogo?

Lilith manteve sua atitude compassiva, mas ele viu uma


sombra de dúvida em seus olhos.

— Isso não é assunto meu.

— Ah, não?

Gabriel se levantou da mesa e reduziu a distância que os


separava, apoiou uma mão em cada braço da poltrona, encurralando
Lilith com o corpo, e afirmou:

— Pois devia ser. São os que estão em minha situação.

Impassível, confrontou seu olhar, sem pronunciar uma


palavra lhe dizia o que devia fazer com sua situação e com seus dez por
cento.

— Você, melhor que ninguém, deveria saber o quão pequeno


é o círculo social da nobreza e quão unidos são. - Continuou ele. —
Lilith, a Câmara dos Lordes é menor ainda, e teem a sorte, ou má sorte,
depende de como se olha, de que nela só haja homens. Agora ou depois,
alguém dos seus noventa por cento será afetado pelo jogo, ele mesmo
sofrerá uma perda vultuosa, ou acontecerá a um amigo, um irmão ou
filho, talvez a própria esposa.

Viu que tinha alterado a calma de Lilith, embora ela o


interrompesse com brutalidade:

— Está dizendo tolices. Isso talvez demore anos para


acontecer.

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— É mesmo? Eu não creio. - Gabriel baixou a cabeça, tanto
que suas respirações se misturaram. — Eu creio que isso pode
acontecer muito em breve, principalmente se a pessoa for tenaz e
jamais deixará de fazê-los se recordar do fato. E quando procurarem em
quem jogar a culpa, se voltarão contra você, uma mulher de
procedência duvidosa, e a farão carregar a responsabilidade de tê-los
levado a ruína.

Lilith lhe lançou um olhar de puro ódio, sua cólera era tão
evidente que quase o fez recuar.

— Eu poderia lhe dar um castigo exemplar, Lilith. Poderia


propagar aos quatro ventos que é a perdição para os homens, sou a
prova viva do que fez a mim.

Então, com uma força tão surpreendente quanto excitante,


Lilith lhe deu um empurrão, jogou-o de lado e escapou da poltrona. Não
era uma mulher que abandonasse a luta. Tinha suas crenças, e ele
esperava que uma delas fosse a honradez.

— A única coisa que fiz foi amá-lo mais do que merecia. -


Afirmou com veemência. — Não sei o que esperava ao vir aqui esta
noite, Gabriel, mas se pretendia intimidar-me para fechar meu clube,
vais sofrer uma grande decepção.

— Só me decepcionou uma vez, Lil. E ainda não decidi se lhe


darei outra chance. - Gabriel retrucou amargurado.

Lilith inspirou profundamente, seus seios exuberantes se


elevaram e fizeram o tecido dourado do vestido se esticar. Tremia de
fúria. Aquela visão não deveria agradar a ele, mas agradava e muito,

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estivera por dez anos tão zangado com ela que lhe dava um enorme
prazer saber que ainda podia mexer com suas emoções tão facilmente.

— Entende que sua simples presença em meu clube


desmente seu raciocínio, Lorde Angelwood.

Gabriel gostou que hesitasse no modo de chamá-lo, saltava


de seu nome ao título. Perguntou a si mesmo se ela notara isso.

— Absolutamente. - Repondeu alegremente. — Limito-me a


seguir o ditado que diz: "Conheça seu inimigo como a ti mesmo." Como
poderia combater o que não conheço?

Então aproveitou o silêncio glacial de Lilith e reduziu a


distância que os separava. Com uma mão lhe rodeou a curva morna da
nuca, e a atraiu para si sem fazer caso de seu grito indignado.

— E acredito, Lil, que estamos de acordo, você e eu nos


conhecemos muito bem.

Seus lábios caíram sobre os de Lilith, silenciando a queixa


com um desejo que o envolveu por inteiro. Não pensara em beijá-la,
mas não pôde evitar, depois de tantos anos recordando o quão doce era,
não tinha escolha a não ser pousar sua boca sobre a dela. Sua língua
desenhando o arco de seus lábios e deslizando pela suave superfície dos
dentes. Tinha sabor de creme e noz moscada, doce e picante, e tão
quente e doce quanto uma bolacha recém assada.

Ela não o animou somando sua língua a dele, mas tampouco


tentou detê-lo. Era como se esperasse... Como se esperasse que ele
tomasse uma decisão. A contra gosto, Gabriel retirou a mão do pescoço
e a levou até a face, fez o mesmo com a outra mão e com ambas
sustentou o rosto de Lilith. A primeira vez em que a beijou fora assim,

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porque temia que ela se afastasse ou que pedisse para parar. Desta vez
ela emitiu um som muito parecido a um soluço, tão doce que o coração
de Gabe se fez em pedaços. Tampouco ela o esquecera... E ao prolongar
a paixão de seu beijo sentiu Lilith levantar os braços e se agarrar às
lapelas de sua casaca, como no primeiro beijo.

Gabriel mal podia se controlar, se não parasse, acabariam


no chão e não poderia cumprir a promessa feita a Blaine, para não falar
da que fez a seu pai... Embora uma parte dele soubesse que valeria a
pena só poder senti-la em seus braços mais uma vez. No entanto foi ela
quem se afastou primeiro, e o fez com aspereza. Com os lábios
vermelhos e úmidos, agarrou-o pela casaca e o olhou fixamente, com
uma expressão onde se misturava a felicidade e o horror. E então, com
um suspiro, afirmou convicta:

— Ainda é meu inimigo.

Um jorro de água gelada em pleno rosto não teria surtido


mais efeito. Gabriel deixou cair as mãos e se afastou.

Como se já soubesse a resposta, Lilith lhe perguntou:

— Vai embora agora?

Por mais que desejasse afastar-se dela para poder clarear


suas ideias. Entretanto respondeu:

— Não. Ainda não encontrei o que procurava.

Observou que, por um instante, a surpresa se espelhava na


expressão de Lilith.

49
— Bem, mas não encontrará nada bisbilhotando em meu
escritório.

Gabriel não tinha resposta para aquilo, e nem sequer tentou


responder. Então Lilith alisou o penteado impecável e se aproximou da
escrivaninha. Tirou uma chave do decote. “Deus, como invejo essa
chave!” e abriu uma das gavetas. Fechou-a novamente, rodeou a mesa,
se aproximou dele e lhe estendeu a mão: na palma havia fichas no valor
de cem libras.

— Use-as. - O desafiou, elevando a mão. — O único modo de


saber o tipo de estabelecimento que tenho, é jogando.

Era uma amostra assombrosa de generosidade, e Gabriel


não pôde evitar perguntar-se o que esperava conseguir com isso.

— Não, obrigado, não jogo. A última vez que me arrisquei foi


com você.

Foi um comentário inoportuno, uma frase impensada que


rompeu a estranha trégua selada pelo beijo. Os dedos de Lilith se
fecharam com força sobre as fichas, seus nódulos ficaram brancos
quando a mão se fechou. Iria esmurrá-lo? Mal tinha se recuperado do
bofetão.

— Bem, Sua Senhoria: os dois sabemos quem de nós


perdeu. Deseja saldar alguma divida?

Gabriel não se incomodou em fingir que não tinha


entendido.

— Perder? Creio lembrar-me do que me ofereceu, e o fez de


bom grado e euforia.

50
Ela voltou a corar, embora menos. Manchas avermelhadas
brotaram na suavidade aveludada das bochechas. Sempre tivera uma
pele de porcelana, e aqueles pós estúpidos que usava só a empalidecia.

— Há coisas piores para uma mulher que perder sua


virtude, Lorde Angelwood. - Foi sua resposta glacial. — Só nomearei
duas, seu orgulho e reputação, e se for especialmente estúpida, também
seu coração.

— Eu também perdi, Lily. - Disse ele, com uma voz que era
pouco mais que um sussurro. — O que diz sobre isso?

Olhou-lhe a garganta enquanto ela engolia em seco.


Choraria? Se chorasse, Gabriel não saberia o que fazer.

— O que você pode saber sobre perdas? - O punho de Lilith


fechava-se com força ao abaixá-lo. — Qual dos dois acabou sendo um
párea? Qual dos dois não pôde mais mostrar o rosto em público sem
que houvesse murmúrios, zombarias e desprezo ao passar?... Você
continua a ter amigos, onde estão os meus?

A força de seu ataque desarmou Gabriel, que abriu a boca


para responder, quis dizer algo, algo que aliviasse a angústia que havia
em seus olhos, mas ela o interrompeu:

— Se acha a parte ofendida? Quanto está enganado. Ao que


parece, você vive a vida que esperava ter, enquanto que a minha tomou
um rumo que ninguém podia imaginar. - Os olhos reluziam, úmidos,
cruzara os braços como se abraçasse a si mesma. — Diga-me Gabriel,
qual dos dois acredita que devia ter mais remorsos?

51
Gabriel custou a engolir aquilo, tinha um nó na garganta.
Não podia fazê-lo. Não. Essa noite não.

— Tenho muitos remorsos, Lilith. Mas não por amá-la.

Não esperou para ouvir uma reposta. Assim que aquelas


palavras saíram de sua boca, girou sobre os calcanhares e saiu
majestoso da sala. Ao diabo com bisbilhotar o clube tentando reunir
informações. Tinha que sair dali. Blaine não teria escolha a não ser,
esperar.

Sua inimiga o conhecia muito bem.



O que quis dizer com não se arrepender de amá-la?

Há dois dias descobrira Gabriel em seu escritório e ela ainda


não conseguira tirar aquele encontro da cabeça... Muito menos aquele
beijo. E o mais importante: por que estava bisbilhotando no clube e em
seu escritório? Procurava algo, mas o que?... Graças a Deus, guardava
todos os arquivos do clube em seu escritório particular no piso superior.
Fossem quais fossem seus motivos, não tinha ido só ali para vê-la, disso
tinha certeza.

Lilith tampouco duvidava que, se não tivesse reagido tão


intempestivamente, teriam feito amor. E estivera por demais tentada a
fazê-lo, quando segurou-lhe o rosto como a tantos anos atrás, foi como
se tivesse voltado ao passado, e por um momento se permitiu pensar

52
que tinha novamente dezessete anos, que ele a amava... Mas logo a
prudência gritou, e agradecia aos Céus por isso. De outro modo, teria
desprezado a si mesma mais tarde por sua fraqueza. Ao passar dez
anos sem muito contato íntimo com os homens, seria horrível saber que
Gabriel era o único capaz de fazê-la perder a razão com um beijo.

Estava sentada diante da escrivaninha, na mesma sala onde


aquilo se passara. De vez em quando seu olhar vagava até o lugar onde
há dois dias tinham estado de pé, ou até a poltrona em que estava
quando ele se equilibrou sobre ela. Com mais frequência do que
desejava, sua atenção se desviava até o lugar onde ele se sentou; nem
sequer tinha que fechar os olhos para vê-lo outra vez, a maneira como
se esticava o tecido da calça à altura das coxas musculosas, ou como
lhe assentava o fraque sobre seus ombros.

Era ainda mais alto do que se lembrava, e mais corpulento,


muito mais. Como podia ser tão corpulento um nobre? Só o trabalho
braçal ou atividade física moldavam um corpo assim, e se Gabriel
recorria a isso por algum motivo? Queria saber. Queria saber todos os
seus segredos. Se verdadeiramente ainda sentia algo por ela, como
tinha dado a entender, precisava de todas as armas para contra-atacar.
Por isso colocara seus contatos para descobrirem tudo sobre o conde de
Angelwood.

Por exemplo: por que tinha tanta aversão ao jogo. O velho


conde gostava dos jogos de azar, e haviam rumores de que fora morto
com um tiro, em um duelo por dívidas de jogo. Lilith não acreditava
muito nessa história, era difícil conceber que alguém matasse uma
pessoa tão adorável quanto o pai de Gabriel, e além disso, nunca
ninguém admitiu ter apertado o gatilho. De fato, nem sequer os
fofoqueiros diziam quem fora o oponente. Seria essa a razão para odiar
tanto o jogo? Porque o pai fora morto por uma dívida?

53
Além disso, embora não acreditasse nos rumores sobre a
morte do conde, tal empreitada contra o jogo parecia uma tarefa
gigantesca para alguém tão jovem, uma quimera... Claro que Gabriel
não veria as coisas desse modo, ele sempre idealizou que se podia
alcançar qualquer objetivo desde que se esforçasse bastante. Acaso não
foi deste modo que conseguiu lhe fazer a corte? Flertou e se mostrou
encantador até conseguir entrar em seu coração e em sua cama... E
depois abandoná-la.

No dia anterior, graças aos informantes descobrira que, para


muitos de seus clientes, não lhe contar sobre a campanha de Gabriel
contra o jogo não fora levada a sério. Quem acreditaria no sucesso da
campanha, sem mencionar o quão divertido seria quando os dois se
encontrassem novamente em campos tão opostos. Para outros, o conde
não lhes parecia uma ameaça. O natural seria Lilith compartilhar esta
última opinião, mas conhecia Gabriel o bastante para saber que não se
renderia com facilidade.

Pelo menos, há duas noites atrás saboreou uma pequena


vitória: pegá-lo em fragrante dentro do escritório e deixá-lo tão nervoso
que não pôde continuar com seu plano... Claro que ele também a
deixou nervosa, tanto que ela nem sequer quis levantar-se da cama na
manhã seguinte. Tia Imogen a chamaria de covarde com certeza.
Segundo ela, uma mulher não devia temer homem algum,
principalmente se essa mulher soubesse seus pontos fracos, e dominá-
lo com a mesma facilidade que controlar um cão amestrado. Acabaria
dizendo: "E, além disso, um homem não lhe dará o trabalho de levá-lo
para passear todos os dias..." Lilith sorriu ao lembra-se dela, sentia
muita falta da divertida e sábia tia Imogen. Ensinou-lhe a defender-se
sem preocupar-se com o que dissesse ou pensasse os que estavam a
sua volta. A única pessoa a quem tinha de dar satisfação seria a si
mesma e jamais devia esquecer isso.

54
Ao morrer, tia Imogen a tornara uma mulher rica e
independente. A quem importava ter ou não uma reputação? Não
precisava dar satisfação aos ditames da sociedade e faria o que
quisesse, viver e amar da maneira que quisesse... Que pena que seu
coração só queria amar um determinado homem.

Felizmente, uma batida à porta cortou o rumo de seus


pensamentos. Lilith não queria pensar mais em Gabriel, ao menos não
agora.

— Entre!

Era Mary, com uma bandeja de chá e o jornal do dia.

— Ficou a manhã toda aqui. Pensei que gostaria de uma boa


xícara de chá.

Ah, sim, o chá cairia divinamente.

— É minha salvadora, Mary. Quer tomar comigo?

Sentaram-se no sofá macio, mais confortável ainda graças a


algumas almofadas coloridas. Sorte que não o tinham visto quando
Gabriel estivera ali, se a deitasse nele...

Basta. Havia se determinado a não pensar mais em Gabriel,


e ainda mais quando teria de encomendar outro carregamento de
brandy que devia ter chegado no dia anterior. Ladrões tinham
interceptado o carregamento no caminho entre o porto e o clube... Lilith
não tinha dúvida de que estavam a serviço de Bronson. Longe de
intimidá-la, o proprietário do clube rival se tornava um aborrecimento, e
se permitisse que os pequenos incidentes continuassem, seria
intolerável.

55
— Alguma boa notícia esta manhã?

Lilith levou aos lábios a xícara de chá, saboroso e quente.


Uma bênção. Mary titubeou um segundo antes de lhe mostrar o jornal.

— Não sei se serão boas ou não, mas creio que vai se


interessar pelo que há na página sete.

Intrigada por sua expressão, Lilith abriu o jornal na página


sete e demorou só alguns instantes para encontrar o artigo. Era a
página da coluna social.

“Soube de fonte segura, que certo alguém, conhecido como ‘O


angelical’, foi visto perambulando em um dos clubes de jogos mais
requintados da cidade. Não seria um fato tão delicioso se, esse alguém
não fosse um opositor ferrenho aos jogos de azar e estivesse tão
determinado a abolir tal entretenimento em nossa bela cidade, assim
como também,e é de conhecimento público, que a proprietária do dito
estabelecimento já teve um afair ardente com esse alguém. Já correm
rumores de uma aposta. Será que a dama em questão convencerá ou não
esse alguém a abandonar tal empreitada?”

Avisara a Gabriel que sua visita ao clube não passaria


despercebida. Devia sentir-se satisfeita que já corresse duvidas sobre os
motivos dele, mas a única coisa que sentia era aborrecimento.
Esforçou-se em manter uma expressão indiferente enquanto jogava o
jornal de lado.

— Bem, deveriam procurar algo melhor para tagarelar, não


reavivar um escândalo que já morreu de velhice.

56
O olhar que dirigiu a Mary não continha nenhuma censura,
mas quando falou, seu tom era dolorido:

— Não me disse que lorde Angelwood esteve aqui.

— Não disse a ninguém.

De que teria servido? Nada mudara, nem teria feito mais


fácil voltar a vê-lo. Os dedos de Mary agarraram sua mão fria sobre o
brocado.

— Está tudo bem?

Lilith lhe apertou a mão antes de soltar-se. A amizade de


Mary era uma das que mais apreciava na vida, mas não queria ficar
sentimental, já tinha desperdiçado muitas lágrimas com Gabriel.
Deixou o pires no colo e segurou a xícara com ambas as mãos para
aquecê-las. Com um sorriso tímido, fixou sua atenção em uma folha de
chá que tinha ficado presa a beirada.

— Durante anos imaginei como seria um reencontro com ele.


Nos dias bons imaginava-o me dizendo que sofrera uma enfermidade
quase mortal, ou que piratas o teriam raptado quando estava a minha
procura. Estaria ajoelhado, implorando meu perdão, e segundo meu
humor no momento, eu perdoaria ou não.

— E nos dias ruins?

Lilith voltou a cabeça para enfrentar o olhar franco de Mary.

— Nos dias ruins imaginava-o me dizendo que não era digna


de estar debaixo do mesmo teto que ele.

57
Lilith não estava segura de como reagiria sua amiga, mas se
sentiu aliviada ao ver que se limitava a fazer um gesto afirmativo. Então
tomou um gole de chá e franziu a testa.

— Mas nunca poria em dúvida que teria sido eu a parte mais


prejudicada.

Mary colocou mais açúcar.

— Ele o fez?

Lilith assentiu, ainda com testa franzida.

— Mary, ele se expressava como se ele tivesse sido o traído,


como se eu tivesse agido errado com ele.

— Disse-me: “Eu poderia lhe dar um castigo exemplar, Lilith.


Poderia propagar aos quatro ventos que é a perdição para os homens,
sou a prova viva do que fez a mim”.

Mary levantou sua xícara.

— Interessante. E não deu explicações?

Lilith fez um gesto negativo, colocou a xícara no pires e


ambos, sobre a mesa.

— Falou com tanta convicção. Como pode ser?

Na noite do baile de aniversário de sua mãe, ela e Gabriel


haviam escapado da vigilância paterna em busca de intimidade. Ela o
levou a seu quarto, onde, trêmulos e impacientes, entregaram seus
corpos e se prometeram amor eterno. Só os descobriram muito depois,

58
quando a mãe de Lilith e uma amiga, estranharam sua demora e foram
ver se estava indisposta. Os encontraram diante do espelho, quando
Gabriel ajudava Lilith a arrumar os cabelos. Os dois estavam
completamente vestidos, e a cama arrumada, mas bastou um só olhar
para saber o que tinha acontecido. Um momento depois, e foi bem
desagradável, sua mãe declarou que sentira o cheiro da maldade em
Lilith no mesmo instante em que entrou no quarto, passaram-se muitos
anos até Lilith saber o que a mãe quisera dizer.

No dia seguinte toda Londres se refestelara no escândalo.


Não houve mais visitas, suas amigas devolviam suas mensagens sem
responder. Deixaram de chegar convites e Gabriel desapareceu. Dois
dias depois, seu pai decidiu mandá-la a Itália. Lilith mandou uma carta
a Gabriel, contando o que acontecera, e não houvera nenhuma
resposta. Ela atribuiu seu silêncio à trágica morte do pai, sentira tanta
tristeza por não lhe permitirem sair de casa para confortar Gabe e sua
mãe. Mas ao continuar sem nenhuma resposta, começou a se perguntar
o que estaria acontecendo. Ao cabo de dois dias zarpou sem que Gabriel
tivesse aparecido. Escreveu-lhe da vila de tia Imogen, informando-o de
onde estava, sem nunca receber uma simples resposta. De onde Gabriel
tirou a ideia de que fora ela a mau caráter? E o mais importante, até
onde levaria sua vingança?

O Mallory's era um negócio dentro das leis, mas Lilith sabia


que em alguns reservados, às vezes se jogavam dados, o que era ilegal.
Se por acaso Gabriel descobrisse, certamente lhe dificultaria a vida. E
se começasse a instigar seus clientes contra ela... Não teria alternativa,
senão detê-lo. Mas como lutar contra ele, se às mulheres não era
permitido falar na Câmara dos Lordes? Ali Gabriel poderia dizer o que
bem entendesse, e ela não poderia se defender... Ou poderia?

— Mary, escreva um bilhete e mande por um dos rapazes a


casa de Lorde Somerville? Diga-lhe que preciso... Não. Que desejo vê-lo

59
assim que puder. E manda um bilhete também a casa do senhor
Francis.

Mary enrugou o nariz ao ouvir o nome de seu leal, embora


um pouco questionável, sócio.

— Por que precisa desse homem? Ou dos dois, o que esta


planejando?

Lilith se serviu outra xícara de chá.

- O senhor Francis vai descobrir; onde andou e em que se


meteu, exatamente, o Conde de Angelwood nos últimos dez anos. Por
assim dizer, vai me ajudar a conhecer meu inimigo.

— E o Conde?

Lilith se recostou as almofadas do sofá e sorriu maliciosa.

— Lorde Somerville vai ajudar-me a conservar meus noventa


por cento.



— Isso é chantagem.

Lilith apoiou os cotovelos na escrivaninha e sorriu para o


homem avermelhado sentado em frente a ela.

60
— Que palavra feia, Lorde Somerville. O que estou fazendo é
para o bem de todos nós.

O comentário não pareceu impressionar Lorde Somerville,


que mais se parecia com um spaniel que tivera sua mãe há muitos
anos. Um cão excelente, embora nada esperto.

— Eu não tenho o desejo de contar a Lady Somerville...


Sobre as "sessões" com Lady Wyndham. Acha que Lorde Angelwood lhe
faria a mesma promessa?

Somerville encolheu os ombros estreitos. Agora que o


comparava a Gabriel, Lilith passaria a achar que todos os homens
tinham os ombros estreitos.

— Angelwood sempre foi um cavalheiro honrado, ao menos,


até partir para às colônias. Não vejo por que teria mudado.

Lilith arqueou uma sobrancelha em um gesto de sagacidade.

— Tão honrado que nem sequer propôs um pedido de


casamento a jovem que desonrou?

Isto fora um golpe baixo, tanto para ela como para Gabriel,
mas precisava que Lorde Somerville questionasse sua integridade. Lilith
já sabia que para a nobreza, Gabriel era quase perfeito.

— Permita-me facilitar o assunto, Sua Senhoria. - Se


facilitasse mais, acabaria fazendo a coisa ela mesma. — No que diz
respeito a mim, a única diversão que você e Lady Wyndham tiveram em
meus reservados foi uma amistosa partida de whist.

61
Um rubor revelador em Lorde Somerville sublinhou o
absurdo da situação.

— Mas será que Lorde Angelwood acreditará. Ele se mostra


contrário a todo tipo de jogo, de modo que se você e lady Wyndham não
puderem mais jogar whist aqui, aonde irão? Se Lorde Angelwood
conseguir fechar as casas de jogos, todos terão problemas, sem
mencionar que estabelecimentos como o Mallory's, onde se permite a
entrada de senhoras e aos cavalheiros ir e vir sem levantar suspeitas,
fecharem suas portas, e então...

Foi quando Lorde Somerville entendeu a mensagem.

Lilith viu em seus olhos de cachorrinho que tinha quase


passado da conta. A conversa estava lhe deixando um sabor amargo na
boca, ela seria capaz de empregar a chantagem para conseguir seus
objetivos, mas isso lhe seria repugnante. Agora, ao menos, se Gabriel
tentasse estragar-lhe a vida pela segunda vez, Somerville correria o
mesmo risco de perder algo, falava a sério quando disse a ele que seria
muito difícil encontrar outro lugar onde pudessem se ver.

O adultério lhe era desprezível, mas duas pessoas adultas


que estavam de acordo podiam fazer o que quisessem em seus
reservados, desde que fosse paga e não causasse escândalo. Sem
dúvida tinham seus motivos, quem sabe, estivessem apaixonados, e se
fosse assim, Lilith não se sentia no direito de julgar. Uma vez que as
partes corporais de um homem se satisfizessem, o amor não significava
nada. Ela aprendera essa lição da forma mais difícil.

Dirigiu-se ao Conde, que permanecera em silêncio.

— Então, estamos de acordo?

62
Somerville fez um gesto ansioso de assentimento, e Lilith
notou o quão jovem ele era, muito para ser infeliz no casamento e para
brincar com outra mulher. Gabriel e ela teriam acabado assim, se
estivessem casados? Teria se cansado dela assim de repente?... Com
um sorriso, tirou da gaveta na mesa várias folhas de papel.

— Bem. Tomei a liberdade de escrever seu discurso.


Estamos juntos nisto?

De novo, Somerville fez um gesto afirmativo.

— Tenho sua palavra de que esse assunto acabará aqui, só


entre nós?

O sorriso de Lilith se acentuou, e se sentiu quase tímida ao


ver que o rosto do Conde se avermelhava ainda mais.

— Lorde Somerville, sou a discrição em pessoa.

Com um sorriso, o jovem Conde pegou então os papéis que


lhe entregava e começou a ler. Lilith esteve a ponto de soltar um suspiro
de alívio. Se Gabriel Warren achava que a aruinaria tão facilmente uma
segunda vez, teria uma surpresa.

63
De onde diabos tinha saído Somerville? E o que era mais
importante ainda: como tinha conseguido? Com a mandíbula tensa,
Gabriel seguiu o jovem quando este saiu do Tribunal de Petições, uma
das antigas Câmaras onde se reuniam os Lordes. Somerville caminhava
ao encontro de alguém, deduziu isso ao observar como olhava ao redor
para assegurar-se de que não o seguiam. Que Somerville não notasse
estar sendo seguido, só comprovava sua pouca inteligência. Era uma
boa pessoa, amável até, mas não tinha inteligência ou astúcia para
escrever o discurso que acabava de pronunciar na Câmara dos Lordes.

O discurso de Gabriel fez mais de um aristocrata menear a


cabeça e olhar entediado o teto, mas ao menos lhe permitiram falar.
Alguns chegaram a demonstrar apoio a muitos de seus argumentos, em
particular quando se referiu ao número de nobres arruinados pelo jogo
nos últimos anos. E ao sentar-se, Gabriel teve a impressão de que por
fim tinha conquistado mais terreno. Foi então que Somerville se
levantou e pediu a palavra. A convicção firme de que não se deveria
ilegalizar os jogos, fez subir os ânimos na Câmara. Falou dos direitos
outorgados “Por Deus”, da liberdade de escolha, sobre arrecadação de
impostos e criação de empregos, nada realmente concreto, impostos
implicavam em corrupção e ainda mais ilegalidades, criação de
empregos... Nem havia leis para proteger os operários nas fábricas...
Aquele discurso inflamado... Se Somerville tivesse proposto depor ao rei,
metade dos Lordes presentes o teriam seguido. Gabriel só conhecia uma
pessoa tão apaixonada para escrever um discurso semelhante. Alguém
que perderia tudo se acabassem com o jogo: Lilith.

64
Naquele discurso quase ouvira a voz dela, quase lhe pareceu
ela estar ali, falando. Se alguém mais notou a súbita facilidade oratória
no jovem Lorde, estaria muito embebido em suas palavras para pensar
que outra pessoa colocara palavras em sua boca... Mas Gabriel notou. E
apostava. Ah sim, apostaria sua última libra de que aquele discurso
fora escrito por Lilith.

Sabia que ela encontraria um modo de combatê-lo, mas não


esperava que fosse tão rápida e eficaz. As palavras dela fizeram de seu
discurso algo aborrecido e sem brio, mesmo com toda a verdade e todos
os dados levantados. Entretanto, sabia que vários membros da câmara
começavam a concordar com seu ponto de vista, e não perderia seu
apoio, principalmente tendo uma mulher que talvez tivesse feito uma
fortuna de modo ilícito.

Suas suspeitas se confirmaram quando saiu à rua atrás de


Somerville. Chovia, e o jovem de cabelos claros abriu seu guarda-chuva
e se dirigiu a uma carruagem laqueada de preto, com uma parelha de
quatro cavalos castanhos. Não tinha o escudo de Somerville e era muito
elegante para ser um carro de aluguel. A portinhola se abriu, e, sob um
vistoso chapéu coberto de flores, Gabriel vislumbrou uma cabeleira
vermelha que lhe era bem familiar.

Então levantou a gola do sobretudo para se proteger do frio,


inclinou bem seu chapéu de castor para protegê-lo melhor da chuva e
cruzou os braços. Ali, em pé sob o arco que apenas o protegia da chuva,
devia ter um aspecto ridículo, mas não se importou em absoluto.
Esperaria até que Somerville saísse da carruagem, e teria uma conversa
esclarecedora com lady Lilith Mallory.

65
Dez minutos mais tarde continuava a esperar. Se Somerville
permanecesse mais tempo com ela... Por Deus, iria arrancá-lo dali pelo
pescoço.

Ainda pensando que teria de empregar a força, e imaginando


mil e uma coisas que estivesse acontendo dentro da carruagem, a
portinhola voltou a abrir e Somerville saiu. Nesse momento, Gabriel
abriu mão de toda tolerância. Não tinha dado nem três passos quando
Lilith se adiantou, não parecendo nada surpresa.

— Gabriel, meu querido! - Lilith praticamente gritou.

Não precisou de mais nada para chamar a atenção. Todos os


transeuntes e até o último lorde que saía da Câmara, se detiveram para
apreciar o espetáculo de Lilith inclinando o dorso para fora da
carruagem. Vestia uma casaquinho de pele dourada e um chapéu com a
aba voltada para cima, adornado com rosas amarelas, era uma visão
radiante naquela rua cinzenta e sombria. Elevando a voz, e com um
sorriso sedutor nos carnudos lábios, exclamou:

— Entre!

Um cavalheiro que estava atrás de Gabriel comentou:

— Não teria que me chamar duas vezes...

Gabriel não se voltou, estava muito ocupado tentando


decidir como a mataria. O estrangulamento parecia uma boa ideia. A
expressão presunçosa em Lilith diminuiu um pouco quando Gabriel se
dirigiu a ela com passos firmes, mas o deixou entrar na carruagem,
nem sequer protestou quando ele fechou a portinhola.

66
“Está brincando com fogo, Lil”. “Antes que pense sequer em
gritar, pode ter suas saias levantadas, mulher.” Pensou ressentido. Será
que gritaria para que parasse ou para que continuasse?... Diabos, o
ardor que sentia devia ser a cólera, tinha que ser. Nos últimos três dias,
pensara mais em sexo que nos últimos três anos. Desde que a perdeu
não vinha sendo um monge, mas ao encontrá-la novamente, sentiu-se
como se tivesse sido um.

— O que a traz aqui, minha cara Lilith?

Ela fez uma careta que não lhe assentava bem.

— Hora...Vamos, Gabriel, não há por que zangar-se tanto


assim.

Ele franziu o cenho ao olhar a curva sensual coberta de


carmim em seu lábio inferior, novamente usava cosméticos.

— Parece uma rameira.

“E você um bode Angelwood.” - Lilith pensou, durante um


segundo desaparecendo sua aparência fria e sofisticada e só restando a
jovem vulnerável que se apaixonou. Foi como um murro no estômago.
Mas a máscara voltou ao lugar enquanto ela alisava a saia.

— Ainda não sabia, meu caro? Sou uma rameira, graças a


você.

"Cheque mate." - Pensou Gabriel agarrando-lhe a mão, e


durante uma fração de segundo, fora tentado a levar aquela mão
delicada a própria virilha, mas ela se soltou de seus dedos com um
puxão antes que se decidisse. Com um sabor amargo na boca, ele lhe
perguntou:

67
— Então é assim que está dominando Somerville? É a puta
dele?

Recostada nas almofadas da carruagem, Lilith levantou a


cortina o suficiente para ver a chuva, e logo a deixou cair. Quando
dirigiu seu olhar a ele outra vez, não se incomodou em sorrir.

— Não é que seja assunto seu, mas infelizmente não, Lorde


Somerville não é meu amante. Em certa ocasião já me propôs isso, mas
isso foi há muito tempo. É o que queria ouvir?

Por Deus. Inferno, deveria tê-lo arrancado da carruagem pelo


pescoço.

— Então está defendendo sua causa na Câmara dos Lordes


para se meter em sua cama?

Mas, por que estavam discutindo? Com quem Lilith dividia a


cama, não era assunto dele, embora o fato o irritasse como uma gravata
apertada.

— De modo algum. - Ela parecia estar de acordo em que era


um absurdo. — Lorde Somerville me ajuda porque não quer que eu
perca meu clube. Mas mudemos de assunto, por favor.

Gabriel encolheu os ombros. Qualquer coisa para não


imaginá-la na cama com outro.

— Queria convidá-lo para um jantar esta noite, Gabriel.

Talvez não tivesse ouvido bem.

68
— Como?

Ela repetiu, desta vez mais devagar:

— Convidei-o para jantar comigo esta noite.

Ver aqueles lábios carnudos soletrando cada palavra, fez a


besta que carregava entre as pernas levantasse a cabeça, literalmente.
O que estaria planejando.

— Jantar? Em seu clube?

Ela fez um gesto afirmativo.

— Para quê?

Agora Lilith não parecia tão segura de si.

— Acho que temos muito a conversar.

Tomaria o comando. Estendeu as pernas e uniu os dedos


sobre seu abdômen.

— O que, por exemplo?

Enquanto ele se acomodava, ela franziu o cenho.

— Bem... Por exemplo, como um homem de sua posição tem


o corpo de um estivador?

Gabriel prendeu a respiração ao ouvir a pergunta, mas


manteve uma expressão de cautela.

69
— Minha cara Lilith, esteve admirando meu corpo? - Lilith,
maldita seja, nem ao menos corou, nem sequer ao pousar o olhar em
sua virilha, que se esticou ainda mais ao ver-se submetida àquele
exame.

— Suas palavras me parecem um pouco hipócritas,


principalmente vindo de um homem que há duas noites atrás colocou a
língua na minha boca, não lhe parece?

Gabriel sentiu o calor subindo a cabeça, e não era vergonha.

— Uma boca deliciosa, diga-se de passagem.

Aquilo sim fez Lilith reagir, seu desconforto era quase


evidente. Inspirou fundo e o confrontou com um olhar impaciente.

— Então, virá ou não jantar comigo?

Se a pressionasse mais talvez retirasse o convite, e


concordando ou não no que se referisse ao jogo ou qual dos dois causou
mais estragos há dez anos, Gabriel queria passar alguns momentos com
ela... Mesmo sendo uma armadilha. Além disso, talvez pudesse
bisbilhotar um pouco mais, e se ocasiões como aquela se repetissem
mais, seu coração talvez deixasse de bater enlouquecido.

— Será uma honra jantar com você.

Ela sorriu com evidente alívio.

— Bem. Que tal as oito?

— Lá estarei.

70
Gabriel se levantou, abriu a portinhola da carruagem e saiu
à rua. Então voltou a colocar a cabeça dentro.

— Ah! E, Lilith...

— Sim?

— Faça-me o favor de parar de usar essas coisas em seu


rosto.



— Este não, traga-me o outro.

Clifford, o valete de quarto paciente que servia a Gabriel,


levou os olhos escuros ao teto, voltou ao closet e pegou outro fraque
azul escuro de lã superfina para o patrão. Enquanto passava os braços
com certa dificuldade nas mangas ajustadas, Gabriel comentou:

— O que lhe parece, este veste melhor. - Deu um puxão nos


punhos e se olhou no espelho. — E então?

— Uma escolha excelente, meu senhor.

No tom de voz usado pelo valete não havia inflexão alguma.


Gabriel olhou carrancudo a seu reflexo, e este lhe devolveu a expressão.

— Não sei. Talvez devesse usar o bordô.

71
Clifford pigarreou enquanto Gabriel começava a tirar o
fraque azul pela terceira vez.

— Não quero parecer impertinente, meu senhor, mas são


sete e meia.

Maldição! Chegaria tarde, e tudo pela vaidade. Não era por


querer impressionar Lilith, só desejava sair de casa com o melhor
aspecto possível... Exato. Isso mesmo.

— Está certo de que estou bem?

Clifford, prudentemente, assentiu com a cabeça.

— Sim, senhor. A dama não resistirá.

Gabriel soltou um resmungo. Seu valete entendia de roupas,


mas não sabia nada sobre as mulheres, uma gravata com nó perfeito e
um fraque de bom caimento, jamais enganariam Lilith. Contudo, já não
tinha mais tempo para trocar-se outra vez. À esta hora, arriscava-se a
chegar atrasado se houvesse um pouco de tráfego. Gabriel vivia em
Mayfair, e quase todas as carruagens que saíam daquele bairro se
dirigiam a mesma direção: St. James's Street e King Street, uma
avenida movimentada onde os clubes predominavam, entre eles e o de
Lilith.

Bem, o Mallory's não se localizava na St. James's, junto aos


clássicos baluartes masculinos como o White's e Brook's. Em vez disso,
Lilith tivera a audácia de abri-lo na King Street, muito próximo ao
Almack's: um lugar que não seria permitida a entrada de uma mulher
como ela. Sua primeira valsa fora no Almack's.

72
Uma vez mais, Gabriel conferiu seu aspecto. Há muito não
ficava tão nervoso, desde que fizera a corte a Lilith... Deus não devia ter
ilusões de que ela lhe prepararia algo tão pessoal. Talvez quisesse
seduzi-lo, amor não entraria na equação. E, graças às escapadas
incontáveis de sua própria mãe, Gabriel não queria algo assim. Não
sabia se realmente Lilith ainda sentia algo por ele, fisicamente nenhum
dos dois era indiferente ao outro. E, se não perdesse a cabeça, Gabriel
poderia tirar proveito.

Ao dirigir-se a porta perguntou.

— Comprou as flores?

Clifford, que caminhava logo atrás dele, respondeu:

— Sim, meu senhor. Estão no rol de entrada.

Ali, com a sobrecasaca, o chapéu e luvas, também o


esperava Robinson. O mordomo parecia uma torre axadrezada no chão
de mármore, e tinha um porte tão solene como se Gabriel fosse se
reunir com o carrasco.

Deus, parecia ser verdade: voltar a ver Lilith, vê-la desafiá-lo,


o fazia sentir-se mais vivo que nunca. Mesmo sendo tão implacável e
astuta quanto ele. Não queria prejudicá-la... Ou ao menos não queria
causar tanto dano quanto tinha causado a ele. E além disso, deixando
de lado os sentimentos pessoais, não podia esquecer da acusação de
Frederick Foster. Tampouco esqueceria seu pai, e o que lhe custou o
jogo... O que custou a ele mesmo.

Com seu tom brusco habitual, o mordomo disse:

— Tenha um boa noite, meu senhor.

73
Gabriel sorriu.

— Na verdade, duvido que vá ser assim, Robinson, mas


obrigado assim mesmo.

Enquanto saía da casa e descia sem pressa os degraus até


onde aguardava a carruagem, perguntou-se se seria capaz de deixar de
lado seus sentimentos e lidar com Lilith. Uma semana antes, quando
Blaine o procurou e aceitou esclarecer a situação de Frederick, ainda
ignorava quem era o proprietário do Mallory's. Talvez Lilith não tivesse
conhecimento de que algum empregado estivesse trapaceando, e se
fosse esse o caso, não só deveria um favor a Frederick em sua luta
contra o jogo, como também a Lilith.

O que aconteceria a ela se conseguisse convencer os Lordes


a proibir o jogo?... Ah, claro que ela garantiria que isso nunca
acontecesse, e em alguns dias ele também acreditava nisso, mas eram
seus princípios, e não estava disposto a traí-los ou sufocá-los. Talvez ela
deixasse a Inglaterra se o clube fosse fechado?... A ideia de voltar a
perdê-la era dolorosa. Isso era ridículo. Lilith só tinha poder sobre ele
porque ele não sabia o que acontecera de fato há dez anos atrás. Para
evitar tensões teriam de ser sinceros um com o outro, depois
continuariam a levar suas vidas: ele resolveria essa questão pendente e
tudo estaria acertado.

Isso mesmo. Só teria de perguntar o que tinha acontecido e o


por que de ter fugido dele. Se tivesse ficado, teria se casado com ela, e
sua reputação teria permanecido relativamente intocável. Queria casar
com ela, até mesmo escolhera um anel para ela, que ainda conservava...
Durante esses dez anos teria sido sua condessa em vez de uma...
Uma... Uma mulher de negócios independente, que só prestava contas a
si mesma? Uma mulher rica e poderosa que tinha nas mão as fortunas

74
e reputações daqueles que lhe deram as costas? Se estivessem casados,
teria lhe dado uma vida melhor, mais realizada e feliz? Provavelmente
não, mas a dele seria plena.

Provavelmente já teriam uma casa cheia de crianças,


passariam quase todo o tempo no campo ou visitando os amigos, como
Brave, Rachel e o filho. Um filho que ele ainda não tinha visto, porque
não tivera coragem de ir a Yorkshire. Alegrava-se por seu amigo, mas
não conseguiria testemunhar tanto amor e felicidade, algo que ele
jamais teria. Algo que deveria ter e continuava a desejar muitíssimo... E
sua dor crescia mais a cada vez que pensava em ser pai, somente Lilith
podia ser imaginada como sendo a mãe de seus filhos. Mas precisava
afastar aqueles pensamentos, olhou pela janela da carruagem. Não
havia muito tráfego, e antes que se desse conta já estavam nas
proximidades do Mallory's.

Um indivíduo corpulento e de aspecto agradável,


apresentando-se como Latimer, recebeu-o a porta. Era uma espécie de
faz tudo para Lilith, mordomo, guarda-costas, gerente... Parecia bem
amável, mas Gabriel tinha a ligeira impressão de que não hesitaria em
lhe separar a cabeça do tronco se fosse alguma ameaça para Lilith. E
ele não saberia dizer o que o incomodava mais, ser ou não tratado como
se fosse uma ameaça.

Seguindo a silhueta corpulenta de Latimer, cruzou o


suntuoso vestíbulo e parou um instante para admirar a estátua de
Vênus que havia no centro. Lilith teria servido de modelo? Se assim
fosse, teria posado nua. Sentiu um súbito desejo de arrebentar o
escultor, embora os próprios dedos ardessem de desejos querendo tocar
a coxa da Vênus. Logo saíram do vestíbulo por uma porta à esquerda e
seguiram um corredor. Chegaram à última porta, Latimer bateu,
inclinou-se e se foi, não antes de lhe lançar um olhar cordial, mas
também de advertência.

75
A porta se abriu e deixou ver um salão espaçoso e
acolhedor, decorado em creme, bege e dourado. Lilith, se apresentava
em um belo vestido de cetim dourado. Seu único adorno era um par de
brincos de brilhantes pendurados em seus lóbulos. À luz das arandelas
a gás se refletiam em seus cabelos vermelhos, presos sobre a cabeça,
deixando escapar uma mecha longa e espessa balançando sobre um
dos ombros. Mas não foi a visão dos cabelos que o excitou, assim como
tampouco seu decote expondo uma generosa porção de ombros e seios
opulentos, embora isso, sem dúvida, fizesse despertar seus genitais.
Mas foi seu rosto, limpo e sem nenhum artifício além do que a própria
natureza lhe dera: olhos límpidos, pele rosada e lábios, de um rosa
incrivelmente voluptuoso.

Tal como pedira a ela. Simplicidade, algo tão estimulante


que teve dificuldades para não mandar tudo ao inferno e possuí-la ali
mesmo.

E então, quando já se sentia sufocar por guardar um silêncio


tão tolo, Lilith falou com voz suave como mel, quase ronronante.

— Olá, Gabriel, não gostaria de entrar?

— Por que tenho a sensação de que uma vez ai dentro,


estarei perdido?

Lilith sentiu a boca secar quando Gabriel fechou a porta e


cruzou devagar a sala em direção a ela. Ao andar, seu corpo tenso e alto
revelando com mais clareza sua expressão marcante, olhos que
reluziam como brilhantes sobre as sobrancelhas arqueadas.

— Ah, Gabriel, pareço assim tão perigosa? - Graças a Deus


parecia mais segura do que se sentia na verdade.

76
Ele lhe estendeu um buquê de flores e respondeu:

— De fato. Uma mulher tão bela quanto você é


extremamente perigosa para um homem indefeso.

Lilith não deixou seu elogio afetá-la, mas não pôde evitar que
um calafrio lhe subisse pela coluna ao sentir-se envolver pelo timbre
profundo e melodioso de sua voz. Nem sequer o olhou nos olhos quando
aceitou as flores, temia mostrar o quanto a tinha emocionado.

— Obrigada.

Levou as flores ao peito e ao olhá-las lhe partiu o coração.

— Lírios...

Ouviu sua própria voz, era pouco mais que um murmúrio


rouco. Maldito seja! Não iria chorar agora. Não... Vou... Chorar...

— Pensei que você gostaria.

Então o olhou, olhou-o realmente. E atrás da máscara


impassível viu em seus olhos uma ponta de vulnerabilidade. Talvez
aquelas flores delicadas e vistosas não fossem um aviso doloroso,
somente um desejo sincero de agradá-la. Lilith queria acreditar. Mas ele
lhe dissera às claras que faria todo o possível para acabar com seu
negócio? Deus! Será que estaria tentando amansá-la assim, mas ela se
encarregaria de dobrá-lo antes. Qualquer que fossem seus motivos
agradeceu-lhe, além disso, não precisaria mentir: os lírios eram
lindíssimos.

77
A mesa já estava preparada. Em meio as louças de Bruxelas
se elevava um lindo vaso cheio de rosas, rodeado de peças de porcelana
e de prata. Lilith tirou as rosas e as atirou sem muita cerimônia à
chaminé, em uma oferenda que avivou o fogo. Enquanto punha os lírios
no vaso, o ar se encheu com o cheiro de rosas queimadas.

— Creio que essas não vieram de outro admirador.

Pelo tom, ela entendeu que o comentário pretendia ser uma


piada, mas na voz havia uma nota séria. Gabriel parecia ter certo
interesse perverso em sua vida sentimental. Talvez pensasse que só
porque fora tola o bastante para se entregar a ele aos dezessete anos
não teria aprendido com o erro? Seu corpo não era algo para ser
entregue alegremente e a qualquer um, e ele deveria saber disso.

— Não tenho admiradores. - Declarou, com o olhar fixo no


seu. — Só cavalheiros que acreditam que uma mulher como eu deveria
agradecer-lhes pelas insinuações maldosas.

O rosto dele se escureceu e adotou a expressão de um


homem possessivo.

"Ah... Gabe, você não tem direitos. Não tem nenhum direito
sobre mim."

— Se alguém a insultou...

Com um gesto de mão, Lilith o fez calar.

— Ninguém o fez. Acha que vivi estes dez anos por pura
casualidade? Sei cuidar de mim e lidarei com qualquer coisa que
apareça, Gabriel. Não duvide.

78
Ele assentiu com uma rígida sacudida de cabeça. Estava
zangado e não sabia se era por ela, embora agradasse muito a Lilith que
estivesse ciumento. Depois de passar tanto tempo sem ter alguém que
se importasse com ela, era reconfortante.

Lilith levantou a garrafa do balde de gelo e perguntou:

— Quer um pouco de vinho? É um desses brancos alemães


doces que você tanto gostava.

O lábio carnudo inferior de Gabriel se curvou um pouco.

— Você é quem sempre gostou de vinhos doces, não eu.

Ela o olhou, fitou a garrafa e logo voltou a olhá-lo. Não podia


estar enganada...

— Mas... Você dizia que gostava.

Gabriel riu.

“Ah, quanta falta lhe fez sua risada!” Pensou Lilith saudosa.

— Disse-lhe isso porque você gostava. E certamente diria


que adoraria caminhar sobre brasas se acreditasse que isso a agradaria
também.

E realmente o teria feito. Com o passar dos anos Lilith


chegara a pensar que seu carinho só fora mais que um ardil para levá-
la à cama, mas agora... Talvez a tivesse amado tanto quanto ela a ele? E
se foi o que teria acontecido? O que houve...? Não! Chega, passara
tempo demais chorando e se perguntando se foi culpa dela. Acreditava
ter deixado essa dor no passado. Ela nunca fora culpada. Não pôde

79
enfrentar seus pais, e ainda mais sem o apoio de Gabriel, ele não
estivera presente quando seus pais a chamaram de rameira e a jogaram
no navio rumo a Itália.

— Ainda gosto de vinhos doces.

O velho rancor crescia em seu interior e tornou seu tom um


pouco mais frio do que pretendia. O sorriso de Gabriel morreu aos
poucos.

— Então eu adoraria tomar um pouco.

Com muita dificuldade, Lilith se conteve e não lhe atirou a


garrafa na cabeça. Se eram inimigos, como ele se mostrava vulnerável
desse modo?... Estúpida: tudo que ele dizia era mentira. Só tentava
enganá-la para vencer. Pois bem, estavam em uma rua de mão dupla.
Servia duas taças e pôs o que esperava ser um sorriso sedutor nos
lábios. Então, com um rebolado de quadris, levou as duas taças até o
sofá. De lado, viu que Gabriel continuava junto à mesa.

— Meu caro, não se senta aqui comigo?

Não teve que repetir.

Ele veio com a graça natural de quem se sente muito


contente na própria pele, uma característica bem masculina, a maior
parte das mulheres costumava ficar ocupada demais para relaxar:
procurar não tropeçar na barra das saias, se está bem penteada... Ele
se tornara um homem seguro e muito bonito. Do jovem que era todo
braços e pernas. E que presunçoso!... Ah, e se achava um partido de
primeira. Sempre ria dela enquanto lhe mostrava fugazmente sua força
e agilidade, como se acreditasse que sua simples presença a levaria a
loucura do desejo. E tinha que admitir, às vezes fora exatamente assim.

80
Com dezessete anos, ela não conhecera ninguém mais bonito e atraente
do que Gabriel Warren. E ainda hoje não encontrara.

Gabriel pegou a taça de vinho que lhe oferecia e se sentou ao


seu lado. Ah... Não esperava que se sentasse tão perto. O sofá era muito
estreito para acomodar os dois com conforto. Os quadris de Lilith
estavam muito perto, e o mesmo acontecia com os ombros dele, perto o
bastante para que ela pudesse sentir-lhe o perfume: um odor
penetrante, e também doce e quente, o cheiro de Gabe.

Nesse momento ele se voltou para olhá-la.

— Por que me convidou, Lil?

Ela abriu a boca para falar, mas a interrompeu.

— Ao menos seja sincera, esperava fazer-me mudar de ideia


a respeito do jogo?

— Sim. - Admitiu Lilith. — Assim como você pensou em me


deixar sensibilizada com flores.

Gabriel enrugou o cenho.

— Trouxe-lhe flores porque desejei. Você não conseguiria me


fazer mudar de opinião, Lil. E você não o fará.

Por alguma razão, aquelas palavras lhe fizeram mal. Não foi
importante que ele dissesse que ninguém o faria mudar de opinião, o
importante era ter afirmado que ela não poderia. Então Lilith deixou a
taça na mesinha ao lado e se levantou.

— Por que está tão decidido a arruinar-me pela segunda vez?

81
Gabriel se levantou também e a fitou surpreso, como se ela
falasse um idioma que não compreendia.

— Arruiná-la? Pensa então que quero acabar com o jogo só


para prejudicá-la?

— Acabar com o jogo será minha ruína, Gabriel. O Mallory's


é a única coisa que tenho. Se for obrigada a fechar as portas, estarei
arruinada.

Ela viu em seus olhos que não gostou de assumir aquela


responsabilidade.

— Eu não quero arruinar você.

— Já o fez uma vez.

— Não pretendia fazê-lo.

— Mas fez.

— Você me abandonou.

Abandoná-lo? Achava que o tinha abandonado?

— Eu não o abandonei! - Lilith declarou convicta o


cutucando com o dedo no peito, estava zangada. — Você não procurou
meus pais com um pedido de casamento, e meus pais me mandaram
para longe antes que o escândalo os atingisse.

Gabriel esfregou o lugar onde o tinha cutucado.

82
— Meu pai tinha acabado de morrer!

As mãos de Lilith se fecharam em punhos e se aproximou


dele.

— Disse que estava apaixonado por mim, Gabe, e nem


sequer me informou que seu pai tinha morrido. Soube por um obituário
de jornal...

Aquilo doera muito. A culpa suavizou os traços de Gabriel.

— Sinto muito. Sei o quanto gostava dele.

Lilith sentiu uma dolorosa pressão na garganta, e à força


continha as lágrimas que queriam sair. Não lhe daria o prazer de vê-la
chorar.

— O amava mais que a meu próprio pai, e nem sequer me


permitiram assistir seu funeral.

Não se incomodou de acrescentar que visitava a tumba do


falecido conde todas as semanas, isso não era assunto dele. Gabriel lhe
pôs as mãos nos ombros.

— Sinto muito.

E ela acreditou, embora não soube a que se referia, talvez,


como ela, sentisse por toda a situação. De novo, as lágrimas
ameaçaram brotar, a visão se tornou imprecisa e sua voz estava
embargada.

— Sentir já não importa mais. É muito tarde.

83
Então ele a aproximou de si de um puxão, tão rápido que ela
não teve oportunidade de resistir, e murmurou.

— Nunca é muito tarde.

Cobriu os lábios dela com os seus. Lilith poderia ter


resistido. As mãos de Gabriel lhe rodearam o rosto, podia tentar se
debater e se afastar, podia bater-lhe para expurgar toda a cólera e dor
que ainda abrigava no coração... Mas não resistiu. Firmes e
obstinadamente, os lábios dele se moveram sobre os seus e os
separaram. Que doce. Em sua língua ficara o sabor do vinho, e Lilith
ajustou suas carícias com as dele enquanto seu coração batendo como
um louco, ameaçava sair-lhe do peito.

As mãos dela subiram e deslizaram pelo torso robusto e


quente, enquanto a lã azul do fraque fazia cócegas nas palmas. Seus
dedos desejavam entrar devagar em seu colete, ir além da camisa e
tocar os pêlos macios e escuros em seu peito. Ao fazerem amor zombara
dele por ser peludo, como se ela soubesse o que era normal ou não. Mas
em vez disso, agarrou-o pelas lapelas do fraque. Se o tocasse, não seria
o suficiente, não ficaria satisfeita até ter todo seu corpo magnífico
totalmente nu, para tocar e se refestelar. E se fizessem amor, não teria
como se defender quando ele tentasse tirar-lhe o clube. Sabia que
mesmo se entregando a ele, ainda sim, tentaria tirá-lo dela.

Subitamente, Lilith afastou-se de sua boca.

— Não... Não podemos fazer isto.

Ele a mantinha agarrada pela cabeça e murmurou:

— Por Deus, mulher. Não consegue ficar calada?

84
E baixou a cabeça novamente. Seria tão fácil esquecer seu
sofrimento à força de beijos. Tão fácil. Não aprendera nada sobre os
homens, e, sobretudo, de Gabriel? Talvez não pretendesse desonrá-la,
mas o fez. E nunca expiou essa culpa.

— Não!

Empurrou-o com toda a força e, ao soltar-se dele, cambaleou


para trás. Então Lilith pousou a mão sobre o coração, que batia
desenfreado, e lhe perguntou:

— Como pode fazer isto? Como pode me beijar como se todo


o tempo não se importou comigo, como se não existisse?

Com um sorriso compungido, Gabriel respondeu:

— Acho que muito facilmente.

— Assim como acha fácil destruir-me a vida, Sua Senhoria?

Seu tom gélido fez ele estremecer.

— Lilith, já disse que nunca desejei prejudicá-la.

— Nunca, mas agora o quer. Ou devo entender por seus atos


que mudou de ideia a respeito de fechar meu clube?

Gabriel cruzou de braços, foi um gesto defensivo que disse


mais do que qualquer palavra.

— Parece que já sabe a resposta, Lilith. Não é só seu clube.


Meu propósito não é fechar somente o Mallory's.

85
— E com isso devo me sentir melhor? Devo me render e vê-lo
arrancar-me a única coisa que tenho?

Deus, não poderia dizer mais nada sem desejar chorar?

— Não faça isso, Gabe, não se pode reacender o que houve


entre nós. Não queira ou espere isso.

— Lily... - Ele a interrompeu.

— Esta tarde você me chamou de rameira, lembra-se, agora


me quer? O que pretende?

Gabriel se limitou a olhá-la fixamente, um músculo trincou-


lhe a mandíbula, como só fazem os homens. Estava convencido de que
seus atos eram certos, e não entendia que não fossem. O que esperava
Lilith? Ele sempre foi ao extremo, branco ou preto, e ela passou uma
década descobrindo as nuanças do cinza.

— Despreza-me tanto assim?

Lilith quase engasgou, e se odiou por isso. A expressão de


Gabriel se alterou, como uma nuvem anunciando uma tormenta.

— Minha determinação em destruir o jogo nada tem haver


com você! Ou conosco!

Lilith queria gritar.

-— Então, por que quer tanto isso?

Era estranho vê-lo ceder. Os ombros desabaram, e de


repente pareceu muito cansado.

86
— Não posso.

Lilith se irritou. Por que esperava sinceridade?

— Não pode ou não quer explicar?

Gabriel passou a mão pelos cabelos enquanto enfrentava seu


olhar.

— E isso importa?

— Não.

Lilith lhe deu as costas e atravessou o salão, rígida como um


poste. Sentia frio, e estava enjoada. De um puxão, abriu a porta e se
voltou para olhá-lo. Ignorou sua expressão aflita. Era de causar pena,
e... Por Deus não cederia.

— Obrigado por vir, lorde Angelwood, mas parece que fiquei


um pouco indisposta. Por favor, queira me desculpar.

Que solene parecia, tão friamente cortês. Era o tom usado


por sua mãe, muito apropriado no momento. Ele avançou um passo na
direção dela.

— Lily...

— Já é tarde. - Disse entre dentes.

Gabriel não insistiu, limitou-se a assentir e a dirigir-se a


porta. Parou na soleira.

87
— Esse assunto não termina aqui, Lilith. Ainda nos
encontraremos.

Nunca o odiou tanto como naquele instante.

— Nosso próximo encontro, Lorde Angelwood, será no


Inferno.

88
Ela lhe batera a porta na cara.

Irritado, confuso e excitado sexualmente, Gabriel ficou


olhando em silêncio a porta pesada de carvalho que o separava da
cólera de Lilith. Não a culpava por estar zangada. Roubara um beijo
como se tivesse direito, como se fossem amantes, e não adversários.
Questionou-o sobre seus motivos, e ele não quis, ou melhor, não pôde
dizer-lhe. Ela se mostrara vulnerável diante dele, e ele se negou a fazer
o mesmo. Só precisaria dizer a ela que seu pai era incapaz de viver a
vida sem apostar. Contar-lhe sobre sua morte e tudo o que houve
depois: como teve de controlar os atos melodramáticos de sua mãe,
como recaiu sobre ele a responsabilidade de voltar a encher os cofres da
família e como foi obrigado a refazer uma fortuna em segredo para que
ninguém soubesse da verdade.

Mas não pôde, e não queria fazê-lo, não porque acreditasse


que ela usaria isso contra ele, mas por não querer revelar a verdade. Ela
amara seus pais e ele muito mais. Eram pessoas amáveis, encantadoras
apesar da irresponsabilidade latente. Já deveria estar a par das
aventuras amorosas de sua mãe e do amor a jogatina de seu pai, não
precisava saber o resto. Gabriel quisera dar a seu pai mais dignidade na
morte do que tivera em vida, e manter o escândalo longe da família fora
seu objetivo principal. Até sua mãe percebeu que isso lhe era
importante, após a morte de seu pai, não voltou a ter mais amantes e
três anos depois morreu também, sem ter tirado o luto.

89
Nem por todo o ouro gostaria de voltar a ter vinte e um anos
se tivesse de passar por aquilo outra vez. Era muito jovem para saber os
meandros e armadilhas que o destino lançava, gostaria que soubesse o
que sabia agora. Por exemplo: Lilith não o abandonou por própria
vontade, como naquele dia o pai dela deu a entender. Hoje Gabriel vira
a verdade em seus olhos, e estava seguro de que esse tipo de dor não
podia se fingir.

Agora, como se um véu tivesse sido levantado, tudo parecera


lógico. A princípio não acreditou no pai de Lilith, mas ao não ter
noticias dela começou a suspeitar que ele tinha razão. Sentira-se tão
triste pela morte do próprio pai que foi muito fácil acreditar que Lilith o
tinha abandonado também. Que estúpido, idiota... Embora não lhe
tivesse contado por que não lhe escreveu, o resultado seria o mesmo.
Com o tempo saberia a verdade.

Com um suspiro, Gabriel se afastou da porta e caminhou


para o corredor que levava de volta ao clube. De repente se
sobressaltou: uma mulher saiu correndo daquele corredor. Era lady
Wyndham, cujo marido ele bem conhecia. Não o viu ou, se o viu, não o
cumprimentou, limitou-se a cruzar correndo o tapete até chegar a uma
porta que havia no lado oposto do vestíbulo onde se encontrava Gabriel.

Quando a dama fechou a porta atrás de si, ele dobrou a


esquina com um gesto de desaprovação. A simples ideia de admitir
mulheres em um lugar como aquele lhe parecia de mal gosto, tão
estranho e alarmante como se estivessem na Universidade de Oxford. E
entretanto, ainda lhe parecia ouvir a voz de sua mãe insistindo em que
a mulher devia ter os mesmos direitos que o homem. Sua mãe lia muito
Wollstonecraft, uma autora feminista quando lhe convinha, porque, se
fosse preciso, também representava com extraordinário talento o papel
de tola desamparada. Além disso, entregava-se a seus vícios com tanta

90
liberdade quanto seu pai, salvo que, no seu caso, era viciada em
rapazes bem jovens.

— Cuidado!

Ao ouvir o grito voltou ao presente, livrou-se de se chocar


com outro cavalheiro. Este levantou a cabeça loira, e em seu rosto
pintou-se o horror ao ver com quem quase derrubara.

— A... Angelwood.

— Somerville.

O mais baixo se remexeu incomodado.

— Você é a última pessoa que esperava ver aqui.

Gabriel manteve seu tom de voz tão amável quanto sua


expressão.

— Sim, suponho que sim...

Que fazia Somerville naquele lugar? Iria ao encontro de Lilith


sem saber que ela tinha planos com ele? Ou o convite fora uma
armadilha? Acaso Lilith se vestira daquela maneira com o propósito de
atraí-lo, e Somerville irrompesse no momento inoportuno e o pilhasse,
literalmente, com as calças abaixadas? Planejava fazer chantagem, e
sua cólera mal controlada tinha arruinado a armadilha?

Somerville conseguiu esboçar um sorriso nervoso.

— Não está aborrecido com o que se passou na Câmara, não


é? São coisas da política.

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Gabriel passou por cima das coisas de política, mas desejava
amassar a cabeça de Somerville contra os painéis da parede.

— De certo. - Respondeu com os dentes apertados. — Tudo


certo. Bem, se me perdoa...

Foi produto de sua imaginação ou Somerville soltou um


suspiro de alívio?

— Ah sim, certamente. Tenha uma boa noite, Angelwood.

Gabriel torceu os lábios.

— É o que pretendo, obrigado.

Somerville não se moveu, esperando que se pusesse a


caminho primeiro. Amaldiçoando baixinho, avançou dando longas
passadas para a entrada do clube, tão tentado a olhar para trás como
devia ter estado Orfeu saindo do Inferno. Por fim, seguro de que
Somerville já não o olhava pelas costas, e sem poder aguentar-se mais,
voltou-se. Estava certo da direção que o jovem Conde tomaria, e por
isso franziu o cenho quando o viu girar à direita em vez de à esquerda.
Mas o idiota não sabia em que salão Lilith estaria? Então, com rapidez e
em silêncio, Gabriel voltou e, junto à parede, olhou a direção que
Somerville tomava.

O que diziam sobre só se vê aquilo que não se quer ver? Ou


seria sobre os que se ouvia às escondidas...? Lady Wyndham abriu a
porta para Lorde Somerville com um sorriso tão doce e encantador que
Gabriel se sentiu imediatamente culpado. E, embora parecesse difícil, a
expressão de Somerville era ainda mais panaca... Estavam
apaixonados... A ideia o acertou como uma bolada na cabeça. Os dois

92
eram casados com outras pessoas, boas pessoas, e estavam
apaixonados. Fora isso que Somerville queria esconder, e foi assim que
Lilith conseguiu a ajuda do conde para sua campanha contra ele. Que
ela não tivesse tomado Somerville como amante o encheu de uma
felicidade que o envergonhou, não, não eram amantes, mas sua relação
tinha conotações muito mais escusas. Lilith estaria chantageando
Somerville ou tentando obter alguma vantagem? Além disso, uma
mulher capaz de chantagear um homem apaixonado, também seria
capaz de surrupiar os rendimentos de um jovem?

Lilith disse que o único modo de descobrir o tipo de


estabelecimento que tinha seria jogando, embora Gabriel ainda não
estivesse preparado para tomar medidas tão drásticas, tampouco a
condenaria. Um pouco de extorsão não tornaria alguém imoral, de fato,
ele mesmo se rebaixou a empregar tais táticas um par de vezes. Não. Se
queria descobrir a verdade teria de falar com os que jogavam nas
mesas, embora tivesse de buscá-las em outro lugar. Quando começasse
a fazer perguntas ali, ela saberia de imediato, e só Deus sabia que
informações sobre outros membros da nobreza estariam em seu poder.
Certamente compraria muito silêncio com elas.

Então começaria pelo White's. Gabriel girou sobre seus


calcanhares e se encaminhou outra vez para a saída, com uma decisão
que crescia a cada passada. Nesse momento, à altura de seu ombro
direito, soou um estrépito, amortecido, de louças quebradas. Lilith. O
que tinha atirado? Um prato? Uma taça? Com ira ou angústia? Que
importância tinha? De qualquer maneira, o culpado seria ele.

Apertou os dentes e agarrou o trinco. E desta vez,


diferentemente de Orfeu, não olhou para trás.

93


— Angelwood! Como diabos você está, homem?

A palmada nas costas o deixou sem fôlego. Gabriel a recebeu


com uma tosse e uma careta.

— Estava estupendamente bem antes de ter minha coluna


partida, Wyndham. "Por certo, as suas costas, Somerville está montando
sua mulher."

Enquanto sua risada estrondosa reverberava por todo o


White's, o Visconde fez um gesto para que se sentassem a uma mesa
próxima.

— Sente-se, homem, sente-se! Há muito tempo não o via. Por


Deus está com bom aspecto.

Gabriel se sentou e observou o amigo, enquanto Wyndham,


Wynnie para os próximos, pedia uma garrafa de clarete. Não conseguia
entender, Wyndham era um homem bem apessoado, não tanto quanto
Byron, mas sua amabilidade o compensava com acréscimo. Era afável,
rico e muito divertido, todo mundo gostava de Wynnie... Por que, então,
sua mulher tinha um amante? E por que com alguém tão mentecapto
como Somerville?

Com o rosto tingido pela bebida e risadas, Wynnie deu com o


punho sobre a mesa, tão forte que a fez tremer.

94
— Malditos sejam meus olhos, que maravilha vê-lo! Acreditei
que nunca voltaria do outro lado do atoleiro. Que diabos andou fazendo
por lá?

“Se lhe contasse não acreditaria, a menos que acrescentasse


mais explicações que não estou disposto a dar.” Pensou um pouco
irritado.

— Visitava um velho amigo...

Não era toda a verdade, mas tampouco uma mentira, com os


anos ele e Garnet se tornaram amigos além de sócios. O garçom colocou
na mesa uma garrafa e duas taças, Wynnie as encheu até a borda.
Gabriel levantou as sobrancelhas e soltou uma risadinha.

— Voltamos ao colégio? Não tenho visto uma taça tão cheia


desde que fizemos Oxford.

O sorriso aberto de Wynnie se abriu mais quando levantou a


taça.

— Mas, não saímos de lá?

As taças se chocaram, lançando gotas de vinho sobre a


mesa. Gabriel estava tentado a perguntar ao amigo se não havia
diversão em casa, com sua esposa, mas então se lembrou de que a
esposa de Wynnie não estava em casa. Bebeu o clarete com cuidado.
Não gostaria de passar o resto da noite com uma mancha no colete e,
conforme notara, Wynnie já tinha muitas manchas no seu.

O vinho deslizou por sua língua deixando um gosto


embriagador que lhe fez desejar um charuto. Como se lhe tivesse lido o

95
pensamento, Wynnie tirou dois do bolso interior da jaqueta, e Gabriel
abriu um grande sorriso.

— Devia ter sabido que viria preparado.

— Estou acostumado a isso. - Respondeu, jovial, o Visconde.


— Bem, Gabe, já deve saber que eu perguntarei se são verdadeiros os
rumores que o relacionam com Lilith Mallory.

Wynnie não pareceu notar a mudança na atitude do amigo.

— Rapaz você tem muita sorte se conseguiu deitar-se com


ela... A princípio não dei muito crédito ao falatório, porque sei o que
pensa sobre essas coisas.

— E o que penso? - Gabriel estava perplexo.

— Mmm. Todos sabem que mais parece um monge, além de


discreto. Lilith Mallory seria a última mulher que se daria ao trabalho
de perseguir, embora todos os homens da cidade andam farejando suas
saias como se ela fosse uma cadela no cio.

Gabriel não queria ouvir aquelas coisas e disse:

— Wynnie...

Mas foi em vão, e continuou.

— Um pouquinho orgulhosa para meu gosto, mas sabe o que


se diz de água mole em pedra dura... Então me lembrei de sua história
passada com ela, e de repente tudo se encaixou: esteve arando um
campo que já tinha colhido antes...

96
— Basta!

Wynnie ficou boquiaberto, assim como vários cavalheiros


que estavam sentados ali perto. Em um sussurro zangado, Gabriel
acrescentou:

— Eu não tenho um caso com Lady Lilith! Não acha que isso
faria de mim um hipócrita, ter qualquer relação com a proprietária de
um clube de jogo, quando estou tentando erradicar esse tipo de
negócio?

Wynnie estalou em gargalhadas, e isso atraiu mais olhares de


curiosidade.

— Não pensa realmente em continuar com essa tolice, não


é?

Pela primeira vez na noite, Gabriel começou a compreender


Lady Wyndham. Para Wynnie, qualquer coisa era fundo para uma
piada, por isso fora tão bom quando eram jovens, mas agora aquilo só o
tornava irritante.

— Entre Lilith e eu não há nada, só o passado e o fato de


que tenta enfrentar-me nesse assunto.

— Mas você não tem medo dessa mulher?

Aquela gargalhada já começara a lhe dar dor de cabeça.


Wynnie estava bêbado, e ele, muito sóbrio para aguentar.

— Seria um estúpido se não desconfiasse que tem um


interesse tão pessoal em meu fracasso.

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Este comentário fez Wynnie rir ainda mais, e então, como
um menino carrancudo, Gabriel lhe deu um chute por debaixo da mesa.
O Visconde franziu o cenho e lançou uma exclamação de dor, ao mesmo
tempo que esfregava a tíbia.

— Por que diabos fez isso?

Gabriel lançou um leve sorriso de desculpa e encolheu os


ombros.

— Sinto muito, rapaz. Está exagerando.

Wynnie não pareceu muito convencido, e Gabriel decidiu


tomar as rédeas da conversa enquanto podia.

— Então, você jogou alguma vez no Mallory's?

Wynnie esqueceu a perna para concentrar-se em outra taça


de clarete e assentiu.

— Mas é claro que sim. Devido ao meu título tenho que


passar a maior parte do tempo aqui, mas o Mallory's é tão bom como
este, e Lilith tem o melhor chef da cidade e o melhor vinho também.

Gabriel não duvidou de que Lilith investira pesado. Vira o


clube e era de primeira categoria no que se referia a bom gosto.

— E ouviu alguém reclamando de algum problema no clube?


"Muito sutil, Angelwood." Pensou jogando a cautela ao vento.

Wynnie enrugou a testa. Poucas vezes, duas em uma noite


devia ser toda a exceção. E prosseguiu:

98
— Que tipo de problema? Alguma briga esporádica. Mas o
sujeito chamado Latimer, acaba muito rápido com elas.

Gabriel deu outro gole no vinho, por fim desceu o conteúdo


da taça a um nível razoável.

— E roubo no jogo? Ouviu alguma coisa?

— Ah isso, com certeza!

O coração de Gabriel se apertou diante da resposta


afirmativa de seu companheiro. Seria interesse ou decepção? Mas o
sorriso de Wynnie voltou ao rosto.

— Há dois meses, Pennington foi pego tirando cartas da


manga quando jogava contra Wynter. Latimer nem precisou por as
mãos nele. Wynter se ocupou de fazê-lo. Deu-lhe uma tremenda surra.

— E a casa? Alguém já suspeitou que o clube tenha


extorquido algum cliente?

Wynnie negou com a cabeça.

— Não. Nunca ouvi nada desse gênero, pelo que sei,


Mallory's se previne para que isso não aconteça: baralhos são
constantemente trocados e examinados antes de cada jogo. E Latimer e
outros vigiam os empregados com atenção. Clubes devem tomar
cuidado. Um rumor como esse os arruinaria.

O Visconde entreabriu os olhos e o olhou com atenção.

— É o que está procurando, Gabe? Quer arruinar Lilith


Mallory?

99
Uma indignação aguda e ardente explodiu no peito de
Gabriel.

— Não! Por que todo mundo pensa que quero arruinar


Lilith?

Wynnie encolheu os ombros.

— Bem, você já fez isso uma vez e...

Os dedos de Gabriel apertaram a taça. Rumores sobre um


possível encontro entre eles, não seria somente a reputação de Lilith a
manchar-se. Em vez de contar a verdade sobre por que não se casara
com ela, e antes de dar origem a um novo escândalo, ele deixou que as
mentiras continuassem a circular. Durante muito tempo não lhe foi
permitido aproximar-se das jovens de boa família, não que tentasse se
aproximar. A única mulher que queria estava fora de seu alcance. Com
um suspiro de cansaço, respondeu:

— Não tenho intenção de prejudicar ninguém, Wynnie. Já é


tarde, acho que me vou. Quer que o acompanhe até sua casa?

Wynnie fez um gesto negativo com a cabeça que lhe pôs um


cacho negro sobre a testa.

— Ficarei um pouco mais. - Novamente mostrou seu sorriso.


— De qualquer maneira, Henrietta já deve estar na cama. Não sentirá
minha falta se demorar algumas horas.

Com um sorriso forçado, Gabriel se levantou. Henrietta era


Lady Wyndham, a mulher que devia estar na cama, como acreditava

100
seu marido, mas com outro. Certamente, podia demorar o quanto
quisesse.

— Meu amigo, é um homem afortunado.



Por fim tinha parado de sangrar.

Com uma careta, em parte por ver seu próprio sangue e em


parte porque se sentia enjoada, Lilith retirou da mão o lenço. Não era
um corte profundo, mas sangrara demais, provavelmente deixaria uma
cicatriz. Estúpida, estúpida, estúpida! Em que diabos estava
pensando?... Em absolutamente nada. Depois de bater a porta na cara
de Gabriel, a raiva e a dor a dominaram, agarrou o primeiro objeto que
estava a seu alcance e o atirou com toda sua força.

A fina taça de cristal se fez em pedacinhos mais facilmente


que as ideais românticas de uma mulher. Conforme descobrira a pouco,
essas ideias eram muito mais difíceis de controlar ou eliminar, e suas
feridas, muito mais difíceis de curar também. Na primeira vez que
sangrou por Gabriel, sangrou muito mais.

— Quer que lhe traga algo?

Mary perguntou preocupada, querida e doce Mary.

101
— Poderia me trazer água quente e ataduras sim, por favor,
Mary. E também um pouco de uísque.

Mary assentiu.

— Sim, ouvi dizer que bebidas fortes servem para limpar as


feridas. Voltarei logo.

Lilith a viu sair. Não se incomodou em esclarecer que o


uísque era para ela, não para a mão. Senhor, como precisava de um
gole! Algo forte para deixar de choramingar por um homem que não a
merecia, nem agora nem há dez anos atrás.

Das muitas vezes em que Lilith se imaginou perguntando a


Gabriel por que não fora procurá-la, nunca o imaginou respondendo
que não podia dizer. O que era que não podia dizer a ela? Certamente
seu pai lhe disse que ela partiu da Inglaterra por vontade própria,
embora não imaginasse o porquê. O natural seria que o pai de uma
filha desonrada a quisesse casada com o homem que a desonrou, não
vivendo no exílio... Talvez Fletwood Mallory adorou se livrar da irritante
filha caçula e teve mais tempo para dedicar a seu herdeiro.

Lilith achava difícil continuar zangada com os pais e irmão,


afinal, melhor conhecer outros lugares do que acabar no fundo do
Canal da Mancha com eles, que naufragaram em meio a uma tormenta
durante uma viagem a França. Lilith não sentiu a perda, nem sequer
soltou uma lágrima pelos três. Como fazê-lo? Para chorar por uma
pessoa é preciso conhecê-la ou, ao menos, querer-lhe bem.

Para não se sentir culpada pela frieza, Lilith convenceu a si


mesma que fora Gabriel quem lhe tinha roubado a capacidade de sentir
amor, mas há dois anos atrás, quando faleceu sua tia Imogen, todo o
seu mundo pareceu vir abaixo. De certo modo, realmente foi assim. A

102
morte de tia Imogen a deixou só no mundo e sem amigos. Sua única
companheira fora Luisa, sua criada de quarto, e as duas decidiram
deixar Veneza, onde havia muitas lembranças. Mudaram-se para a
Inglaterra e uma vez ali, não de joelhos e sim, com a cabeça bem
erguida, Lilith enfrentou à sociedade que a tinha repudiado. Decidiu
colocá-los a seus pés, fazê-los ir até ela, e conseguiu seu intento. Então,
por que aquilo já não lhe bastava?

— Trouxe as ataduras e o uísque. - Anunciou Mary ao entrar


de novo na sala. — Latimer insistiu em que eu trouxesse copos, embora
lhe tenha dito que o uísque era para sua mão.

Mary deixou a bandeja na mesa que havia junto ao sofá e


lançou um olhar receoso a amiga.

— É mesmo para a sua mão, certo?

Os lábios de Lilith se curvaram em um sorriso cansado.

— Não exatamente.

A amiga nem piscou.

— Melhor ainda, Latimer mandou dois copos.

Lilith engoliu o grito quando Mary limpou o talho feito na


palma da mão, só emitiu um gemido baixo. Depois, com a mão
enfaixada, recostou-se na poltrona com seu copo de uísque e suspirou.
Estava exausta.

Mary se acomodou no sofá e observou a mesa mais a frente,


posta.

103
— Não vai jantar.

Com secura, um pouco irritada com o tom divertido na voz


da amiga, Lilith respondeu:

— Não. Jogue tudo fora.

Os olhos de Mary se arregalaram.

— Quer conversar sobre isso?

— Isso o quê? - Lilith bebeu um gole de uísque e encolheu os


ombros. — Ele insiste em fechar todos os estabelecimentos de jogo
na Inglaterra. - Lilith declarou desanimada.

— Então não está perseguindo só você, talvez se


conversassem...

— Mas é claro... - Replicou Lilith com voz lenta. — Perguntei


a ele sobre não ter me procurado, Mary, a princípio deu a desculpa da
morte do pai, mas quando insisti, disse que não podia dizer mais nada.
- Lilith riu com amargura.

Mary franziu o cenho.

— Não esclareceu nada a você?

Lilith riu. Deus, parecia o riso de uma bruxa velha e


amargurada.

— Isso faz qualquer um se perguntar que diabos o impedia,


não é?

104
Com expressão cautelosa, e observando-a com um olhar de
delicadeza, Mary disse.

— Também dá a entender que ele nunca a amou de verdade.

Lilith sentiu as lágrimas arderem nos olhos.

— Sim. É o que penso. Que outra coisa poderia ser?

Os lábios de Mary se curvaram nos cantos da boca.

— Talvez Lorde Angelwood tenha um segredo que não deseja


revelar.

Lilith soltou um resmungo de desdém.

— Você tem lido novelas demais.

— Não seja tola. - Mary a desafiou, ao tempo em que deixava


o copo de uísque vazio sobre a mesa, já se sentindo meio tonta. — Se
ele não tivesse interesse em você naquela época ou agora, tenho certeza
de que teria lhe dito. Ele não me parece o tipo que deixa de dizer o que
pensa na hora.

“Esse assunto não termina aqui, Lilith. Ainda nos


encontraremos.”

A voz de Lilith soou muito baixa, pouco mais que um


sussurro.

— Não. Ele não é.

Os olhos castanhos de Mary cintilaram.

105
— Então você concorda comigo, ele deve ter um motivo.

— Ele quer alguma coisa. - Lilith resmungou.

A paciência de Mary desapareceu.

