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UMA AUSÊNCIA SENTIDA:

REFLEXÕES SOBRE A HETERONÍMIA EM FERNANDO PESSOA

Márcio Ricardo Coelho Muniz – UEFS1

RESUMO: O presente texto retoma o debate sobre a heteronímia na poesia do poeta português Fernando
Pessoa, buscando averiguar se no interior dos próprios poemas é possível encontrar discussões
semelhantes às que se encontram nos diversos textos de reflexões críticas e estéticas produzidos pelo poeta
ou por seus heterônimos.

PALAVRAS CHAVES: Poesia Portuguesa; Poesia Moderna; Fernando Pessoa; Heteronímia; Poética.

ABSTRACT: The text herein brings back the debate about the heteronymia in the poetry of Portuguese
poet Fernando Pessoa, aiming at checking out if inside the poems themselves it is possible to find
discussions similar to those found in the various texts of critical and aesthetics reflections produced by the
poet or by his heteronymous.

KEYWORDS: Portuguese Poetry; Modern Poetry; Fernando Pessoa. Heteronymia; Poetics.

1.
A questão da heteronímia na poesia pessoana tornou-se um dos grandes desafios de toda a
crítica dedicada à Literatura Portuguesa, mas não só para esta. Pelo alcance da poesia de
Fernando Pessoa para além dos limites do mundo lusófono, a problemática heteronímica resulta
problema/desafio para todo estudioso da literatura do século XX. Expressão poética contundente
das transformações sofridas pelas sociedades no final do século XIX e início do XX, quando,
junto com os avanços tecnológicos, o mundo sofre abalos em suas estruturas políticas, filosóficas
e sociais, a poesia de Fernando Pessoa alinha-se às mais variadas expressões artísticas de
vanguarda para traduzir, a seu modo, essas transformações. Não ao acaso, Jacinto Prado Coelho,
um dos mais agudos intérpretes do poeta, afirma ser a questão heteronímica um dos pontos
centrais ainda a se descortinar em relação à poesia do poeta de Orpheu:

...continuo a considerar [diz o crítico] os heterônimos não um aspecto secundário,


que desvia a crítica do que realmente importa, mas, pelo contrário, um problema

1
Este texto foi publicado em A Cor das Letras: Revista da Dep. de Letras e Artes da UEFS, Feira de Santana, v. 7, p.
125-139, 2006, ISSN: 1415973.
central, de análise imprescindível para a compreensão de Fernando Pessoa
(COELHO, 1993, p. XI).

Uma via possível para melhor avaliação ou interpretação da questão heteronímica seria
recorrer aos próprios escritos de Pessoa. Como se sabe, o poeta legou-nos um prolífico pensar
crítico e estético, em cartas, em prefácios para edições de suas obras, em anotações soltas sobre
os heterônimos, em observações feitas por estes em relação aos outros seus companheiros, enfim,
temos hoje um grande e rico material para, junto com o poeta, pensarmos a heteronímia que
criou2.
Como exemplo, nas anotações para o “Prefácio” de uma provável edição projetada de suas
obras – que acabou não se concretizando -, encontramos afirmações que, a princípio, poderiam
levar-nos a pistas para a interpretação de sua heteronímia. Vejamos algumas:

• O certo, porém, é que o autor destas linhas (...) nunca teve uma só
personalidade, nem pensou nunca, nem sentiu senão dramaticamente, isto é,
numa pessoa, ou personalidade, suposta, que mais propriamente do que ele
próprio pudesse ter esses sentimentos.
• Ele o autor real (...) [neste livro], nada tem, salvo o ter sido, no escrevê-
los, o médium de figuras que ele próprio criou (...) como se lhe fosse ditado,
escreve.
• É possível que, mais tarde, outros indivíduos, deste mesmo gênero de
verdadeira realidade, apareçam. Não sei; mas serão sempre bem-vindos a minha
vida interior, onde convivem melhor comigo do que eu consigo com a realidade
externa.
• Com a falta de literatura, como há hoje, que pode um homem de gênio
fazer senão converter-se, ele só, em uma literatura? Com uma falta de gente
coexistível, como há hoje, que pode um homem de sensibilidade fazer senão
inventar os seus amigos, ou, quando menos, os seus companheiros de escrita?
• Construí dentro de mim várias personagens distintas em si e de mim,
personagens essas a que atribuí poemas vários que não são como eu, nos meus
sentimentos e idéias, os escreveria (...) Não há que buscar em quaisquer deles

2
Entre muitos estudos sobre o assunto, confira o mais recente ensaio publicado pela “pessoana” Cleonice
Berardinelli denominado “Fernando Pessoa: os vários eus” (BERARDINELLI, 2004, p. 93-103).
idéias ou sentimentos meus, pois muitos deles exprimem idéias que não aceito,
sentimentos que nunca tive3.

