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ENSAIO
PESQUISAS EM CADEIA
Debora Diniz
RESUMO ABSTRACT
ESTE ENSAIO É UM RELATO DE EXPERIÊNCIAS DE PESQUISAS THIS PAPER IS A PERSONAL ACCOUNT OF MY RESEARCH
EM CADEIA . C ADEIA É METONÍMIA PARA O ARQUIPÉLAGO EXPERIENCES IN BRAZILIAN PRISONS. PRISON IS A FIGURE
PUNITIVO – MANICÔMIOS JUDICIÁRIOS , PRISÕES E OF SPEECH, WHICH REPRESENTS A PUNITIVE ARCHIPELAGO
UNIDADES SOCIOEDUCATIVAS . A O FINAL , PROVOCO AS – FORENSIC HOSPITALS, JAILS, AND YOUTH DETENTION
FORMAS DE ESCRITURA E VIDÊNCIA SOBRE CADEIAS E CENTERS. AT THE END, I PROVOKE A DEBATE OVER FORMS
BANDIDOS . A RRISCO DIZER QUE AS PESQUISAS SOBRE OF SEEING PRISONS AND PERSONS AND WRITING ABOUT
CADEIA SÃO MASCULINAS NA ESCRITA E NA VIDÊNCIA . THEM. I DARE SAY THE STUDIES ABOUT PRISON ARE MALE
GENDERED BASED.
PALAVRAS-CHAVE
C ADEIA ; PRISÃO ; MANICÔMIO JUDICIÁRIO ; UNIDADE KEYWORDS
SOCIOEDUCATIVA ; PESQUISA EMPÍRICA EM D IREITO . J AIL ; PRISON ; FORENSIC HOSPITAL ; YOUTH
DETENTION CENTER ; L AW EMPIRICAL RESEARCH .
PESQUISAS EM CADEIA1
Este ensaio é uma memória pessoal das pesquisa em cadeia com um filme, o
pesquisas em cadeia que desenvolvi na revés do que aconselharia qualquer
última década no Brasil: foram estudos livro de metodologia (A casa dos mortos,
em manicômios judiciários, presídios 2008). Um filme é o fim de uma pesqui-
e unidades socioeducativas. Entre espa- sa, pois o roteiro pede conhecimento
ços institucionais, métodos e resultados denso e íntimo. Nada disso eu tinha, só o
de pesquisa, compartilho minhas inquie- olhar frouxo de quem desconhece tudo.
tações como pesquisadora. Comecei a Ainda assim, me permiti viajar e visitar
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Assumi alguns cuidados éticos como e com o diretor do hospital, e uns poucos
reguladores do filme: não exibiria falta recusaram participação; desses, o filme
de roupa ou situações humilhantes; os não mostra rosto, e os dossiês foram
personagens teriam que consentir antes, esquecidos. Passei a perambular pelo hos-
durante e ao final da montagem do filme; pital; sozinha e sem câmera, respondia
não haveria remuneração pela partici- curiosidades, apresentava-me a cada dia
pação; a narrativa seria documental; a vestindo o jaleco branco e anunciando a
equipe de filmagem seria só eu e os chegada da câmera, que apareceu em dia
assistentes de câmera e de som (DINIZ, festivo: uma competição de futebol entre
2014). Além dessas regras próprias, res- hospícios da cidade. Essa é a abertura do
pondi a diversas camadas criativas de filme; genuinamente, o primeiro instan-
burocracia para entrada nos manicômios: te de aproximação da câmera. Os meses
comitês de ética e autorizações diretoras, seguintes foram de gravações, totalizan-
familiares ou médicas. Desacredito de fil- do mais de 50 horas de filmagens. Com
mes sobre o povo de cadeia sem exibir o filme pronto, voltei ao manicômio
rostos e biografias, vozes e jeitos: a esté- judiciário; os habitantes foram os pri-
tica do encobrimento é também a do meiros a assistir e concordar com a his-
medo – pode até ser que se justifique pelo tória contada.