— Você lida com os negócios e as pessoas de maneira tão


inteligente e continua a ser uma tola quando o assunto é Angewood.

Estupefata, Lilith a fitou surpresa.

— Como?

— Está mais do que claro que ele não lhe contou o motivo
por temer sua reação!

— Ah... Isso é ridículo. Gabriel Warren com medo de mim?

O jovem que conheceu não temia nada nem ninguém, um


traço que parecia conservar no homem que era agora.

— Então, por que simplesmente não disse: "É eu mudei de


ideia", ou: "Cansei de ver você, sua velha estúpida"

O último comentário surgiu com muita veemência, e Lilith


suspeitou que fora o que Mary ouvira do próprio marido.

— Mas parece que Lorde Angelwood não disse nada disso,


talvez por não querer ferir seus sentimentos ou por se sentir
envergonhado.

106
Envergonhado? Gabriel? Do que se envergonharia ele? Por
Deus, se ela pegara a mãe de Gabriel com a mão na parte dianteira das
calças de Lorde Byron! Claro que Lady Angelwood não percebera que ela
estivera olhando. À mãe de Gabriel gostava de brincar, mas não era
promiscua.

Apesar de tudo, a ideia de Gabriel escondendo algo era mais


fácil de aceitar que a insinuação de que já não sentia nada por ela. Para
ele, o passado foi apenas um modo prático de dirigi-la. Por que beijá-la,
e duas vezes! A mulher que não via há anos, a não ser para se
aproveitar de sua antiga estupidez?

— Mary, creio que encontrou uma pista interessante.

Sua amiga sorriu.

— Quem pensaria que depois de tanto tempo vocês dois


continuariam apaixonados um pelo outro?

Lilith lhe lançou um olhar furioso.

— Mary, tenho minhas dúvidas sobre Gabriel ter me amado


algum dia, e certamente, eu não estou apaixonada por ele.

— Mas...

— Digo. - Lilith interrompeu a amiga antes que dissesse algo


que a fizesse reconsiderar sua última afirmação. — Que talvez você
tenha razão ao supor que Gabriel esconde ou procura algo. Se não, por
que entraria em meu escritório naquela noite?

Com efeito: por quê? E por que agiu de forma tão sedutora e
possessiva? Se considerasse ser o amante rejeitado que afirmava ser,

107
não deveria estar zangado? Ela estava... Algo que dava mais crédito a
teoria de Mary.

Não. O interlúdio de sedução fora uma simples estratagema.


Não a queria de fato, só quisera distraí-la. E quando notou a reação do
corpo dela, usara o ardil para que Lilith não descobrisse o que tramava.

— Talvez deseje apenas ter você novamente.

O cenho de Lilith se franziu mais ainda ao ouvir em seu tom,


esperança.

— Você acreditaria se seu marido fizesse algo assim,


consideraria isso como amor?

O rosto de Mary empalideceu, e imediatamente Lilith se


envergonhou de sua crueldade.

— Mary, eu...

Mary se apressou a ficar em pé, enquanto dizia em voz


baixa:

— Meu marido era um homem adulto, não um rapaz. E não


compare o leilão ao qual fui submetida como se fosse gado com a
conduta impulsiva de um jovem que, à morte de seu pai, tinha coisas
mais importantes a fazer que perseguir você até o fim do mundo.

Lilith ficou sem fala, e se limitou a olhá-la boquiaberta, sua


única amiga saía da sala de cabeça altiva.

Que idiota fora! Uma idiota egoísta e estúpida! Acreditava


que só por ter vivido um desengano amoroso sofria mais que os outros?

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Muitas pessoas padeciam angústias piores que a sua, e em alguns
casos, mais de uma ocasião. Sua única desculpa fora que a sociedade
restringia muito as jovens. Enquanto os rapazes tinham outras
atividades: cavalos, jogos e encontros com o sexo oposto de modo
inconsequente... As jovens, estavam limitadas as festas e a companhia
das demais garotas. As atividades reservadas aos homens facilitavam
um cenário onde todo jovem atraente era comparado com um bon
vivant, as das damas, pouco mais que uma série contínua de conversas
sem sentido, que frequentemente acabavam em chorosos debates sobre
amor não correspondido.

Gabriel a feriu, e ela tomou precauções para que nenhum


outro voltasse a aproximar-se tanto. Esta atitude não demorou a se
tornar um hábito. Alguém conseguira despertar sua fantasia?
Geralmente, alguém de sorriso franco, ou por ter belos olhos cinzentos,
mal se aproximava e ela já erguia as barreiras.

Não conseguir esquecê-lo, já não lhe parecia tão estranho?


Tinha deixado sua traição governar-lhe a vida no mesmo momento em
que aconteceu.

Bastava. Desta vez não ficaria de braços cruzados, não


deixaria que ele traçasse o curso. O enfrentaria, e se ele acreditava que
lidaria com a garota ingênua de uma década atrás, se daria muito mal...
Quantas decepções lhe causaria?... Ao que parecia, ela acrescentava
uma nova à lista quase todos os dias.

Gabriel não era o único a saber usar o passado para


alcançar seus objetivos.

Alguém bateu a porta. Lilith acreditou que fosse Mary, que


voltava para se desculpar, e pediu que entrasse, mas não era Mary, era
Latimer. O criado alto e magro mostrou a cabeça pela porta com

109
expressão cautelosa, sem dúvida vira o semblante irritado de Mary e
temia que o humor da patroa estivesse também sombrio.

— O senhor Francis gostaria de vê-la, minha senhora.

Francis? Estranha hora para aparecer. Normalmente vinha


durante o dia, quando o clube estava fechado e havia pouco risco de
alguém o reconhecer.

— Por favor, faça-o entrar, Latimer.

Momentos depois o senhor Francis entrou na sala. Era um


homem corpulento, com cabelo grisalho e espesso, tinha a barba muito
bem cortada, tinha uma habilidade nata em misturar-se a todos os
níveis da sociedade. Como investigador, seu aspecto constituía sem
dúvida uma vantagem: podia passar por um rico latifundiário ou por
um humilde jornaleiro. De fato, Lilith não estava muito certa de que o
personagem que se apresentava a ela também não seria um de seus
disfarces.

Naquela noite o senhor Francis tinha o aspecto de um Lorde


rural bem alimentado. Com uma leve inclinação de cabeça, se
aproximou.

— Lady Lilith, espero que perdoe minha intromissão.

— De forma alguma, senhor Francis. - Com um gesto,


indicou-lhe uma cadeira. — Tem alguma coisa interessante para mim?

O investigador afastou as abas do fraque e se sentou no


sofá.

— Não estou certo, mas achei melhor vir vê-la.

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Lilith tinha aprendido que era melhor não mostrar-se muito
impaciente com ele.

— Prossiga.

— Esta noite estava no White's tentando reunir informação


sobre Lorde Angelwood, como a senhora me pediu.

Lilith ficou ansiosa.

— O que descobriu?

Com um gesto negativo o senhor Francis respondeu:

— Além do que senhora já deve saber, muito pouca coisa.

Ela se esforçou para não deixar transparecer sua decepção.


As coisas que valiam a pena nunca vinham com facilidade.

— Já tenho as datas de sua próxima partida a Nova Escócia.


Também localizei alguns dos que viajarão com ele, talvez tenham
alguma informação que nos interesse a respeito do objetivo de sua
estadia.

Lilith assentiu.

— Excelente. E o que houve no White's?

— Enquanto estava lá, Lorde Angelwood chegou. Estava na


companhia de Lorde Wyndham.

111
Aquele boca grande que Gabriel e seus amigos chamavam de
Wynnie... Lilith se lembrava dele: um asno que não parava de zurrar e
que bebia em excesso, sempre muito amável quando sua esposa não
estava presente. Lilith não censurava Lady Wyndham por preferir Lorde
Somerville, ao menos este tinha o bom senso de saber quando devia
fechar a boca.

— Não é que tenha ouvido toda a conversa, pois estava


abordando outro assunto. - Este detalhe fez Lilith levantar uma
sobrancelha. — Mas ouvi Lorde Angelwood perguntar a Lorde Wyndham
se conhecia alguma história sobre o Mallory’s. Parecia muito
interessado em saber se houve alguma acusação ou suspeita de
trapaça.

Trapaça? Queria saber se havia trapaça?... Claro. Os


homens tinham seu próprio código de honra, bárbaro e terrível: se
alguém fosse surpreendido fazendo trapaça, com frequência aquilo
acabava em duelo. Por sorte, nunca ocorrera nas mesas do Mallory's, o
clube era sempre tão acolhedor em todos os sentidos que poucos se
arriscariam a ser expulsos dali.

— E qual foi a resposta de Lorde Wyndham?

O senhor Francis sorriu.

— Contou ao conde as normas que você tem para esses


casos, lady Lilith.

Agora entendia: Gabriel desejava coletar provas


comprovando que o Mallory's e todos os outros estabelecimentos de
jogos eram perniciosos e trapaceiros, talvez até pretendesse usar os
duelos, fortunas e reputações perdidas causadas pelo jogo sujo. Pois
bem, neste aspecto não teria sorte: nenhum cavalheiro desafiara outro

112
no Mallory’s. Mas que sujeitinho hipócrita se tornara! Falando em
fechar seu clube e depois se refugiando no White's! Será que também
pretendia acabar com o jogo em seu precioso refúgio exclusivamente
masculino? Conhecendo-o, deduziu que era exatamente o que
planejava. Estúpido e idiota...

Lilith tomou mais um gole de uísque. Nem sequer se


lembrara de oferecer ao senhor Francis. Toda aquela confusão com
Gabriel até a fazia esquecer das boas maneiras.

— Foi tudo o que ouviu?

— Sim. Minutos depois Lorde Angelwood se levantou e foi


embora. Eu o segui até sua casa.

Como? Nada de amantes e nem farras com os amigos até o


amanhecer? Talvez não tivesse ainda com quem ir as farras. Braven
estava casado e era pai, e Wolfram estava no exterior, viajando pela
Europa com sua irmã caçula. Ambos eram os melhores amigos de
Gabriel. Quantas histórias sobre os três teve de suportar só porque
adorava vê-lo sorrir quando falava de Brave e Jules? Devia sentir-se
solitário sem eles. Inferno, e importava? Sozinho ou não, andara
bisbilhotando e perguntando sobre seus negócios, isso era prova mais
que suficiente de que não tinha intenção de abandonar essa empreitada
estúpida.

Se ele não tivesse escolhido seu clube como principal


objetivo, certamente teria pena dele. O que levaria um homem a se
dispor a uma batalha impossível de ser vencida? O que fizera Gabriel
ter tanta aversão ao jogo? Certamente, a causa não estava em sua
educação: seus pais gostavam de jogos, principalmente o velho Conde,
fora ele quem a ensinou a jogar picquet.

113
O velho Conde... quanto mais pensava nisso, mais
acreditava que a chave estava no pai de Gabriel. Quando jovens, ele
nunca pareceu se incomodar que o pai jogasse, mas talvez tenha havido
algo que o fez mudar de ideia. Acaso achara que a morte dos pais fora
causada por seu gosto aos jogos de azar e outros ligeiros passatempos
da sociedade, bem, sabia que nenhum dos dois morreu em um acidente
ou de velhice... Talvez sua mãe tivesse um caso com um jogador? Teria
sido a última gota para o velho Conde? Talvez este tenha desafiado o
amante em um duelo, teria morrido assim o pai de Gabriel? Na verdade
não se lembrava de ter ouvido qual fora a causa da morte. Quem sabe
ali estivesse a resposta.

Como as suspeitas tomavam forma em sua mente, Lilith


disse ao investigador:

— Quero que descubra a causa da morte do pai do Conde de


Angelwood. Tenho o pressentimento de que descobrindo isso, saberei o
motivo da atitude do filho.

O senhor Francis fez um gesto afirmativo e não formulou


perguntas.

— Investigarei o assunto imediatamente.

— Ah! - Ela acrescentou como se pensasse em algo de


repente. — Você descobriu se Bronson teve algo a ver com os recentes
atos de vandalismo e roubo a meu clube.

O senhor Francis negou com a cabeça.

— Nada... Ainda, mas estou certo de que está envolvido. Não


se preocupe, os que trabalham para Bronson nem sempre são espertos.
Logo darão um passo errado e aí serão meus.

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Lilith confiava no senhor Francis. Um carregamento de
brandy ou de charutos perdido de vez em quando não seria muito
oneroso, mas se os furtos prosseguissem, logo as perdas seriam
intoleráveis. Levantou-se e disse ao visitante:

— Obrigado por vir, senhor Francis. Quero saber assim que


o senhor descobrir algo a respeito de Bronson ou sobre a morte do
falecido Conde de Angelwood.

O senhor Francis se levantou também.

— Fique tranquila assim que tiver alguma informação, a


senhora o saberá, Lady Lilith.

Ela sorriu, satisfeita.

— Excelente. Tenha uma boa noite senhor.

Quando o investigador saiu, estranhou que ele não tivesse


perguntado por sua mão. Provavelmente já sabia do ocorrido, disse a si
mesma com uma risadinha. E, sem soltar o copo de uísque, cruzou o
salão e se dirigiu à janela para contemplar a noite.

A partida entre Gabriel e ela começara realmente. A guerra


estava declarada, e as estratégias já estavam em marcha. Só lhe restara
jogar e ver quem seria o vencedor e o vencido... Se é que havia alguma
diferença entre essas duas posições.

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116
— Está procurando alguém?

Gabriel desviou o olhar do espetáculo, bailarinos, leques que


batiam como asas e joias reluzindo sobre seios quase nus e sorriu. Sim,
procurava alguém. Somerville. A única razão de ter aceito o convite de
lady Wyndham era porque queria falar com seu amante.

— Eu gosto de olhar, isso é tudo. - Respondeu. — Boa noite,


Blaine. Vitória também está aqui?

Blaine assentiu com a cabeça na direção de um grupo de


senhoras que estavam do outro lado do salão.

— Está com Lady Sefton. Tem que se manter em dia com as


administradoras do "mercado matrimonial", sabe como é.

— Mas Frederick ainda deve ter alguns anos de liberdade


antes que precise "comprar" uma boa esposa, não? - Retrucou Gabriel.

Blaine soltou uma risada.

— Espero que seja assim, o menino mal completou vinte


anos. Provavelmente siga seu exemplo e se mantenha solteiro o quanto
puder.

Gabriel esteve a ponto de dizer ao amigo que ele não era


muito mais velho que Frederick quando encontrou à mulher com quem
queria passar o resto de seus dias. Embora talvez devido a sua mãe ou,

117
simplesmente, por ser jovem, ninguém acreditasse que queria casar-se
com Lilith. Todos pensaram que a desonrou por ele ser lascivo e ela
inconsequente... Mas isso fora só parte da história.
Permaneceram em silêncio um momento, e finalmente Blaine
perguntou:

— Encontrou alguma prova incriminadora contra o


Mallory's?

Gabriel olhou a taça na mão e centrou seus pensamentos


nas diminutas borbulhas que subiam, antes de levantar o olhar até o
amigo.

— Nada que me aproxime da verdade.

Blaine franziu o cenho.

— A verdade? Da verdade nós já sabemos: fizeram trapaça,


roubaram meu filho. Tudo o que tem a fazer é expô-los.

Falava como um autêntico pai. Gabriel deu um suspiro em


seu interior e se voltou para encarar Blaine.

— Por que não me disse que a proprietária do clube


Mallory's era Lady Lilith Mallory?

Ainda com o cenho franzido, Blaine encolheu os ombros.

— Que diferença faz?

— Não se lembra do que houve entre Lilith Mallory e eu,


Blaine?

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Como resposta, o Visconde o olhou com um rosto tão
inexpressivo como uma folha de pergaminho, mas Gabriel não teve
coragem para repreendê-lo. Sentia-se muito culpado.

— Há dez anos. Um escândalo. Lembra-se?

Os olhos de Blaine se arregalaram.


— Era ela?

Gabriel assentiu. Não havia razão para que Blaine soubesse


daquilo, pois quando explodiu o escândalo Blaine estava no campo,
Vitória acabara de ter gêmeos. Não voltaram à cidade até que lhe
escreveu notificando-o da morte do seu pai, e então tiveram que se
dedicar a controlar e abafar outro escândalo.

Blaine levou a mão a nuca e a esfregou.

— Coloquei-o em apuros, não é?

Isso foi dizer pouco. Gabriel assentiu com um sorriso.

— Um pouco. Entende o porquê de não ter pressa em


pronunciar um veredicto.

De repente, a expressão de Blaine se tornou cautelosa.

— Mas não dúvida do que disse Frederick, não é?

Um jovem seria capaz de mentir para evitar a cólera e a


decepção de seu pai? Gabriel nem sequer queria pensar nisso, mas
Blaine devia fazê-lo e conversar com o rapaz.

— Eu não disse isso.

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Não lhe agradava pensar em Frederick mentindo,
principalmente se a mentira envolvia Lilith, mas ao relatar a estória ao
pai talvez tivesse alterado a verdade uma ou duas vezes. Provavelmente
Frederick preferisse mentir antes de dizer a seu pai que tinha esbanjado
o dinheiro da família.

O olhar de Blaine endureceu.


— O que está tentando dizer? Que aceitará a palavra de uma
mulher que levantou a própria fortuna roubando a outros, e não em um
amigo da família, só porque uma vez teve um caso com ela?

— Não vá por aí.

Gabriel pronunciou as palavras em voz tão baixa que o


surpreendeu que Blaine chegasse a ouvi-las, mas ouviu.

— Ainda sente algo por ela.

Gabriel rejeitou o fato, mas a situação parecia flutuar entre


eles como a lâmina de uma faca. Sem ver, voltou o olhar aos bailarinos
e tomou um gole de champanhe. Quase nenhum homem teria
prosseguido com o assunto, mas Blaine conhecia Gabriel há muito
tempo para que o intimidasse um cenho franzido. E Gabriel permitiu,
pois Blaine fora muito bom com ele depois da morte do pai, mas não era
mais um jovem imaturo, e não precisava que ninguém colocasse em
dúvida suas opiniões.

— Está certo de que seus sentimentos pessoais não


nublaram seu julgamento?

120
Gabriel se voltou. Uma repentina onda de ira dilatou as
aletas do nariz e lhe trincou a mandíbula. Perguntou extremamente
irritado:

— E a você?

O Visconde o olhou fixamente, pigarreou e jogou uma olhada


ao redor. Envergonhado, Gabriel fez o mesmo. Graças a Deus ninguém
os olhava. Os fofoqueiros babariam de prazer tentando saber por que o
Conde de Angelwood e o melhor amigo de seu pai discutiam em público.

— Seja sensato, Gabe.


A voz de Blaine se suavizou, como a de um pai que se dirige
a um filho que se comportou mau. Gabe olhou para o teto.

— Se provar que Lilith Mallory extorquiu meu filho, terá um


sólido argumento para levar a Câmara. Mas se reatar seu
relacionamento com ela novamente, sua credibilidade desaparecerá por
completo.

Blaine não lhe disse nada que ele não tivesse dito a si
mesmo, mas isso não tornava mais fácil escutá-lo.

— Eu não tenho nada com Lilith.

— Ah, não?

Gabriel bebeu o resto do champanhe e, com desnecessário


vigor, deu a taça a um lacaio que passava. Sem olhar ao amigo,
respondeu.

— Não.

121
Já passara da conta. Não discutiria com ninguém sua
relação com Lilith, não importando quem fosse. Quando tentou afastar-
se, Blaine o segurou pelo braço, Gabriel sibilou:

— Se não quer dar motivos para falatórios, me solte agora,


Blaine.

Não precisou repetir. Com expressão aflita, Blaine abriu a


mão e disse.

— Nunca falou comigo assim...

Uma pontada de culpa atravessou o peito de Gabe, que


respondeu em um tom estranhamente indiferente:

— Nunca me deu motivos para isso. E prefiro que não volte


a fazê-lo.
O gesto de Blaine se suavizou.

— Sinto se o ofendi, meu amigo, mas sabe que não pode


argumentar contra o jogo neste país e ser amante da mulher que ganha
a vida jogando. Agora ou depois, terá que escolher.

Gabriel cruzou os braços e olhou nos olhos escuros do


Visconde.

— Não sou amante dela, Blaine, mas se caso o fosse, não


seria assunto seu. Prometi que investigaria, e digo "se", o clube de Lilith
trapaceou Frederick...

— E se o fez? - Interrompeu Blaine.

122
Blaine nunca tinha empregado um tom tão altivo com ele.
Fez-lhe sentir remorsos, e também irritação.

— Então enfrentarei Lilith e decidirei se sabia ou não. E se


sabia, farei algo a respeito.

Blaine fez um gesto de negação enquanto soltava uma risada


amarga.

— Realmente acredita que ela admitirá que trapaceou?

A mandíbula de Gabriel voltou trincar.

— Realmente você acredita que se um clube tivesse o


costume de extorquir, seu filho seria o único a perceber?

Não se incomodou em aguardar a resposta. Girou nos


calcanhares e partiu.

Nas festas de Lady Wyndham sempre havia muita gente, e


esta não era uma exceção. Serpenteando entre corpos apinhados e
perfumados, Gabriel abriu espaço até o terraço. Certamente, Blaine
tinha razão. Não devia deixar que seus sentimentos por Lilith se
interpusessem em sua tarefa. Claro que não estava de todo certo do que
sentia realmente por Lilith, mas era evidente que seus sentimentos não
eram simplórios. Não queria acreditá-la capaz de extorquir ou roubar, e,
como Blaine, não queria acreditar que Frederick mentisse.

Fazer com que Lilith falisse se conseguisse acabar com o


jogo era uma coisa, manchar sua reputação ou destruir-lhe a vida era
outra coisa. Embora nunca tivesse pretendido fazê-lo, já a arruinou
uma vez aos olhos da sociedade. Não voltaria a fazer o mesmo a menos

123
que fosse absolutamente necessário. E, para ser sincero, não tinha
certeza de que o faria.

Um agradável odor de fumaça de charuto o recebeu ao sair


ao ar noturno.

— Angelwood. Não esperava vê-lo por aqui esta noite.

Justamente o homem que procurava.

— Boa noite, Somerville. Pois não me surpreende vê-lo aqui.

Somerville ficou rígido, e um leve rastro de fumaça saiu de


seu nariz quando retrucou:

— Ah...?

Gabriel cortou a distância que havia entre eles e prosseguiu:

— Todas as anfitriãs desejam sua presença, assim como a de


sua esposa, em seus salões. São um casal muito popular.

O loiro fez uma careta.

— É o que parece. - Tirou do bolso um porta charuto de


couro e ofereceu um a Gabriel. — Fuma?

Gabriel aceitou. Uma vez aceso seu charuto, recostou o


quadril na balaustrada e observou Somerville com ar pensativo.

— Entretanto, é um pouco descarado trazer a esposa a casa


da amante, não lhe parece?

124
Somerville nem piscou.

— Em Londres? Está de moda, homem...

Diante do tom irônico, Gabriel assentiu com um sorriso.

— Certo. Sua vida privada não é assunto meu, Somerville.

— Com efeito, não é. - Somerville o olhou com serenidade. —


Assim como a sua vida não é do meu. Por que, então, tenho a
impressão de que sua próxima pergunta terá a ver com Lilith Mallory?

O que saberia? Indagou-se Gabriel. Somerville o viu no clube


de Lilith, e sem dúvida, também o viu entrar na carruagem dela naquele
dia à porta do Parlamento. Devia ter ouvido os rumores, e devia saber
que havia algo acontecendo.

— Assim como devo ainda lhe dizer que não gosto de falar de
meus amigos. E muito menos dizer algo que ela não queira que você
saiba.

Gabriel levantou uma sobrancelha. Fez-se um momento de


silêncio enquanto lançava aros de fumaça ao céu.

— Você considera Lilith como sua amiga, Somerville?

O jovem conde não hesitou em responder.

— Sim. Há alguns dias não estaria certo disto, mas agora... -


Encolheu os ombros.

— Então foi a amizade e não chantagem que o convenceu a


argumentar contra mim na Câmara?

125
A mandíbula de Somerville travou, zangado não parecia tão
jovem, e Gabriel esboçou um sorriso. Não queria gostar do homem que
se deitava com a esposa de seu amigo, mas não podia evitar de admirá-
lo. Embora Gabriel fosse mais corpulento, era mais velho e seu título
vinha respaldado por mais riquezas e poder, e nada daquilo parecia
intimidar Somerville.

Olhos azuis olharam ao redor para se assegurar de que


estavam sozinhos. Não era tão tolo como Gabriel pensou.

— E o que saberia Lady Mallory para me chantagear?

Gabriel deu um toque à cinza do charuto e a deixou cair no


terraço.

— Talvez o tenha ameaçado com a relação que mantém com


lady Wyndham se não argumentasse em favor dela?

O jovem descobriu os dentes em um amplo sorriso, e uma


covinha surgiu em cada bochecha.

— Não. A princípio acreditei que sua intenção fosse essa,


mas não era.

Mais aros de fumaça.

— E que intenção tinha, então?

O olhar de Somerville era sincero.

— Disse que você pretendia fechar o clube, isso tornaria


impossível meus encontros com Lady Wyndham se o Mallory's fechasse.

126
Com uma careta de amargura, Gabriel inclinou a cabeça de
lado.

— E ela não quer que vocês ponham um fim a esse adultério,


não é?

Somerville atirou o charuto no chão e o esmagou sob a sola


da bota.

— Não tem o direito de nos julgar, Angelwood. Isso é Deus


quem decide, não você.

— Ao menos a ama?

De onde diabos saiu aquilo? Acaso o amor perdoaria um ato


de infidelidade? Sua mãe afirmava amar seu pai, mas isso nunca a
impediu de...

A Somerville a pergunta pareceu surpreendê-lo tanto como


ao próprio Gabriel.

— Crê que me arriscaria a enfrentar à cólera de Wyndham e


magoar minha esposa se não fosse assim?

Gabriel deu de ombros.

— Há quem se expôs mais e sobreviveu à perda.

O outro lhe lançou um olhar sagaz.

— O que teria arriscado você?

127
Como a conversa virara em outra direção?... Gabriel não se
lembrava.

— Arrisquei à mulher que amei por meu orgulho. E a perdi.

O sorriso de Somerville expressou compreensão.

— De que valeu seu orgulho?

Gabriel deu uma profunda baforada no charuto, e então se


deu conta de que há uma década se fazia a mesma pergunta.

— Naquele momento acreditei que valeria, mas mudei com o


passar dos anos.

Uma triste gargalhada acompanhou à fumaça do charuto.


Tossiu. Com os lábios curvados ainda em um ligeiro sorriso, Somerville
passou a mão pelos cabelos.

— Lady Mallory talvez tenha escrito as palavras que


pronunciei na Câmara, Angelwood, mas os sentimentos atrás delas
eram os meus. Tenho um interesse pessoal em que o clube permaneça
aberto, e se isso implicar em apoiar o jogo, farei isso com imenso prazer.

Gabriel fez um gesto afirmativo. Logo lançou o charuto sobre


a grade e viu como caía no atalho de cascalho.

— Nunca achei que a tarefa a que me propus fosse fácil, mas


obrigado por sua franqueza. Pode estar certo de que, de minha parte,
nossa conversa se manterá na mais estrita confidencialidade.

— De minha parte também.

128
Houve um instante de entendimento, a intuição de que,
mesmo em posições opostas, entre eles seria possível o respeito e até
amizade.

Somerville soltou uma risadinha e voltou a passar os dedos


nos cabelos.

— Não sei de você, mas uma boa taça de conhaque me cairia


bem.

Gabriel sorriu a vontade.

— E a mim também. Entramos?

Acabavam de entrar no salão de baile quando um alvoroço


próximo chamou a atenção dos dois. Gabriel levantou a cabeça e olhou
na direção das portas, onde a multidão se abria como se fosse o Mar
Vermelho para passar Moisés. Um após outro, recuavam e abriam
caminho na entrada do salão, e que, conforme viu, na direção dele.
Enquanto ao seu redor se levantava um murmúrio, com um suspiro
extasiado disse:

— Meu Deus!

Era Lilith. Vestida audaciosamente com um traje de veludo


vermelho. Tinha os olhos sombreados de forma sedutora com uma linha
de Kohl, e os lábios vermelhos traçados com tantas curvas quanto os
quadris que se balançavam debaixo do tecido sensual. Seus cabelos,
densos e avermelhados, estavam primorosamente presos, a coluna
pálida do pescoço descoberto atraindo os olhares aos ombros nacarados
e, mais abaixo, a linha curva dos seios opulentos, aprisionados no
decote quadrado. Não usava nenhuma joia. Não havia a necessidade.
Lilith brilhava luminosa.

129
Como diabos tinha passado pelos lacaios?

Gabriel sentiu, mais que viu, os olhares de curiosidade que


pousavam nele enquanto Lilith avançava, ondulando na direção dele.
Não pode afastar os olhos dela. Estava provocadora, magnífica. Apenas
a um palmo de distância parou, fez um reverencia e ronronou:

— Boa noite, meu senhor. Gostaria de dançar?

Ele veria o quanto martelava seu coração no peito? Sua


respiração presa as costelas era tão reveladora que estava certa de que
todos ali podiam sentir e se refestelar em seu medo. Provavelmente
aquelas hienas condenadas até sentiam o cheiro.

— Como entrou aqui, Lilith?

A pergunta de Gabriel coincidiu com a ação de agarrá-la


para dançar uma valsa. Lilith tropeçou, e a cabeça começou a dar
voltas. Segurou-se ao ombro musculoso tentando manter o equilíbrio.

— Lady Wyndham me deixou entrar. - Respondeu. —


Devagar, Gabriel. Isto não é uma marcha.

Ele reduziu um pouco o ritmo e suas longas pernadas se


ajustaram as passadas dela.

— Com o que a ameaçou? Lembrou-a de que sem seu clube


ela e Somerville não poderão manter seu caso escandaloso?

“Ele sabia sobre Lorde Somerville e Lady Wyndham?” Pensou


surpresa.

130
— Não, apenas supliquei-lhe para falar com você um
momento.

Gabriel continuou a dar voltas com ela pelo salão. Lilith já


esquecera o quanto ele valsava bem.

— E ela acreditou?

Falou como se nem ele mesmo acreditasse em uma coisa


assim... Tentou ignorar a umidade gelada em sua palma, Lilith levantou
o olhar até os seus. Não havia maneira do frio transpassar suas luvas,
mas tinha a sensação de que ele procurava fissuras em sua armadura.

Sob a luz de uma dúzia de arandelas, os olhos de Gabriel


brilhavam como espelhos, e se via refletida neles, viu uma mulher com
cosméticos demais e vestido de menos. E que vestido escandaloso. No
que estava pensando ao se apresentar assim, como aqueles carniceiros
esperavam. Da próxima vez viria de branco e os escandalizaria ainda
mais.

— Implorei que ela me desse dez minutos, ao fim deles ela


poderá mandar que me joguem no meio da rua.

Com um sorriso zombador, ele retrucou.

— Não é muito tempo pago por tal preço...

Era verdade: o tempo justo para ir direto ao assunto. Lilith


esboçou um sorriso forçado.

— Precisava vê-lo, Gabriel.

131
Outra volta. Os dedos dele se apertaram aos seus, uma
sensação quente de segurança.

— Por que está aqui, Lil?

Não lhe faria as coisas mais fáceis, e ela esperava que agisse
assim. Entre eles havia tantas coisas a dizer, tantas complicações...
Desejo e medo de confiar ou não. Raiva. Desejo. Necessidade de
vencer... Como se sua vida precisasse de mais complicações. Mary não
queria falar com ela. Bronson queria acabar com ela por ter
competência nos negócios e Gabriel se julgava baluarte de uma moral
superior.

Bem, não facilitaria para ninguém, venceria todo e qualquer


obstáculo. Bronson seria fácil, simplesmente lhe daria uma dose do
próprio remédio e o ensinaria a não subestimar uma mulher
determinada. Gabriel seria mais difícil, mas no final ela triunfaria. E a
informação que conseguira naquela madrugada pelo senhor Francis
talvez a ajudasse a conseguir.

— Seus dez minutos estão passando. - Gabriel a avisou. —


Veio conversar ou só dançar?

Lilith levantou o queixo e o olhou nos olhos. Talvez seu tom


de voz fosse cortês, mas seu olhar não era. Fome, havia muito desejo
ali. Horas... Ele era um homem, e como ela bem sabia homens não
precisavam amar para levar uma mulher à cama.

“Qual seria a minha desculpa?” Pensou tolamente.

— Queria lhe pedir um conselho de negócios.

Ele franziu a testa, e as sobrancelhas escuras se juntaram.

132
— E o que a faz pensar que sou indicado para aconselhá-la
sobre negócios?

Chegara o momento de tirar o ás.

— Estive pensando em investir em um negócio chamado


Seraph Sails and Shipping e achei que você seria o homem perfeito para
consultar, já que é proprietário de metade da companhia.

Gabriel hesitou. Só um segundo, mas perdeu o passo e


quase pisou nos pés dela. Ou teria feito de propósito. Lilith não saberia
dizer. Seu rosto adotou uma expressão sombria e a pressão em sua mão
aumentou sensivelmente. Lilith estremeceu ao notar o apertão na mão
ferida e, como se ele notasse seu desconforto, relaxou a mão. Embora
seguisse doendo, manteve a cabeça bem alta e os olhos cravados nos
olhos cinzentos e irados dele. Com os dentes apertados, Gabriel
grunhiu:

— Se está pensando em me chantagear, pense bem,


senhora. Não vou tolerar essa afronta.

Lilith riu. Foi um riso forçado e soou como tal, mas também
soou alto o bastante para atrair alguns olhares de curiosidade.

— Meu querido Gabe, por que pensaria em chantageá-lo? E


já que estamos sendo francos, quem diabos se importaria? De certo que
essa boa gente aqui presente riria ao saber que o conde de Angelwood
se permitiu o luxo de se dedicar ao comércio, mas isso certamente não
vai execrá-lo.

Passou o olhar na expressão de aborrecimento no rosto de


Gabriel.

133
— Você deve ter mais segredos, Gabriel. Coisas que não quer
que eles... - E com um brusco movimento de cabeça apontou os que
dançavam ao redor. — Saibam. Coisas que não quer que eu descubra.

Com olhos gelados, ele a fitou duramente.

— O que quer?

Ah, como devia odiá-la naquele momento! E durante uma


fração de segundo, Lilith se perguntou se valeria a pena... Devia
afastar-se dele, deixá-lo em paz, deixar que lutasse aquela batalha
estúpida, destinada a perder, e esquecer de que o amou um dia.

— Quero saber por que me escolheu para um castigo


exemplar aos outros.

O olhar dele baixou com descaramento até seus colo antes


de voltar a fitar-lhe o rosto. Lilith conseguiu não corar, homens mais
poderosos que Gabriel a tinham admirado de forma mais direta.

— Talvez porque pense que será um adversário a altura. -


Respondeu com arrogância.

O sussurro de sua voz lhe roçou os ombros nus, e um


calafrio lhe percorreu a coluna. Então Lilith jogou para trás os ombros
para destacar o colo exuberante, coberto de veludo vermelho.

— Muito justo. - Disse em tom de mofa. — Mas creio que


haja algo a mais. E tenho minhas suspeitas.

A expressão dele se suavizou até tornar-se uma calma fria.

134
— Realmente...

Lilith se aproximou mais, seus corpos muito mais próximos


que o decoro permitiria. Sentia na pele descoberta do pescoço e colo, o
calor de Gabriel, embora ele usasse roupas suficientes para cobrir os
dois.

— Creio que seu interesse por mim vai além de eu ser a


proprietária de um clube.

Gabriel riu desdenhoso.

— Se acha melhor que todas as outras?

Lilith sorriu.

— De certo alguém tem que fazê-lo. - Prosseguiu destemida:


— Por que, Gabriel? Por que escolheu meu clube? Por que esse
interesse especifico pelo Mallory's?

Gabriel levantou uma sobrancelha.

— Horas... Diga-me você.

Lilith fez um gesto negativo com a cabeça e sorriu. Ele estava


enrolando, e não restava muito de seus dez minutos. Não permitiria que
a afastassem de seu objetivo.

— Você quer algo de mim.

O olhar de Gabriel não se separou do dela, e Lilith tentava


impedi-lo de entrar muito em sua alma.

135
— Creio já ter conseguido isso há dez anos.

O sorriso de Lilith feneceu ao sentir uma pontada de dor no


coração.

— Entretanto tenho a impressão de que agora vai atrás de


algo muito mais valioso.

Nos olhos de Gabriel brilhou a surpresa, seguido por um


breve brilho de pena. Foi a pena que a fez tremer. Abrigava ainda
sentimentos por ela, e sua proximidade lhe causava dor. Portanto, o que
perseguia devia ser algo importante.

— O que é, Gabe?

Ele negou com a cabeça.

— Não vou discutir isso aqui e agora.

Ela mal pôde conter-se de lhe dar um pisão no pé.

— Sim vai fazê-lo.

Mas a expressão de Gabriel se endureceu.

— Não.

— Não pode se esconder de mim para sempre. Cedo ou tarde


descobrirei a verdade e, quem sabe descubra outros segredos mais.

A tensão que notou na mandíbula dele devia lhe dar


satisfação, mas não foi assim.

136
— Então, vai dizer a verdade ou terei que me pôr a escavar?

Ele a olhou fixamente.

— Parece que seus dez minutos se esgotaram.

O coração de Lilith quase parou. Ainda não. Mais alguns


minutos.

— Por favor, Gabe o que é? Já me disse que esta


perseguição não era algo pessoal, que nada tinha a ver conosco. Então,
por que está atrás de mim e de ninguém mais?

— Já disse que não vou discutir esse assunto aqui.

Lilith, frustrada, levantou o queixo.

— Mas vai dizer. Ou juro por Deus que desenterrarei todos


os seus segredos de família e os exporei para que toda a Inglaterra se
refestele. Tente destruir minha vida de novo, e farei com que se
arrependa amargamente.

Com uma risada zombeteira, Gabriel respondeu:

— Como? Você arruinando minha vida? Seria mais fácil eu


fazer de você uma mulher respeitável.

Suas palavras a feriram e irritaram, e o esforço para


controlar sua respiração fez as aletas de seu nariz se dilatarem. Tremia
de raiva e lhe lançou um olhar furioso.

— Se quer assim, Sua Senhoria, assim será.

137
— Aguardarei seu próximo lance, senhora.

Ah, mas que cretino! Que descaramento tinha aquele


homem! Quem se acreditava que era? Ela não foi a única em estar
descontrolada, ele parecia ainda mais... Seu queixo subiu um pouco
mais. Estava desesperada, e naquele momento não mediu as palavras.

— Se não me diz o que realmente quero saber, suponho que


terei que perder meu tempo descobrindo, e primeiramente, o por que de
se rebaixar entrando na área mercantil.

As aletas do nariz de Gabriel se dilataram.

— Não permito que me chantageie. Ouça bem, Lilith...

Mas esta o interrompeu.

— Não.

Lady Wyndham avançava para ela. O tempo quase se


esgotara e não tinha conseguido fazê-lo confessar. Então se aproximou
mais ainda. Praticamente colados. Ele ficou rígido.

— Amanhã virá me ver, Gabriel. E pela primeira vez em sua


vida será sincero comigo, porque saberei se não for, e o farei pagar por
isso. Não deixarei que me tire o que é meu. Não cederei sem lutar.

Ele a olhou e Lilith sustentou seu olhar, embora estivesse


certa de que ele acabaria descobrindo coisas que ela não queria revelar.

— Disse-me uma vez que eu era muito importante para você.

138
— Sim disse, mas foi há muito tempo atrás. - E com um
súbito sorriso, frio e sedutor, Lilith acrescentou. — E ainda você é um
homem muito atraente, Gabriel.

Os olhos dele brilharam de ardor. Não era imune a ela, e


entre os dois havia uma tensão perturbadora. Não se respeitavam, e
nem confiavam um no outro, mas se desejavam. O sorriso de Lilith
feneceu.

— Não negarei que uma parte de mim ainda o deseja. - Não


pretendera fazer aquela confissão... Sim, o desejava, não só o jovem que
um dia foi, mas também o homem determinado diante de si. — Mas não
vou deixar que isso me leve além de meu amor próprio.

Ele entendeu, soube pela expressão em seu rosto.

Entendia porque sentia o mesmo que ela. Então, com um


pouco mais de alivio do que teria gostado de admitir, acrescentou:

— Bem. Espero vê-la amanhã para um jantar.

Ela recuou um passo, desejosa de deixar o baile antes que


Lady Wyndham a expulsasse, seria muito embaraçoso para as duas.
Mas Gabriel a segurou.

— Isto não será uma rendição, Lilith. Se lutar comigo, vai


perder.

— A vida é um jogo, Gabe. - Disse ela sem emoção. — E sei


que há muito tempo só conseguirei o que quero se jogar para ganhar.

139
Aquilo seria uma batalha de vontades, e nenhum dos dois
estava disposto a recuar. Então a voz de Lady Wyndham rompeu aquele
instante:

— Lady Lilith, por favor...

Gabriel não interferiu, e nem Lilith esperava que o fizesse.


Sem deixar de manter seu olhar fixo no dele, dirigiu-lhe um rápido
sorriso de malícia enquanto escapava de seus braços.

— Venha ao clube quando quiser se divertir um pouquinho.

Fez uma graciosa reverencia, virou-se e deixou que Lady


Wyndham a acompanhasse. Um coro de sussurros e risos as seguiu.
Lilith manteve a postura altiva, mesmo lhe tremendo os joelhos, e ao
chegar as portas recebeu um olhar acusador de uma mulher, irritada
deu uma piscada descarada ao marido ao lado desta.

— E então? - Perguntou Lady Wyndham quando as portas


do salão se fecharam atrás delas. Tiritando, Lilith pegou seu xale das
mãos de um lacaio que a aguardava.

— Não tenho certeza. Mas lhe dei o que pensar.

A anfitriã, uma mulher pequena e delicada, guiou-a pelo


corredor, longe dos lacaios.

— Acredita que o convencerá a deixar seu clube aberto?

Ao ouvir seu tom esperançoso, Lilith levantou o olhar.


Naquela tarde, Lady Wyndham e Lorde Somerville tinham planejado a
encenação desta noite. Os amantes a surpreenderam oferecendo-se a
ajudá-la a impedir Gabriel de fechar seu clube, e não fazia ideia do

140
porque fizeram semelhante oferecimento. Certamente Lady Wyndham e
Lorde Somerville encontrariam outro lugar para se encontrarem se
acaso o Mallory's fosse obrigado a fechar as portas. Provavelmente
considerassem o clube como um lugar especial, há tempos atrás ela e
Gabriel também tiveram um lugar assim... E agora Lilith estava certa de
que Lady Wyndham e Lorde Somerville não tinham uma mera aventura.
Estavam realmente apaixonados e não podiam ficar juntos. A jovem
romântica que um dia fora, lamentou o destino dos dois.

— Sim. - Respondeu. — Creio que posso convencê-lo.

Sabia agora que tinha capacidade de transtorná-lo, fazê-lo


hesitar em suas opiniões. Talvez não conseguisse fazer Gabriel mudar
de opinião por completo, mas se ele passasse muito tempo com ela,
acabaria por manchar sua reputação, e no final teria de abandonar
aquele objetivo absurdo. A ideia não a deixou muito feliz, mas que
escolha tinha.

Com a respiração entrecortada, Lady Whyndam comentou:

— Bem. Estava preocupada..., bem, a senhora já sabe...

Sim, Lilith sabia.

— Não se preocupe. Eu me encarregarei de tudo. E agora


acho melhor partir antes que alguém comece a suspeitar.

Lady Wyndham tinha um ar quase culpado quando disse:

— Não é uma maneira muito apropriada de lhe agradecer


tudo o que tem feito por nós, eu... A senhora sempre foi tão amável, e
eu devo fingir que a desprezo...

141
Lilith sorriu com doçura.

— Não sou tão boazinha, Lady Wyndham. E tenho minhas


prioridades.

Lady Wyndham se voltou para olhá-la de frente. Ao lacaio


que estava próximo a porta principal devia parecer que a estava
repreendendo, embora não se ouvisse porque falavam em voz baixa.

— A mim não pode esconder seu bom coração, Lady Mallory.

Lilith sorriu com tristeza e deu a volta para partir. Dando


mais alguns passos, voltou à cabeça e comentou:

— Não tente me reformar, querida senhora. É uma tarefa


impossível.



Horas mais tarde, enquanto se preparava para deitar-se,


Lilith se perguntou se teria agido de forma correta. Vestida com uma
camisola e robe, passava a escova de cerdas duras pelas ondas
enredadas de seus cabelos, enquanto revia o momento passado no
salão de baile. Gabriel viria no dia seguinte? Seria sincero com ela e lhe
diria o que acontecera? Ou pensaria que estava apenas fanfarronando
quando o ameaçara de arruiná-lo? Na verdade, ele a conhecia muito
bem para duvidar de sua determinação.

142
Mas havia tantas coisas que queria saber, coisas que o
senhor Francis não descobrira ainda... Por exemplo: por que se metera
no comércio? Ouvira rumores de que o velho conde deixou dívidas, mas
nada comprovava o fato. Isso explicaria o porquê de significar tanto
para ele acabar com o jogo. Até onde iria para alcançar o seu objetivo?
E mais importante ainda: o que faria ela se ele conseguisse? O Mallory's
não era só um meio de obter rendimentos: era seu único laço com a
sociedade que a baniu e da qual, tolamente, às vezes desejava tomar
parte. Também um substituto, embora absurdamente, de um marido e
dos filhos que não tivera.

Ao menos, foi o que insinuou Samuel Bronson uma vez.


Tinha razão a respeito de Lilith desejar ter filhos, mas sabia viver sem
um marido. Ah! Por que Gabriel não cercava Bronson? A ele sim, seria
fácil apanhar trapaceando... Quem sabe não deveria deixar escapar
para Gabriel alguma falcatrua de Bronson ou de seu clube, o Hazards...
Ou provavelmente Bronson intensificasse seus ataques para fazê-la
vender se pensasse que se escondia atrás de um homem.

Atirou a escova sobre o penteadeira com um forte suspiro.


Gostaria que Mary estivesse ali para conversar com ela, mas essa era
mais uma coisa que teria de fazer na manhã seguinte: desculpar-se com
Mary. Quase conseguira reunir coragem suficiente, mas dar de cara
com Lady Wyndham tinha esgotado boa parte de sua reserva.

— Frustrada? - Ouviu uma voz familiar atrás dela.

Abafando um grito, Lilith se voltou com um sobressalto.

— Que diabos faz você aqui?

Gabriel deslizou uma perna por cima do batente da janela


aberta e impulsionou o resto do corpo grande dentro do quarto.

143
— Sua segurança nesta casa devia ser mais eficiente. -
Comentou enquanto se endireitava. — Qualquer um pode subir até
aqui.

— Qualquer um que estivesse meio louco. - Replicou ela.

Precisamente por segurança fizera cortar os ramos mais


baixos da árvore que havia sob sua janela. Não sabia como Gabriel
tinha escalado, e tampouco queria saber.

Ele mostrou um amplo sorriso. Sorria! Mas já teria


esquecido sua ameaça desta noite? Não era possível. Estaria louco, e
Lilith duvidava disso, ou estaria bêbado. Ela cruzou o tapete para ficar
de frente a ele e franziu o cenho quando sentiu seu cheiro.

— Esteve bebendo?

Seu sorriso aumentou mais. Parecia tão jovem quando


sorria... Senhor, até olhá-lo provocava desejo.

— Acha que teria vindo até aqui e subido por uma árvore se
estivesse sóbrio?

Ela riu ao ouvi-lo.

— Não. E como soube qual era meu quarto?

— Era o único que ainda tinha as velas acesas.

Não era uma dedução nada romântica. O que esperava?


Estava a ponto de chantageá-lo e, além disso, deixou bem claro que não
lhe interessava ter algo com ele. E não a interessava absolutamente.

144
— Por que está aqui, Gabe? Aposto que não quer representar
a cena do balcão entre Romeo e Julieta.

Ele a observou com o olhar.

— Gosta muito de apostas, não Lilith? Nunca entendi o


modo que você e meu pai se divertiam tanto em correr riscos tão
estúpidos.

O que tinha a ver seu pai com aquela situação? Mas antes
que pudesse perguntar, Gabriel mudou de assunto.

— Estou aqui porque, no salão de baile, disse-me uma coisa,


e não tive como responder.

Lilith levantou uma sobrancelha e escondeu sua expressão


de ansiedade. O que diria a ela? Talvez o motivo de estar somente atrás
dela? Por sua cabeça passou uma mistura de esperança e temor. Faria
uma ameaça? Acaso lhe era tão difícil afastar-se dela como para ela se
afastar dele?

— O que...?

De repente Gabriel estendeu-lhe a mão e a pegou pela nuca.


Seus dedos se enredaram em seus cabelos que passara tanto tempo
escovando. Atraiu-a com força para si, e a aproximou tanto que seus
seios se comprimiram no peito dele. Surpresa, e plenamente consciente
do corpo dele através da camisola e robe de seda, Lilith se limitou a
olhá-lo enquanto ele aproximava a cabeça. Então Gabriel sussurrou:

— Eu também a desejo, e muito.

145
Reclamou seus lábios com os dele. Com o coração
martelando e o sangue fervendo, Lilith deixou que a beijasse. Inclusive o
segurou pela cabeça com as próprias mãos para que não se afastasse. A
ferida na mão esquerda ardia, mas a ignorou. Abriu sua boca para ele, e
saboreou o gosto morno e persistente de brandy e charuto.

Aquilo era loucura. Não fazia sentido. Era errado, e


entretanto nada durante os últimos dez anos lhe parecera tão incrível e
indubitavelmente perfeito. Seus lábios se moviam juntos, insistentes e
quase frenéticos, enquanto as línguas se saboreavam. Todos os nervos
do corpo de Lilith estremeciam com aquele contato, embora dentro de
sua cabeça uma voz lhe gritava que parasse. Não podia... Não queria...
E se a levasse para a cama, sabia que não teria forças nem vontade
para impedi-lo. Deixaria-o fazer tudo que quisesse.

E no dia seguinte voltariam a brigar, porque ela sabia que o


que havia entre eles, fosse o que fosse, estava além da razão. Foram dez
anos de frustração, solidão e dor... Aquilo já tinha vida própria.

Gabriel interrompeu o beijo, e, embora ela não quisesse, algo


em seu interior a fez afastar-se dele.

— Estou preparado para o jogo. - Disse.

Sua boca úmida estava só a uns centímetros da dela.


Aturdida, Lilith se limitou a ficar ali, de pé, olhando como lhe dava as
costas e saía pela janela. Da árvore lhe lançou um último e persistente
olhar; seus olhos a percorreram centímetro a centímetro, com tal
intensidade que o pulso dela fez correr seu sangue por todo o corpo em
velocidade alucinante. Logo desapareceu.

Lilith debruçou-se à janela e o viu saltar o outro ramo com


uma agilidade tão juvenil que seu coração subiu-lhe à garganta. Mal

146
podia distinguir suas feições na escuridão. Gabriel chegou ao chão, e só
viu o branco de sua camisa ao longe.

— Amanhã a noite estarei aqui preparada para a primeira


partida. -Gritou.

Lilith prendeu a respiração, estava tão preocupada com sua


integridade física que nem se importou que alguém a ouvisse. A brisa
morna levou até ela um riso que acariciou seus ouvidos, com uma
suavidade que deixou sua pele arrepiada e fez seus seios túrgidos
pesarem.

— Mas, Lil, depois será minha vez.

147
Não era certo gostar daquilo.

A princípio supôs que, para exigir uma explicação, Lilith se


decidiria por uma reunião particular, em plena luz do dia, mas o
surpreendeu, mandou-lhe um convite para jantar, um jantar em
público, e à vista de todos os seus clientes. Certamente, falou a sério
quando disse que tentaria desacreditá-lo.

De pé em meio ao setor exclusivamente masculino do


Mallory's, Gabriel observou a atividade ao redor com apreensão
dissimulada. O desafio de Lilith acrescentara um elemento interessante
ao ser conduzido ao salão do clube, como se sua mera presença ali
bastasse para fortalecer ainda mais sua determinação em lutar pelo que
era dela. Lilith tinha ameaçado destruí-lo e descobrir todos seus
segredos, e embora soubesse que não permitiria, Gabriel desejava que
descobrisse tudo para que não tivesse mais que se preocupar em
protegê-los. Sem contar que adorava provocá-la. Apreciava saber que

148
ainda despertava paixão nela, embora isso os afastasse tanto quanto os
aproximava.

Apesar de estar em perigo certo de ver-se como previu


Blaine, decidiu manter seus sentimentos por Lilith à margem de sua
investigação. Tampouco achava capaz de tal procedimento. Conhecia
Lilith, talvez não tanto quanto antes, mas mesmo assim... Na noite
anterior, bêbado e imprudente, tanto por escalar uma árvore para lhe
alcançar a janela, encontrara embaixo da aparência fria um vislumbre
de "sua Lily”. Com os cabelos soltos e o rosto limpo, fora como nas
noites em que ele subia às escondidas em sua janela. E quando lhe
sorriu, Gabriel achou muito fácil esquecer tudo o que se passara entre
eles e ter a ilusão de serem jovens outra vez.

Desejava-a. E a única coisa que o impedia de tentar possuí-


la eram três coisas: a culpa que despertava seu desejo, não tinha
confiança nela e que as más línguas começassem a falar. Se não fosse
cuidadoso, mancharia a própria reputação, uma reputação que lhe fora
difícil reerguer nos últimos anos. E entretanto ali estava ele, desejando
assumir riscos para provar que Lilith era inocente e que não
trapaceava. E se estivesse enganado, e se a jovem por quem se
apaixonou já não existisse, seria culpa sua: pois preferiu proteger sua
família do escândalo enquanto Lilith se tornava o centro de outro. Sim,
desgraçadamente acabara por destruir sua vida.

— Não acreditei que tivesse coragem de vir.

Ao ouvir a voz rouca e baixa sentiu um calafrio pela coluna.


Voltou-se, mas não estava preparado para o golpe que sentiu no
estômago ao vê-la. Com um vestido de cetim verde escuro e os cabelos
recolhido em um penteado complicado no estilo clássico, que deixava
boa parte da juba densa solta as costas, Lilith parecia uma boneca de
porcelana. Uma boneca que a todo homem adoraria manusear.

149
Inclusive se dignara a usar menos cosméticos que de costume, sua pele
tinha um tom mais autêntico, só as bochechas e lábios eram
iluminados por uma cor falsa.

— Ultimamente ouvi muitas vezes isso. - Gabriel retrucou


quando recuperou a voz. — Faz-me perguntar por que diabos todos se
surpreendem tanto.

Com as mãos à costas, Lilith se aproximou dele, o suficiente


para que lhe sentisse o perfume cítrico vindo dela. Um sorriso confiante
curvava seus lábios. O que manteve os olhos dele cravados nos seus,
face à tentadora proximidade do fruto voluptuoso de seus seios.

— Provavelmente por que todos esperávamos em segredo que


não viesse.

Seu tom zombador era contagioso.

— Com que objetivo?

Lilith parou a um palmo de distância dele e arqueou uma


sobrancelha.

— É possível que Sua Senhoria não saiba que


frequentemente faz todo o possível para intimidar a quem o rodeia?

Rindo, Gabriel respondeu:

— Certamente que não!

Lilith avançou um passo mais, com um sorriso cativante.

150
— Mas o faz realmente. E devo dizer que sua técnica
melhorou muito nos últimos anos.

O flerte era uma habilidade que Gabriel não se incomodou


em aperfeiçoar. O comportamento indecoroso de sua mãe o fez sentir
uma forte antipatia por lisonjas vazias e as insinuações, e sempre que
se aproximava de uma mulher deixava bem claras suas intenções, mas
com Lilith, simplesmente, gostava deste jogo. Talvez porque estava
muito decidido a ganhá-lo.

— E também melhorei muito em outros aspectos.

A informação chegou acompanhada de uma aproximação


ainda maior.

— Disso não tenho dúvidas.

O olhar dela era frio e sagaz, Gabriel sorriu ao ouvir a


aspereza em sua voz.

— Você também melhorou muito, Lil, tal como um bom


vinho.

Com um resmungo desdenhoso, Lilith perguntou:

— Se refere a minha idade, Sua Senhoria?

— Pare já com essa tolice de "Sua Senhoria". - Passou-lhe as


pontas dos dedos pela carne macia e aveludada de suas bochechas, e
ela deu um pequeno gemido. — Mata-me o desejo de ser poético sobre o
quão embriagadora você é, mas sei que não é o tipo de mulher a quem
se corteja com elogios fúteis.

151
Lilith riu, um pouco nervosa, conforme pareceu a ele e
recuou um passo.

— Meu caro Gabriel, por um instante quase acreditei em sua


sinceridade.

Foi então que ele se lembrou de seu desafio: a partida, como


ela tinha chamado. Lilith acreditava que jogaria com ela, e
provavelmente assim seria, mas isso não significava que estivesse
mentindo.

— No passado cheguei a dizer coisas que não sentia, Lil, mas


fazer elogios vazios nunca esteve em minha lista.

Com um sorriso, no melhor dos casos precário, Lilith


comentou:

— Nunca exagerou nos elogios meu caro. Nesse sentido, é


uma raridade entre os de seu sexo.

Baixou o olhar para o chão. A suavidade em sua voz e as


palavras agradaram Gabriel, que sentiu calafrios em seu interior. Será
que naqueles dez anos ninguém a tratara como realmente merecia?
Certamente no lugar em que se escondeu dele, alguém a tratou como
uma dama? Uma dama sensual e incrivelmente doce... E Gabriel
adoraria arrancar os braços desse alguém.

— Por que não me escreveu? - Perguntou em um sussurro.


— Eu a teria trazido de volta para casa.

O rosto de Lilith ficou branco como a neve, seus olhos se


arregalaram, tornando-se escuros e brilhantes.

152
— Não se atreva a brincar comigo. Escrevi mais cartas do
que pude contar, até finalmente perceber que não significava nada para
você. Não permitirei que me faça de tola.

Escreveu a ele? Impossível! Nunca recebeu uma carta sequer


dela. E nenhum membro de sua família o informou tampouco de seu
paradeiro, com exceção de sua tia Imogen, que morava em Veneza,
mandou uma carta muito amável, e mesmo assim, mandando-o cuidar
de sua vida e que deixasse sua sobrinha em paz.

— Nunca recebi nenhuma carta sua.

Lilith entreabriu os olhos zangados e, hesitante, recuou


vários passos.

— Não é possível. Está mentindo.

Gabriel a seguiu, ferido com a acusação.

— Que sentido teria em mentir agora? Se realmente me


escreveu, alguém interceptou suas cartas.

Com desprezo, Lilith perguntou:

— E quem faria algo assim?

— Onde e com quem estava?

Com as mãos nos quadris, lhe lançou um olhar de ódio.

— Com minha tia Imogen, na Itália. Foi a única que quis me


acolher.

153
Sua tia Imogen... Um súbito sabor amargo invadiu a boca de
Gabriel. Imogen: a que lhe disse para cuidar de sua vida, que não sabia
onde estava Lilith... E durante todo aquele tempo a velha bruxa a
escondeu dele. Por quê?

— Ela teria algum motivo para ficar com suas cartas?

Manteve a voz baixa e tranquila, não lhe convinha enfurecer-


se. O tom de Lilith indicava o amor que tinha pela tia, se afirmasse que
a mulher mentiu aos dois, exigiria provas, isso se antes não mandasse
expulsá-lo do clube a pauladas, e ele tinha como provar. A cor voltou a
subir ao rosto de Lilith.

— Por que faria isso?

Uma pequena dúvida suavizara um pouco a dureza em seu


tom de voz. Não queria pensar mal da tia, e ele não a censurava por
isso, ainda mais depois do modo como foi tratada pela família, mas
tampouco se negava a desacreditar das palavras dele, e isso deu a
Gabriel mais alegria do que queria admitir. Respondeu:

— Você tem mais dados que eu para responder.

Lilith franziu o cenho e negou com a cabeça.

— Tia Imogen nunca faria nada que me prejudicasse.

— Provavelmente ela não pensasse do seu ponto de vista.

Em seu interior, Gabriel não se sentia nem a metade tão


calmo e diplomático quanto aparentava ser. Se a tia de Lilith
interceptou as cartas e os separou, esperava que a velha harpia
estivesse ardendo no fogo do Inferno.

154
Lilith continuava de cenho franzido, enquanto mordia o lábio
inferior. Então, usando um tom de falsa animação, propôs:

— Deixemos de lado o passado, certo? A mim basta saber


que me escreveu.

— Você acredita em mim?

Lilith levantou a cabeça subitamente, com os olhos


arregalados.

Os lábios de Gabriel se curvaram em um sorriso. Parecia


surpresa em acreditar nele, e se estivesse mentindo? Sem querer saber
por que, o fato mais o alegrou.

— Claro que sim. Quem mentiria depois de todos estes


anos?

Lilith se limitou a fazer um gesto afirmativo, estava claro que


já pensava em outras coisas: dezenas de pensamentos agitados
circulavam em sua mente. Se ele acreditava que as cartas foram
interceptadas, melhor seria corresponder acreditando nele, do contrario
teria que expor a ideia de que sua tia mentira durante anos, e isso lhe
era muito difícil aceitar. Certamente Gabriel não tinha intenção de
ajudá-la a encontrar a verdade. Só quisera plantar a semente da
dúvida, e o resto seguiria por si mesmo. Como continuou calada,
Gabriel perguntou:

— Vamos jantar aqui?

155
Queria que ela pensasse em outras coisas, não que seus
pensamentos dessem voltas. Então Lilith sacudiu a cabeça e, aceitando
seu braço, respondeu:

— Sim, por ali.

Cruzaram o vestíbulo até chegar a uma porta perto da


entrada do edifício. Aquele era o salão onde os clientes jantavam antes
de jogarem. Essa noite o lugar estava quase lotado, e todos os olharam
ao entrar. Alguns até pararam de levar o garfo à boca, e a comida voltou
a cair ao prato. Outros esperaram que terminassem de passar para
começar a sussurrar. Outros não. Novamente lhe veio uma sensação de
expectativa, iludiu-se ao subestimar Lilith. Era isso o que desejava
desde o inicio: projetar dúvidas sobre ele aos olhos da nobreza. Uma
simples conexão a ela podia lhe provocar um grande estrago e isso o
enfureceu. Como chegaram aquilo? Ela lhe entregara o corpo por
vontade própria, e ele, inconsequente, o tomou. Por que ela hesitaria em
destruir o Conde Angelical?

Sua mesa se encontrava perto de uma bela palmeira no


vaso, embora estivessem à vista de todos, também tinham certa
intimidade. Quando afastou a cadeira para ajuda-la a sentar, Lilith lhe
perguntou:

— Então a mesa ficou a seu gosto?

Sorridente, Gabriel respondeu mordaz:

— Muito.

Tinha escolhido aquele lugar para exibi-lo, ou porque não


confiava em si mesma a sós com ele?... Deus sabia que ele não confiaria
em si mesmo de modo algum se estivesse a sós com ela.

156
O garçom veio com uma garrafa de vinho, não o surpreendeu
que fosse um branco alemão. Lilith nunca gostara do tinto porque lhe
dava dor de cabeça. Conversaram amenidades até chegar o primeiro
prato, e ao cabo de duas taças de vinho e um prato de ostras, a
conversa começou a desviar-se a um território que poderia ter sido
perigoso, mas não fora, provavelmente, pensou Gabriel, porque os dois
queriam chegar lá. Enquanto esvaziava a garrafa de vinho nas taças,
disse a Lilith:

— Lamento por seus pais.

O sorriso que lhe lançou dizia que agradecia o sentimento,


mas que não era necessário.

— Tudo bem? Confesso que a notícia causou muito pouco


efeito em mim.

Lilith bebeu de sua taça e fez um gesto ao garçom para que


trouxesse outra garrafa. Gabriel achou difícil de acreditar em uma
reação tão branda, jamais chegou a receber o perdão de seus pais, nem
eles o seu... Encontrar-se sozinha no mundo era algo duro de aceitar,
sabia porque passara por isso. Claro que ficou “a abnegada” tia Imogen
para cuidar dela.

O olhar de Lilith procurou bruscamente o seu, com uma


intensidade inesperada.

— Mas a morte de seu pai me causou um grande pesar.

"Ai, Lil: teria ficado mais pesarosa ainda se tivesse sabido a


verdade."

157
— Sinto não lhe ter dito pessoalmente.

Ele falava a sério, mas Lilith voltou a sorrir como se achasse


difícil de acreditar.

— Não importa. Tinha coisas mais urgentes a fazer que me


perseguir pelo continente.

O modo como pronunciou as palavras, em tom de paródia,


fez Gabriel franzir o cenho.

— Durante esses anos também tive minhas dúvidas sobre o


assunto.

O garçom lhes trouxe o vinho e mais comida. Quando tentou


encher-lhe a taça, Lilith fez um gesto, tomou a garrafa e ela mesma
verteu o líquido.

— Creio que podemos dizer sem medo, que nos enganamos e


sofremos bastante, Gabriel. Agora nada há a fazer.

— Parece que já estamos fazendo. - Ele disse enquanto


sustentava a taça no alto para que ela a enchesse.

— Ah, sim? - Lilith se acomodou na cadeira, em um gesto


muito pouco próprio a uma dama, e arqueou uma de suas
sobrancelhas. — Acha que me arrependeria se conseguisse arruiná-lo,
Gabriel? Você se arrependeria por fechar meu clube?

Com sinceridade, ele respondeu:

— Sim.

158
A outra sobrancelha subiu.

— Sim a qual das duas perguntas?

Gabriel bebeu de sua taça. O vinho era doce e entretanto


ácido, muito parecido ao temperamento de Lilith.

— As duas. Acho que você e eu acabaremos sofrendo pesares


muito grandes se não formos cautelosos, Lilith.

Então, com ar sarcástico, ela mudou de assunto e empurrou


o prato para ele.

— Coma, ou acabará esfriando. - Insistiu.

Ambos comeram e beberam. Para Gabriel, a principio, a


comida tinha sabor de serragem, mas à medida que passou o tempo foi
lhe parecendo melhor. E novamente começaram a conversar. Inclusive
relembrando quando eram mais jovens e brigavam, nunca ficavam
calados por muito tempo. Entre eles havia algo que tornava impossível o
silêncio. Precisavam das palavras entre eles, o silêncio levaria a
caminhos que hesitavam em trilhar novamente.

Falaram de pessoas conhecidas, e que Lilith não via a anos.


Ou de pessoas que agora a encontravam na rua e não falavam com ela.
Gabriel a informou de que essas pessoas pareciam levar vidas horríveis
só para dar a Lilith um pouco de satisfação.

— Ah, Serena Abernathy. - Disse com um gesto vacilante da


mão. — Casou-se com um francês, um verdadeiro horror de pessoa,
coitada tão envergonhada dele só fica trancada em casa e está
engordando.

159
Em frente a ele, Lilith riu. O som, profundo e gutural, soou
como música aos seus ouvidos.

— Gabriel, está certo de que não está exagerando um


pouquinho?

Gabriel encolheu de ombros e sorriu abertamente. Tinha


tomado muito vinho, e começava a notar. Mas Lilith também estava um
pouco alta, por assim dizer, que importância tinha?

— Obrigado. - Murmurou ela.

Sua mão flutuou sobre os pratos vazios que havia entre eles,
e Gabriel agarrou-lhe os dedos. Temeu que fosse puxar a mão antes que
pudesse tocá-la e, com a pressa, quase colocou a manga do fraque no
creme que tinham comido com os morangos. Seus olhares se fixaram
um no outro, não se importou de que outros vissem.

— Gostaria de subir e tomar mais uma taça de vinho?

Se gostaria! Só que o que lhe passava pela cabeça não era


uma taça, e apostaria que ela também pensava nisso. Lilith queria que
lhe dissesse o porquê de ter escolhido o Mallory's, e não teria outra
escolha que dizer-lhe.

Enquanto a seguia saindo do salão de jantar, cada vez mais


ficava consciente dos olhares e sussurros que surgiam atrás deles.
Acaso sua entrada não tinha provocado suficiente comoção? Mas Lilith
parecia não perceber, ou seria tão boa atriz, ou aquele tipo de coisa lhe
acontecia com maior frequência do que Gabriel desejava saber.

No vestíbulo principal, um grupo de senhoras e cavalheiros


faziam comentários sobre a estátua de Vênus ou sobre suas perdas nas

160
mesas de jogos. Eram muitos, e então Gabriel notou que Lilith não o
convidava ao piso de cima para que falassem em particular: queria que
todos no vestíbulo vissem como a seguia pelo corredor que levava aos
seus aposentos. Na manhã seguinte a notícia correria por toda a cidade.
E estranhamente aquilo não o preocupou. Talvez fosse o vinho, ou
quem sabe estava farto de ser um maldito "anjo". Seja lá o que fosse,
concederia a Lilith aquele momento de satisfação, ele não demoraria a
ter o seu.

E que satisfação seria essa? Fechar o clube? Tirar-lhe o que


restara de dignidade?... Ou possivelmente também entrar dentro dela.
Isso seria satisfatório? Por quanto tempo? Feri-la novamente, e desta
vez sem sequer uma boa desculpa, exceto a promessa feita a um morto,
que nem mesmo lhe pediu para fazer.

Uma vez no piso superior, Lilith o conduziu até um cômodo


que não era seu gabinete, mas que parecia ser seu escritório particular.
Se extorquisse seus clientes, certamente ali estariam as provas... Mas,
dominado por algo muito parecido ao pânico, Gabriel ficou na soleira.

— Não. - Declarou decididamente. — Se vamos conversar,


não o faremos em um escritório. Onde são seus aposentos?

Sem esperar, dirigiu-se ao outro extremo do corredor


abrindo portas ao passar. Fazê-la se embebedar em seu escritório
facilitaria as coisas para ele, mesmo ela planejando usar essa noite
contra ele, acabaria por se sentir sujo se procurasse provas contra ela
naquele momento.

Ouviu Lilith chama-lo:

— Gabriel!

161
E também o som de suas saias enquanto corria atrás dele.
Ele já estava em seu dormitório quando o alcançou. As amarras de seu
autocontrole se desmanchavam em alarmante velocidade, e teve que
lançar mão de toda sua força de vontade, e orgulho, para não se atirar
naquela cama de carvalho e implorar a Lilith que fizesse com ele o que
quisesse.

— Queria saber por que escolhi Mallory's e você. - Declarou


de repente.

Ela estacou antes de chegar ao centro do quarto. Algo na


expressão dele deve tê-la assustado, pois já não parecia tão segura de
si, e Gabriel não a censurou por isso. Rodeada de seus pertences,
naquele ambiente que guardava seu perfume, sentia-se completamente
transtornado. Fora uma má ideia, uma ideia muito ruim desde o
começo. Queria voltar ao escritório.

— Sim, por que nos escolheu? - Perguntou Lilith.

Gabriel passou a mão pelos cabelos. Não seria fácil dizer


aquilo.

— Fui informado de que um cavalheiro foi enganado em uma


de suas mesas, e me pediram para provar o fato.

Lilith ficou com o semblante pálido, tão pálido que o ligeiro


carmim passado nas faces parecia gritar. Entretanto, a seu favor, teria
de dizer que se manteve firme. Qualquer mulher e principalmente um
homem, teria cambaleado ao receber tal acusação.

— Provas! - Repetiu, olhando-o com olhos arregalados. —


Você acredita nesse absurdo?

162
— Eu não sei em que acreditar. - Gabriel respondeu com
sinceridade. — Sei apenas em quem eu gostaria de acreditar.

— Quem fez essa acusação?

Devia se impressionar ou alarmar-se ao ver quão tranquila


parecia? Negou com a cabeça.

— Dei minha palavra de que não revelaria a identidade dessa


pessoa.

Lilith entrecerrou os olhos agora irados.

— E como terei certeza de que essa pessoa ao menos existe?

— Realmente você acha que estaria aqui, sendo exibido


como troféu no Mallory's, por uma mera fantasia?

— Sei no que eu gostaria de acreditar. - Replicou,


impassível.

"Touché."

Seu olhar se fixou nele como se tentasse esquadrinhar sua


alma, não só tentou, o fez.

— Notou que, ao me dizer isso, deu-me a oportunidade de


esconder qualquer prova que demonstrasse essa fraude?

Gabriel assentiu e uma expressão penalizada suavizou as


feições de Lilith. Certo ou errado, ela entendia porque contou a verdade,
não por tê-lo ameaçado de arruiná-lo, mas porque queria que ela

163
soubesse que não a acreditava capaz de uma ação como aquela. Então
acrescentou:

— Não creio também que meus empregados tenham


trapaceado tampouco.

— Isso você não pode afirmar com certeza absoluta.

— Eu confio neles.

— Mas eu não.

Lilith fez um gesto afirmativo, como se esse tipo de coisa


acontecesse todos os dias. Mas e seu caráter? Onde estavam o temor
pelas acusações? Por que falava com calma sobre algo tão grave como
trapacear, enfim, roubar mesmo e, ao mesmo tempo, não podiam falar
do que se passara há dez anos atrás sem magoar um ao outro?

Em instantes, o olhar de Lilith foi do chão ao rosto dele.

— Tal acusação seria um desastre para o Mallory's.

Gabriel assentiu:

— Sei que seria. - Depois de uma pausa, prosseguiu: —


Descobrirei a verdade, Lil. Com sua ajuda ou sem ela. Você é quem
sabe.

"E tenho intenção de usar o que encontrar em proveito


próprio."

Isso não teria de dizer. Ela sabia, viu em seus olhos. Ao fim
de uma eternidade, Lilith respirou fundo.

164
— Creio que vai querer a lista dos crupiers.

Como? Iria ajudá-lo?

— Seria um bom modo de começar.

Com um rictos de desgosto na boca, Lilith fez um gesto seco


de afirmação.

— Permitirei que leve a cabo essa investigação, até lhe darei


minha ajuda... Mas com uma condição.

Gabriel levantou uma sobrancelha.

— Qual?

— Quero uma desculpa por escrito e testemunhada quando


descobrir o quão errado está.

Quase soltou uma gargalhada ao ouvi-la. Por Deus, ela


queria vê-lo arrastar-se.

— Concordo.

— E quero sua palavra de que, quando souber o quão errado


está, vai procurar outro clube para atacar.

Definitivamente, estava ordenando que tirasse o nariz de sua


vida. Era uma promessa que, em sã consciência, Gabriel não poderia
manter.

— Concedido.

165
Lilith engoliu em seco, e ele viu como lhe apertava a
garganta.

— Obrigado.

Que dificuldade visível teve ao pronunciar aquelas palavras?


Provavelmente, ela mesma deveria estar se determinando... Mas sair da
vida de Lilith não era algo para se preocupar neste momento. Agora
tinha sua ajuda. E ela estava ali, ao seu alcance.

— Tem planos para amanhã a noite? - Ouviu-se


perguntando.

De onde saíra aquilo? Lilith não dissimulou a surpresa.

— Os mesmos para todas as noite, estar aqui. Por que?

— Estive pensando em irmos ao teatro.

Ela deve ter detectado a insegurança em sua voz, pois


esboçou um sorriso sarcástico.

— Está tentado a me convidar?

— Sim. - O sorriso se alargou, mas continuou malicioso.

— Tem certeza de que é uma boa ideia? Haverá comentários.

Claro que sim, mas que importava a ele? Não, de modo


algum... Embora devesse lhe importar.

— Dar-me-ia o prazer de sua companhia?

166
Ela hesitou, e por um instante o coração de Gabriel deixou
de bater.

— Sim. - Disse ao fim. — E o prazer será meu.

— Ah... Humm... Ponha um vestido apropriado para a


ocasião. -Ordenou ele, embora sem saber porque usou esse tom. — E,
por favor, não use pintura no rosto. Diabos, ou eu mesmo tirarei de seu
rosto.

Em vez de se zangar ou mostrar-se na defensiva, que era o


esperado por ele, Lilith riu, e Gabriel sentiu um alívio imenso.

— Olha só como você me trata... Mais parece um marido. Por


que não se casou, Gabriel? Todo esse decoro lhe estaria assentado
estupendamente bem.

Foi produto de sua imaginação, ou no fundo de sua voz


havia um pequeno eco de esperança?... Tentando em vão ignorar a dor
que sentia no peito, Gabriel reduziu a distância que havia entre eles.

— Porque, minha querida Lilith, você sempre foi a única


mulher a quem quis neste papel.

Ela o olhou boquiaberta, e deixou surgir um grande, embora


hesitante, sorriso.

— E agora, que tal mais uma taça de vinho? E que sejam


muitas. Não quero que os fofoqueiros de plantão me acusem de
terminar muito rápido.

167


— Sinto-me nua.

Enquanto se olhava no espelho de pé, Lilith passou as


palmas úmidas de suas mãos pela fresca seda vermelha das saias.
Luisa, sua criada de quarto, descartou a ideia.

— “Sei bellissima.”1 - Disse-lhe a criada falando em italiano.


— “Come la signora che è per nascita.” 2

Lilith não se incomodou em lhe explicar o porquê de se


sentir nua. Os vestidos e pinturas escandalosos eram parte de sua
armadura. Aonde quer que fosse vestida assim, já esperava dardos e
sussurros, quer dizer, ajustava-se ao papel que a sociedade lhe dera.
Mas com aquele vestido que Gabriel denominaria "adequado", o rosto
limpo e os cabelos recolhidos em um coque tão complexo quanto
sofisticado, a faziam sentia-se uma jovenzinha que gostava de vestir-se
com os trajes da mãe.

O vestido era primoroso, tinha-o comprado por mero


capricho na última vez que visitara sua modista. Adorou a cor e o estilo,
mas lhe pareceria hipócrita usar algo tão elegante no clube. Tinha o
decote quadrado e baixo, embora menos decotado que alguns
pendurados em seu armário. Seu único adorno era um bordado,
dourado e de um vermelho mais escuro, nas mangas e barra das saias.

1
"Você é linda"
2
“Como a senhora que é por nascimento.”

168
Quanto às joias, colocou pérolas nas orelhas e uma singela gargantilha.
Fiel ao pedido de Gabriel, tinha o rosto sem pintura. A cor das
bochechas se devia a um beliscão dos fortes dedos de Luisa, que lhe
tinha ficado bem, porque sem ele estaria pálida como uma morta.

Estava nervosa, era ridículo, mas realmente estava. Nervosa


por a verem em público com Gabriel, e também assustada, se acaso se
esquecesse e passasse a se comportar como no clube seria um
tremendo fiasco, devia se comportar como uma autêntica dama, o que
sempre fora, mas se alguém insinuasse que não o era... Tinha receio até
em imaginar a cena. Além disso, tampouco queria que Gabriel soubesse
o que diziam dela. Não é que o tivesse perdoado por abandoná-la, seria
preciso muito mais que um convite para uma peça de teatro para
conseguir seu perdão. Mas o que ocorrera no passado só dizia respeito
aos dois, e se alguém, alem dela, fizesse Gabriel se sentir culpado...
Tinha a forte suspeita que o remorso sentido por Gabriel quase se
igualava ao seu.

E que tolice era aquela de trapaças em seu clube? Parecia


sincero ao falar da acusação, mas embora estivesse quase convencida
de que, se não fosse pela acusação, não teria se aproximado dela
novamente, não podia deixar de desconfiar dele. Afinal, há uma década
vinha pensando o pior dele... Mas a acusação certamente não era
válida. Seus empregados eram honrados. Lilith se assegurava de
contratar pessoal íntegro ou ao menos assim pensava. Além disso, não
havia tempo para alterar os livros de apostas que cada um tinha que
preencher com os lucros e perdas no final de cada noite, para que ela os
conferisse no dia seguinte, sem contar que eram minuciosamente
revistados antes de sair do clube. Talvez... Se o crupier fosse desonesto,
e encontrasse um meio de driblar seu sistema de segurança...

169
Gabriel conseguira fazê-la duvidar de seu pessoal. Com
quanta facilidade queria acreditar em tudo o que dizia... Era
vergonhoso. Ele estava errado. E provaria.

— Quer o xale português? - Luisa perguntou, desta vez em


inglês. — Vou pegá-lo.

Enquanto a criada saia, Lilith aplicou perfume atrás das


orelhas e no decote. O perfume de laranjas impregnou o ar, a essência
familiar acalmou seus nervos tensos. Será que Gabriel ficaria satisfeito
com sua aparência? A opinião dele não deveria lhe importar, mas
importava, assim como a afirmação de que não recebeu suas cartas.
Não, isso era impossível... Mas ele parecera tão sincero que a questão
não lhe saía da cabeça. Se não fosse por todo o vinho que beberam, não
teria conseguido dormir naquela noite. De fato, a primeira coisa em que
pensou ao despertar foi no mistério das cartas.

Tia Imogen sempre se ocupava do correio. Seria possível que


não tivesse mandado suas cartas a Gabriel? Parecia uma atitude tão
indigna acusar à mulher que fora como uma mãe para ela, mas se
Gabriel dizia a verdade, que outra coisa poderia ter acontecido? Tinha
que ser mentira. Talvez não quisesse feri-la com a verdade, então jogou
a culpa na morta que não poderia se defender... Ou fora uma artimanha
para distraí-la e assim maquinar contra ela e seu clube. Tia Imogen
nunca faria uma coisa assim, e muito menos, sabendo o quanto Gabriel
significava para ela.