Os diversos trechos citados permitem algumas reflexões. A primeira, mais óbvia, é a


consciência do poeta de que constrói uma obra atípica – daí, talvez, a necessidade que sente em
escrever sobre ela e, ao fazê-lo, tentar explicar-se. Para essa obra algo rara, parece que se espera
um certo estranhamento na recepção. Por isso, frente à possibilidade de estranhamento, Fernando
Pessoa, de certa forma, tenta, por meio do “Prefácio”, preparar o espírito de leitor para aquilo que
irá encontrar em sua leitura. O poeta sabia que no “horizonte de expectativas” do leitor do início
do séc. XX não estava uma tamanha multifacetação da persona lírica. Eis, provavelmente, o
motivo do “Prefácio”.
Uma outra questão que chama atenção nesses escritos é a quantidade e a diversidade de
imagens e expressões às quais Fernando Pessoa recorre para buscar traduzir a heteronímia: as
personalidades distintas, o sentir dramaticamente, a mediunidade, a existência de figuras
diversas da do autor, o contraste entre a vida interior e a vida exterior, os amigos, as
personagens distintas entre si e dele próprio; enfim, um conglomerado de termos que sugerem
explicações muito diversas para a problemática: a heteronímia seria um desvio psicológico da
personalidade pessoana? Ou seria um jogo literário vivido por meio da dramatização? Ou
expressão de uma carência existencial cuja solução foi buscada literariamente? Ou, ainda, um
fenômeno de caráter paranormal ao qual o poeta era suscetível? Frente a estas diversas
interrogações parece difícil apontar uma que dê conta, na sua inteireza, da questão heteronímica.
Todavia, como já indicou Jacinto Prado Coelho, há nesses escritos de caráter
metalingüístico de Pessoa muito de “vacilação” e “contradição”, como a revelar que a questão
não era pacífica nem mesmo para o próprio poeta:

...daí as vacilações, as contradições de Pessoa quando alude à génese e à natureza


dos heterónimos; ora pretende que os descobriu em transe, que escreveu, por
exemplo, os poemas de Caeiro como simples médium, ora diz que os construiu
dentro de si; considera-os ‘desdobramentos’, mas logo corrige o termo para
‘invenções’; afirma-os algumas vezes personagens separadas, tão reais como ele

3
Com exceção do último trecho, pertencente ao texto “Os heterônimos e os graus de lirismos”, todos os outros
pertencem ao “Prefácio para a edição projetada de suas obras”. Cito sempre pela edição das Obras completas
(Prosa). Org. de Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Aguillar, 1986.
próprio, reconhece outras que não passam de partes dele próprio, do que é e do
que poderia ou não poderia ser. Compreende-se: por muito sincero que procurasse
ser, o que Pessoa em si observava era por natureza fluido e ambíguo” (COELHO,
1973, p. XV)