risco de estigma, mas não aproxima a Do filme, voltei para a ciência dos
audiência de quem é descrito como peri- números. As visitas me mostraram que
goso, louco ou bandido. sabíamos pouco sobre quem e quantos
Iniciei a pesquisa no manicômio judi- eram aqueles habitantes, desde quando e
ciário de Salvador com a figura do ladrão por que estavam nos manicômios judi-
de bicicleta, personagem encontrado em ciários. Coordenei o censo da população
todos os hospitais-presídios que visitei. de hospitais de custódia e tratamento psi-
Com Almerindo, a profecia se realizava. quiátrico (HCTPs) e alas de tratamento
Mas o filme não poderia ser apenas sobre psiquiátrico em presídios (ATPs), pois
o bom selvagem, seria muita tranquili- sequer se conhecia o número de institui-
dade para uma audiência certa de que ções no país (DINIZ, 2013b). Em 12
ali estão os loucos bandidos em surto. meses, visitamos 26 instituições, abri-
Passei meses vasculhando os arquivos do mos os documentos de cada indivíduo
hospital, e assim conheci os 158 habi- internado: a pesquisa foi feita nos dos-
tantes – primeiro, pelos dossiês (esse siês produzidos pelas unidades como
monturo de papéis produzido pela engre- arquivos da loucura bandida (FARGE,
nagem policial, penal e tutelar), para 2009). O instrumento de coleta foi digi-
depois me apresentar a eles. Fui de ala em tal; a equipe de campo era de jovens
ala, conversei com as lideranças, negociei pesquisadoras de pós-graduação e per-
presença: o termo de consentimento para seguia perguntas claras: há causalidade
a pesquisa e o de cessão de imagens para entre diagnóstico psiquiátrico e crime?
o filme foi acordado com cada habitante Qual é o perfil da população? Há quanto
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Novamente vesti preto e, com voz de eram alguns dos temas – e a distribuí
quem já tem geração de avó de quem ali nas celas. As meninas queriam me conhe-
habita, anunciei ser pesquisadora e cer antes que eu lhes fizesse perguntas:
escritora. Me ouviram admiradas – foi assim que falamos primeiro sobre
como eu não seria uma pastora ou ofi- quem eu era, o que penso e escrevo,
cineira? O tema de deus ou da arte foi para devagar minhas vontades de pes-
logo esquecido, mas as meninas recla- quisadora serem aceitas (DINIZ,
maram escritos que atestassem o título 2015b). O encontro foi traduzido nova-
de escritora. Montei pasta variada de mente por elas, “vamos pegar sentimento,
escritos estranhos – aborto ou racismo d. Debora”.
pelos conferes e revistas, pela escola, faço sombra às Donagentes. Ali também
pelo banho de sol, pelo corre da faxina, o poder organiza as cores, mas a proxi-
pelo recolher noturno, mas, principal- midade com o preto bagunçou meu
mente, pela escrita e leitura de cartas. binarismo tolo de antes da chegada. Nem
São já centenas delas: começamos pela só de preto repressor sobrevive uma
literatura, deslizamos para o passado e menina, a vigilância é recheada de cuida-
pelos segredos, e o assunto não termina dos. No território das celas, não entram
enquanto a sentença de liberdade não é técnicos nem familiares, só as agentes de
decretada. As cartas são letras da solidão, preto. Dra. Juíza é visitante de semes-
mas integram uma ordem disciplinar da tre, dra. Promotora ou dra. Defensora
escrita como forma de arrependimento: nunca as vi por ali. Pastoras oram aos
cadeias são instituições cuja memória e domingos, mães chegam ao pátio aos
permanência se dá pela escrita disciplinar sábados. De resto, a semana só é visita-
e normalizadora (FOUCAULT, 2010). da por Donagentes e, a cada três dias,
Se no Núcleo de Saúde do presídio por mim, uma puxadora de plantão
feminino minha permanência foi ao lado encantada com o recém-descoberto
do jaleco branco, na cadeia de papel, mundo da cadeia de papel.
NOTAS
1 Uma versão deste ensaio foi discutida no I força e método do trabalho histórico. Aqui me debruço na
Seminário Internacional de Pesquisa em Prisão, promovido ideia do método da pesquisa histórica: escavação e novidade.
pela Fundação Getulio Vargas em São Paulo, em outubro
de 2015. 3 Depois da publicação do livro, fui proibida de
retornar ao presídio. Mesmo com autorizações judiciais,
2 Foucault se move por, pelo menos, quatro sentidos a alegação da direção do presídio é escassez de escolta
para acontecimento: novidade, regularidade, relações de para me garantir a segurança.
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Debora Diniz
Brasília – DF – Brasil DOUTORA EM ANTROPOLOGIA.
d.diniz@anis.org.br PROFESSORA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA.
PESQUISADORA DA ANIS – INSTITUTO DE BIOÉTICA.