“— Aproveite sua juventude e liberdade, Lilith. Vai encontrar o


homem certo, mas a oportunidade de encontrar por si mesma é um luxo
que não se concede com frequência a nosso sexo. Vai esquecer o conde, e
um dia se alegrará por tê-lo feito. Que moça estaria preparada para ser
uma esposa submissa aos dezessete anos? Isso destruiria seu espírito,
querida. Confie em mim. Eu também fui jovem uma vez.”

170
As palavras ditas há tanto tempo atrás, vieram
acompanhadas por carícias em seus cabelos, enquanto Lilith soluçava
dolorosamente em sua cama. Soluçava por Gabriel e por sua ausência.
E se...?

— Aqui está o xale. - Anunciou Luisa, enquanto entrava no


quarto com um xale de caxemira nas mãos. — Vai encontrá-lo aqui ou
no salão de recepção do clube?

Lilith voltou de repente ao presente. Enquanto a criada lhe


punha o xale nos braços, respondeu em voz baixa:

— Em nenhum dos dois lugares. Diga aos criados que o


espero no escritório do clube.

Quando Lilith chegou ali, já havia alguém: Mary. E embora


se sentisse embaraçada ao ver a amiga, pensou que era melhor esperar
com ela do que sozinha com seus pensamentos.

— Perdão, não sabia que estava aqui.

Mary levantou o olhar dos papéis desdobrados pelo


escritório. Tinha uma expressão cautelosa.

— Estou fazendo as contas. Os fornecedores de brandy


querem mais dinheiro se tiverem de enfrentar às ameaças de Bronson.

— Sério. Acaso sabe qual foi a reação de Bronson ao nosso


pequeno esquema?

Lilith sabia quem era o fornecedor de bebidas de Bronson e o


subornou para atrasar as entregas ao clube dele. Não chegava a ser um

171
ato declarado de agressão, mas bastaria para ele entender que não se
deixaria intimidar.

— Nada ainda. - O olhar da amiga a percorreu dos pés a


cabeça. — Vai sair?

— Gabe... Lorde Angelwood vai me levar ao teatro.

Mary sorriu com malícia.

— Ah, é mesmo? Bem, a mim parece que há muito mais do


que está revelando. De minha parte, tenho planos de escrever uma
carta ao reverendo Sweet.

Intrigada, Lilith cruzou o tapete para aproximar-se da mesa.

— Não posso acreditar que ele aceitou as fichas?

A outra riu ao responder:

— Está de brincadeira? Claro que não! Devolveu-as com


uma resposta bem fria, insinuando que tentávamos corrompê-lo assim
como Eva tentou Adão.

Lilith aplaudiu enquanto ria.

— Como planeja responder-lhe?

— Simplesmente direi que você só estava se divertindo um


pouco com ele, que não devemos guardar rancor, esse tipo de coisas...
Mas você está muito bonita, eu diria até radiante... Certamente
Gabriel... Perdão, Lorde Angelwood ficará extasiado.

172
Lilith corou violentamente diante do sorriso zombeteiro da
amiga, desviou o olhar um instante e a olhou de novo.

— Sinto... Fui insensível e maldosa. Perdoe-me.

— Perdoá-la? - Mary se recostou na poltrona com expressão


surpresa. — Minha querida amiga, a perdoei cinco minutos depois. Foi
você quem me manteve à distância.

Agira assim? Não tinha percebido. Estivera preocupada com


as maquinações de Bronson, e também com a volta de Gabriel, para
notar que fora ela quem mantivera à distância.

— Como disse sinto muitíssimo por ser tão tola. - Lilith se


deixou cair em uma das poltronas que havia em frente à mesa de
madeira pesada e suspirou. — Ah, Mary, temo não estar com a cabeça
no lugar.

— Acabará resolvendo tudo. - Assegurou-lhe a amiga. —


Sempre o fez.

Lilith riu com amargura.

— Realmente? A situação parece tomar um rumo complicado


e não estou tão segura de que seja o caminho certo a seguir.

— Parece que o destino deu a você e a Lorde Angelwood uma


nova oportunidade.

Lilith soltou um resmungo de desdém.

— Tampouco estou certa de que seja isso. Uma parte de mim


ainda acredita que ele só pretende me arruinar novamente.

173
— Talvez por ser isso o que você planeja fazer a ele.

Lilith encolheu os ombros.

— Esse é o problema, já não estou certa de querer fazer isso.


Parte de mim ainda quer vingança, mas quanto mais tempo passo com
Gabriel, mais percebo que não o odeio. Nem estou certa de tê-lo odiado
uma vez. Consegue entender o sentido disto?

Com um sorriso carinhoso, Mary fez um gesto de


assentimento.

— Aqueles a quem se ama, são os que têm o poder de causar


mais dor. Parece que o passado feriu, tanto você quanto Gabriel, mas
creio que deveriam se perdoar em vez de se machucarem mutuamente.

— E se ele conseguir fechar o clube? Como poderei perdoá-


lo?

Mary inclinou a cabeça de lado.

— Acha que seria mais fácil que ele a perdoasse por


arruinar-lhe a reputação diante de seus iguais? E você, se sentiria feliz
com isso?

— Eu... - Lilith não queria pensar nisso agora. —


Sinceramente, não sei.

— Não sabe? O que diz seu coração? O que você mais deseja
nesse momento? O Mallory's ou o homem que ama até hoje?

O coração de Lilith lhe veio a garganta.

174
— Mas eu não amo Gabriel! Isso seria loucura!

Suas palavras não soaram convincentes nem a ela, portanto,


não enganaria Mary. Não podia estar apaixonada por ele. Isso era
ridículo. Tinha vinte e sete anos, não dezessete... E ele já não era o
jovem doce e inocente, tinha amadurecido e mudado tanto quanto ela.
Mas teriam mudado tanto? Sempre que estavam juntos, e que não
estavam em desacordo, parecia ser como antes.

Alguém bateu a porta antes que Lilith respondesse a amiga.


Era um lacaio, que anunciou:

— Lorde Angelwood chegou, minha senhora.

— Obrigado. - Respondeu ela. Levantou-se e olhou Mary com


um sorriso tremulo. — Me deseje sorte.

— Não precisa disso, mas manterei os dedos cruzados se


assim se sentir melhor.

Sim. Tampouco faria mal se cruzasse os dedos dos pés


também.

Ao sair, Lilith respirou devagar para tentar acalmar seu


estômago e nervos. Seria por ir ao maldito teatro!... Gabriel a esperava
no vestíbulo do clube, onde também havia uma dúzia de curiosos, e ela
ignorou os olhares intensos de admiração que lhe dirigiram ao vê-la
passar.

— Lady Lilith, sentiremos sua ausência esta noite. -


Comentou o senhor Dunlop quando passou ao lado dele. E acrescentou
em voz baixa: — Vai surpreender a todos.

175
Dirigiu um breve sorriso ao escocês, e Gabriel se aproximou
bastante sério.

— Boa noite, Lorde Angelwood.

Senhor, parecia uma idiota deslumbrada! Mas como se


sentiria de outro modo? Estava diante do homem que lhe roubou os
sentidos e a razão. Alguém severo e imponente, zombeteiro e sensual...
Até seu cenho franzido lhe dava vontade de sorrir.

— Lady Lilith. - Seu tom parecia sincero. — Está belíssima


esta noite.

Seus olhos cinzentos se iluminaram, e Lilith não pôde evitar


de responder com um sorriso:

— Obrigado, Sua Senhoria, tenho uma criada de quarto que


faz maravilhas.

Sem deixar de olhá-la nos olhos, Lilith sentiu que também


lhe acariciava o corpo com o olhar. Ouviu Gabriel murmurar:

— De fato, fez um trabalho primoroso.

E então, corando como uma colegial idiota, aceitou o braço


que lhe oferecia e lhe permitiu escoltá-la até a carruagem que os
esperava na rua.

Já na carruagem, Lilith perguntou:

— Alguém nos acompanhará esta noite?

176
Ou começava a falar, ou se lançaria sobre ele ali mesmo! Por
ser um cavalheiro respeitável, certamente o quereria à altura de sua
reputação de desencaminhada, mesmo sendo ele a colocá-la ali.

— Lembra-se de meu amigo Braven? Ele e a esposa


chegaram de Yorkshire e virão conosco.

Lilith o ouvira falar dele muitas vezes quando jovens. Era


um dos melhores amigos de Gabriel, e sabia que Lorde Braven devia ter
ouvido falar dela também. Talvez por isso Gabriel evitasse seu olhar?
Ou era por não desejar ser visto a sós com ela, como ela esperara
tolamente?

— Não sabia que estava na cidade.

Ele pigarreou.

— Chegaram esta manhã.

Lilith sorriu com desgosto. Deveria tomar aquilo como um


insulto, mas lhe era impossível neste momento.

— Ele voltou à cidade para ter certeza de que eu não voltaria


a fincar as garras em você novamente, certo?

Por fim Gabriel a encarou. Em seus lábios havia um sorriso


de autocensura.

— É mais provável que queira ver como recebo meu castigo.

— Ah! Então, é o melhor e mais sincero dos amigos.

O sorriso aumentou.

177
— O melhor, sem dúvida.

Lilith brincou com as franjas de seu xale.

— Nesse caso, gostarei de conhecê-lo, e farei todo o possível


para não decepcioná-lo, nem a ele nem a esposa.

— Não creio que possa decepcioná-lo e nem tente, Lil.

Ela sorriu também ao ouvir o tom ferino de sua voz e seu


nome dito carinhosamente. Aquele era um dos momentos em que
parecia que os anos não tinham transcorrido... Quanto tempo isso
duraria.

— Gabriel pode fazer uma coisa por mim?

Algo em sua voz deve tê-lo alertado sobre a importância do


que iria pedir, pois sua expressão se transformou em preocupação.

— Diga?

— Se... e digo "se", descobrir que um de meus empregados é


culpado de trapacear, me dirá antes de fazê-lo publicamente? Quero
tomar minhas próprias medidas.

Durante um instante ele a observou se perguntando, se


essas medidas teriam algo interferindo com seus próprios planos.
Absolutamente, só pretendia demitir o culpado, se é que havia um, e
tentar salvar as aparências, dentro do possível, antes que a notícia se
espalhasse. Logo assentiu.

— Sim. Direi a você primeiro.

178
— Obrigada. - Retrucou Lilith.

Ele acreditava em suas razões, isso queria dizer que ainda


sentia alguma confiança nela, embora fosse mínima. Também ela
confiou em que manteria sua palavra. Se não fosse por seus diferentes
pontos de vista sobre o jogo, e pelo empenho de Gabriel provar se era ou
não desonesta, Lilith começaria a imaginar que existisse uma chance de
reatar o que houvera no passado. Mas entre eles ainda haviam muitas
questões pendentes, e embora não conviesse a Gabriel se expor daquele
modo, ele parecia insistir em levar a questão adiante. Por quê?

Deveria perguntar, mas tinha a sensação de que ele não


estava preparado para lhe responder. Não fizera nada para merecer sua
confiança, e Gabriel não lhe oferecera algo que realmente ela pudesse
empregar contra ele. Ah! Ele até teria a desfaçatez de dizer que nunca
faria algo tão desprezível como usar uma informação pessoal para
ganhar a batalha entre eles, mas ela o faria. Se a encurralassem, como
uma grande ratazana, usaria o que estivesse ao seu alcance para
escapar. A vida a endurecera.

— Ficou muito calada de repente.

A voz de Gabriel a devolveu ao presente, e se obrigou a


sorrir.

— Perdão, estava distraída.

— Estava mais do que distraída. Gostaria de conversar sobre


o que a preocupa?

Aquela não era o momento de demonstrar amizade... Nada


disso. Seria muito fácil lhe negar uma resposta.

179
— Não.

Ele soltou uma risada abafada, soando muito baixa e íntima


na carruagem fechada, principalmente com a luz tênue da lanterna, que
lhe suavizava as feições esculpidas e a faziam lembrar o jovem que fora.

— Pensava em mim, não é?

— Deus. Mas que homem mais convencido! É claro que não!

Lilith amaldiçoou sua reação súbita de irritação, esse tom


não faria mais que convencê-lo de que estava absolutamente certo.

Gabriel voltou a rir.

— Espero que seus pensamentos sobre mim sejam tão bons


como os que geralmente tenho sobre você, Lil.

— Você pensa em mim?

O bom humor de Gabriel desapareceu.

— Não posso acreditar que tenha a coragem de me perguntar


isso.

— Que tipo de pensamentos? - Tinha que perguntar embora


não estivesse certa de querer saber.

— Ah! – Gabriel disse em voz alta, e pareceu aliviado. — Já


chegamos.

180
A carruagem parou, e antes que Lilith pudesse pronunciar
outra palavra, Gabriel já tinha aberto a porta e saía à rua.

— Disse a Brave que nos encontraríamos aqui fora. Vou


procurar sua carruagem e voltarei logo. Espere-me aqui.

Fechou a portinhola, amortecendo o som das risadas e o


bufar dos cavalos que enchiam o ar noturno. Ao ficar sozinha, Lilith
sentiu sua ausência intensamente. Naquele espaço, que a presença dele
diminuía, agora lhe parecia tão grande como uma caverna.

Gabriel confessara que pensava nela... Pensamentos tão


secretos que não podia confessar. Bem. A ideia alegrou seu coração,
embora sua cabeça lhe dissesse que daquilo nada de bom sairia.

Então abriu-se a porta da carruagem.

— Foi bem rápido. - Comentou rindo. — Já encontrou seu


amigo?

Mas quem surgiu não foi Gabriel. De fato, aquela presença


lhe causou medo e todos os pensamentos sobre Gabriel sumiram.

— Bronson.

Seu rival a deixou ver os dentes em um grande sorriso,


dentes que mais pareciam os de um lobo que de homem.

— Boa noite, Lady Lilith. Fingindo ser uma dama da


sociedade esta noite, hein?

— Eu nasci uma dama, senhor. Não tenho pelo que fingir.

181
Seu tom frio e cortante teria funcionado com qualquer outra
pessoa, mas não com Bronson. A raiva em Lilith o divertiu e seus olhos
pálidos brilharam maliciosos. Seria um homem bonito se não fosse tão
infame.

— Mas já não pertence mais a essa classe, a não ser que,


hoje em dia, ser a puta de um Lorde a faça fazer parte. - Bronson a
percorreu com os olhos muito lentamente, deixando uma trilha
asquerosa em sua carne, e acrescentou: — Gosto mais de você com os
lábios pintados e as tetas levantadas.

Semelhante vulgaridade soou-lhe estranha vindo daquele


homem. E tão estranho foi o que sentiu Lilith: vergonha, uma vergonha
tão grande que a fez desejar se cobrir por inteiro com o xale. Mas não o
fez. Bronson só estava revelando sua verdadeira origem. Um homem
que se arrastara da miséria, tentando se passar por um cavalheiro e por
mais que se esforçasse, saindo de onde veio sempre carregaria o fedor
da putrefação.

— E o que me agrada mais é sua distância, senhor Bronson.


E agora, por mais difícil que lhe seja, tenha a gentileza de sair de minha
presença. Lorde Angelwood chegará a qualquer momento.

Bronson entreabriu os olhos.

— Eu e outros proprietários de clubes, queremos saber o que


você pretende fazer. Angelwood parece decidido a acabar com nossos
negócios.

Lilith o olhou sem perder a compostura e apertou os lábios


para impedir que tremessem. Bronson lhe dava medo, era como um
animal selvagem: feroz e imprevisível... Desumano.

182
— Talvez ele consiga fazer isso, mas ao menos não recorreria
ao roubo e vandalismo tentando fechar meu clube.

A expressão de Bronson se endureceu.

— Se soubesse que a única coisa que precisava para me


meter entre suas pernas, fosse um colete elegante, teria ido ao alfaiate
logo de cara.

Lilith riu. Não era a reação que Bronson esperava, como


mostrou o seu semblante alterado.

— Se seu objetivo fosse esse, escolheu o caminho errado,


senhor Bronson. Deitar-se em minha cama exigiria muito mais do que
um homem como você jamais será. Agora, por favor...

Para sua surpresa, ele recuou até que só a cabeça


continuava visível. Mas antes de desaparecer, sorrindo desdenhoso,
saudou-a inclinando o chapéu.

— Aproveite a noite, cara senhora. E se assegure de que o


conde a devolva sã e salva a casa. Esta área não é muito segura para
mulheres, em particular uma tão bonita.

Lilith se retesou de medo. Bronson a ameaçava? Meu Deus,


nunca pensou que a rivalidade chegasse a isso! Esticou a mão para
fechar a portinhola, quando quase lhe arrancaram os dedos ao abrirem-
na com violência, gritou e se encolheu depressa no canto mais afastado
da carruagem. Bronson voltara?

— Quem diabos era aquele sujeito?

183
Gabriel, querido, doce e forte Gabriel. Estava de cenho
franzido, como um menino que alguém acabou de lhe arrancar seu
brinquedo favorito.

Lilith aliviada aceitou a mão que lhe oferecia e o fitou


enquanto a ajudava a descer. E então, com preocupação e também
ciúmes, Gabriel lhe devolveu o olhar. Ela não teve escolha, colocou um
sorriso falso nos lábios e respondeu.

— Ninguém.

184
— Diga-me quem era.

Lilith franziu o cenho e fez um gesto com a mão.

— Shhh.

Gabriel, com o cenho franzido voltou a se afundar na


poltrona e, a contra gosto, dirigiu sua atenção outra vez a peça. Nem
sequer sabia de que diabos se tratava. Toda sua energia estava
centrada em saber a identidade daquele bode arrumado que vira
falando com Lilith. O que teria lhe dito para assustá-la tanto, que se
encolhera de medo em um canto? Lilith não se assustava facilmente.
Então, por que teria medo daquele homem? Teria ultrapassado os
limites do decoro? E se o fizera, por que não contava a ele?

Provavelmente Lilith não queria uma cena. Tinha que


admitir que estava muito tentado a arrebentar o nariz de qualquer
homem que se atrevesse a insultá-la. Não. Devia ser outra coisa, o
homem não a teria ofendido por ter avançado com intenção de sexo
fácil, ela se tornara uma mulher que não se intimidaria com algo assim,
havia algo mais naquilo.

No cenário, o protagonista tagarelava sobre a inconstância


das mulheres. Com o barulho reinante na plateia abaixo, era difícil
saber o que estava dizendo aquele estúpido.

Merda, odiava o teatro.

185
Por outro lado, Lilith parecia encantada. Em sua poltrona,
com as mãos sobre o corrimão do camarote, contemplava os atores com
o arroubo de uma criança se refestelando em uma caixa de bombons.
Gabriel não sabia o por que de tal fascinação, mas o entusiasmo com
que ria, aplaudia e conversava aos sussurros com Rachel, Lady Braven
o encantaram.

Ele também agradecia a presença de Brave e Rachel, embora


certamente seu amigo tivesse vindo a Londres por pura curiosidade. No
ano anterior, quando Brave se casou e acabou por se apaixonar pela
sua mulher, Gabriel usara a si mesmo e Lilith como exemplo de como
não lidar em um relacionamento. Também dissera ao amigo que não
pensava em voltar a ver Lilith. Por isso não culpava Brave por querer
ser testemunha direta do reencontro. Ele teria feito o mesmo.

Quando Gabriel os convidou a ir com ele e Lilith ao teatro, os


dois aceitaram encantados. Lilith seria bem tratada pelos amigos e,
além disso, Gabriel não ficaria a sós com ela. Comportava-se de forma
tão atípica sempre que ficava perto de Lilith, se pegava imaginando que
assim que as cortinas do camarote se fechassem, a arrastaria para a
parte mais escura e a faria sua ali mesmo. Como se divertiriam os
fofoqueiros! O Conde Angelical fornicando com Lilith Mallory no Drury
Lane!... Malditos hipócritas. Como se eles fossem melhores. Lilith só era
uma menina quando o escândalo estourou. Metade dos nobres, ao
menos, traíam sob o nariz de seu cônjuge e, entretanto, se achavam
melhores que Lilith pois sabiam manter seus casos ilícitos longe do
domínio público.

Acaso sua mãe não fez o mesmo? Suas aventuras eram


legendárias, assim como sua reputação e seus "encontros" secretos com
médicos de má fama. Gabriel não sabia se estavam "curando" de
enfermidades ou outra coisa... E não desejava saber. Amara os pais, os
dois, mas continuava sem compreendê-los. Era muito difícil desejar ser

186
como eles em algum sentido e envergonhar-se deles em outros. Não
jogava porque não queria ser comparado ao seu pai; não levava para a
cama todas as mulheres que o olhavam de esguelha porque não queria
que dissessem que tinha herdado os apetites desenfreados de sua
mãe... Entretanto lá estava ele com Lilith, uma mulher independente de
reputação duvidosa e uma jogadora, e Gabriel a queria mais que tudo.
Valeria a pena arriscar-se e abandonar toda prudência?

Enquanto Lilith olhava embevecida o palco, Gabriel se


permitiu o luxo de observá-la. A vermelho do vestido animava sua tez
macia até dar-lhe o tom suave do marfim, as pérolas que rodeavam seu
pescoço brilhavam e iluminavam sua pele nua, e seu perfume, aquela
mistura embriagadora de laranja e almíscar, inundava seus sentidos. O
fazia sentir-se novamente com vinte e um anos, desejava e a queria com
ânsia mal controlada. Um pensamento dirigido a ela já bastava para
que sentisse uma opressão no peito. O que não daria para ter a
oportunidade de voltar no tempo e mudar as coisas.

Lilith deve ter sentido o calor de seu olhar, porque se voltou


para ele com uma expressão curiosa. Gabriel precisou de toda força
para sorrir. De outro modo, ela teria visto em seu rosto o pesar e a
nostalgia, e ainda não estava preparado para que ela soubesse o quão
profundo eram seus sentimentos. Ainda não. Manteve o olhar em seus
olhos, procurando por algum sinal de que compartilhava sua ânsia...
Mas não encontrou nada. Então desviou o olhar, e por um momento
concentrou-se onde Lilith se agarrava ao corrimão, nas luvas. E ali, já
que não tinha sua atenção, permaneceu seu olhar durante o resto do
espetáculo.

Assim que acabou, Gabriel percebeu a surpresa nas feições


de Lilith quando Rachel a convidou para tomar chá na tarde seguinte.
Seu apresso pela esposa de Brave subiu as alturas, o desejo de brindar
Lilith com sua amizade lhe fora muito caro.

187
— Creio que o verei amanhã também, meu amigo. -
Murmurou Brave aproximando-se do seu lado.

Gabriel sorriu. O interesse que seu amigo mostrava por sua


vida era tão divertido quanto comovedor. Ele, Brave e Julian sempre
foram bons amigos, sempre estavam presentes para apoiar e dar
conforto. Sem dúvida, Julian moveria céus e terras para voltar a
Inglaterra se soubesse que Lilith estava ali. Por isso Gabriel preferiu não
informá-lo da situação em sua última carta.

— De modo algum perderia a oportunidade de ver seu filho.

— Excelente! - Brave comentou com mais jovialidade que de


costume. — Por que não combinamos todos para o chá?

Deus bendito, Brave tentando se passar por casamenteiro!...


Gabriel teria caído em gargalhadas se a surpresa não o tivesse deixado
sem palavras.

Não podia recusar o convite, a pequena armadilha tramada


por Brave e a esposa dera certo, Gabriel se despediu deles e
acompanhou Lilith até a rua, onde os esperava a carruagem. Uma vez a
caminho, Lilith disse:

— Parecem pessoas muito amáveis.

— Sim e são. Não poderia querer melhores amigos. E creio


que você pode contar como eles também.

— Quem sabe. - Na voz dela havia surpresa e cautela. —


Parece que gostaram realmente de mim, não é?

188
— E isso a surpreende?

Aquilo sim o surpreendeu. Deixando de lado as


circunstâncias que destruíram a reputação, por que surpreenderia
Lilith que alguém gostasse dela? Ela se acomodou nas almofadas de
veludo e assentiu, enquanto um sorriso tímido se desenhava em seus
lábios.

— Sim. Não estou acostumada a ter uma aceitação de


imediato.

— Não seja tola. - Gabriel reagiu, com mais dureza do que


pretendia. — Por que não gostariam de você, é uma mulher inteligente e
agradável.

Ela lhe lançou um olhar de regozijo mal dissimulado, em que


havia um ligeiro toque de tristeza.

— Tenho apenas uma amiga, Gabe. Uma.

Quando jovens, disputavam sua atenção aonde quer que


fosse... Gabriel se inclinou para frente, reduzindo a distância que os
separava e tomou-lhe a mão. Dos dedos entrelaçados, levantou o olhar
para seu rosto.

— Tem a mim.

E assim seria. Tão certo quanto respirava, pertencia a ela e


ela, a ele.

Lilith franziu o cenho e puxou a mão, como se seu contato a


queimasse.

189
— Você não é meu amigo, Gabriel.

— Então, o que sou? - Não estava certo de querer saber


realmente.

— Não sei. Mas se fosse meu amigo, não tentaria me


prejudicar como sempre faz.

Outra vez não.

— Lily...

— Vai entrar no clube quando chegarmos?

Com as mãos colocadas sob os braços, onde ele não as


alcançaria se não pela força, Lilith olhou pela janela à rua
escassamente iluminada que percorriam. Estupendo. Que mudasse de
assunto como queria. Economizava-lhe o trabalho de ter de mentir ou
contar meias verdades.

— Sim.

Ela assentiu com um brusco aceno de cabeça.

— Pois saiba que terei assuntos a resolver quando


chegarmos. Não poderei distraí-lo.

Algo no modo como disse a palavra "distraí-lo" vibrou em seu


interior. Então ela se achava apenas uma distração para ele? Gabriel
respondeu irritado:

— A ideia de fazermos esse jogo foi sua, Lily, não minha.

190
Em seu olhar sombrio ela sentiu, mais que viu, todo o efeito
de sua cólera.

— Então devo ficar quietinha em um canto e ver você arruinar


tudo aquilo pelo que trabalhei? Dar-lhe a satisfação de ganhar? - Soltou
um riso desdenhoso. — Isso não vai acontecer.

Gabriel suspirou.

— Embora tenha contado por que escolhi o Mallory's,


continua decidida a fazer disto algo pessoal entre nós?

Com um movimento nervoso dos lábios, um amargo


simulacro de sorriso, Lilith disse:

— Tanto quanto você insistir em que não é.

Onde isso os levaria? Usar a acusação de Blaine como


desculpa para aproximar-se dela, para castigá-la por lhe ter quebrado o
coração há tantos anos? Não. Só acabaria magoando a si mesmo e a
ela. Em tom suave, perguntou-lhe:

— O que deseja que eu faça?

Ela voltou a olhar pela janela.

— Quero que me devolva a vida a que tinha direito. Não quero


ser uma intrusa no mundo no qual nasci. Não suporto mais isso.

— E obrigá-la a renunciar a seu clube fará isso mais fácil. É


o que pensa?

191
Tinha a expressão tão tensa que a mandíbula lhe doía.
Lançou um olhar zangado:

— E não é assim?

Realmente achava que tinha mudado tanto?

— Não. - Respondeu Gabriel. — Não é assim.

Aquilo ajudaria a cumprir a promessa feita a seu pai, mas


não lhe devolveria a juventude, nem Lilith. De fato, a juventude que
desperdiçou tentando proteger a família do escândalo e refazer sua
fortuna, o motivo pelo qual perdeu Lilith, só servira para afastá-la mais.

— Quem era o homem com quem a vi conversando no teatro?

Lilith agora estava realmente zangada, projetou a mandíbula


para frente e respondeu agressiva:

— Chama-se Samuel Bronson. É o dono de um clube, o


Hazards.

— O que ele é para você?

O tom de Gabriel era ciumento e possessivo. Uma risadinha


baixa e carregada de malicia acirrou mais o ânimo dele.

— Que curioso... Ele me fez a mesma pergunta a seu


respeito.

— Então...? – Maldição, se ela não dissesse a verdade, iria


explodir.

192
— É mais um a querer o Mallory's fechado. E ele é um
problema meu, Gabriel, não seu.

O que ela queria dizer com aquilo? Que não tinha nenhum
direito sobre ela, nenhum, por mais que ele acreditasse ter. Não podia
obrigá-la a confiar nele, principalmente por não lhe contar todos os
seus segredos. Mas investigaria quem era Bronson e por que a
assustava. Desenterraria até o último dos segredos de Lilith, nem que
fosse a última coisa que fizesse. Só esperava descobri-los antes que ela
descobrisse os dele.

Os dois passaram o resto do trajeto em silêncio, guardando


seus pensamentos. Como desejava contar-lhe tudo. Ela seria uma das
poucas pessoas que o entenderia, sem mencionar Brave e Jules. Mas
não contara a eles tampouco, e a ela não diria a menos que estivesse
certo de que não usaria seu segredo contra ele.

Lilith o ignorou no momento em que chegaram ao clube.


Gabriel sentiu profundamente sua atitude, e por isso mesmo sentiu
alívio ao vê-la sair. Queria saber de uma vez por todas se realmente
tinha extorquido Frederick Foster e outros como ele. Só então saberia se
era merecedora da confiança que desejava lhe conceder. Tinha que
revistar seu escritório.

Suspeitava que teria ali escondido, tudo o que pudesse


incriminá-la ou, pior ainda, o que provasse sua participação nos fatos,
ou ao menos acobertava a falcatrua. E se ela não estivesse implicada,
talvez os livros do clube proporcionassem a chave que o levaria ao
culpado. Gabriel lhe ocultaria o quanto pudesse suas descobertas.
Quanto menos soubesse, menos estaria preparada. Se fosse culpada,
tentaria confundi-lo e, se não, talvez tentasse proteger seus empregados
a fim de impedi-lo de tomar medidas extremas.

193
O vestíbulo estava deserto exceto por dois cavalheiros, imersos
em um debate acirrado sobre se as classes baixas da Inglaterra se
rebelariam como o tinham feito as da França. Gabriel não teve muita
dificuldade para entrar no corredor que levava aos aposentos de Lilith.
Ela desaparecera no clube com o homem chamado Latimer, e esperava
que se passasse vários minutos resolvendo outros assuntos. Com
presteza e silêncio, subiu as escadas que lhe tinha mostrado na outra
noite. Um exame rápido lhe confirmou que estava sozinho, atravessou o
corredor abriu e fechou a porta atrás de si, cruzou o tapete até chegar a
escrivaninha.

Na gaveta de baixo havia muitos livros de notas. Em um


deles encontrou listas de remessas de licor e provisões, e em várias
remessas anotara a margem: Destruído. Sem dúvida se tratava de
artigos de importação vindos por mar, mas observou que nos últimos
três meses a quantidade de remessas perdidas crescera
consideravelmente. Lilith teria de mudar de fornecedores... Se aquilo
fosse culpa do fornecedor.

O que Lilith falara do proprietário do clube Hazards, o tal


Bronson? Disse que também queria vê-la falida. Seria o desvio ou perda
das remessas o modo que Bronson tentava fazê-la quebrar? Investigara
por cima o clube de Bronson, na verdade quase todos os clubes de
Londres, mas sabia pouco do homem. Mudaria a estratégia. Rivalidade
nos negócios era uma coisa, mas roubo e ameaças eram coisas bem
distintas, e se Bronson estivesse ameaçando Lilith, Gabriel o faria pagar
caro por isso.

Pegou outro livro. Uma lista de empregados, datas de


contratações, salários e um relatório do dinheiro que entrava por noite.
Como era de esperar, as quantidades variavam, mas tudo parecia em
ordem. Todos os números se enquadravam, e não se registrara
diferenças significativas em nenhuma ocasião. Encontrou outro

194
relatório, este detalhando as pessoas que frequentavam o clube: quem
ganhava e quem perdia, e datas. Vários indivíduos tinham sofrido
grandes perdas, algumas foram quitadas outras não, mas algumas
destas foram deixadas em aberto, e as iniciais de Lilith apareciam na
coluna ao lado, junto à data. Por que quitou as dívidas?... A menos, é
claro, que a pessoa pagasse com algo que não fosse dinheiro.
Informação, talvez?

Deslizou o dedo pelas páginas e parou ao encontrar o que


procurava. A dívida de Frederick fora vultuosa, como lhe disse Blaine,
só que a quantia ali era bem superior a que Frederick confessara ao pai.
E tampouco fora quitada no total. Por que Lilith extorquiria Frederick se
não o obrigou a saldar a dívida totalmente? Isso não fazia sentido. Seu
sócio Garnet ampliava o crédito de muitos clientes, mas havia a
condição de que realizassem pagamentos regulares. A entrada de
Frederick não indicava se fora parcelado ou não o pagamento restante.
E certamente, Blaine podia cobrir aquela quantidade... Curioso.

Gabriel voltou a pôr os livros no lugar e fechou a gaveta.


Tinha que voltar ao piso inferior antes que Lilith notasse sua ausência.

Desceu sem ser visto. Lilith deveria melhorar a segurança do


clube. Qualquer um podia subir às escondidas na área particular. Era a
segunda vez que ele chegava aquela parte da casa sem que ninguém o
impedisse de entrar. No clube só viviam Mary, Latimer e alguns criados.
Mary tinha suas próprias acomodações à saída do clube das senhoras,
e as de Latimer estavam situadas mais perto da área dos criados.
Qualquer um podia entrar e esperar Lilith se retirar.

Se alguém se atrevesse a machucá-la ou até assustar, ele


mataria o desgraçado. Só de pensar nessa possibilidade já sentia sua
cólera subir a tona. Pensar em alguém a atacando lhe era tão
aterrorizante quanto à ideia de perdê-la de novo, isso fez seu peito se

195
apertar e lhe fechar a garganta. A possibilidade de que ela
desaparecesse para sempre, ou não ter nenhuma esperança de
encontrá-la no futuro, doía mais do que estava disposto a admitir.

O clube transbordava em atividade. Acima do rumor de


vozes, Gabriel ouviu música baixa. Levantou o olhar e viu vários
respiradouros no alto das paredes, sem dúvida também havia outros no
salão de jantar e no clube das damas. Os músicos de Lilith se
encontravam em um dos salões e todo o clube os ouvia. Um detalhe
inteligente na estrutura da antiga construção, Lilith economizava o
gasto de ter uma orquestra em cada salão.

Não viu Lilith em lugar algum. Gabriel olhava o salão


procurando algum rosto conhecido, alguém com quem dissimular uma
conversa quando Lilith chegasse. A maior parte dos cavalheiros
presentes eram de sua classe, ou os conhecia, mas não queria
conversar com nenhum deles.

Sobre o burburinho se elevavam algumas risadas, salpicadas


com gritos de alegria ou decepção. No ambiente havia uma certa
sensação de euforia. Só de estar ali Gabriel sentiu seu coração pulsar
mais rápido. O que deveriam sentir aqueles que jogavam?... Lilith
afirmara com convicção que nele havia um jogador, pois ele se arriscava
no comércio. Provavelmente tinha razão, mas ele fizera isso para
conservar seu modo de vida, algo que não teria de fazer se antes seu pai
não tivesse perdido tudo o que tinham no jogo. Se o pai ainda vivesse,
sem dúvida estaria sentado em uma daquelas mesas, bebendo e
brindando a Lilith pelo seu magnífico clube. Claro que, se seu pai
estivesse vivo, Gabriel estaria casado com Lilith e o Mallory's não
existiria.

Adentrou mais no clube e a procurou entre a multidão. Seria


tão difícil encontrar uma mulher? Em especial alguém como Lilith.

196
Certamente, havia várias mulheres as mesas, mas nenhuma tinha o
intelecto de Lilith, nem seu vibrante cabelo vermelho, embora estivesse
claro que uma ou duas tentaram conseguir um tom parecido ao dela.

Entretidas, várias amantes ou mantidas... Não lhe era


estranho que os homens troussessem suas queridas a um clube de
jogo. Tradicionalmente, os vícios eram considerados mais satisfatórios
quando se satisfaziam de dois a dois, ou ao menos Gabriel tinha ouvido
isso. Mas o pensamento de deitar-se com uma mulher que se enroscara
a incontáveis homens e com vários, ou só umas horas antes, lhe
revolvia o estômago. Fazia sexo para se aliviar, mas só com as poucas
amantes que tivera nesses anos, preferia sentir um pouco de carinho ou
respeito pelas mulheres que partilhava seu leito.

E, além disso, o sexo nunca fora tão bom e satisfatório como


na noite que ele e Lilith fizeram amor, mas não queria pensar nisso.
Não agora.

Uma cabeça de cachos escuros que lhe parecia conhecida


surgiu em seu campo de visão, e o desassossego o dominou. Que diabos
estaria Frederick fazendo ali? Não parecia natural que um rapaz que se
dizia enganado e roubado, voltasse ao cenário de sua desgraça, ainda
mais quando continuava a dever dinheiro à casa... Ou estaria só
acompanhando os amigos. Se não estivesse jogando, não tinha por que
se preocupar.

O filho de Blaine estava com um grupo de jovens. Era


evidente que tinham bebido, a julgar por seu comportamento
escandaloso e aspecto desalinhado. Avançavam pelo clube como uma
pequena tormenta, obrigando os outros a se afastarem se não
quisessem ser atropelados. Muitos homens os encararam carrancudos e
expressavam sua desaprovação, mas outros riam e os animavam a
continuar. Ao fim, cruzaram as portas da parede em frente, que

197
levavam aos reservados na parte de trás do clube. Gabriel lhes deu
bastante vantagem para que não o notassem atrás deles, e logo os
seguiu pelo corredor deserto. A última coisa precisava agora, era que
alguém o chamasse e alertasse Frederick.

O grupo foi dando encontrões nas paredes até a última porta


a direita, não muito longe de onde Lorde Somerville se encontrou com
Lady Wyndham. Abriram a porta e tentaram entrar todos de uma vez, o
que desencadeou gargalhadas e maldições. Gabriel não pôde evitar de
rir diante da tolice juvenil, ele também já fora assim. A porta se fechou
atrás deles, e então Gabriel se aproximou devagar. Através da madeira
ouviu as vozes amortecidas, mas o rumor distante do clube o impedia
de distinguir as palavras. Ajoelhou-se no tapete estampado de flores,
colou o olho à fechadura e olhou dentro. O que viu o deixou
extremamente irritado.

Estava claro que Frederick não aprendera a lição sobre os


perigos do jogo, de fato, parecia justamente o contrário. Os rapazes
tinham organizado uma partida de dados no chão da saleta, e Frederick
expressava com entusiasmo seu desejo de ser o primeiro em jogar os
dados.

Ao contrário do que prometera a Blaine, Gabriel teria uma


conversa bem séria com o filho do Visconde, mas antes faria uma
pequena investigação sobre o crupier que teria depenado Frederick. E,
se fosse preciso, também conversaria com Lilith. Não o surpreenderia
que o sujeito fosse um vigarista. E ainda o surpreenderia menos saber
que Frederick e seus amigos, a maioria menor de idade, jogando dados
em seus reservados.

Não precisava de mais nada para fechar o clube.

198

Onde ele estaria?

Com o estômago se torcendo de ansiedade, Lilith abriu passo


em meio ao clube apinhado. Passara mais tempo do que planejara com
Latimer, em particular para impedir que seu leal amigo fosse
pessoalmente à procura de Bronson. Contou ao criado seu encontro
com ele só para alertá-lo e ao resto do pessoal para tomarem cuidado
também. E agora Gabriel andava solto pelo clube. Sem dúvida teria
entrado em seu escritório a procura de algo que a comprometesse em
seus livros de notas. Que procurasse. Não encontraria nada... A menos,
que estivesse nas saletas de trás.

Apressou o passo. Não tinha muita certeza do que a maioria


fazia nos reservados e, para ser sincera, não lhe interessava, desde que
não prejudicasse ninguém. Mas sabia que muitas vezes eram usadas
para encontros sexuais, jogar em particular e outras coisas. Se Gabriel
encontrasse algo ilegal ou escandaloso ali, seria fácil fechar o Mallory's.
Faria com que fechassem o clube antes que ela pudesse pensar em
como impedi-lo. E apesar de sua ameaça em contar a todos que o
Conde de Angelwood se rebaixou ao lidar com o comércio, sabia que ele
não pensaria duas vezes em executar seu propósito.

Uma sensação de pânico a dominava quando cruzou as


portas. Então levantou as saias acima dos tornozelos e pôs-se a correr
pelo corredor, o luxuoso tapete amortecendo seus passos, mas nada
sufocava o medo que pulsava em sua respiração ofegante. Conteve o ar
nos pulmões quando, ao dobrar a esquina, viu Gabriel de joelhos no
outro extremo do vestíbulo, soltou o ar de repente em uma exclamação
consternada:

199
— Lorde Angelwood! Que vergonha, o que pensa estar
fazendo?

Gritou tão alto que, certamente, quem estivesse dentro da


saleta teria ouvido. Gabriel lhe lançou um olhar de ódio, tão intenso
quanto jamais tinha visto, e se levantou devagar. Ali, de pé, com seu
traje formal e com os joelhos das calças ligeiramente empoeirados e
enrugados, era o paradigma do homem impressionante e ao mesmo
tempo ameaçador. Se estivesse mais calma e não esbaforida, Lilith teria
sentido medo, mesmo nunca tendo medo dele, embora fosse o único
homem que poderia machucá-la realmente.

— Afaste-se agora mesmo dessa porta. - Ordenou-lhe,


amaldiçoando o leve tremor em sua voz.

Ele a obedeceu, aquilo, em si mesmo, era preocupante. Em


silêncio, com os olhos ainda ardendo de ira, Gabriel foi se aproximando
dela. Estava envergonhado por ter sido pego bisbilhotando, e ela não
melhorou as coisas ao proclamar sua presença aos gritos no corredor.
Bem. Isso o ensinaria a não andar bisbilhotando em seu clube.

— Nada do que acontece nesta parte do clube, pode lhe


interessar. - Lilith afirmou com clareza enquanto ele se aproximava sem
dizer uma palavra. E então a irritação lhe explodiu no peito. — Ande, vá
me denunciar se deseja tanto isso. Quando a polícia chegar, os que
estão atrás dessa porta e muitos outros já terão ido, ou não estarão
fazendo nada que interesse a justiça.

Ele já estava diante dela.

— Se tentar me intimidar, não vai funcionar, estava sendo


pouco convincente, mas serviria. Me nego a encolher de medo e me
render só porque você acha que devo fazê-lo. Eu...

200
— Feche essa boca. - Grunhiu ele, e seus dedos se cravaram
nos ombros dela.

Já iria responder, quando antes de poder dizer uma palavra,


ele abriu a porta que tinham mais perto e a empurrou para dentro. Por
sorte, a saleta estava vazia. Cambaleando, Lilith se segurou no encosto
de um sofá procurando apoio e um obstáculo entre os dois, a toda
pressa.

— Não creio que lhe tenha ocorrido que eu estivesse olhando


pela fechadura por motivos que não têm nada a ver com você, ou muito
pouco. - Gabriel cruzou os braços. — E que ao proclamar aos gritos
minha presença, alertou a pessoa que eu observava.

Lilith franziu o cenho. Do que estava falando?

— De certo que não, Gabe. Por que pensaria nisso, quando


sei que pretende fechar meu clube?

Então um súbito pensamento lhe cruzou a mente. Gabriel era amigo de


Lorde Wyndham. Teria visto Lady Wyndham e seu amante ali? Perguntou:

— A quem observava?

Gabriel suspirou, parecia menos zangado que há minutos atrás.


Aproximou-se dela.

— Frederick Foster vem muito aqui?

Frederick Foster? Ah, sim, o filho do Visconde Underwood. O


que queria ele com Frederick?

201
— Talvez uma ou duas vezes por semana. - Respondeu.

Ultimamente o jovem aparecia com mais frequência, mas


não contaria a Gabriel até ter certeza do que se tratava.

— Ele está aqui. - Gabriel deu outro passo adiante.

Algo em seu modo de se mover fez com que Lilith se sentisse


como um camundongo encurralado por um gato ardiloso. Rodeou uma
poltrona sem deixar de olhá-la nos olhos.

— Sei disso. Por que é tão importante?

Na expressão dele já não havia mais ira, mas parecia alguém


que reprimia as emoções com toda sua força. Lilith não se arrependia
por ter interrompido o que fazia, nem de ter alertado Frederick Foster
de sua presença. Sua conclusão que parecia natural, era que Gabriel
tentava reunir informação. Se ele vasculhara seus papéis, ela não se
sentiria culpada por fazer o mesmo.

— Prometeu ao pai dele que não jogaria mais.

Lilith não pôde deixar de rir.

— E o pai acreditou? Os jovens fazem o que fazem os


amigos, não dão importância ao que querem seus pais.

Gabriel não pareceu estar de acordo, mas não mordeu o


anzol.

— Ele não saldou a dívida de Frederick?

202
Lilith negou com a cabeça, disposta a fugir se diminuísse o
espaço entre os dois. Não lhe perguntou como sabia da dívida de
Frederick, sem dúvida o pai do rapaz tinha contado. Eram amigos.

— Fizemos um acordo para pagamentos. Pode saldar uma


parte quando lhe chegar o próximo rendimento trimestral.

Gabriel entreabriu os olhos.

— Quanta gentileza de sua parte...

Lilith umedeceu os lábios com a língua e encolheu os ombros.

— Ele é jovem. Todos cometem erros quando são jovens.

Ele já estava próximo demais.

— Começo a me dar conta disso...

Com o coração palpitante, Lilith procurou refúgio em uma


mesa grande, com a esperança de interpô-la entre eles. O que queria
dizer? Referia-se a relação deles quando jovem, ou esta? Mas antes de
poder perguntar, ele a agarrou e a fez dar a volta, de forma que ficaram
frente a frente. Com o corpo a empurrou para trás, ficara presa entre a
mesa e a dureza das coxas dele.

— Veio a minha procura, Lil. - Disse Gabriel naquele tom


baixo, tão sedutor. — O que pretendia fazer quando me encontrasse?

Ela levantou o queixo e o olhou em atitude desafiante,


embora estivesse certa de que ele podia ver o martelar frenético de seu
pulso na garganta. Que devia fazer? O que pretendia ele com aquela

203
perversa sedução, ameaçar ou castigar? Ou acaso, castigaria a si
mesmo?

Os olhos brilhavam como prata derretida, e Lilith ficou sem


ar ao ver o que havia neles. Não era raiva nem ameaça, havia somente
desejo.

— O que quer? - Perguntou-lhe com a voz afogada.

Ele levou a mão ao seu pescoço. A palma lhe pareceu morna,


e os dedos, estranhamente delicados quando lhe acariciou o pescoço e a
clavícula. Lilith engoliu com dificuldade, e lhe cravou o olhar.

— Não sei. Há um instante atrás me dizia que seria melhor


manter distância de você, mas parece que não posso. Ao menos, não
agora.

Lilith tentou ignorar o contorno duro que comprimia seu


ventre e se concentrou na mesa que a pressionava na parte de atrás das
coxas. Mas aquilo se tornava difícil... E o interior de seu corpo se
lembrou do que sentiu ao tê-lo todo dentro de si, ao senti-lo se mover
em seu âmago enquanto a abraçava, e sua respiração ardente e
ofegante na orelha enquanto lhe dizia o muito que a desejava, que
amava...

Mas desta vez não se deixaria enganar.

— O que Frederick fazia naquela saleta?

— Jogava dados. - Respondeu ele.

Passou-lhe os dedos na pele sensível que se estendia acima


dos seios. O decote daquele vestido não era de maneira alguma tão

204
escandaloso como os outros que tinha, mas o toque acima do tecido fez
parecer mais indecente.

— Só isso? - Deus me ajude.

Os dedos se desdobraram sobre seu esterno. Gabriel


assentiu e apertou ainda mais os quadris contra ela, tanto que Lilith
ofegou.

— Sim, só isso.

Tentar empurrá-lo para trás só servia para aumentar o


contato entre eles. Se aumentasse mais, explodiria. Lilith se agarrou a
borda dura de carvalho e resistiu as exigências em seu corpo para que
levantasse os quadris.

— O que vai fazer agora?

Os lábios dele desenharam um leve sorriso.

— O que terei de fazer para convencê-la de que isto nada


tem a ver com nós dois?

Maldição, mas o que aquele cretino achava tão divertido?


Arqueando uma sobrancelha, respondeu:

— Pode dizer isso a si mesmo se o faz sentir-se melhor,


Gabe, mas eu sei que é por nós. A menos que prove outro motivo, é no
que continuarei acreditando.

Ele pegou seu rosto entre as mãos. Seu olhar era tão quente e
o tato tão leve que Lilith sentiu um nó na garganta.

205
— Lilith. Lily. - Pronunciou seu nome como um suspiro e
apoiou sua testa a dela. — Se só se tratasse de nós, crê que teria tanto
interesse em tentar erradicar a jogatina? Não teria mais sentido
considerar você como objetivo único?

Era difícil olhá-lo de tão perto. Diabos, era impossível pensar.

— Eu sou seu objetivo.

— Mas não porque queira prejudicá-la, Lilith. - Levantou-lhe


o queixo com os polegares. — Se meus sentimentos por você tivessem
algo a ver com minha forma de pensar sobre o jogo, acha que estaria
aqui agora? Crê que faria isto?

E antes que Lilith pudesse perguntar o que era "isto", os


lábios de Gabriel estavam sobre os seus, movendo-se com uma
necessidade impossível de ignorar. Ela se segurou à mesa. Seus joelhos
ameaçavam dobrar-se. O porquê deixou de importar quando as línguas
se encontraram. Sustentou-lhe a cabeça, e os dedos se enredaram em
seus cabelos. As presilhas lhe cravaram o couro cabeludo. Parecia
querer devorá-la. E ela queria que o fizesse.

Devagar, Lilith soltou a mesa, deslizou as palmas das mãos


pela cintura dele, subiu-as pela lã quente de seu fraque e se agarrou às
lapelas. Não empurrou, como lhe ordenava a mente, nem o puxou,
como lhe exigia o corpo. Limitou-se a sustentar-se para não cair.

As mãos lhe soltaram os cabelos, com um movimento rápido,


as presilhas caíram na mesa, e outras mais se espalharam pelo chão.
Logo as mãos desceram as suas costas até a curva dos quadris.
Queimavam. Então ele recuou e a fez avançar, com os fortes braços lhe
rodeou a cintura e a levantou como se fosse tão leve quanto uma
criança. Lilith abriu os olhos de repente quando seus pés deixaram de

206
tocar o chão. Separou a boca da dele e encontrou seu olhar enevoado de
desejo. Gabriel a sustentava para que seus olhos se encontrassem de
frente, com os seios dela esmagados contra a sólida muralha de seu
peito, o quadril contra o dela, e os pés dela pendurados.

— O que pensa estar fazendo?

Quando perguntou, ele já a colocara na mesa. Nas nádegas,


madeira dura e fria, em cima, um varão quente e excitado.

O peso e o tamanho que Gabriel levantou a teriam deixado


sem fôlego, mas a ele não. Levantou-lhe as saias acima dos joelhos e se
posicionou entre suas pernas, fazendo descansar a maior parte de seu
peso sobre a pélvis de Lilith e firmando os antebraços em cada lado de
sua cabeça.

Deus, não devia deixar aquilo acontecer, era loucura, mas


nem que sua própria vida corresse perigo deixaria de fazê-lo. O que
tinha de errado em algo que os dois desejavam tanto? Eram adultos, e
ali não estava em jogo reputações ou futuros. O pior que podia
acontecer naquele momento seria alguém entrar, e a elite de Londres
saberia que, depois de tudo, Gabriel não era um anjo. Isso não bastaria
para arruinar as esperanças e sonhos dele, mas teria que esquecer
daquela empreitada ridícula de acabar com o jogo. Quanto a Lilith, só
confirmaria o que a sociedade já pensava dela. Unir seu corpo ao de
Gabriel não a desonraria uma segunda vez, ao menos do ponto de vista
social.

Deus bendito, como ardia por ele! Nenhum outro homem a


fizera sentir-se como com Gabriel Warren, e vários tentaram. Desde
jovem ele sabia como e onde tocá-la.

207
Agora mesmo lhe percorria o queixo com os lábios, baixando
até a carne ardente que se estendia entre o pescoço e o ombro. Sua
respiração quente a excitando mais ainda. Lilith estremeceu, e
respondeu deslizando as mãos pelas costas até os quadris dele. Seus
mamilos se endureceram. Com um movimento rápido, passou a língua
no lóbulo aveludado da orelha de Gabriel, e soltou uma risadinha de
satisfação ao notar como seu quadril investia contra ela.

— Eu também me lembro, Gabe. - Ela sussurrou em um


gemido.

Não era o único que sabia onde tocar. Ele levantou a cabeça,
e isso aumentou a pressão na metade inferior de seus corpos. Lilith
ofegou. Toda delirante.

— Você se lembra? - Disse ele com voz rouca. — Eu sempre a


vejo quente, úmida em torno de mim, Lily. Lembro o quanto implorava,
tanto quanto eu.

Lilith se ruborizou ao ouvir suas palavras e moveu os


quadris. Ah!

— Eu o lembro tremer enquanto permanecia dentro de


mim...

Ele a interrompeu com outro beijo arrebatador, e lambeu seus


lábios enquanto se esfregava frenético em seus quadris. Lilith
enganchou os tornozelos nas panturrilhas dele, segurava-o pelos
quadris e se arqueou, embora sua ereção coberta ameaçou machucar a
pele macia de sua virilha. Lambeu-lhe a língua e se esfregavam ao
mesmo ritmo que seguiam o corpo. A excitação crescia até tornar-se
dor. Mesmo assim, totalmente vestidos, com apenas as bocas se
tocando, roupas sobre a pele, poderia fazê-la transbordar de prazer. Não

208
se importou que ele visse o poder que tinha sobre ela. Seu único
interesse agora era explodir em pedaços... E que Gabriel destruísse os
muros que ela mesma tinha erguido ao seu redor.

Seu peso se deslocou e diminuiu, e Lilith sentiu como se fosse


uma perda. O âmago úmido e ardente entre as pernas gritou com mil
gritos inarticulados que percorriam todo seu corpo. Com a boca ainda
presa a dela, Gabriel se levantou sobre um cotovelo, embora Lilith
tentasse freneticamente voltar a aproximar-se de seus quadris. Uma
brisa fresca a atingiu nas coxas empapadas quando as saias foram
levantadas até a cintura.

Ofegante, Lilith rompeu o beijo e arqueou os quadris ao notar


os dedos dele roçarem a umidade dolorida em seu ponto mais sensível.
Dura e torcida, brilhante de desejo, a pequena protuberância tremeu
sob sua carícia, mandando ondas de prazer sucessivas que a
atravessaram e a deixaram aniquilada.

— Oh, Deus. - Grunhiu Gabriel. A respiração ardia junto à


sua bochecha. — Não usa calcinhas...

— Não, eu... - Lilith o interrompeu, ofegando enquanto ele a


acariciava. — Oh, Gabriel!

— É isto o que quer? - Deslizou um dedo em seu interior. — É


isto o que quer?

— Não. - Gemeu ela sem deixar de mover-se contra sua mão.


— Mas servirá.

Ele deixou escapar uma risada breve e áspera junto a sua


orelha antes de aumentar o ritmo das investidas. Outro dedo se uniu ao

209
primeiro. Envergonhada e alucinada, Lilith se entregou ao prazer que
ele provocava, e levantou os quadris para ajustar-se a seu ritmo.

— Oh! - Gritou quando a pressão de sua virilha se tornou


febril. — Ah, sim!

Os dedos se afundaram mais rápido. O polegar encontrou o


centro da tensão e esfregou a carne dolorida até uma espiral a levantar
e serpentear e a deixando cair no mais profundo e cintilante precipício
de prazer. Tremores sacudiram seu corpo e os espasmos ondularam por
seus quadris e ventre, agitando os músculos enquanto ela gritava
extasiada.

Não tinha recuperado a respiração ainda quando estendeu a


mão para Gabriel. Queria mais. Queria a ele. Gabriel lhe cobriu o rosto
de beijos e murmurou:

— Lilith, temos que parar. Não tenho capa3.

Ela ficou gelada, e a sensação de bem-estar sumiu assim


como chegou um pressentimento frio.

— O quê?

Gabriel levantou a cabeça. Seus olhos continuavam a brilhar


de paixão.

— Não posso fazer o amor sem tomar precauções.

3
O preservativo, que surgiu por volta do século XVII, era feito inicialmente de uma tira
do intestino de um animal. Ele não era popular, nem tão eficaz quanto os preservativos
modernos, mas foi empregado como meio de contracepção e na esperança de evitar a sífilis,
que era extremamente temida e devastadora antes da descoberta dos antibióticos.

210
Acariciou-lhe as costas.

— Não há perigo, estou a ponto de menstruar.

Ele piscou.

— Mesmo assim, prefiro ter proteção.

Proteção? Levantou uma sobrancelha, Lilith subiu as mãos e


o empurrou forte nos ombros. Não se moveu muito.

— Proteção contra o quê?

Foi impressão sua, ou ele corou um pouco?

— Contra a gravidez.

Havia um "e" implícito nas palavras. Com um gemido de


indignação, empurrou-o com força. Desta vez sim o moveu, e enquanto
ele tentava recuperar o equilíbrio, ela baixou as pernas trêmulas sobre
a lateral da mesa e se levantou.

— Sífilis. É isso o que quer realmente dizer?

Não precisou da resposta, pois o aspecto culpado em seu


rosto disse tudo. Não é que Lilith fosse uma mundana, mas lembrou-se
de uma noite em que Gabriel lhe contou que a mãe lhe explicou o uso
das capas, que ajudavam a impedir não só a gravidez mas também as
doenças. Que a mãe lhe falasse essas coisas deixou-o mudo de espanto.
Mas estava claro que seguia o conselho a risca.

— Lilith... - Gabriel tentou falar enquanto se erguia.

211
Ela levantou a mão.

— Não diga nada.

Ela agarrou as saias e se afastou em direção a porta. Cada


passo era um aviso úmido e vergonhoso do que acabara de acontecer
entre os dois.

Teria de dizer, que em seu favor, Gabriel ficou onde estava.


Tinha uma atitude nervosa e incômoda. A excitação sexual ainda se
avultava nas calças, embora já não tivesse o aspecto soberbo de
minutos atrás.

— Acha que por ter sido estúpida para me entregar a você,


repeti o mesmo engano com todos os outros que tentaram me possuir, é
isso?

Gabriel franziu o cenho.

— Você sabe que não é isso.

Nesse momento, veio a tona toda a dor e raiva que sentia em


seu interior, ela gritou:

— Eu não sei de nada! - Logo, mais calma, acrescentou: — A


única coisa que sei é que há dez anos não teria me dito isso.

— Há dez anos tinha a certeza que era o único com quem


fizera amor. E você sabia o mesmo de mim.

E lhe sustentou o olhar, o desgraçado.

212
— Então, talvez eu devesse perguntar com quantas mulheres
fode... -Lilith engoliu a obscenidade e respirou fundo. — Com quantas
mulheres se deitou também, e se tomou ou não precauções com elas.

Ele assentiu com um gesto. Agora seu rosto estava um


pouco mais pálido.

— Sempre. Você foi a única exceção.

Provavelmente em qualquer outra ocasião sua confissão a


fizesse sentir-se melhor, mas agora não. Ah e pensar em todas as
outras mulheres, muitas, sentiu o coração sangrar. Não esperava que
tivesse sido um monge, mas a questão lhe fez mal. E sentiu pena das
mulheres que se viram submetidas a uma exibição tão evidente de
desconfiança. Ele não confiou nelas. E nela tampouco. Nunca.

Lilith levantou o queixo e se esforçou em segurar às lágrimas


que lhe ardiam dentro dos olhos.

— Ah, mas que coincidência. - Comentou então com voz


falsamente animada. — Sua mãe me avisou para que nunca permitisse
um homem dentro de mim se antes não estivesse "protegido". Teria sido
bem estúpida se ignorasse tão bom conselho, e você também. Já deve
saber, que nós, as putas, e também os filhos das putas, temos que nos
manter unidos.

Ah, agora Gabriel empalideceu. Nunca o vira assim. O


atingira certamente... Bem. Que Deus a ajudasse a feri-lo tão
profundamente quanto ele fez a ela. Ficou ali, altiva, olhando-o
fixamente, como um cão grande e tolo. As lágrimas ameaçaram
novamente.

— Creio que seja sua hora de partir.

213
Gabriel deu um passo a frente.

— Lilith...

Lilith levantou as mãos, precipitou-se para a porta e a abriu


de um puxão.

— Devo agradecer-lhe por esse breve momento de prazer,


Lorde Angelwood, mas acho que me cansei de sua companhia e desejo
que parta. Já, por favor... Maldito seja, vá embora!

Era a segunda vez que lhe pedia para sair do clube, mas
desta vez ele não tentaria se explicar. Tampouco parou a porta para
dizer que aquilo não tinha acabado. E se parou no corredor, depois da
porta bater com força em seu batente, Lilith não soube, porque assim
que fechou a porta, jogou-se na maldita poltrona e soluçou até não
restar um pingo de força no corpo.

E mesmo assim, continuou chorando.

214
Não havia dúvida: era o maior burro
da Inglaterra.

De pé, nos degraus que subiam até a porta de Lilith, com um


ramo de lírios na mão, Gabriel voltou a dar a patada mental em sua
insensibilidade. Na noite anterior não estivera pensando, ao menos com
o cérebro. No fundo, não pensou em se proteger contra uma doença, a
não ser em impedir uma gravidez. Na verdade, até Lilith mencionar o
assunto, não achara que ela também tivesse tido outros amantes.
Sempre fora cuidadoso. A promiscuidade em sua mãe o ensinara a sê-
lo. Muito novo, aprendera com sua mãe, é claro, que as capas ajudavam
na proteção contra a sífilis além da gravidez, e por isso sempre usara.
Não era o comportamento normal de um jovem fogoso. Não queria que
um médico o tratasse da sífilis com mercúrio, nem queria ser
responsável por alguma criança crescendo com o estigma de "bastardo".

Na verdade, não sabia se Lilith estivera com outros homens


ou não. Quase enlouquecia ao pensar em outro a acariciando, mas
devia conhecê-la o bastante para saber que ela não fora promiscua ou
irresponsável. Pior ainda, ela confiou nele. E ele devolveu a confiança
com uma bofetada.

Quando lhe disse que tinha combinado uma forma de


pagamento com Frederick, Gabriel quase saltou de alegria. Talvez
Frederick tivesse sido trapaceado no Mallory's, mas Lilith não devia
saber nada do assunto. Ninguém que extorquisse uma pequena fortuna
de um jovem permitiria ser paga segundo a conveniência deste. E

215
apesar disso, na noite anterior Gabriel fora para casa e bebeu até
perder os sentidos e adormecer não só com a frustração de não possuí-
la, mas também com a horrível sensação de tê-la tratado como a uma
prostituta vulgar. Ela era a sua Lily, pelo amor de Deus!

E para piorar mais as coisas, os jornalecos da manhã


seguinte vieram cheios de especulações sobre ele e Lilith. Um escritor
dedicava meia coluna a sua visita ao Mallory's, e mencionava até o
"aspecto desalinhado" dele e sua "partida rápida" e ainda perguntava:
"Terá sido a queda do Conde Angelical? Se assim for, este autor não tem
dúvidas de quem o derrubou.”

Aquilo era um aborrecimento, um fato que o relacionava ao


clube, embora não tivesse sido prejudicado, a menos que alguém
ousasse questionar publicamente seus pontos de vista sobre o jogo.
Nesse caso, um relacionamento com Lilith teria um saldo negativo, mas
antes esperava conseguir descobrir a verdade sobre as afirmações de
Frederick. Então saberia que medidas tomar, e depois consideraria se
sua relação com Lilith era inofensiva ou um truque de sua parte para
favorecer os próprios objetivos. Não se importava com o que pensassem
deles desde que não prejudicasse nenhum dos dois.

Mas algo lhe dizia que aquilo não seria possível. Já lhe faria
mal quando fechasse o clube, assim como tinha feito na noite anterior...
Quanto mais suportaria fazê-la sofrer por sua hostilidade pessoal
contra o jogo, ou por seu orgulho o impulsionar a fazê-lo?

Uma voz lhe disse que nem o orgulho nem o ressentimento


pessoal justificavam insultar Lilith. A mesma voz que lhe dizia que não
podia conquistá-la e conspirar contra ela ao mesmo tempo, embora em
sua mente tentasse por todos os meios justificar-se e separar as duas
ações. Podia negar e racionalizar o quanto quisesse, mas entre eles as
coisas agora eram diferentes. Não estava certo de quando havia

216
acontecido, possivelmente na mesma noite em que voltou a revê-la
outra vez, só tinha certeza de duas coisas, eram mais que antigos
amantes e adversários atuais.

Não sabia o que lhes reservava o futuro, mas,


independentemente do resultado, sabia que nenhum deles sairia
daquilo como vencedor. Mesmo se Lilith sentisse ainda algo por ele, não
poderia ficar com ele e o clube, e ele não poderia ficar com ela e
erradicar o jogo. Não seria possível, a menos que um deles cedesse... E
algo lhe dizia que nenhum dos dois estava preparado para isso.

Devia afastar-se dela... Dizer a Blaine que pedisse a outro


para investigar... E no entanto ali estava ele, à porta da casa dela, com
um punhado de flores e a estúpida necessidade de ganhar seu perdão.
Porque não haveria perdão quando conseguisse fechar o clube.

Bateu a aldrava pela segunda vez, e o gigantesco Latimer


abriu a porta. O gerente, ou o que diabos fosse, jogou-lhe um olhar do
alto de seu nariz e fez um gesto negativo.

— Minha senhora não quer vê-lo.

Só graças ao reflexo rápido, Gabriel parou o fechamento da


porta com o pé, mas nada evitou o grunhido áspero que lhe escapou ao
sentir que uma pontada de dor lhe subir a perna.

Com secura, Latimer comentou.

— Talvez o senhor deseje tirar o pé...

Gabriel respondeu com um sorriso que mais parecia uma


careta.

217
— Parece que está preso na porta.

Então o criado cinicamente adotou um tom de desculpa.

— Tenho ordens de não deixar o senhor entrar, Lorde


Angelwood.

Embora parecesse sincero, o criado não afrouxou a pressão


que exercia sobre o pé já dolorido. Tinha chegado o momento de usar
outra tática. Gabriel levantou as flores.

— Pelo amor de Deus, vim implorar que me perdoe. Por


favor, só peço alguns instantes com sua senhora.

Latimer negou com a cabeça.

— Acredita que ela o receberá alegremente?

— Bom argumento.

O pé dolorido já não doía tanto, entretanto, era muito


desconfortável tê-lo preso entre a porta e o batente. Gabriel não podia
avançar e enfrentar um homem do tamanho de Latimer. Como os
homens de sua classe tinha praticado boxe com o Gentleman Jackson,
mas quem se interpunha entre ele e Lilith parecia ter aprendido a lutar
na rua e tinha o dobro de seu peso. E além disso não tinha o pé preso
em uma porta.

— Facilitarei as coisas, senhor Latimer. - Disse enquanto lhe


agitava o buquê de flores sob o nariz. — Você me deixa passar e
diremos a Lady Lilith que o chantageei para me deixar passar. Direi que
o ameacei de voltar esta noite com a polícia para que revistem os
reservados.

218
Aquele armário enorme ficou rígido.

— Sei que Sua Senhoria não faria isso.

Por Hades, aquele homem era mais esperto do que parecia!

— Não, Senhor Latimer, não faria. Mas sua senhora está


mais que propensa a acreditar, creia-me.

Latimer pareceu pensar no assunto um instante. Com um


rápido gesto afirmativo, recuou e permitiu a entrada de Gabriel e seu
palpitante pé. Logo fechou a porta e se voltou para ele.

— Ela está no escritório. Sabe como chegar lá?

Gabriel afirmou com a cabeça.

— Sim.

Enquanto coxeava para as escadas que levavam ao piso


superior, perguntou-se pela quinta vez que diabos estava fazendo ali.
Por que se desculpar? Seria mais fácil não fazê-lo... Mas nunca deixava
de tomar a atitude correta só por ser mais difícil. Tinha agido mau, e
Lilith merecia uma desculpa, e uma explicação... Além disso, para ser
completamente sincero consigo mesmo, tinha que admitir que, depois
de dez anos longe dela, lhe era difícil passar um dia sem vê-la.

— Lorde Angelwood.

Gabriel deslocou quase todo o peso de seu corpo sobre o pé


bom e se voltou para Latimer, cujo rosto rude tinha uma expressão de
seriedade sombria.

219
— Sim?

— Se a fizer chorar outra vez, o senhor e eu teremos uma


pequena conversa, fui claro?

Certamente teria que ter interpretado aquela ameaça como


uma ofensa ou insulto, mas Gabriel só sentiu alívio por ter entrado e
culpa por ter feito Lilith chorar. Não suportava que chorasse.

Uma mulher carrancuda o esperava no alto da escada.


Esperou que ele chegasse coxeando no patamar e então perguntou:

— O que Sua Senhoria deseja aqui?

Ele voltou a chacoalhar os lírios, os pobres começavam já a


murchar.

— Vim oferecer minha cabeça em uma bandeja de prata.


Será o bastante?

A mulher o examinou da cabeça aos pés, e ficou claro sua


opinião nada lisonjeira a ele.

— Não é a parte do corpo que eu teria escolhido como oferta


de paz, mas Lilith talvez aceite.

Gabriel rompeu em gargalhadas. Ao terminar, a mulher lhe


perguntou:

— Diga-me, como convenceu Latimer a deixá-lo passar?

— Chantagem.

220
Latimer não gostaria que alguém soubesse que tinha
desafiado as ordens de Lilith por uma questão de romantismo. A
mulher entreabriu o olhos amendoados.

— Esperava do senhor algo mais digno...

Gabriel manteve um tom leve, embora se sentisse um pouco


ofendido.

— As únicas expectativas às quais me ajusto, senhora, são


as minhas.

Os olhos dela se arregalaram.

— E quanto as expectativas de Lilith, Sua Senhoria?

Ele deu de ombros.

— Não ficaria surpreso de que agora estão em baixa, será


difícil sequer chegar ao que ela espera de mim.

— Sua Senhoria, os dois são de tal natureza, que acredito


que o senhor não passará da porta.

Gabriel fez uma careta de dor e passou os dedos pelo cabelo:

— O que me aconselha?

Com os braços cruzados, a mulher lhe jogou um olhar lento


e pensativo, primeiro de cima abaixo e subiu o olhar. Ao chegar aos
olhos dele, deteve-se.

221
— Creio que já sabe muito bem o que fazer, Lorde
Angelwood, pois não teria se incomodado em vir aqui. As flores são um
mero detalhe, só a humildade e sinceridade devolverão a Lilith o pouco
de confiança que o senhor conseguiu ganhar antes de jogá-la pela
amurada.

Gabriel nada disse. Não precisou fazê-lo. A mulher recuou e


o deixou passar. Então ele arqueou uma sobrancelha:

— A senhora tem mais fé em mim que sua patroa.

— Tenho esperança, meu senhor. Esperança de que seja o


homem que ela acredita que é.

Então Gabriel a olhou com ar de curiosidade.

— E que tipo de homem acha que eu sou?

— Um que seja digno do coração de Lilith. - A mulher jogou


a cabeça de lado. — Então o senhor é?

— Duvido. - Respondeu ele com sinceridade.

Ela sorriu e fez um gesto de assentimento, mas seu sorriso


morreu ao observá-lo mais de perto.

— Não lhe faça mal, Lorde Angelwood. Ela não é tão forte
quanto faz parecer.

Foi uma advertência mais discreta que a de Latimer, mas


Gabriel achou mais ameaçadora do que a violência física.

222
Não deveria estar ali. Não devia fazer isso com ela, nem
tampouco consigo mesmo, mas não conseguia parar de desejá-la, assim
como também não podia lhe contar a verdade sobre o que se passou há
dez anos atrás. Ela merecia saber, mas, como dizer. Ela saberia que o
homem a quem admirava não era quem pensava... E conheceria a
verdade escandalosa. Não podia confiar de que manteria silêncio sobre
isso, e ainda menos, estando em jogo o clube que ela apreciava tanto.

O pensamente de que Lilith usaria o segredo de seu pai


contra ele, lhe deixava um sabor amargo na boca, não tinha motivos
para confiar nela assim como ela não confiava nele. E entretanto,
compreendia que Lilith se sentia tão atraída por ele quanto ele por ela.
O modo como se comportou na noite anterior não fizera mais que
confirmá-lo.

Deus, eles pareciam se merecer.

Quando recuperou o ânimo, estava sozinho. Olhou para trás


e não viu mais ninguém. Lilith e ele talvez não fossem muito confiáveis,
mas o pessoal de Lilith sim.

Parou por um momento à porta do escritório para arrumar a


gravata e afrouxar parte da tensão no pescoço e ombros. Estava
nervoso. Mais do que um homem de sua idade e posição admitiria.
Soltou ar, levantou o punho e bateu na porta.

— Entre.

Gabriel fez o ordenado: girou a maçaneta e empurrou a porta


com suavidade. A porta se abriu em silêncio e o deixou ver o interior do
cômodo e à mulher que estava sentada atrás da escrivaninha, com a
cabeça inclinada sobre um livro. Enquanto fechava a porta, ela, sem
incomodar-se em levantar o olhar, perguntou:

223
— Algum problema?

— Combinamos em visitar Brave e Rachel está tarde. Você


se esqueceu?

Lilith ficou gelada ao ouvir aquela voz. Levantou devagar a


cabeça, como se esperasse que ele desaparecesse enquanto ela
levantava a cabeça devagar. Ou talvez só resistia em revelar-lhe o rosto.
Ao vê-la, Gabriel sentiu o coração na garganta. "Ah, Lil..." Estava tão
pálida. Os olhos circundados por sombras escuras, as pálpebras
inchadas e os olhos avermelhados, como se tivesse passado a maior
parte da noite, e manhã, chorando.

Inglaterra. Deus era o maior burro do mundo, isso sim.

— Devia ter imaginado que o deixariam entrar. - Disse ela


como se pensasse em voz alta. — O sentido de lealdade deles parece um
pouco equivocado.

— Eu os ameacei.

Ignorava por que se importava de continuar a farsa, mas não


queria ser o responsável pela traição dos empregados de Lilith... E
tampouco suas lágrimas.

— Hummm. - Era evidente que não acreditou. — Bem, pois


perdeu seu tempo, meu senhor. Não tenho forças ou disposição para
discutir com você nem com ninguém mais. Por favor, saia daqui.

Dito isso, Lilith dirigiu sua atenção novamente ao livro,


deixando Gabriel se perguntando quem diabos era o "ninguém mais".

224
Bronson, talvez? Anotou mentalmente para levantar informações sobre
Bronson e seu clube, mas não sairia dali nem que o Inferno desabasse.

— Quem discutiu com você?

Lilith soltou uma risada áspera enquanto devolvia a pluma


de ave ao tinteiro e levantava o olhar. A frieza que havia neles o gelou
até o tutano.

— Entendo. Posso discutir com você que está tudo certo,


mas se outro vem me perturbar, você se acha no direito de saber com
quem e qual o assunto?

— Lilith...

"Embusteiro." Admitindo ou não, no mesmo instante em que


a viu novamente, não tivera outra coisa na cabeça e na noite anterior,
ela o fez dar-se conta. A queria para si.

O sorriso de Lilith morreu sem deixar nada mais que


amargura.

— Como já disse, não temos nada a discutir, saia.

— Ah, mas e o que há entre nós.

Tolamente, a pequena amostra de sinceridade foi um


engano. Dentro dos olhos dela saíram faíscas, o rosto, que segundos
antes tinha uma palidez mortal, de repente se avermelhou. Levantou-se
de um salto, tão rápido que a poltrona se inclinou e quase caiu ao chão.

225
— É um... Um burro arrogante! - Gritou descontrolada. —
Como se atreve a afirmar tal coisa, depois de todo este tempo? Vá
embora, quero você bem longe de mim!

A Lilith de rosto afogueado que gritava zangada era mil vezes


preferível ao espectro que antes estava ali. Essa era a Lilith que ele
conhecia e amava. Gabriel largou os lírios sobre a escrivaninha, cruzou
os braços e, sem perder a calma, olhou-a nos olhos cintilantes.

— Ontem à noite me queria dentro de você. A senti


estremecer debaixo de mim. Parece que há algo entre nós, concorda.

Ela corou mais ainda.

— Deixou de haver esse algo entre nós quando me rotulou


como a uma rameira.

Gabriel olhou para o teto.

— Não fiz isso. - De um ponto de vista técnico, não. A tratara


como a todas as demais mulheres com quem se deitou... E isso foi um
erro colossal.

— Ah, tem razão. - Lilith avançou. — Às rameiras recebem


dinheiro por isso.

O fio tênue com que Gabriel segurava seu temperamento se


rompeu.

— Foi você quem tirou essa conclusão precipitada. Você! Eu


só não queria que ficasse grávida, lembra-se? Ou está tão obstinada a
pensar o pior de mim que esqueceu disto?

226
Toda a ferocidade dela pareceu sumir.

— Mas você pensou nisso depois.

— Para ser sincero sim, mas depois de você mencionar as


doenças! -Com um suspiro, Gabriel passou os dedos pelo cabelo. —
Lilith, se passaram dez anos. Estive com outras mulheres. Pode me
dizer que você não teve também outros amantes?

Então esperou. Esperou ansioso que ela dissesse que não


tivera ninguém além dele, embora soubesse que era egoísmo de sua
parte.

— Você me fez sentir suja.

O débil tom de voz foi à ruína de Gabriel. Uma parte dele se


recolheu diante da hipótese de ela ter tido outros amantes. A outra teve
piedade. E foi essa parte que o dominou. Estendeu as mãos e a puxou
para seus braços, acomodando-a contra o peito. Ela nem sequer tentou
se debater, prova do quão vulnerável estava.

— Lilith. - Murmurou junto aos seus cabelos. — Às vezes eu


me sinto sujo. Você sabe como fui criado. Conheceu minha mãe...

— Eu gostava da sua mãe. - Retrucou ela com a voz


amortecida pelo ombro dele.

— Eu adorava minha mãe, mas vi como ia de homem a


outro, e vi os médicos indo e vindo a minha casa, por um motivo ou
outro. Eu sei o que era dito sobre ela, e não quero ser como eles.

Lilith levantou a cabeça. Seus olhos se fixaram nos dele com


uma perspicácia extraordinária.

227
— Por isso adotou essa postura tão formal e rígida. Não
queria parecer com seus pais.

Gabriel fez um gesto afirmativo.

— Sim.

O olhar dela o desconcertou.

— Por isso odeia tanto o jogo, pelo que fez a seu pai.

O coração do Gabe quase baqueou. O que ela saberia de seu


pai? Ah, sim, os rumores que ele e Blaine espalharam para esconder a
verdade. Sabia o que os outros pensavam: que seu pai fora morto em
um duelo por dívidas de jogo.

— Sim. - Murmurando, mentindo parcialmente. — É por isso


que odeio.

Ela franziu o cenho como se começasse a compreender.


Gabriel não estava muito certo de querer que ela o compreendesse, e
certamente, não a queria fazendo muitas perguntas.

— Sinto tê-lo chamado de filho da puta.

Gabriel hesitou em sustentar seu olhar, mas não o desviou,


ela intuiria que estivesse ocultando algo.

— Incomodou-me muito mais quando você chamou de puta


a si mesma. - Aquilo era verdade.

— Eu não pensei, estava com raiva e...

228
— Eu sei.

Lilith o observava com atenção, dava a impressão de que


enxergava sua alma. Então, antes que se aprofundasse demais em seus
segredos, Gabriel lhe perguntou:

— Pode me perdoar?

Com a cabeça inclinada e um ar pensativo, Lilith respondeu:

— Não.

Merda, o que mais ela queria dele? Que mais podia fazer ou
dizer para que percebesse que o problema estava nele e não nela?

— Preciso de tempo.

Ele levantou uma sobrancelha.

— Verdade?

Lilith assentiu e disse:

— Passei parte da vida tentando ser o que meus pais


queriam, e sempre fui criticada por não sê-lo. Por isso me é um pouco
difícil entender por que tenta com tanto afinco não se parecer com seus
pais. Pareciam perfeitos.

— Pois não eram. – “Se soubesse o quão imperfeitos foram!”

Outro pequeno gesto afirmativo.

229
— Obrigado por vir aqui me dizer isso.

Então ele soube que logo o perdoaria. Teria de esperar que


confiasse nele novamente. Veria o que aquilo representaria em sua
relação, e também, se ele merecia ou não.



Havia alguma coisa que ainda não lhe contara.

Vendo-o cumprimentar Braven e a esposa, Lilith percebeu


que os segredos de Gabriel não se relacionavam a ela. Ela também
tinha segredos que não revelaria de modo algum, e se nos dele houvesse
algo digno de tirar o chapéu, o senhor Francis descobriria. Mary disse
que não era assunto dela, mas se fossem a causa que impediram
Gabriel de procurá-la, Lilith queria, precisava saber. Como naquela
manhã que o tinha perdoado tão facilmente, queria perdoá-lo também
por tê-la abandonado. Mas e se enquanto isso ele conseguisse fechar o
clube, acabando com ela pela segunda vez?

Chegara a hora de parar de jogar a culpa nele pela vida que


tinha, afinal, não era tão ruim assim. E além disso, ele não fizera aquilo
sozinho. Ela fizera escolhas quando jovem, e ainda se derretia por ele
como na noite anterior. A única diferença era que então tinha
expectativas, e agora não tinha nenhuma.