A crítica, ao longo dos últimos anos, vem tentando desvendar esse que se tornou um enigma
dentro da literatura moderna portuguesa. Sugestionadas por essas indicações do autor, para além
do próprio corpus poético, as mais variadas linhas interpretativas foram trilhadas, iluminando,
cada qual, aspectos que, de algum modo, ajudam o leitor a melhor entender a poesia pessoana.
Por sinal, muitos dos trabalhos críticos sobre a obra de Pessoa denunciam as dificuldades que
enfrentam na tentativa de explicá-la. Tome-se, por exemplo, os títulos de alguns destes trabalhos
e se encontrará neles termos e imagens várias que buscam, muitas vezes recorrendo ao jogo
metafórico, dar conta da problemática heteronímica: Diversidade e unidade em Fernando Pessoa,
de Jacinto Prado Coelho; O heterotexto pessoano e Fernando Pessoa ou o Poetadrama, ambos de
José Augusto Seabra; Fernando Pessoa: aquém do eu, além do outro; de Leyla Perrone-Moisés;
Fernando Pessoa: as muitas águas de um rio, de Álvaro Cardoso Gomes; O poema e as
máscaras, de Carlos Felipe Moisés, entre outros. Como se percebe, imagens de duplicidade, de
dramaticidade, no sentido de mascaramento ou fingimento, de alteridade, de diafaneidade, entre
outras, estão de antemão sugeridas nos títulos desses trabalhos críticos, como que se cada
estudioso buscasse se proteger do sentimento de indefinição que caracterizaria a poesia pessoana.
Temor que também pode ser explicado na mesma linha da recepção por parte do público que se
sugeriu acima para o “Prefácio” de Pessoa para a edição de suas obras. Ainda nas décadas finais
do séc. XX, período de publicação da maioria daqueles trabalhos, a heteronímia continuaria
causando um estranhamento para o qual seria necessário preparar os espíritos dos leitores.
Frente a isto, pensamos que, talvez, uma trilha apropriada a seguir – não para um desvendar
do enigma, mas para uma melhor percepção da problemática heteronímica – seja a de deixar-se
guiar pelos poemas de Pessoa. E, partindo desses poemas, buscar entender o que particulariza
cada heterônimo em relação aos outros e ao Ortônimo. Como se trata aqui de uma reflexão sobre
a criação poética de um autor, nada melhor do que seguir os poemas nos quais ele reflita
metapoeticamente essa criação. Este será, portanto, o caminho a partir de agora e, cabe registrar,
focaremos somente os três heterônimos mais conhecidos de Pessoa – Alberto Caeiro, Ricardo
Reis e Álvaro de Campos – e a poesia do Ortônimo.
2.
Um primeiro ponto a se ter em conta nessa discussão é o fato de Fernando Pessoa ter feito
de um dos seus heterônimos o Mestre. Este, como se sabe, é Alberto Caeiro. Tanto o Ortônimo
como os outros heterônimos reconhecem-lhe a primazia dessa posição. Todavia, quando, dentro
do corpus poético pessoano, buscamos poemas que reflitam metapoeticamente as concepções de
criação, não é no Guardador de rebanhos que os encontramos, mas sim no Cancioneiro do
Ortônimo. Está nele, por sinal, o poema mais citado e conhecido da obra pessoana, a
Autopsicografia, exemplo maior de reflexão metapoética.
Massaud Moisés, num texto em que discute a pertinência de se tomar Alberto Caeiro como
mestre da poesia pessoana – inserido num livro sugestivamente denominado Fernando Pessoa: o
espelho e a esfinge -, chama atenção, em suas conclusões, para duas questões interessantes para o
que aqui se discute: primeiro, a ausência de metapoemas no corpus poético do Mestre Caeiro; e,
segundo, para freqüência do discurso metalingüístico na obra do Ortônimo. A justificativa para
este paradoxo, segundo o crítico, está no fato de os poemas de Alberto Caeiro conterem uma
espécie de “arte poética [intrínseca], em versos, cuja coerência fosse garantida pelas [próprias]
composições” (MOISÉS, 1995, p. 154). Sendo assim, Caeiro deveria ser considerado mestre por
ter desenvolvido e, como conseqüência, ensinado “uma poética da despoetização”, ou seja, por
buscar fazer com que a poesia (sua e de seus companheiros) se reencontre com seu estado
“primitivo” na natureza, anterior a instalação do logos. Daí ser necessária a “aprendizagem do
desaprender”, na medida em que o saber e o pensar impediriam à poesia encontrar a sua essência
“primitiva”. Este raciocínio encontrar-se-ia em toda e cada uma das poesias de Caeiro, sendo,
portanto, todas elas, por natureza, metapoéticas.
De fato, o desejo de “aprender a desaprender” e a busca por um “estado primitivo” estão
repetidos à exaustão nas poesias de Caeiro. Relendo sua obra poética, à procura de poemas que
refletissem mais proximamente um pensar poético, o que encontramos foi, em essência, a busca
constante e exaustiva por um estado primevo de ingenuidade perdido, de um desaprender a
pensar, de um afastamento do logos instalado no discurso poético. Eis, a título de exemplo, um
dos poemas:
O que nós vemos das cousas são as cousas.
Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,


Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.

Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),


Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma seqüestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal não são senão estrelas
Nem as flores senão flores,
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.
(PESSOA, 1986, p. 151)

O que está neste poema revelado, enquanto proposta poética, é a necessidade do poeta
“desvestir a alma”, aprender a ver sem “estar a pensar”, portanto uma “aprendizagem do
desaprender”, como indica um dos seus versos. Esta seria, em resumo, a essência da poética de
Alberto Caeiro.
Desnecessário dizer que esse ideal é inalcançável pelo próprio Caeiro, que recorre a uma
linguagem altamente intelectualizada, a linguagem poética, para transmitir sua mensagem do
“desaprender” a pensar e voltar-se para o sentir. Muito embora o caráter prosaico assumido por
seus versos demonstre um intento de minimizar o esforço exigido pelo fazer poético, não há
como reconhecer, ao longo de toda sua poesia, um certo cansaço do poeta em relação ao
empreendimento.
Já na poesia de Ricardo Reis a problemática do fazer poético reflete, em realidade, seu
alinhamento com um pensar epicurista da arte. Sua poesia, antes de propor uma reflexão de
caráter metapoético, se quer expressão de um estar no mundo, dentro do qual o pensamento
conflituoso comum à reflexão estética deve ser evitado. Daí, afirmar com a segurança de quem já
encontrou seu lugar no jogo da vida:

Seguro assento na coluna firme


Dos versos em que fico,
Nem temo o influxo inúmero futuro
Dos tempos e do olvido;
Que a mente, quando, fixa, em si contempla
Os reflexos do mundo,
Deles se plasma torna, e à arte o mundo
Cria, que não a mente.
Assim na placa o externo instante grava
Seu ser, durando nela.

É perceptível certa recusa de Reis no que diz respeito aos movimentos da investigação
estética. Embora sejam conhecidas suas considerações críticas sobre a poesia de seus
companheiros em heteronímia (PESSOA, 1986, p. 111 e ss.), o que se nota na leitura das Odes é
um constante louvor da vida contemplativa e a busca da quietude e do prazer pelo se resguardar
das emoções que movimentam o mundo. Daí, só a título de exemplo, o campo semântico da
imobilidade dominante no poema acima: seguro, assento, coluna, firme, fico, influxo, fixa, grava,
durando.
Em Álvaro de Campos, encontramos como constância temática a expressão da dúvida e a
conseqüente angústia do existir. Vivendo poeticamente os conflitos que a modernidade lhe
impõe, a questão da criação poética traduz, antes, um conflito íntimo, pessoal. A dor do viver
migra para o escrever. A escrita, conseqüentemente, diz os dramas do existir. O fazer poético
para Álvaro Campos é, em essência, a expressão dos conflitos intrínsecos à existência humana.
Sua poesia é campo de expressão do sentir, pouco propício, portanto, à reflexão metapoética.
Como, a nosso ver, fica patente nesta poesia:
Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanta a mania de sentir
Que me extravia às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo,


Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente reparei,


Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? Serei

Tal qual me julgo verdadeiramente?


Mesmo ante ás sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.

Significativo o fato do mais moderno dos heterônimos pessoanos quase não tratar no
interior de seus poemas uma das características centrais da modernidade literária: a crise da
linguagem. O poema acima e tantos outros de Campos nos falam sobre o dilaceramento do eu,
sobre o desencontro, sobre o esfacelamento, sobre o mal estar que significa viver, mas toda essa
problemática não deságua numa reflexão de nível crítico e estético sobre a construção da
identidade heteronímica, nem se traduz por uma discussão sobre os impedimentos da linguagem
na expressão dos desajustes da modernidade. A consciência de uma linguagem em crise, incapaz
de traduzir o complexo mundo que o cerca, é, segundo Richard Sheppard, comum aos poetas
modernos, que cuidarão, por isso, de investigar a linguagem e seus recursos, tornando esta
investigação uma constante em seus poemas e escritos de abordagem estética (SHEPPARD,
1989). Como nos adverte Samira Chalhub, a consciência da crise da linguagem desencadeará um
sem número de poemas marcados pela reflexão metapoética, fazenda da metalinguagem um signo
da modernidade:
... o poema que se pergunta sobre si mesmo, e, nesse questionamento, expõe e
desnuda a forma com que se fez a própria pergunta, é um poema, digamos assim,
marcado com o signo da modernidade. Constrói-se, contemplando ativamente a
sua construção. Podemos dizer que é uma tentativa de conhecimento de seu ser,
uma forma peculiar e singularíssima de episteme, deixar à mostra os recursos que
usa para formular sua questão (CHALHUB, 1998, p. 42).