— Lilith! Que bom vê-la aqui.

A Condessa a cumprimentou em tom alegre e cordial e Lilith


não pôde evitar de sorrir-lhe.

230
— Também fico contente de voltar a vê-la, Rachel.

Com aquelas pessoas seria muito fácil cair na armadilha do


excesso de confiança. Seria mais sensato não começar a acreditar que
queriam ser seus amigos realmente. Estavam sendo amáveis com ela
por Gabe. Eram amigos dele, não dela.

— Alexander ainda não acordou. - Afirmou Brave enquanto


os guiava pelo corredor lajeado em granito. — Pensei que talvez
pudéssemos jogar uma partida de bilhar, Gabe.

Enquanto jogava uma olhada nos antepassados de Brave,


cujos retratos pendurados na parede os encaravam sérios, Lilith ouviu
Gabe gargalhar. O riso rico e espontâneo a alegrou, deixando uma
sensação tão agridoce que lhe retorceu o estômago. Há tempos atrás ela
fora capaz de fazê-lo rir assim. Agora, sempre que estavam juntos, sua
risada parecia misturada a remorso.

— O que quer é me fazer perder.

O tom de acusação de Gabriel se misturava com bom


humor. Lilith sorriu ao ouvi-lo e, voltando a cabeça, comentou:

— Não me diga que ainda não aprendeu os macetes do


bilhar!

Com um olhar brilhante e quente, lhe devolveu o sorriso. O


estômago se torceu ao ver aquilo.

— Ah não vou revelar essa informação.

O interesse de Brave pareceu aumentar.

231
— Você joga, Lilith?

Gabriel lançou um olhar divertido ao amigo:

— É tão boa quanto você.

Rachel bateu palmas, rindo.

— Ah, isso eu quero ver. Jogamos os quatro?

Lilith sabia que os homens prefeririam vê-la jogando sozinha


contra Braven, mas se sentiria mais confortável se Rachel jogasse
também. Além disso, gostaria de ver Gabriel em algo que não se
destacava.

— Rachel e eu contra você e Lilith. - Disse Brave a Gabriel.


Assim será mais justo.

Rachel abriu um amplo sorriso.

— Não sei não, até eu sou melhor que Gabriel.

Este encarou a brincadeira com uma careta e riu também.


Que afortunado era por ter amigos como aqueles. Como Lilith lhes
invejava a familiaridade. Não parecia se importar em jogar mal diante
dos amigos. Ela já fora assim também, mas agora só parecia valer a
pena se fosse para ganhar.

Brave e Rachel começaram. A Condessa tinha razão: era


melhor jogadora que Gabriel. Provavelmente até o bebê de Brave e
Rachel fosse melhor que Gabriel, os anos tinham reduzido o pouco

232
talento que ele tinha. A coisa ficou tão ruim que Lilith começou a lhe
dar instruções quando ele insistiu em que jogassem outra partida.

— Relaxe a mão. - Ordenou-lhe. E o obrigou a diminuir a


pressão sobre o taco. Ao guiar-lhe a mão, a sua começou a arder, e o
ardor lhe subiu por todo o braço. Com muita dificuldade conseguiu
reprimir para não franzir o cenho ao notar como seu corpo respondia ao
dele.

— Assim, está melhor. E agora não se incline desse modo,


não ficará confortável.

Introduziu o pé entre suas pernas para separá-las, e ao fazê-


lo roçou em seu traseiro, ao dar-se conta um novo calafrio correu por
sua espinha, Depois se inclinou sobre ele e o empurrou até colocá-lo na
posição correta.

— Assim?

Ela confirmou a posição com um gesto. Não confiava na voz.


Só Gabriel conseguia fazer que o aprendizado de jogar bilhar parecesse
com fazer amor.

Contendo o ar nos pulmões, olhou como Gabriel dava a


tacada. O taco acertou a bola e a mandou rodando para o outro lado da
mesa. A bola vacilou na caçapa durante um instante que pareceu
eterno e por fim caiu dentro.

— Isso! - Ela gritou.

Tinham ganhado. E Gabriel não só tinha feito uma boa


tacada, mas também encaçapara a bola mais importante. Lilith ficou a

233
dar saltos e o agarrou pelo pescoço em um breve, e nada feminino,
abraço.

— Conseguiu, Gabe! Você conseguiu!

Então os braços dele a rodearam, como uma cinta de ferro


quente, e a arrebatou no ar e a fez dar voltas. Os dois riram as
gargalhadas. Quando fora a última vez que se sentira tão feliz?

Ao colocar os pés no chão novamente, Brave perguntou:

— Outra partida?

Lilith corou, olhou o Conde e também Rachel. Senhor, que


doidivanas achariam que era, fazendo aquelas tolices...! Mas sua
conduta não pareceu escandalizar o conde de Braven e a Condessa. Na
verdade, pareciam divertidos.

— Aceitamos. - Gabriel concordou. — A última.

Desta vez os pares estavam em pé de igualdade. Até Lilith e


Brave erraram algumas tacadas, Rachel e Gabriel melhoraram. Foi uma
partida acirrada, e quando chegou o momento de Lilith e Gabriel
definirem os vencedores, Gabriel teria de dar a tacada decisiva. Lilith
estava certa de que não ganhariam. Sob sua tutela Gabriel melhorara
muito, mas tinha errado algumas tacadas em linha reta. Para que
ganhassem teria que fazer a bola ricochetear e seguir em linha reta até
acertar a bola na caçapa do outro lado da mesa.

Gabriel preparou a tacada e acompanhou o movimento com


o braço. A bola disparou, ricocheteou na lateral e se dirigiu direto pela
mesa até entrar no buraco com um "plaf". Então houve um silêncio
atônito, os três espectadores tentaram decifrar o que acabavam de ver.

234
Então Lilith pousou o olhar no semblante satisfeito de Gabriel e
entreabriu os olhos. Mas que cachorro! Não precisava de nenhuma
instrutora! Só a usara como desculpa para rir a custa deles. Mas nem o
Conde ou a Condessa pareceram ofendidos, de modo que Lilith decidiu
não ofender-se tampouco. Enquanto dava o taco a Braven para que o
colocasse em seu lugar, disse com desdém:

— Acho que fomos enganados.

O Conde lhe dirigiu um breve sorriso.

— Agradeça pelo safado ser seu parceiro. Eu e Rachel é que


fomos enganados.

Do outro lado da mesa Gabriel a olhava maliciosamente.

— Bem, estive praticando. - O modo como disse aquilo a fez


imaginar o que mais andou praticando nos últimos dez anos. Sorrindo,
acrescentou com o olhar fixo nela: — Quer uma segunda chance?

Lilith sentiu uma agitação no estômago. Estaria se referindo


ao bilhar ou a relação deles? Deus, não sabia qual das duas
possibilidades a agradaria mais.

— Hey... - Interveio Brave. — Eu e Rachel fomos os


perdedores, se alguém aqui tem que ter outra chance, somos nós.

Gabriel lançou um olhar divertido ao amigo e apontou o


polegar para Lilith.

— Ela foi minha parceira, mas aposto queria ganhar muito


mais que você.

235
Lilith corou. Era assim que a via? Então Rachel, rindo se
aproximou e agarrou o braço do marido.

— Bem, deixemos essa revanche para outro dia. O chá nos


aguarda no salão azul, e me parece, Lorde Braven, que seu filho já
acordou.

O olhar que Brave dirigiu a esposa era cheio de amor, Lilith


sentiu o peito doer ao vê-los. Tampouco quis olhar Gabriel, por medo de
que ele vislumbrasse a inveja em seus olhos. Em vez disso, contemplou
a estampa do tapete que tinha a seus pés. Nesse momento ouviu o grito
longínquo de uma criança pequena, que Rachel provavelmente ouvira
antes de todos, sem dúvida, um prodígio maternal.

— Vamos ao salão. - Sugeriu Gabriel. — Já esperei tempo


demais para conhecer esse menino.

Enquanto caminhavam pelo corredor atrás de Rachel e


Brave, Gabriel a segurou pela cintura. Foi um contato ligeiro, mas seu
calor pareceu queimá-la através do vestido e anágua.

— O que me diz de uma segunda chance, Lil? - Perguntou de


repente.

Ela sentiu a respiração dele arder junto a sua orelha, e lhe


arrepiou a pele dos braços e ombros. O modo como reagia diante dele
era delicioso e humilhante. Sem desviar o olhar, ela respondeu com
frieza:

— Adoraria a oportunidade de pô-lo em seu devido lugar,


Lorde Angelwood.

236
Ele riu e, devia ser a enésima vez naquele dia, aquilo a fez
sentir um calafrio na coluna.

— E eu adoraria que você me pusesse lá, Lady Lilith.

Oh, isso era ridículo! A fazia estremecer, ruborizar e se


excitar despudoradamente. Só faltava soltar umas risadinhas tolas, e
então Gabriel saberia que continuava a ser a mesma idiota que se
apaixonou por ele, como na primeira vez... E nesse instante Lilith ficou
gelada. Pela primeira vez... Será que estupidamente estava se
apaixonando por ele uma segunda vez? Ah, meu Deus, esperava que
não. Entretanto, em alguns dias se perguntava se em algum momento
deixou de estar apaixonada por ele.

Poucos passos à frente, Gabriel ainda segurando-a, parou,


como se intuísse seus pensamentos, a soltou e perguntou:

— Algum problema?

A preocupação que viu em seus olhos era autêntica e


comovedora. Inoportuna também. A última coisa que queria saber,
naquele preciso momento, era que ele se preocupava realmente com seu
bem-estar. Lutando para recuperar a compostura, Lilith fez um gesto
negativo.

— Não, nenhum.

Não podia voltar a se apaixonar por ele. Era luxúria, pura e


simplesmente luxúria. Desejar um homem não implicava em confiar
nele, e muito menos, mostrar-se vulnerável. E o mais importante: na
luxúria, ninguém ficava com o coração partido, certo?

237
Gabriel não insistiu no assunto, pelo que ela agradeceu. Não
lhe ofereceu o braço nem a tocou novamente, mas Lilith sentia sua
força e seu apoio com tanta certeza como se estivesse apoiada a ele. Era
reconfortante e, ao mesmo tempo, aterrador.

Como dissera Rachel, no salão azul do primeiro andar os


esperava uma bandeja de sanduíches e bolos. Acabavam de se sentar
quando uma jovem criada entrou com o chá, e pouco depois surgiu a
babá, que trazia o bebê nos braços, Alexander. Brave ficou em pé e
proclamou com orgulho:

— Apresento-lhes meu filho.

Para grande surpresa de Lilith, Gabriel perguntou se podia


segurá-lo. Brave e Rachel trocaram olhares de espanto, mas nenhum
dos dois se opôs. A um sinal de Rachel, a babá se aproximou de onde
estava Gabriel e ajeitou o bebê em seus braços, a criança ria.

A imagem que ofereciam teria quebrado o mais duro dos


corações, e o de Lilith se fez em um milhão de pedaços.

O pequeno Alexander era um bebê de bochechas vermelhas e


com uma cabeça levemente sombreada de cabelos castanhos. Tinha os
olhos azuis da mãe e uma expressão de curiosidade que fez Lilith sorrir.
Gabriel, sorrindo como um tolo e falando um idioma que Lilith supôs
ser só entendido por bebês, ofereceu-lhe o dedo, e o futuro Conde o
agarrou firme, um pequeno arbusto enroscado em um poderoso
carvalho, e sem hesitar o meteu na boca.

— Cuidado. - Avisou Rachel. Os dentes estão saindo.

Gabriel não deu a impressão de se achar em perigo de ser


devorado a dentadas. Levantou a cabeça e disse aos amigos:

238
— É um belo rapaz.

Rachel sorriu satisfeita, e Brave se inchou como um pavão e


tomou a mão da mulher entre as suas.

— É mesmo, não é!

O olhar entre o casal foi tão íntimo que Lilith teve que
desviar o olhar. Sua atenção se dirigiu novamente a Gabriel e o bebê.

Deveria ter continuado a olhar o jovem casal.

Gabriel não parecia se importar em se expor, feliz e alheio a


quem o rodeava, olhava o menino chupar-lhe o dedo, depois
carinhosamente esfregou sua bochecha e deslizou o dedo suavemente
pelos cabelos do bebê. Naquele momento Lilith o odiou e amou,
simultaneamente. Como se atrevera a trazê-la ali, lhe acenando com
algo que sempre desejara ter? Ele não sabia, nem poderia imaginar,
senão...

A expressão de Gabriel mostrava uma satisfação plena e um


amor instantâneo e incondicional. E para ganhar essa entrega, o bebê
não fizera mais que nascer. Gabriel sempre deu seu amor muito
facilmente. Tão facilmente quanto perdia...

"Meu Deus, não o leve para tão longe que não possa encontrá-
lo outra vez..." Céus, teria sido seu aquele pensamento?

Gabriel levantou os olhos e lhe dedicou um sorriso de


felicidade, tão idiota que algo se arrebentou no interior de Lilith. Então
ela se levantou de um salto e murmurou algo sobre querer dar uma
olhada no jardim. Cambaleando, cruzou o tapete e chegou à janela.

239
Tinha de ter imaginado que ele viria atrás. E tinha que saber que levaria
consigo o bebê.

Maldito.

— Lil você está bem?

Fechou os olhos para se defender do estímulo meigo em sua


voz, negou com a cabeça.

— Acho que estou um pouco invejosa...

Um pouco. Deus aquilo seria difícil.

— Quer segurá-lo?

Lilith se voltou e pôs o olhar no bebê que trazia nos braços.


Alexander continuava a morder o dedo de Gabriel, mas seus olhos,
azuis como o céu, estavam fixos nela.

Antes que pudesse pensar, Lilith já estendia os braços.

— Sim, meu Deus!

Gabriel o passou com um sorriso terno. Sentiu um pouco de


dificuldade em segurar o bebê. Como mulher, deveria ser-lhe natural,
mas não estava sendo assim. Sentia medo, medo de machucá-lo, de
deixar cair aquele tesouro quente e pesado em seus braços.

Ah, Senhor, como é gostoso abraçá-lo. E por um instante,


um segundo inefável, imaginou que fosse o filho que nunca teria. Então
sentiu a garganta secar, fechar-se mais e mais até deixá-la sem
respirar. As lágrimas lhe ardiam nos olhos e devolveu o bebê a Gabriel.

240
— Pegue-o. - Disse com voz áspera. — Por Deus, pegue-o
logo.

Gabriel o pegou com um braço, enquanto com a outra mão


lhe enxugava uma lágrima. Deus, ela esperava que Brave e Rachel não
estivessem vendo aquele espetáculo. Não teve coragem sequer para
encará-los.

— Lilith, por que está chorando?

Ela fez um gesto negativo, a garganta lhe doía muito para


falar.

— É porque quer um filho?

Ela assentiu com amargura. Há muito tempo não pensava


nisso, mas ao ver Brave e Rachel, ver Gabriel ali, o desejo retornou
redobrado.

— Ah, Lil. - Ouviu a voz suave, amorosa e enganadora. —


Algum dia terá seus próprios filhos.

Ela engoliu em seco.

— Nunca terei filhos.

— Por que não?

Ela levantou o olhar, sem se importar que ele visse a dor ou


as lágrimas. Com a visão imprecisa. E com um suspiro afirmou:

241
— Porque uma criança merece uma
mãe melhor do que jamais serei.

Então, com toda a coragem e força


que conseguiu armar-se, Lilith levantou o queixo,
murmurou uma vaga desculpa ao jovem casal e
os deixou, perplexos, e olhando sua saía abrupta.

O receberia esta noite? Enquanto passava os braços nas


mangas do fraque que Clifford segurava, Gabriel se perguntou em
silêncio a mesma questão desde que Lilith fugiu da casa de Brave e
Rachel.

Maldição, ele a veria esta noite, nem que tivesse de derrubar


o lugar a sua procura. Passou-se quatro dias desde que a viu pela
última vez, e ao sair da casa de Brave parecia tão aflita e triste que o
deixou preocupado. Não concordara em recebê-lo e nem parecia se
empenhar em combatê-lo através de Somerville, angustiado desejara
que o Lorde se levantasse de novo para argumentar contra ele na
Câmara só para ouvir as palavras escritas por Lilith, mas só ouve
silencio.

Enquanto isso, seus discursos sobre o tema eram recebidos


com crescente zombaria. Sua relação com Lilith prejudicava sua
credibilidade. Alguns aristocratas até acreditavam que talvez estivesse
procurando a própria queda, mas para outros só havia a queda que os
conduzia a cama. Esse tipo de especulação deveria incomodá-lo, no

242
entanto... Estranhamente o assunto não o irritava. Não que tivesse
mudado de opinião sobre o jogo, simplesmente Lilith dominava seus
pensamentos. Por isso há duas semanas não aparecia no Parlamento
ou em outros lugares que frequentava, não conseguia sentir a mesma
paixão por sua causa. Estava preocupado por ela, não por suas
prioridades terem mudado.

Ele era o Conde Angelical. Suas prioridades nunca


mudavam.

Uma vez no piso inferior, Robinson lhe comunicou que tinha


visita:

— Lorde Underwood o espera no salão vermelho, Sua


Senhoria.

Estupendo. Justamente o que precisava nesse momento:


outra confrontação com Blaine por sua demora em encontrar provas
contra o Mallory's. Tampouco gostava de recordar o que acontecera ao
pai, nem que suspeitasse de Lilith... Gabriel suspirou e se dirigiu com
passo firme ao salão vermelho. Acabaria logo com aquilo. Diria a Blaine
que iria ao Mallory's para interrogar os que trabalhavam lá, mas que até
o momento, a investigação não fornecera nenhuma prova da fraude. Na
verdade, embora hesitasse em dizer ao amigo, se perguntava se
realmente teriam extorquido Frederick. Era-lhe mais fácil acreditar
agora que o rapaz teria se enganado em pensar que um estabelecimento
como Mallory's arriscaria sua reputação, apenas para depenar o filho
mimado de um aristocrata.

— Blaine. - Disse com jovialidade forçada ao entrar no salão.


— Justamente agora estava de saída. O que posso fazer por você?

243
De pé no tapete de Abusson vermelho com detalhes em
marom e dourado, com a mão sobre o entalhe de carvalho de um sofá
de veludo, Blaine parecia recém saído de uma pintura. Suas feições
austeras mostravam a expressão típica de dono de uma mansão rural,
que muitos pintores tanto apreciavam nesta época. Só lhe faltava o traje
campestre e um par de fiéis cães de caça. Ele franziu o cenho e olhou
intensamente seu anfitrião.

— Vai ao Mallory's, não?

Gabriel arqueou uma sobrancelha. Não gostou do tom de voz


do velho amigo, mas compreendia sua censura. Sua relação com Lilith
era algo que pouca gente entendia. Ele mesmo mal conseguia entendê-
la. Mas isso não implicava em deixar de lado, algum comentário
insidioso.

— Sim.

Pelo visto, a julgar pela postura tensa, Blaine esperava uma


explicação mais complexa.

— Posso perguntar o fim do pequeno passeio desta noite?

Gabriel cruzou os braços, franziu os lábios e adotou um


cômico gesto pensativo.

— Bem, pensei em jogar algumas rodadas de whist, ou


tentar a sorte no faraó e ver quanto da fortuna que tanto me esforcei em
recuperar posso esbanjar em uma noite... Que fim acha que posso ter,
Blaine?

O sarcasmo de Gabriel fez o Visconde corar.

244
— Esperava que já tivesse descoberto quem enganou meu
filho, mas creio que mais do que o sentido do dever, o que o leva a esse
antro de perdição seja a proprietária dele.

A mandíbula de Gabriel se endureceu.

— Certamente, o que me leva lá não é assunto seu, Senhor.

Há anos que não se dirigia a Blaine como "senhor". Era um


aviso, e este sabia. Blaine adotou uma expressão de causar pena e um
tanto divertida. Parecia já esperar que Gabriel lhe causasse uma
decepção.

— Se estivesse preocupado com Frederick não teria dito isso.

Não, mas Blaine não devia levar o assunto para aquele lado.
Gabriel não se incomodou em dizer-lhe.

— De fato, não me preocupo com ele.

— Humm... Esteve com ela?

Com a mandíbula dolorida de tanto apertá-la, Gabriel


levantou a cabeça bruscamente para olhar seu interlocutor.
— Realmente isso não é assunto seu. Qualquer
relacionamento que haja entre Lilith e eu, não concerne a ninguém
além de nós. E agora, se me desculpar...

Blaine o interrompeu:

— Pois garanto que esse é um assunto meu! - Gabriel nunca


o ouvira expressar-se de forma tão violenta. — É assunto meu se esse
"relacionamento" com essa mulher o cegou e o deixa incapaz de ver a

245
verdade! É meu assunto porque me prometeu provar que aquele antro
roubou meu filho, e até agora somente causou intrigas que difamam
sua reputação em jornalecos e provocam risos dos seus iguais as suas
costas por cortejar essa... Essa rameira como se fosse uma dama!

Com as mãos fortemente apertadas aos flancos, Gabriel se


aproximou de Blaine com movimentos rápidos. Precisou recorrer a todo
seu autocontrole para não socá-lo. Teria sido como bater no próprio pai,
mas o teria feito se não tivesse se lembrado do bem que lhe fez depois
da morte deste.

— Só sua amizade com meu pai me impede de exigir uma


satisfação por este comentário infeliz de sua parte. - Avisou. A raiva
carregando sua voz em um timbre profundo e duro. — Aviso-o para não
falar de Lady Lilith desse modo.

Blaine o olhou atônito. De seus lábios saiu um riso histérico.

— Nem sequer se importa de que lhe joguem a verdade na


cara?

— Não, nem um pouco.

Os malditos fofoqueiros podiam dizer o que quisessem dele.


E pensar assim deveria ser alarmante para ele. Em todo caso, o que
dissessem sobre ele, não o interessava. Blaine negou com a cabeça e
passou a mão pelo cabelo, denso e grisalho.

— Não posso acreditar que, depois de se esforçar tanto em


viver sua vida seguindo uma conduta tão íntegra e irrepreensível se
permita ser enganado por uma mulher como Lilith Mallory.

246
— Já ouvi suficiente. - Gabriel segurou Blaine pelo
antebraço e o levou em direção à porta. — Saia de minha casa Blaine.

— Há duas semanas acreditava que meu filho fora enganado


e roubado. - Lembrou-o Blaine, com os calcanhares fincados no tapete.
— Mas isso foi antes de saber quem era o culpado. Mesmo não
encontrando provas de que houve a trapaça, nega-se a agir contra essa
malta de criminosos que usam o jogo para denegrir nossas famílias.
Não pode continuar de olhos fechados, Gabriel: ou acredita em
Frederick ou acredita nessa ...

Sufocado não só pela cólera, mas também pelo esforço de se


controlar, Gabriel soltou o braço de Blaine e se voltou para olhá-lo com
uma expressão que o fez sentir como se usasse uma máscara de ferro.

— A única coisa de que tenho certeza é que Lilith e o clube


dela não enganou ou roubou Frederick.

— Como sabe? - A voz de Blaine continha desafio e escárnio.


— Perguntou a ela?

— Sim.

Era evidente que Blaine não esperava isso. Olhou fixamente


Gabriel e moveu a boca em silêncio um instante, de repente estreitou o
olhar.

— Não mencionei o nome de Frederick, mas ela sabe do que


foi acusada. E eu acredito quando se diz inocente.

Os olhos de Blaine voltaram a mostrar fúria contida.

— Está insinuando que meu filho é um mentiroso?

247
Não era próprio de Gabriel sequer insinuar uma resposta
afirmativa.

Blaine era um pai muito protetor. Gabriel achava que era


muito restritivo, que protegia demais o filho, não se surpreenderia se
este alterasse a verdade para não decepcionar o pai. Mas acusações
como as que apresentara contra o Mallory's não era algo que um jovem
honrado fizesse levianamente, e até onde o pai sabia, Frederick sempre
fora honrado. O filho perfeito, a quem Blaine tentava com todo seu
empenho em torná-lo um homem íntegro, um reflexo de si mesmo.
Acaso vendo o exemplo do próprio Gabriel e o pai, não lhe passaria pela
cabeça que nem sempre os filhos queriam ser como os pais?

— Não. Não acredito que Frederick seja um mentiroso...

Blaine ficou muito satisfeito.

— Mas tampouco acredito que Lilith seja. - Acrescentou.

Por mais estranho que pareça, agradou-lhe que Blaine se


irritasse ainda mais. Cada vez mais lhe era difícil lembrar que a atitude
do Visconde era consequência da preocupação que sentia pelo filho.

— Então, o que pretende fazer? - Perguntou Blaine, mal-


humorado. — Nada?

Gabriel andou até a porta, desta vez sozinho. Não lhe


importava se Blaine o seguia ou não.

— Porque foi um bom amigo de meu pai, e sempre foi bom


para mim, prometo que descobrirei a verdade, mas não a empregarei

248
para fazer mal a Lilith ou ao seu negócio. Se você e Frederick quiserem
fazer algo mais, podem tentar, mas me deixe fora desse assunto.

— Você ainda a ama, não é?

A voz de Blaine se elevou as suas costas, e a ironia fria que


havia nas palavras deixou atrás de si uma esteira de tristeza. Duas
coisas acabaram de se interpor entre os amigos: honra e amor. Neste
caso se combinavam as duas. Gabriel saiu do salão em silêncio,
ignorando tanto a pergunta como o homem que a tinha exposto, não
porque a pergunta o encolerizasse, simplesmente, não tinha ideia de
como respondê-la.



Latimer o saudou com um gesto de cabeça quando Gabriel


entrou no clube. O silêncio do empregado robusto parecia indicar que
por fim Lilith estava pronta para enfrentá-lo. Se não o quisesse ali,
Latimer era bastante leal para barrá-lo na porta. A ideia de que Lilith o
receberia lhe proporcionou mais prazer do que estava disposto a
admitir, mas, onde estaria?

— Lady Lilith está no clube das senhoras, Lorde Angelwood.


- Informou Latimer, era evidente que tinha piedade dele. — Ela precisou
resolver uma pequena disputa.

Gabriel riu.

249
— Uma disputa? O que aconteceu? Alguma pisou na barra
do vestido da outra?

Sorrindo, Latimer negou com a cabeça.

— Uma acusação de trapaça entre as damas.

Todo o bom humor desapareceu quando o sangue gelou em


suas veias. "Deus bendito, não pode ser."

— Trapaça? - A voz retumbava nos ouvidos. Sem perceber, a


mudança de atitude de seu interlocutor, Latimer fez um gesto
afirmativo.

— Uma das senhoras que jogavam picquet, acusou a


adversária de tirar cartas da manga. A outra senhora se ofendeu e lhe
deu uma bofetada. Depois instalou-se a confusão, se atacaram como
duas feras, e Lady Lilith precisou ir para acalmar os ânimos.

Gabriel não sabia se ria ou chorava, e riu com uma risada


sufocada que encobriu seu alívio. Devia já ter imaginado que nem Lilith
ou o clube tinham alguma culpa, tinha que confiar nela... Mas seu
primeiro pensamento foi de que Blaine tivesse razão, que seus
sentimentos por Lilith tinham obstruído seu julgamento. Não queria
duvidar de si mesmo. E muito menos de Lilith.

— Esperarei no clube, Latimer. Não se incomode de lhe dizer


que estou aqui. Ficarei a sua espera.

Era mentira, queria procurá-la de imediato. Mas daria a ela


o tempo que precisasse. Latimer assentiu. Em seus olhos havia um
brilho de compreensão.

250
— Como achar melhor, Sua Senhoria.

Dentro da área masculina do clube, Gabriel pediu uma taça


do porto e se aproximou de uma mesa onde se jogava faraó. Observou o
jogo durante alguns minutos sem ver nada suspeito no modo como o
crupier movimentava as cartas. Talvez as trapaças fossem reservadas
aos jovens inexperientes e não para os empedernidos trapaceiros da
nobreza.

Da mesa, Lorde Pennington levantou o olhar e lhe disse:

— Angelwood, quer se unir a nós?

A brincadeira foi recebida com uma roda de gargalhadas


entre seus companheiros. Gabriel sorriu, rígido.

— Não, obrigado.

Depois daquilo, decidiu que seria melhor observar a ação à


distância. Não tinha humor para aguentar mais comentários de
Pennington, embora ele mesmo os tivesse procurado.

Alguns grupos, conversavam animadamente sobre cavalos e


política, outros bebiam sentados às mesas, e sua conversa era mais
amena, outros jogavam cartas e bilhar. Como Gabriel já esperava,
alguns lhe dirigiram olhares divertidos e riam com os amigos. Falavam
dele. Quase não se importava. Talvez um pouco de animação não faria
mal a sua reputação, embora o fato o irritasse um pouco. Como Lilith
tinha suportado? Como conseguia suportar isso ainda?

Simplesmente, porque quem sussurrava lhe pagava o


privilégio de fazê-lo em sua presença. Pagavam, e muito bem por esse
privilégio, comprando seu licor e usando suas salas e mesas. E, do

251
mesmo modo, lhe permitindo descobrir seus segredinhos vergonhosos
que queriam manter escondidos. Não era a toa que encontrava tanto
prazer em ser a proprietária do clube, já que este punha em suas mãos
os que a rejeitavam publicamente. Era uma vingança pequena e sutil
contra uma sociedade cheia de intrigas e falsidades.

E ele? Teria ela, em mente, um destino similar para ele?


Gabriel acreditava que não, mas seria prudente não descartar a
possibilidade. Precisava clarear as ideias, e logo. Mal conseguia pensar
quando estava com Lilith, e muito menos quando estava longe dela.
Deus, como se sentia perdido.

"Falando no rei de Roma..."

Lilith entrou na sala capturando imediatamente a atenção de


todos os homens. Alguns a olharam com indiferença, outros com
respeito, mas foram os que a olharam com desejo que enfureceram
Gabriel. Ela era dele. Sempre fora e sempre seria dele e de ninguém
mais. Ela jamais admitiria isso, tampouco admitiria isso a ela, mas
estava gravado em seu coração, Lilith lhe pertencia, e seria assim até o
dia de sua morte.

Situou-se atrás de um grupo de comerciantes para observá-la


enquanto ela se movia entre os clientes. Estava encantadora, embora
com um aspecto um pouco cansado. Os magníficos cabelos, preso em
um grande coque, deixava escapar alguns cachos que lhe acariciavam a
testa e orelhas. Usava um vestido de brocado de seda verde musgo, que
ressaltava a cor de seus olhos. Luvas brancas lhe cobriam as mãos e os
braços, e, conforme notou feliz, nem um traço de cosméticos empanava
a perfeição de seu rosto. Um rosto que adotou uma expressão resoluta
quando avançou para uma mesa onde vários jovens jogavam pôquer.
Por que se aproximava deles daquela maneira? Parecia uma professora
rígida a ponto de admoestar um aluno indisciplinado... E se

252
assegurando de permanecer fora de seu campo de visão, Gabriel se
aproximou mais.

Lilith parou junto à mesa, e sua atenção caiu em um


desafortunado jovem. Falou com ele, mas de onde Gabriel estava não
ouvia suas palavras, de modo que se aproximou um pouco mais, se
interpondo entre dois homens que lhe davam as costas. O jovem se
levantou, fez um gesto com a mão aos amigos e seguiu Lilith até um
canto, entre um vaso com uma planta grande e uma mesa vazia.
Gabriel se contorceu para se esconder atrás da planta, contente de que
sua ação tivesse passado desapercebida, ou, em todo caso, ninguém
parecia estranhar a ação dela.

Olhando entre as folhas da planta se via e ouvia melhor


Lilith e seu interlocutor. Era Frederick! Que diabos fazia ali? Aquele
rapaz deveria desprezar o clube, mas parecia passar muito tempo nele.

— Frederick. - Ouviu Lilith o admoestar. — Creio termos


feito um acordo.

Frederick emburrou a cara.

— Mas Lilith, não esperará que...

"Frederick" e "Lilith", não? Estava claro que Frederick


passava mais tempo no Mallory's do que deu a entender ao pai. E mais
do que Lilith tinha insinuado.

— Frederick. - Lilith o interrompeu com aquele tom cortante


tão dela. — Nosso acordo era de que devolveria a quantia que deve ao
clube quando pudesse, mas só com a condição de que não voltasse a
jogar aqui ou em outro lugar até que a soma estivesse paga.

253
Gabriel sorriu. Era evidente que essa voz não era a de
alguém habituado a depenar jovens tolos.

— Mas Lilith...

— Não. Jurou-me que pagaria a dívida você mesmo, e


minhas condições foram essas. Gostaria que eu fosse ao seu pai?

— Não!

A veemência na voz do jovem fez Gabriel franzir o cenho. Não


estava certo do que acontecera no Mallory's na noite em que Frederick
perdeu seus rendimentos, mas cada vez mais suspeitava que fora algo
mais grave que uma trapaça.

"Ah, não quer, hein? Não quer que Lilith procure seu pai, seu
moleque descarado?"

Lilith sorriu como uma mãe a um filho rebelde.

— Então nesse caso, sugiro que deixe as mesas antes que se


veja mais endividado ainda, e com alguém que não seja tão escrupulosa
quanto eu.

Com expressão mal-humorada, Frederick disse:

— Tudo bem.

E foi nesse momento que Gabriel escolheu fazer sua entrada.


Recuou alguns passos e tentou aparentar que acabava de tropeçar com
eles, em vez de os estar espreitando.

— Boa noite.

254
Não soube quem levou o maior susto, se Lilith ou Frederick,
mas com certeza nenhum dos dois acreditou que os tivesse encontrado
por acaso. A prova foi o terror que surgiu no rosto do jovem. Sem dizer
um "olá" sequer, o rapaz girou sobre os calcanhares e se afastou
abrindo caminho aos empurrões pelo clube, como se o edifício estivesse
em chamas. Não olhou para trás um única vez, nem sequer ao chegar à
porta.

Não importava, trataria em breve com aquele inconsequente.


Gabriel dirigiu sua atenção à mulher que tinha diante de si e sorriu ao
ver seu semblante de surpresa.

— Minha querida precisamos conversar.



Não devia se surpreender por vê-lo tão perto, mas ao obrigar-


se a estar longe dele por quatro longos dias, parecia incapaz de saber se
sua presença ali era verdade ou algum truque cruel de sua imaginação.

— Sim, creio que sim. Estarei em meu escritório no piso


superior dentro de dez minutos.

— Não seria melhor subirmos juntos? - Seu tom brincalhão


contrastava com a preocupação que ela notou em seus olhos. — Não
quer que nos vejam sair juntos? Acha que me importo com o que os
outros pensam?

255
Lilith negou com a cabeça, e os músculos do pescoço e
ombros doíam de tensão. Logo estaria com dor de cabeça também se
não resolvessem suas diferenças.

— Por favor, Gabe, esta noite não.

O rosto dele revelou tal alarme que ela não pôde evitar de
sorrir.

— Não franza o cenho assim. Não estou doente, só não estou


disposta a representar Jezebel nesta noite.

Ele fez um gesto de assentimento, como se a entendesse. E


talvez realmente entendesse.

— A esperarei então.

Com o encontro combinado, Lilith o deixou. Caminhou sem


fazer ruído sobre o tapete e não falou com ninguém. Sua atenção se
concentrou na porta do outro lado do salão, e a multidão se afastou
diante dela como o Mar Vermelho diante de Moisés. Mais do que um
aviso, ao passar sentiu as olhadas e notou como emudeciam as
conversas. A esta altura já deveria estar acostumada.

Devia ter vestido algo mais escandaloso, um pouco mais


atrevido. Com seus vestidos ousados se sentia uma mulher mais forte e
ao mesmo tempo ardilosa e agia como tal, mas com aquele vestido
recatado e sem sua máscara, não era mais que a insípida imagem de
Lilith Mallory: uma mulher sem família e com muito poucos amigos.
Uma mulher com tanto dinheiro que não sabia o que fazer com ele, e
que ansiava por uma posição que o ouro não podia comprar.

256
Nenhum homem decente se casaria com uma mulher com
sua reputação, e ela tinha muito orgulho para conformar-se em ser
somente a outra. Poderia ter um filho e criá-lo sozinha, mas não
suportaria que o filho carregasse o estigma de bastardo. E não gostaria
de educá-lo como ela, ou Gabriel foram educados. Ela, que tinha
desonrado a memória dos pais comportando-se de forma contrária a
deles. Sua moral, tão restrita, pressionou a filha no sentido oposto. E
Gabriel, nascido de pais que eram carinhosos mas de moral
escandalosa, que se rebelara contra eles, e acabara se tornando alguém
que, se não tomasse cuidado, algum dia acabaria se parecendo com o
pai de Lilith.

Chegou ao vestíbulo e fechou a porta atrás de si com um


suspiro de alívio. Geralmente o clube era seu consolo, mas
ultimamente... Ultimamente parecia ser pouco mais do que um aviso de
sua condição inferior. Nunca se sentira assim até Gabriel voltar para
sua vida.

Por que ver ou estar com Gabriel a fazia sentir que tudo
dava errado? Quando jovem, fazer amor lhe parecera perfeito, mas
terminou sendo sua ruína. Ele a abandonou, seus pais a rejeitaram,
seus amigos e a sociedade a execrara... Levara anos para recuperar a
confiança em si mesma, e ao menos sentir-se um pouco bem consigo
mesma, e agora... Agora voltara a ser a moça frágil e tola, isso a
aborrecia profundamente.

Seguiu pelo estreito corredor e logo subiu as escadas. Cada


degrau parecia mais difícil de subir que o anterior.

Se fosse realista e sensata, tiraria Gabriel de sua vida, o


afastaria dela e de seu clube. Mas dizer ou fazer algo que afastasse
Gabriel, seria como dizer ao sol que não brilhasse. Até haveria um ou
dois dias nublados, mas logo o astro rei estaria de volta. Enquanto ela

257
estivesse em Londres, ele não a deixaria tranquila, e só era uma mera
questão de tempo para que a consumisse em sua luz ou que ela o
matasse com sua escuridão. Era inevitável. Sabia. Seu coração gritava.
Poderia enfrentá-lo agora, mas algum dia um deles acabaria ferindo
mortalmente o outro. E então...

Então teria de fugir da Inglaterra, se esconder em algum


lugar onde ninguém a conhecesse, e tentaria levar uma vida normal
sem Gabriel. Deus sabia que com ele não teria nenhuma vida normal.

Entrou no escritório e fechou a porta para fechar-se no


cômodo que naqueles últimos dias se tornara seu refúgio. Dentro
daquelas paredes parecia que podia controlar a situação. Ali dentro
fingia que Gabriel, Bronson e seu próprio passado nunca existiram.
Fingia que ainda era a mulher de negócios, poderosa e ponderada, em
vez da mulher perto dos trinta e com mais pesares do que gostaria de
admitir.

Gostaria que Gabriel não tivesse lhe mostrado o bebê,


Alexander. Gostaria que não o tivesse pegado nos braços... Oh, pelo
amor de Deus, que chorona se tornara! Tais desejos e ânsias eram
naturais, eram parte de sua condição de mulher e sem dúvida
passariam, como todos os outros pesares. Deus, não queria continuar
com aquilo na cabeça. Precisava deixar de imaginar como seria ter um
filho... O filho de Gabriel.

— Deus bendito! - Gritou. — Devo estar perdendo a cabeça!

— Dizem que falar sozinho é o primeiro sinal de loucura.

Com um grito abafado, Lilith deu um salto e se virou. Não


tinha ouvido a porta abrir.

258
— Não se passaram os dez minutos.

Ainda restavam cinco minutos para continuar a sentir pena


de si mesma. Gabriel encolheu seus largos ombros e sorriu.

— Não consegui esperar mais.

Por Deus, o homem sabia lhe pôr o coração apertado.

Lilith cruzou o cômodo até o sofá e se sentou na beirada,


com as mãos juntas no regaço.

— Do que quer falar?

Gabriel foi sentar-se a seu lado e afastou as abas do fraque.


Seu corpo, grande e extraordinariamente masculino, fez que o sofá
pequeno parecesse ridículo e frágil.

— Relaxe, Lil. Isto não é a inquisição.

— Sei que não é. - Respondeu ela, em tom entrecortado.

Gabriel aparentemente indiferente a sua brutalidade,


prosseguiu:

— Quero a lista dos empregados de seu clube. Qualquer um


que tenha acesso a suas mesas, e aos crupiers. Quero saber quem
trabalha e em que noite, e quero um relatório detalhado de seus lucros
e perdas durante o mês passado.

As pontadas na cabeça de Lilith pioraram.

— Não parece querer muito, hein?

259
Os lábios dele se curvaram em um sorriso de fingida
inocência, um sorriso muito charmoso e descarado, que arrebatou de
Lilith toda vontade de brigar.

Desgraçado.

Sorriu apesar de si mesma e assentiu.

— Tudo bem. Terá que me dar um ou dois dias para reunir


toda a papelada.

Então ele franziu o cenho.

— Quero isso pela manhã.

Lilith soltou uma risadinha e fez um gesto negativo.

— Contrariamente ao que você gosta de acreditar, Gabriel,


eu não existo somente para satisfazer suas necessidades. Tenho uma
vida, um negócio e outras quarenta pessoas com problemas que eu
tenho de resolver. Terá que esperar sua vez, meu caro. Tem sorte de eu
lhe dar a lista dentro de dois dias sem brigar.

Por seu aspecto, ele não parecia pensar que lhe fazia um
favor.

— Se não tenho escolha...

E, sorrindo ainda, Lilith lhe deu um tapinha na coxa.

— Não foi tão difícil, certo?

260
Mas aquela coxa... A única coisa difícil em Gabriel era seu
coração e, às vezes, sua cabeça.

A mão dela ficou na perna um pouco mais do que


necessário, e ambos se deram conta. Devagar, Lilith afastou os dedos
da coxa sólida e quente, coberta com a calça preta. O olhar dele era tão
escuro como a fumaça de um incêndio. Lilith sentiu o coração na
garganta ao ver o ardor, e desejo reprimido, que havia neles. Se agora a
beijasse, nada o deteria. Provavelmente, poderia fazer tudo o que
quisesse e ela não o impediria.

Mas ele não fez nada. Não, não é verdade. Disse a única
coisa que ela não queria ouvir:

— Lamento que a visita a Brave e Rachel lhe tenha sido tão


penosa.

Lilith ficou em pé de um salto. Não podia comentar isso com


ele. Nem agora nem nunca. Apertando o peito com a mão para dominar
a dor que sentia, voou até o aparador na parede contrária.

— Pensei que havia dito que isto não seria uma inquisição.
Quer uma bebida? Eu preciso.

— Um dose me faria bem. Não quer falar disto comigo, não


é?

Com um riso mordaz, Lilith abriu uma garrafa de cristal.

— Quanta sagacidade, Gabe. Sempre tão esperto.

Do outro lado do cômodo, confortavelmente ajeitado naquele


sofá tão elegante, ele não estava em condições de intimidá-la, mas o

261
fazia. Era uma das poucas pessoas que tinham esse poder sobre ela.
Dava-lhe mais medo do que Bronson e suas ameaças.

— Por que não quer falar comigo, Lily?

Os olhos se fecharam com uma nervosa piscada ao ouvi-lo


chamá-la por esse nome carinhoso. Por que diabos ele fazia aquilo? Por
que queria que se abrisse e confiasse nele? Respirou fundo e reuniu
forças. Apenas a mão tremia levemente quando servia dois copos
generosos com uísque.

— Não seria o tipo de assunto que uma mulher comente com


um cavalheiro.

Seus olhares se encontraram. A energia que tinha reunido


quase sumiu sob o exame daqueles olhos perspicazes.

— Mas não somos somente uma mulher e um homem. - Ela


soube que conscientemente omitia a palavra "cavalheiro". — Você é
você, e eu sou eu.

E com aquilo se supunha que estava tudo bem.

Lilith se virou e caminhou até a escrivaninha e sentou-se na


beirada dela. Estava claro que não mudaria de assunto, de modo que
mais valia ficar confortável enquanto ele atacava suas defesas.

— Disse que uma criança merecia ter uma mãe melhor que
você. Por que?

Lilith levou o copo a boca.

— Lembranças...

262
Bebeu um grande gole e agradeceu as ondas de fogo que a
bebida lhe dava.

— Tenho o costume de lembrar de coisas idiotas. -


Prosseguiu ele, sem se desviar do tema. E seu comentário foi uma das
afirmações mais ridículas que já ouvi.

Ela lhe jogou um olhar de lado.

— Ah, sim? Diga-me, como é crescer com uma mãe de moral


duvidosa?

O dardo acertou no alvo. Gabriel corou, mas Lilith não


sentiu satisfação nisso. Tomou outro gole.

— Não quero que meu filho cresça pensando que ele ou ela
tenham que ser melhores que eu, que precisem compensar meus erros,
ou, pior ainda: que queiram ser como eu.

— Há coisas piores do que imitar. - Gabriel disse com


suavidade, e bebeu mais um pouco.

— Como o quê? - Perguntou ela com uma expressão de


descrença. Já começava a sentir o efeito do uísque. Não era surpresa:
nem almoçara ainda.

— Como sua mãe.

Lilith abriu a boca, assombrada... E a risada brotou em seu


interior, lhe sacudindo todo o corpo e fazendo que os olhos
lacrimejassem e doessem os pulmões. Quando os espasmos se

263
acalmaram, enxugou os olhos com o dorso da mão e levantou o olhar. O
sorria abertamente.

— Isso sim é lamentável. - Disse. — Agradeço pela gentileza.

O sorriso dele se desvaneceu um pouco, assim como o brilho


em seus olhos.

— Não pode desperdiçar o tempo lamentando o que não tem,


Lil.

— Para você é muito fácil dizer. - Replicou ela, tomando


outro gole. — Você é homem, e pode gerar filhos até envelhecer.

— Ainda há muito tempo. Não é nenhuma velha.

Ela sentia o uísque na cabeça, soltando-lhe a língua e


também insensibilizando o cérebro.

— Pense que poderíamos estar casados, ter tido vários


bebês. - Deu-lhe um ataque de riso quase histérico. — Pense bem, já
teria um herdeiro e muito dinheiro.

Não lhe deu a impressão de que Gabriel gostou da piada. De


fato, pareceu ter levado um chute na virilha.

— Chega.

Lilith se levantou e aproximou-se, apoiou o cotovelo no


respaldo do sofá e descansou a cabeça na palma da mão. Agora era a
vez dela deixá-lo nervoso. Ele queria falar, pois bem falariam, mas o
obrigaria a ser tão sincero quanto ela.

264
— Já se perguntou como seria se nos tivéssemos casado?

Gabriel deu um longo gole e estremeceu ao engolir.

— Sim.

— Como imagina?

Com um sorriso coibido, encolheu os ombros. Pouco a pouco


ele também baixou as defesas.

— Normalmente, imagino que temos a idade de agora.


Vivemos no campo com cinco filhos...

— Cinco!

Gabriel mostrou um amplo sorriso e corou um pouco sob o


olhar incrédulo dela.

— Caminhamos por uma trilha. Não paramos...

Lilith se sentia muito relaxada até para corar.

— Bem, parece tão idílico. Somos felizes?

O sorriso dele se esvaiu.

— Sim.

Soou pouco mais que um suspiro. Lilith sentia a crescente


frouxidão de seus músculos, provocada pela bebida, aliviando mais a
dor no pescoço. Massageou a nuca e sorriu.

265
— Sempre que penso em nós, vejo-nos felizes. Imagino
sempre que é Natal, e que as crianças nos ajudam a decorar a casa.
Mas não temos cinco filhos.

— Há uma trilha?

Estava brincando, mas ainda assim ela se iluminou toda.

— Sim.

Com um olhar cheio de algo que fez que seu peito doer e
prender o fôlego, ele disse:

— É um lugar encantador...

De repente o cômodo se carregou de tensão, uma tensão


quente e densa. Quase palpável, e sentiu o suor que escorria sob seus
seios. A tensão lhe oprimiu o peito, arrepiou-lhe os pêlos da nuca e lhe
ardeu no abdômen. Então apertou os dedos em torno do copo para que
ele não os visse tremer.

— Está esfregando o pescoço. - Comentou Gabriel enquanto


deixava o copo na mesinha ao lado. — É uma de suas enxaquecas?

Outro rubor. Anos atrás, tivera uma crise de enxaqueca


assim, a obrigara a confessar a causa. Nos meses sucessivos, até se
separarem, sempre que estava próxima de menstruar e estavam juntos,
esfregava-lhe o pescoço, longe dos olhos vigilantes de seus pais, é claro.

Então ele se posicionou de lado, dobrou uma perna sobre o


sofá e deu tapinhas na parte de assento que ficava entre eles.

— Venha aqui e farei uma boa massagem no pescoço.

266
Deveria se recusar, mas a oferta era muito boa, deliciosa,
impossível de dispensar. Em questão de segundos, Lilith esvaziou o
copo e se levantou o bastante para que suas pernas vacilantes a
aproximassem alguns passos e se deixou cair no ninho morno de seu
corpo, com as costas apoiadas na sólida parede de seu peito.

— Haa... Humm... - Gemia quando seus dedos fortes


afundaram nos seus ombros. — Que bom!

— Relaxe o corpo.

Ela deixou cair a cabeça no ombro dele, e as pálpebras já


pesadas se fecharam.

— Humm. Como senti falta disso...

Gabriel não respondeu. Na verdade, não se importou. Só


queria tê-la ali, calma e sedutora entre os braços.

Perdeu a consciência do tempo, mas quando seu toque


mágico lhe aliviou a tensão do pescoço e ombros, assim como as
pontadas de seu crânio, o resto relaxou também. Estava quase
dormindo. Então algo lhe roçou a têmpora. Pareciam lábios, lábios
quentes e macios. Também o leve roçar de uma barba incipiente... Que
delícia.

Em sua cabeça, Lilith se permitiu imaginar que estavam em


sua fantasia. Estavam no sofá de sua casa, em uma noite de inverno.
As crianças dormiam, ardia um fogo na lareira e lá fora caía a neve. Seu
ventre começara a inchar com seu quinto filho, e Gabriel a massageava
antes de irem para a cama. Também lhe sussurrava que tinha um

267
presente especial para ela e não queria esperar
até amanhã para dar-lhe

— O que é? - Perguntava sorrindo.

— Estou pensando em como seria se


estivéssemos casados. -Respondeu ele.

Sentiu sua respiração quente na têmpora.

— Também estou.

E enquanto se afundava em uma escuridão tranquila e doce,


Lilith nem sequer considerou que Gabriel era quem falava realmente,
não o personagem de sua imaginação.

Gabriel nunca gostara de passear nos Jardins de Vauxhall,


além da aguardente de cana. A comida era de péssima qualidade e
muito cara, onde já se vira, pedir quatro xelins por bolachas? E a
companhia, por vezes, violenta e briguenta. Mas valeu a pena ter ido ali
só para ver a alegria no rosto de Lilith enquanto se divertia no
burburinho geral.

268
— Adorei a ideia de virmos aqui. - Ela disse dando outro
gole no ponche de rum e flor de laranjeira. — Há anos não venho ao
Vauxhall.

Sob as luzes das lanternas, os olhos de Lilith estavam


escuros e cintilantes, e seu cabelo parecia uma brilhante espiral de
chamas. Gabriel jamais vira uma mulher mais resplandecente. Sorrindo
divertido, olhou como puxava outra vez a mão para seu copo.

— Não mudou muito, exceto o preço da entrada e há mais


coisas a ver. Cuidado com o ponche, Lil, sobe rápido à cabeça.

A sós no caramanchão, observavam em relativa intimidade a


multidão animada que os rodeava. Tinham terminado o almoço,
presunto em fatias muito finas e um frango mais parecendo um pinto, e
saborearam os estupendos bolos de queijo que, segundo Gabriel, valiam
cada penny se eram do agrado de Lilith.

— Não aguento comer mais nada! - Exclamou esta


empurrando o prato para ele. — Coma, é a última.

Ele levantou as mãos.

— Já comi três. A última cabe a você.

Lilith riu e negou com a cabeça.


— Se comer mais uma migalha, terei que lhe pedir para que
afrouxe os cordões de meu espartilho.

Ah... Ele ficaria muito feliz em lhe afrouxar o espartilho, mas


não chegou a dizer-lhe. Já deixara que as coisas fossem além do que
pretendera. Agora reinava entre eles uma intimidade que não existia
dias atrás, e que o fazia desejar que não estivessem de lados contrários

269
no assunto do jogo. Entre eles se formava uma frágil confiança, e o fato
de que não devessem confiar um no outro fazia a situação ainda mais
difícil.

A noite em que ela dormiu em seus braços, precisou de toda


sua força de vontade para não levá-la para a cama e fazê-la esquecer de
tudo, mas então ela não estava em condições, nem físicas nem mentais,
para essas coisas. Isso acontecera há três noites, e se os cálculos de
Gabriel estivessem corretos, o período menstrual de Lilith devia ter
acabado.

Pousou o olhar no grande decote do vestido de cetim cor


cobre, e imaginou os seios pálidos lhe enchendo as mãos, e os mamilos
duros que esfregaria nos dedos. Pensar nisso provocou a familiar e
persistente tensão na virilha, mas não tinha direito a ter aquelas ideias.
Só tornaria mais difícil acabar com o clube quando chegasse o
momento... Se é que chegaria.

Outro pensamento surgiu em algum canto de sua cabeça,


consequência da aguardente de cana-de-açúcar e da música sensual
que a morna brisa primaveril levava até o caramanchão.

— Lilith, se lhe fosse possível ditar as leis que regem o jogo


na Inglaterra, como seriam?

Ao ouvir a pergunta, ela pareceu surpreender-se, por ele tê-


la formulado.

— Bem, faria com que os clubes estipulassem um limite à


quantia que uma pessoa pode perder ou ganhar em uma noite. Já vi
homens e mulheres perderam verdadeiras fortunas em uma partida de
cartas ou dados.

270
E Gabriel também. Seu pai, por exemplo.

— E acho que é preciso que haja punições mais severas para


os clubes e jogadores que trapaceiam. Eu sempre troco os baralhos por
novos todas as noite, mas ainda assim encontramos algumas com
cantos dobrados ou com pequenas marcas.

— E as dívidas?

Ela levantou uma sobrancelha.

— Como assim?

— Na outra noite ouvi sem querer quando falava com


Frederick Foster. Foi severa e mais amável que qualquer dono de clube
agiria neste caso.

Com um gesto desdenhoso de mão, Lilith encolheu os


ombros.

— É um rapaz imaturo e mimado. Algum dia acabará se


metendo em problemas graves, mas não será em meu clube.

— Ainda lhe deve uma quantia equivalente a todo seu


rendimento trimestral?

Lilith estreitou o olhar e o fitou inquisitiva.

— Parece saber muito sobre este assunto.

Maldição. Falara demais.

271
— Sabe como são os rapazes, gostam de se gabar com os
amigos...

Não queria revelar que Frederick era quem a acusara de


trapacear, e não que aquele sem vergonha não merecesse uma severa
descompostura. Dera sua palavra a Blaine, e não queria que Lilith
soubesse que o rapaz com quem fora tão amável a apunhalara pelas
costas.

Ela acreditou sem dificuldade na versão de Gabriel: os


jovens alardeavam.

— Ah, são tão inconsequentes, embora ache que uma dívida


de jogo não deveria ser algo a se gabar.

Agora ele encolheu os ombros.

— Em nossa sociedade acham que é um rito de passagem.


Não se é um homem até que perca seu primeiro pagamento.

Lilith sorriu com malicia.

— Ah, então não acreditava que só se é um homem quando


se perde a virgindade.

Com um sorriso devastador, Gabriel lhe serviu outro copo de


ponche. Gostava quando ela bebia um pouco além da conta. Parecia
mais feliz quando se divertia que quando brigava com o passado... Ou
pelo futuro.

— Há tipos diferentes de virgindade. - Explanou, enquanto


agarrava a jarra de ponche para servir-se. — No entanto, a sexual é
certamente a mais importante, suponho... Ao menos quando se é jovem.

272
Algo quente e turvo se desdobrou nas profundezas do olhar
de Lilith.

— Então se poderia dizer que o tornei um homem.

Gabriel sentiu o coração acelerar, e derramou um pouco de


ponche.

— Em minha opinião, sim.

Ela corou vivamente, ele não soube se era pela bebida ou foi
a lembrança da noite em que se entregaram um ao outro pela primeira
vez. Lilith tomou outro gole.

— Lembro-me de que me senti muito orgulhosa, como se


fazer amor me tornasse adulta. - Riu. — Deus, eu era tão jovem, tão
idiota...

— Nunca foi idiota.

— Eu o amava. - Sorrindo, Lilith negou com a cabeça e


suspirou. — Acho que estou embriagada, dizendo coisas que sei que
não deveria dizer a você.

— Não me importo. - Sussurrou ele.

Não quis acrescentar nada mais, por medo do que ele


mesmo poderia confessar. Com um olhar de astúcia, Lilith disse:

— Não, não acredito. E você, Gabe? Amou-me mesmo que


tenha sido um pouco?

273
Como podia perguntar-lhe isso? Ah... Ela suspeitava de que
não tivesse revelado toda a história, o que o impedira de se casar com
ela quando estourou o escândalo. Envergonhava-o dizer. Permitira que
os fofoqueiros a arrastassem pelo lodo enquanto ele tentava limpar a
conduta de seu pai para que não respingasse na família. Sacrificara o
bom nome de Lilith para proteger o seu... E o fato de ter sido jovem e se
envergonhasse do pai não justificava o que fizera Lilith sofrer.

— Eu a queria mais que tudo neste mundo. - Mas não fora o


suficiente.

Ela fez um gesto afirmativo, em seus olhos havia o brilho de


lágrimas, como se compreendesse o pesar que havia na voz dele.

— Quer voltar para casa? - Perguntou Gabriel. Sabia que o


ânimo feliz de antes não voltaria.

— Sim, vamos para casa.

Gabriel gostou de como soou aquilo, como se os dois fossem


para casa juntos, ao mesmo lugar.

Deixaram o caramanchão sem dizer nada. A mão dela


descansava no braço dele, e enquanto quilômetros pareciam separá-los,
tão absortos estavam nos próprios pensamentos. Ao redor, a brisa
levava a música e risadas. Bêbados e mulheres de virtude duvidosa
caminhavam pelos mesmos atalhos que Lordes, damas e comerciantes
abastados passavam. Os amantes passeavam por atalhos mais escuros
e ermos, alguns escoltados por servos armados, e outros em busca do
lugar perfeito para um encontro ilícito.

— Lembra-se de Hilda? - Perguntou ele com um tom de


irônico carinho enquanto cruzavam a grade.

274
Ele e Lilith só foram ao Vauxhall uma vez, com a criada dela
como guardiã de sua virtude. Gabriel fez o impossível para afastar a
mulher, mas foi em vão. Lilith soltou uma risadinha.

— Como poderia esquecê-la?

— Era como um cão de guarda bem feroz. - Comentou


Gabriel enquanto percorriam a saída dos jardins. — Protegia sua
inocência com a energia de uma amazona.

— Sim, mas fracassou rotundamente, não é verdade?

Para sua sorte na frase não havia nada de amargura,


contudo, ele não a olhou ao acrescentar:

— Fomos muito preparados para ela.

— Sabe que depois meus pais a despediram. - Não havia


necessidade de dizer o porquê. Lilith prosseguiu, como que para si
mesma. — Pergunto-me o que foi dela...

Desta vez ele a olhou nos olhos.

— Certamente entrou para o exército.

A risada de Lilith foi o som mais doce que tinha ouvido na


vida. Fez seu estômago se torcer e lhe apertou o peito, e todo o corpo se
encheu de alegria. Quando eram jovens riam muito. Sempre estavam
contentes. Agora não podia vê-la sem sentir a dor da perda lhe
impregnar até os ossos, ao menos uma vez a cada um de seus
encontros.

275
A carruagem os aguardava. Um dos criados de Gabriel
segurou a portinhola enquanto ele ajudava Lilith a subir.

— Posso perguntar uma coisa, Gabe?

A carruagem arrancou com um balanço. Gabriel, que se


acomodava entre as almofadas, ficou rígido ao ouvir o tom cauteloso em
sua voz, mas ao responder procurou manter o seu afável.

— O que quer saber?

Lilith lhe devolveu o olhar com outro muito sério, e se


inclinou para frente, apoiou os antebraços nos joelhos e o contemplou
na débil luz do lampião.

— Por que entrou no comércio?

Era o tipo de pergunta que ele esperava, e que não desejava


responder.

— Eu...

À cabeça lhe chegavam aos montes todas as mentiras e


desculpas que já inventara para responder, ensaiadas e bastante
críveis. Lilith inclinou a cabeça de lado, como se analisasse seu silêncio
hesitante.

— Precisava de dinheiro.

Essa não era uma das respostas ensaiadas! Lilith ficou tão
surpresa ao ouvi-la quanto ele ao pronunciá-la. Olhou-o atônita e abriu
a boca, uma vez, duas vezes, sem emitir som algum. Logo franziu o

276
cenho e inclinou a cabeça para o outro lado. Empalideceu. Abriu mais
os olhos... E então compreendeu.

— As dividas eram tão grandes assim?

Não há palavras para descrever o que Gabriel sentia naquele


preciso instante. Sentiu-se, ao mesmo tempo, aliviado e assustado de
que ela enfim, encaixasse as peças, como se houvesse sido tirado um
peso enorme das costas. Então fechou os olhos e lembrou-se do jovem
que fora. O espanto de encontrar o pai morto, a dor enquanto tentava
proteger a mãe do escândalo e, do mesmo modo, assumir a
responsabilidade do condado... Tudo aquilo teria sido mais fácil de
suportar se Lilith estivesse com ele.

— No dia seguinte os credores começaram a bater a nossa


porta. Eram tantos, Lil. As dívidas eram imensas. Eu não sabia como
pagaria aquilo ... Se não fosse por Underwood, não sei o que teria feito.

— E por isso tem tanto interesse pelas dívidas do filho dele,


Frederick.

Gabriel assentiu com a cabeça. Era uma forma de dizê-lo.

— E isso explica também por que não veio a minha procura.

— Mas eu a procurei, só que tarde demais.

Ela prosseguiu como se não o tivesse ouvido.

— E isso explica também sua postura quanto ao jogo, por


que quer erradicá-lo.

Certamente, em parte, sim.

277
Lilith inclinou a cabeça, com um pouco de remorso. Parte
de suas feições ficaram ocultas nas sombras, mas Gabriel viu tristeza
no rictos de sua boca.

— Seu pobre pai... Como deve ter sofrido...

— Meu pai? - Gritou Gabriel em um ímpeto que surpreendeu


até ele. — De onde diabos saiu essa ideia? Ele não sofreu. Minha mãe e
eu sim sofremos. Eu perdi meu pai e à mulher que amava. Não se
preocupe, meu pai não sofreu nada.

Não. Sua morte foi muito rápida.

Lilith lhe dirigiu um sorriso triste. Como se pudesse


entender algo... Mas não entendia nada, e ele queria contar a verdade.
Queria contar-lhe tudo para que assim o entendesse.

— Ele perdeu o controle, e esta é uma sensação horrorosa,


Gabe, perder o controle de si mesmo.

Gabriel soltou um grunhido desdenhoso.

— Ah, mas ele se controlava muito bem, tinha perfeito


controle da própria vida.

Seus punhos se crisparam. Ela estendeu a mão e apertou o


braço. Seu contato era tão firme e suave como sua voz.

— Ele não morreu de propósito, Gabe.

Gabriel não disse nada. Se ela soubesse... Mas embora


quisesse falar, não teria dito nada. Não houve tempo. Lilith largou o

278
braço dele e se segurou na braçadeira da carruagem quando esta deu
uma inclinação brusca.

— Mas o que é isso? - Gabriel deu um murro no teto com o


punho e urrou: — O que está acontecendo?

Lilith deu um grito ao se chocar com a parede oposta da


carruagem, e Gabriel grunhiu ao bater o ombro. De súbito, levantou
uma das janelas e olhou para trás, mas não viu mais que escuridão.
Aumentaram a velocidade, sem dúvida tentando escapar de quem os
atacava. Acima do trovejar das rodas, cascos de cavalos e vozes, gritou:

— Está machucada?

Embora esfregasse o braço onde batera na lateral, Lilith


negou com um gesto. Estava pálida, e os olhos, arregalados, pareciam
negros na escuridão.

— Acho que não!

A carruagem voltou a se inclinar bruscamente, e as


lanternas se apagaram. Desta vez o solavanco foi tão forte que Gabriel
notou que um lado da carruagem se levantava do chão e voltava a cair
com violência.

— Venha aqui. - Ordenou, enquanto deslocava o corpo e o


aproximava da parede.

Não precisou se repetir. Enquanto o veículo oscilava


perigosamente, Lilith se jogou no espaço que os separava, caindo no
banco acolchoado que havia junto a ele e se lançou entre seus braços.
Gabriel a abraçou forte e, para protegê-la, ficou de costas no canto. Se

279
tombassem, ele seria tudo o que haveria entre Lilith e a rua, e preferia
arrebentar todos os ossos antes que vê-la sofrer um arranhão.

— O que está acontecendo? - Gritou ela, enquanto os gritos


no exterior aumentavam até outro solavanco violento atingir a
carruagem.

Gabriel negou com a cabeça e apoiou a bota no banco da


frente.

— Não sei.

Teria tentado ao menos pensar em algo que a sossegasse,


mas estava muito assustado, não por ele mas por Lilith para considerar
responder. Nunca sentira tanto medo de perder alguém como agora,
nem sequer quando ela sumira há dez anos atrás.

O carro se inclinou, um lado foi se levantando mais e mais


até Gabriel sentir todo o peso de Lilith sobre ele. Pareceram ficar ali
pendurados um instante, agarrados um ao outro. Gabriel se preparou
para o choque que sabia que viria em questão de segundos... E logo
atingiram o chão, em meio a gritaria de homens e relinchos de cavalos.
Um estrondo explodiu no ar quando a madeira se estilhaçou contra os
paralelepípedos.

Lilith gritou. Até mesmo Gabriel, apoiado e preparado para


receber o impacto, grunhiu quando caíram. O impacto que sentiu nas
costas desencadeou uma onda de dor por todo o corpo. A cabeça fora
atingida com a madeira de carvalho polida, e luzes coloridas bailaram
diante de seus olhos. Segundos que pareceram uma eternidade.
Quando as luzes sumiram, Gabriel notou realmente o que havia ao
redor: vozes insistentes de fora da carruagem arrebentada, o som dos
cavalos assustados e alguém tentando acalmá-los, alguém que subia na

280
lateral da carruagem, perguntando se estavam bem, e a voz de Lilith
pedindo um médico.

Lilith... Gabriel fechou os olhos com alívio e sorriu, embora


sentisse todo o corpo como se estivesse sob o veículo. Lilith se
encontrava a salvo, e sentia seu peso e calor.

— Gabe. - Sussurrou ela junto a sua bochecha. — Diga


alguma coisa.

— Humm... - Respondeu como um tolo, muito dolorido e


aliviado para pensar em algo mais inteligente.

Lilith riu. Sentiu seu corpo estremecer em cima do dele.

— Oh, graças a Deus que está bem!

Ele abriu os olhos.

— Eu estava pensando o mesmo.

— Pode se levantar?

— Com você em cima de mim, não.

Lilith se levantou com dificuldade até ficar sob a portinhola,


Gabriel se levantou devagar. A cabeça e o corpo protestaram, mas se
esforçou em manter-se erguido.

A porta se abriu e por ela surgiu a cabeça do jovem lacaio da


carruagem. Tinha sangue no rosto e um corte sobre o olho, mas parecia
ileso.

281
— Lorde Angelwood, o senhor está bem, vamos tirá-los daí
em um minuto.

Primeiro tiraram Lilith, e Gabriel a ajudou impulsionando-a


para cima. Para tirá-lo precisou da ajuda de outros homens. Estava um
pouco enjoado e tonto, mas pôde sair. Cambaleante, afastou-se da
carruagem e examinou os estragos. A carruagem estava quase
destruída, mas poderia se substituir. Os cavalos, apesar do choque,
pareciam ter tido ferimentos sem importância. O jovem lacaio estava
machucado, e o cocheiro parecia ter quebrado o braço, mas todos
estavam vivos, e isso era o que importava.

Lilith ficou a seu lado e, sem pensar, Gabriel a atraiu para


mais perto e perguntou por cima de sua cabeça:

— O que aconteceu?

O cocheiro, que também sangrava por um corte no rosto,


segurando o braço ferido contra o peito, respondeu meio aturdido:

— Nos tiraram da estrada, Sua Senhoria. - Suas palavras


refletiam perplexidade naquela situação. — Desgraçados. Meia dúzia
deles, quatro a cavalo e dois em uma carroça. Tentaram controlar os
cavalos enquanto jogavam a carroça na lateral, até que tombamos.

Visivelmente agitado, o cocheiro se calou e fez um gesto


negativo com a cabeça. O jovem lacaio cuspiu na rua.

— Filhos de uma puta... Perdão, senhora.

Lilith sorriu.

282
Gabriel acariciou os cabelos de Lilith, o volume soltara quase
todas as presilhas e agora lhe rodeava a cabeça meio emaranhado.
Estava um pouco pálida, mas nunca vira nada mais encantador.

— Eles disseram alguma coisa?

O cocheiro franziu o cenho.

— Sim. Uma coisa muito estranha. Disseram que era uma


mensagem de seu patrão.

Gabriel também franziu o cenho. Que ele soubesse, não


possuía inimigos.

— Disseram algo mais?

— Não, Sua Senhoria, mas sim que meus passageiros


saberiam quem era seu patrão.

— Certamente, vou descobrir o facínora. - Declarou Gabriel


em tom grave, com a mandíbula apertada em um gesto obstinado.

Um ato semelhante não ficaria impune. Fosse quem fosse o


que os colocara em perigo, pagaria por isso.

— Chame duas carruagens de aluguel. - Ordenou ao lacaio.


— Quero que os dois e os cavalos voltem a Mayfair. Cuidem para que
alguém venha e cuide dos estragos e tragam a polícia. Eu vou
acompanhar Lady Lilith até sua casa.

— Sim, meu senhor! - Disse o lacaio.

283
Enquanto esperavam, Gabriel esfregou o antebraço de Lilith.
Face ao ocorrido da noite, sentia-a tremer. Quando viu que se mantinha
calada, comentou com animação forçada:

— Que aventura!

De repente, Lilith desviou o olhar dos destroços da


carruagem até ele, e negou com a cabeça.

— Ai, Gabe, sinto muito.

Ele a abraçou.

— Não se preocupe. É só uma carruagem. Comprarei outra.

Mas ao dizer estas palavras não pôde afastar o súbito


calafrio de apreensão. Lilith não parecia lamentar só o estado em que
ficara o veículo, estranhamente, parecia sentir-se culpada.

— Lilith, tem ideia de quem foi o autor disto?

Formulou a pergunta com prudência, mantendo um tom


desapaixonado para que não acreditasse que a acusava de algo. Sem
olhá-lo, ela negou com a cabeça.

— Espero que ninguém me odeie tanto, ou a você, para fazer


algo semelhante.

Gabriel guardou silêncio. Lilith parecia nervosa. Alguém


devia saber que ele tinha acesso aos segredos de quem ia ao clube, e
talvez tenha desencavado algo que alguns clientes preferissem manter
oculto.

284


Quem faria algo assim? A única pessoa em quem ela pôde


pensar foi em Bronson, mas não tinha sentido. No teatro se mostrara
vagamente ameaçador, embora ela achasse que se tratava de uma
intimidação mais que de outra coisa. Não o considerava capaz de tal
violência... Ou talvez não quisesse considerá-lo capaz.

A caminho de seu clube em uma carruagem de aluguel,


Lilith se encolheu ao lado de Gabriel e soube que devia confessar suas
suspeitas, mas não podia fazê-lo. Conhecia Gabriel, e sabia como
reagiria diante daquilo. Insistiria para que fechasse o clube, e
aumentaria sua ojeriza contra o jogo por causar esse tipo de problemas.
Ou iria ele mesmo procurar Bronson, e Lilith não queria, nem
precisava, que ele lutasse suas batalhas. Se Bronson soubesse que
tinha o Conde Angelical do seu lado, isso só pioraria as coisas, e Gabe
se prejudicaria ainda mais no Parlamento se agisse em favor dela. Não é
que se sentisse incomodada que a reputação dele fosse manchada, mas
não queria que Bronson fosse o causador. Ele não era digno de fazer
Gabriel descer de seu pedestal.

Não, primeiro descobriria se Bronson era o responsável ou


não, e depois contaria a Gabriel, se é que não resolvesse ela mesma o
assunto.

Deus, e se o acidente tivesse sido mais grave? E se Gabriel


tivesse se ferido? Não suportaria que lhe acontecesse algo assim.

Amava-o.

285
Reconhecer parecia-lhe mais uma decepção que uma
surpresa. Já o amara tanto que era lógico que uma parte dela ainda
conservasse sentimentos por ele. Talvez o mesmo sentisse ele, embora
nem estivesse segura de que se importaria.

Um dos dois teria que ceder, não podiam ter tudo. Doeria
perdê-lo outra vez, provavelmente mais que antes, mas mesmo assim o
desejava. E que Deus a ajudasse, o incidente dessa noite fazia com que
o desejasse mais.

Quando a carruagem se deteve na porta do Mallory's, Lilith


murmurou:

— Entra comigo.

Algo em sua expressão deve ter dito a Gabriel o quanto


significava para ela que aceitasse o convite, de modo que se limitou a
afirmar com a cabeça, e sem dizer uma palavra cruzou a porta, Latimer,
atônito, exclamou:

— Lady Lilith!

Ela imaginou o aspecto que tinham: machucados, sujos e


desalinhados, pareciam ter voltado do inferno. Com um gesto negativo,
disse-lhe:

— Agora não, Latimer. Explicarei tudo pela manhã.

Em silêncio, Gabriel a seguiu pelo corredor e pelas escadas.


Lilith tampouco falou. Não era necessário. Havia coisas que não
precisavam ser ditas.

286
Quando entraram em seus aposentos, na saleta, Lilith jogou
o xale sobre uma cadeira, logo foi ao pequeno bar e serviu dois copos de
um bom uísque escocês. Deu um a Gabriel e esvaziou o seu em dois
goles rápidos. Ele fez o mesmo. Quando seu estômago deixou de arder,
Lilith o olhou. Jogou para trás os ombros e reuniu coragem.

O olhar dele parecia lhe fazer uma pergunta, e ela confessou


em voz baixa:

— Não tive nenhum outro amante além de você. Há dois dias


minha menstruação acabou. Nunca tive sífilis, e não me importo com
que tipo de precauções queira tomar, preciso de você. Só por esta noite
preciso de você.

Ele piscou.

Ela assentiu com a cabeça.

— Só penso no que podia ter acontecido esta noite, e não


quero pensar mais nisso.

Não era uma declaração de luxúria desenfreada, mas era


tudo o que estava preparada para oferecer. Pelo visto, foram as palavras
certas, porque no segundo seguinte estava entre seus braços, e os
lábios dele devoravam os seus.

— Não sei o que teria feito se acontecesse algo a você... -


Sussurrou ele quando se deram uma pausa. — Lilith, eu...

Ela lhe pôs os dedos nos lábios.

— Não diga nada. Sem confissões ou promessas. Nesta noite


não, por favor.

287
O olhar dele se suavizou, como se percebesse o quão
vulnerável ela estava naquele momento. No dia seguinte possivelmente
o orgulho sofreria por isso, mas esta noite não. Então lhe dirigiu um
sorriso doce que provocou uma pontada no coração de Lilith.

— Eu não tenho amantes há quase um ano. Nunca tive


sífilis, e a desejo tanto que sinto vontade de chorar.

Com o coração batendo com um pouco de alegria, Lilith lhe


devolveu o sorriso.

— Venha comigo.

Puxou-o pela mão e o conduziu até o quarto. Alguém, Luisa,


sem dúvida, deixara as luminárias acesas junto à cama, e todo o
cômodo estava banhado em um suave brilho dourado.

Lilith tirou as presilhas que restavam nos cabelos, enquanto


Gabriel tirava o fraque e o colete.

— Desabotoa meu vestido? - Perguntou-lhe, levando o cabelo


sobre o ombro e lhe oferecendo as costas.

Seus dedos eram rápidos e seguros com os diminutos


colchetes, abrindo o vestido enquanto com os lábios lhe roçavam a pele
sensível da nuca e ombros. O vestido se afrouxou em torno dos ombros,
e antes de poder libertar os braços, Gabriel baixou o tecido até os
quadris.

Ela deu meia volta entre seus braços, com o vestido em


torno dos pés. O tecido da camisa de Gabriel se esfregava contra seu
espartilho.

288
— Por que usa estas coisas? - Perguntou ele olhando-a,
enquanto começava a soltar os cordões do espartilho.

Lilith inspirou fundo quando os dedos dele percorreram suas


costelas.

— Porque torna meu corpo mais delgado e sensual.

Desesperado soltou mais os cordões.

— Tolice, aperta seu seios deliciosos.

O cordão cedeu, e o espartilho de seda e barbatanas de


baleia caiu ao chão. O olhar e as mãos de Gabriel se dirigiram aos seios
sob a anágua. Lilith ficou sem fôlego quando os rodeou com as mãos,
estendeu seus longos dedos por baixo e esfregou os mamilos com as
pontas dos polegares. Seus mamilos endureceram imediatamente,
tensos com a carícia, e a fizeram sentir pequenas ondas de prazer entre
as pernas.

Lilith levantou as mãos e desatou os laços de sua anágua.


Gabriel tirou os suspensórios dos ombros e atirou no chão. Nua exceto
pelos sapatos e meias, Lilith ficou imóvel sob o olhar de Gabriel. Um
exame tão próximo e íntimo deveria fazê-la corar. Mas não queria se
importar se seus quadris eram muito grandes ou não, estranhamente
tinha a impressão de que o homem a olhava impressionado com cada
centímetro dela.

— Está ainda mais bela do que antes. - Sussurrou.

289
Com a ponta dos dedos roçou a pele pálida de seu ventre e
depois subiu de novo para os seios. A carícia de sua voz a fazia
estremecer tanto quanto o toque quente de suas mãos.

— E você usa muita roupa em cima.

Sorrindo, ele baixou os braços.

— Então deve resolver essa questão.

Aquele ar brincalhão, aquela tranquilidade aparente


enquanto se despiam mutuamente, era-lhes estranha, mas sob a
familiaridade havia algo mais, algo que em breve transbordaria.
Enquanto puxava a barra da camisa dele para tirá-la das calças, Lilith
tremeu de expectativa. Sentia-se arder e latejar entre as coxas. Todo
seu corpo parecia cheio de desejo, cada centímetro seu parecia
plenamente consciente de cada centímetro dele.

Tirou a camisa para cima, e ele a ajudou quando chegou aos


ombros e não pôde levantá-la mais. Gabriel a tirou pela cabeça,
despenteando a massa de cabelos, e a deixou cair no chão. Com a boca
seca à vista do peito musculoso e ombros largos, Lilith levantou a mão
hesitante. A pele de seu ombro era quente e macia, e o osso destacava o
relevo sobre os músculos fortes. Seus dedos escorregaram até o torso
robusto e deslizaram entre os pêlos ásperos e encaracolados.

— Parece tão forte.

— É o que acontece quando se dedica ao comércio.

Ela desenhou com o dedo o oco do umbigo e sorriu, ele


inspirou fundo.

290
— Terei que propor uma lei para obrigar todos os homens a
dedicarem-se ao comércio.

Seu olhar baixou mais, até o vulto das calças, e uma


ansiedade frenética a sacudiu. “Acabou-se a brincadeira.”

Com os dedos trêmulos soltou os botões das calças e a


baixou até o quadril firme e coxas musculosas. De joelhos, tirou-lhe os
sapatos e as meias, e com um puxão as calças. Os pêlos das pernas de
Gabriel lhe roçaram a bochecha quando levantou a cabeça. A longitude
rígida de sua ereção se sobressaía orgulhosa diante de seu rosto. Mais
segura agora, sabendo que era a responsável por aquela excitação,
Lilith envolveu com os dedos a grossura, e todo o corpo dele respondeu
se alongando.

Adorava essa parte dele, uma parte capaz de lhe dar um


prazer incrível, que os unia como duas metades de um mesmo todo.
Adorava sua sensibilidade, o modo de tocá-lo fazendo com que ele
ofegasse e estremecesse. Nem o membro ou sua reação diante dela
tinham se modificado. Beijou-lhe a ponta e, com a língua, percorreu sua
cabeça, quente e sedosa. Gabriel ofegou e os músculos das coxas se
tencionaram sob sua outra mão.

— Acho que não deveria fazer isso. - Disse ofegante. Uma


das mãos se agarrou firmemente a um dos pilares da cama.

Com um sorriso malicioso ela levantou o olhar. E deu outra


lambida.

-— Quer que eu pare?

Gabriel fechou os olhos e respondeu:

291
— Você gostaria de parar?

"Deus, não..."

Então o lambeu com toda a língua, saboreando o gosto


salgado de sua pele. Colocou-o inteiro na boca e o tirou lentamente,
sem deixar de manusear-lhe as bolas com a mão. Com a mão livre
Gabriel lhe agarrou os cabelos e mantendo sua cabeça quase imóvel,
enquanto flexionava com suavidade os quadris para ajustar-se às
carícias de sua língua. Aquele poder era embriagador. Saber que podia
quebrar seu controle só apressando seus movimentos era um
pensamento estimulante, mas não o torturaria. Essa noite não. Não
esperara por tanto tempo só para que gozasse em sua boca. E ao sentir
que o corpo dele se tencionava ainda mais e a pressão sobre sua cabeça
aumentava, soube que teria de parar. Soltou-o, se levantou e deitou-se
na cama. Com a cabeça e a mão apoiados no pilar, ele a olhou com
olhos entrecerrados de luxuria. Tinha o rosto avermelhado, os lábios
um pouco abertos e ofegava. Era um belo homem.

Devagar, Gabriel se endireitou e foi até ela como um felino se


aproximando de sua presa. Lilith teria sorrido se não fosse a expressão
séria no rosto. Desejava-a e a possuiria. Seguiu-a até a cama e se
ajoelhou entre seus joelhos. Não a penetrou de imediato, como ela
esperava. Estava preparada e ansiosa por ele. Gabriel se posicionou
sobre ela, e a cabeça de seu membro se apertou contra a entrada de seu
corpo. Então a beijou, deslizou a língua profundamente dentro de sua
boca e a saboreou. Ela sentiu a tensão de seus braços, que vibravam a
cama quando foi baixando para lhe aplicar uma trilha de beijos
ardentes e úmidos pelo pescoço. Mordiscou-a com os dentes, e ela
ofegou.

Levou a boca até os seios. Lambeu, chupou e mordiscou


cada mamilo até que estivessem erguidos e duros. Ela os sentia tão

292
tensos e pesados que doiam, mas ela queria mais. Ofegante e se
retorcendo, Lilith subiu os quadris e empurrou quando a boca dele se
fechou novamente em torno da ponta de um dos mamilos. Desejava-o
dentro. Queria se sentir inteira novamente, como fora a tanto tempo
atrás. Não queria pensar se era certo ou errado, nem nas consequências
ou no futuro. Só queria Gabriel.

Afundou os pés no colchão e voltou a levantar os quadris.


Ele se afastou, ficando fora de seu alcance.

— Gabe. - Implorou.

Ele levantou a cabeça. Tinha os olhos turvos e escuros, os


lábios úmidos e brilhantes. Uma mecha do cabelo negro lhe caía sobre a
testa. Parecia tão jovem, tão igual a seu Gabe, que se formou um nó na
garganta.

Aquele, certamente, não seria o momento para chorar.

Com voz rouca, Gabriel perguntou:

— Lil, você me quer?

E baixou a mão pela curva do quadril dela e os dedos


penetraram no vale úmido de suas coxas. Lilith não pôde evitar que
seus quadris se levantassem:

— Você sabe que sim...

Ele deslizou um dedo em seu interior, e ela entreabriu os


lábios em um gemido silencioso diante daquela invasão deliciosa. Ele
acrescentou outro dedo e a alargou, curvou-os dentro e os apertou para

293
cima até que o prazer se tornara quase impossível suportar. Então lhe
ordenou:

— Diga que me quer, diga o quanto me deseja.

Com as coxas tensas, Lilith se empurrou contra a mão


grande. Devia sentir-se envergonhada, mas era Gabriel, e sentia-se tão
bem que, se o pedisse agora, até recitaria versos obscenos.

— Eu o desejo tanto que vou gritar se não o tiver dentro de


mim logo.

Sorrindo ele a acariciou com os dedos profundamente.

— Ah... Minha querida, prometo fazê-la gritar e muito...

Suas palavras em sintonia com os dedos lhe provocaram


mais prazer.

— Oh...!

Não demoraria a explodir. Então, como se soubesse o quão


perto ela estava de fazê-lo, ele retirou os dedos. Lilith sentiu o calor de
seu interior, e sua própria umidade quando sua mão lhe roçou a coxa.
Notou o corpo vazio desejando com desespero encher-se... Encher-se de
Gabe. Ele não demorou.

Novamente estava sobre ela, fitando-lhe os olhos enquanto


seus corpos se uniam, e então a penetrou. Um suave gemido escapou
da garganta de Lilith diante da doce invasão. Seu corpo se fechou em
torno de Gabriel. Seus joelhos se levantaram e subiram sobre o quadril
dele para tê-lo ainda mais fundo, enquanto seus dedos se fecharam em
torno da dureza de seus bíceps.

294
Gabriel levantou a mão, enganchou-lhe a perna e a levantou
ainda mais, até que a coxa lhe tocou o seio. Com o corpo tremendo por
sustentar-se em um braço só, moveu então os quadris contra os dela
com um desespero que fez Lilith esquecer de qualquer ideia que não
fosse unir-se a ele naquele movimento. Gabriel empurrava e empurrava,
dentro e fora. Quente e úmida, Lilith se apertava em volta dele. Cada
investida a aproximava mais e mais do clímax e a fazia tremer e gemer.

Os movimentos de Gabriel se aceleraram com sua


respiração. Ela lhe cravou os dedos nos braços e se empurrou para
cima, afundou mais ainda os ombros no colchão e levantando a parte
inferior do corpo contra o dele, com tanta força que os levantou os dois.
Estava perto... Oh, tão perto... Deus...

Um grito entrecortado irrompeu na garganta de Gabriel


enquanto este se deixava cair, rígido. O êxtase o sacudia, e golpeou com
seus quadris os dela enquanto gritava. Os gritos dela se misturaram
aos de Gabriel quando explodia seu próprio orgasmo. Lilith sentiu
sucessivas ondas de prazer intenso por todo o corpo, que eliminaram
qualquer tipo de pensamento. Seu corpo inteiro se arqueou enquanto
gritava no gozo. E desabaram juntos, com os corpos unidos ainda.

Pouco a pouco as respirações voltaram a normalidade.


Lentamente, Gabriel se retirou dela. Lilith sentiu que seus músculos
internos tentavam agarrar-se a ele, mantê-lo dentro. Com os braços e
pernas entrelaçados, recostaram-se então nos travesseiros, a cabeça de
Lilith encostada ao ombro dele. Os dois se abraçando com igual força, e
entre eles houve um longo silencio cheio de paz. Passaram esse tempo
acariciando-se, a curva de um ombro, a firmeza de um flanco... Dez
anos de desejo extravasados em um lapso de minutos.

295
Lilith se apertou contra ele e franziu o cenho. Gabriel estava
tremendo.

— Está com frio? - Perguntou. Ainda se sentia bastante


acalorada.

Ele negou com a cabeça e disse:

— Não.

Ela notou no rosto a aspereza de sua barba. Olhou-o nos


olhos.

— Mas está tremendo.

Ele sorriu.

— Sempre tremo quando estou com você.

296
— Está assoviando.

O tom de Brave era uma mistura de curiosidade e acusação.


Com uma risada, Gabriel levantou a cabeça. Estava se preparando para
a tacada final e decisiva sobre a mesa de bilhar. Com ar de inocência
perguntou:

— E desde quando decretaram que assoviar é contra lei?

Seu amigo estreitou os escuros olhos.

— Você nunca assovia.

Gabriel negou com a cabeça e golpeou. A bola rodou na


mesa com enganosa facilidade: tinha ganhado.

— Pois como vê tenho por que assoviar, certo? - Retrucou


enquanto se endireitava.

Brave tomou o taco das mãos de Gabriel e o colocou no


suporte com os outros.

— Essa estranha animação dá a entender que as coisas


entre você e Lilith vão bem.

Gabriel não pôde impedir que um sorriso tolo lhe iluminasse


o rosto só de ouvir o nome dela. Tinha passado a maior parte dos dois
últimos dias na cama com ela, tentando por todos os meios recuperar o

297
tempo perdido. De forma consciente, evitaram falar tanto do presente
como do futuro. Na verdade pouco falaram, e só sobre outras questões:
sobre pessoas que conheciam ou de coisas que estavam acostumados a
fazer.

— Bem, é um modo de expressá-lo...

Brave pareceu surpreender-se.

— Meu Deus, passou a noite com ela!

Gabriel deu de ombros.

— Um cavalheiro não fala dessas coisas...

Com um sorriso largo, Brave se apoiou na mesa de bilhar.

— Não me interesso pelos detalhes, meu amigo. É que


estou... Surpreso.

Gabriel cruzou o tapete a passos largos, em direção à mesa


de bebidas.

— E por quê? - Perguntou, enquanto servia uma boa dose de


brandy para cada um. — Pensei que ficaria satisfeito. Há anos espera
que me reconcilie com Lilith.

Brave atravessou a sala e se aproximou.

— Há anos quero que volte a ser feliz. - Disse. — Se isso


implicar uma reconciliação com Lilith, maravilha. Mas então se
reconciliaram?

298
As palavras do amigo calaram fundo, Gabriel franziu o cenho
e lhe ofereceu a taça.

— Bem...

Brave tomou um gole e o olhou de modo penetrante e Gabe


se sentiu incômodo.

— Não me diga que se trata dessa estúpida confrontação de


acabar com o jogo ou não? Ou o usou para encobrir se há trapaça no
clube?

Gabriel fez um gesto negativo. Nem em sonhos acreditaria


que Lilith fosse usar sua relação contra ele.

— Não tem nada a ver com o jogo. Lilith é uma mulher


honesta, não me usaria ou a nossa relação para tirar proveito próprio.

Não. Aqueles dois dias não foram um truque, estava certo


disso. Ela o desejara tanto quanto a desejava. Ao escaparem
milagrosamente do atentado à carruagem, suas emoções reviveram e os
fizeram pensar em algo que não queriam expor: os sentimentos. Isso
não tinha nada a ver com a ridícula promessa de Lilith em arruiná-lo se
ele tentasse prejudicá-la.

— E você? - Replicou Brave. — Foi sincero ao menos?

Gabriel cruzou os braços e franziu o cenho.

— O que quer dizer? Sincero sobre o quê?

Encolhendo os ombros, Brave respondeu:

299
— Contou a ela que ainda tem intenção de fechar o clube se
Frederick estiver dizendo a verdade? Se não agiu desta maneira, não foi
sincero nem consigo mesmo.

O cenho de Gabriel se acentuou. Tinha tentado tirar da


cabeça o assunto de Frederick, e quase tinha conseguido. Não queria
pensar na decisão que teria que tomar se descobrisse alguém
trapaceando no clube de Lilith.

O crupier de faraó, Jack Maçom, era o que trabalhara na


mesa onde Frederick afirmou que o depenaram. Mas Gabriel não tinha
avançado muito em sua investigação. Esteve muito ocupado com Lilith.
Se Maçom fosse culpado, Gabriel tinha a obrigação moral de
desmascará-lo e, uma vez que a coisa se espalhasse, o Mallory's estaria
encrencado. Esse tipo de escândalo danificaria e arruinaria os negócios
de Lilith. Não lhe agradava saber que faria Lilith sofrer.

Secretamente sempre manteve a ideia de talvez conseguir


convencê-la a ver as coisas do seu modo, antes que suas ações a
afetassem de verdade. Abolir o jogo levaria tempo, e enquanto isso podia
acontecer muita coisa, por exemplo, convencer Lilith de que estar com
ele era mais importante que o clube. Só agora admitia a possibilidade
de não conseguir legalizar o jogo, embora já não se preocupasse tanto
quanto devia. Fracassar nessa empreitada era uma coisa, mas saber
que Lilith não o perdoaria se perdesse tudo novamente por culpa dele,
enquanto gente como Bronson continuasse arruinando outros. Nem ele
mesmo se perdoaria.

Brave suspirou entre dois goles.

— Deve contar tudo antes que ela saiba por outros.

Gabriel ficou tenso.

300
— É o que você planeja fazer?

Conhecia Braven há anos e confiava nele às cegas, mas foi


fácil acusá-lo. Toda sua cólera e ansiedade se dirigiram a ele, e não
estava preparado para represá-la.

Rindo, Brave acabou o que restara do brandy.

— Deus, não! Você me conhece, amigo. Mas as mulheres têm


um sentido apurado para descobrir essas coisas, Gabe. Acredite em
mim, não conseguirá manter um segredo com uma mulher por perto.

Brave sabia por experiência própria. Em certa ocasião tentou


esconder de Rachel um segredo muito pessoal, mas ela descobriu a
verdade em pouco tempo. Aquilo contribuiu para aproximá-los mais e
lhes permitiu construir um relacionamento sólido e harmonioso.
Embora fosse difícil no começo. Sem saber por que, Gabriel não
acreditava que as coisas poderiam se desenvolver assim entre eles. Com
um suspiro, concedeu:

— Tem razão. Contarei a ela.

Antes, entretanto, descobriria se Jack Maçom era culpado


ou não, e se Frederick tinha provocado aquela confusão só para se
esconder da ira do pai... Com um gesto negativo, acrescentou:

— Não acho que ela vá compreender e...

Na verdade, nem ele mesmo entendia.

301
— Ah, fique tranquilo, meu amigo, ela realmente não vai
compreender. Pelo menos, a princípio. Não sem antes de você engolir
parte de seu orgulho e lhe suplicar perdão.

Gabriel fez uma careta de repugnância.

— Não farei isso.

Seu amigo o olhou sério.

— Ah, meu amigo, vai fazê-lo. Pela mulher que ama fará
coisas que nunca sonhou fazer.

Um calafrio de apreensão lhe percorreu a coluna.

— Eu não estou apaixonado por Lilith.

Ah, não! Não era tão tolo para percorrer aquele caminho
outra vez, e menos ainda quando o futuro era tão incerto... E enquanto
a própria Lilith era uma incógnita. Brave levantou a sobrancelha e
gargalhou:

— É um idiota, isso sim, como todos nós, os homens, quero


dizer. Lutamos contra nosso destino com unhas e dentes, e achamos
que conseguiremos nos proteger da dor quando não fazemos nada mais
que piorar as coisas.

Gabriel quase perdeu a paciência. Não tinha por que escutar


aquilo!

— Não sabe do que diabos está falando!

302
— Ah, não? Sei que está com medo de entregar o coração a
Lilith outra vez, teme o que ela vá fazer com ele.

Gabriel soltou um grunhido desdenhoso, e Brave, com


consciência, acrescentou:

— Você não quer mudar de atitude para não mostrar


nenhuma fraqueza e também acha que é uma afronta ao seu orgulho
masculino. Mas, Gabe, o que prefere ter: seu orgulho ou Lilith?

A resposta que brotou imediatamente na cabeça dele o


deixou estupefato e sem fala. Brave assentiu, como se tivesse lido seus
pensamentos.

— O orgulho é péssimo companheiro de cama. No fundo de


seu coração sabe disso. Quando Rachel me deixou, um amigo me disse
que engolisse o orgulho e fosse procurá-la. E ainda disse que se ele
tivesse uma segunda chance com a mulher que amava, agarraria com
unhas e dentes... Agora devo me despedir de você, minha esposa e filho
me esperam. Passe um bom dia, Gabe.

Como despedida, Gabriel se limitou a assentir. Lembrou-se


da conversa de há quase dois anos atrás, quando acreditava que nunca
mais voltaria a ver Lilith. Então, diabos, há um mês, teria dado sem
hesitar tudo que mais gostava para que ela voltasse a sua vida... E
agora, como uma brincadeira do destino, estava ali. Podia tê-la outra
vez, e não lhe custaria quase nada, só seus princípios. Valeria a pena?

"Inferno, sim valeria."

Lilith o avisara que fracassaria se tentasse abolir o jogo, e


intimamente, sabia que ela tinha razão. Era impossível acabar com o
vício: se tornaria clandestino, e quanto mais fundo se escondesse, mais

303
sórdido se tornaria. Só poderia ser contido para não se tornar
destrutivo. Talvez estivesse percorrendo o caminho errado... Não. Não
podia ser. Se mudasse sua postura em relação ao jogo, seria
considerado como um tolo. Todos saberiam por que o fizera, e o
acusariam de ser um urso amestrado que conduziam pelo nariz. E a
promessa feita a seu pai? Ainda estava disposto a cumpri-la... No fundo
da cabeça, uma voz lhe dizia que isso não quebraria sua promessa, só a
cumpriria de outra maneira.

Entretanto, a simples ideia de se expor daquele modo, era


desagradável. Por enquanto deveria se ocupar de outras, por exemplo,
investigar Jack Maçom, ou deveria descobrir se Samuel Bronson seria
uma ameaça perigosa a Lilith. Não, melhor investigar Maçom primeiro,
e como lhe prometeu, daria a ela seu veredicto. Talvez Lilith viesse a
confiar nele para lhe contar sobre Bronson.

Mas ao ganhar-lhe a confiança, teria de fazer outra coisa:


trair a de Blaine.



Quando Gabriel entrou no Mallory's, não viu Lilith em nenhum


lugar. Era muito cedo para que estivesse no piso inferior, o clube
acabara de abrir e estava quase vazio. Ao passar junto a Latimer
ordenou:

— Você não me viu.

304
O gerente truculento do clube só levantou uma sobrancelha.

— Ah, não?

— Explicarei a Lilith amanhã.

Pela enésima vez naquele dia desejou não ter acompanhado


Brave e Rachel a soirée de Lady Stanhope. Apreciava as reuniões
promovidas pela boa senhora, mas preferia passar a noite com Lilith.

O olhar atento de Latimer se suavizou, e moveu a cabeça em


sinal de conformidade.

— Como quiser, meu senhor.

Gabriel agradeceu com um tom mais mordaz do que


desejara, mas não se importou. Rapidamente virou-se e se dirigiu para
a mesa de faraó, onde só havia outro homem sentado: era a ocasião
perfeita para observar Jack Maçom em ação. Como lhe prometeu, Lilith
tinha lhe dado uma lista dos empregados e horários.

Ao aproximar-se da mesa o coração acelerou. No que estava


pensando? Se alguém o reconhecesse, podia dizer “Adeus” a sua
reputação. Deu uma olhada na sala. A maioria dos homens presentes
não eram de sua classe, eram comerciantes e lojistas e, por sorte, não
conhecia ninguém. Sentou-se à mesa e o crupier lhe perguntou:

— Deseja jogar, meu senhor?

Gabriel plantou no rosto o que considerou um sorriso e


assentiu com a cabeça.

305
— Importaria se eu observasse um pouco? Gosto de ficar no
lugar por algum tempo antes de jogar.

Maçom, um homem jovem, com um rosto sadio e franco,


devolveu-lhe o sorriso. Não parecia o tipo mau caráter. Sem dúvida isso
seria muito útil a um mau elemento.

Maçom embaralhava as cartas, e Gabriel prestou muita


atenção nas mãos. Anos atrás, quando chegou à maioridade e começou
a fazer todas as tolices próprias dos jovens, seu pai o ensinara a
observar o manuseio das cartas. Esse conhecimento fora muito útil a
seu pai, embora não fosse suficiente para que ele soubesse quando
deveria deixar de jogar, ou quando a sorte se acabaria. Para alguém que
perdeu tudo, pouco importava se fora ou não, enganado.

Maçom parecia jogar limpo. Era rápido, mas seus


movimentos não podiam ser qualificados de duvidosos. Gabriel não viu
nenhum indício de trapaça nas cartas ou no crupier. E o mais
importante: não parecia desconfortável em ser observado. Ou aquele
jovem era muito seguro de si, ou muito honrado.

Depois de perder pela terceira vez, o outro cavalheiro da


mesa decidiu levantar-se e dirigir-se a outra mesa. Um calafrio de
ansiedade fez as palmas das mão de Gabriel suarem. Chegara o
momento.

— Deseja jogar agora, senhor? - Perguntou Maçom.

Com a boca seca, Gabriel fez um gesto de assentimento e em


voz baixa disse:

— Sim, agora.

306
Mais tarde, no White's, Gabriel encontrou Frederick, que
bebia com vários amigos. Compôs suas feições e se dirigiu a eles. Ainda
corria por suas veias a adrenalina da partida de faraó, quando
abandonou a mesa estava cinquenta libras mais rico, e estava
absolutamente certo de que Jack Maçom era honrado. Tinha falado com
ele enquanto embaralhava as cartas, e soube que era o que aparentava.
Aquilo, unido à contínua presença de Frederick no Mallory's, fora
suficiente para decifrar a verdade. Jogar faraó também o fizera
consciente de outra coisa: diferentemente do pai, embora soubesse que
a sorte estava de seu lado, levantou-se e saiu. E se ele fora capaz disso,
outros também seriam livres para fazê-lo.

Ao chegar aos jovens, os cumprimentou:

— Boa noite, cavalheiros. Peço perdão por interromper a


farra, mas gostaria de conversar um momento com Foster.

A julgar pelos comentários zombadores que dirigiram a


Frederick, dizendo que se metera em confusão, e pelas gargalhadas
diante dos comentário infantil, era evidente que estavam quase
bêbados. E, do mesmo modo, ficara claro que Frederick não queria
conversar com ele.

Com gestos rígidos e rosto avermelhado, levantou-se e o


seguiu sem dizer uma palavra até uma mesa mais afastada dos jovens.
Ali, Gabriel afastou as abas do fraque antes de sentar-se.

— Perguntaria a você se gostaria de beber algo. - Disse. —


Mas creio que já bebeu demais.

Frederick soltou um grunhido descarado.

— Até parece meu pai.

307
Gabriel manteve os olhos fixos no rosto jovem.

— Ah, verdade? Tomarei isso como um elogio.

— Faça como quiser.

Com um suspiro irritado, Gabriel prosseguiu:

— Seu pai se preocupa muito com você, sabia?

A boca de Frederick se encaixou em um gesto de teimosia.

— Meu pai é um tirano...

Mas Gabriel não tinha intenção de passar a noite praticando


esgrima verbal com aquele sem vergonha, tinha que voltar para casa e
preparar-se para encontrar-se com Brave e Rachel. Assim foi ao ponto
principal:

— Qual o montante de suas dívidas de jogo, Frederick?

Os escuros olhos de Frederick brilharam.

— Ah, mas eu já sabia por que você estava aqui! Minhas


dívidas não são assunto dele, Angelwood.

Gabriel confirmou com a cabeça.

— Então o Mallory's não é o único clube que possuí suas


notas promissórias.

308
O rapaz se calou, mas a vermelhidão que subiu ao rosto foi
resposta suficiente.

— Soube que você e seus amigos frequentam em demasia o


Mallory's.

Frederick encolheu os ombros.

— Se é o melhor clube da cidade. - Levantou o olhar


desafiante até os fixar em Gabriel. — E estou certo de que concorda
comigo já que os encantos de Lilith o fazem ainda mais agradável.

Que aquele asno pretendesse sequer cheirar a qualidade dos


encantos de Lilith, fez Gabriel desejar gargalhar. Mas em vez disso,
mostrou um amável sorriso.

— Elogia demais um clube que acusou de trapaça e roubo.

O rosto de Frederick perdeu toda a cor. Só ficou uma


máscara assustada, branca como o giz.

— Meu pai...

A voz se apagou. Parecia que não tinha ideia de como


continuar. Então Gabriel se reclinou em sua poltrona, cruzou as pernas
e apoiou o cotovelo no descanso. Com ar pensativo acariciou a
mandíbula.

— Seu pai conversou comigo e me pediu ajuda.

Os ombros do rapaz se afundaram.

— Ele prometeu que não contaria a ninguém.

309
— Mas ficou muito preocupado porque tinham depenado o
filho dele naquele antro de perdição, e isso não era verdade, não é
Frederick?

Frederick fez um gesto negativo e fechou os olhos,


envergonhado. Logo murmurou:

— Não.

Gabriel não se surpreendeu com a resposta, já suspeitava,


mas não queria acreditar pois Frederick era filho de Blaine e a acusação
era muito séria. Devia sentir-se zangado com o desdém de Frederick em
relação a reputação de Lilith e de seu clube, principalmente sabendo
como ela se esforçara em tratar bem aquele sem vergonha, mas só
sentia pena por ele.

— Por que mentiu a seu pai?

A expressão de Frederick disse a Gabriel o quão tola fora a


pergunta.

— Sabe como é meu pai. Na certa me mataria se soubesse a


verdade.

No sorriso de Gabriel agora não havia compaixão.

— E fará algo pior quando souber que mentiu. Um pai


espera que o filho seja um imbecil de vez em quando, Frederick, o que
não vai esperar é uma mentira que pode prejudicar outras pessoas.

O jovem corou ainda mais.

310
— Você dirá a ele?

Com uma risada sarcástica, Gabriel respondeu:

— Ah, eu não! Lavo as mãos neste assunto...

O rapaz relaxou, aliviado, e então Gabriel acrescentou com


um sorriso pesaroso:

— Você dirá a ele.

Com os olhos dilatados de horror, Frederick olhou a parede


de um lado ao outro. Talvez Gabriel o lamentasse se não soubesse que o
safado bem merecia a perspectiva.

— Não fala a sério. Vai me matar!

Gabriel cruzou os braços e encolheu os ombros.

— Não creio que tomará uma atitude tão exagerada, mas vai
contar a verdade de qualquer maneira.

O rosto de Frederick se contraiu.

— Por que devo fazer isso?

Gabriel sentiu um impulso irresistível de agarrar o malandro


pelos colarinhos e atirá-lo ao chão, mas se controlou.

— Porque para salvar a própria pele usou de uma ação


covarde e manchou a reputação de Lady Lilith, além de ter feito uma
acusação muito séria.

311
Frederick fez uma careta e franziu o cenho.

— Para começar, ela não tem boa reputação...

Por Deus. Ele não era tão estúpido de dizer aquilo. Ah, não!
Fervendo de indignação, Gabriel enganchou a perna em um dos pés da
poltrona de Frederick e a arrastou cruzando a distância que os
separava, enquanto este pulou de surpresa ao sentir o puxão. Gabriel
visivelmente zangado inclinou para frente, encarou o rosto assustado do
jovem.

— Agora escute bem, fedelho descerebrado. Lilith tem mais


elegância e refinamento no dedo mindinho do que você jamais sonhou
alcançar. E quando falar com ela ou dela, vai tratá-la com o devido
respeito ou terá de se haver comigo. Entendeu bem?

Frederick assentiu, seus olhos eram dois grandes atoleiros


escuros na palidez do rosto.

— Bem. - Gabriel deslocou o pé e voltou a empurrar a


poltrona do rapaz a seu lugar. — Amanhã farei uma visita a seu pai. E
espero que já tenha feito uma confissão completa. Se não, me
encarregarei pessoalmente de fazê-lo confessar. Estamos entendidos?

— Mas você acabou de dizer que não contaria! - Gritou


Frederick, horrorizado.

Gabriel se levantou.

— Isso foi antes de você se rebaixar a insultar uma dama


que só lhe mostrou compreensão e amabilidade. Se eu fosse você,
estaria sinceramente envergonhado.

312
Ébrio e mal-humorado, Frederick se permitiu um último
desafio.

— Se você fosse eu, não estaria me beneficiando disso.


Santarrão!

Gabriel não soube muito bem como aconteceu, mas em um


segundo Frederick deixou de estar sentado diante dele a estar
esparramado no chão, com poltrona e tudo. Lançou um olhar furioso,
enquanto seus amigos soltavam risadas do outro lado do salão. Ao
passar junto ao jovem, Gabriel avisou com frieza:

— Será melhor que pare de beber esta noite. Parece que o


álcool o deixa idiota e acima de tudo com desejo de apanhar.

Sem oferecer ajuda para o rapaz se levantar, deu a volta e


saiu.


— Aonde vai?

Mary ficou paralisada a meio caminho entre a estátua de


Vênus e a porta. Tinha uma expressão tão culpada que Lilith não pôde
evitar de perguntar o que estaria fazendo a amiga. Era muito cedo, e
embora Mary estivesse acostumada a levantar-se antes do amanhecer,
não a vira até então. Há dois dias sem falar com ela, o que já era um
pouco estranho por si só, mas também pelo cuidado que Mary tivera
com a própria aparência. Usava o cabelo recolhido em um coque
trançado, e em torno do rosto revoavam pequenos cachos. Estava muito
corada, e em seus olhos castanhos, um brilho que Lilith não vira antes

313
nela. Além disso colocara um vestido azul claro, que geralmente
reservava para ir à igreja ou para as ocasiões especiais.

— Vou dar um passeio no parque. - Respondeu Mary.

Então Lilith compreendeu, havia um homem no meio.


Apoiou o ombro no quadril da Vênus e esboçou um sorriso malicioso.

— Com quem?

Sua amiga ficou vermelha como um tomate.

— Com o reverendo Geoffrey Sweet.

Se Mary lhe contasse que saía com o Príncipe Regente, Lilith


não ficaria tão surpresa.

— O clérigo...!

A risada brotou de seu interior quase sem controle. Ah,


aquilo sim era muito engraçado! Mary lhe dirigiu um olhar
imperturbável e sério.

— Alegro-me por achar isso tão divertido.

— Divertido! Isso é hilário! - Replicou Lilith, rindo ainda. —


Mas você achava esse homem autoritário, um carola, que se dava ares
de superioridade!

Mary desviou o olhar.

— Isso foi antes de conhecê-lo.

314
— E agora ele parece que é...

— Creio que é o melhor homem que conheci.

A amiga continuava a evitar seu olhar, e o pleno


entendimento de suas palavras caiu sobre Lilith como um muro.

— Ai, Mary. - Sussurrou. — Está gostando dele.

Aquilo sim fez a mulher levantar a cabeça.

— E qual é o problema? Acaso é a única mulher desta casa


que pode... Gostar de alguém?

O problema era que, das duas, Lilith não tinha marido. Esta
respondeu:

— Claro que não. Já lhe disse que é casada?

Mary apertou os lábios.

— E você contou a Lorde Angelwood sobre Bronson?

Lilith levantou as sobrancelhas. Quando assustada, Mary


sempre ficava na defensiva, neste caso, não a culpava. Por fim
encontrara um bom homem, um que, se fosse tão bom como ela
afirmava, com certeza a mereceria e tudo podia vir abaixo se aquele
desgraçado aparecesse por ali.

— Não. - Respondeu. — Não tudo. Mas não é a mesma


situação Mary.

— Mas ainda omite os fatos, esconde a verdade.

315
— Não contar a ele sobre Bronson não vai ferir seus
sentimentos.

Mary respondeu zangada:

— Não. Só quase os mata... - E mal pronunciou as palavras,


colocou a mão na boca enquanto a olhava horrorizada. — Lilith, eu não
tinha...

Lilith tomou a mão da amiga e negou com a cabeça. Ela


estava certa. Gabriel quase fora uma vítima de um dos ataques de
Bronson. Se lhe tivesse acontecido algo mais grave, não teria suportado.

— Não se desculpe, Mary. Você tem razão. Devo falar com


Gabriel sobre Bronson para que esteja mais atento com a própria
segurança.

Mary deixou cair os dedos que cobriam a boca. Tremia


nervosa.
— Não devia ter falado assim. É que estou tão preocupada se
acaso Geoffrey... Quero dizer, o reverendo Sweet, não queira mais me
ver quando souber o meu passado escandaloso...

Lilith lhe apertou os dedos e sorriu.

— Minha querida amiga, se ele sabe que você trabalha para


uma das mulheres mais escandalosas de Londres. Creio que saber de
seu casamento não será assim tão difícil de aceitar.

Mary fez um gesto negativo.

— Não vai aceitar.

316
— Olhe. Eu contarei a Gabriel sobre Bronson se você contar
ao bom reverendo que é casada.

— Acha realmente que ele entenderá?

Lilith jamais pode predizer a conduta de um homem. Às


vezes os homens eram criaturas confusas, que por vezes beiravam o
ridículo e as vezes até a infelicidade deles e de outros.

— Se ele for tão digno quanto lhe parece, sim, creio que
entenderá. Além disso, nunca mais vimos aquele crápula. Sem
mencionar que a mulher que você era já não existe mais.

Ao menos, esperava que o reverendo visse as coisas assim,


mas sendo um homem, e um servo de Deus, não havia dúvida de que o
reverendo não faria vistas grossas aos fatos. Mas não faria Mary sofrer
por antecipação.

— Tem razão. Direi que fui casada, e se reagir mau, direi que
meu marido morreu.

Lilith pôs-se a rir. Até onde chegava a sinceridade. Além


disso, em uma situação como aquela sinceridade total não seria o mais
indicado. E Lilith era a última pessoa a saber o que conviria ao
próximo, já seria o bastante tomar as próprias decisões.

Desceu a escada com Mary e a acompanhou até a porta,


desejou-lhe boa sorte. Estava quase voltando a subir quando Latimer a
avisou de que tinha uma visita a sua espera em um dos salões.

— Quem é Latimer?

317
— A Condessa Braven, Lady Lilith.

Rachel! Oh Deus, o que deveria estar pensando!

— Deixou uma Condessa em um dos salões do clube? O que


tem na cabeça?

Sua zanga fez os olhos de Latimer se arregalarem, mas de


resto sua expressão permaneceu imutável.

— Foi onde ela quis esperar, minha senhora. Perguntou-me


se podia dar uma volta pelo clube, e me vi obrigado a satisfazê-la, a
levei só a área das senhoras é claro, e quando lhe perguntei se desejava
esperá-la no piso superior, disse que ali estava bem. Em que outro
lugar devia levar a Condessa e o menino?

Os ombros de Lilith desabaram mais ainda. Primeiro, Mary


tendo um encontro com o reverendo Sweet, e agora Rachel, e com o
bebê, esperavam-na em um lugar que se usava para encontros
clandestinos ou para o jogo... Estupendo, maldição. O que mais poderia
sair errado? Nervosa perguntou:

— Em que salão?

— O verde.

Lilith deu no criado um leve tapinha no braço e foi reunir a


seus visitantes. Encontrou-os no salão verde, como Latimer havia dito,
e com um aspecto tão sereno como se fossem a Virgem e o Menino
Jesus. Rachel vestia um conjunto de passeio no mesmo tom de azul de
seus olhos, e se adiantou para saudá-la antes que ela pudesse abrir a
boca.

318
— Lilith! Espero que não se incomode por eu e Alexander
virmos sem avisar.

— Claro que não. - Disse Lilith enquanto se aproximava. —


Os dois podem vir sempre que quiserem.

Era sincera. Tinha pouquíssimos amigos, e Rachel bem


poderia ser um deles.

— Não a vejo desde a tarde em que nos visitou com Gabriel,


e queria ter certeza de que não fizemos nada que pudesse incomodá-la.

Muito comovida pela preocupação de Rachel, Lilith se


limitou a negar com a cabeça, tanta amabilidade a tinha deixado sem
palavras. Com um gesto a convidou a sentar-se.

— Fui muito bem recebida em seu lar. - Disse. — Creia-me,


foi minha própria tolice que provocou aquela saída tão intempestiva.
Envergonhei-me tanto de minha conduta, que isso me impediu de
visitá-los para explicar-lhes melhor.

Rachel se sentou com o filho em uma poltrona verde claro.


Então sorriu.

— Minha cara, não tem nada do que se envergonhar.

O rosto de Lilith ardia.

— É muito amável por dizê-lo, mas, que espécie de mulher


sai correndo depois de ter uma criança tão linda nos braços?

— Uma mulher triste por saber que não pode ter uma. -
Respondeu Rachel com franqueza.

319
Seu olhar era sagaz, e atento. Lilith se esforçou para
recuperar a serenidade e sorriu com acanhamento enquanto se
afundava no sofá próximo.

— Parece que me conhece bem, senhora.

— Absolutamente. - Rachel trocou de ombro o filho. —


Talvez eu não tivesse chegado a essa conclusão se, em certa ocasião,
não pensasse igual.

Lilith não se incomodou em ocultar sua incredulidade.

— Seriamente? Mas você e Brave não estão há tanto tempo


casados... - Foi baixando a voz até ficar calada. Estava colocando o
nariz onde não devia.

— Antes de conhecer Brave, minha situação era tal que


acreditei que nunca me casaria, muito menos, ser mãe. - Rachel jogou
um olhar ao bebê que tinha nos braços. — Sinto-me muito feliz por ter
me enganado.

Lilith sentiu no peito uma alfinetada de inveja, queria o que


aquela mulher tinha: um marido, filhos, respeitabilidade... Queria
estabilidade. Ao diabo com feministas e seus pontos de vista sobre o
casamento e a maternidade como uma prisão para a mulher. Lilith
renunciaria de boa vontade a sua fortuna, sua independência e até ao
clube por grilhões iguais aos de Rachel.

— Quer segurá-lo outra vez?

Com o coração palpitando, Lilith levantou as mãos.

320
— Oh, não! Não tenho jeito com crian...

— Claro que tem. - Retrucou Rachel com um sorriso


luminoso e um tanto misterioso.

E Lilith novamente teve a sensação de que a outra sabia algo


que ela ignorava. Certamente devia deixar o marido louco com aqueles
sorrisos... Embora Lorde Braven não parecesse se importar com aquilo.

Seria inútil resistir, de modo que nem sequer tentou, quando


Rachel se levantou e cruzou o tapete com seu filho. O certo era que
Lilith desejava ter o menino nos braços. Rachel lhe disse:

— Estenda os braços.

Lilith o fez.

— Aí vai. E não precisa abraçá-lo tão forte, sei que não vai
derrubá-lo, embale-o assim e relaxe. Viu?

Com um carinho tão profundo que quase lhe doía, Lilith


contemplou o pequeno que se aconchegava na seda cor de pêssego de
seu vestido. Alexander tinha os olhos azuis da mãe, e seu olhar
inocente parecia tão surpreso quanto Lilith.

— Como é tranquilo. - Comentou, levantando a cabeça para


olhar Rachel, depois voltou a olhar o menino.

Por que achara que segurá-lo seria difícil? Agora que não
estava tão nervosa, ter a criança nos braços lhe parecia algo
absolutamente natural. A Condessa riu.

321
— Nem sempre minha querida. Temo que herdou minha
loquacidade. Às vezes ele e o pai têm longos debates.

Lilith sorriu para o bebê e lhe deu um dedo para segurar-se.

— É muito loquaz, meu jovem senhor?

E então algo incrível aconteceu: Alexander sorriu. Aqueles


lábios pequenos se abriram e deixaram ver as gengivas rosadas e a
língua diminuta. Logo balbuciou. Lilith dirigiu um sorriso enorme a
Rachel.

— Veja, está sorrindo! - Exclamou extasiada. — Está


sorrindo para mim!

Rachel fez um gesto afirmativo, visivelmente divertida diante


de tanto entusiasmo.

— Parece amor à primeira vista.

Lilith devolveu o olhar ao menino e acariciou os dedinhos


que se enroscavam no seu.

— Bem, eu gosto muito de você, pequeno Alex. É tão bonito,


cheiroso, sorridente, quero que seja muito feliz.

Durante uns momentos não existiu nada além dos dois.


Toda sua atenção, toda a capacidade de amar que acreditava ter
perdido com sua inocência, foi dirigida a criança que estava em seus
braços. Que incrível, dar vida a um ser semelhante... Como lhe doía o
coração apenas por olhar aquele presente, e nem sequer era dela. Então
Rachel rompeu o silêncio:

322
— Você será uma mãe maravilhosa.

Lilith desviou os olhos do bebê e os dirigiu a mãe. No fundo


de sua alma pulsava uma dor incomensurável.

— Jamais terei esse pequeno milagre em minha vida.

Outro daqueles sorrisos misteriosos.

— Minha cara eu não apostaria nisso.

Não houve necessidade de pedir uma explicação, o sentido


estava explicito: Rachel acreditava que Lilith e Gabriel se casariam e
teriam filhos. Lilith examinou o rosto delicado e redondo que tinha
junto a ela. Como seria criar um anjo como aquele com Gabriel? Tantas
vezes imaginou aquela fantasia, era só uma fantasia... E então, com o
pequeno junto ao peito e balbuciando em seus ouvidos, o desejo de ter
um filho, um filho de Gabriel, assaltou-a. Nem notou que estava
chorando até Rachel pousar a mão em seu ombro.

— Lilith, querida, está se sentindo bem?

Doía-lhe tanto a garganta que só pôde negar com a cabeça.


Rachel se ajoelhou no tapete e segurou Alexander. Lilith não desejava
soltá-lo, mas os olhos ardiam e soluçava tanto que não quis se arriscar
a machucá-lo sem querer. Rachel o colocou junto a ela no sofá, e
rodeou seus ombros com os braços.

— Tudo vai acabar bem, espere e verá. - Murmurou junto a


seus cabelos.

Quando foi a última vez que outra mulher a consolou? Mary


não era uma pessoa afetuosa no plano físico, exceto algum aperto de

323
mãos. Certamente, a própria mãe nunca a abraçara assim. Tia Imogen
talvez lhe desse um tapinha na cabeça de vez em quando, como um
sinal de que, se o quisesse lhe daria um abraço, mas Lilith sempre
tivera receio de aceitar. Agora isso...

— Deve me achar tola e chorona, não? - Murmurou quando


conseguiu respirar de novo.

Sentada sobre os calcanhares, Rachel fez um gesto negativo.

— Não diga isso. Toda mulher precisa soltar algumas


lágrimas de vez em quando.

Lilith engoliu a risada. Soltar algumas lágrimas? Senhor,


jamais fora uma chorona!

— Sim... Bem... Graças a mim agora tem uma mancha no


vestido.

A loira fez um gesto desdenhoso com a mão.

— Estou acostumada. Não imagina quantas vezes um bebê


faz uma mãe trocar de roupa com o passar do dia.

Desta vez Lilith riu de verdade.

— Obrigado.

Rachel sorriu com suavidade.

— Não é para isso que as amigas servem?

324
Ao ouvir a palavra, "amigas", Lilith achou que voltaria a
chorar outra vez, mas conseguiu controlar-se.

O menino adormeceu. Rachel o pegou e ficou de pé.

— Agora temos de voltar para casa. Se soubesse que minha


visita provocaria tanta tristeza a você, teria planejado vir mais cedo e
ficar mais tempo para compensá-la. Mas Brave nos espera.

Lilith assentiu e se levantou também.

— Talvez possamos conversar uma outra vez. Prometo não


chorar.

Senhor, daria a ela a impressão de estar tão pateticamente


carente como lhe parecia? Rachel devia pensar que estaria desesperada
por uma amizade... E talvez fosse isso mesmo. Então, com um grande
sorriso, Rachel estendeu a mão e apertou a sua.

— Minha amiga Belinda Mayhew e eu vamos às compras


depois de amanhã. Gostaria de nos acompanhar?

Boquiaberta, Lilith se limitou a olhá-la fixamente. Rachel


queria fazer compras com ela e uma amiga? Queria que a vissem em
público na companhia dela? Lilith sentia-se grata pelo convite, ainda
mais por que foi feito de coração, mas sabia que sua presença faria mal
a Rachel e a a amiga, com um gesto negativo disse:

— Não creio que seja uma boa ideia serem vistas com
alguém como eu...

Rachel a interrompeu com uma voz tão decidida que Lilith se


assustou.

325
— Serei vista com quem eu decidir e ninguém mais.

— Bem... - Cedeu. — Se essa sua amiga não se importar, eu


adoraria ir com vocês.

Imediatamente Rachel voltou a ficar animada e sorridente.

— Vejamos, então! Passaremos aqui para pegá-la às duas da


tarde, tudo bem?

Lilith sentiu um calafrio de excitação ao aceitar. Quando fora


a última vez que saíra para fazer compras com uma amiga? Fora há
tanto tempo. Geralmente saía com Mary ou Luisa, mas Luisa era sua
criada, e Mary não podia se permitir comprar nas lojas que ela gostava.
Seria uma delícia visitar as lojas mais caras.

Acompanhou Rachel e Alexander até a porta principal e se


despediu com outro abraço que a deixou pensando se conseguiria voltar
a se acostumar em ter amigas. Sim, fora um dia estranho. Não seria
possível que viesse a ser mais.

— Lady Lilith.

Estava a ponto de fechar a porta quando ouviu seu nome.


Olhou os degraus e viu Frederick Foster de pé, banhado ao sol. Levava
o chapéu nas mãos e não parava de dobrar a aba. Tinha um aspecto
assustado e, sem dúvida, estava de ressaca. Pelo visto, o dia poderia ser
mais estranho. Não teria tempo de vestir-se antes de se abrirem as
portas do clube.

— Senhor Foster. - Disse com certa surpresa. — A que devo


este prazer?

326
Em silêncio, o jovem subiu os degraus
até ela. Nunca o vira tão nervoso desde que o
rapaz encontrara Gabriel no salão. Quando ficara
a um palmo de distância, Frederick afirmou com
energia:

— Lady Lilith, devo-lhe um pedido de desculpa.

Ao entrar pelas portas do Mallory's naquela noite, Gabriel


encontrou um ambiente diferente. O ar parecia mais denso, crepitante
de tensão, até Latimer parecia de mau humor. Em vez de sua atitude de
costume, amável mas áspera, parecia estranhamente submisso, e
lançou a Gabriel um olhar de compaixão misturado a censura. Gabriel
sentiu que a apreensão formava redemoinhos em seu estômago.

— Boa noite, Latimer.

O empregado negou com a cabeça.

— Tenho a impressão de que não será, Lorde Angelwood.

Gabriel dominou seu semblante até torná-lo uma máscara


de fria compostura.

— Será então uma pena. Onde está Lady Lilith?

327
— No salão dos cavalheiros, Sua Senhoria. - Respondeu
Latimer com um suspiro.

— Obrigado.

Com os nervos tensos, Gabriel passou junto a ele com longas


passadas e se dirigiu a entrada da parte masculina. Seu lado cínico
aflorando com receio, as coisas se desenvolveram tão bem entre Lilith e
ele, que esperava algo horrível acontecer a qualquer momento. Mas o
que poderia ser? A menos que ela tivesse descoberto a verdade sobre
seu pai... Não. Não havia maneira. Entretanto, Latimer estava estranho,
como se estivesse com pena dele...
A área dos cavalheiros estava como sempre: cheia e
barulhenta, com um toque de fumaça de charuto no ar. Embora ainda
fosse cedo, o ambiente estava alegre. Ninguém ainda perdera uma
quantia elevada, mas os lucros começavam a entrar. Todos se sentiam
com sorte. Todos menos ele.

Quando entrou, algumas cabeças se voltaram. Começou


então os murmúrios, depois os olhos se dirigiram ao centro do salão e
voltaram a ele, dois homens que se encaminhavam ao canto onde havia
um livro de apostas lhe dirigiram um sorriso de cumplicidade.

Gabriel seguiu em frente com uma sensação crescente de


desconforto. A música que ouvia ao longe, parecia um augúrio ruim,
embora tudo fosse igual a qualquer outra noite. As conversas morriam
enquanto avançava o passo. Os jogadores habituais levantavam o olhar
das cartas e o fitaram com malícia no olhar. Sim. Definitivamente
estava acontecendo algo. E se suas suspeitas estivessem corretas, não
só se relacionava a ele, mas também com a pessoa que se encontrava
no centro do salão.

328
Ao aproximar-se do centro, os lobos largaram sua presa e
abriram caminho. Com expressão indiferente, Gabriel avançou. Deve ter
sido assim com o pobre profeta Daniel quando entrou no covil dos leões,
entretanto, nenhum leão o afetaria mais do que havia a sua frente.
Certamente, tratava-se de Lilith, em pé e de perfil. Parte dos cabelos
maravilhosos estavam reunidos na parte superior da cabeça, presos por
presilhas de brilhantes. O resto lhe caía pelas costas quase até os
quadris, em ondas densas e acetinadas. Usava um vestido de veludo
decotado, e as curvas nacaradas dos seios perigosamente próximos a
pular do decote atrevido. Luvas negras cobriam os braços, e nas orelhas
e pescoço fulguravam mais brilhantes.

Alguém deve tê-la avisado de sua presença, porque hesitou


só um segundo antes de voltar-se para olhá-lo. E quando o fez, Gabriel
sentiu o coração se torcer no peito: havia pintura no rosto. Pálida e
avermelhada, sua pele carecia do brilho natural. Os lábios e bochechas
estavam vermelhos de carmim, e os olhos sombreados por Kohl.
Conseguira um aspecto obsceno e exótico, e Gabriel não duvidou nem
só um momento que o espetáculo fora dirigido só a ele. Lilith vestira sua
armadura de guerra. Por quê? O que acontecera desde a última vez em
que se viram, para justificar o movimento defensivo?

— Boa noite, Gabe. - Ronronou.

Ele precisou reunir todo seu autocontrole para não


estremecer. O timbre grave e gutural de sua voz revelava a natureza da
relação que havia entre eles melhor do que qualquer declaração pública.
Ao empregar a abreviação de seu nome, foi como um grito de
intimidade, e com aquela aparência dramática, ninguém pensaria outra
coisa. Como se a atitude dela não lhe importasse, respondeu:

— Está com uma bela aparência esta noite, minha cara.

329
Então entreviu o brilho de uma tempestade em seu olhar:
não era tão dura quanto tentava aparentar. Mas aquela atitude não só
era uma oportunidade de acabar com sua reputação, Gabriel pouco se
importava que soubessem que já haviam se deitado. Diabos, a maior
parte dos homens ali presentes lhe dariam um tapinha nas costas e o
felicitariam! Não. Lilith estava zangada e magoada, e ele era a causa
disto... Senhor, o que fizera desta vez? Tentou ignorar as risadinhas
desdenhosas que soavam a suas costas, disse:

— Creio que tínhamos combinado um encontro, minha cara.


Vamos?

Uma expressão de asco cruzou o semblante dela ao olhar o


braço que lhe oferecia, mas em seguida a substituiu por uma expressão
tão sedutora que despertou murmúrios entre vários de seus
admiradores.

— Será um prazer, Sua Senhoria.

Gabriel conteve um suspiro resignado e a conduziu através


da multidão, que se voltava com curiosidade. De algum modo, aquela
mulher dura e rancorosa havia devorado a sua Lily. E sabia com certeza
que quando Lilith contasse o ocorrido, a culpa seria dele.

Como não quisesse acirrar mais as fofocas, optou por guiá-la


para um dos reservados em vez do piso superior. Não diminuiria muito
os falatórios, pois pensariam que se entregavam ao sexo sem importar
onde estavam. Chegando no corredor caminharam em silêncio. Lilith se
soltou de seu braço e prestou mais atenção no papel chinês que cobria
as paredes que em Gabriel, doeu-lhe a confiança perdida. Seguiu-a até
um reservado e, uma vez dentro, fechou a porta.

— Muito bem. - Disse. — Que diabos está acontecendo?

330
Ela o olhou. Por um instante acreditou que o faria sofrer um
pouco mais, mas logo fraquejou um pouco, como se parte de sua
agressividade a abandonasse.

— Lorde Frederick Foster me fez uma visita esta tarde.

Ah, não. Gabriel facilmente podia deduzir o resto. Frederick


sofrera um ataque de remorso, ou talvez tivesse sido o resultado de ter
se confessado ao pai e fora obrigado a lhe pedir perdão. Agora Lilith
sabia quem fizera a acusação contra ela e o porquê de Gabriel se
interessar tanto por sua relação com Frederick.

— Juro que posso explicar isso...

Lilith cruzou com presteza a saleta e se sentou com a


serenidade de uma rainha em uma poltrona dourada. Com voz suave
indagou:

— Certamente. Mas vai me explicar por que não confiou em


mim o bastante para me contar a verdade?

— Não foi por falta de confiança em você... - Ao ver o olhar


severo dela, Gabriel decidiu não piorar as coisas. — Prometi não revelar
quem fez a acusação, sem mencionar que certamente você se
encarregaria de descobrir o trapaceiro, ocultando a verdade, você não
correria perigo de enfrentá-lo sozinha. Eu esperava descobrir a verdade,
e fazer o que fosse possível.

Os olhos perspicazes de Lilith o fizeram sentir-se


incomodado.

331
— E se meu clube realmente tivesse trapaceado e roubado o
filho de um nobre, isso facilitaria sua cruzada ridícula, certo?

Dito por ela, parecia uma ação duvidosa.

— Quando Blaine me procurou, eu não sabia que o clube


em questão fosse o seu. Nem sequer sabia que estava na cidade.

Ela franziu o cenho.

— Isso é inacreditável.

Gabriel soltou uma risada áspera.

— Sei disso, mas é a verdade.

— Mas na noite em que o encontrei invadindo meu


escritório, já sabia muito bem quem era a proprietária deste clube.

— De certo. - Admitiu ele.

Ela cruzou as mãos no colo e o olhou fixamente. Seria igual


se estivesse sentado também, se sentiu diminuído e embaraçado. Um
riso sarcástico saiu dos lábios de Lilith.

— E eu aqui, estúpida que sou, acreditei que fazer amor


mudaria as coisas...

— E mudou?

Gabriel perguntou em voz baixa, não estava certo de querer


saber a resposta, mas estava decidido a ouvi-la. Ela levantou o rosto.

332
— Pensei que haveria algo a mais do que houve no passado.

Suas palavras oprimiram o coração dele como um torno, e


apertaram até cada batida se tornar um suplício.

— Realmente acreditou que eu fosse capaz de enganar esse


jovem e outros mais?

Seu olhar penetrante o incomodava, mas se negou a afastar


o olhar. Precisava ser sincero com ela, pelo menos, isso, devia a ela.

— A princípio estava tão zangado que me obriguei a


acreditar que seria capaz. Minha raiva era grande o bastante para usar
o fato em proveito de minha causa, junto ao Parlamento. - Gabriel
cruzou os braços para sentir-se menos vulnerável. — Mesmo sabendo,
em meu íntimo que você não o fez, ou no caso de ter ocorrido, você não
tinha conhecimento da trapaça.

Nos lábios carnudos de Lilith desenhou um ricto de


desgosto.

— De modo que sabia que eu não seria capaz de trapacear,


mas não confiava o bastante para dizer quem fez a acusação... Mas você
pensou que eu faria o quê? Destruir o bom nome desse moleque
estúpido?

Gabriel passou a mão pelo cabelo. Os últimos dias deveriam


tê-la feito ver as coisas de outro modo, mas estava alterada e mais do
que disposta a acreditar que ele pensara o pior dela. Talvez fosse Lilith
a ter mais dificuldade em confiar, não ele.

— Claro que não. Entenda eu fiz uma promessa a Blaine...

333
Ela ficou em pé de um salto.

— Uma promessa...!

Gabriel se limitou a olhá-la. O modo como aquelas palavras


a descontrolou deu-lhe a razão de estar tão zangada: não confiava nele,
por conseguinte, nem nos sentimentos dele. Dez anos de dor e traição a
consumiam. Fazer uma promessa a Blaine, quando ele não fora capaz
de manter a promessa feita a ela... E ela nem ao menos sabia o porquê.
Ele sabia a parte dela na história, mas não lhe contou toda a sua, e ela
sabia. Não de forma consciente, parte de Lilith sabia que algo mais que
a morte de seu pai o impediu de procurá-la. Precisava dizer a verdade
ou...

— Sim. - Retrucou. — Prometi a Blaine que não contaria a


ninguém de suas suspeitas.

— E suponho que todas as promessas feitas no passado não


significavam absolutamente nada...

Ele a fitava, mais avermelhada ainda que o ruge em suas


bochechas, e só sentiu cansaço. Aquilo precisava acabar. Não queria
brigar mais com ela. Preferia perdê-la para sempre do que passar outra
vez por aquela agonia.

— Por que sempre precisa voltar a isto, Lilith? Já expliquei


por que não a procurei de imediato. Mas juro que a procurei.

Ela se aproximou. Seus movimentos eram movidos pela


raiva. Quase parecia desejar que ele confessasse não tê-la procurado,
para assim poder voltar a odiá-lo invés de... Do quê? De amá-lo?

334
— Contou que teve de arcar com as dívidas de seu pai. Mas e
depois...? Falou que me procurou e que nunca recebeu minhas cartas,
mas acho muito difícil acreditar que minha tia tenha feito algo assim.

Lá estava: não confiava nele. Não queria confiar nele. Era


mais fácil acreditar que mentiu, isso não lhe doía tanto quanto
acreditar que sua amada tia fizesse algo sórdido. Gabriel negou com a
cabeça e passou a mão pelo rosto. Estava cansado.

— Escrevi a sua tia, e ela afirmou não saber de seu


paradeiro.

O rosto dela perdeu grande parte da cor, só restaram duas


manchas vermelhas no rosto branco.

— Tia Imogen nunca faria isso. Sabia o quanto eu o amava.


Sabia o quanto sofri... - Sua voz se quebrou em um soluço. — Não é
verdade!

Gabriel reduziu a distância que havia entre eles e a segurou


pelos ombros. Lilith tentou escapar, mas não deixou.

— Pense, Lilith. Ela se oferecia para enviar as cartas ao


correio? Consolava-a sempre que não havia respostas? Garantia-lhe que
com o tempo esqueceria a decepção, que mais adiante conheceria
alguém bem melhor?

Pela angústia que viu em seus olhos, Gabriel soube que a


velha bruxa fizera exatamente isso.

— Lilith. - Murmurou. — Embora eu não soubesse, foi ela


quem nos afastou. Procurei-a por toda parte, e durante anos. Cheguei a
procurar à polícia.

335
Com o rosto tenso, ela continuou negando.

— Não, não acredito. Não quero acreditar...

Ao ver-lhe o rosto, Gabriel soube que não queria acreditar


porque então não haveria só um mentiroso que lhe destruíra os sonhos,
tia Imogen também contribuíra para sua queda. E naquele momento tia
Imogen era a única boia que Lilith poderia se agarrar. Não desejava
magoá-la ainda mais, mas tampouco estava disposto a sacrificar a
relação deles para que outra pessoa se passasse por boazinha. Outra
vez não.

— Lilith você foi a pessoa mais importante de minha vida, e


sabe disso.

Ela o olhou nos olhos, e o vazio em seu olhar o


impressionou.

— Não, Gabe, eu não sei. Sei a importância de sua promessa


a Blaine, e quão importante lhe era proteger sua família e o seu nome.
Mas não sei se fui importante ou não para você.

— Lilith você foi tudo para mim. - Respondeu ele com voz
franca. — Tudo.

Lilith inclinou a cabeça, não acreditava.

— E agora, o que sou?

"Tudo..." Mas a palavra congelou em sua garganta. Se não


dissesse toda a história, ela não acreditaria, e não podia confiar nela.

336
Ela voltou a rir.

— Nada... Bem, pois é exatamente o que você representa


para mim, Gabriel. Nada.

Isso o feriu, embora seu coração negasse as palavras. Como


chegaram aquilo, partindo da acusação de Frederick? Era evidente que
o assunto pairava há muito tempo sobre eles.

— Não está sendo sincera. Não acredito.

Os olhos frios de Lilith se cravaram nos seus.

— Pouco me importa que acredite ou não. Mas saiba, Lorde


Angelwood, se quer brincar com os sentimentos de alguém, é melhor
que procure outra. Comigo não haverá uma segunda chance.

Dito isto, saiu da saleta e bateu a porta com força.

Meia hora depois, de pé diante das janelas que davam ao


jardim existente atrás do clube, Lilith ainda tremia em consequência da
discussão com Gabriel, arrasada e se odiando por isso. Que idiota fora
em relação a ele. Mesmo enquanto estava ali, declarando o quanto
significava para ele e o quanto estivera a sua procura, pelo amor de
Deus, precisava jogar a culpa em uma morta! Tentara acreditar nele.
Quisera confiar, embora ainda não lhe dera nenhum motivo para fazê-
lo. Ou?... Só uma vez traíra sua confiança. Antes confiava nele
cegamente.

Doía saber que ele também não confiava nela, e não fora ela
quem agira errado. Nunca o traiu, e ele... Além disso, ele exigia ser
entendido. Um homem que só a magoara. Mas em algum lugar
escondido em seu interior havia uma ferida aberta e vulnerável, que

337
sempre sangrava quando pensava nele. Nas últimas semanas tudo fora
uma mentira... Um ardil para provar que ela e o clube eram
desonestos. Mesmo tendo lhe confessado que havia acusações contra
ela. Fez perguntas sobre Frederick sem revelar seu verdadeiro objetivo,
deixou que acreditasse que confiava nela, que talvez mudaria sua
postura em relação ao jogo. Enganou-a, pois planejava lhe dar um
castigo exemplar. Bem, pois tinha conseguido. Alguém deveria lhe
pendurar um cartaz com letras garrafais no pescoço com:

ATENÇÃO, MULHERES: ISTO É O QUE ACONTECE


QUANDO SE APAIXONAM PELO HOMEM ERRADO.

Seria a última vez que Gabriel a colocava no ridículo. Não


voltaria a permitir essa façanha... Entretanto ao dizer estas palavras,
dentro da cabeça, uma vozinha voltou a defendê-lo e mostrava um
indício de dúvida.

“Teria sido uma mentira todas as carícias, as palavras e o modo


como tremeu entre seus braços? Talvez os homens fizessem sexo fingindo
não sentir amor ou carinho pela mulher, mas teriam tanta habilidade?”...

E como lhe pareceu abalado quando lhe disse que procurasse


outra mulher para enganar... Como se ela tivesse tido prazer em dizer
aquilo. Bem, ele não seria a primeira pessoa a notar a serpente que
podia ser, se houvesse a necessidade. Melhor isso que voltar a ser a
jovem que fora. Quase chegara a esquecer a própria dor, não voltaria a
cometer esse erro. A doçura, confiança e vulnerabilidade só serviam
para acabar com o coração aos pedaços. De agora em diante faria bem
em se lembrar disso.

Claro que tampouco pretendera que a discussão lhe


escapasse do controle. Sim, estava zangada por não ter dito a verdade
sobre Frederick, e vestiu-se de propósito do modo que não lhe agradava,

338
mas, como se descontrolara desta maneira?... Sem perceber, outros
temores e dúvidas subiram à superfície, e a fizeram tirar conclusões
precipitadas, fazendo da discussão, algo muito mais importante do que
planejara. Embora pequeno, esse tipo de desconfiança em Gabriel fez
sua própria desconfiança se transformar em rancor. E pensar que
quase lhe contou suas suspeitas sobre Bronson! Que pediu ao senhor
Francis que investigasse a implicação de Bronson no atentado contra
sua carruagem!... Que munição teria dado a Gabriel, que a usaria em
benefício próprio: proprietários de clubes de jogo não passavam de
delinquentes perigosos, capazes de empregar os atos mais vis com o
propósito de conseguir o que queriam.

Suspirando, Lilith abraçou a si mesma. Precisava de ar.


Também precisava de um bom chute no traseiro, e rápido, por sorte não
havia ninguém por ali para realizar a tarefa. Inspirou fundo o ar fresco e
úmido da noite misturado ao cheiro dos jasmins. O jardim, um tanto
afastado, ocupava o restante do terreno atrás do clube, e sua entrada se
conectava aos salões de jogos. Os clientes do Mallory's o frequentavam
muito pouco, a menos que procurassem um pouco de ar fresco para
desanuviar a mente ou se houvesse um encontro com uma amante nos
recantos mais escuros. Que os clientes usassem pouco o recanto não a
incomodava, de fato, preferia ter aquele lugar tranquilo para pensar,
sem ter que se preocupar com intromissões. Essa noite, entretanto, era
uma exceção.

— Você está muito apetitosa essa noite.

"Deus!" Incrivelmente não gritou ao ouvir a voz de Bronson,


mas não pôde evitar um pulo. Endireitou a coluna e soltou uma
risadinha por ter se assustado, olhou seu adversário com um ar
superior que não sentia. Desde a noite do teatro, só de pensar em
Bronson e como a ameaçara lhe dava calafrios, e o "acidente" da

339
carruagem tinha piorado as coisas mais ainda. Era um homem
inescrupuloso e indecente.

— O que faz aqui, senhor Bronson?

Ele encolheu os ombros largos.

— Francamente minha querida, será que um homem não


pode fazer uma visita a uma colega de negócios?

Certamente aquilo era uma manobra contrária a sua


conduta às portas do teatro.

— Não, se o homem em questão atentou contra a vida dela.

Bronson estendeu as mãos em um gesto de súplica, sorriu


com ar arrependido e se dirigiu a ela com humildade. Ao olhar-lhe o
rosto a luz das tochas no jardim, Lilith notou que o sorriso não chegava
aos olhos.

— Minha querida senhora, não faço a menor ideia do que


está falando.

Lilith estreitou os olhos.

— Não se faça de obtuso comigo, Bronson. É um insulto a


nós dois.

A expressão de Bronson passou a ser de arrependimento


fingido.

— Assim você me ofende.

340
Lilith arqueou uma sobrancelha e o contemplou com
cautela.

— Vai se recuperar.

Com o sobretudo em torno de suas pernas, se aproximou. E


a única coisa que ela poderia fazer era manter-se no lugar, embora
desejasse voltar correndo à segurança do clube. A gentileza de Bronson
era mais desconcertante que as ameaças.

— Ainda não me disse o que faz aqui.

Caso ele se aproximasse mais, sem hesitar, se poria a correr


e gritar. Como se percebesse sua agitação, Bronson parou a alguns
metros de distância, perto de um banco de pedra, sentou-se e a
contemplou com ar divertido.

— Quero uma trégua. - Disse.

Desta vez Lilith arqueou as sobrancelhas.

— Uma trégua? Sem dar a chance de me vingar pelo


incidente da carruagem? Não seria muito cavalheiresco de sua parte,
senhor Bronson.

De onde saiu o comentário audacioso? Se não fosse o tom


cheio de sarcasmo, poderia soar como sedução... Bronson sorriu. Era
como um lobo deixando ver os dentes, mas Lilith notou no gesto um
bom humor verdadeiro.

— Minha bela Lilith, eu realmente gosto de você.

Ela ficou rígida.

341
— Não lhe dei intimidade para que se dirija a mim nesses
termos, senhor Bronson.

— Prefiro que me chame de Samuel.

— E eu prefiro não fazê-lo.

— Lilith.

O miserável usava um tom leve, zombeteiro e por demais


amistoso.

— Mais respeito senhor.

A expressão de Bronson endureceu.

— Usarei seu primeiro nome sempre que eu assim desejar.

Reunindo todo o desdém que sentia por ele, Lilith negou com
a cabeça.

— Na minha presença, não. Boa noite, senhor Bronson.

Precisou de toda coragem para lhe dar as costas. Endireitou


os ombros e manteve o olhar fixo na entrada do clube, rezando para que
as pernas trêmulas não se dobrassem.

— Seu amante sabe o que há entre nós?

Lilith parou e se voltou para fitá-lo.

— Não há nenhum "entre nós".

342
Bronson franziu os lábios.

— Ah, não? Minha querida, eu a conheço bem melhor que


esse Lorde Angelwood.

Ao ouvi-lo, Lilith riu sem conseguir evitar. Bronson não seria


tão estúpido em se insinuar a ela. Mas o que tinha na cabeça?
Certamente, não pensaria que ela ficaria feliz com aquilo.

— Eu não apostaria nisso, senhor Bronson.

Então ele se levantou e se dirigiu a Lilith rápido, com uma


arrogância que só há momentos atrás a teria apavorado. Bronson fizera
o comentário ridículo e isso fez afastar o medo, tornando-a uma presa
fácil. Agora ele estava diante dela, perto demais. Ele era um homem
grande, não tão alto quanto Gabriel, no entanto mais corpulento, se os
dois fossem cavalos, Gabriel seria um puro sangue e Bronson, um
cavalo de carga.

— Tem certeza disso?

— Mas é claro. Gabriel e eu temos uma história.

— Ah, sim, um caso amoroso com ele enquanto era só uma


menina. Ele a usou e desonrou.

Lilith não respondeu. Sorrindo, Bronson estendeu a mão e


acariciou um cacho que lhe caía sobre o ombro. Ao fazê-lo roçou seu
pescoço com os dedos, e Lilith estremeceu de asco. Evidentemente,
Bronson tomou aquilo por desejo, ou talvez gostasse de saber que a
perturbara. Seja lá o que fosse, ele avançou mais. Ela sentia seu cheiro:
uísque, sabão e roupa limpa. Melhor que de muitos cavalheiros, mas

343
Bronson nunca seria um cavalheiro. Em tom suave, sem deixar de lhe
acariciar o cabelo, Bronson perguntou:

— Gabriel sabe que você guarda uma pistola carregada na


gaveta do criado mudo? Sabe que tem o delicioso costume de dormir
com as pernas abertas para convidar um homem a montá-la antes que
tenha tempo de acordar? - Soltou uma gargalhada. — Bem,
provavelmente isso ele deve saber.

Um frio intenso seguido de uma onda de calor abrasador,


percorreu o corpo de Lilith. Forçou-se a respirar, enquanto o mundo
rodava a seu redor, ameaçando lançá-la à escuridão total. Quando o
zumbido em seus ouvidos sumiu, disse em um sussurro:

— Você esteve em meu quarto...

Deus, queria vomitar! Só a ideia de Bronson a observando


enquanto dormia bastou para que seu estômago embrulhasse. Sentiu-
se violentada e suja, como se, de certo modo, ele a tivesse marcado.

Com um sorriso satisfeito, Bronson soltou seu cabelo. Ao


baixar a mão os dedos tocaram a curva do seio esquerdo. Lilith não
duvidou um momento de que não foi algo acidental.

— Sim, e devo dizer que foi muito fácil. Deve trancar as


janelas, minha querida.

Trancar as janelas? A primeira coisa que faria pela manhã


seria colocar grades naquelas malditas janelas. Gabriel comentara que
qualquer um teria acesso fácil a seu quarto... Lilith soltou ar pelo nariz.

— Se espreitar a minha volta não implica em me conhecer,


Bronson. Só mostra o ser abjeto que é.

344
A expressão de Bronson se fechou à luz das tochas.

— Sim realmente só mostra o ser abjeto que sou. O mesmo


ser abjeto que reconhece em você a necessidade de provar o próprio
valor diante da sociedade, família, e principalmente ao amado Gabriel,
que não precisa de nenhum deles? Você voltou a Inglaterra a procura de
vingança, Lilith, e de vingança eu entendo muito bem.

Surpresa por sua perspicácia, Lilith não suportou seu olhar


intenso. Sim, criara o Mallory's para provar a todos que lhe deram as
costas que não era alguém que se pudesse ignorar. Desejava ter a todos
em seu poder. Mas em alguma parte do caminho, suas prioridades se
modificaram, já não queria ter poder sobre essa gente e percebeu que
seu clube não enchia os espaços vazios de sua vida. Houvera um tempo
em que isso fora o bastante, mas agora... Agora queria mais do que o
clube podia oferecer. Finalmente encontrou coragem reuniu valor para
levantar os olhos e fitá-lo.

— Ainda não me disse o que quer aqui. - Lembrou-o.

Bronson sorriu.

— Quero deixar de lutar. Quero que se una a mim.

— Unir-me a você!

A ideia era ridícula. Ele ignorou sua surpresa e prosseguiu


com entusiasmo:

— Ajude-me a impedir Angelwood de legalizar o jogo. Ele não


terá a menor chance contra nós dois. Você conhece suas fraquezas, e eu

345
não terei nenhum escrúpulo em usá-las. Juntos conseguiremos destruí-
lo.

Destruir Gabriel? O que fizera Bronson pensar que ela


gostaria de destruir Gabriel?

— Sei que a acusou de roubo. - Afirmou Bronson. — Sei que


tentou provar a acusação do pirralho do Foster. Eu posso ajudar você a
fazê-lo pagar por isso, Lilith, todos vão pagar. Posso ajudá-la nessa
vingança.

A garganta de Lilith se fechou quando as palavras de


Bronson a impregnaram. Há anos atrás uma oferta como essa a teria
atraído, mas agora...

— Parece que o senhor sabe muito de minha vida, senhor


Bronson.

Ele se inchou como um pavão.

— Você e eu somos semelhantes, Lilith. Pessoas como


Angelwood e seus amigos não nos entendem. Não sabem que somos
sobreviventes: tombamos, mas nos levantamos outra vez. Lutaremos até
o dia de nossa morte... E ganharemos, de uma maneira ou de outra.

"Eu não quero lutar até o dia de minha morte." Amar,


aprender, rir... Isso é o que queria fazer pelo resto da vida.

— Senhor Bronson, de fato o senhor sabe muito de minha


vida. No entanto, o senhor não me conhece em absoluto.

Bronson franziu o cenho.

346
— Não entendo.

Lilith curvou os lábios, irônica.

— Justamente.

O cenho de Bronson se acentuou.

— Está dizendo que Angelwood a conhece melhor que eu?

— Melhor do que você me conhecerá jamais.

Só alguém que conhecesse todos seus pontos fracos podia


feri-la do modo que Gabriel o fizera. Só alguém que conhecesse todos
seus sonhos e aspirações poderia fazê-la tão feliz como quando ela
estava entre seus braços. Ele era sua maior fraqueza, mas nada podia
fazer contra isso: o amava, e isso lhe dava poder sobre ela.

— Boa noite, senhor Bronson. - Disse quando ele não


respondeu. A conversa acabara.

Ao tentar afastar-se, ele a segurou pelo braço. Sobressaltada


e mais do que assustada, Lilith olhou a palidez de seu rosto. O verniz de
cortesia, desapareceu. Aquele era o autêntico Bronson: o homem que
juntara capital como boxeador profissional e ladrão de tumbas. Dizia-se
que muitos dos cadáveres que vendia para os dissecadores eram dos
que se atreveram a derrotá-lo no tablado... Sacudiu-a tanto que lhe
chocaram os dentes, disse-lhe:

— Você não entendeu, sou...

— Parece que Lady Lilith pediu-lhe para que se retirasse,


Bronson.

347
Lilith quase chorou de alívio. O querido e gentil Latimer fora
resgatá-la!... Mas Bronson não a soltou. Em vez disso, lançou um olhar
desafiador ao recém-chegado.

— E você acha que está preparado para me fazer sair?

Lentamente, Latimer afirmou com a cabeça.

— Preparado e mais que disposto.

Lilith os olhou, primeiro um e depois o outro, e notou algo


que não percebera até então: os dois se conheciam. Não era de se
admirar. Lembrou-se que Latimer também ganhou a vida como
pugilista. Seriam rivais a tempos?... Lilith estava certa de que Bronson
atacaria, mas este se limitou a rir, mas foi um som forçado. Parecia
assustado, assustado em enfrentar o tranquilo Latimer. O respeito e a
estima que sentia por Latimer cresceram.

Em tom zombeteiro, Bronson disse:

— Você e eu poremos em ordem nossos assuntos mais tarde,


Lilith. -E então apontou o dedo para Latimer, como uma advertência. —
Quanto a você, nos entenderemos em outra ocasião.

Latimer se limitou a fazer um gesto afirmativo. Então


Bronson girou sobre seus calcanhares e se afastou rapidamente na
escuridão. Lilith e Latimer aguardaram alguns instantes antes de entrar
no clube, e depois ela agarrou o grandalhão pelo braço.

— Obrigado. - Murmurou. — Não sei o que teria acontecido


se você não tivesse intervido.

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— Eu sei. - Latimer respondeu com
franqueza, olhando-a nos olhos. Lilith não gostou
da resignação que viu nos olhos dele. — E não
me agradeça ainda, Lady Lilith. Bronson vai
querer ajustar as contas conosco.

Como de costume nas últimas semanas, Gabriel chegou em


casa tarde da noite, vindo dos escritórios de Seraph e estava cansado e
suarento. Há meses que não tinha nenhuma atividade física, e agora
padecia as consequências. Ao sair da carruagem, todos os músculos de
seu corpo protestaram. Tinha as mãos vermelhas e esfoladas, e na
palma direita uma bolha começara a se formar. Entretanto se sentia
bem. Melhor que há dias.

349
Geralmente, dirigia seus negócios através de seu advogado
ou do gerente dos escritórios de Londres, mas agora sentia a
necessidade de fazer algo mais que sentar-se no White's a dar voltas
nos polegares. Precisava tirar Lilith da cabeça, e, até então, a tarefa
estava mais difícil. As várias atividades diárias conseguiam aliviar sua
tortura momentaneamente, mas logo os pensamentos voltavam a carga.

Só uma vez afastou sua decisão de não aproximar-se dela.


Quatro dias atrás, certo de que Lilith teria tido tempo para acalmar-se,
fizera uma visita ao clube, só para que lhe dissessem sem rodeios que
ela não queria vê-lo. Um Latimer acabrunhado avisou que sua patroa
"falava a sério quando lhe disse que revelaria todos os seus segredos a
sociedade se não deixasse de perturbá-la". Segredos... Ora. Ela não
sabia todos os seus segredos. Não conhecia o mais vergonhoso, e não
tinha intenção de contar-lhe, tampouco. Tinha certeza que ele e Blaine
o esconderam bem, que ninguém jamais o descobriria, e o médico que
atendera seu pai fora muito bem pago pelo seu silêncio.

Não era só uma questão de confiança nela, ele tinha


vergonha. Passara muito tempo enganando a si mesmo, pensando que
mantinha silêncio por respeito ao pai, mas não era verdade: temia o
escândalo, e principalmente por sentir aversão pelo homem que o criou.
Amava o pai, mas suas atitudes envergonhavam seu filho.

Robinson recebeu Gabriel no vestíbulo fresco revestido de


mármore.

— Clifford está preparando seu banho neste instante,


senhor.

Um banho, sim, era disso que precisava. Água quente, que


relaxaria seus músculos e aliviaria a dor. Quem sabe também
amenizasse a dor que sentia no coração.

350
— Senhor, bem... Há uma senhora a sua espera no
escritório.

O coração de Gabriel se acelerou. Uma senhora? Lilith? O


mordomo deve ter visto o brilho de esperança em seus olhos. Com um
quase imperceptível arqueamento de sobrancelha, acrescentou:

— Uma tal senhora Smith, senhor.

Não era Lilith. O coração se acalmou, quase desanimado. Já


devia saber que nada demoveria a decisão de Lilith. Só um milagre e
faria ceder.

— Que espere até que eu termine meu banho.

Mas quando tentou sair, o robusto Robinson lhe cortou o


caminho. Pondo-se diante dele e pigarreou:

— Perdão meu senhor, mas foi inflexível a respeito de vê-lo


assim que chegasse.

A irritação franziu o cenho de Gabriel.

— E eu estou decidido a tomar um banho. Quem dos dois


paga seu salário, Robinson?

O criado permaneceu barrando o caminho inflexível. Mas


que Diabos, entre seu mordomo e Lilith, ele começava a se sentir um
imbecil.

351
— Pediu-me para avisá-lo que traz notícias de sua patroa,
senhor. Também disse, e cito literalmente: "Não porque seu patrão
mereça essa gentileza."

Mary. A mulher que trabalhava para Lilith... Sentiu um


tremor de esperança tumultuar seus pensamentos. Ao diabo com a
roupa suja e a pele coberta de areia. Quase derrubando Robinson,
Gabriel se dirigiu ao escritório a passos largos, passadas que se
tornaram uma corrida.

Mary, a senhora Smith, estava sentada em uma das


poltronas de encosto alto que havia diante da escrivaninha de mogno.
Sentada na beirada do assento, com um vestido cinzento e com os
joelhos e tornozelos tão unidos quanto seus lábios, parecia mais uma
diretora de uma escola que uma mulher que vivia em um clube de jogo.

— Senhora Smith. - Cumprimentou ele fechando a porta. —


Que agradável vê-la novamente.

Se ela pensou que fosse um comentário sarcástico, não o


demonstrou. Em troca, levantou as finas sobrancelhas e o olhou de
cima a baixo, com atenção e, para falar a verdade, de forma pouco
desrespeitosa.

— Boa tarde, Sua Senhoria.

Gabriel ficou rígido diante do exame, então reuniu toda a


arrogância que lhe permitia seu aspecto e cheiro de peão, e enfrentou a
sua expressão divertida com outra de frieza.

— Como vê, senhora, preciso de um banho. Por que não


conta o que faz aqui antes que minha água esfrie?

352
Ela corou, mas não se desculpou.

— Senhor, vim conversar a respeito de Lilith. Mas talvez sua


higiene seja mais importante que a mulher cujo coração o senhor
parece gostar de pisar.

Gabriel lhe dedicou um frio olhar.

— Senhora, certamente o que é importante ou não para


mim, não diz respeito a senhora. E não pense que sua relação com
Lilith lhe dá o direito de saber. Por favor, exponha seu assunto ou
parta.

De repente, a mulher pareceu perder toda sua altivez. Seus


ombros se afundaram, e sua expressão insolente passou a inquieta.
Então, com voz fraca, disse:

— Temo por Lilith. Não sei se isso lhe importa, mas acho que
é a única pessoa capaz de ajudá-la de algum modo.

Tentando ignorar o calafrio de medo que lhe oprimia o peito,


Gabriel assentiu. Cruzou o tapete escuro e se sentou na poltrona ao
lado. Tentando, sem conseguir, que a voz não demonstrasse pânico,
perguntou:

— O que está acontecendo?

Mary inspirou fundo.

— Primeiro devo saber se tenho razão em confiar no senhor.

Gabriel não pôde evitar um grunhido desdenhoso.

353
— Acha que sou o inimigo malvado que deseja acabar com
sua amiga?

O olhar da mulher, séria, quase compassivo, não aprovou o


comentário sarcástico.

— Que você é um homem que a ama o bastante para


suportá-la.

A risada, uma mescla de gozo autêntico e triste desespero,


explodiu de dentro do peito. Não pôde controlar, e tampouco quis fazê-
lo. Rasgou-lhe as vísceras e o sacudiu até que as lágrimas brotaram de
seus olhos. "Suportar" Lilith não parecia um trabalho excessivo, e a
ideia de que isso talvez significasse que a amava ainda, entristeceu e o
encheu de gozo ao mesmo tempo. Entristeceu porque, mais que nunca
a queria, e o encheu de gozo porque ainda havia esperança.

Surpreendeu-se ao notar que dedos longos o agarravam pelo


braço.

— O senhor está bem, Lorde Angelwood?

Gabriel dirigiu um olhar ao rosto preocupado da mulher e


negou com a cabeça.

— Não, senhora Smith, eu não o estou. Continue, por favor.