Em Campos, ao que tudo indica, a questão assume um caráter mais existencialista, em


detrimento das discussões críticas e estéticas, muito embora, não se pode esquecer, sua
inventividade lingüística seja uma das mais acentuadas entre os heterônimos.

3.
Este necessariamente rápido percurso pelos poemas dos três mais famosos heterônimos
pessoanos, que, ao fim, traduziu um esforço de encontrar um pensamento poético no conjunto da
poesia de cada uma das personagens do escritor português, de algum modo, confirma a hipótese
de que os poemas de cada um dos heterônimos revelam, na verdade, um indivíduo poético. Uma
análise, como diversos críticos já empreenderam, do universo particular dos heterônimos diz
muito de cada um deles, de seu lugar no mundo, se suas preferências estilísticas, da problemática
que privilegiam em seu fazer poético etc. Neste sentido, um olhar sobre o conjunto de suas obras
contribui para a percepção do todo que é o próprio Fernando Pessoa, rio para onde todas essas
águas confluem, numa feliz metáfora de um de seus críticos. Todavia, as poesias dos heterônimos
pouco contribuem para o desvendamento objetivo – se ele é possível! – da poética heteronímica.
Por isso, é ainda a pista dada em Autopsicografia, poema do Ortônimo, de que o poeta é um
fingidor, a mais frutífera, porque a mais reveladora do fazer poético. Todo ato criativo, toda
poiesis, é fingimento, é heteronímico, é máscara para o outro, A heteronímia francamente
assumida e problematizada por Fernando Pessoa é, em realidade, comum a todo fazer poético. E,
nessa medida, o caminho indicado por Autopsicografia vale não só para ele, Pessoa, mas para o
conjunto universal de poetas.
Fernando Pessoa parece querer dizer que a cada poesia escrita um eu-lírico nasce com ela.
Daí que o poema Isto, também pertencente ao Cancioneiro do Ortônimo, que, a nosso ver,
constrói-se metapoeticamente como palinódia de Autopsicografia, é, em verdade, seu
complemento. Quando o poeta afirma “Dizem que finjo ou minto/ tudo o que escrevo. Não./ Eu
simplesmente sinto/ com a imaginação...”, o que está querendo afirmar é uma certa naturalidade
do processo heteronímico em toda prática poética. As personagens, as máscaras, as figuras, os
duplos... aparecem a cada poesia escrita. O mais, são as individualidades.

Referências bibliográficas:

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vez te revejo... Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2004, p. 93-103.
COELHO, Jacinto Prado. Diversidade e unidade em Fernando Pessoa. 2 ed. Verbo: Lisboa,
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MOISÉS, Carlos Felipe. O poema e as máscaras. Coimbra: Almedina, 1981.
MOISÉS, Massaud. Alberto Caeiro, mestre de poesia? In: _____. Fernando Pessoa: o espelho e
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PERRONE-MOISÉS, Leyla. Fernando Pessoa: aquém do eu, além do outro. 2 ed. São Paulo:
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PESSOA, Fernando. Obras completas (Prosa). Org. de Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro:
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SEABRA, J. A. Fernando Pessoa ou o poetodrama. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1991.
SEABRA, J. A. O heterotexto pessoano. São Paulo: Perspectiva/ EDUSP, 1988.
SHEPPARD, Richard. A crise da linguagem. In: BRADBURY, Malcolm & MACFARLANE,
James. Guia geral do Modernismo (1890-1930). Trad. de Denise Bottmann. São Paulo:
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Record, 1986.

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