Ela o soltou devagar, quase como se tivesse medo de fazer


movimentos bruscos. Certamente pensava que estava um pouco louco.
Depois, enquanto o perfurava com o olhar, disse:

— Não é que Lilith tenha contado muito sobre o que


aconteceu entre vocês, mas sei que a magoou demais.

354
Gabriel afastou o olhar.

— Embora não precise ser um gênio para ver que também o


magoou.

Não soube o que responder a aquilo, de modo que só disse:

— Continue.

Mary deu um suspiro e acrescentou:

— Temo por minha amiga, Lorde Angelwood. Desde que


discutiram pela última vez, Lilith perdeu o apetite, a vivacidade e o bom
humor. Eu temia que ela jamais viesse a ser feliz, então o senhor
surgiu, deu-nos esperanças, e agora...

— Agora a senhora perdeu sua esperança?

Não queria ser o receptáculo de esperanças alheias. Era


como se esperassem que ele arrumasse as coisas, e passara a maior
parte da vida tentando arrumar os erros dos outros. Pareciam não notar
o quanto aquilo o desgastava?... Mary fez um gesto negativo, estendeu a
mão e voltou a lhe agarrar o braço, parecia que queria fazer-se entender
com o tato.

— Ainda temos esperança, meu senhor. Com exceção do


senhor, nunca vi ninguém capaz de fazer surgir em Lilith outra emoção
que não fosse a cólera. - Sorriu. — Embora o senhor tenha o dom de
irritá-la com muita frequência.

Gabriel lhe devolveu o sorriso.

355
— Mas a senhora não veio até aqui só para me contar suas
esperanças, senhora Smith.

Mary voltou a negar com a cabeça, e o bom humor sumiu de


sua expressão. Sua mudança de atitude foi como um beliscão no
coração de Gabriel, que o deixou sem fôlego.

— Temo pela segurança de Lilith, Lorde Angelwood.

A resignação em sua voz lhe provocou um estremecimento


na coluna. Mantendo um tom grave e tranquilo, perguntou-lhe:

— O que quer dizer?

Ela retirou a mão de sua jaqueta e a recolocou em seu


regaço.

— Pouco depois da inauguração, o Mallory's chamou a


atenção de um homem chamado Bronson.

Gabriel levantou uma sobrancelha.

— O dono do Hazards?

Mary assentiu com um gesto, e Gabriel respirou fundo


tentando manter ao longe a ansiedade. Lilith afirmara que Bronson não
constituía uma ameaça, mas começava a suspeitar o contrário.
Conseguira algumas informações sobre o indivíduo e não parecia de boa
índole, embora ninguém tivesse provas de suas atividades ilícitas, o
avisaram para que tomasse cuidado. Bronson já fora boxeador
profissional e, pelo visto, sabia brigar sujo. Entretanto, Gabriel manteve
um ar despreocupado ao comentar:

356
— O clube de Bronson está um pouco fora de moda. E o
Mallory's deve lhe parecer uma ameaça por isso está atento a tudo o
que acontece no clube e também a Lilith.

"Ou só esteja interessado na proprietária do Mallory's."


Gabriel apertou a mandíbula.

— É o que penso. - Comentou Mary. — E aposto que está


tentando fechar o clube de Lilith.

O queixo de Gabriel se levantou como acionado por uma


mola.

— Como assim?

Mary estendeu as mãos e encolheu os ombros.

— Bem... Houve tantas coisas... Suspeitamos que tenha


mandado destruir ou dar fim a um sem-fim de remessas dos nossos
fornecedores.

Gabriel recordou os livros de contabilidade de Lilith, os


artigos marcados como "Destruídos" eram coisa de Bronson, não
simplesmente um acidente.

— Também arrombaram o escritório do térreo no clube.

Exatamente o que temia. Já avisara a Lilith sobre a falta de


segurança do clube e principalmente ao acesso fácil aos aposentos dela.
Maldição, por que não contou o que estava havendo? Não seria tão tola
a ponto de subestimar um homem como aquele... Mas ela não confiara
nele, assim como ele não confiara nela... O pensamento foi como um
murro no cérebro. Talvez se fosse mais franco com ela, se contasse tudo

357
sobre Frederick, Lilith teria falado de Bronson. Mas, se ela tivesse
falado de Bronson, ele teria contado de Frederick.

Mas que merda de relacionamento pareciam ter.

Mary inspirou fundo.

— E ultimamente aparece nos lugares mais inusitados.

Gabriel afirmou com a cabeça.

— Estava no teatro quando fomos assistir a peça.

— Lilith acha que seja o responsável pelo atentado contra


sua carruagem. - E antes de que ele pudesse responder, acrescentou: —
E na noite em que vocês discutiram, Bronson esteve no clube.

Não era possível sentir frio e calor ao mesmo tempo, mas


Gabriel os sentiu. Uma raiva crescente percorria suas veias enquanto
ondas de medo por ela subiam a superfície. Lilith afirmara que Bronson
não fora o responsável, e mentira. Ou talvez pensasse assim naquele
momento... Talvez tivesse subestimado Bronson até que ele a
enfrentou... A consciência do perigo em que Lilith se colocara coalhou
em seu estômago como se fosse leite azedo.

— O desgraçado colocou as mãos nela?

Mary piscou ao ouvir a frieza em sua voz.

— Eu... Eu não sei. Não me contou isso.

Isso queria dizer que, provavelmente o fez. O desgraçado


asqueroso... Então Mary soltou:

358
— E me preocupa o que possa fazer agora. Se veio ao clube...

Não precisou continuar com o pensamento. Certamente, se


Bronson tinha o descaramento de ir ao clube, não pensaria duas vezes
na hora de invadir os aposentos de Lilith, se é que já não o tinha feito.
Com a mandíbula bem apertada, Gabriel se agarrou à cólera que sentia
em seu interior e prometeu a si mesmo que faria Bronson pagar pelo
atrevimento de ter se aproximado de sua mulher. Sua mulher. Sua Lily.
Já era hora de Lilith aceitar o fato.

Devagar, com as pernas firmes e as mãos fechadas em


punhos, levantou-se da poltrona. Mary seguiu seu exemplo,
observando-o com receio como se ele parecesse selvagem. Como se
pensasse em voz alta, Gabriel disse:

— Tenho que falar com ela. Tenho de convencê-la a ser


sensata, antes que faça mal a si mesma. Tenho que fazê-la confiar em
mim. Tenho que fazê-la compreender...

E de repente, deu-se conta de que não estava sozinho e


calou-se.

— Por que acha que o ouvirá, independentemente de sentir-


se inclinada ou não a ouvi-lo? - Perguntou Mary.

Gabriel a olhou nos olhos com decisão.

— Farei com que me ouça. Não sairei de lá até que o faça.

Mary lhe lançou um sorriu genuíno.

359
— Realmente estava certa a seu respeito Lorde Angelwood.
Você é o homem perfeito para ela.

Mas suas palavras caíram no vazio. Ele já se dirigia à porta,


dizendo:

— Vou agora mesmo.

Então a voz dela o fez parar.

— Sua Senhoria...

Com tom e gesto impaciente, ele se voltou e perguntou:

— Sim?

Então Mary enrugou o nariz com repugnância e agitou uma


mão diante do rosto.

— Provavelmente seja melhor tomar aquele banho antes.


Começava a temer por sua própria prudência.

"Isto é loucura..." Enquanto caminhava indo e voltando da


lareira até a cama em seu quarto, de camisola e robe, Lilith tentou uma
vez mais entender seus sentimentos por Gabriel. Passara dias com os
pensamentos fixos em uma só coisa: ele mentiu e planejara usá-la para
banir o jogo junto ao Parlamento. Mas não conseguia deixar de pensar

360
em como a abraçava e afagava enquanto fizeram amor, e em como
tremera entre seus braços.

Um homem seguro e maduro não treme enquanto faz sexo


com uma mulher que não lhe interessa realmente, disso tinha certeza.
Também estava certa de que um homem seguro e maduro não jogaria
seus erros a outros em um covarde intento para explicar suas ações. O
Gabriel que ela amou era orgulhoso demais para se esconder atrás de
alguém, e muito menos, atrás de uma mulher. Ou ele mudara
radicalmente ou ela se precipitara no julgamento. Desejava acreditar no
pior dele, e não que lhe dissessem que se enganou a respeito de sua tia
Imogen.

— Vai fazer um buraco neste tapete.

Ao ouvir a voz de Gabriel, Lilith deu um gemido e se voltou.


Levando a mão ao peito para acalmar seu coração.

— Gabriel! O que faz aqui?

Ele se impulsionou, entrou pela janela, a mesma pela qual


entrara antes, e se ergueu diante dela, alto, bonito e, para seu
desespero, com uma expressão sincera. Realmente já deveria ter
mandado colocar grades em todo piso superior. Ele estava com os
cabelos úmidos e jogados para trás. Usava camisa branca, calça
marrom, botas pretas de cano longo, um casaco preto e sem o colete.
Estava claro que, depois do banho, Gabriel se vestira sem ajuda. Tinha
o nó da gravata mal feito, como se estivesse com pressa.

— Precisamos conversar. - Respondeu ele, avançando um


passo. — E como sabia que não aceitaria me receber, decidi invadir
seus aposentos.

361
Algo em sua voz acendeu um fogo lento no abdômen de
Lilith. Sinos de alarme soaram em sua cabeça, mas se manteve firme
enquanto ele se aproximava mais. Ao ver o ardor que havia em seus
olhos, o coração se acelerou.

— Afastei-me pelo tempo que pude, Lil. Tentei fazer o que


achei que você queria, mas não posso. Temos que conversar.

Sabia o que dizer. Ela sentiu um nó na garganta quando


ouviu suas palavras ditas em voz baixa, e o tom profundo de sua voz.

— Por quê? - Perguntou-lhe.

Gabriel parou a centímetros dela. Não a tocou e, entretanto,


ela sentiu o aguilhão de excitação sexual, tão forte que lhe deu
vertigem, sacudindo seus sentimentos.

— Por que, o quê?

Lilith moveu a cabeça para limpar a névoa que confundiu


sua visão, e olhando-o, disse-lhe:

— Por que temos de conversar?

Ele não se alterou, ou tinha ensaiado as palavras ou não


teve o que pensar. Ele levantou a mão e lhe roçou o rosto. Aquele
contato morno e áspero a fez estremecer.

— Porque queria vê-la. - Respondeu.

Lilith piscou para cortar às lágrimas que teimavam em arder


seus olhos, o amaldiçoou por conhecê-la tão bem, mas não fugiu da
carícia.

362
— Pois você me faz mal quando insiste nisto, Gabriel.

Ele lhe lançou um sorriso triste e lhe acariciou a têmpora


com o polegar.

— Sinto muito.

Logo o polegar desceu até a bochecha, e Lilith sentiu certa


aspereza.

— Por que está com as mãos tão ásperas?

Agarrou-lhe os dedos e os afastou do rosto. Gabriel não


respondeu, não precisou fazê-lo. Lilith lhe olhou as mãos e viu a
resposta. Em um impulso, agarrou-lhe a outra mão e sustentou as duas
palmas para as examinar. Ele não tentou detê-la nem explicar-lhe. Suas
mãos estavam avermelhadas, cheias de calos e, em alguns lugares,
cortadas. Uma bolha especialmente grande a fez estremecer. Quis beijá-
las, curá-las de algum modo e tirar-lhe a dor. Porque aquilo devia doer.
Mas outra parte dela, a parte vingativa, exultou, que sentisse uma dor
tão grande e tão profunda como o que ela sentia.

— O que esteve fazendo? - Perguntou em um sussurro, e


levantou o olhar para ele.

Os olhos que a olhavam eram claros, cegavam de


sinceridade.

— Fiz um pouco de trabalho braçal no porto, para minha


empresa.

— Por quê?

363
Como se ela não soubesse a resposta... Bem, pensava saber
a resposta, mas queria que ele a dissesse.

— Porque precisava fazer algo que a tirasse de minha


cabeça.

— Deu certo?

— Não, pois você continua em meu coração.

Oh, Deus. As costelas de Lilith pareceram contrair-se,


custava-lhe respirar, e seu coração doía. Abriu a boca para dizer algo,
mas ele a interrompeu.

- Quero que me fale de Bronson.

Foi como se jogasse água gelada em seu rosto. Declarava


amor e logo queria falar de Bronson?

Largou as mãos de Gabriel como se queimassem.

— Por quê? Para ajudar a derrubá-lo antes que o faça


comigo?

— Não. - Respondeu ele, cravando os olhos nela. — Para que


possa matá-lo se voltar a se aproximar de você.

Aquilo não era justo. Não era justo absolutamente.

— Não preciso de proteção, quanto mais a sua.

364
Seu protesto soou pueril e pouco convincente aos próprios
ouvidos. Ele se pôs a rir.

— Meu Deus, Lily, nunca conheci uma mulher que


precisasse tanto de mim quanto você.

Tensa e corada, resistiu à vontade de lhe dar um chute na


canela.

— E o que pensa você que é digno de me oferecer?

Gabriel deixou de rir, mas sorriu.

— Minha maravilhosa e enlouquecedora Lilith. Você me


deseja e precisa tanto quanto eu preciso e desejo você.

— Só me quer na sua cama. - Declarou ela em tom de


brincadeira.

— Sim. - Assentiu ele. — Mas também em minha vida, Lil.

— Por que eu precisaria de um homem que mente e quer me


arruinar? Ao menos, com Bronson sei onde piso. Posso cuidar de
Bronson sozinha.

Não devia ter dito. As mãos de Gabriel saltaram para frente,


agarraram-na pelos ombros e a atraíram para si tão rápido que Lilith
caiu sobre seu peito com um tropeção. O impacto a deixou sem fôlego,
mas ele nem pareceu sentir.

— Você não vai se aproximar dele sozinha, ouviu-me? Não


vai ficar de modo algum a sós com ele.

365
— Muito bem! - Gritou ela. Concordar com ele era-lhe mais
fácil que discutir.

Gabriel a soltou, com uma expressão ligeiramente aturdida


no rosto. Lilith estava certa de não ter tido a intenção de se
descontrolar, ele só estava preocupado com ela. Mas a expressão tensa
e a ferocidade em seu olhar lhe alegrou o coração, e de um modo
exasperante outras partes do corpo também.

— Você não pode me dizer o que posso ou não fazer, Gabriel.


-Murmurou exasperada. — Não tem o direito.

O músculo da mandíbula quase saltou.

— Ah, eu tenho sim.

— Não, não tem. Sei cuidar de mim mesma.

Gabriel cruzou os braços e deixou cair o peso de seu corpo


sobre os pés.

— É mesmo? E o que acontecerá se da próxima vez estiver


sozinha na carruagem, Lilith? Ou se Latimer não chegar a tempo? O
que poderia acontecer?

Ela já se fizera as mesmas perguntas. Agora sabia que


alguém contara a Gabriel sobre a visita de Bronson na outra noite, ou
Latimer ou Mary. Lilith apostava em Mary. Então levantou o queixo em
um gesto de desafio. Não se encolheria diante de Bronson nem de
ninguém.

— Não vou esconder-me atrás de um homem que só quer me


usar.

366
— Usá-la?

— Isso mesmo, me usar! - Deu-lhe um murro no braço. —


Iria usar meu suposto crime como exemplo do malefício que o jogo pode
causar e dar mais força a essa sua empreitada ridícula em acabar com
o jogo na Inglaterra, lembra-se?

— Ah, e suponho que você também não planejava me usar


para impedir isso, não?

— Claro que sim. - Replicou ela. — Mas desde o começo eu


fui bem sincera a respeito de minhas intenções, lembra-se?

Ele a olhou de cima a baixo, a mandíbula tensa, o olhar


soltando chispas. Parecia ferido, zangado e confuso. Lilith conhecia
aquela sensação. Os dois desejavam confiar, os dois ainda tinham
sentimentos um pelo outro, e sabiam a imprudência que havia em
ceder. Quem dera pudesse confiar nele e ele demonstrasse confiança
nela.

— Tem que ir embora. - Ordenou. — Já.

Ele ficou quieto um momento, rígido, com a boca apertada e


os olhos frios. Assentiu com um brusco movimento de cabeça e deixou
cair os braços.

— Se você quer assim...

— Sim. Creia-me que minha ameaça de espalhar seus


segredos por toda a cidade não é vã, Gabe. Lembre-se disso na próxima
vez que subir até minha janela.

367
Claro, como se assim conseguisse humilhá-lo de verdade.
Não importava. Nem que lhe tirasse o clube... Mas então Gabriel
avançou para ela, com uma expressão tão zangada que a fez encolher-
se.

— E acha que isso me importa? - Perguntou. — Acredita que


eu poria meu orgulho e meus interesses acima de você outra vez?

"Outra vez?" Não disse algo um pouco parecido no Vauxhall?


Por o nome e a fortuna familiar antes de procurá-la... Naquele momento
não o culpara, e se continuassem por esse caminho ele derrubaria
todas as suas defesas e voltaria a estraçalhar seu coração. Ele
continuou:

— Na verdade não lhe interessa o que eu pense, certo? O que


lhe importa é o que você acha que eu farei.

A verdade, dita em voz baixa, cortou o ar que havia entre


eles como uma folha de aço. Quando ele ficou calado ela repetiu:

— Creio que já deveria ter ido.

— Como pode fazer isto? - Perguntou ele com voz dolorida.


— Como pode dar as costas ao que há entre nós?

Ela suspirou e lhe dirigiu um olhar de cansaço.

— Nada há entre nós, Gabriel. Não somos mais aqueles


jovens tolos e inocentes. Somos duas pessoas com experiência de vidas
bem distintas. Não temos futuro. Só temos um passado em comum, e é
hora de deixá-lo para trás.

368
Dizer essas palavras era como abrir a si mesma com uma
faca, mas tinha que fazê-lo, pois era a verdade. Se não fosse o passado,
só teriam em comum a rivalidade e desconfiança, e, certamente, não
sentiriam aquela atração mutua. Lilith não acalentaria a ideia de
abandonar seu clube, e tudo o mais, pela simples possibilidade de ter a
vida que deveria ter tido como esposa de Gabriel.

Ele negou com um gesto.

— Não, não aceito. Você sente o mesmo que eu, Lilith, eu


sei.

Ela afundou as unhas nas palmas das mãos para não


chorar.

— Eu não sinto nada.

— Isso é mentira!

Agarrou-a de novo e a puxou para si, só que desta vez não


parou por aí. Desta vez baixou a cabeça e lhe feriu a boca com a sua,
movendo os lábios com um desespero que ela não resistiu nem sequer
quis fazê-lo. E, certamente, não queria. Nunca desejou ou pode resistir
a ele. Essa era sua fraqueza mortal no que se referia a ele. Ela sabia e o
aceitava... E como sempre, cedeu. Suas mãos subiram até a cintura de
Gabriel e o rodearam para lhe apertar as costas. Seus seios se
esmagaram contra o peito dele enquanto a boca se abria sob a sua e as
línguas se entrelaçavam em uma dança quente, úmida e sensual.

Ele a beijou como se fosse um homem que está se afogando


e ela, sua única tábua de salvação. E quando a abraçou, todos os
problemas se acabaram. Por que, então, não deixavam de lado aquela
desavença? Por que não encontravam um modo de permanecerem

369
juntos? Simplesmente porque um dos dois teria que ceder algo que lhe
era importante, e nenhum deles queria perder. Ah, se realmente ela
pensasse que teriam uma oportunidade para serem felizes, fecharia o
clube, pois sabia o quanto a ilegalidade do jogo significava para ele, mas
e depois? Mais tarde jogaria a culpa em Gabe quando todos
acreditassem que tivera o castigo merecido? Que sua decisão seria uma
vitória arrasadora em sua guerra contra o jogo?

Um forte tranco nos ombros de Gabriel interrompeu o beijo.

— Pare. - Ordenou-lhe Lilith quando tentou puxá-la


novamente. — Não posso continuar desconfiando de você e o desejando
ao mesmo tempo, Gabe. Por favor, não posso suportar isso.

Gabriel abriu a boca, ela esperava que tentasse convencê-la


a ceder, que fizesse o que ele queria, mas de repente a soltou.

— Não fui a sua procura porque não queria que soubesse do


que houve com meu pai.

Lilith piscou. Não esperava por isso.

— Como?

Gabriel a soltou e recuou como se precisasse distanciar-se


dela para poder falar. Com os olhos cravados no tapete, disse:

— Estava envergonhado pelo modo como morreu.


Envergonhado por ele ter deixado a mim e minha mãe sem nada, Fui
obrigado a limpar toda sua sordidez. - Levantou o olhar. — E sei que foi
por isso que seu pai não me disse onde estava. Declarou com frieza que,
apesar de desonrada, você faria um casamento melhor, que não a

370
casaria com alguém coberto de dívidas e de sangue tão manchado de
vícios como eu.

Embora a voz de seu pai fosse pouco mais que uma vaga
lembrança, Lilith quase o ouviu dizendo essas palavras tão duras.
Gabriel prosseguiu:

— Então decidi me fazer digno de você. Já era bem ruim o


modo como morreu meu pai, mas os credores já batiam à porta
inclusive antes do enterro. Blaine e eu fizemos o possível para abafar os
rumores que não demoraram a surgir. Naquele momento o conde era
eu, e as dívidas de meu pai eram minhas, foi por isso que me arrisquei
investindo em uma nova companhia naval, vendi as poucas posses que
restaram de meu pai algumas terras e consegui sossegar também os
credores, depois de um ano, estava ao menos com as finanças
equilibradas.

Lilith esboçou um leve sorriso.

— Então apesar de tudo, você é um pouco jogador.

Pretendera fazer só um comentário zombeteiro, mas a reação


de Gabriel foi como se tivesse recebido uma bofetada.

— Só porque precisei. - Replicou com voz rouca. — E quando


saí a sua procura, muito tempo se passara. Procurei-a durante anos,
mas ninguém me dava informações de seu paradeiro. E como não recebi
notícias suas, pensei que não queria mais nada comigo.

Ela continuava a não acreditar que todas aquelas cartas


tivessem sido desviadas, mas em que outra coisa poderia pensar? Ele
parecia tão sincero, como se doesse admitir todo o desgosto e vergonha

371
diante dela... O significado disso para Lilith era mais do que nunca
poderia expressar.

— Sinto muito. - Sussurrou ele, com os olhos baixos. —


Sinto não ter procurado você em seguida, mas eu era jovem e estúpido,
e todos me diziam o que devia fazer. Mas eu só desejava estar contigo.

Lilith foi até ele. Não importava se era o certo ou não. Era o
que desejava. Ao admitir seus medos e o que aconteceu, demonstrava
mais confiança do que ela merecia. Então lhe rodeou o pescoço com os
braços e lhe disse:

— Você está comigo.

Nas pontas dos pés, uniu seus lábios aos dele e se fundiu a
Gabriel enquanto ele a abraçava. Não sabia o que aquilo significava
para os dois, ou se mudaria algo, mas naquele momento nada, nem
sequer o Mallory's, tinha mais valor do que Gabe. Ele se inclinou e a
levantou nos braços sem interromper o beijo. E quando voltou a soltá-la
foi sobre a cama. O colchão macio cedeu sob o peso de seus corpos.

Gabriel apoiou um braço por cima dela e deslizou a outra


mão até a curva do seio. Lilith sentiu que a espera agonizava em seu
ventre quando a aspereza morna do polegar avançou muito devagar até
o mamilo erguido. Quando por fim a tocou, embora fosse através do
tecido do robe e camisola, sentiu o desejo latejar entre as virilhas.

Ao passar as pernas contra as dele, o lento descer e subir da


seda expunha o interior das coxas ao toque do algodão nas calças dele,
provocando arrepios. Desesperados, seus dedos tentaram arrancar o
casaco, e ele escapou dela sem desfazer o beijo, como se pensasse que,
libertando-lhe a boca, Lilith o deteria e não tinha nenhuma intenção de
fazer algo tão tolo. Os sedutores dedos que antes excitaram o seio sob a

372
camisola de dormir, deslizavam agora pela parte superior da coxa com
uma suavidade e lentidão que a fez retorcer-se de impaciência. Não
queria suavidade ou lentidão. Queria as mãos dele sobre ela, dentro
dela. Agora.

E conseguiu o que desejava. Ele colocou a parte inferior do


corpo a seu lado, e com a dureza da ereção se acomodou nos quadris,
seus dedos alcançaram a fenda ávida e umida que havia entre suas
coxas.

Sem deixar de beijá-lo, Lilith suspirou, subiu as palmas das


mãos até o peito dele e se agarrou a maciez da camisa dele, quando
Gabriel deslizou a ponta calosa do dedo no sulco inchado de seu sexo.
Ela arqueou os quadris e abriu as pernas sob sua mão, seu corpo lhe
suplicava por um contato mais íntimo. Adorava o modo de tocá-la
dando tanto prazer. Nada mais importava, suas diferenças, Bronson,
nem sequer o futuro. Nada disso importava quando faziam amor.

O dedo deslizou entre as dobras de sua carne, procurando, e


em fim, encontrando o ponto tenso e encapuzado que ansiava pelo gozo.
A aspereza da pele dele, deliciosamente excitante, fazia os músculos de
suas pernas se contraírem quando o esfregou até fazê-la se contorcer
em desespero. Os quadris de Lilith ondulavam com cada carícia que a
conduzia cada vez mais ao precipício do prazer, entrevisto a pouca
distância. Necessidade: era somente isso o que ela podia lhe dar, e
somente isso ela podia lhe pedir sem que nenhum dos dois tivesse que
aceitar um compromisso.

A boca dele se afastou da dela e desceu deslizando por seu


queixo e garganta, enquanto deixava sobre sua pele um caminho quente
e molhado. Fechou os lábios em torno de um mamilo e chupou a ponta
endurecida através do tecido fino, com uma intensidade que a fez gritar
de dor e prazer. O ataque ardente de sua boca só deixou frescor, a boca

373
de Gabriel desceu, enquanto seus dedos a levavam a um estado de
excitação que eliminava todo o pensamento e seus lábios roçaram a
curva de seu ventre.

Desceu mais ainda. Seus ombros lhe abriram mais as


pernas ao acomodar-se entre elas, e então seus dedos, depois de
deslizar para baixo penetrou em seu interior, preenchendo-a, dilatando-
a com impulsos lânguidos e lentos. Lilith arqueou as costas, gemeu,
ofegou e suplicou pelo êxtase que lhe prometia. E quando sua boca
substituiu os dedos, ela gritou de deleite. Firme e úmida, sua língua a
acariciava, e lambia até roçar seu ponto mais sensível.

— Oh! - Gritou levantando os quadris, enquanto ele


empregava os dedos para dilatá-la mais ainda e lambia sua essência
com a língua, levando-a a um patamar nunca antes sentido, o quarto
dava voltas em torno de Lilith e luzes explodiram atrás de suas
pálpebras, firmemente fechadas.

Ele esfregava sua barba incipiente na pele sensível.


Rapidamente, o prazer cresceu e formou redemoinhos em uma
tempestade que a aturdiu e ameaçou lançá-la a um abismo de
escuridão. Então Lilith enredou seus dedos em meio aos cabelos de
Gabriel, empurrou com força contra sua boca e saltou. “Deus”... Gritou
sem palavras. Sentiu as sucessivas ondas de um prazer imenso lhe
percorrendo os músculos e despertando os nervos.

Enquanto ofegava para recuperar o fôlego, abriu os olhos ao


notar que ele levantava a cabeça. E o viu subir sobre ela, com a boca e o
queixo brilhantes de seus sucos e os olhos reluzentes de desejo contido.

Com uma mão Gabriel lhe subiu a perna direita e a colocou


sobre o braço, enquanto que com a outra rasgava a abertura de suas
calças. O membro duro brotou livre, a cabeça reluzia à luz das velas.

374
Lilith gritou quando ele a penetrou. Sua pele, ainda sensível,
comprimiu-se sobre a invasão e se fechou em torno dele, o levando cada
vez mais fundo, até que os quadris dele se chocaram com o vértice de
suas coxas.

Uma das coxas sentia cãibras, a camisola e o robe se


amontoaram na base das costas, mas nada mais lhe importava. Com os
olhos fixos no rosto de Gabriel, observou como o êxtase brincava em
suas feições enquanto se afundava mais nela. Saber e ver o efeito que
tinha sobre ele a excitou mais, quando recuperou as forças, Lilith
levantou os quadris para receber seus impulsos e levantou a outra
perna no ar para que a penetrasse ainda mais.

A posição a levou a um segundo orgasmo. Os espasmos


chegaram ao mesmo tempo em que ele estremeceu e gritou. Então
soltou-lhe a perna e caiu sobre ela, substituindo o prazer entranhado
em seu ventre pelo peso suarento de seu corpo.

Ficaram assim por muito tempo, ele ainda dentro dela, com o
rosto enterrado na curva de seu pescoço e ombro. Quando por fim
levantou a cabeça, a expressão de seu rosto mostrava ternura... E
incredulidade. Mas Lilith não queria sua ternura: pois a fazia chorar.

— Nunca deixei de procurá-la. - Sussurrou ele. — Teria dado


o pouco que tinha para tê-la ao meu lado. Se soubesse que estava em
Veneza, teria ido buscá-la e trazido para casa.

— Sei. - Disse ela. E entendia.

Gabriel virou-se, apoiou a cabeça na mão e a contemplou


com uma expressão possessiva embora afetuosa.

— Quero que feche o clube.

375
As palavras a atingiram como se fossem lâminas afiadas.
Acabara a trégua.

— Como?

— Só uns dias, até que consiga reunir provas contra


Bronson.

Lilith sentou com esforço. Gabriel ficou onde estava.

— Não vou fechar meu clube.

Então ele se sentou também.

— Lilith, Bronson é perigoso.

— E por isso mesmo não lhe darei a satisfação de me tirar


dos negócios nem sequer por alguns dias.

Puxou e ajeitou a camisola até cobrir os joelhos enquanto


Gabriel com expressão suplicante, dizia:

— Lilith, nesta questão precisa confiar em mim.

Algo na cabeça de Lilith pareceu entrar em marcha, algo que


lhe atingiu o estômago.

— Confiar em você? Então é disso que se trata? Veio com a


esperança de me amansar com uma pequena mostra de sua alma e um
pouco de sedução, acreditando que me faria feliz fechar meu clube só
porque você me pediu?

376
Gabriel negou com a cabeça, e a mandíbula se tencionou.

— Não é nada isso!

Mas Lilith viu a mentira em seus olhos. Provavelmente não


teria planejado, mas certamente esperava seduzi-la e com a paixão
saciada, a convenceria de seguir seu plano. Por quê? Estaria realmente
preocupado com as ameaças de Bronson? Ou queria que fechasse o
clube pensando em fazer o possível para que não voltasse a abri-lo. Ou
temia por ela e ainda tinha esperança de que o amor venceria todos os
obstáculos, até mesmo torná-la uma mulher decente e de moral
impoluta, como ele queria que fosse?

— E quanto a você, o que pode fazer por mim? - Perguntou


ela com falsa doçura. — Se aceitar em fechar o Mallory's por alguns
dias, você aceitará mudar seus pontos de vista sobre o jogo? Ao menos
abrir sua mente para uma solução mais adequada que a extinção total?

Não precisou da resposta, estava na expressão de seu rosto.


Entretanto, ele insistiu em continuar argumentando:

— Não é tão simples assim. Não posso isso, sem mais nem
menos.

Ah, então ele queria que se comprometesse, mas não faria o


mesmo por ela... Aquilo doeu, e muito.

— Então temo não poder satisfazê-lo fechando o clube.

Deslizou para fora da cama. Sentiu nas coxas a prova


pegajosa de que tinham feito amor, e novamente, aquela horrível
sensação de pânico. Nem ele nem ela tinham se protegido. Nem sequer
pensara nisso. Quando aprenderia?

377
Gabriel também se levantou. Só a cama se interpunha entre
os dois, embora a distância parecesse imensa.

— Lilith, não seja estúpida!

— Já fui, e vezes demais para o meu gosto. - Replicou ela,


amaldiçoando-se por não sufocar um soluço. — Gabriel somente eu
devo mudar e ceder sempre? E você? Confiar a mim os seus segredos é
pouco. Se quer ficar comigo, tem que haver retorno.

Uma curva sarcástica se desenhou nos lábios dele.

— Quer que me torne o bobo da corte e que mude


publicamente minhas opiniões sobre o jogo? Isso seria uma mentira,
Lilith. Continuo a desprezar esse antro de corrupção, e desprezaria a
mim mesmo se o fizesse. Quem sairia ganhando seria o jogo.

Lilith viu a verdade com tristeza.

— No entanto, você parece não se importar em me pedir para


que abandone tudo aquilo pelo que lutei, apenas para lhe satisfazer.
Não falei em perdas e ganhos, Gabriel.

— Ah, não? - Desafiou-a ele. — Não foi você quem sugeriu


que jogássemos nossos trunfos como se fosse uma partida?

Lilith lhe manteve o olhar.

— Sim, e me enganei. Por este caminho, os dois sairemos


perdendo.

378
— Bem, pois esta não vou perder. - Gabriel pegou as roupas
e começou a se vestir, lançando-lhe um olhar furioso, com uma raiva
contida que parecia mais dirigida a si mesmo que a ela. — Há dez anos
sustentei nos braços o corpo sem vida de meu pai e fiz uma promessa
de fazer todo o possível para que aquilo não acontecesse a ninguém
mais. Se pensa que vou deixar de cumprir a promessa só por estar
obcecado por você, engana-se.

Lilith o fitava sentindo no peito o vazio arder. Ele estivera


presente na morte do pai e as circunstâncias se tornaram uma
obsessão? Algo insano, incontrolável... Isso não parecia amor. Apertou a
mandíbula para evitar que lhe tremesse o queixo e sussurrou:

— Então saia.

A única resposta dele foi um gesto rígido de assentimento


enquanto se dirigia a largas passadas à janela.

Inferno, qualquer dia aquele idiota acabaria escorregando e


quebrando o pescoço. E por mais idiota que fosse, ela só lhe queria o
bem. Lilith o preferia vivo e desprezando-a, a perdê-lo para sempre. A
árvore era velha, o tronco cheio de limo...

— Quero que saia pela porta principal.

Ele se deteve quando ia levantar a perna e passá-la pelo


batente da janela.

— Como é?

Lilith cruzou o tapete e fechou a janela.

— Quero que saia pela porta.

379
O clube ainda não estava fechado. Muitos o veriam sair.
Seria estupidez, e daria assunto para os fofoqueiros de plantão soltarem
risadinhas cheias de malícia, mas ao menos não teria que se preocupar
se mancharia ou não, a reputação dela... E, ao menos, assim não se
sentiria mais envergonhado do que já estava.

— Não vou sair pela porta principal.

O queixo de Lilith avançou em sinal de desafio.

— Medo de manchar sua reputação ilibada?

— Não. - Respondeu ele em voz baixa.

Não precisou continuar. Ela sabia que não era só a própria


reputação que o preocupava. Maldição. As lágrimas lhe queimaram
dentro dos olhos e lhe nublaram a vista.

"Oh, Deus, por favor, não o deixe ver."

— Lilith...

— Maldição! Quantas vezes tenho que lhe dizer que vá


embora? –Gritou, a raiva segurando as lágrimas. — Quantas, até que
entre na sua cabeça dura que não quero ouvir mais nada? Só quero que
vá embora!

Gabriel a olhou boquiaberto, era evidente que a raiva o


pegara de surpresa. Não disse nada e se limitou a assentir. Só para
fazer Lilith se sentir pior, cruzou a passos largos o quarto e se foi.

A porta ficou aberta.

380
Em que diabos estivera pensando? Ou, melhor ainda: em
que diabos estava pensando?

No lombo de Clive, um cavalo negro castrado, Gabriel


observou sem ver o que estava a sua volta. Era a hora em que a os
nobres e ricos comerciantes abarrotavam o Hyde Park, exibindo-se para
receber a devida admiração. Um cavalheiro o cumprimentou com uma
inclinação do chapéu, e Gabriel devolveu a saudação, embora não
tivesse ideia de quem fosse. Não estava prestando muita atenção.

Fazer amor com Lilith sem usar uma capa, quando poderia
engravidar tão facilmente... Era um erro que jamais cometeria com
outra, mas já se tornara costume cometer erros com Lilith. Estivera tão
ansioso para estar dentro dela, para ser parte dela, que todo seu senso
comum sumiu... E agora talvez estivesse grávida. Ele sempre fora tão
cuidadoso, que nunca deixou algo assim acontecer... Que loucura tinha
feito! Na noite anterior fora ao clube conversar com ela, fazê-la confiar
nele, e só conseguira mais desconfiança: pedir para que fechasse o
clube, fora uma tremenda estupidez.

381
Ela era tão teimosa... Acaso não via que era para o próprio
bem? Melhor alguns dias fechado e deixar Bronson dar um passo em
falso, acreditando que tinha vencido. Mas Lilith não viu assim. Pensou
que ele tentava lhe dizer o que fazer. E quando ele se negou a fazer o
que ela queria, como se o pedido fosse razoável, deduziu que não podia
confiar nele. Ah, sim, parecia muito digna, ameaçou e tentou parecer
razoável e distante, mas não enganou Gabriel. Lilith sempre escondia
sua vulnerabilidade atrás de uma máscara de despeito.

Até lhe contou a verdade sobre seu pai... Bem, o suficiente.


E ainda assim, o acusava de ser rígido. Provavelmente era, mas ela
tampouco se mostrou flexível. O que esperava? Que mudasse seus
princípios, suas crenças, sem mais nem menos, por ela?

“E porque não o fez? Imbecil.”

Uma voz lhe gritou em seu interior, seu sobressalto fez Clive
se assustar. Mas como faria aquilo? Se de repente mudasse sua posição
sobre o jogo, cairia no mais completo ridículo. Além disso, seria uma
mentira: continuava acreditando que podia fazer algo. E por maior que
fosse seu desejo por Lilith, não podia mentir. Nem sequer por ela.

— Angelwood!

Sua atenção se voltou ao chamado, e Gabriel levantou o


olhar para ver a procedência. Dois homens a cavalo se aproximavam,
um era Brave, o outro era...

— Julian!

Um sorriso largo se abriu no rosto de Gabriel enquanto


esporeava o cavalo, e os dois amigos sorriram por sua vez quando

382
chegou a eles. Julian Rexley, conde de Wolfram, não mudara quase
nada desde que Gabriel partiu para a Nova Escócia. Estava um pouco
mais bronzeado, e os cabelos, castanho-avermelhados, pareciam um
pouco mais longos, além disso, era o mesmo Julian, e o coração de
Gabriel se alegrou ao vê-lo. Os dois se deram as mãos, entusiasmados.

— Que alegria vê-lo meu amigo! - Declarou Gabriel rindo


enquanto estreitava a mão do amigo. — Quando chegou?

— Hoje de manhã. - Respondeu Julian, com o olhar


brilhando. — Fui à livraria, para ver como iam as vendas do último
livro, e ao sair me encontrei com Brave e sua encantadora esposa.
— E como vai a sua última obra? Ouvi dizer que
praticamente voam das prateleiras... Alguma dama desmaiou quando
passou?

Julian era poeta. Sua popularidade tinha aumentado muito


desde que Byron se foi da Inglaterra, e Gabriel jamais desperdiçava a
ocasião de fazer brincadeiras sobre o modo como as mulheres
formavam redemoinhos em torno dele.

— Somente duas hoje. - Respondeu Julian com o mesmo


tom. — Meu amigo, precisei ser bem rápido para segurá-las antes que
chegassem ao chão.

— Que sorte encontrarmos contigo. - Comentou Brave,


enquanto acalmava uma égua baia inquieta. — O visitaríamos antes do
jantar.

Com um gesto de mão, e sorrindo ainda, Gabriel comentou:

— Bem, agora podem jantar, se quiserem. E Letitia também,


se o desejar.

383
Julian negou com a cabeça.

— Minha irmã continua em Paris, mas eu aceito de boa


vontade.

— Paris! - Gabriel trocou olhares de cumplicidade com Brave


antes de voltar outra vez sua atenção a Julian. — E como o convenceu a
voltar sem ela?

Julian pôs os olhos em branco.

— Perguntou-me se podia ficar com alguns amigos e lhe


disse que sim. Já é uma mulher feita, sabia?

Letitia Rexley era a única familiar que restara a Julian. Seus


pais tinham morrido em um acidente de carruagem quando ele tinha
dezoito anos, deixando-o não só como conde, mas também como único
guardião das duas irmãs. Uma delas, Miranda, havia falecido em
circunstâncias trágicas há alguns anos, e só restara Letitia. Julian se
mostrava muito protetor com ela.

— Deve ter sido difícil deixá-la, não? - Perguntou Gabriel


com um sorriso.

Com expressão zombeteira, Julian estremeceu.

— Mais do que posso admitir. Mas basta de falarmos de


mim. Fale-me desse jantar. Lady Lilith estará presente?

Como se o tivesse traído, Gabriel lançou um olhar expressivo


a Brave.

384
— O que andou falando?

Este fez um gesto de assentimento.

— Foi a primeira coisa que saiu de minha boca.

— Não, não estará presente. A menos que exista a


possibilidade de ver-me asfixiar, engasgado com um osso de frango.

Julian se pôs a rir, e Brave fez uma careta.

— A tentativa de falar com ela não saiu bem?

— Foi fatal. - Replicou Gabriel. — Não sei o que fazer.

Pouco acostumado a ouvir seu amigo falando assim, Julian


franziu o cenho.

— Podemos fazer algo?

Gabriel os olhou e sentiu a amizade e preocupação. Os três


tinham passado por muitas coisas: as tragédias de Julian, a melancolia
e o desespero de Brave... Tinham compartilhado tudo, menos a morte
do pai de Gabriel. Claro que seus amigos estiveram junto a ele e o
ajudaram durante o duelo, mas nunca souberam toda a história. Já
passara da hora saberem. Então esporeou seu cavalo e, em tom brusco,
disse:

— Cavalguem comigo. Há uma coisa que preciso lhes contar.

— Sobre o quê? - Perguntou Julian enquanto galoparam


atrás dele.

385
— Sobre meu pai.



Seria cômico se não estivesse tão desesperado.

Tinham acabado de jantar, e os quatro, Gabriel, Brave,


Rachel e Julian, sentados na sala de estar, tomavam uma taça de porto
e comentavam como deveria cortejar Lilith. Era humilhante ver como
seus amigos dissecavam e conduziam sua vida amorosa, embora já o
fizessem a suas costas, mas Gabriel estava disposto a ficar de cabeça
para baixo em meio a St. James's Street cantando a plenos pulmões
uma canção de amor, se com isso conseguisse ter Lilith.

Depois de contar aos amigos a verdade sobre a morte do pai,


tanto Brave como Julian ficaram chateados, não por ter escondido algo,
mas sim por ele ter passado por aquilo sozinho. Devia ter lhes dito
antes, mas era muito orgulhoso, e também estava muito envergonhado,
para compartilhar o segredo com alguém, nem sequer com os amigos
mais íntimos.

— Você deveria ter contado tudo a ela. - Comentou Brave.

Seu olhar expressou também o que teria que dizer: a


verdade. Rachel sorriu ao marido com ar inocente. Por mais que Gabriel
pedisse, Brave não lhe prometera esconder a verdade, se mostrara
inflexível afirmando que não mentiria a sua esposa se acaso ela o
questionasse. E, conforme parecia, ela tinha um sexto sentido para esse
tipo de coisas.

386
— Refere-se ao modo como me fala quando algo o preocupa?

Brave sorriu diante da brincadeira.

— Sim, só que faço melhor...

Gabriel escutou as brincadeiras e viu que os olhos dos dois


diziam mais, muito mais, que palavras. Como os invejava! Seu
casamento começara de forma conturbada, mas Brave e Rachel eram o
casal mais feliz que conhecia. Desejava aquilo, e com Lilith.

— Já lhe contei quase tudo. - Disse-lhes. — Mas não


funciona. Lilith ouve o que digo e retorce o sentido das coisas até se
tornar o que quer escutar.

— E uma carta? - Sugeriu Julian. — Conseguirá dizer tudo o


que precisa sem que o interrompa.

Gabriel negou com a cabeça.

— Embora não tenha seu talento com as palavras, não creio


que Lilith a lesse. Provavelmente a queimaria.

— Bem, e como conseguirá esclarecer as coisas se ela não


quer lhe ouvir? - Perguntou Julian. — Tenho a impressão de que ela
tem opinião formada, você terá de fazê-la mudar de ideia.

Brave fez um gesto de triste negativa.

— Fazer uma mulher mudar de opinião é uma tarefa


hercúlea.

387
Sua esposa lhe dirigiu um olhar muito sério antes de voltar
sua atenção a Gabriel.

— Dizer ou escrever uma carta, - Declarou séria. — Não dará


resultado a menos que Lilith acredite que é sincero. O que uma mulher
quer de um homem é que aja, não palavras.

Ah, aquilo parecia interessante, quem sabe dali saísse uma


ideia viável. Gabriel acariciou o queixo e lhe perguntou:

— O que me sugere?

Depois de pensar um momento, Rachel respondeu:

— Bem, parece que a raiz do problema é sua pretensão de


acabar com o jogo e Lilith acha que está tentando usá-la para esse
objetivo, apesar de seus esforços em convencê-la do contrário, e acima
de tudo, perdeu a pouca confiança que tinha em você.

Acabrunhado por ela ter sido tão direta e clara em suas


palavras, Gabriel assentiu com a cabeça. Rachel continuou:

— E além disso, ainda acredita que você continua a lhe


esconder certos fatos, o que é verdade. - Olhou os rostos
sobressaltados. — O que? Realmente, acham que não notei a atitude
estranha dos três? Creia-me, Lilith não confiará em você até que prove a
ela que a ama.

— O que sugere?

— Isso é tão simples. - Declarou Rachel com um leve sorriso.


— Mude sua atitude a respeito do jogo.

388
Gabriel esteve a ponto de gargalhar. As mulheres não
sabiam o que era ter honra? Dignidade ou a importância de manter
uma promessa? Como se entendesse suas dúvidas, ela se mostrou
compreensiva.

— Gabriel, acha que terá êxito em acabar com o jogo,


sejamos realistas, sim?

Seu primeiro impulso foi insistir que sim, que conseguiria,


mas reprimiu aquele pensamento. Precisava ser sincero consigo mesmo,
se não, como seria franco com Lilith? Baixou o olhar e o desviou.
Durante muito tempo sua empreitada de acabar com o jogo lhe pareceu
algo possível e correto, a única coisa que repararia a morte de seu pai e
que, de certo modo, o fazia pensar que não morrera em vão. Mas
agora... Agora parecia sem sentido, ridículo e impossível, aquilo só
conseguira interpor-se entre ele e a mulher que amava.

— Não. - Respondeu por fim. — Não creio que possa


erradicá-lo.

Um peso gigantesco pareceu sair de seus ombros. E embora


fosse difícil admiti-lo, e outras ideias lhe rondavam a mente. Talvez
houvesse um modo de manter sua promessa a seu pai e, ao mesmo
tempo, conseguir Lilith. Afinal, nem todos os donos de clubes eram
como Bronson, Lilith era uma prova disso. E ele também conhecia
muitas pessoas que jogavam de forma responsável. Talvez pudessem
criar leis mais específicas para os clubes e proteger aos que, como seu
pai, não pareciam saber quando chegava o momento de levantar-se da
mesa e se retirar. Ou fazer com que tipos como Bronson, tornar mais
difícil a eles manter seu negócio... Além disso, tinha um assunto
pendente com o senhor Bronson.

Gabriel olhou aos amigos.

389
— Brave, Julian. - Disse. — Me fariam um favor?

— Claro. - Respondeu Julian sem hesitar. — Do que se


trata?

— Quero que investiguem um clube, o Hazards. Preciso


saber tudo a respeito dele e de seu proprietário, um homem chamado
Bronson. Minha presença ali despertaria suspeitas, assim ficaria grato
a vocês se bisbilhotassem um pouco por lá.

Com um gesto afirmativo, Brave replicou:

— Há algo em especial que queira saber?

Gabriel bebeu um gole de seu porto e respondeu:

— Algo que ajude a fechá-lo.

Rachel franziu o cenho e se inclinou para frente.

— O que planeja fazer, Gabriel?

Este lhe lançou um sorriso encantador.

— Seguir seu conselho, minha cara. Vou provar a Lilith o


quanto significa para mim.



390
Lilith já se desprezava pelo que estava a ponto de fazer.

Ao pé das escadas, levantou os olhos e fixou o olhar na


escuridão que cheirava a mofo e umidade. Precisava subir. Os baús de
tia Imogen estavam lá, e se Gabriel disse a verdade, a resposta também
estaria lá. Nos últimos dias sentira um verdadeiro martírio com a
incerteza, hora desejava acreditar nele, outra não, era tão difícil aceitar
que sua tia a tivesse enganado daquela maneira, contudo, preferia isso
a pensar que Gabriel a estava usando.

— O que espera encontrar lá em cima?

Lilith voltou a cabeça e viu Mary se aproximando pelo


corredor.

— A verdade. - Respondeu, e novamente dirigiu sua atenção


às escadas. Ao menos, esperava por isso. Mas, e se não encontrasse
nada? Em quem deveria acreditar então?... Seria uma escolha a se fazer
sozinha. De qualquer forma, perderia.

Mary se aproximou. Pela extremidade do olho Lilith viu que


usava um vestido velho, muito parecido ao dela. Mary lhe lançou uma
olhada e perguntou:

— Talvez queira um pouco de ajuda.

Com "ajuda" sem dúvida se referia a "apoio". Lilith sorriu.

— Sim, ficaria muito contente.

Era como se buscasse a própria execução, só que um pouco


mais melodramático... Sacudiu a cabeça e se obrigou a pôr um pé

391
diante do outro, devagar, foi subindo a escada até o patamar e
finalmente a porta, então a abriu. A suas costas ouviu uma exclamação
de Mary.

— Bendito seja Deus! Por onde começaremos?

O sótão estava abarrotado de coisas que Lilith não suportava


olhar, mas teria que encontrar os baús com os vestidos, peles, roupa de
cama, banho e mesa, usados pela tia, se não encontrasse nada,
reviraria os quadros, móveis... Tudo que tivesse sido da tia, Deus...
Tudo estava amontoado ou apoiado sobre outros objetos poeirentos, ali
havia até roupas dela que estavam fora de moda.

— É, eu gosto de guardar coisas. - Explicou.

Mary assentiu com a cabeça.

— Claro, por isso não esquece de nada.

Lilith jamais vira sua mania desse modo.

— Suponho que sim.

Enquanto seguia percorrendo com o olhar a desordem sem


fim, Mary comentou em voz baixa:

— Há coisas que eu adoraria esquecer.

Lilith lhe dirigiu um olhar de preocupado.

— Contou ao senhor Sweet a respeito do seu casamento, não


é?

392
Com os olhos baixos, Mary se dirigiu ao centro do sótão.

— Sim. - Respondeu. — Ele... Não aceitou muito bem.

Não, pensou Lilith, não seria próprio de um homem tão


piedoso, sujeitinho mesquinho.

— Quando lhe contou?

Devia ter sido há pouco tempo, porque não estranhou o


comportamento da amiga.

— Na semana passada. - Foi a resposta desalentadora.

Na semana passada! Quanto tempo estiveram juntas nos


últimos dias? Viam-se diariamente, e Mary não tinha pronunciado
nenhuma palavra sobre o afastamento do reverendo, enquanto ela
choramingava por Gabriel cada vez que Mary lhe perguntava... Que
egoísta mentecapta fora. Encaminhou-se até a amiga e lhe pôs a mão
no ombro.

— Sinto muito.

Mary escapou da mão ao voltar-se, mas Lilith não levou a


mal. Havia momentos que uma mulher não queria ser vista chorando,
nem sequer pela melhor amiga.

Mary levou o dorso da mão ao rosto antes de endireitar os


ombros e respirar fundo.

— Por onde começamos?

Lilith apontou o lado direito.

393
— Por lá. - Respondeu. — Os baús de minha tia estão junto
à parede.

Lilith parava de vez em quando para olhar algum objeto, um


armário que pertencera a sua avó, ou o busto de seu tataravô. Outro
objeto lhe chamou a atenção, um retrato, a família reunida quando era
uma menina, não a grande decepção. Com um gesto abstraído,
acariciou o rosto pintado de seu irmão. Como o adorava! Será que a
perdoou por desonrá-los, ele e o resto da família. Teria pensado nela
antes de morrer?

— É sua família? - Perguntou Mary, mais segura que


curiosa.

— É o único retrato que tenho de todos juntos.

Era melhor assim. Na pintura, sua mãe parecia feliz, nos


anos posteriores perdeu aquela felicidade.

— Você se parece com sua mãe.

Lilith cravou os olhos no rosto da pintura e deixou surgir um


sorriso.

— Graças a Deus que as semelhanças acabam aí.

Jamais daria as costas a própria filha não importando o que


tivesse feito. Ela seria um mãe muito melhor...

— No que está pensando? - Perguntou Mary, seu olhar


prudente e perspicaz vendo mais do que Lilith deixava entrever.

394
— Em coisas que não me farão bem pensar. Replicou. —
Bem, e esses baús? Neste ritmo, levaremos uma semana.

Abriram caminho através da desordem até a parede, onde


estavam os pertences de tia Imogen. Havia vários baús com objetos
pessoais, mas só um com correspondência particular, documentos e
alguns diários. Era ali onde Lilith esperava encontrar a resposta a suas
perguntas, se é que havia respostas a encontrar.

Depois de várias tentativas para encontrar o baú certo, e


que, é claro, estava embaixo de todos os outros. Foi necessária toda a
força combinada de Lilith e Mary para tirá-lo e arrastá-lo até onde havia
espaço suficiente para procurar nele. As dobradiças grunhiram quando
Lilith abriu a tampa poeirenta. Uma nuvem de pó a sufocou, e tossiu
enquanto os olhos consternados caíam sobre as pilhas de papel e
cadernos que abarrotavam o baú, forrado de cetim azul.

— Sua tia não gostava de jogar nada, hein? - Comentou


Mary com ironia.

Com uma risadinha, Lilith negou com a cabeça.

— Tia Imogen gostava de guardar todas as cartas que


recebia. Dizia que eram úteis quando se pedia um favor.

Mary sorriu.

— Então já se sabe de onde vem essa sua mania de juntar


coisas.

A expressão de Lilith se entristeceu.

395
— Suponho que sim. Embora eu não goste de colocar meus
pensamentos íntimos em um diário para que alguém os leia muito
depois de minha morte.

Mary a observou com atenção.

— Esses pensamentos já não podem lhe causar dano.

Lilith cravou o olhar na desordem que tinha diante de si. Ali


havia coisas que não gostaria de saber.

— Não. - Respondeu. — Mas podem fazer mal aos outros.

Não precisou se explicar a Mary quem eram os "outros".

— Eu ficarei com as cartas. - Anunciou Mary, e se sentou


sem cerimônias na tampa de outro baú. — Deixo a você os
pensamentos íntimos.

Lilith se apoiou em uma mesa isabelina, delicada mas


resistente, e tirou o diário que estava por cima de tudo, um livrinho
encadernado em couro preto, com as páginas inchadas pela tinta e
umidade. A data da primeira página amarelada era em oito de julho de
1802, anos antes de morar com sua tia. Era também o dia em que
morreu tio Bertram. O assunto não dizia respeito a ela, mas Lilith não
pôde deixar de ler o que sua tia aflita escreveu no dia da morte do
marido.

“Meu querido Bertram morreu, embora saiba que por fim está
em paz, no Céu, acompanhado de outros anjos. Mesmo assim, isto me dá
muito pouco consolo se tiver de passar o resto de meus dias sem olhar
seu doce semblante. Rezo pelo dia em que estejamos juntos novamente.”

396
Com um nó na garganta, Lilith fechou o diário. Sua tia
esperou quase quatorze anos para reencontrar o homem que amava.
Cada vez que o nome do tio era mencionado, a tia dizia: "Está em meu
coração. Com todo meu coração ainda o amo como no dia em que nos
casamos." Voltou os olhos em direção a Mary para certificar-se de que a
amiga não a olhava, colocou a mão sobre o coração e sentiu seu ritmo
regular. Gostaria que tivesse tanta fé em seu próprio coração, em seus
próprios sentimentos... Em Gabriel.

Com um suspiro sufocado, deixou de lado o diário e pegou


outro. Este ia de 1803 a 1805, o seguinte, de 1806 a 1807. No seguinte
estaria o ano 1808, o ano em que Lilith foi viver com ela na Itália. Nesse
momento Mary levantou a cabeça da folha enrugada e amarelada que
tinha na saia e disse em voz baixa:

— Encontrei algo que creio deva ouvir.

Lilith levou o diário ao peito e tentou acalmar as batidas


frenéticas de seu coração.

— O que é?

— Uma carta de sua mãe. Está datada de abril de 1808.

O mês que a mandaram para o estrangeiro.

— Leia.

Deus, realmente, queria perder tempo nisso? Já sabia o que


sua mãe pensava dela. Para que castigar-se mais? Mary levantou a
página e começou a ler:

397
"Querida irmã, está é minha Lilith. É uma boa menina mas
um tanto amalucada para que eu e seu pai possamos conduzir. Ela
precisa de sua paciência e doce persuasão, peço a você para mantê-la
longe desse jovem, que a conduz a falta de decoro com assombrosa
facilidade.”

Lilith ficou boquiaberta. Boa menina? "Boa menina?" Mas


amalucada para que o pai e mãe pudessem conduzi-la. E "... Mantê-la
longe desse moço que a leva a falta de decoro...”. Tia Imogen teria
seguido as palavras de sua mãe em sentido literal?

— Nunca pensei que me achassem uma boa moça. Declarou


lentamente.

Mesmo usando um tom de falsa indiferença, sentia em seu


interior um caos. Sua mãe a chamou de muitas coisas depois de
encontrá-la com Gabriel, mas "boa moça" não fora uma delas. Com seus
olhos castanhos preocupados, Mary perguntou:

— Quer que deixe as cartas de sua mãe separadas do resto?

Lilith fez um gesto negativo.

— Por favor, faça isso, as lerei em outro momento.

Embora antes tivesse de reunir coragem... Voltou sua


atenção ao diário que tinha nas mãos e abriu a capa com dedos
trêmulos. Vinte e sete anos de idade, e sua mãe ainda tinha poder de
fazê-la sentir como uma criancinha. Maldição.

Em abril sua tia mencionava a carta da mãe de Lilith, e em


princípios de maio anunciava sua chegada. Havia muitas referências a
"pobrezinha" e ao "descarado" insensível que se aproveitou de sua

398
inocência. Tia Imogen rezava para que sua sobrinha se recuperasse logo
do desengano. Ao ler cada parágrafo seu amor pela tia crescia mais
ainda, e de modo parecido, tia Imogen falava também em cada página
de como crescia seu amor por Lilith. Sua tia foi tão boa, tão amorosa...
Então, um relato datado de vinte de junho fez o coração de Lilith de
repente, acelerar. Nesse mesmo instante, com um tom de mau agouro,
Mary a chamou:

— Lilith.

Lilith levantou uma mão.

— Um momento, Mary. Parece que encontrei uma coisa.

— Eu também. - Foi a réplica incrédula, mas Lilith não


notou. Estava muito ocupada percorrendo os olhos pelas linhas escritas
que tinha diante de si. Ao ler, o coração quase parou, e um estranho
rugido ressonou em seus ouvidos.

“Uma carta dele chegou no dia de hoje... O crápula que usou


minha querida sobrinha se atreveu a entrar em contato comigo. Dizia que
estava tentando localizá-la. Devia escrever-lhe mandando-o direto para o
inferno, mas sou uma dama. Não sei o que pretende, depois de ter
deixado passar tanto tempo sem procurar Lilith, mas não permitirei que
lhe faça mal outra vez.”

Lilith fechou os olhos para suportar as ferroadas que lhe


atravessaram o peito e se agarrou ao diário. Sentiu calafrios lhe
lambendo as mãos e os pés, enquanto a vertigem fazia sua cabeça dar
voltas. Por mais que desejasse acreditar em Gabriel, não esperava
descobrir que lhe tivesse contado a verdade. Por fim, a voz preocupada
de Mary atravessou a névoa de seu cérebro.

399
— Lilith!

Dedos fortes a agarraram pelos braços. Abriu os olhos.


Quando distinguiu o rosto preocupado da amiga, sussurrou:

— Gabriel disse a verdade...

Mary levantou várias folhas de papel envelhecido.

— Sei disso. - Disse. — Encontrei sua carta.

Perplexa, Lilith olhou fixamente os papéis e reconheceu a


letra, embora sem entender as palavras. Estivera a sua procura... Suas
preces tinham sido ouvidas, mas sua tia, tão bondosa cometera um
engano, afastou Gabriel dela. Ah, seria tão fácil culpar uma morta por
toda sua desgraça, remorsos e estupidez... Mas tia Imogen não podia
ser considerada responsável por inteiro. Lilith precisava aceitar sua
parcela de responsabilidade.

— Preciso vê-lo. - Murmurou. — Tenho que...

Bem, não sabia o que tinha que fazer. Não é que as coisas
tivessem mudado entre eles, mas ao menos se desculparia por não ter
acreditado nele quando devia.

Deixou que Mary pusesse ordem no baú e se levantou com o


diário e a carta de Gabriel nas mãos. O que diria a ele?... Não era tão
ingênua para pensar que ele mudaria de opinião só por ela admitir que
o tinha julgado mau, embora isso não o absolvesse de querer fechar seu
clube, mas as coisas podiam mudar. Ela as faria mudar.

400
Meio atordoada pela própria resolução, Lilith caminhou
devagar até a porta. Já descia as escadas quando logo abaixo, ouviu o
forte tamborilar de botas, e depois, um grito assustado de homem.

— Lady Lilith! Lady Lilith!

A mente de Lilith clareou e deixando tudo de lado, inclusive


Gabriel. Trocou um olhar de preocupação com Mary e desceram
correndo as escadas.

— O que houve?

Mary já estava a seu lado quando surgiu Harold, um dos


criados. O jovem ofegava com os olhos arregalados de susto, o rosto
estava branco e brilhante de suor.

— Depressa, Lady Lilith! - Gritou. — É o senhor Latimer.


Está gravemente ferido!

Lilith repetiu.

— Latimer!...

Como teria se ferido? Latimer era tão forte, indestrutível. Se


nem sequer o vira resfriado um dia!

Desceu o outro lance de escadas, Harold as precedia na


descida e acrescentou:

— O levamos a uma das saletas mais próximas da entrada,


Malcom foi a procura de um médico. Por favor, venha rápido!

401
Juntas e de mãos atadas para darem-se ânimo, Lilith e Mary
recolheram as saias e correram pelos salões atrás do jovem criado, que
entrou na saleta aonde colocaram Latimer deitado. Vários criados
esperavam à porta, no corredor, consolando-se mutuamente,
retorcendo-as mãos e enxugando os olhos. Até parecia que com a
chegada dela as coisas se resolveriam, como se ela fosse capaz de
ajeitar tudo. Lilith sentiu no peito o peso da responsabilidade, tão
grande quanto o medo de que a culpa do acontecido ao seu guarda-
costas, e amigo, fosse dela.

Timidamente, entrou na saleta, Mary logo atrás. Ao pé da


cama onde jazia a figura grande de Latimer havia outros dois criados.
Uma das criadas lhe ajeitava a cabeça no colo, e Lilith a ouviu chorar.

— O que aconteceu? - Perguntou quando recuperou a voz. A


jovem levantou a cabeça com as lágrimas correndo.

— Foram os homens de Bronson. - Respondeu Latimer com


voz baixa.

Lilith olhou o homem que estava deitado no tapete e


imediatamente se arrependeu. Tinha as roupas manchadas de sangue,
o rosto inchado e cheio de cortes. O cabelo estava emaranhado com algo
que ela nem tentou identificar, e os nódulos dos dedos pareciam
rasgados até o osso. Latimer se defendera. Se não o tivesse feito, talvez
não tivessem batido tanto.

— Está muito machucado? - Perguntou.

— Nada que não tenha sentido antes. - Respondeu com bom


humor surpreendente.

402
Aquilo fora coisa de Bronson, era o castigo por Latimer tê-la
defendido. Latimer a avisara de que Bronson se vingaria, mas o
asqueroso covarde tinha ido atrás dele em vez de enfrentá-la. Latimer
tinha apanhado tanto daqueles animais só porque sabia que Lilith não
podia lutar sozinha contra Bronson, e deliberadamente se colocara em
perigo. Que diabos ela fizera para merecer lealdade semelhante?

Fosse o que fosse, não deixaria que o sofrimento de Latimer


fosse em vão. O médico não demoraria a chegar. Certificaria de que
Latimer recebesse a melhor assistência, e até que se recuperasse,
colocaria alguém com ele dia e noite. E se recuperaria. Lilith o queria
junto a ela quando fizesse Bronson pagar por todos os problemas que
tinha causado. Mas não podia fazê-lo sozinha, e sabia. Era uma
mulher, e havia lugares e situações que não podia ir e resolver sem
atrair muita atenção. E, embora lhe custasse o orgulho, até seu clube e
futuro, exigiria um castigo justo.

Com o diário e a carta em uma mão, passou seu braço livre


sobre os ombros trêmulos de Alice, a criada, e olhou para trás, os
criados que, silenciosos e zangados, estavam junto ao amigo. E então,
com voz tranquila e desapaixonada, deu-lhes instruções:

— Quero que um de vocês vá a Mayfair. Que diga a Lorde


Angelwood que nós... Eu preciso dele.

403
Tendo enviado a mensagem a Gabriel, Lilith voltou para o
lado de Latimer, que se encontrava consciente e com um bom humor
nada normal, dado a dor que devia sentir. Lilith pediu aos outros que
trouxessem uma cama e roupas de cama limpas. Neste momento o
médico chegou. Já com Latimer confortavelmente instalado, examinado
e medicado, pediu aos demais criados que voltassem a seus afazeres.
Da cadeira, junto à cama, olhava o amigo e fiel empregado, tinha os
olhos roxos e inchados, e o rosto esfolado com machucados que
prometiam ficar ainda piores no dia seguinte. Ele sorriu e, por mais
desastroso que fosse seu estado, foi uma bela visão.

— Está certo de que foram os homens de Bronson? -


Perguntou após um momento de silêncio.

O sorriso de Latimer se desvaneceu.

— Dois brutamontes me seguraram, mas quem fez a parte


mais suja do trabalho foi o próprio Bronson.

Lilith se esforçou em não demonstrar seu horror. Como


podia um homem bater tanto em alguém, pelo simples prazer de bater?
Parecia inconcebível... Com a indignação lhe fervendo no sangue, pegou
a mão enfaixada de Latimer na sua e disse:

— Farei com que pague por isso, Latimer. Prometo.

404
O grandalhão negou com a cabeça e fez um gesto de dor.

— Não, senhora. Não pode confrontá-lo sozinha. Não


pretendo ser desrespeitoso, mas Bronson não tem um pingo de honra.
Não quero nem pensar no que lhe faria.

Com suavidade, Lilith o fez calar.

— Não tenho intenção de enfrentá-lo sozinha. Mandei


chamar Lorde Angelwood.

Nesse momento evitou pensar se Gabriel a acudiria ou não,


principalmente depois de sua conduta na outra noite. Latimer pareceu
se animar com a notícia.

— Ele é um bom homem. Creio que pode confiar nele. Soube


que era o homem perfeito para a senhora ao ver o quanto significou
para ele poder limpar o nome da senhora daquela acusação de fraude.

Lilith franziu o cenho e olhou o empregado. O que queria


dizer com o quanto significou para ele conseguir limpar seu nome?

— O que você está sabendo, Latimer?

Este abriu os lábios o quanto lhe permitiam os cortes e


mostrou um aspecto decididamente arrependido.

— Prometi não contar, tem que me dar sua palavra de que


não revelará que quebrei a minha promessa.

— Claro. - Disse Lilith, impaciente. — Diga logo o que sabe.

405
— Notei isso depois, quando a senhora me disse que ele
acreditava que alguém do clube havia enganado um dos clientes. Lorde
Angelwood veio ao clube numa noite destas, pensei que era para vê-la,
mas veio por outro motivo, e ainda pediu-me para que não a informasse
da visita.

Antes, se Gabriel houvesse pedido tanta discrição isso a


teria irritado e deixado nervosa, agora se preocupava.

— E o que veio fazer?

— Ainda era cedo, mal havia clientes no clube, de modo que


deixei a entrada por um momento e fui observá-lo. Foi à mesa de
Maçom e se sentou, por isso calculei que suspeitava de Maçom. Lorde
Angelwood ficou observando, por alguns minutos, outro cavalheiro
jogar, e logo depois do outro desistir, jogou. Isso me deu o que pensar,
tendo em conta sua opinião sobre o jogo.

O estupor gelou o sangue de Lilith. Latimer devia ter-se


enganado... Mas vira o acontecido com seus próprios olhos. Gabriel
tinha jogado faraó na mesa de Maçom com o fim de saber se este, e
também o Mallory's, jogavam limpo. Ela lhe dissera em certa ocasião,
que o único modo de ver que tipo de estabelecimento tinha, era jogando
em suas mesas, mas nunca esperou que fosse fazê-lo realmente, nem
que comprometesse seus princípios daquela maneira, por ela. E se
alguém o tivesse visto? Para ele seria a desonra e vergonha, e se
espalhassem a história seria a chacota de toda a Londres. Então Lilith
teria arruinado a reputação e o futuro político dele.

— Ele é um homem bom, Lady Lilith. - Prosseguiu Latimer


com voz áspera. — Pode confiar nele. Deve estimá-la demais para fazer
algo assim.

406
Sim, pensou Lilith aturdida. Deve estimar. E saber disso não
lhe deu tanta alegria quanto pensava, de fato, teve o efeito contrário.
Não gostou, não gostou definitivamente. Todo o acontecido lhe revolveu
o estômago. Na verdade era irônico. Ambos, traídos por seus corações:
ele, comprometendo-se por ajudá-la, e ela, disposta a comprometer seus
interesses pessoais para manter o que Latimer lhe revelara em
segredo... Amava-o, e jamais o trairia dessa maneira.

Ao se levantar, Lilith notou que, sob as saias, as pernas


tremiam.

— Obrigada por me dizer a verdade. - Murmurou. — Agora


acho que você precisa descansar.

— Estou realmente um pouco cansado. - Reconheceu ele.

— Sinto muito por tudo isso, Latimer.

Diante da culpa existente nas feições de Lilith, ele fez um


gesto com a mão enfaixada, para afastar aquela ideia.

— Nada disso. Eu sabia onde pisava quando desafiei


Bronson. E se fosse preciso, faria outra vez. Embora saiba que Lorde
Angelwood será melhor aliado que eu, a senhora sabe que pode contar
comigo.

Lilith se inclinou e roçou os lábios na testa de Latimer, o


único lugar em seu rosto razoavelmente livre de cortes e hematomas.

— Virei aqui mais tarde para ver como está. - Prometeu.

Fechou a porta atrás de si e cruzou o vestíbulo apressada


até as escadas, com a cabeça e o coração repletos de pensamentos

407
sobre Gabriel, e sobre o que faria e diria quando o visse. A única coisa
que não faria, embora o desejasse muitíssimo, seria lhe contar o que
Latimer lhe confidenciara. Gabriel era muito orgulhoso, e não gostaria
que ela soubesse, mesmo que jurasse não revelar o acontecido.

Contornou as escadas perdida em reflexões, confiando em


que seus pés a levassem pelo caminho certo. Chegou à sala de bilhar e,
distraída, deu algumas tacadas enquanto esperava. E então soube com
absoluta certeza de que, se Gabriel viesse, seria só por um motivo: por
ela ter lhe pedido.



Quando o criado do Mallory's chegou dizendo que Lilith


"precisava dele", Gabriel nem se incomodou em acabar o que estivera
fazendo antes de pedir aos gritos seu cavalo. Em cima da mesa,
dispersada e sem ler, a pouca informação que tinha levantado sobre
Bronson e seu clube. Naquele momento não tinha importância.

A névoa da manhã já subia, deixando as ruas turvas. Os


cascos de Clive ressoavam sobre os paralelepípedos molhados. Gabriel
nem sequer pegara um chapéu, com certeza o teria perdido em meio ao
galope desenfreado de Clive. A neblina lhe deixou gotas na testa e
bochechas, a umidade penetrava em suas roupas, lhe impregnando a
pele com uma sensação fresca e pegajosa. Enquanto, ele e o cavalo
galopavam pela rua, abrindo caminho entre o denso tráfego e ignorando
os gritos indignados de outros transeuntes.

408
Ao cair da noite, correriam boatos sobre o Conde de
Angelwood ter galopado pelas ruas da cidade como um louco. Alguém
contaria que o vira entrar às pressas no Mallory's bem antes de o clube
abrir suas portas, e os fofoqueiros fariam especulações sobre o que
estaria havendo para que um nobre se comportasse de forma tão
imprudente. Sem dúvida, alguns cavalheiros fariam algumas sugestões.
E no fim daquela noite, antes que os clubes fechassem suas portas, em
todos os livros de apostas estariam os nomes dele e de Lilith em quase
todas as novas apostas.

"O escândalo." Gabriel havia tentado evitá-lo com todas as


suas forças durante uma década. Aquilo o fizera temer, agora, só o
aborrecia e estava mais que disposto a enfrentar qualquer coisa. Que
falassem. Somente Lilith lhe importava. Inclinou-se sobre o pescoço
forte de Clive e o esporeou. Com as abas do casaco plainando atrás dele
como um par de asas cinzas e brilhantes, via apenas passar as sombras
dos prédios na cidade.

Quem dera soubesse voar, já estaria junto dela.

Um criado do estábulo o esperava para cuidar de Clive.


Gabriel levantou a perna acima da cabeça do cavalo e saltou ao chão,
enquanto jogava as rédeas nas mãos do rapaz. Apenas lembrou-se de
murmurar palavras de agradecimento antes de correr para a entrada do
clube. Em seguida ficou a par da situação, era grave, não foi Latimer
quem lhe abriu a porta. Se o gigante abandonara seu posto era por
estar ao lado de Lilith, e se estava ao seu lado era porque Lilith tinha
problemas.

— Onde ela está? - Perguntou ao entrar.

— Na sala de bilhar, Sua Senhoria.

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Com um gesto rápido de assentimento, Gabriel cruzou
correndo o vestíbulo e virou à esquerda, para a sala de bilhar. Diante da
porta hesitou. E agora? Entrava como um louco ou deveria bater? O
criado lhe havia dito: "Lady Lilith precisa do senhor." E Lilith só lhe
mandaria uma súplica tão evidente se necessitasse realmente. Agarrou
a maçaneta e a girou. A porta se abriu... Mas Gabriel não encontrou
olhares inquisitivos. Nada, apenas uma figura solitária, curvada sobre a
mesa de bilhar, fazendo rolar preguisosamente uma bola vermelha na
superfície da mesa.

Ela levantou o olhar quando ele fechou a porta. Tinha os


olhos brilhantes, cheios de lágrimas que ainda não transbordaram pelo
rosto muito pálido. Parecia jovem, uma menina que lhe tivessem tirado
ainda mais de sua inocência. Nenhum dos dois se moveu. Então, com
uma voz que era pouco mais que um sussurro de surpresa, ela disse:

— Você está aqui...

— Chamou-me.

Então foi quando as lágrimas transbordaram.

Lilith levou uma mão aos lábios e sentiu o rosto molhado.


Depois inclinou a cabeça e apoiou a outra mão na mesa, enquanto os
soluços lhe sacudiam todo o corpo.

Algo dentro de Gabriel, muito perto do coração, quebrou-se


ao ver seu pesar. Tirou o casaco e as luvas, cruzou o tapete com
rapidez. Ela se deixou cair em seus braços e enterrou o rosto em seu
peito, sem se importar com as roupas umedecidas pela neblina. Ele não
a acalmou, deixou-a chorar o quanto precisasse. Não esperaria muito.
Lilith não era uma dessas pessoas que deixam as emoções governarem
por muito tempo, e menos ainda quando havia assuntos urgentes.

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Ao cessar os soluços, Gabriel puxou do bolso um lenço e o
ofereceu. Ela se assoou com a elegância de um ganso grasnando.
Gabriel sorriu e perguntou:

— O que houve?

Lilith levantou os olhos, brilhantes de lágrimas.

— Latimer. - Sussurrou, enquanto o queixo tremia. — E tia


Imogen.

Lilith deve ter descoberto que lhe dissera a verdade sobre


sua tia. Certamente, entendia que estivesse decepcionada com a tia e
também sentindo-se um pouco culpada, mas isso não era motivo para
tantas lágrimas.

— O que há com Latimer?

— Bronson. - Foi a resposta vacilante. — Deu-lhe uma


surra. Ah, Gabe! Ele o machucou tanto, e tudo por minha culpa!

Agora sim a acalmou, temendo que voltasse a chorar antes


de ouvir toda a história. Esfregou-lhe as costas de um modo que parecia
tranquilizá-la e perguntou:

— Por que acha que a culpa é sua, Lilith?

— Latimer o enfrentou na outra noite para me defender, e


agora Bronson se vingou nele! Latimer não teria apanhado se eu não
tivesse enfrentado Bronson sozinha!

411
Gabriel não soube se ria ou a sacudia. Só ela mesmo para se
culpar pelos atos dos outros.

— Lilith, o trabalho de Latimer é protegê-la. Não se sinta


culpada. E pelo que ouvi por ai, ele e Bronson têm algumas desavenças,
cedo ou tarde estavam destinados a ter um confronto. Mas ele está
bem?

Ela confirmou com um gesto enquanto levava o lenço ao


nariz.

— O médico disse que terá que ficar de cama algum tempo


para que as costelas se calcifiquem, mas se recuperará.

— Ótimo. - Ele declarou em um tom animado.

Gabriel lhe empurrou os ombros e olhou seu rosto. Não viu


nenhuma lágrima nem estremecimento.

— Podiam tê-lo matado.

— Mas não o fizeram. - Lembrou-lhe com severidade. — E


você deveria estar feliz em vez de remoer o que poderia acontecer.

Ela baixou o olhar e fez um gesto de assentimento.

— Tem razão.

Então Gabriel lhe pôs as mãos nos ombros. Estava grato por
Bronson decidir desforrar sua raiva em Latimer e não em Lilith, mas
Bronson não era idiota. Sabia que um ataque a Lilith poria um Gabriel
furioso atrás dele, e o porteiro de um clube daria bem menos
represálias do que enfrentar um nobre.

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— O que vocês disseram a polícia?

Logo após perguntar, e antes de notar a rigidez sob suas


mãos, soube que devia ter lhe perguntado "se" chamou à polícia.
Parecia que chamar a polícia estava fora de questão.

— Chamou a polícia, Lilith?

De um puxão, ela escapou de seu abraço e rodeou devagar a


mesa, como se precisasse pôr certa distância entre eles.

— Claro que não!

Gabriel foi atrás.

— Por que não?

— Porque se procurar a polícia, Bronson terá muito mais


gana de vingar-se!

— Mas se não procurar, deixará que Bronson saia impune!

Ela o olhou de frente, braços cruzados e os olhos brilhantes.

— Na próxima vez, pode muito bem matar Latimer ou outro


dos meus criados.

— Não é Latimer quem me preocupa. - Disse Gabriel com


um grunhido. — É você!

— Sei disso. - Replicou ela em voz baixa.

413
Os ouvidos de Gabriel zumbiram. Sabia? Onde estavam as
acusações e as recriminações?

— Encontrei sua carta.

Tinha encontrado o quê? Que carta? Ao ver que ficava


calado e perplexo, Lilith explicou:

— A que escreveu a tia Imogen. A qual lhe respondeu


dizendo que não sabia onde eu estava.

Ah, descobrira a verdade... Devia sentir-se feliz por Lilith


finalmente acreditar nele, mas não estava. Principalmente, sabendo o
quanto a traição de sua tia devia lhe doer. Todas as pessoas com quem
contara na vida a tinham traído e abandonado. Seus pais, a tia... ele.

Lilith olhava, alternadamente, Gabriel e o chão.

— Tia Imogen a guardou, e também o anotou em seu diário.


Não sei o porquê, mas fiquei aliviada por tê-lo feito. Gabriel sinto muito
por ter duvidado de sua sinceridade.

Suas palavras o emocionaram e o encheram de felicidade,


mas sentiu pouca satisfação ao ouvi-la admitir que estava errada.

— Entendo muito bem porque você desejava acreditar em


sua tia. - Declarou em voz baixa. — Ela a amava, e só pensou em fazer
o melhor para você.

Com expressão de cansaço, Lilith assentiu, embora não


parecesse convencida. Não era preciso falar mais da questão. Naquele
momento os atos da falecida pareciam insignificantes comparados com
os problemas que tinham. Agora Lilith sabia a verdade, mas isso não

414
mudava muito as coisas, até, pelo menos, Gabriel colocar em marcha
seu novo plano. Ele temia a ameaça de Bronson. Agora a primeira e
única prioridade dele era a segurança de Lilith.

— Quero que me conte tudo o que sabe sobre Bronson. -


Pediu quando se sentaram no sofá. — Tudo.

Houve um momento de silêncio enquanto Lilith punha em


ordem suas ideias, não queria omitir nada.

— A primeira vez em que me encontrei com Bronson foi


pouco depois de inaugurar meu clube. Fez-me o que chamou de uma
visita "amistosa", e me avisou de quantos concorrentes podia ter este
negócio, e de que não era uma função apropriada para uma dama como
eu. Eu o tomei por um conquistador barato com ares de superioridade,
nada a sério. Foi meu primeiro erro.

Levantou o olhar para Gabriel, como se esperasse que ele


assentisse, mas este não disse nada e se limitou a sorrir. Lilith
prosseguiu:

— Quando o negócio começou a deslanchar, voltou e desta


vez suas ameaças foram um pouco mais evidentes, mas continuei a
acreditar que não era um perigo. Não acreditei, nem por um instante,
que as coisas chegariam a... isso.

Gabriel lhe deu um rápido apertão na mão. Era difícil


manter-se tranquilo e não deixar-se levar pela cólera, mas Lilith
precisava de apoio, não que ficasse a gritar descontrolado.

— Claro que não. Bronson pode ser dissimulado quando


quer. Quando percebeu que ele falava a sério?

415
— Na primeira vez em que fomos roubados e depois
descobrimos que todo o carregamento de brandy daquela semana foi
encontrado destruído. - Respondeu. — Isso foi há seis ou sete meses
atrás. Depois disso outros carregamentos também sumiram, e
finalmente arrombaram o escritório do clube. Na noite em que o
encontrei bisbilhotando, pensei que os ladrões de Bronson tinham
voltado.

Gabriel ficou rígido. Naquela noite ele não sabia de Bronson,


mas, apesar de tudo, uma pontada de culpa lhe atravessou o coração...
E se perguntou o que estaria Bronson tramando agora. Cada vez lhe
parecia mais ameaçador... Tentou não pensar no assunto.

— Depois disso não o encontrou até a noite em que fomos ao


teatro.

Lilith sacudiu a cabeça, deu a impressão de que seus


pensamentos, como os dele, afastaram-se dali.

— Não, só apareceu aqui no clube depois da discussão que


tivemos. Nunca antes se atreveu a me ameaçar de forma física até
então.

— E não voltará a fazê-lo se depender de mim. - Proclamou


Gabriel se levantando. — Sei que você não deseja, mas vou avisar à
polícia.

— Não! - Lilith se levantou de um salto atrás dele. Não vai


fazê-lo! Só conseguirá fazer Bronson ansiar por mais vingança.

Gabriel a olhou com uma expressão tão inflexível quanto


pedra e disse:

416
— Então, vai fechar o clube.

Ela fitou boquiaberta.

— Não darei essa satisfação a Bronson de jeito nenhum!

— Pois então avisaremos à polícia. - Decidiu ele em tom


prático. Não o dissuadiria da decisão.

— Gabriel, esta decisão não é sua.

— Tornou-se um assunto meu no minuto em que Bronson a


ameaçou pela primeira vez. - Afirmou com voz tranquila, mas inflexível.
— E a decisão é minha desde que me pediu para vir aqui. É meu
assunto porque é seu assunto, e se você não quer tomar a atitude mais
viável, cabe a mim tomar as medidas necessárias.

Furiosa, com os braços cruzados, Lilith lhe cravou os olhos.

— Mas, o que acha que Bronson fará quando descobrir que


mandei à polícia atrás dele?

Gabriel arqueou uma sobrancelha e cruzou os braços.

— E o que você acha que ele fará se deixar as coisas por isso
mesmo e ainda mantiver o clube aberto?

Olhou-o fixamente, e ele quase sentiu o gelo de seu olhar,


mas manteve a posição.

— Muito bem... - Aceitou de mau humor. — Vá à polícia


então.

417
Ele se aproximou e apoiou as mãos em seus ombros. Sabia
que era uma pequena vitória, mas, mesmo assim, tirava-lhe um peso
enorme de cima.

— Farei que mandem um agente o mais breve possível. -


Disse com voz grave e fez uma pausa. Precisava lhe dizer como se
sentia, mas não parecia encontrar as palavras. — Não sei o que faria se
a perdesse.

Ela o fitou com os olhos verdes arregalados. Ele, incapaz de


deter sua confissão, agora que tinha começado, murmurou:

— Perdi você uma vez. E agora não vou tirar os olhos de


cima.

— De vez em quando terá que fazê-lo. - Lembrou. — Tem


seus compromissos, os negócios e o Parlamento...

Há várias semanas Gabriel não ia a Câmara, voltaria à


tribuna logo que tivesse tomado uma decisão, tão logo reunisse a
coragem e sobre tudo, a convicção. Ela levantou a mão e acariciou com
os dedos seu rosto, o coração bateu acelerado ao sentir a leve carícia.

— Obrigado por vir quando mais precisei de você.

Gabriel lhe agarrou os dedos.

— Sempre estarei com você.

E assim seria. A promessa singela fez Lilith engolir um nó


amargo na garganta. Os dois estavam condenados. Cada um tão
apaixonado pelo outro, e entretanto, condenados a viverem juntos e
sozinhos... Sim, ela desistiria do clube por ele, mas algum dia

418
inevitavelmente lhe jogaria na cara. Tanto quanto sabia que ele, mais
cedo ou mais tarde, acabaria descarregando nela o fato de ter sido
forçado a comprometer seus princípios. Como se não os tivesse
comprometido já o bastante...

Lilith ficou nas pontas dos pés e o beijou, devagar o


conduziu para trás, para o sofá. Sem perder o contato, empurrou-o e o
obrigou a sentar-se nas almofadas, guiando seus movimentos até que o
tinha estendido no sofá, e então se inclinou sobre ele. Em seu interior
brotava uma necessidade quente e ansiosa, físico, mental e tão
agudamente emocional que chegava a doer. A urgência de senti-lo
dentro dela, era frenética, como se introduzir o corpo dele no seu fosse
primordial, algo em que pudesse se agarrar muito depois de que ele se
fosse. E mais ainda, intimamente sentia a necessidade de provar a ele o
quanto significava para ela o que fizera. Não podia dizer-lhe, sem que
traísse Latimer, de modo que precisava demonstrar sua gratidão da
única maneira que sabia. Apesar da aparência destemida e corajosa que
sempre adotava, precisava dele e de sua força.

As mãos dele lhe acariciavam os seios e espremiam seus


mamilos através do tecido fino do vestido. Dedos que apertavam forte e
lhe arrebataram leves gemidos, em uma deliciosa mistura de prazer e
dor. Então Lilith deslizou a mão entre os dois e notou o contorno duro
que começava a empurrar nas calças. Rapidamente desabotoou as
calças dele para libertar a cabeça brilhante que o tecido escondia,
acariciando sua dureza com a palma da mão. Junto aos lábios dele,
sussurrou:

— Já está duro, para mim.

Gabriel grunhiu quando os dedos dela se envolveram em


torno dele.

419
— Se fosse possível, ficaria duro para você o tempo todo.

Lilith levantou a parte inferior do corpo para levantar as


saias e colocar a virilha sobre a dele. Também estava úmida, pronta e
ansiosa. Gabriel nem precisava brindá-la com carícias íntimas, para
que aquele ponto entre suas pernas pulsasse de desejo e ansiedade, só
tinha que estar presente. Então foi baixando devagar, estremecendo na
medida em que seu corpo se abria diante da carne grossa e quente dele.
Um doce estiramento e uma sensação de plenitude deliciosa a
invadiram. Quanto mais fundo o membro penetrava, mais sentia sua
alma e coração exultarem. Não só seus corpos se uniam, mas também
se fundiam em uma só vida, em vez de serem dois seres independentes.

Pequenos formigamentos lhe percorreram as coxas quando


aquela parte contraída dela foi penetrada pelo membro quente. Gabriel
a observava com os olhos entrecerrados, sem deixar de lhe acariciar os
seios, enquanto as curvas das nádegas dela pousavam em suas coxas e
os joelhos lhe roçavam as costelas.

— Incline-se. - Ordenou-lhe, com a voz grave e rouca.

Tremendo de desejo, até o ponto de cada nervo do corpo


dançava de prazer, Lilith o obedeceu. O movimento fez seu montículo
comprimir a pélvis firme dele, e aumentou-lhe o desejo que sentia entre
as pernas. Então pressionou para baixo e trabalhou os quadris com os
dele, ofegando quando toda a longitude dele a preencheu e ondas de
prazer corriam por seus corpos.

— Mais perto. - Grunhiu ele, baixando o decote de seu


vestido.

Ela se inclinou mais. Pôs as mãos no braço do sofá para


apoiar-se melhor, mas os músculos dos braços e ombros tremiam ao

420
ficar sobre ele, com os seios a centímetros de sua boca. Ouviu-se o som
do tecido rasgar, Gabriel rasgou o corpete, expondo o seio direito. Ele
abocanhou o mamilo erguido e nu. Lilith gritou ao sentir os lábios
sequiosos, o desespero e fome dele em sua pele sensível, lento e
cuidadoso. Enquanto sincronizava os movimentos das pélvis, a língua
dele seguindo o mesmo ritmo dos quadris.

Ela o cavalgou. Abriu as pernas o quanto lhe permitia o


espaço do sofá, para que a penetrasse até o âmago, e com cada
empurrão, com cada golpe quente e úmido, pudesse se aproximar mais
e mais do êxtase.

— Oh, Gabe. - Gemia.

Quis lhe dizer tantas coisas, compartilhar... Por exemplo,


como se sentia ao tê-lo tão dentro dela... Mas não encontrava as
palavras. Como lhe explicar aquele ato, tão antigo e natural, era mais
vital do que ele imaginaria? Que estar unida a ele, a tornava inteira,
completa, e que, embora seu corpo a levasse ao orgasmo, não queria
que aquilo acabasse jamais? E como dizer que, embora estivesse tão
dentro dela, não era o suficiente? Que queria não só seu corpo, mas
também seu coração e alma? Como lhe dizer que desejava devorá-lo,
sem assustá-lo com o desespero de seu desejo?

Era impossível. De modo que baixou, levantou-se com um


desespero que chegou a aturdi-la, arqueando as costas para tornar
mais profundo cada impulso. E chegando os espasmos, que a agitaram
como a tempestade agita um mar revolto, lançou seu corpo trêmulo
para cima e para baixo sobre o dele até senti-lo corcovear debaixo dela.
Então parou e lhe tirou seu peito da boca e enquanto o prazer dançava
por todo seu corpo, Lilith contemplou Gabriel jogar a cabeça para trás e
grunhir em êxtase.

421
Manteve-o dentro de si até que ficou quieto e as respirações
dos dois se acalmassem.

— Por que fez isso? - Perguntou ele, sem fôlego.

Lilith sorriu. Não soube o que responder. Em vez disso,


beijou sua testa úmida e se levantou sobre ele. Seu corpo gritou em
protesto.

"Amo você", disse com o coração enquanto o olhava. "Quero e


preciso tanto de você", disse com a alma quando lhe sorriu. E em voz
alta, disse:

— Avise à polícia.

Era a única declaração que podia lhe fazer.

422
Lilith só impôs uma condição para Gabriel notificar à polícia:
que a reunião fosse na delegacia, em vez de um agente vir ao Mallory's.
Teoricamente seria uma precaução se acaso Bronson estivesse vigiando
o clube. Gabriel quase lhe disse que se Bronson tinha gente vigiando,
também mandaria que os seguissem, mas não quis assustá-la ainda
mais.

Fizeram o breve percurso até os arredores de Covent Garden


em relativo silêncio, embora de vez em quando Lilith lhe perguntasse o
que sugeriria Duncan Reed, um dos magistrados da polícia, sobre como
dirigir a situação. Logo os dois se calaram, absortos em seus próprios
pensamentos.

A carruagem parou diante da Bow Street, a Central de


Polícia, antigamente composta de apenas um edifício, o número quatro
da rua, anos depois se acrescentou o edifício contiguo para dispor de
mais espaço. O número três era uma edificação mais longa e larga,
conhecido como "Os aposentos dos traidores", pois sempre havia
problemas nos calabouços. O edifício não tinha nada de particular, sua
fachada já desgastada pela fuligem e anos, se elevava, alta, estreita e
sem adornos, entre o Armazém de Ostras de Johnson e O Urso Pardo,

423
um bar que servia também de lugar de detenção quando havia
necessidade de mais espaço. Na verdade, o aspecto da Bow Street não
tinha nada extraordinário. Mas, claro, a Bow Street não era só um
conjunto de edifícios. Sua importância estava nos homens de jaquetas
vermelhas, nos agentes e detetives treinados pelo entusiasta e
meticuloso Duncan Reed, aquele departamento público tinha uma
sólida reputação de agentes comprometidos em manter a lei.

Os levaram ao escritório de Reed com uma presteza que


agradou a Gabriel. Nem por um segundo pensou que o magistrado
notara seu título e posição. Reed estava sentado de costas para a porta,
algo que Gabriel, em seu lugar, jamais faria, parecia um desafio a tudo
que tentasse surpreendê-lo. Quando se levantou e se voltou para
saudá-los, Gabriel se chocou com a juventude do homem. Não parecia
muito mais velho que ele. Reed tinha os olhos e cabelos castanhos, e
feições que lhe davam um certo ar de lobo. Aquele homem podia
despertar receio entre os malfeitores, mas lhe despertou confiança, ele
colocaria Bronson entre as grades.

Uma vez feitas as apresentações, e já sentados diante da


mesa de carvalho do magistrado, Gabriel lhe agradeceu por recebê-los
tão prontamente. Com um gesto, Reed deixou de lado o agradecimento e
lhe disse, em termos firmes, embora não ofensivos, que aquilo não
tinham lugar ali. Era seu trabalho, enquanto fixava seu olhar gélido em
Lilith e acrescentou em tom tranquilo:

— Li em sua carta que Lady Lilith se encontrava em perigo.


Que tipo de perigo?

Gabriel se limitou a ouvir enquanto Lilith repetia a história


que ele já conhecia. Não se esqueceu de nada, deu detalhes ao
magistrado sobre tudo o que Bronson fizera contra ela e seu clube, e

424
acabou com o ataque a Latimer no dia anterior. Então Reed levantou o
olhar das anotações que tinha rabiscado.

— Já ouvi falar de Bronson. - Disse com sua voz tranquila.


— Sei que é um homem muito perigoso, senhora.

Lilith assentiu, e seus lábios compuseram um rictos muito


pouco alegre.

— Bem, estou começando a descobrir, senhor Reed.

— O que devemos fazer? - Perguntou Gabriel, a frustração


acabara de pôr fim ao seu silêncio.

O olhar escuro do magistrado procurou o seu. A maioria das


pessoas vindas da classe inferior, jamais se arriscaria a lançar a um
nobre um olhar tão direto e descaradamente calculador, mas Duncan
Reed não ganhou sua reputação por ser como a maioria.

— Como Sua Senhoria acompanhou à proprietária do


Mallory até aqui, então creio que são bons amigos.

Embora no tom não houvesse nenhum indício de brincadeira


ou malícia, as bochechas de Gabriel arderam. A questão de serem ou
não amantes não era assunto de ninguém, só deles. Mas a sociedade
não veria assim. Já andavam dizendo que Gabriel se parecia um pouco
com seu pai ao misturar-se com Lilith e seu clube. Mas podia suportar
a comparação.

— Sim somos. - Replicou friamente.

425
— Então, se quer mantê-la a salvo, sugiro que fique perto
dela o máximo que puder. Não é provável que Bronson faça algo se
houver um conde no meio.

— Ele já atentou contra nós em minha carruagem.

— Creio que seu objetivo era assustá-los mais do que fazer


mal a um dos dois. Bronson não se arriscaria a perder seus clientes da
nobreza ferindo um dos seus.

Aquilo fazia sentido, mas Gabriel não estava preparado para


acreditar completamente. Bronson era escória das ruas, um homem que
não se deteria diante de nada para conseguir o que queria. Se decidisse
tirar Gabriel do caminho, sem dúvida encontraria uma forma de fazê-lo
e sem que restasse indícios que o levassem a ele. Gabriel precisava
estar duplamente em guarda se desejava manter Lilith a salvo.

Pouco depois, quando saíam da Bow Street, Gabe afirmou:

— Vou contratar guardas para o clube.

Ela, que esperava que o criado lhe abrisse a porta da


carruagem, replicou:

— Mas ficará evidente a Bronson que...

— Então terá que fechá-lo.

Lilith nem sequer o olhou.

— Por favor, já conversamos sobre isso. Não vou fechar.

426
Com um suspiro de frustração, ele se inclinou sobre seu
ombro e, para que o criado não pudesse ouvi-lo, disse em um sussurro:

— Então vou começar a passar mais tempo em seu clube.

Ela encolheu os ombros.

— Será bem vindo.

— De dia. - Acrescentou ele. — E a noite toda.

Ao subir à carruagem, Lilith lhe dirigiu um olhar incrédulo.

— De maneira alguma!

Ele entrou atrás e disse:

— Então vai para minha casa.

Golpeou o teto para indicar ao condutor que partisse,


enquanto ela o olhava boquiaberta.

— De jeito nenhum, você não vai ficar no clube e eu


certamente, não vou ficar na sua casa.

Gabriel sorriu. Podia discutir o quanto quisesse, que não


valeria de nada.

— Então ficarei no clube permanentemente.

— Não. - Declarou Lilith com os dentes apertados. — Não vai


ficar. Imagine os rumores...

427
Ficava adorável quando se zangava. Gabriel cruzou os
braços.

— Minha querida, já estão falando. Então lhes daremos mais


do que falar.

Com o cenho franzido, ela o cutucou com o dedo no peito.

— Está louco. Sabe muito bem que não podemos viver sob o
mesmo teto. Pense no que dirão seus amigos e aliados políticos.

Ah, era a sua reputação que a preocupava, não a dela. Com


um preguiçoso encolher de ombros, Gabriel respondeu:

— Pouco me interessa o que dizem de mim.

— Pois deveria lhe interessar, principalmente se deseja o


apoio político para acabar com o jogo.

O sorriso dele sumiu. Lilith tinha razão. Devia se importar.

— Talvez tenha mudado de ideia sobre isso.

Ela riu. Não acreditava. Sinceramente não a culpava por


isso, mas ainda assim, o incomodou.

— Agora sei que está brincando. - Disse Lilith. — Nunca


alterou sua opinião sobre nada.

— Mudei meu parecer sobre muitas coisas. Como o mais


importante, meu orgulho ou você.

428
— Então, mude seu parecer sobre isto. Não vai viver em
minha casa.

Se acaso as feições dela não deixavam as claras seu


argumento, o tom de suas palavras não admitia negativas. Ele soltou
uma risadinha, estava resolvido a ganhar, mas adorava uma boa
refrega.

— Não vejo como.

— Gabriel, minha reputação neste instante já é bastante


ruim. O que acha que acontecerá se permitir que viva comigo?

Oh, que golpe baixo. Aquele tom de súplica combinado a


expressão doce e os olhos arregalados. Quase o convenceu. É claro que
ele não queria prejudicá-la, e ela sabia. Ah, que bela raposa, mas por
quem me toma.

Gabriel se inclinou para frente e deslizou a mão sob as


saias. Lentamente, seus dedos subiram pela delicada seda da meia,
além da liga bordada, até a carne macia e nua da coxa, e subiu mais
acima. Ela conteve o ar nos pulmões.

— O que lhe parece melhor, Lil? - Perguntou enquanto abria


com os dedos os lábios quentes de seu sexo e acariciava sua umidade.
— Conservar sua posição social atual ou me ter em sua cama todas as
noites?

O olhar que lhe lançou foi de puro fogo, e o derreteu até a


medula.

— Bem, se coloca as coisas assim...

429


— Percebe que está cometendo um suicídio político?

A secura e decepção na voz de Blaine não pegou Gabriel de


surpresa. Acabara de informá-lo que iria morar com Lilith, embora não
tivesse por que, e certamente o admoestaria por tomar essa decisão.
Afinal fora Blaine quem o incentivou a entrar no meio político,
insistindo que seria o melhor modo de honrar a memória do pai e
acabar com o jogo. Com ar indiferente, sem deixar de examinar com
atenção as cartas que tinha diante de si, no escritório, Gabriel
respondeu:

— Se precisar, abandono minha cadeira no Parlamento.

— Não fala a sério!

Gabriel levantou a cabeça e sorriu ao ver o espanto do


amigo.

— Não. Não é que pense em desocupar meu assento na


Câmara, pelo menos, nesse momento, mas andei pensando em outras
coisas.

Blaine fez um gesto negativo, afundou em uma poltrona


próxima.

— Posso perguntar em que coisas?

430
Em casamento, por exemplo, mas isso não era assunto dele.
O anel de compromisso da mãe de Gabriel estava na mala, preparado
para acompanhá-lo a casa de Lilith, e pronto para deslizar no dedo dela
no instante em que ela aceitasse sua proposta de casamento. Não se
exporia a zombaria da sociedade se ela pensasse em não aceitar. Ela
confessara que o amava e ele se declarara também, isso sem mencionar
que estava mudando sua opinião sobre o jogo. Os dois se amavam. Ele
nunca deixara de amá-la.

— O jogo. - Respondeu depois de um prolongado silêncio. —


Pensei que ao invés de tentar aboli-lo, creio que seria melhor criarmos
leis que regulem os tipos de jogos e os clubes que o promovem.

Sentiu-se mal ao ver a expressão de Blaine. Parecia tão...


Traído.

— E a promessa feita a seu pai? - Insistiu, a voz tremia de


raiva e frustração. — Não significa nada para você, agora que
reencontrou Lilith?

Enfurecido, Gabriel se esforçou em dominar seu gênio. Seria


muito fácil dizer a Blaine que aquilo não era assunto dele, mas não
seria correto. Era um bom amigo. Semelhante lealdade e amizade não
se devia jogar pelo muro por questões de opinião. Em tom grave,
recordou-lhe:

— Prometi a meu pai que faria o possível para evitar que


acontecesse a alguém o que aconteceu com ele. Mas tentar erradicar o
jogo não resolverá o problema.

Levantou-se e cruzou o tapete até chegar ao móvel de


bebidas.

431
— Nos últimos dez anos conseguimos algo além de pilherias
e risos? Não. Nunca faremos com que as pessoas deixem de jogar,
Blaine.

Serviu uma taça de porto a cada um, e Blaine tomou sua


bebida sem falar. Gabriel sentou-se diante dele e prosseguiu:

— Pessoas como meu pai sempre encontrarão uma partida


de dados ou cartas, é um vicio permanente. Só podemos atenuar a
situação proibindo apostas altas dentro dos clubes e fiscalizando os
estabelecimentos, proprietários e funcionários para que não haja
trapaças ou fraude.

Blaine o olhou nos olhos.

— E proibir jovens estúpidos de perderem seus parcos


rendimentos.

Gabriel esboçou um sorriso.

— Exatamente. Exigir mais dos clubes, e instaurar normas


que protejam tanto os clientes quanto os estabelecimentos.

Aquilo pareceu interessar ao Visconde.

— Talvez possamos impor limites ao que uma pessoa ganha


ou perde em cada estabelecimento.

Gabriel bebeu seu porto e confirmou com a cabeça.

— Ou nas partidas. E também exigir que as notas


promissórias tenham testemunhas para impedir falsificação e fraude.

432
Ou que haja um fiscal imparcial que observe as mesas e se assegure de
que o crupier e os jogadores se comportem de forma honrada. Até
mesmo, retirar um cavalheiro da partida se estiver muito embriagado
para jogar com sensatez.

Havia tantas coisas que poderiam fazer. Embora Gabriel


soubesse que não seria fácil elaborar essas leis e aplicá-las, sem
duvida, seria mais fácil melhorar o sistema que eliminá-lo. Blaine o
olhou como se o visse pela primeira vez, realmente, apesar de ser um
homem feito, Gabriel se emocionou com a expressão do amigo.

— O que posso fazer para ajudá-lo? - Perguntou-lhe Blaine.

— Gostaria de seu apoio, meu amigo. - Respondeu Gabriel.

— Já o tem.

Todo o ar que Gabriel ignorava estar contendo nos pulmões,


saiu em um suspiro de alívio.

— Obrigado.

O olhar de Blaine se desviou até o quadro que havia sobre a


lareira, e Gabriel fez o mesmo. Phillip Warren lhes devolveu o olhar.

— Creio que ele ficaria muito contente com sua decisão. -


Blaine declarou.

Gabriel observou o retrato. Durante muitos anos o sorriso no


rosto de seu pai só lhe serviu como uma dolorosa lembrança de uma
morte trágica e sem sentido. Agora sua expressão lhe parecia feliz,
quase contente, como se dissesse ao filho que finalmente tudo daria
certo. E naquele momento Gabriel queria acreditar que seria assim.

433
"Parece que desta vez farei a coisa certa, papai. Não só pelo
senhor, mas por Lilith e para mim."

E de cima da lareira, o falecido Conde de Angelwood sorriu


em paz.



— Como ele está?

Mary saía do quarto de Latimer quando Lilith entrou no


cômodo silencioso. Seu rosto mostrava a tensão do dia, mas conseguiu
sorrir.

— Bem. Dei-lhe um pouco de láudano, assim descansará


devidamente.

Lilith confirmou com a cabeça.

— Bom. Estava preocupada em que insistisse a voltar ao


trabalho.

Fez um gesto a Mary para que a acompanhasse e saíram ao


corredor. Se Latimer dormia, não queria perturbá-lo, e se estava
acordado, não queria que ouvisse a conversa. Só Mary sabia que ela e
Gabriel tinham procurado Duncan Reed.

434
Fechou a porta atrás de si e olhou de um lado a outro no
corredor antes de Mary perguntar em um sussurro:

— Como foi a conversa com Duncan Reed?

Igualmente baixo, Lilith respondeu:

— Bem. O senhor Reed vai pôr agentes para vigiarem o


Mallory's e Hazards se por acaso Bronson tentar algo.

Um leve sorriso cruzou os lábios de Mary.

— E o que pensa o seu Conde Angelical sobre isso?

Lilith fez um gesto negativo.

— Cismou que vai passar mais tempo aqui. Dia... E noite.

Mary a olhou boquiaberta.

— E você vai permitir essa loucura?

— Não tive muitas alternativas.

Um rubor quente subiu-lhe pelo pescoço e rosto ao lembrar-


se de como Gabriel a convencera a permitir aquela situação tão
perigosa. Não era uma boa ideia e sabia disso. Não desejava prejudicar
ainda mais a reputação dele, mesmo que em outro tempo, a ideia fosse
por demais tentadora. Não queria rumores envolvendo Gabriel, nem que
especulassem sua honra, e tê-lo ali, vivendo com ela, complicaria as
coisas ainda mais. No final, a separação se tornaria mais difícil e

435
dolorida. O que ela queria e o que ela sabia que não poderia ter, eram
duas coisas bem distintas, e não sempre era fácil mantê-las separadas.

Mary a olhou com expressão astuta.

— Ele se acha capaz de protegê-la melhor que a polícia?

Lilith suspirou e esfregou a nuca.

— Gabriel acredita que ninguém é mais capaz do que ele.

Era como se a amiga tentasse esquadrinhar seus


pensamentos através dos olhos.

— E o que você acha?

Lilith soltou uma risadinha.

— Quase sempre tenho que concordar com ele. Mas isso não
quer dizer que eu goste.
— Pois eu gostei de que ele a mantenha longe de Bronson. -
Mary comentou. — Pessoalmente, estou encantada pelo Conde tê-la
obrigado a deixá-lo agir a sua maneira.

Outro suspiro.

— Certamente, a situação causará fofocas, mas suponho que


isso não será nada comparado a nossa segurança. - Respondeu Lilith.
Diante do olhar surpreendido de Mary, acrescentou: — Todos estão em
perigo, Mary. Quero que me prometa tomar cuidado.

Esta perdeu um pouco de cor nas bochechas, mas assentiu.

436
— Terei.

Lilith prosseguiu, desviando um pouco o assunto.

— E o seu reverendo? Acha que terá algo a dizer sobre


Gabriel estar aqui conosco?

Mary encolheu os ombros e voltou a cabeça.

— Não falo com ele desde que lhe disse a verdade sobre meu
casamento. Eu o vi no Abrigo de Madalena, na semana passada,
quando levei as mantas que você doou a entidade. Parecia não estar
bem, mas ignorou minha presença explicitamente.

Pobre Mary. O coração de Lilith se compadecia da amiga.


Sabia o que era amar alguém e não poder estar com ele, mas ao menos
ela e Gabriel passariam algum tempo juntos. Era mais do que Mary
teria, devido a moral tacanha dele.

— Mary, e se você procurasse algumas de suas antigas


amizades? -Sugeriu Lilith. — Com sorte, talvez agora esteja viúva.

Uma risada amarga sacudiu os ombros de sua companheira.

— Duvido. Não quero me arriscar a ser encontrada por ele.

— Gostaria que eu pedisse ao senhor Francis que investigue


o caso? O pior que pode acontecer é descobrir que seu marido ainda
está vivo e você não correrá nenhum risco.

Mary a olhou e lhe pareceu ainda mais triste, como se


carregasse um peso enorme nos ombros.

437
— Ele me usou, depois me jogou como se eu fosse lixo, e
parece que não posso me libertar dele.

Lilith abraçou a amiga.

— Dê-me o nome dele, e o darei ao senhor Francis na


próxima vez que nos encontrarmos.

Mary escapou do abraço com uma exclamação:

— Ah! Quase me esqueço. Quando estavam na Bow Street, o


senhor Francis enviou um recado.

— Sério, qual era?

Mary afirmou com a cabeça.

— Disse que tinha uma informação importante e que viria


aqui por volta das três.

O olhar de Lilith voou ao pequeno relógio preso a lapela do


vestido. Eram quinze para as três.

— Então não demorará a chegar. Não adiantou o assunto?

— Como sempre, seu recado foi breve. Limitou-se a dizer que


estaria aqui a essa hora.

Que notícias lhe traria o senhor Francis? Seria algo sobre


Bronson? Talvez tivesse encontrado alguma pista que ajudasse a polícia
a colocar atrás das grades, aquele desgraçado.

438
— Preciso avisar a George para que o mande ao meu
escritório quando chegar... - Então se interrompeu, a preocupação pela
amiga, eclipsando todo o resto. — Você está bem?

O sorriso de Mary era trêmulo, mas era um sorriso.

— Sobrevivi a coisas piores que um desengano amoroso.


Faça o que precisa fazer. Em seguida lhe darei o nome para o senhor
Francis.

Lilith quase não acreditou em seus ouvidos. Esse senhor


Sweet devia significar muito para ela, já que estava disposta a se
arriscar pela simples esperança de ter enviuvado. Lilith desejou que o
reverendo fosse digno de Mary. Estendeu a mão e apertou a da amiga.

— Tudo se resolverá. Tenha esperança.

Mary não pareceu ficar animada, mas para agradá-la não se


mostrou em desacordo.

Primeiro Lilith desceu as escadas correndo para avisar a


George, o criado que ocupava o posto de Latimer enquanto ele se
recuperava, que conduzisse o senhor Francis ao escritório assim que
chegasse, e logo se dirigiu ao mesmo para registrar nos livros a
arrecadação da noite anterior. Apesar do ataque a Latimer, o Mallory's
tinha aberto. Lilith queria fechá-lo por respeito a seu leal amigo e
empregado, mas Gabriel alegou que seria exatamente isso o que
Bronson queria. Deixando de pensar com o coração, decidiu usar a
cabeça, Lilith então percebeu que Gabriel tinha razão. Sabia que
Latimer não gostaria que ela fechasse o clube por ele, então abriu.
Gabriel a ajudou na vigília, como o resto de seu pessoal, e ela visitou o
ferido várias vezes.

439
Enquanto fazia as contas, descobriu que, apesar de sua falta
de atenção, o clube tinha obtido lucros consideráveis na noite passada.
E notou que havia poucas notas promissórias, algo que a agradou
muito. Infelizmente, dois clientes excederam o limite da casa. Lilith
tentava fazê-los respeitar o limite de cinco mil libras a serem jogados na
noite, entretanto, pouco mais podia fazer. Não podia estar em todos os
lugares do clube ao mesmo tempo, e a maioria de seus empregados
vinham das classes inferiores. Se um aristocrata arrogante ou uma
dama orgulhosa armavam um alvoroço ou exigiam que lhe permitissem
apostar tanto quanto quisessem, o pessoal de Lilith quase sempre
cedia, por demais intimidado para cumprir as regras do clube.

Lilith não os culpava, embora lhe desagradasse. Se o


jogador, ou jogadora, podiam se permitir perder tanto dinheiro não
havia muito problema, mas haviam exceções, e enquanto tentavam
levantar o dinheiro, Lilith acabava com um “pagarei amanhã”. E o que
mais temia era que algum dia alguém sofresse uma grande perda em
seu clube e se matasse antes de confrontar a dívida. Com um suspiro,
tirou as folhas de papel da gaveta inferior da escrivaninha e se apressou
a redigir uma breve nota a cada cavalheiro, nas quais lhes dava um
prazo para saldar a dívida ou para combinar as parcelas de
pagamentos. E mal acabara de endereçar e lacrar as duas cartas,
quando George surgiu a porta para anunciar o senhor Francis.

O investigador entrou na sala com toda a banca de um


próspero empresário da cidade. Lilith não sabia como alguém podia
alterar seu aspecto de forma tão radical, e com tão pouco esforço,
quanto o senhor Francis. Parecia que só com uma mudança de roupa
tornava-se outra pessoa completamente distinta. Com um gesto,
apontou-lhe a poltrona que havia diante da mesa.

— Bom dia, senhor Francis.

440
— Obrigado por me receber, Lady Lilith. Sei que esteve com
alguns problemas ultimamente, e lhe agradeço por me dar seu tempo.

Com " problemas", supôs que se referia ao assunto com


Bronson.

— Seu recado deixou-me curiosa, senhor Francis.

O senhor Francis franziu o cenho.

— Realmente senhora? Pediu-me para descobrisse tudo


sobre Lorde Angelwood e seu passado, e descobri algo que talvez seja de
seu interesse.

Uma mão gelada perecia apertar o coração de Lilith.


Esquecera completamente que pedira ao investigador que investigasse a
vida de Gabriel. Tentando não corar como uma colegial patética,
replicou:

— Houve uma mudança em minha relação com Lorde


Angelwood, e agora não estou certa de querer saber a informação que o
senhor tem.

O senhor Francis assentiu.

— Lady Lilith, soube que tinha muito afeto pelo pai do atual
Conde. Estou certo?

Não se incomodou em perguntar como descobrira. O senhor


Francis também jamais diria quem fora a fonte da informação.

— Sentia muito apreço e respeito pelo falecido Conde, sim.

441
O senhor Francis deslizou uma das mãos para o interior da
jaqueta, tirou um grosso maço de papéis, entre os papéis várias cartas
lacradas, e os entregou a ela.

— Então, seja qual for sua relação com o Conde atual,


acredito que gostaria de ler isto.

Algo em seu tom de voz fez Lilith sentir um calafrio na


coluna. Parecia tão sério, Deus, parecia ter pena dela. Tal atitude a
preocupou. Contudo, tomou os papéis. O senhor Francis estava
acostumado a lhe comunicar as informações de forma oral para evitar
que ninguém mais as conhecesse. O fato de ter escrito um relatório já
era bastante estranho.

Dispôs-se a ler o relatório e abrir as cartas, quando o


investigador se levantou da poltrona. Surpresa, Lilith levantou o olhar.

— Não quer esperar que as leia?

Em geral, comentavam as informações que ele trazia. Mas o


senhor Francis negou veementemente.

— Não. Será melhor que esteja sozinha e tranquila. E se me


permite o atrevimento, quando terminar, sugiro que queime esses
papéis. Creio que será melhor ninguém mais ter acesso ao conteúdo
dessas cartas.

Aquilo a fez ter verdadeiro pavor de ler o relatório. Deus, o


que teria descoberto?

— Obrigado. - Disse ficando em pé.

442
— Não me agradeça ainda, senhora. Certos segredos é
melhor deixá-los enterrados e esquecidos, Lady Lilith. Não me sinto
orgulhoso de ser quem os desenterra.

E, depois de colocar o chapéu sobre o indômito cabelo,


inclinou a aba em uma saudação e partiu tão silenciosamente quanto
tinha chegado.

Devagar, Lilith se sentou de novo na poltrona, observando os


papéis lacrados que havia entre os papéis. Desejava realmente saber os
segredos que continham? O que podia aborrecer um homem como o
senhor Francis? Não estava certa de querer saber, mas era-lhe
impossível não ler. Agarrou o abridor de cartas com decisão, rompeu o
grosso selo do lacre e desdobrou as páginas. Havia várias notas
promissórias antigas e pagas, cada uma com uma soma superior a
anterior, e todas assinadas pelo conde de Angelwood, o pai de Gabriel.
Embora a quantia fosse surpreendente, isso não parecia ser o
problema. Sempre soubera que o pai de Gabriel gostava de jogar, e
Gabriel lhe contara que o pai dilapidara a maior parte da fortuna
familiar no jogo.

O que leu depois era um pouco mais preocupante. Eram


páginas arrancadas de um diário. Nesse momento Lilith sentiu alívio
por não saber como o senhor Francis as conseguira. Estavam escritas
com uma letra pequena e apertada, como se o autor fosse alguém de
idade. A data que havia no cabeçalho era posterior em alguns dias à
morte do pai de Gabriel. Lilith começou a ler, a metade da primeira
página localizou uma referência a Gabriel.

“Hoje recebi a quantia de mil libras do novo Lorde de


Angelwood. Pareceu-me uma quantia estaparfúdia para ser
desperdiçada com um velho como eu, entretanto, aceitei-a, fixando para
sempre o preço de minha palavra de cavalheiro. Pediu-me para que

443
nunca conte a ninguém o que vi naquele dia. Não cheguei a lhe dizer que
jamais repetiria uma história semelhante. Não é precisamente algo que se
possa usar em uma conversa social, a menos que seja o pior dos
fofoqueiros. Embora tivesse feito à promessa no momento em que aceitei
o dinheiro, não posso deixar de desejar, que naquele dia o jovem tivesse
chamado a outro...”

Lilith fez um gesto de estranheza, aquilo não tinha sentido. A


folha continuava contando como o autor lamentava ter sido Gabriel
quem o chamara, e logo comentava o preço das batatas no mercado.

Em meio a outros papéis encontrou outra página do diário,


Lilith esperava que esta fosse a resposta àquele enigma, estava ansiosa
para saber a verdade. Pela cabeça lhe passava tantas suspeitas e
pensamentos horríveis que nem sequer quis admiti-los. Só desejava
acabar com isso e saber que Gabriel não tinha nada a ver com o
assunto. Essa página estava datada antes da que acabara de ler, no dia
da morte do pai de Gabriel, o senhor Francis não as tinha ordenado.

“Chamaram-me a Mayfair hoje pela primeira vez em décadas.


Se soubesse para que me queriam, teria lhes dito que procurassem outro.
Já não tenho estômago para estas coisas. Mas conhecendo as
circunstâncias, e só para socorrer uma família tão ilustre e de categoria
social, acudi. O que presenciei me gelou e entristeceu. Um jovem, um
jovem muito aflito, consolado por outro homem de mais idade, soluçava
sobre o cadáver do pai, um homem que, pelo que sei, foi uma pessoa boa,
embora fraca, além de um pai carinhoso. Um homem que, em um ataque
de desespero, meteu uma pistola na cabeça e apertou o gatilho, dando
fim a sua vida com uma bala na têmpora e deixando que o filho limpasse
a desordem e o escândalo. Pediram-me que dissesse que a morte fora
acidental. Era tão evidente que o jovem queria proteger a reputação do
pai que me sentiria um desalmado se me negasse a fazê-lo...”

444
Os dedos de Lilith deixaram cair os papéis, que pousaram na
mesa enquanto ela, horrorizada, continuava a olhar. O pai de Gabriel se
matou por dívidas de jogo. Senhor bendito, não era de se surpreender a
opinião que Gabriel tinha sobre o jogo, e quisesse erradicá-lo. O que
pensaria dela, que dirigia um estabelecimento como o Mallory's? Como
podia fazer amor com ela, se ela pertencia ao mesmo tipo de gente que
incitou seu pai a se suicidar? Não era de surpreender que tivesse
embarcado em uma missão para proteger a Inglaterra dela e dos que
eram como ela. E por Deus, ainda queria viver ali com ela, para protegê-
la de alguém que era ainda pior. Já se comprometera demais ao jogar
no Mallory's, e agora estava ali para protegê-la! Oh, ia vomitar. Saber
que o velho Conde morrera em um duelo era uma coisa, mas saber que
tirou a própria vida, era insuportável. Claro que Gabriel não saíra a sua
procura, estivera tentando proteger a ela e a própria família do
escândalo. Deus bendito, como deve ter sofrido! Tão jovem, e ver...
Gabriel lhe dissera que segurava seu pai nos braços quando este
morreu. Devia ter tido a infelicidade de encontrá-lo naquele preciso
momento. Seu estômago voltou a embrulhar. Ah, gostaria que tivesse
estado ali para consolá-lo! Em vez disso, dedicou a vida a sentir pena de
si mesma e se perguntar o por que de não tê-la procurado, quando ele
tinha que enfrentar à morte do pai. Nem sequer lhe permitiram chorá-lo
como devia, pois precisou dedicar toda sua energia a manter a verdade
escondida e refazer a fortuna familiar. Não era de se surpreender que se
tornara um modelo de virtude, lutara para evitar um escândalo a todo
custo. Em comparação, o escândalo de sua relação com ela parecia
relativamente sem importância. E enquanto isso, ela só pensara em si
mesma. Que egoísta fora!

Como olhá-lo nos olhos, agora que sabia a verdade? E


pensar que lhe dissera que sua atitude sobre o jogo era uma quimera,
piada! Como ela o deixaria comprometer ainda mais seus princípios!
Lilith não permitiria que Gabriel fizesse mais sacrifícios e muito menos
por ela. Ele merecia algo mais que ter pessoas murmurando a suas

445
costas e que o julgassem mal por causa dela. E,
certamente, não merecia uma mulher que
apoiava o que matara seu pai.

Só lhe restara uma coisa a fazer,


mesmo que lhe fosse tão doloroso quanto uma
faca no peito, mas Lilith sabia que teria de fazê-lo. Tinha que afastá-lo
dela. Precisava que ele a tirasse de sua vida, antes que a vida suja que
levava e sua implicação com Bronson o afetassem mais. Ela não queria
ser sua ruína. Então, Lilith tomou a decisão mais dolorosa de sua vida:
fecharia o clube.

Sairia da Inglaterra, e que Deus a ajudasse, jamais voltaria a


ver Gabriel.

Gabriel desceu de sua carruagem diante do Mallory's e subiu


os degraus da entrada de dois em dois, com a vitalidade de um colegial
que volta chegando em casa da escola.

446
Não devia sentir-se tão feliz, principalmente quando Latimer
estava ferido e a segurança de Lilith em perigo, mas não podia evitar.
Sua vida política estava a ponto de dar uma guinada, e isso o
emocionava por encontrar uma forma de alcançar certo êxito. Além
disso, em sua mala um anel a esperava, se Lilith consentisse em se
casar com ele, além do mais, estaria perto dela e fariam amor como
loucos. A vida não podia ser melhor. Ah, não, um momento, sim podia
melhorar. Algum dia Lilith lhe daria um filho, ou vários. Então sua vida
seria completa.

Ainda era cedo e o lento sol do entardecer banhava a


fachada do Mallory's. Lilith estaria começando a se preparar para a
noite. Quem sabe, com sorte, ainda estaria no banho, e poderia meter-
se na banheira com ela. Com a imagem dos seios molhados e cobertos
de espuma na cabeça, Gabriel bateu a porta. Um lacaio cujo nome não
recordava o deixou passar. Parou apenas para lhe perguntar como se
chamava, e logo percorreu apressado o corredor e subiu as escadas até
os aposentos de Lilith. Encontrou-a em seu dormitório, mas em lugar
de estar até o queixo em água morna, estava vestida e tinha um aspecto
decididamente irritado. Deixou sua mala no chão e foi para ela com os
braços abertos.

— Lil, o que houve?

Ela o deteve com a mão antes que pudesse abraçá-la e,


antes de se colocar fora de seu alcance, disse somente:

— Não.

Gabriel baixou os braços. Algo estava mal. Muito mal. O que


se passara em tão pouco tempo que a alterasse desse modo, de lhe

447
oferecer seu corpo saboroso a renegar seu mero contato? Seguiu-a com
o olhar enquanto ela impunha distância entre eles.

— Lilith. - Disse. — Diga o que aconteceu.

Com os braços cruzados sobre os seios, Lilith apontou com


um gesto a cornija da lareira.

— Quero que fique com esses papéis. São seus. Precisa


queimá-los e rápido.

Papéis? Gabriel voltou a cabeça e a distância viu os papéis a


que se referia, cuidadosamente dobrados. Receoso pelo que encontraria
escrito, estendeu a mão para pegá-los com gesto indeciso. O que leu lhe
gelou o sangue, manteve tensos os dedos sobre as páginas, embora
perdesse toda sensibilidade nos braços e pernas. Levantou a cabeça
esperando ver cólera nos olhos de Lilith, mas neles só havia dor e
compaixão.

— Juro que lhe contaria, só precisava criar coragem. -


Murmurou, embora parecesse muito tarde para uma desculpa tão
pouco convincente. O comentário pareceu diverti-la, e entristecê-la.

— Sei.

O que estava acontecendo?

— Não está zangada?

Ela sorriu tão levemente que o sorriso não chegou aos olhos.

— É o que esperava? Que começasse a gritar e esbravejar?


Já fiz o bastante disso. Você não?

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— Mas a fiz passar por um escândalo, a abandonei para me
salvar. E lhe escondi a verdade sobre o meu pai.

Gabriel não entendia. Devia estar zangada com ele. Oh


Senhor, se recriminara durante dez longos anos. Tinha a obrigação
moral de ter lhe contado antes que ela descobrisse. E não importava
como ela o tinha descoberto. Ela jamais diria a ele, e isso era algo que
teria que aprender a suportar. Lilith apenas argumentou:

— Você protegeu sua família. - E com um pensamento tardio


e idiota, acrescentou: — Não estou surpresa por ter me abandonado e
não me procurado.

Não. Gabriel não a deixaria escapar assim, declarando:

— Fiz uma escolha errada.

— Não naquela situação, por que pensa isso agora?

Gabriel passou a mão pelos cabelos em um gesto de


desespero.

— Porque sei o que perdi ao tomar aquela decisão.

Lilith lhe sorriu, penalizada.

— E o que perdeu? A uma menina mal-humorada que


esperava que você vivesse e respirasse por ela?

Um pressentimento o invadiu. Não gostou de seu tom de voz,


nem a resignação que via em seus olhos. Com uma sensação de sufoco
na garganta, respondeu:

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— Expectativas que desejaria satisfazer.

Ela avançou um passo para ele, mas parou. Foi como se não
confiasse em si mesma para se aproximar.

— Ah, Gabe! É muito tarde. E sabemos disso.

O pânico quente e paralisante se instalou dentro de Gabriel,


junto com a pouca vontade de se controlar.

— Não a deixarei escapar, esperei muito para tê-la outra vez.

— Não tem escolha agora, como não tinha há dez anos. -


Declarou ela com ar triste. — Desta vez serei eu a proteger a quem amo.

Novamente Gabriel levou a mão aos cabelos. Custou-lhe


esforço em não arrancá-los pela raiz. Como ela podia fazer isso? Depois
de ter se pavoneado diante da sociedade, de onde vinha aquele sentido
de decoro fora de propósito?

— Maldição, Lilith, amo você...

Lá estava. Como ela rebateria aquilo.

Os olhos dela se encheram de lágrimas.

— Eu também o amo. Por isso o deixo.

Deixá-lo? Ele não era uma posse a ser desprezada, ou um


animal doméstico dado a um novo dono. Era um homem, maldição! O
homem que a amava, que sempre a amara. Como podia dar as costas a

450
isso? A fúria dele eclipsou qualquer outra emoção. Não a deixaria se
afastar dele. Ah, desta vez, não.

— Por quê? - Perguntou. — Apenas me dê uma boa razão


para não ficarmos juntos. É sua reputação? Não me importa o que fez
no passado.

Ela secou os olhos com as costas da mão. A súplica que


havia em seus olhos quase encheu de frustração o coração de Gabriel.
Ela levantou as palmas das mãos, implorando para que a entendesse.
Como se pudesse fazê-lo entender que estava desperdiçando a segunda
oportunidade que a vida lhes deu.

— Não sou eu, Gabe. É você. Pense em seu modo de vida,


seus amigos, princípios e reputação. Acha realmente que temos futuro?
- Como ele continuava em silêncio obstinado, prosseguiu: — A nobreza
não me aceitará jamais. Rirão as suas costas por ter se deixado caçar
por uma mulher como eu. Tudo pelo que se esforçou tanto na Câmara,
será por nada.

A mandíbula dele se crispou.

— Não me importa.

Mas não pareceu convencê-la.

— Por quê? Lutou anos para alcançar esse objetivo. E vai


jogar tanto esforço no lixo por mim?

— Sim.

Isso e todo o resto, só por tê-la. Como fazê-la entender que


sem ela só haveria o vazio? Gabriel queria aceitar a herança de seus

451
pais. Queria perder-se em todas as paixões da vida. Queria arriscar. E
principalmente queria fazer isso com Lilith. Ela piscou, como se sua
resposta a assustasse. Talvez, realmente a assustara. Ele se assustou.

— É mentira.

— Sabe que não é. - Respondeu ele, aproximando-se. Parou


quando ela retrocedeu um passo e colocou um dos pilares de carvalho
da cama entre eles, como um escudo. — E você? Deixaria seu clube por
mim?

Os dedos de Lilith se tornaram brancos ao redor do pilar.

— Isso não é justo.

— Talvez não, mas é tão simples. Eu escolho você acima de


todo o resto, Lil. O que você quer?

Conteve a respiração esperando a resposta. Ela franziu o


cenho, e a horrível expressão de tristeza passou a zanga. Bem. Melhor
zangada do que estar a ponto de colocar a cabeça em um laço corrediço
por ele.

— Você sabe muito bem disso. Mas isso não significa que
um de nós não lamentará mais tarde.

Todos os remorsos que ele pudesse sentir por amá-la não


eram nada comparados com o que experimentaria ao deixá-la partir.
Que mulher mais teimosa e exasperante!

— Mas o que teria a lamentar um de nós se escolhemos o


amor?

452
— Eu gosto de meu clube, Gabe. Eu gosto da independência
que me dá, e eu gosto da animação e do burburinho.

Onde ela queria chegar? Para ele, aquilo não modificaria o


que sentia por ela.

— Então mantenha o clube. Não me importo.

Lilith desviou o olhar. Começava a parecer acossada e sem


defesas. Com o olhar desafiante, ela perguntou:

— E o que acontecerá se algum dia alguém se mata por ter


perdido em minhas mesas? Continuaria a me amar?

Era isso. Gabe pensara que fora o único a passar uma


década tornando-se alguém que não o agradava. Lilith talvez gostasse
de seu clube, mas não apreciava muito a vida que tinha para mantê-lo.

— Lilith, eu amaria você nem que fosse a encarnação do


Diabo. -Respondeu.

Não pretendera ser espirituoso. Falava a sério. Amava-a,


não importando o que fizesse, seria mais que ambos aceitassem o fato.
Com as sobrancelhas franzidas e um gesto de resolução, Lilith negou:

— Não posso permitir essa loucura.

— Não é uma decisão só sua.

Ela levantou a cabeça bruscamente, com os olhos ardendo


de indignação. Mas por que tinham que discutir por tudo?

453
— Sim é! Não suportaria ter seu amor, acreditar no futuro e
logo em seguida perdê-lo outra vez! Prefiro acabar com tudo agora.

Gabriel fechou a distância que os separava, tão rápido que


ela nem sequer teve tempo de reagir, e perguntou:

— Por que fazer isto? Pode ter seu clube, seu divertimento.
Deixe-me apenas ter você!

Lilith engasgou com algo que soou muito parecido a um


soluço.

— Não pode negar os seus princípios por mim, Gabe. Algum


dia vai me odiar por isso.

Gabriel tentou agarrá-la, mas ela se encolheu. Se a tocasse,


a seduziria, mas sabia que não a faria mudar de opinião. Deixou cair a
mão e, uma vez mais, tentou usar as palavras:

— Então me ajude a conseguir leis melhores para proteger


seus clientes do jogo. Trabalhe comigo, não contra mim.

— Não é o que tinha em mente há algumas semanas atrás.


Por que essa mudança tão radical?

— Porque me dei conta do que é realmente importante.

Desta vez conseguiu comovê-la. Não conseguiu evitar.


Enxugou uma lágrima que corria pela bochecha de Lilith e lhe
perguntou:

— Você não?

454
Ela levantou os olhos até os dele, e em seu olhar Gabriel viu
amor. O que a fazia se castigar daquela maneira? Lilith tomou sua mão
e a afastou do rosto, mas não a soltou como ele pensou que faria. Em
vez disso, agarrou-se a ela, apertando tão forte que ameaçou lhe cortar
o fluxo sanguíneo.

— Entenda, não posso permitir que sacrifique seus


princípios por mim.

— Eu não sacrificarei nada. - Gabriel insistiu. —


Simplesmente, mudei a abordagem.

O aperto se intensificou mais. Gabriel deixou de sentir os


dedos.

— Não posso. Por mais que o queira, não posso permitir que
faça isso por mim.

— Mas não o faço só por você. Faço por nós.

Ela fez uma careta.

— E abre mão de tudo enquanto que eu não darei nada?

— Se assim tiver que ser.

A expressão de Lilith se fechou, e seus olhos se tornaram


pedra.

— Não.

Gabriel se aproximou mais, tanto que sentiu o calor dela


através de suas roupas. Lilith deixou cair a mão e tentou afastar-se,

455
mas lhe rodeou o pescoço com a outra e, sem mais pressão que uma
suave carícia, impediu que escapasse. Gabriel viu convicção em seus
olhos. E isso lhe deu vontade de sacudi-la.

— Uma vez me perguntou se eu era jogador. - Lembrou-a. —


Creio que me pareço mais com meu pai do que pensava, porque de boa
vontade arriscaria tudo por você, Lilith. Não entende? Não vou deixar
que se afaste de mim outra vez!

Então as mãos dela subiram por seu peito e o empurraram


com energia. Ele cambaleou e retrocedeu alguns passos, mais pela
surpresa que pela força do empurrão.

— Você não tem escolha! - Gritou Lilith. — Parto da


Inglaterra no final desta semana.

O tempo parou. Um batimento do coração... Logo outro.

Quando por fim Gabriel recuperou a voz, perguntou-lhe com


voz áspera:

— Como é?

Ela engoliu saliva com dificuldade. Tinha os braços cruzados


contra os seios opulentos, e o rosto branco, como se tampouco
acreditasse no que acabara de dizer.

— Sairei da Inglaterra. - Sussurrou. — Já reservei a


passagem.

Não. Não deixaria que ela o fizesse. Trincou os dentes em um


esforço para não esbravejar e perguntou:

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— Quero o nome do navio.

Lilith negou com a cabeça. Se ela voltasse a fazê-lo,


agarraria-a pelos cabelos para que não pudesse voltar a fazê-lo.

— Não vou lhe dizer.

— Não vai me dizer?

— Não.

Gabriel nunca fora violento, de fato, desprezava a agressão


física, mas naquele instante, desejou estrangular Lilith. Ficou atônito ao
se sentir tão zangado e assustado de perdê-la. Então fechou as mãos
em punhos e deu um passo atrás.

— Tenho que me afastar de você um pouco. - Explicou, com


os dentes apertados. — Volto logo, e quando o fizer, vamos terminar
esta conversa. Isto não acabou.

Ela o olhou como uma mãe que tratasse de tranquilizar um


filho rebelde.

— Gabriel, meu amor...

Então o controle dele se quebrou e de repente gritou:

— Não me chame de seu amor!

Lilith estremeceu. Gabriel inspirou fundo e se agarrou a um


fiapo de razão.

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— Não pode me amar e falar que vai me abandonar, Lilith.
Ou fica comigo ou dizemos adeus, não vou passar o resto da vida
desejando a mulher que não posso ter.

Aquele ultimato era um estratagema desesperado, mas


Gabriel estava desesperado. Lilith baixou a cabeça. Sem dizer nada,
limitou-se a sacudir a cabeça em uma paródia de assentimento. Com
uma sensação dolorida e oca nas tripas, Gabriel se voltou devagar, e
muito devagar caminhou até a porta. A cada passo sentia que começava
a se acalmar, embora a emoção continuasse a agitar todo seu corpo. Ela
o tinha feito pôr as cartas na mesa, mas ele não tinha acabado. Ainda
não. Com um eco de advertência na voz, disse-lhe:

— Espero que recupere a razão antes de minha volta.

Ela subiu o queixo, e as aletas de seu nariz se dilataram de


irritação.

— E se não...?

Gabriel abriu a porta do quarto com tanta força que quase a


arrancou das dobradiças.

— Ah, eu não vou deixá-la escapar de meu amor só porque


acha que não o merece. - Assegurou-lhe. — Destruirei todos os navios
da Inglaterra com minhas próprias mãos antes que a deixe partir em
um deles. Você decide.

Então, antes que perdesse o controle por completo


prosseguindo a discussão, fechou a porta com muito cuidado e saiu.

Quando a porta se fechou, Lilith cedeu à fraqueza nas


pernas e se deixou cair como um fardo na cama. Sozinha e com as

458
lágrimas que com tanto esforço tentara sufocar enquanto Gabriel
estivera ali, negaram-se a sair. Sentia-se aturdida, completamente
vazia. Daquela vez conseguira resistir, mas como encontraria forças
para enfrentá-lo novamente quando ele retornasse? Não queria brigar
mais com ele.

Os dois estavam dispostos a se sacrificar para estarem


juntos, uma ideia muito romântica, embora nada sensata. Esse tipo de
decisão só levava ao desengano, mas Gabriel se negava a ver o desastre
que os espreitaria no futuro. Por mais tentador que fosse esquecer a
prudência e desfrutar os momentos que o destino lhes brindava, não
suportava a perspectiva de que algum dia Gabriel viria a odiá-la. Seus
filhos não ouviriam rumores sobre a mãe, como Gabriel ouvira sobre a
sua. Não queria que seus filhos se sentissem ofendidos por causa dela,
como Gabriel e ela mesma se sentiam por causa dos próprios pais. Os
filhos de Gabriel mereciam uma vida mais feliz.

Instintivamente, sua mão se dirigiu à curva do ventre.


Carregar um filho de Gabriel a enchia de alegria e terror. Se por acaso
estivesse grávida, nada diria. Ele jamais a deixaria partir. Mas não
anteciparia os acontecimentos. Não havia nenhum bebê, e Gabriel não a
impediria de partir. Seria melhor assim. Algum dia ele compreenderia.
Algum dia ela compreenderia também.

Com ar ausente, seu olhar se dirigiu à pequena mala de


Gabriel, a deixara no chão ao entrar, como um homem que chegava ao
lar para juntar-se a amada esposa depois de uma longa viagem. Parecia
ter acontecido a uma eternidade desde que a seduziu e a convenceu de
morar ali com ela. Parecia ter acontecido há dias, em vez de horas,
desde que seus dedos a levaram ao frenesi. Tantas coisas haviam
mudado.

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Lilith se aprumou com esforço até sentar-se, e logo se
afastou da cama, obrigando as pernas cansadas a levá-la até a mala.
Era de couro macio e flexível, e suas mãos tiraram sem dificuldade a
correia da pesada fivela de ouro. Abriu-a e colocou a mão. Utensílios de
barbear, duas camisas, um par de calças, meias, gravatas, roupa de
baixo. Estava claro que Gabriel pensava em ficar mais que um dia ou
dois.

No fundo da mala reparou em uma pequena bolsa de veludo.


Não a teria visto se não fosse pela corda dourada que a fechava. Com
curiosidade a pegou. No momento em que sua mão se fechou sobre ela
soube o que havia dentro, mas uma parte perversa de si mesma a
instigou a abrir só para confirmar sua suspeita, embora seu coração
acelerado lhe disse para que não olhasse. Desatou o cordão com dedos
trêmulos e inclinou a bolsa sobre a palma, onde caiu, frio e pesado, um
anel.

O anel pertencera à mãe dele, e antes, a avó. De fato, estava


há gerações na família Warren. Gabriel lhe contara depois que sua mãe
deixou de usá-lo pois o achava vulgar. “Algum dia será seu, havia-lhe
dito, enquanto retirava à pesada esmeralda no dedo. Para você
significará algo especial.” Ou, em outras palavras: ela o apreciaria muito
mais que ela. "Significa amor", pensou ela, sem querer devolvê-lo a
bolsa.

Gabriel pensava em lhe propor casamento.

Os dedos lhe tremiam visivelmente quando Lilith deixou cair


o anel dentro da bolsinha e a recolocou no fundo da mala. Como uma
possessa, empilhou os pertences dele em cima, como se pudesse fazê-lo
desaparecer se o enterrava bem fundo. Rápido voltou a fechar a mala e
levá-la para onde estava. Certamente ele saberia que ela mexera nela.

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Ah, Deus. Gabriel queria casar-se com ela.

Bem, e o que esperava? Gabriel a amava, e não era o tipo de


homem que trata o amor levianamente. Devia ter pensado nisso, mas
estava muito ocupada pensando no por que de não poderem viver
juntos, para ele, o lógico seria o casamento. Não era de se surpreender
ter ficado tão alterado pelo que lhe disse.

Lilith enterrou o rosto nas mãos e se perguntou quanto mais


teria que errar na vida até endireitá-la. De repente, algo estranho lhe
chamou a atenção, levantou a cabeça, cheiro de fumaça. Então viu a
fumaça saindo debaixo da porta do closet. Alarmada, correu para lá,
mas parou hesitando em tocar na maçaneta, ao ver que ainda estava
fria abriu a porta de sopetão e olhou aterrada a cena diante de si: todo o
closet estava em chamas. Aquilo não era um acidente. O fogo se
concentrava em apenas um ponto do cômodo, ainda não tinha
consumido nada, nem os vestidos pendurados na parede ou nas
cortinas das janela. O fogo fora intencional, para assustar e apostava
sua vida que o responsável era Bronson. De algum modo, o desgraçado
entrara em seus aposentos às escondidas. Bem Gabriel tinha razão por
se preocupar com sua falta de segurança. Mas, como passara pelo
policial? Lilith sentiu um calafrio. Talvez não tivesse passado. Talvez o
tivesse matado.

Certamente, não podia apagar o fogo sozinha, mas teria que


detê-lo antes de que se propagasse para o resto do edifício. De fato, já
lambia o tapete onde ela estava. Deu meia volta e pôs-se a correr.
Entrou como uma louca no corredor gritando "Fogo!" a todo pulmão e,
sem pensar, se dirigiu ao quarto onde descansava Latimer. Ali,
provavelmente não haveria mais ninguém. O resto do pessoal estaria no
piso inferior, preparando-se para a noite de trabalho. A única pessoa
que estaria no piso superior seriam eles e quem ateou o fogo. Alguém
que, para começar, podia ser um dos que atacaram Latimer.

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Lilith irrompeu no quarto. Sentado a beira da cama, Latimer
se levantava com ar confuso. Ao vê-la, murmurou:

— Sente o cheiro de fumaça?

Deus bendito, ainda estava meio atordoado! Sem dúvida


efeito do láudano. Foi correndo até ele, enquanto o coração ameaçava
sair pela boca. Estava apavorada. Se o fogo os cercasse... Sem
mencionar que havia a possibilidade de que, quem tivesse provocado o
fogo ainda estivesse por perto, esperando-os. Levantou um dos grandes
braços de Latimer e o passou sobre seus ombros.

— O edifício está em chamas. - Disse. — Temos de sair


daqui. Pode caminhar?

O estupor que o ferido sentia na cabeça pareceu dissipar-se.

— Se a alternativa é ficar aqui e morrer queimado, sim, claro


que posso.

Com os músculos doloridos e as costas lhe pesando, Lilith


ajudou o empregado a ficar em pé. Latimer vacilou, inseguro, e sob o
tecido da camisola de dormir ela sentiu a bandagem das costelas.
Aquela roupa arderia como papel se o fogo os alcançasse, claro que
tampouco demoraria a devorar seu vestido.

Cada passo parecia durar uma eternidade. O cheiro de


fumaça aumentava e Lilith acreditou ouvir o estalo das chamas
consumindo as paredes da casa. Lentamente desceram as escadas, a
maior parte do peso de Latimer sobre o ombro esquerdo de Lilith. Esta
jogou um olhar ao seu dormitório. As chamas devoravam o tapete e

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avançavam para o veludo das cortinas. Mesmo se apagassem o fogo
antes que se alastrasse mais, seus aposentos estavam perdidos.

Aos trancos e tropeções, cruzaram as portas que davam ao


vestíbulo principal do clube. Ali encontraram mais fumaça. Lilith não
sabia bem de onde vinha, mas lhe pareceu que vinha do salão dos
cavalheiros. George dava ordens aos criados apavorados. Mandando
alguns pegarem água, aos outros, que saíssem a dar instruções a quem
devia combater às chamas.

— Lady Lilith! - Gritou ao vê-la. — Atearam fogo no clube!

Lilith fez um gesto afirmativo e afrouxou os ombros com


alívio quando George lhe tirou de cima o peso de Latimer.

— No piso superior também.

O rosto largo e franco do lacaio escureceu.

— Também há fogo na parte de trás.

Uma punhalada de dor atravessou o peito de Lilith.

Três focos de incêndios. Não haveria forma de combater a


todos. Perderia seu clube e todas as suas posses.

— Evacue todo o edifício, George. Quero que se encarregue


do pessoal do clube. Onde está Mary?

— Estou aqui!

A fumaça já adensava, mas Lilith viu que a amiga se


aproximava.

463
— Estive na ala das damas para me assegurar que não havia
ninguém mais lá.

— Ajude George a evacuar o pessoal. - Ordenou Lilith


tossindo. — Vou à cozinha. Quero que todos saiam o quanto antes. Se
tiverem que pegar algo, sejam rápidos. Quem ateou o fogo sabia o que
fazia, está se propagando com rapidez.

A seguir se separaram. Lilith atravessou correndo o vestíbulo


e cruzou a porta que levava a cozinha. Ali, o pessoal, alvoroçado, corria
de um lado para outro aos gritos. Conseguiu fazer-se ouvir, alguns
saíram do edifício imediatamente, e outros foram correndo recolher
objetos pessoais. E outros ficaram olhando ao redor como se estivessem
perdidos, ocupou-se ela mesma destes: reuniu-os, subiu com eles a
escada e os tirou pelo pátio de trás. Por sorte, a maior parte do pessoal
de casa estava na cozinha ou no vestíbulo, por isso Lilith não precisou
sair a procurá-los. Em vez disso, saiu ao pátio e os contou, depois deu a
volta até a fachada do edifício e fez o mesmo com o pessoal do clube.
Graças a Deus, não faltava ninguém.

Foi nesse momento, sabendo já que todo seu pessoal estava


a salvo, lembrou-se de que deixara no quarto a valise de Gabriel: o anel
de família. Não podia deixá-lo lá, principalmente sabendo o quando
significava para ele... E para ela. Levantou o olhar para o clube. Pelas
janelas da ala dos cavalheiros saíam chamas e, mais acima, o fogo
destruía as cortinas do quarto de Latimer.

Na distância ouviu o sino dos bombeiros. Chegava ajuda,


mas seria muito tarde para salvar o clube. Algumas coisas poderiam
resgatar, mas seria melhor esperar que o incêndio fosse controlado
antes que se propagasse aos edifícios vizinhos. Como o clube era feito

464
de tijolos, o exterior não arderia facilmente, mas um dos edifícios ao
lado era de madeira e queimaria como o inferno.

Seria estupidez voltar. Uma loucura. Mas o faria. Começou a


afastar-se do grupo ao lado da rua, e ao vê-la, Mary lhe perguntou:

— Ei, onde pensa que vai?

Com o olhar fixo na porta mais que na fumaça que saía


pelas janelas, Lilith respondeu:

— Preciso voltar, esqueci uma coisa.

Sua amiga a agarrou pelo braço.

— Não! É muito perigoso!

— O fogo ainda não se alastrou muito. - Retrucou Lilith,


pedindo a Deus para não estar enganada. — Vou agora, enquanto
posso. Prometo tomar cuidado.

Então escapou das mãos da amiga com um puxão e correu


para o edifício com as saias levantadas até os tornozelos. Se fosse
rápida, poderia salvar o anel de Gabriel.

O vestíbulo estava cheio de fumaça. Com os olhos


lacrimejando, Lilith levantou as saias e tampou o nariz e a boca com
um lenço. Ali ninguém veria as anáguas. A fumaça dificultava a visão,
mas conhecia o edifício de cor e não teve problema em encontrar a porta
que dava acesso ao piso superior. Nesse corredor não havia tanta
fumaça, e subiu correndo os degraus.

465
Na parte de cima a fumaça se adensava rapidamente e a
temperatura era mais alta. O fogo se propagara depressa. Seu quarto
ardia quase por inteiro, mas por sorte as chamas se limitavam as
paredes da janela, onde havia mais objetos inflamáveis. Entretanto,
quando entrou, com os olhos ardendo pela fumaça, o fogo avançou para
ela. Uma faísca saltou em sua manga esquerda, e imediatamente
consumiu o tecido e lhe queimou o braço. Lilith deu um grito e apagou
a chama a tapas.

A fumaça enchia o quarto, mas o nível do chão estava mais


limpo. Ajoelhada, encontrou a mala de Gabriel exatamente onde a tinha
deixado. Apressada, tirou a bolsinha de veludo que continha o anel, ao
menos lhe devolveria isso. Nem lhe passou pela cabeça pegar a mala. Só
importava o anel. Lilith prendeu o cordão dourado no pulso e fugiu do
quarto, sacudindo chamas das saias e dando tapas para apagar as
labaredas que lhe chamuscavam os cabelos. Sentiu que os olhos e os
pulmões ardiam.

A visão já estava turva. Por isso não viu o homem que subia
a escada até quase estar em cima dela. Então o ar fugiu de seus
pulmões, e o coração lhe gelou no peito. Era Bronson que, sorrindo e
apesar do fragor do incêndio, gritou:

— Quase pensei que teria de sair sem encontrá-la.

Antes que Lilith pensasse sequer em uma resposta, Bronson


levantou o punho robusto. A explosão de dor que explodiu em sua
mandíbula a fez inclinar instantaneamente a cabeça, sua mão soltou as
saias. Os joelhos se dobraram e caiu para frente. Bronson nem sequer
olhou para trás, se foi. Diante de Lilith só havia o vazio, cheio de
fumaça, da escada.

466
Lilith caiu pelos degraus, um choque atroz a fez gritar em
meio ao negrume ardente e acre.

Depois, o nada.

467
Gabriel não tinha chegado além do
White's, na St. James's Street. Dois copos de bourbon, bebidos
lentamente, ajudaram-no a acalmar os nervos e a ver as coisas com
perspectiva.

Lilith o pertubara com o anúncio de que o deixaria, e ele


reagiu mal. Zangou-se, em vez de lhe explicar por que mudara de
opinião sobre o jogo. Ela pensou que fosse por ela, e de certa forma,
estava certa, mas não totalmente. Assim que lhe explicasse, certamente
a convenceria de não partir. E se isso não funcionasse, a amarraria à
cama. Não a perderia outra vez.

Acabava de engolir o segundo bourbon quando um dandy


entrou no clube esbaforido e gritando:

— O Mallory's está em chamas!

As palavras caíram sobre Gabriel como um muro. O


Mallory's em chamas? Todos os olhos se voltaram para ele, e então
soube que não tinha ouvido mal. Derrubou a poltrona ao levantar-se de
um salto e correu para a porta, nada mais lhe importava neste
momento. Nem sequer se importou que alguns se levantassem para
segui-lo. Só Lilith estava em sua mente.

Já fora do clube, não se incomodou em procurar uma


carruagem. A essa hora da tarde o tráfego era intenso, e King Street não
era muito longe. Correu o mais rápido que pode. Os pulmões gritavam

468
por ar, e o coração lhe pulsava na garganta. Não devia tê-la deixado
sozinha. Nem sequer cogitou que o incêndio fosse um acidente. Seria
muita coincidência que, dois dias depois de Latimer ser atacado, o
clube fosse incendiado, principalmente depois de irem à polícia. Estava
claro que Bronson ordenara que os seguissem, e essa fora sua forma de
vingar-se. Se Lilith estivesse ferida, Bronson acabaria na forca. Gabriel
se ocuparia pessoalmente para que assim fosse.

A fumaça já chegara a King Street. O coração explodia, e se


forçou a correr mais. Havia uma multidão em frente ao clube, e
reconheceu muitos ali. Alguns eram empregados, clientes, e outros só
estavam ali para ver como as chamas saíam das janelas do piso
superior. Gabriel estacou em seco, e observou horrorizado como o fogo
queimava. Sentiu no peito uma dor intensa, que nada tinha a ver com o
esforço da corrida. O que Lilith amava estava sendo reduzido a cinzas.

De repente sentiu dedos se fechando em torno de seu braço.


Voltou-se esperando ver Lilith ao seu lado, mas quase se ajoelhou ao
ver Mary. Uma Mary muito assustada. Antes que ela tivesse chance de
falar, perguntou por Lilith, e, com os olhos dilatados de terror, Mary
apontou para o clube.

— Lá dentro. Disse que tinha de voltar para procurar uma


coisa.

"Jesus bendito." O mundo parou, a vertigem se apropriou de


sua cabeça. Em nome do mais sagrado, o que Lilith achava ser tão
importante para voltar? E, sem pensar, lembrou-se o que deixara na
mala, o anel de noivado de sua família. Doeria perdê-lo, mas jamais
arriscaria a vida por ele. Lilith pensaria diferente.

— Há quanto tempo está lá?

469
Mary negou com a cabeça. Estava tão nervosa que não
pensava com clareza.

— Não muito... Mas...

Gabriel ficou gelado.

— Foi ao quarto?

— Acho que sim. - Respondeu Mary.

Gabriel lançou um breve olhar ao inferno logo adiante e


apertou a mandíbula. Não a perderia outra vez. Não suportaria. Tirou o
lenço do bolso e o molhou em um dos baldes que estavam usando para
combater o incêndio. Os homens formavam filas e passavam os baldes
aos que estavam mais perto do edifício. Tinham a fronte encharcada de
suor, pelo calor e o esforço.

Gabriel olhou à frente. O lenço úmido que lhe cobria a boca


e o nariz o ajudaria a respirar e impediria a fumaça de sufocar seus
pulmões, mas não aguentaria muito tempo. Tinha que encontrar Lilith.
E logo. Não sabia há quanto tempo estava lá dentro, ou se teria
respirado muita fumaça. Ou pior estava... Não. Negou-se a pensar na
possibilidade. Lilith ia viver o bastante para que ele a estrangulasse por
fazer a idiotice de entrar em um edifício em chamas!

Passou roçando os homens que estavam perto da porta.


Pessoas tentaram detê-lo, mas escapou. O vestíbulo era só fumaça, com
muita dificuldade vislumbrou a silhueta da estátua de Vênus no centro.
Girou à esquerda e, ao chegar à parede de trás, a seguiu até chegar a
porta. Quando encontrou a maçaneta, abriu e entrou. Piscou para
aliviar o ardor nos olhos e tentou ver através da fumaça acre. Percorreu

470
aos tropeços o corredor. Ao chegar à escada se ajoelhou. Ali havia
menos fumaça, o que facilitava a visibilidade e a respiração.

Não tinha engatinhado nem até o meio da escada quando a


encontrou. Estava caída e inconsciente.

— Lilith! - Gritou, e a recolheu com cuidado nos braços.

O coração explodia entre as costelas e a garganta se fechou,


não pela fumaça, mas pelas lágrimas mal contidas. Lilith tinha sangue
na boca e um enorme hematoma que lhe cobria o rosto, mas respirava,
e Gabriel agradecia a Deus por isso. Rapidamente, tirou o lenço do rosto
e o pôs sobre a boca e o nariz dela, e depois o prendeu com um nó
rápido para que não caísse. Com cuidado, desceu os poucos degraus
restantes e com Lilith recostada ao peito, atravessou o corredor cheio de
fumaça, às pressas.

Quando alcançou o ar fresco da noite, os pulmões doíam,


assim como os braços por sustentar Lilith, os olhos ardiam tanto que
quase nada enxergava. Notou que seus joelhos fraquejavam de pura
exaustão, mas se forçou a manter-se erguido. Então alguém tentou lhe
tirar Lilith dos braços, mas gritou: "Não!", e se agarrou a ela com mais
força. Nesse momento Mary chegou ao seu lado. Mal podia discernir seu
contorno através do olhar lacrimejante.

— Não se preocupe, Lorde Angelwood. George só quer ajudá-


lo a carregar Lilith.

Gabriel não daria Lilith a ninguém.

— Encontre uma carruagem. - Ordenou a George. — Ela vai


para minha casa. E traga um médico.

471
— Sim, Sua Senhoria.

Então, lentamente, os joelhos de Gabriel se dobraram, como


se recuperar um pouco da visão debilitasse a força no resto do corpo.
Ninguém deu um passo para ajudá-lo, não depois do seu descontrole
com George. Todos ali se limitaram a ficar olhando o Conde de
Angelwood desabar vagarosamente até cair de joelhos sobre os
paralelepípedos, agarrado a Lilith, enquanto o Mallory's ardia em
chamas.

Quando sua visão clareou, os olhos doloridos de Gabriel


percorreram o corpo de sua amada, em busca de mais ferimentos, mas
não viu nenhum. Tinha o cabelo e vestido chamuscados em alguns
lugares, mas não viu mais pontos que sangravam, além do hematoma
enorme no rosto e do ferimento no lábio inferior. Então Gabriel
encontrou o que a fizera se arriscar nas chamas. Presa ao pulso estava
à bolsinha de veludo que continha o anel de família.

Sem se importar com as pessoas ao redor, Gabriel afundou o


rosto na curva do pescoço de Lilith, inspirou com sofreguidão o cheiro
de fumaça e laranjas. Notou o leve movimento do peito dela contra o
seu, e o som surdo e suave de seu pulso sob seus lábios. Quase a
perdera. Poderia ter acontecido. Teria acontecido se ele não voltasse
rapidamente. E tudo, porque ela tinha que resgatar um anel que estava
há gerações em sua família. Um anel que ele levara dez anos para
colocar-lhe no dedo.

Um soluço agitou seu peito, e Gabriel cedeu diante do


tumulto de emoções que gritavam em seu interior. E então, estreitando
à mulher que amava, a mulher que nunca mais deixaria partir, o Conde
de Angelwood pôs-se a chorar abertamente, ali, à vista de toda Londres.

472

O médico encontrara Gabriel sentado junto à cama onde
repousava Lilith, acariciava-lhe a testa com um pano molhado e
segurava a mão dela como se fosse, de uma hora para outra,
desaparecer. Gabriel mandara chamar seu próprio médico, Randall
Croft, um dos melhores da cidade. Após se cumprimentarem, este
perguntou:

— O que houve?

— Houve um incêndio em seu clube. - Explicou Gabriel, com


o coração apertado. — Ela voltou para dentro. A encontrei lá...

Croft lhe lançou um olhar de surpresa. Pequeno, de cabelos


loiros e sagazes olhos verdes, era uma pessoa direta e precisa, e não
suportava idiotas.

— Espero que tenha tido um bom motivo para fazer algo tão
estúpido.

Gabriel engoliu saliva com dificuldade, tinha um nó na


garganta.

— Conforme parece, acreditou ter.

Novamente o médico lhe lançou um olhar de curiosidade.

— Onde a encontrou?

— Na escada. Creio que deve ter tropeçado em meio a


fumaça.

473
Croft pousou o olhar no rosto machucado de Lilith.

— Ou talvez não. Quem bateu nela?

Gabriel ficou em silêncio, levantou o rosto e perguntou:

— Como assim?

Croft, que já abria sua mala de couro preta, fez com a


cabeça um gesto e apontou para Lilith.

— A menos que esteja enganado, esse hematoma é


consequência de um murro. E a julgar pelo tamanho, o culpado era um
homem bem corpulento.

O tom do médico era suave, sem sinal de acusação, e


entretanto Gabriel não pôde evitar sentir-se como se esperasse ele,
soubesse a resposta. A única pessoa em quem podia pensar no
momento era Bronson. Ele teria ateado fogo no Mallory's? Seria o
responsável pela queda de Lilith? Se aquele desgraçado não fosse
enforcado. Ele mesmo o mataria.

— Não sei. - Retrucou com firmeza, e não era de todo


mentira. — Já estava inconsciente quando a encontrei.

Croft o olhou com uma expressão que Gabriel não soube


interpretar.

— Qual é a natureza de sua relação com a senhorita


Mallory?

474
— Lady Lilith. - Gabriel o corrigiu sem pensar. — É uma
dama da nobreza. Por que pergunta?

Croft foi até uma mesinha, perto da porta, onde havia uma
bacia, lavou as mãos e as secou em uma pequena toalha que deixou
pendurada na parte de cima do móvel.

— Preciso saber se há alguma possibilidade de que esteja


grávida. Se assim for, a queda pela escada pode ter afetado o feto.

Gabriel abriu a boca, mas não saiu nenhum som. Foi como
se estivesse perdido. Olhou o ventre de Lilith.

— Sim ela pode estar.

— Farei um reconhecimento para nos assegurar. - Croft se


aproximou dele e lhe lançou um olhar. — Tenho que lhe pedir para que
saia, Sua Senhoria.

Não. Não podia e não iria fazê-lo. A última vez que a deixara,
ela quase morreu. Não a deixaria outra vez.

— Não. - Declarou atordoado. — Não posso deixá-la.

A expressão de Croft era de piedade, algo que surpreendeu


Gabriel.

— Sei que não quer, meu senhor. Mas creio que se a senhora
souber disso, não achará apropriado. Entendo como se sente, mas não
há opção. Meu trabalho é realizar uma avaliação completa da saúde de
Lady Lilith. O seu, é esperar lá fora, no corredor, e dar voltas.

475
Gabriel olhou o médico, procurando algum indício de
falsidade em seu aspecto ou gestos. Não o encontrou, assim, a contra
gosto, assentiu com a cabeça.

— Estarei lá fora se precisar. - Concedeu com um pouco de


aspereza.

— Claro que sim. Avisarei quando acabar. - Disse Croft com


um sorriso.

E desse modo, Gabriel se viu expulso do próprio dormitório.


Em que outro lugar podia deitar Lilith? Queria-a por perto para vigiá-la.
Deixara Bronson se aproximar dela uma vez e não voltaria a cometer o
mesmo erro. A porta se fechou atrás dele, e ficou sozinho no corredor
vazio. Mary continuava na biblioteca com o reverendo, seu amigo, que
viera visitá-la assim que soube da notícia. Gabriel seguiu o conselho de
Croft e começou a dar voltas, assim parecia estar fazendo algo, em vez
de esperar inutilmente.

A culpa era dele por Lilith estar ferida, e o clube ter sido
destruído. Pelos bombeiros soubera que o incêndio, já controlado,
destruíra a maior parte do interior no piso superior e a ala dos
cavalheiros do clube estavam completamente perdidos. Bens materiais
não importavam, comparado ao que podia ter perdido. Não devia tê-la
obrigado a ir a Bow Street. Ou, ao menos, deveria ter tomado mais
cuidado. Sabia que Bronson talvez os mantivesse sob vigilância e os
mandaria seguir, mas subestimou o homem, esse fora seu primeiro
grande engano. O segundo foi deixá-la sozinha. Independente do quanto
estivesse ofendido e zangado, sabia que ela estava em perigo. Mas não
raciocinou. Só pensou em si mesmo.

Como poderia ganhar seu perdão? Primeiro, deixou-a à


margem do suicídio de seu pai, por sentir vergonha de que o mundo

476
soubesse o quão fraco seu pai era na realidade. Em seguida tentou usá-
la como exemplo em sua insensata empreitada de acabar com o jogo. E
por último, deixou-a sozinha para que um louco atentasse contra sua
vida e destruísse seu meio de vida. E Lilith ainda acreditava que não o
merecia. Engasgou-se com uma risada amarga. Meu Deus! Era ele
quem não a merecia. Ali mesmo, naquele momento, Gabriel fez uma
promessa: assim que ela despertasse, se viesse a suportar sua
presença, passaria o resto da vida compensando-a. Se ela o permitisse.

Estava certo de que Duncan Reed viria assim que Lilith


recuperasse a consciência, devia querer saber se viu ou não Bronson no
clube. Porque se Croft estivesse certo e alguém batera nela... Se não foi
o próprio Bronson, certamente foi um de seus homens. Gabriel o faria
pagar por isso, de um modo ou de outro.

— Gabe.

Ao ouvir seu nome, voltou-se. Pela escada subiam Julian,


Brave e Rachel, com expressões preocupadas. Ao ver seus amigos se
sentiu melhor, imediatamente, a presença dos amigos o reanimou.

— Viemos assim que soubemos. - Declarou Rachel.

Ela se encaminhou direto a ele e segurou-lhe as mãos,


oferecendo o consolo físico que seus amigos não sabiam que precisava.
Gabriel não se incomodou em lhes perguntar como souberam. Sem
dúvida a notícia correu pela cidade tão rápido como o fogo se propagou
pelo Mallory's. Gabriel lhe apertou os dedos enquanto olhava Brave e
Julian.

— Obrigado. - Disse comovido. — Sou grato por virem.

477
— Como se fôssemos deixá-lo passar por um momento como
este sozinho. - Murmurou Brave.

Gabriel sorriu e soltou as mãos de Rachel. Aqueles eram


seus amigos, sua família. Embora não unidos pelo sangue, amava-os
como se Brave e Julian fossem seus irmãos, e Rachel uma irmã à
medida que a conhecia melhor. Então Julian expôs a pergunta que os
outros dois temiam fazer:

— Como ela está?

— Não sei ainda. - Respondeu Gabriel. — O médico está com


ela. Não creio que haja ferimentos graves.

"Exceto que talvez tenhamos perdido o nosso filho."

Rachel deu um suspiro de alívio e apertou o peito com a


mão.

— Graças a Deus.

Os quatro ficaram juntos, os três amigos em um fechado


semicírculo em torno de Gabriel. Perguntaram pelo incêndio, e Gabriel
contou tudo. Custou-lhe, mas não omitiu nada, nem sequer que tinha
saído do clube exasperado quando Lilith lhe comunicara que partiria, e
que ela entrou no prédio em chamas, só para pegar um anel. Com o
cenho franzido de preocupação, Rachel lhe tocou o braço.

— Você está bem? Quer que eu fale com ela, Gabriel?

Apesar da opressão que sentia no peito, ele sorriu.

478
— Obrigado, Rachel. Estou bem. Não sei bem se vou
precisar. Depende se ela me achar digno de falar comigo.

O cenho de Rachel mostrou uma expressão de perplexidade.

— E por que não quereria falar com você?

Brave lançou um olhar a esposa.

— Ele se sente responsável, Rach, e acredita que Lilith


também o culpará.

Rachel deu tapinhas no braço de Gabriel.

— Que tolice.

Ele abriu a boca para lhe explicar por que se sentia assim,
mas naquele instante a porta do quarto se abriu e saiu Croft. Gabriel se
adiantou, seguido dos amigos, e perguntou:

— Como ela está?

Croft sorriu.

— Bem. Inalou um pouco de fumaça e ficará com a voz


rouca e terá tosse por alguns dias, nada que um pouco de mel não cure.
O lado esquerdo do rosto ficará inchado e roxo, e o corpo dolorido pela
queda nas escadas, mas não há lesões graves.

— E...? - Perguntou Gabriel com tom hesitante, esperando


que o médico entendesse.

A expressão de Croft se suavizou.

479
— Não há nada para se preocupar.

O alívio por ela não ter perdido um suposto filho, o invadiu


por completo, seguido da decepção mais profunda que tinha sentido na
vida: Lilith não estava grávida.

Rachel o abraçou como se, por intuição feminina, soubesse


exatamente o que acontecia. Gabriel lhe devolveu o abraço, enquanto se
perguntava se era possível lamentar a perda de algo que, para começar,
nunca existira.



Lilith sentia a garganta seca e áspera. Onde estava?


Duvidava e muito de que estaria no Céu, pois não acreditava que no
Céu sua garganta doesse como o inferno. Talvez estivesse nele mesmo.
Inspirou fundo tentando identificar o cheiro de enxofre, mas só sentiu o
cheiro de roupas limpas e o perfume de Gabriel?

Se isso era o inferno, adoraria passar o resto da eternidade


entre os outros condenados.

Abriu os olhos. Doeram um pouco, sem dúvida devido a


fumaça, mas depois de piscar várias vezes para umedecê-los, percebeu
que não estava no inferno. Estava em um quarto, um quarto de homem.
O de Gabriel. Olhou ao redor, e observou o mobiliário escuro de

480
carvalho e as pesadas cortinas de veludo azul escuro. O cômodo
transmitia uma estranha calma misturada a uma tranquila presença
masculina. Tão próprio de Gabriel. Voltou a cabeça para a direita.
Sentado junto à cama, em uma poltrona, havia um anjo olhando-a.

— Olá. - Grasnou.

Deus, que voz horrível tinha! Gabriel não sorriu, mas


pareceu muito feliz de vê-la. Ao ver sua expressão de alívio, Lilith se
perguntou o quão perto teria estado da morte. Tentou sorrir, mas o
esforço fez com que sentisse uma pontada de dor no queixo. Com
cautela levou a mão ao rosto. Estava inchado e bem dolorido.

— O que houve depois que encontrou o anel?

Ai, Deus. Sabia. Tentando mover o queixo o menos possível,


respondeu:

— Encontrei Bronson. Mais precisamente seu punho.

Em uma fração de segundo, a expressão de Gabriel mudou


do alívio para uma expressão homicida.

— Já desconfiava disso, vou matar o desgraçado. - E com a


mesma rapidez, sua expressão voltou a suavizar ao pousar o olhar nela.
Então murmurou: — Sinto muito, Lil.

Lilith franziu o cenho. Ou tinha perdido a audição, ou não


entendia o que lhe dizia.

— Por quê?

481
— Por sair daquele jeito, Deus, eu a deixei a mercê do
desgraçado. Se estivesse com você, isto jamais teria acontecido.

Se o rosto não estivesse doendo tanto, ela teria rido, ou


chorado, talvez.

— Gabriel, não podia saber que Bronson atearia fogo no


clube.

O rosto dele ficou sombrio.

— Não, mas se não tivesse saído, você não teria motivo para
voltar a entrar no clube por esse estúpido anel. Teria ido eu mesmo.

Com voz rouca, e lamentando a irritação na garganta, Lilith


disse:

— Não é um estúpido anel! - Ai, que dor. — Pertence a sua


família há gerações.

Gabriel levantou-se e pegou um pote sobre o criado mudo e


lhe tirou a tampa. Com uma colher levantou uma substância pegajosa,
espessa e dourada, e lhe ofereceu: era mel.

— É para a garganta. - Ele lhe explicou.

Lilith abriu a boca e o deixou colocar a colher. Engoliu tudo,


o mel, doce e denso lhe aliviou a garganta dolorida.

— Obrigado. - Sussurrou, com menos dor.

— Agradeça ao doutor Croft. Ele é quem receitou.

482
— Sabe, devo confessar. Você tinha razão. - Declarou ela,
mudando de assunto.

Gabriel franziu o cenho.

— Sobre o quê?

— O jogo. Não é bom lidar com ele. - Estendeu a mão e


tomou a de Gabriel. Sentiu sua força e segurança. — Não quero mais
ter nada com ele. Só me trouxe problemas.

A julgar pela expressão no rosto de Gabriel, se diria que


acabara de comunicar que se decidira a entrar em um convento.

— Mas você adorava seu clube.

Que Gabriel falasse dele no passado lhe oprimiu o coração.


Seu clube se fora.

— Sim, eu adorava, mas estou cansada de falatórios, Gabe.


Cansada das ameaças de homens como Bronson, e principalmente,
cansada de fingir o que não sou. Eu adorava o Mallory's, mas ele
acabou sendo tão pernicioso para mim quanto eu sou para você.

Os dedos dele se estreitaram nos seus.

— Então você mudou sua decisão sobre nós?

— Não. - Retrucou ela em um sussurro, afastando sua mão.


— Minha decisão continua a mesma, vou sair da Inglaterra.

Um amontoado de emoções se espelharam no rosto de


Gabriel, e Lilith se obrigou a olhá-lo, porque merecia saber o quanto ela

483
o fazia sofrer. Ela também sofria, mas o amava demais para arrastá-lo
ao inferno com ela. E não permitiria que ele se tornasse um alvo para
Bronson. Estava claro que o último ataque fora uma represália pela
visita que fizera a Bow Street. Ao atentar contra a carruagem de Gabriel
e atear fogo no clube de Lilith, o homem se arriscara a sofrer uma
provável vingança de um par do reino. Devia ter várias precauções para
apagar o rastro que relacionasse aquelas ações com ele. Não, já era
hora de se render, que Bronson ficasse com a vitória. Era mais seguro
assim.

— Você não vai embora. - Parecia tão determinado.

Lilith suspirou. Quantas vezes teria que repetir a Gabriel


antes que se cansasse? Uma parte dela desejava que fosse logo, pois
cada vez mais aquela decisão a machucava.

— Por favor, Gabe. Agora não quero discutir isso. Estou


muito cansada.

A expressão dele mudou para uma de preocupação.

— Quer alguma coisa? Um copo de água? Mais mel?

— Não, estou bem. Bem...? Quero dizer, você poderia ler


para mim até que eu pegue no sono?

Não lhe tinham lido em voz alta desde pequena, e se sentiu


tão infantil por lhe pedir isso, mas queria ter a mente ocupada com algo
que não fosse a imagem do clube ardendo, ou Bronson lhe dando um
murro. Queria manter Gabriel ali, com ela, quando chegasse a
escuridão. Ele a protegeria dos demônios.

484
Se o surpreendeu o pedido, não demonstrou. De fato,
pareceu estranhamente encantado. Pegou um livro que estava no criado
mudo e a avisou:

— É Tom Jones. Gosta?

Sorrindo, Lilith puxou a colcha até o queixo, embora não


fizesse frio.

— É um de meus preferidos.

O amor, claro e brilhante, brilhou nos olhos cinzentos de


Gabriel.

— Então...

Abriu o livro no primeiro capítulo e começou a ler. O tom


profundo e grave da voz encheu o quarto. Lilith fechou os olhos e se
deixou levar a uma época em que as mulheres usavam saias tão largas
que quase se igualavam a sua altura. Perdeu-se com Tom e suas
peripécias, e quando se cansou de imaginar as cenas em sua cabeça,
conformou-se em escutar a suave cadência da voz de Gabriel. Pouco a
pouco, o sono a invadiu. O mundo agora lhe parecia um lugar aprazível,
onde ninguém queria lhe fazer mal, e onde não existia nada além dela e
Gabriel. Senhor, quem dera fosse verdade.

485
486
— É verdade?

Sentado à mesa do café da manhã, Gabriel tentou ignorar o


palpitar em seu peito ao ouvir a voz, rouca e zangada dela. Levantou a
cabeça. Lilith estava na porta, vestida com uma camisola e robe que ele
comprara no dia anterior. Seus cabelos, um rio de seda vermelha, caía-
lhe em cascata sobre os ombros e pelas costas. Estava descalça, e seus
pés surgiam sob a barra rendada da camisola branca. Tinha uma ideia
do que a deixara tão nervosa mas não admitiria nada a menos que fosse
absolutamente indispensável.

— E o que é verdade? - Perguntou em tom inocente


enquanto baixava o garfo.

— Mary me disse que está pensando em falar com Bronson.

Na verdade, falar com ele era última coisa que queria. Uma
boa surra era o que ele tinha em mente, nada de conversa. Até agora a
polícia não tinha tomado nenhuma medida. Gabriel não sabia o que
esperavam, mas começava a se cansar de esperar.

— Não sei por que Mary lhe contou algo tão insípido. -
Respondeu com calma.

E como diabos Mary sabia disso? Será que aquela mulher se


dedicava a escutar atrás das portas agora? A ler sua correspondência?

487
Só estava em sua casa há dois dias, e Mary já se colocou a par de seus
assuntos.

Lilith cruzou os braços diante dos seios esplêndidos.

— Então é verdade.

Gabriel imitou seus movimentos e se recostou na cadeira


com ar quase desafiante.

— E se o for, qual o problema?

Ela franziu o cenho.

— Não quero que se meta nisso.

Esquecidos os ovos quentes, Gabriel se esforçou para


manter uma expressão tranquila.

— E por que não?

Lilith fez uma pausa, como se não estivesse certa do que


responder e respirou fundo.

— Porque é de uma maldita estupidez. Haverá falatórios.

Estava mentindo. Gabriel não tinha dúvidas de que aquilo a


preocuparia, mas não era o verdadeiro motivo pelo qual não queria que
ele se intrometesse no assunto. E ambos sabiam. Negou com a cabeça.

— Não é o bastante. E vir até aqui de camisola é também


uma maldita estupidez. Se os criados a virem aqui e assim, a notícia
estará na boca de todos desta cidade antes do anoitecer. Tanto faz se a

488
tombasse sobre a mesa e a fizesse minha agora mesmo, o resultado
seria o mesmo.

Primeiro: se alguém desejava irritar Lilith, só bastaria lhe


dizer que algum de seus atos era estúpido. Dizer isso não fora uma boa
ideia, Gabriel já estava arrependido, tarde demais viu o brilho de raiva
em seus olhos. Segundo: plantar na mente dos dois a imagem dele
tomando-a sobre a mesa da sala de refeições, os levaria ao limite. O
olhar que Lilith dirigiu à superfície larga e encerada da robusta mesa de
carvalho, provocou-lhe um leve rubor no rosto, o que fez o pulso e a
respiração de Gabriel acelerarem. Sim, já imaginava o manjar dos
Deuses que teria naquele corpo delicioso. E se fizessem amor ali, em
cima da mesa, quando qualquer um podia entrar? O escândalo seria
incrível, e então ela seria obrigada a casar-se com ele. Não. Mas Lilith
estava determinada a abandoná-lo. Tinha-o deixado bem claro.

— Por mais que esteja tentado a ficar sentado aqui toda a


manhã, admirando seus mamilos empurrarem esse tecido tão
maravilhosamente transparente. - Prosseguiu, ficando duro à medida
que falava. — Tenho assuntos mais urgentes esta manhã, o menos
importante, é fazer uma visita ao estabelecimento do senhor Bronson.
Não preciso dizer por que não quer que eu vá, Lilith.

Ela se ruborizou como uma ruiva irritada.

— Você sabe por que não quero que vá.

Fitou-a nos olhos.

— Diga-me você.

— Mas que inferno, eu sei que ele tentará matá-lo, por favor.

489
Ela teria sentido o ardor em seus olhos? O pulsar de sua
veia em sua garganta?

— Você já me feriu muito mais do que Bronson poderá me


ferir, e parece que eu suportei bem essa agonia.

Ela empalideceu, ficou tão branca como sua camisola.

— Isso não é justo.

Então Gabriel mostrou um frágil sorriso.

— Mas é a verdade. Para mim essa sua suposta postura


nobre não passa de covardia.

Ela se precipitou sobre ele, com o cabelo caindo atrás de si e


o robe moldando suas curvas.

— Se vou é porque a amo!

A poltrona de Gabriel arranhou o chão quando este se


levantou de um salto.

— Mas que maldição, Lilith! - Gabriel gritou, dando um golpe


com as mãos sobre a mesa. — Sei que tem medo de me amar.

Ela o olhou irada, mas em seus olhos havia um brilho de


insegurança.

— Não seja absurdo.

— Absurdo? - Ele arqueou uma sobrancelha. — Deixar que


falem mal de você lhe é muito mais fácil do que provar a eles que estão

490
errados, não é, Lilith? Se ninguém esperar nada de você, não precisa
mostrar seu valor.

Com os olhos arregalados, ela recuou um passo.

— Você não sabe de nada.

Gabriel se endireitou.

— Ah, mas eu sei que a garota por quem me apaixonei não


hesitaria diante de um obstáculo. Mostraria a todos que duvidam dela,
sua têmpera e valor, e ao Inferno quem não gostasse. Não fugiria
correndo de mim só por ter medo do que dissessem por ai.

Lilith levantou o queixo enquanto seus dedos se enroscavam


em torno do respaldo de uma cadeira.

— Eu era ingênua e tola. Não sou mais aquela menina.

Gabriel não se incomodou em ocultar sua decepção.

— É o que estou vendo.

Ela se encolheu como se lhe tivesse levantado a mão.

— Melhor ver agora que depois de um casamento.

Evitando seu olhar, Gabriel aproximou sua poltrona à mesa,


o estômago apertado em um nó.

— Então não resta nada a dizer. Por favor, me desculpe.


Estou atrasado para um compromisso.

491
Ela o chamou, mas ele não olhou para trás. Qualquer coisa
que dissesse, ela sempre teria algo a objetar. Por quê? Por que se
indispor contra ele quando os dois queriam ficar juntos? Por que tinha
tanto medo de ficar ao lado dele? Pensaria que não aguentaria a
maledicência? Considerava-se uma párea na sociedade? E toda aquela
estupidez sobre ele sacrificar seus princípios e crenças. Que tolice! De
uma coisa estava certo: seria necessário mais que palavras para
convencê-la. Rachel tinha razão. Pois bem, se era ação o que a
convenceria, teria ação. Assim que acabasse com Bronson, procuraria
Rachel e lhe pediria ajuda para provar a Lilith até onde estava disposto
a chegar para mantê-la a seu lado.

Encontrou Robinson no vestíbulo com seu sobretudo,


chapéu e luvas.

— Permite-me um conselho, Sua Senhoria?

— Qual? - Respondeu Gabriel um pouco receoso pegando


suas luvas.

— Se Bronson lutar sujo, agarre-o pelo pescoço e aplique


uma chave de braço. - O robusto mordomo ilustrou suas palavras com
complicados gestos de mão. — Sufoque-o até que esteja de joelhos, um
rápido chute na cabeça o deixará dormido como um bebê.

Gabriel fitou cuidadosamente Robinson. Não estava certo de


que falava a sério ou não.

— Obrigado pela sugestão.

Saiu a passo ligeiro na manhã morna e limpa, e se


perguntou se não seria ele mesmo a precisar de um chute rápido na
cabeça. Afinal, enfrentaria sozinho um perigoso criminoso.

492
Sua carruagem o esperava quando desceu os degraus.

Deixou o brasão bem a vista na portinhola, para que todos


vissem Lorde Angelwood fazendo uma visitinha ao senhor Samuel
Bronson. Queria provocar rumores, queria que todos soubessem até
onde estava disposto a ir a fim de proteger Lilith. Sentiu o ranger do
cascalho sob seus pés, um som áspero que servia de contraponto ao
distante burburinho do tráfego de Londres. Durante a temporada,
Mayfair se levantava tarde, mas os sons de Londres não paravam
nunca.

Fez um gesto afirmativo ao lacaio que lhe deu bom dia e lhe
abriu a portinhola, e a seguir subiu na carruagem. Ao ver o que, ou
melhor quem, já estava dentro, lhe escapou uma gargalhada.

— Não vamos deixar que faça isto sozinho.

O lacaio fechou a porta e Gabriel sentou-se em seu lugar de


costume, com uma expressão de irritação misturada a bom humor,
fitou Brave e Julian.

— Não tenho nenhum desejo de vê-los se envolver neste


assunto.

Golpeou o teto para que o cocheiro se pusesse a caminho.


Desejava jogar os dois na rua, mas sabia que estaria mais seguro se os
amigos o acompanhassem. Ajeitando-se no assento a frente, Brave
soltou um grunhido desdenhoso.

— Por Deus, homem, somos seus amigos. - Afirmou sem dar


importância a sua carranca. — Já estamos nisso até o pescoço.

493
— E não vamos permitir que enfrente sozinho um pugilista
profissional da pior fama. - Acrescentou Julian. — Pense no que quer
homem!

Gabriel encolheu os ombros.

— Já pensei. E por saber que Bronson é perigoso não lhes


pedi que me acompanhassem. Mas já que estão aqui, agradeço por isso.

Brave e Julian trocaram olhares de surpresa. Pelo visto,


esperavam que Gabriel oferecesse mais resistência.

— Não sei quantos asseclas Bronson terá consigo. - Declarou


Gabriel, para explicar sua rendição. — Sinto-me melhor em ter os dois
perto de mim, principalmente você, Jules.

Dos três, Julian era quem tinha os punhos mais habilidosos.


Quase sempre superava Brave ou Gabriel nos treinamentos. Alto, mais
forte e com membros mais largos, o gentil Julian se movia com a
velocidade e eficácia de um felino. Quando estavam na universidade,
mais de um tolo tentara levar Julian a nocaute, mas nenhum
conseguiu. Julian evitava lutar se não fosse por esporte, mas Gabriel
sabia que o ajudaria se precisasse.

Se Julian era bom com os punhos, Brave era o melhor com


as pistolas, e Gabriel, com a espada. Por isso, já sabendo que Bronson
provavelmente contaria com o apoio de valentões, Gabriel se precavera
em levar armas.

— Lilith está sabendo disso? - Perguntou Brave.

O coração de Gabe bateu contra as costelas.

494
— Sim.

E de frente a ele viu duas expressões de compreensão quase


idênticas. Julian perguntou:

— Ficou contrariada?

Gabriel fez uma careta.

— Pode-se dizer que sim. Espero que não se importem, mas


preferiria não falar desse assunto agora.

Seus amigos fizeram um gesto de assentimento, e Brave


disse:

— Claro.

Pouco depois a carruagem parou diante do Hazards. Depois


de muito esmurrar e chutar as portas, por fim alguém veio abrir. Era
um homem de meia idade, bem medíocre, com cabelos castanhos e
olhos insípidos.

— Maldição! - Gritou. — O que pensam estar fazendo?

Gabriel esbarrou nele ao passar adiante, seguido de Brave e


Julian. O empregado ficou boquiaberto e correu para detê-los. Com sua
voz autoritária, Gabriel ordenou:

— Sou Lorde Angelwood. E estes são meus amigos.


Desejamos ver seu patrão imediatamente.

Ao ouvir o título de Gabriel, o homem perdeu um pouco de


cor, se não estava envolvido nas atividades infames de Bronson, estava

495
informado de algumas delas. Com voz grave, com um grunhido, Gabriel
perguntou:

— Onde está aquele verme?

Uma raiva latente, feroz, fervia a fogo lento em seu ventre. O


homem pareceu encolher-se sob seu olhar.

— E... Está no... Clube.

Gabriel e seus amigos se dirigiram na direção que o


empregado trêmulo indicava e seguiram por um longo corredor
revestido de painéis de carvalho que terminava em uma porta dupla.
Estava aberta.

Gabriel nunca pusera os pés no Hazards. Era um local


suntuoso, sobriamente masculino, embora carecesse do refinamento do
Mallory's. Em parte, devia-se ao gosto impecável de Lilith e o resto se
devia a sua origem. Lilith tinha nascido na aristocracia e portanto
aprendeu o refinamento em tenra idade. Bronson era um novo-rico,
vulgar.

Cruzaram com um cavalheiro que saía. A julgar pelo jeito


carrancudo, não parecia muito contente.

— Posso ajudá-los, cavalheiros? - Perguntou, em um tom


levemente mais amável que sua expressão.

— Procuramos pelo senhor Bronson. - Respondeu Gabriel.

O homem gesticulou com a cabeça o outro extremo do salão


de jogos.

496
— O desgraçado está em seu escritório. Na última porta a
esquerda e sigam por lá até o final. A porta da direita.

Dito isto, passou junto a eles quase os tocando e continuou


seu caminho pelo corredor.

— Tenho a impressão que por aqui o senhor Bronson não é


muito apreciado. - Comentou Julian enquanto seguiam adiante.

Encontraram o escritório de Bronson onde havia dito o


cavalheiro carrancudo, e Gabriel abriu a porta sem se anunciar. Um
homem grande e forte levantou a cabeça diante daquela invasão. Não
era o que Gabriel esperava: um tipo de pescoço grosso, nariz largo e
testa estreita, com aspecto de ter recebido muitos golpes no rosto. O
nariz de Bronson tinha uma leve inclinação que indicava que fora
quebrado, mas além disso, parecia mais um cavalheiro que um
boxeador. Embora fosse difícil, o ódio de Gabriel aumentou. Bronson
não parecia surpreso ao vê-lo, de fato, parecia divertido quando disse:

— Lorde Angelwood, suponho.

Gabriel assentiu.

— Já que sabe quem sou, creio que podemos ir direto ao


ponto.

Bronson soltou uma risadinha e se ajeitou na poltrona.

— Direto ao ponto. Gosto disso. Suponho que veio me acusar


de ter algo a ver com o acidente terrível no Mallory's, estou certo?

497
Gabriel apertou os dentes e manteve o controle. Acidente
terrível? O maldito desgraçado sabia muito bem que não fora um
acidente.

— Não vim aqui para acusá-lo de nada. - Respondeu. — Isso


eu deixo a cargo da polícia. Vim lhe dar um conselho: É melhor que saia
da cidade.

Desta vez Bronson riu, e seus olhos escuros cintilaram. Se


Gabriel não soubesse o tipo de monstro que era, o consideraria até
simpático.

— Meu caro, a polícia não tem nada contra mim, Lorde


Angelwood, e aposto que ninguém me viu no Mallory's.

Gabriel sustentou seu olhar.

— Lady Lilith o viu.

Bronson nem piscou.

— E quem acreditará na palavra dela contra a minha? Eu


sou um respeitável homem de negócios. Tenho amigos influentes. E ela
só está um pouco acima das putas.

Gabriel se conteve para não perder o controle para não


agarrar o pescoço de Bronson. Com voz grave respondeu:

— Eu acredito nela.

Mais risadas grosseiras. O verniz de Bronson caía. Quanto


mais mostrava confiança em si mesmo, mais suas raízes sobressaíam.

498
— Sem querer ofender, Angelwood, todos sabem que você se
meteu entre suas saias muitas vezes. Está tão atolado entre suas
pernas que está pensando só com suas bolas, meu amigo. Você acredita
em tudo o que ela diz quando se mete dentro dela.

Quase estremecendo de ódio, Gabriel fitou os olhos


divertidos de Bronson.

— Ouça-me bem: Talvez você pense que é melhor do que


Lilith Mallory, mas ela nasceu na nobreza. E você nasceu na lama, não
importa o quanto dinheiro tenha, você sempre estará na lama, jamais
será um cavalheiro. - Teve a satisfação de ver Bronson empalidecer de
ódio, e então acrescentou: — E como deixei bem claro, saia de Londres.

A boca de Bronson se curvou em um ricto desdenhoso.

— E eu afirmo que você não tem nada contra mim.

Dessa vez foi Gabriel quem soltou uma risadinha.

— Não preciso disso. Sou um par do reino.

Rodeou a mesa até colocar-se junto à poltrona de seu


adversário. Jogou alguns papéis no chão e apoiou um quadril na
beirada da escrivaninha.

— Como acha que reagirão meus amigos e conhecidos ao


saberem o que você fez à futura Condessa de Angelwood? - Diante do
olhar perplexo de Bronson, prosseguiu: — Não tinha pensado nisso,
hein? A aristocracia não aceitará bem que tenha tentado matar um de
nós, Bronson. Principalmente, se for uma dama. Conheço-os bem e
tenho influência sobre eles. Talvez alguns estejam em dívida com você,

499
mas se juntarão a mim mais cedo ou mais tarde. Acha que poderá nos
enfrentar?

Um músculo se contraiu no pescoço de Bronson.

— Você não pode fazer isso. Não tem tal poder.

Gabriel sorriu. Ambos sabiam que tinha.

— Gostaria de tentar? Lembre-se: eu estava na carruagem


que seus homens tombaram. Creio que tentar matar um par do reino é
um crime cujo castigo é a forca. Não é meus amigos?

Lançou um olhar a Brave e Julian que assentiram.

— E então Bronson? Vai de bom grado recomeçar em outro


lugar, ou vai se arriscar a ficar em Londres e falir, se não algo bem pior?

A expressão de Bronson era pétrea como granito.

— Deixou bem claro seu argumento, Angelwood. Agora, saia


de meu clube.

Gabriel deu a volta e olhou a Brave. Com um gesto lhe


apontou a porta. Brave percorreu a distância e passou o ferrolho no
trinco. Então Gabriel voltou a olhar Bronson, retirou o sobretudo e o
jogou sobre um sofá sorrindo. Ouviu os passos de seus amigos, que se
aproximaram e ficaram atrás dele.

— Um momento, senhor Bronson. Ainda resta um assunto


que devemos concluir, covardemente você bateu em Lady Lilith.

500
Pela primeira vez desde que chegaram, Bronson perdeu algo
de sua fanfarronice.

— Não sei do que fala.

Gabriel jogou para trás o punho.

— Pois permita-me esclarecer a questão.



Gabriel não se encontrou com Lilith imediatamente após sua


"visita" a Bronson. Tampouco apareceu naquela noite, nem no dia
seguinte. Deixou-a sozinha, como era desejo dela.

À medida que a dor e o inchaço do rosto diminuíram e a


garganta se curava, a alma dela começava a sofrer mais. Continuava a
sonhar com Bronson e com o incêndio, só que agora Gabriel não estava
ali para salvá-la. Era abandonada para se queimar, e Lilith sabia que a
culpa era dela mesma.

Sentou-se na cama, a cama que já não tinha o cheiro dele,


recostou-se nas almofadas, e pensou se valeria a pena ou não se
levantar e vestir-se. Parecia não ter muito sentido, quando ninguém,
exceto Mary a veria. O que havia com ela? Essa reação não era uma
coisa própria dela. Maldição, já devia ter-se levantado e atarefada com
os assuntos do clube. Mesmo já não havendo mais um clube,
continuava a ter questões a resolver, como seus planos de partir de

501
Londres. Teria que reunir os pertences que se salvaram do incêndio e
decidir para onde ir.

Ao pensar em todas as lembranças e objetos queridos que se


perderam, sentiu as lágrimas arderem nos olhos. Mas estava viva, e
tinha que pensar naquilo. Móveis e as roupas eram substituíveis, mas
os quadros, cartas e as lembranças eram insubstituíveis, assim como
sua vida, e se sentia imensamente grata por conservá-la. Além disso,
Mary a informara de que a maioria das coisas armazenadas no sotão
estavam intactas, e ali estavam todos os pertences de tia Imogen. Ao
menos, restara alguma coisa. Mas precisaria comprar um novo guarda-
roupa. Gabriel comprara alguns vestidos e roupa íntima, mas não
bastava, e certamente não foram feitos para suas medidas, como era
evidente no decote daquela camisola.

No momento só tinha uma certeza: com tudo o que ainda


precisava fazer, não estaria pronta para partir de Londres no fim de
semana, nem sequer no fim do mês. Só Deus saberia o quanto
demoraria para resolver todos esses assuntos. E não podia continuar na
casa de Gabriel enquanto se encarregava disso. Já perturbara bastante
a rotina da casa, até lhe roubara a cama. E se continuasse a viver sob o
mesmo teto sem poder tocá-lo, acabaria enlouquecendo. Não era uma
mulher forte, ao menos no que se referia a ele.

Acabava de jogar as mantas para o lado e se levantava da


cama quando bateram a porta. Seria Gabriel? Deitou-se novamente e
puxou as mantas até lhe cobrirem a cintura e se recostou nas
almofadas. Só Deus sabia a aparência horrível que devia ter. Nem
sequer escovara os cabelos ainda. Disse:

— Entre. - E a porta se abriu, Lilith sentiu uma decepção


profunda, era Mary.

502
— Bem. - Comentou a amiga com alegria fingida. — Se
soubesse que encontraria esta recepção, teria ficado lá embaixo mesmo.

Arrependida, Lilith sorriu para a amiga.

— É claro que estou contente em vê-la. - Deu uns tapinhas


ao seu lado na cama. — Apesar do meu humor, você parece muito feliz.
Venha aqui e me conte o que há de novo.

Mary realmente parecia feliz. Sua aparência era


milagrosamente alegre, principalmente quando estivera com o coração
partido fazia muito pouco tempo. Sorrindo, ela se aproximou e se
sentou junto a Lilith, estava corada e isso a rejuvenescia bastante.

— Recebeu notícias do senhor Francis?

Lilith não sabia de outra coisa que fizesse sua amiga ficar
tão alegre, isso ou uma visita do reverendo Geoffrey Sweet. O bom
reverendo “as visitara” muitas vezes após o incêndio, só para ver Mary,
certamente. Mas também lhe tinha enviado lembranças e desejos de
recuperação, além de uma cesta de frutas, maçãs em sua maioria. A
referência bíblica não escapou a Lilith. O clérigo tinha senso de humor.

O sorriso de Mary cresceu enquanto assentia. Meu Deus,


parecia tão maravilhada quanto uma garotinha com sua primeira
boneca!

— Ontem à noite recebi a visita do senhor Francis.

Lilith a olhou surpresa.

— E esperou até agora para me contar isso! Que vergonha!

503
O rubor de Mary se intensificou.

— Teria vindo antes, mas queria tanto dar a notícia a


Geoffrey.

No peito de Lilith floresceu a esperança.

— Não me diga que seu marido está morto.

Tinham brincado sobre o assunto, mas daí a ser real. Bem,


seria um milagre. Mary riu e negou com a cabeça.

— Melhor, ainda.

Lilith franziu o cenho. O que seria melhor do que o miserável


morto?

— Não fique aí sentada, sorrindo como uma criança. -


Declarou um pouco irritada. — Diga logo o que houve!

Mary trocou de postura para ficar de frente a Lilith, e se


inclinou para aproximar-se, como se temesse falar muito alto.

— O desgraçado nunca foi meu marido de verdade. -


Sussurrou, com um sorriso tão grande que eclipsou o sol que entrava
pela janela.

— Como assim: nunca foi seu marido? Houve uma


cerimônia, não?

Mary a fez calar com um gesto da mão.

— Uma cerimônia, sim, mas ilegal.

504
Lilith a olhou boquiaberta. Era muito bom para ser verdade.
Um verdadeiro milagre!

— Ilegal?

Mary sorriu.

— O desgraçado já era casado quando se casou comigo.


Nosso casamento nunca existiu. Ele tinha outra esposa e família.
Quando me dizia que saía de Londres a trabalho, na verdade se
encontrava com a outra família em Kent.

Qualquer outra mulher ficaria horrorizada por ser enganada


de uma forma tão cruel e desumana, mas Mary estava exultante. A
bigamia de seu "marido" significava sua liberdade.

— E o que diz o reverendo de tudo isso?

Ainda mais corada, Mary soltou um sorriso luminoso.

— Quer me cortejar um pouco antes de me oferecer o marido


que mereço.

Tão feliz que se sentia a ponto de chorar, Lilith estendeu a


mão e segurou firme uma das mãos de Mary.

— Ah, minha querida amiga! - Declarou esfuziante. — Estou


tão feliz por você!

A expressão de Mary serenou um pouco.

— Gostaria que pudesse sentir o mesmo por você.

505
— A sociedade nunca me aceitará como uma Condessa,
Mary. Todos me desprezam.

— Acha mesmo isso?

Mary levantou a mão. Nela havia um grande volume de


cartas.

— Algumas chegaram ontem à noite. Outras chegaram esta


manhã. Creio que chegarão mais à tarde.

Lilith fitou os papéis.

— De quem vieram?

Mary encolheu os ombros.

— Não estou certa, mas são para você. - Lançou as cartas no


colo de Lilith. — Por que não as abre?

Por um momento Lilith ficou sentada sem dizer nada,


estendeu a mão e pegou a primeira carta de cima. Estava escrita em
papel rosa, Deus, cheirava a rosas, até o selo tinha o formato de uma
rosa. Era um convite da Marquesa de Wynter para um chá, a tempos
atrás fora considerada uma mulher tão escandalosa quanto ela mesma,
mas depois que se casou com o Marquês... Por que a convidaria para
tomar chá?

Com dedos hesitantes, Lilith deixou de lado o convite e


pegou a seguinte. Mais papel caro, mas sem perfume. Era um convite
para fazer parte do clube musical de Lady Pennington. Lilith nunca
gostou de Lady Pennington, Lilith colocou o convite ao lado do convite

506
da marquesa. À medida que abria um convite após o outro, sentiu uma
estranha e crescente mistura de surpresa e desconforto. Por que
recebera os convites dessas mulheres? Lady Pulôver a convidava a uma
festa em seus jardins, pelo amor de Deus! Um dos baluartes da nobreza
a convidava para uma festa em seus jardins!

Também havia uma carta do senhor Dunlop, com um buquê


de flores, e de Lady Wyndham, ambos lhe desejando uma rápida
recuperação e prometendo visitá-la assim que estivesse melhor. Lilith se
perguntou o que estaria fazendo Lady Wyndham e Lorde Somerville
agora que não tinham o Mallory's para se encontrarem. Quando abriu a
última carta, um convite para um baile em Carlton House, perguntou a
Mary:

— Mas que diabos está acontecendo? Isto é ridículo.

Mary sorriu, tão perplexa quanto Lilith, embora um pouco


mais relaxada. Lilith estava estupefata. Acaso alguém estaria
chantageando aquelas pessoas para que a convidassem? Gabriel estaria
fazendo pressão ou usando sua influência para que a convidassem? Era
por demais irreal para ser possível, mas vindo dele. Seria a única
explicação.

— Ele está aqui? - Perguntou Lilith. Não houve necessidade


de mencionar a quem se referia.

— Não. - Respondeu Mary. — Saiu bem cedo.

— Aposto que sei o motivo.

Ah, não sabia se fervia de raiva ou caia no choro. Mas quem


ele pensava que era para manipular assim às pessoas? Esperaria torná-
la feliz por obrigar a sociedade a abrir-lhe as portas? Isso não mudava

507
nada, não seria aceita realmente por eles. Mas o amou por tentar dar-
lhe um lugar entre eles.

— Peça que me preparem um banho, por favor Mary.


Também precisarei de sua ajuda para me vestir. Vou descer, a esperar
pelo nosso anfitrião. Creio que me deve explicações.

O tom de aviso em sua voz não impediu que o rosto de Mary


se abrisse em um enorme sorriso.

— Claro.

Uma hora depois, Lilith se encontrava no escritório de


Gabriel, esperando por sua volta. Estava sentada em um sofá robusto
de carvalho escuro, estofado com suntuoso veludo. Meia hora depois,
tirou as sapatilhas e afundou os dedos dos pés no luxuoso tapete
estampado de verde e marrom. Também teria tirado as meias se não
acreditasse que nesse momento Gabriel escolheria para voltar. Todo
cômodo era um reflexo dele: ali se respirava tranquilidade e força. Era
masculino mas elegante, discreto, mas com um toque de ousadia,
quente e atraente.

Enquanto esperava, imaginou-o em sua escrivaninha,


trabalhando em algo que tivesse a ver com seus negócios navais. Com
os olhos da mente o via inclinado sobre uma pilha de papéis. Ah, um
momento! Agora levantava o olhar. A via no sofá! Então se levantava e
vinha para ela, cada passo um avanço majestoso e prudente, como o de
um caçador que sabe ter a presa a sua mercê, sem chance de escapar.
O coração dela batia rápido enquanto ele tirava o casaco e depois o
colete. A gravata caía no chão. A camisa era levantada, revelando o
abdômen plano e o tórax musculoso, enquanto passava a camisa por
cima da cabeça, e a jogava no chão. Lilith já tinha a boca seca ao
imaginá-lo levar a mão à dianteira das calças.

508
— Perdão Lady Lilith, mas tem visita.

Com o coração martelando, os pulmões vazios e o rosto


ardendo, Lilith fitou o homem robusto que devia ter o pior senso de
oportunidade do mundo.

— De quem se trata, senhor...? - E quem era aquele sujeito,


pensou meio atordoada

— Robinson, senhora. A visita é Lady Braven.

Rachel! Ah, aquilo sim merecia a interrupção de sua


fantasia!

— Por favor, senhor Robinson, poderia trazê-la aqui?

O mordomo se inclinou e saiu. Minutos depois anunciou


Rachel, que irrompeu no cômodo como um raio de sol vestido de
musselina rosa.

— Lilith! - Gritou. — Que alegria vê-la outra vez!

Lilith se levantou bem a tempo de ser envolvida em um


abraço carregado de perfume e calor. Sentiu-se feliz por ver Rachel. Mas
a teria feito mais feliz se tivesse trazido consigo o pequeno Alexander.

— Estou tão contente por vê-la novamente. - Declarou


quando se sentaram. — Parece ter passado uma eternidade depois da
última vez que nos vimos.

Rachel se inclinou a frente e lhe deu um tapinha na perna.

509
— Antes de visitá-la, quis ter certeza de que estava bem para
receber visitas. Como se sente, querida?

Seu interesse era comovente. Lilith não estava acostumada a


ter uma mulher, além de Mary, demonstrando preocupação por sua
saúde.

— Obrigado, Rachel, estou bem. A garganta quase voltou ao


normal, e como vê, o hematoma começa a sumir.

A expressão de Rachel se fechou ao pousar o olhar no rosto


de Lilith.

— Desprezo homens que recorrem à violência para conseguir


um fim.

A testa de Lilith se franziu. Rachel teria conhecido um


homem assim? Era o que parecia, a julgar pelo modo com que falou.
Mas o bom humor habitual da loira retornou tão rápido como surgira.

— Mas o que faz aqui, no escritório de Gabriel? O salão azul


é muito mais acolhedor.

Então Lilith perdeu o bom humor.

— Estou esperando sua volta para termos uma conversa.

— Ah, por Deus. O que ele fez agora?

Lilith colocou a mão sob a perna e tirou os convites que


tinha recebido.

— Veja. - Disse, e as entregou com um gesto enérgico.

510
Sua amiga pegou as cartas e as examinou cuidadosamente.
Depois olhou Lilith com uma expressão de divertida confusão.

— O que têm de ruim? Eu também recebi várias.

— São estapafúrdias. - Explicou-lhe Lilith zangada. — São


dirigidas a mim só porque Gabriel chantageou ou obrigou essas
mulheres. Nenhuma delas gostaria de ter relações com uma mulher
como eu.

Rachel arqueou uma sobrancelha.

— Eu sou sua amiga.

Lilith franziu o cenho com impaciência e fez um gesto com a


mão. Não desejava ir por esse caminho.

— Sim, mas você é diferente. Se não fosse pela amizade que


há entre Brave e Gabriel, nem sequer nos conheceríamos. Essas
pessoas nem sequer me conhecem, nem querem me conhecer. Nunca o
quiseram, principalmente depois do escândalo, por que se mostram tão
amáveis agora? Eu lhe direi o porque: Gabriel acha que ficarei com ele
se a sociedade me aceitar. Bem, não aceitarei isso só porque ele
convenceu algumas pessoas a me receberem. Não quero caridade.

Cruzou os braços e fez com a cabeça um gesto resoluto.


Rachel pôs-se a rir às gargalhadas.

— Do que está rindo? - Perguntou Lilith. — Falo sério!

511
O aborrecimento tornou-se tristeza ao ver Rachel continuar
a rir. Claro que achava engraçado. Ela não sabia o que essa gente
murmurava as suas costas. Ela era uma Condessa.

— Ah, Lilith! - Disse Rachel secando os olhos. — Você está


completamente enganada!

Lilith ficou em silêncio. Como assim? Rachel estaria


implicada naquilo? Com cautela, perguntou:

— Você sabe de alguma coisa?

A menina mimada que havia dentro de si quis sapatear no


chão e exigir que lhe contassem a verdade, mas isso não era a maneira
de conseguir o que desejava. Contendo a risada, Rachel levantou o
olhar para ela.

— Gabriel não obrigou ninguém a fazer o que quer que seja.


Simplesmente, plantou alguns rumores entre as pessoas adequadas, e
deixou que se espalhassem. Sei porque eu o ajudei nessa tarefa.

Lilith entreabriu os olhos. Odiava rumores. Sempre a


seguiram sem piedade durante os últimos dez anos.

— Que rumores?

Rachel nem sequer pareceu embaraçada diante da raiva


crescente de Lilith, felizmente a ignorou e estranhamente lhe deu uma
sensação de paz.

— Bem, dissemos a certas pessoas o modo horrível que você


e Gabriel foram separados quando eram mais jovens. A outros dissemos
que ele planejava casar com você, mas depois do trágico suicídio de seu

512
pai, ele não se sentia digno de você e se obrigou a deixá-la livre para
encontrar alguém melhor que ele.

O coração de Lilith cobriu-se de gelo. Gabriel revelara a


verdade sobre seu pai?

— Para outros contamos que seus pais a mandaram para


fora do país e ocultaram seu paradeiro de Gabriel. Que a procurou
desesperado durante anos, conseguindo só mentiras a cada passo. -
Rachel sorriu. — As pessoas não demoraram muito a comentar entre si
e comparar as estórias, e a noite a história inteira já corria por Londres.
Agora todos os consideram os amantes desventurados, que por fim se
reencontraram.

Rachel soltou um sorriso e Lilith a olhou de cima a baixo.


Mal podia respirar. O que Gabriel tinha na cabeça? Revelara tudo, até o
suicídio do pai.

— E além disso, Gabriel mudou sua posição sobre o jogo na


Câmara. - Continuou Rachel. — E todos acreditam que é por você. Ele
diz que "alguém" o fez reconhecer seu engano.

Ai, Senhor! Ia vomitar. Aquilo era pior do que imaginava.


Com a voz rouca e o estômago embrulhado, perguntou:

— Pelo amor de Deus, ele não está defendendo o jogo agora,


certo?

Rachel lhe lançou um sorriso malicioso.

— Não. Propôs melhorar as leis que regulam o jogo, para


proteger não só os jogadores, mas os clubes também. Ele ama você,
Lilith, e não se importa que todos saibam. Quer ser seu companheiro de

513
vida, casar com você. - Levantou os convites. — Isto aqui é só a ponta
do iceberg: todos desejam que isso aconteça.

Muda de assombro, Lilith olhou os dedos dos pés, cobertos


por meias de seda. Estavam cravados tão fortes no tapete que os pés
começavam a adormecer. Rachel envolveu com sua mão o pulso de
Lilith, que levantou o queixo e olhou nos olhos violeta da amiga.
Tinham uma expressão séria.

— Lilith, a decisão é sua. Gabriel fez todo o possível para


convencê-la do grande amor que sente por você. Vença seu medo e se
permita a corresponder esse amor? Ou será que devo ajudá-la a fazer as
malas?

A pergunta a surpreendeu. Rachel estaria dizendo que


continuaria a ser sua amiga mesmo desprezando os sentimentos de
Gabriel? Quando foi a última vez que tivera uma amiga de sua idade
que prometesse estar a seu lado em qualquer circunstância?

Então Lilith se levantou e avançou para a escrivaninha de


Gabriel.

— Eu realmente gostaria que você me ajudasse a responder


a estes convites. Tenho a sensação de que vou precisar de muita ajuda
depois do almoço.

514
Era mais de meio-dia quando Gabriel
chegou em casa. Tinha passado a manhã toda se certificando de que as
histórias sobre Lilith e ele se espalhavam como o esperado em toda a
cidade, e de vez em quando, respondendo com habilidade algumas
perguntas, às vezes indiscretas, sobre seu pai. No meio da manhã
procurara Duncan Reed e a polícia para confirmar se Bronson
embarcara rumo à Nova Escócia. Era um dos navios do Seraph, e
Gabriel enviara um recado a Garnet para que vigiasse o antigo
proprietário do Hazards com cuidado.

Agora só precisava enfrentar Lilith, e esperar que toda


aquela maquinação, planejamento e expurgar segredos desagradáveis
conseguisse o resultado que esperava, ou seja, mostrar a Lilith o quanto
a amava e o que estava disposto a fazer para mantê-la ao seu lado. E se
aquilo não fosse o bastante para convencê-la, teria que passar ao plano
B: trancá-la a chave na adega até que recuperasse a razão.

Robinson o recebeu a porta para recolher seu chapéu e


luvas. Sem mudar de expressão, comunicou-lhe:

— Lady Lilith requer sua presença em seu quarto, quero


dizer, no seu quarto, Sua Senhoria.

— Obrigado, Robinson.

Gabriel sentiu que a ansiedade o agarrava pelo estômago.


“Por favor”, implorou em silêncio. “Por favor.” Notou o olhar frio do

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mordomo sobre ele, de maneira que se obrigou a subir a escada como
sempre, embora no fundo desejava subir correndo como um louco.

Quando chegou à porta de quarto, seu estômago era um


apertado nó. Bateu na sólida porta de carvalho e esperou até ouvir a voz
amortecida de Lilith.

— Entre.

Então ele girou a maçaneta. A porta se abriu, e entrou. Lilith


estava de pé junto à cama, vestida com um dos trajes que lhe tinha
comprado. A costureira o confeccionara para outra pessoa e não o tinha
vendido, ficara um pouco curto e apertado nos seios, mas tinha uma
bela cor e um bom corte. Seu tom dourado ressaltava a linda pele do
colo de Lilith e o fogo de seus cabelos.

— Por que demorou tanto? - Disse ela.

Gabriel sorriu.

— Se soubesse que estava à minha espera teria voltado


antes.

Lilith riu ao ouvi-lo.

— Se eu fosse você, teria me feito esperar um pouco mais.


Daria o bom castigo que mereço por ser tão tola.

O coração de Gabriel disparou. Teria mudado de opinião, se


casaria com ele?

— Gabriel, ouvi alguns rumores inquietantes na sua


ausência.

516
"Ai, Deus."

— Que rumores?

Lilith se aproximou, a passos lentos.


— Bem ouvi dizer por aí que hoje de manhã você
providenciou para que Bronson embarcasse em um navio com destino a
Nova Escócia.

Ele encolheu os ombros quando ela estava bem diante dele e


sentiu o cheiro embriagante de sua pele, sem perfume ou artifício
algum.

— É mesmo?

Lilith se aproximou mais, até que suas coxas lhe roçaram as


pernas e os seios se esmagaram contra seu peito. Gabriel sentiu a
excitação conhecida que o levava às alturas.

— Também soube que contou a todos a verdade sobre seu


pai.

O tom baixo e sentido na voz de Lilith fez lhe correr um


calafrio pela coluna.

— Sim...

— Contou as pessoas que não se achava bom o bastante


para mim e eu para você.

Estava zangada? Não saberia dizê-lo.

517
— Sim...

O olhar dela baixou até sua boca e logo voltou a subir.

— Contou a toda Londres que me amava. Que sempre me


amou.

Gabriel engoliu em seco. A tensão que sentia entre as pernas


se tornava cada vez mais incômoda, como à secura em sua garganta.

— Sim.

Lilith suspirou.

— Tem ideia do quanto eu o amo por ter feito essa loucura?

A resposta foi um sussurro rouco.

— Conte-me você.

Então Lilith ficou nas pontas dos pés, rodeou-lhe o pescoço


com os braços macios e se apertou contra ele. A ereção saltou ao sentir
seu contato. Depois, sem afastar os olhos dele, sussurrou:

— Amo tanto você que chego a sentir dor. Amo tanto que vou
precisar de pelo menos os próximos cinquenta anos para provar-lhe o
quão profundo é o amor que sinto por você.

O peito de Gabriel se contraiu, e seu coração foi às alturas.


Enlaçou-a pela cintura, se acaso aquilo fosse um sonho e ela tentasse
escapar, perguntou:

— Ama o bastante para ser minha esposa?

518
Lilith não respondeu. Limitou a se inclinar para a frente,
esmagando a maciez de seus seios contra a parede firme do peito dele, e
pousou sua boca, doce e arqueada, sobre a dele. Todos os nervos de seu
corpo deram um salto. Não era mais que uma união de lábios, e
entretanto, para ele era a forma mais profunda e intensa de uma união
que parecia eterna, tanto que a carne dura e palpitante que tinha entre
as pernas desejou afundar-se em Lilith. Só com ela experimentara essa
necessidade tão arrasadora e insaciável. Seria esta a forma de dizer-lhe
que aceitava? Não o dissera ainda, mas o toque de suas mãos e seu
sabor eram mais que qualquer palavra. Sentiu no peito um júbilo e uma
alegria sem limites. Entregava-se a ele. Não só o corpo, mas também o
coração e alma. Maldição se isso não fosse um "sim".
Gabriel deslizou as mãos pela musselina fina que cobria as
costas dela até em cima, onde começava a fileira dos pequenos botões,
até sob a nuca. Um por um, seus dedos foram abrindo-os até que todo o
decote não era mais que um amontoado de tecido seguro por seus
ombros. Interrompeu o beijo e sussurrou:

— Diabos, tire isso.

Lilith sorriu, com os olhos obscurecidos e carregados de


desejo.

— Faça-o você mesmo.

E ele o fez. Tirou-lhe o vestido, afastando-o como a pele de


uma fruta exótica, desceu-o pelos braços e logo chegou a generosa
curva de seus quadris, até deixá-lo cair a seus pés em um suave
sussurro.

Lilith estava diante dele, com nada mais que a anágua e o


espartilho, uma peça de cetim marfim, de encaixe e laços, que realçava

519
a curva de seus seios e lhe estreitava a cintura. Gabriel passou a palma
da mão por cima da peça acetinada até chegar ao coração onde sentiu o
tamborilar acelerado, e fechou os dedos sobre o seio exuberante. Ao lhe
tirar o vestido, ela baixara os braços, e agora levantou a mão e a
colocou no peito dele e acima do coração.

— Deixe-me ajudá-lo com isso, humm...

Os dedos de Lilith foram aos botões dourados de seu peitilho


e o desabotoou rapidamente. Também lhe tirou o colete e a gravata,
mas quando se dispôs a lhe desabotoar a camisa, Gabriel a segurou.

— Toque-me primeiro.

Devagar, rodeou com ambas as mãos a curva dos seios e os


juntou enquanto os polegares faziam saltar os diminutos colchetes que
uniam o espartilho. Sentiu a respiração ofegante dela entre as palmas, e
as deslizou mais para abaixo, sobre o rápido vaivém das costelas,
enquanto abria o restante dos colchetes. Por fim, suas mãos chegaram
à depressão da cintura, e o espartilho caiu ao chão.

O olhar dele se separou do dela, vagou por seu rosto e


baixou até a curva dos seios. Através do algodão fino e rendado
distinguiu os círculos mais escuros de suas auréolas e a ponta dos
mamilos saltados. Era a plena perfeição no sentido real da palavra, e
tremeu diante daquela magnificência.

— Agora já pode tirar minha camisa. - Disse-lhe então.

Com um puxão, dedos ávidos puxaram a camisa das calças


e a levantaram. Quando ficou claro que não podia subir mais, Gabriel
levantou os braços, agarrou o tecido e a arrancou dele, que a lançou ao
outro lado do quarto, e deixou cair os braços junto aos flancos

520
enquanto seu olhar voltava a Lilith. Esta passou as mãos ansiosa pelos
pêlos escuros de seu peito, foi descendo pelas costelas e deixou para
trás a cintura para agarrar sua ereção através da lã macia de suas
calças. Era uma sensação magnífica, realmente magnífica. Os quadris
de Gabriel se flexionaram e empurraram contra sua palma, mas de
repente, ela deixou cair a mão e levantou os olhos para ele com um
sorriso malicioso.

— Toque-me.

A chemise e a anágua era tudo o que estava entre ele e o


níveo esplendor de seu corpo. Com a boca seca, Gabriel lhe pediu:

— Levante os braços.

Lilith o fez. Devagar, quase hesitante, Gabriel agarrou a peça


delicada e a levantava, enquanto seu olhar faminto devorava cada
centímetro de pele cremosa que se revelava: a longitude das
panturrilhas, seguida pela generosa curva das coxas e o tentador ninho
avermelhado que havia entre ambas. Suas mãos ansiavam em acariciar
a abundância dos quadris e do ventre, o morno oco de sua cintura e,
por fim, a plenitude com pontas de coral de seus seios.

A anágua voou na mesma direção que a chemise. Nua diante


dele, Lilith era uma Vênus surgida da concha, Gabriel não podia afastar
os olhos maravilhados.

Mal podia respirar de puro desejo. Então ela curvou os dedos


em torno da cintura de suas calças.

— Deixou-me em inferioridade de condições. - Ronronou.

Como um bobo, ele replicou:

521
— Não acho. - Deixou cair as calças no chão. Arrancou as
botas, e de um puxão, a roupa de baixo e as meias.

— Muito mau de sua parte não ter-me deixado fazer isso. -


Lilith o admoestou com uma risadinha.

— Em um outro dia, doçura. - Grunhiu ele, enquanto a mão


dela agarrava o calor palpitante de sua ereção. — Deus, não faça isso!

Mas o aperto se fez mais forte, e um tremor sensual de


prazer lhe subiu serpenteando a coluna. Depois ela o soltou e recuou
até a cama, com um sorriso cheio de promessas em seus lábios
carnudos. Levou as mãos para os cabelos, o movimento impulsionou
para cima os seios exuberantes. Retirou as presilhas e a massa densa
de cabelos vermelhos se espalhou pelos ombros. Vênus teria chorado de
inveja.

— Venha aqui. - Lilith ordenou com um sussurro.

Como o escravo que era, obedeceu sem hesitar, com a


pressa, quase tropeçou nas botas. Lilith subiu à cama, deleitando-o
com a visão de seu delicioso traseiro, e deu uns tapinhas no colchão.

— Venha e deite-se ao meu lado.

Não precisou repetir a ordem. Sem dizer uma palavra,


Gabriel se deitou de costas sobre a colcha, com a boca seca e o corpo
ansioso enquanto esperava o que ela lhe tinha preparado.

Lilith lhe cobriu o rosto de beijos leves como plumas.

522
Mordiscou-lhe o pescoço e as orelhas, e com a boca lhe
deixou uma trilha ardente por todo o peito à medida que foi se
abaixando. Sua língua úmida e quente chegou-lhe ao umbigo e o fez
ofegar. Em seguida desceu mais ainda, com os lábios aveludados
acariciou a cabeça de seu membro, até ter toda sua longitude a mercê
de sua boca e de sua língua. Acariciou-o, lambeu e o chupou, até quase
explodir de prazer no fundo de sua garganta. Assim que ela percebeu
seu orgasmo próximo, ela o largou e o ar fresco golpeou a carne
ansiosa. Depois Lilith subiu sobre o corpo dele, passando seus mamilos
por sua carne trêmula e lhe pressionando a coxa com o vértice úmido
entre suas pernas.

— Sua vez... - Sussurrou-lhe ao ouvido.

Gabriel estremeceu. Sentia cada centímetro do corpo tenso,


tão tenso que sua pele parecia incapaz de contê-lo. Lilith deitou-se de
costas, e ele se posicionou em cima dela, imediatamente abocanhou
seus seios. Lambendo-os com sofreguidão, e com a boca tomou cada
um de seus mamilos erguidos, os chupando até que ela gemeu se
retorcendo contra ele. E quando Lilith começou a trabalhar os quadris
sob os seus, arqueando seu calor úmido contra a dureza ofegante que
ele tinha entre as pernas, empurrou-a para trás e a forçou a se aquietar
enquanto a cobria de beijos até suas coxas, exatamente como ela o
tinha excitado e atormentado instantes atrás.

O cheiro de Lilith enchia seus sentidos: almíscar, doce e


salgado, o excitando até a loucura. Devagar, baixou a boca para a carne
rosada e inchada, afundou a língua entre as dobras brilhantes e a
dirigiu para cima, até encontrar a dureza encapuçada que procurava.
As coxas de Lilith tremiam quando ele a lambeu, mas Gabriel as
separou mais e as manteve bem afastadas com as mãos. Ela ficou
completamente exposta ao assalto de sua boca, e ele a atacou sem
compaixão, explorando e lhe dando lambidinhas até que as queixas se

523
tornaram intermináveis gemidos. Então ficou rígida, suas coxas
empurraram forte as mãos de Gabriel, e seus quadris se arquearam
contra sua boca. Gritou enquanto seus músculos tremiam debaixo dele,
e ao fim se deixou cair de novo no colchão, ofegante.

Então, sem deixar de manter-lhe as coxas separadas,


Gabriel se levantou de joelhos entre as coxas abertas e trêmulas. Estava
coberta de suor e o cheiro de sua pele misturado ao seu orgasmo,
acabou com o que restara de seu frágil controle. Com um forte
empurrão, afundou o membro em suas entranhas. Ao enchê-la, Lilith
ofegou, e a carne sensível o recebeu com ânsia, dilatando-se para
acomodar sua longitude quente.

Ela abriu os olhos e os levou a ele, o homem que a fazia


sentir coisas que jamais sentira com outro alguém. Tinha a boca
molhada por lhe dar prazer, e seus olhos estavam turvos. Gabriel lhe
fincava os dedos nas pernas, enquanto Lilith, com os joelhos levantados
até os ombros, roçava-lhe as coxas com as nádegas. Estava tão dentro,
tão fundo. Com cada golpe de seus quadris parecia entrar ainda mais e
o fazia tremer de prazer, levando os dois a outro patamar de êxtase.

Assim seria o resto de suas vidas. Até que um dos dois


morresse, ela e Gabriel formariam parte um do outro, no plano físico e
emocional. Sempre haveria essa troca. Pensar em semelhante
intimidade devia aterrá-la, e normalmente a faria duvidar de si mesma,
mas nesse momento, só podiam se entregar mutuamente.

Gabriel apressou o movimento de seus quadris, e sua


respiração se fez mais ofegante. À medida que a pressão aumentava no
fundo de seu interior, Lilith observou que ele fechava os olhos e que a
testa se franzia. Os tendões do pescoço e dos ombros se juntaram, e ele
se agarrou a suas pernas com mais força. Então Lilith sentiu que
dentro dela algo mudou, sentia-se cada vez mais alto e depois caiu em

524
um vazio onde nada existia, exceto Gabriel e a doce e palpitante fricção
de seus corpos. Esse algo a sacudiu e a percorreu em ondas, e Lilith
deixou que se apropriasse dela enquanto um grito inarticulado lhe
escapava da garganta. Segundos depois ouviu Gabriel gritar, ficando
rígido em cima dela e logo, notou a cama tremer quando ele deixou cair
todo seu peso sobre os antebraços, de cada lado de sua cabeça. Depois
lhe enterrou a rosto no oco de seu pescoço e ficou em silêncio.

Ficaram assim até que Lilith notou um puxão no quadril e


começou a perder a sensibilidade nas pernas.

— Gabe. - Murmurou. — Precisa sair de mim.

Ele se separou e rodou até ficar ao seu lado. E enquanto ela


esticava a perna para aliviar a cãibra do quadril, ele a puxou para seus
braços.

— Agora tem que se casar comigo. - Afirmou Gabriel


taxativo.

Lilith levantou a cabeça e sorriu prazerosamente. Ele parecia


estar muito orgulhoso de si mesmo. Pelo menos ela estava.

— Ah, é mesmo, tenho que aceitar. E por quê?

A expressão presunçosa sumiu quando Gabriel estendeu a


mão e com uma carícia, afastou-lhe o cabelo do rosto.

— Bem, acabou de arruinar a minha vida.

Falava a sério? O que queria dizer? Referia-se a aposta


estúpida que fizeram? Ou já que ela estava com ele, nenhuma outra
mulher quereria algo com ele? Era isso o que em seu mundo se

525
entendia por "ruína". Ele deve ter visto o susto em sua expressão,
porque levantou a outra mão, tomou-lhe o rosto e a olhou intensamente
nos olhos.

— Arruinou qualquer possibilidade de amar outra mulher. -


Disse-lhe.

Lilith soltou o ar que estivera contendo nos pulmões.

— Ah.

— Amo você, Lily.

Lilith sentiu que as lágrimas lhe ardiam nos olhos, uma


umidade quente ameaçava se derramando por seu rosto.

— Amo você também Gabriel.

Então Gabriel abriu um grande sorriso, atraiu-lhe a cabeça


para ele e a beijou com tanta paixão que Lilith esqueceu onde estava, e
até quem era. Logo lhe sussurrou junto aos lábios:

— Tenho uma coisa para você.

Rodou para o outro lado da cama, procurou na gaveta do


criado mudo e tirou a bolsinha de veludo negro. O delicado anel de
esmeralda caiu em sua palma, e ele se voltou para olhá-la.

— Dê-me sua mão. - Lilith o fez, com um estremecimento


nos dedos.

526
— Quem está tremendo agora, hein? - Gabriel brincou
enquanto tomava sua mão na dele, muito maior. Manteve-a firme e
deslizou o anel no dedo, perfeito, como há dez anos atrás.

— Quero me casar o mais depressa possível. - Afirmou


decidido, abraçando-a de novo. — Não vou lhe dar a chance de mudar
de opinião.

Sorrindo, Lilith se aproximou de seu peito.

— Muito bem, pois pretendo não me separar de você, Lorde


Angelwood.

— Maravilhoso.

Beijaram-se, conversaram... Momentos depois Gabriel


estendeu uma manta sobre eles, cobriu Lilith com um forte abraço e
depois fechou os olhos, murmurando que já "passara da hora de
arrumar tudo para o casamento". Lilith se limitou a sorrir e a escutar
como, pouco a pouco, sua respiração se fazia mais regular e profunda.
Gabriel adormeceu. Lilith bocejou. Apesar de também estar cansada,
permaneceu acordada um pouco mais, esperando receosa, que outra
pessoa irrompesse no quarto, gritando que o casamento não
aconteceria. Mas isso não ocorreu, e, no fim, deixou-se vencer pelo
sono, com a cabeça reclinada no peito de Gabriel e o coração dele sob
sua mão.



527
A sociedade em peso queria que se celebrasse o casamento
em uma grande cerimônia, queriam ver Gabriel Warren, o oitavo Conde
de Angelwood, tomando por legítima esposa a famosa Lady Lilith
Mallory.

Mas Gabriel não tinha paciência para planejar um assunto


semelhante, nem permitiria que Lilith o planejasse também. Contudo,
sua paciência permitiu que Rachel organizasse um baile para o
casamento. Não foi um acontecimento excepcional, pois Rachel só
dispôs de alguns dias para os preparativos, mas se alguém se
incomodou com a simplicidade da decoração e comida, deliciosa embora
singela, guardou a crítica para si mesmo. O único motivo por quererem
estar presentes era para ver o feliz casal, que, depois de esperar dez
anos, estavam enfim juntos. O reverendo Sweet, que tinha celebrado a
cerimônia, dançou uma vez com a noiva e aproveitou a ocasião para
pedir repetidas desculpas por todas as críticas sobre ela em sua coluna.
Lilith se limitou a rir, e lhe pediu que a compensasse fazendo Mary feliz.

Enquanto sua esposa dançava, Gabriel se aproximou de


Julian, que, em um canto, observava o ambiente sem participar dele.
Enquanto o olhar do amigo percorria uma vez mais o mar de bailarinos,
lhe perguntou:

— Quem está procurando?

Com um gesto negativo, Julian replicou:

— Alguém que não quero voltar a ver.

Gabriel franziu o cenho. Era uma resposta estranha.

528
— Fique junto de Brave e Rachel. - Sugeriu. — De lá se vê
melhor a entrada.

Pouco depois de jantar, Julian pediu desculpas e partiu.


Gabriel o viu sair, ao seu lado Lilith o observava também, perguntou:

— O que há com Julian?

Gabriel negou com a cabeça e a olhou.

— Não faço ideia. Parece que se sente um pouco deslocado,


agora que Brave e eu estamos casados.

Então sua esposa, sim, sua esposa, esboçou um sorriso


malicioso.

— Estou certa de que algum dia ele encontrará a sua cara


metade.

Gabriel a olhou intensamente. Estavam em público e não


podia beijá-la, abraçá-la ou acariciá-la como desejava, assim deixou que
seus olhos lhe dissessem o que queria fazer, e o quanto a amava. Com a
face ruborizada e os olhos brilhantes de desejo, Lilith sussurrou:

— Vamos para casa?

E Gabriel se apressou a seguir a sugestão. Despediram-se


apressados de seus convidados, agradeceram a Brave e Rachel por tudo
que tinham feito para preparar o baile, além de serem bons amigos, e
escaparam da festa. Ao chegarem à casa Angelwood, Gabriel levou a
esposa nos braços ao piso superior, apesar dos protestos de que pesava
muito e de que ele se esforçaria demais, depois fizeram amor devagar e
apaixonadamente. Lilith insistira no decoro e se hospedara na casa de

529
Brave e Rachel até o casamento, Gabriel sentira muita saudade dela e
por isso estava bem afoito.

— Outra vez? - Declarou Lilith com uma risadinha quando


notou a dureza dele contra seu quadril novamente.

— Sim, outra vez. - Disse ele com fingida aspereza. — Vamos


fazer amor ao menos duas vezes, quem sabe até três, ao dia, precisamos
compensar a década passada.

Sua esposa não tinha nada a objetar.



Foi na noite seguinte, enquanto se dirigiam ao baile ao qual


Lilith fora convidada antes de casar-se, que Gabriel lhe disse por fim
qual seria seu presente de casamento.

— Começava a pensar que não receberia nenhum. - Brincou


ela.

Em segredo, seu coração se encheu de amor, que Deus


abençoasse Gabriel. Sabia que estava nervosa, era sua primeira
aparição pública como Lady Angelwood, sem contar o banquete de
casamento. Ali ninguém se atreveria a insultá-la, mas agora, bem,
estava receosa. O presente de Gabriel seria perfeito para afastar seus
medos da cabeça.

530
— Está tão linda, minha querida esposa. - Murmurou ele
com um sorriso tão descaradamente sensual que lhe fez encolher os
dedos dos pés.

Na carruagem escura, estavam sozinhos. Lilith corou até as


sobrancelhas, mas descartou a ideia, muito escandalosa até para ela.
Entretanto, não era tão atrevida como o que ela e Gabriel fizeram na
noite anterior. Não pensou que podiam fazer o amor daquela maneira! E
agora que sabia, perguntou-se quantas outras posições e surpresas ela
provaria... Ou em que lugares. Pouco depois a carruagem parou com
um balanço. Lilith perguntou:

— Onde estamos?

Jogou um olhar pela janela e viu que não estavam em


Mayfair.

— Gabriel, o baile é em Grosvenor Square. Por que estamos


na King Street?

— Venha. - Respondeu ele com um sorriso misterioso. —


Seu presente a espera.

A menos que ele tivesse conseguido resgatar algo mais do


incêndio, ela não tinha ideia do que podia ser esse "presente".
Sinceramente, esperava que não tivesse decidido a reconstruir o
Mallory's, já decidira vender o que restara dele, e também a
propriedade. Estava farta de ser a proprietária de um clube de jogo. Ser
Condessa lhe era mais que suficiente.

Ele abriu a portinhola da carruagem, desceu e lhe ofereceu a


mão para ajudá-la a sair. Lilith titubeou um pouco, mas lhe deu a mão
e saiu também. O que viu não foi a estrutura destruída do Mallory's,

531
embora seu estado estivesse sujo de fuligem, a fachada de pedra
rachada em vários lugares, e as janelas, cobertas de imundície.
Entretanto, Lilith não o achou irrecuperável. De fato, com um pouco de
trabalho, aquele lugar voltaria a parecer encantador.

Gabriel tirou uma chave do bolso.

— Quer vê-lo por dentro?

Lilith voltou a cabeça para olhá-lo.

— Gabriel, por que estamos aqui?

Com um sorriso, ele a pegou pela mão e a puxou para a


porta. Enquanto colocava a chave na fechadura lhe disse:

— Cuidado com as saias. Mandei que limpassem, mas isso


não quer dizer que todo o resto esteja em bom estado.

Se as janelas fossem uma amostra do trabalho de limpeza


feito, Lilith apostava nisso. A porta se abriu para o vestíbulo e o que viu
lhe tirou o fôlego, apesar da sujeira e da escuridão, uma escada de
mármore azul subia pelas paredes brancas, colunas em estilo coríntio
subiam até um teto todo pintado em azul com nuvens pintadas, Deus
parecia um céu quase real. Aquilo fora feito por um artista.

— Bem vinda ao Éden. - Anunciou Gabriel com um gesto


teatral.

Lilith afastou o olhar do teto espetacular e o olhou.

— O Éden?

532
Gabriel assentiu.

— Prefere outro nome?

Espantada, observou ao redor e fez um gesto negativo. Na


verdade o nome Éden parecia muito adequado ao lugar: as
possibilidades daquele edifício eram incríveis.

— Gabriel. - Indagou com o olhar outra vez. — Por que


estamos aqui?

— É seu presente de casamento. - Declarou ele com um


sorriso luminoso. — Você gostou?

Lilith riu surpresa.

— É lindo! Mas não estou entendendo.

— Podemos reconstruir o clube. - Afirmou ele. — Será um


recomeço Lilith.

Ela hesitou. Outro clube? Mas não queria se envolver


novamente nisso. Mas a felicidade que transparecia no rosto do marido
fez sua alma fraquejar. Como lhe dizer que não queria esse tipo de
negócio se ele parecia tão contente?

— Venha aqui.

Ela o fitou e o viu caminhar até o outro lado do vestíbulo,


diante de uma porta aberta. Devagar, caminhou até ele. Sentia-se mal.
Não havia forma de recusar um presente desses. O lugar cheirava a
fuligem e umidade, e à luz da lua Lilith viu que estava pior do que

533
imaginara. Entretanto, tinha possibilidades. Ah, como reergueria aquele
desastre! E durante uma fração de segundo, pensou em fazê-lo.

— Aqui poremos as mesas de bilhar. - Declarou Gabriel


assinalando com um gesto a sala espaçosa.

Lilith o olhou e viu o brilho travesso em seus olhos. Sim, ela


se lembrava do que houvera na última vez que se encontraram em uma
mesa de bilhar, e tampouco esquecera quando jogaram com Brave e
Rachel.

— Aceita outra disputa, Lorde Angelwood?

Com um certo ar de lobo, Gabriel sorriu.

— Só se a aposta implicar em fazer amor.

Lilith sentiu que um calafrio sensual percorrer a coluna. Ah,


isso seria bem interessante! Mas voltou ao assunto em questão e
perguntou:

— O que quer dizer com "poremos" as mesas de bilhar?

O sorriso de Gabriel fraquejou, revelando uma


vulnerabilidade que Lilith nunca vira antes.

— Gostaria de participar da administração de O Éden.


Seriamos sócios, o que acha?

Lilith estava boquiaberta. Sócios? Queria sociedade? Gabriel


a atraiu para si lhe pondo as mãos sobre seus ombros nus.

534
— Lil, quero que este seja nosso clube. Quero que O Éden
seja a união de nossos sonhos. Faremos dele um exemplo. Será um
clube em que pessoas como meu pai se divertirão sem correr o risco de
perder toda sua fortuna. Quando o Parlamento perceber os benefícios
de regras mais restritivas, não terão escolha além de promulgá-las como
lei.

Lilith o olhou fixamente e viu em seus olhos esperança e


determinação. Talvez ele estivesse certo. Impor limite às apostas,
protegeria tanto o jogador quanto o clube. E ela faria daquele lugar algo
ainda mais impressionante que o Mallory's. Seria incrível. Um lugar
sofisticado para jogar, comer, dançar, conversar. Um clube como
Londres jamais vira.

— Oh, Gabriel! - Gritou, lhe lançando os braços no pescoço e


cobrindo-o de beijos. — Maravilhoso! Eu adorei! Muito obrigado!

Ele a levantou no ar e deu voltas com ela sem parar de rir.


Quando por fim voltou a colocá-la no chão lhe perguntou:

— Realmente, você gostou?

— Só gostar? - Respondeu Lilith em tom incrédulo. —


Adorei! Eu amo você, sabia?

Voltou a beijá-lo, desta vez devagar e durante muito tempo, o


acariciando com a língua, mostrando o quanto o amava, a ele e o seu
presente. Então sentiu a dureza de sua excitação que se apertava
contra seu quadril, e sua respiração ardente junto a boca, enquanto lhe
sussurrava:

— Gostaria que pudéssemos fazer amor.

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Todo seu corpo despertou a mera sugestão.

— Rápido! - Gritou Lilith, agarrando-lhe a mão. — A


carruagem!

Então ela recolheu as saias com a mão livre e saiu a toda


pressa em direção à carruagem. Rindo, Gabriel correu atrás, só parando
para fechar a porta com chave.

No interior da carruagem, enquanto se jogaram um nos


braços do outro. Lilith se maravilhou com o desejo que seu corpo
despertava no dele.

— Amo você. - Sussurrou Gabriel, e ela sorriu a meia luz da


lamparina. Suas mãos deslizaram até a frente das calças e acariciaram
sua ereção palpitante através do tecido. "Diabos, mas quanto tecido",
pensou. Ansiosa abriu os botões e o libertou. Sentiu-o quente na mão,
mas o queria em outro lugar.

— Sei disso. Eu também a amo.

— As pessoas comentarão se aparecermos no baile com as


roupas amarrotadas e os cabelos despenteados.

Lilith viu em seus olhos que só estava brincando. Não queria


que nada os fizessem se arrepender mais tarde, por mais prazeroso que
fosse para ambos. Ela então arregaçou as saias enquanto se virava para
sentar-se escarranchada sobre ele.

— Que falem.

Ele a olhou surpreso.

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— Não se importa?

Equilibrando-se acima dele, com o calor ofegante de seu


sexo a centímetros do dele, Lilith estendeu a mão para agarrar de novo
a carne robusta.

— Nem um pouco. Sei muito bem o que sentem essas


pessoas que gostam de murmurar às costas dos outros.

— Bem...? - Ele praticamente grunhiu enquanto ela se


abaixava.

Suspirando à medida que toda a longitude dele deslizava


profundamente até seu interior, Lilith começou a mover-se.

— Sim... Ah!... Sentem... Ooohh... Aahhh... Inveja, meu


amor.

Gabriel riu ao ouvi-la, mas sua risada não demorou para se


tornar grunhidos de prazer enquanto o corpo de Lilith cavalgava o seu,
para cima e para baixo.

Quando a carruagem de Angelwood estacionou em frente à


residência do Marques de Wynter, o Conde e a Condessa demoraram
vários minutos para sair. Se alguém fez algum comentário sobre aquela
estranha conduta, sobre as saias enrugadas da Condessa, ou sobre os
sorrisos maliciosos que distribuíam a todos, nem Gabriel ou Lilith
notaram. Ao passar com Lilith junto a algumas damas sentadas,
Gabriel ouviu que alguém dizia à outra:

— Olhe para eles. É mais que evidente que se casaram por


amor.

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Então seus dedos se enlaçaram com os da esposa. Lilith
tinha razão. Era inveja.

Mais feliz do que jamais estivera na vida, e tão apaixonado


que lhe doía o coração de amor, ao entrar no salão de baile Gabriel deu
a Lilith um rápido apertão na mão, e ela o fitou. Quando começaram os
cochichos, ele esboçou um belo sorriso e ela a devolveu.

Que falassem.

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