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RECEBIDO EM 03.11.2015 | APROVADO PELA EDITORA-CHEFE EM 13.11.2015

ENSAIO

PESQUISAS EM CADEIA

Debora Diniz

RESEARCH EXPERIENCES IN PRISON

RESUMO ABSTRACT
ESTE ENSAIO É UM RELATO DE EXPERIÊNCIAS DE PESQUISAS THIS PAPER IS A PERSONAL ACCOUNT OF MY RESEARCH
EM CADEIA . C ADEIA É METONÍMIA PARA O ARQUIPÉLAGO EXPERIENCES IN BRAZILIAN PRISONS. PRISON IS A FIGURE
PUNITIVO – MANICÔMIOS JUDICIÁRIOS , PRISÕES E OF SPEECH, WHICH REPRESENTS A PUNITIVE ARCHIPELAGO
UNIDADES SOCIOEDUCATIVAS . A O FINAL , PROVOCO AS – FORENSIC HOSPITALS, JAILS, AND YOUTH DETENTION
FORMAS DE ESCRITURA E VIDÊNCIA SOBRE CADEIAS E CENTERS. AT THE END, I PROVOKE A DEBATE OVER FORMS
BANDIDOS . A RRISCO DIZER QUE AS PESQUISAS SOBRE OF SEEING PRISONS AND PERSONS AND WRITING ABOUT
CADEIA SÃO MASCULINAS NA ESCRITA E NA VIDÊNCIA . THEM. I DARE SAY THE STUDIES ABOUT PRISON ARE MALE
GENDERED BASED.
PALAVRAS-CHAVE
C ADEIA ; PRISÃO ; MANICÔMIO JUDICIÁRIO ; UNIDADE KEYWORDS
SOCIOEDUCATIVA ; PESQUISA EMPÍRICA EM D IREITO . J AIL ; PRISON ; FORENSIC HOSPITAL ; YOUTH
DETENTION CENTER ; L AW EMPIRICAL RESEARCH .

PESQUISAS EM CADEIA1
Este ensaio é uma memória pessoal das pesquisa em cadeia com um filme, o
pesquisas em cadeia que desenvolvi na revés do que aconselharia qualquer
última década no Brasil: foram estudos livro de metodologia (A casa dos mortos,
em manicômios judiciários, presídios 2008). Um filme é o fim de uma pesqui-
e unidades socioeducativas. Entre espa- sa, pois o roteiro pede conhecimento
ços institucionais, métodos e resultados denso e íntimo. Nada disso eu tinha, só o
de pesquisa, compartilho minhas inquie- olhar frouxo de quem desconhece tudo.
tações como pesquisadora. Comecei a Ainda assim, me permiti viajar e visitar
DOI: HTTP://DX.DOI.ORG/10.1590/1808-2432201525 REVISTA DIREITO GV, SÃO PAULO
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os manicômios judiciários do país e, na habitantes, em 2008. Antes de mim,


busca de um roteiro, camadas de difi- promotores de justiça haviam decreta-
culdade amplificadas pelos regimes de do um termo de ajustamento de conduta
segredo, proteção e proibição martela- – o documento liberou metade do povo
vam meu juízo. Fiz o primeiro circuito e processou a equipe de saúde. O dire-
nacional: encontrei calabouços, gente tor me acolheu com o alento de quem
nua, grade aberta, comida pelo chão; via a arte chegar depois do furacão da
multidão e esquecidos em presídios. polícia: nada de pior poderia ser conta-
Ouvi histórias e cantorias, anotei rela- do sobre aquele lugar se comparado ao
tos de campo com os olhos mais abertos denunciado pelas manchetes de jornais.
que as orelhas: o escondido seria con- Não me travesti de psiquiatra, fiz ques-
tado por imagens. A passagem do vivido tão de me apresentar como contadora
à narrativa pedia sensibilidade sobre a de histórias, o jaleco branco era só para
audiência, uma prática que deve acom- arrumar roupa conhecida enquanto
panhar qualquer pesquisadora de cadeia. caminhava sem agentes de segurança.
Esse foi o acordo: sozinha por onde qui-
sesse, mas com jaleco. Em uma das cenas
A CASA DOS MORTOS do filme, exibo o escondido de método
Cheguei ao único manicômio judiciário – ali estou, com o jaleco branco, entre
de Salvador, com uma população de 158 grupo em cantoria (DINIZ, 2013a).

CASA DOS MORTOS. DEBORA DINIZ, 2008.

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Assumi alguns cuidados éticos como e com o diretor do hospital, e uns poucos
reguladores do filme: não exibiria falta recusaram participação; desses, o filme
de roupa ou situações humilhantes; os não mostra rosto, e os dossiês foram
personagens teriam que consentir antes, esquecidos. Passei a perambular pelo hos-
durante e ao final da montagem do filme; pital; sozinha e sem câmera, respondia
não haveria remuneração pela partici- curiosidades, apresentava-me a cada dia
pação; a narrativa seria documental; a vestindo o jaleco branco e anunciando a
equipe de filmagem seria só eu e os chegada da câmera, que apareceu em dia
assistentes de câmera e de som (DINIZ, festivo: uma competição de futebol entre
2014). Além dessas regras próprias, res- hospícios da cidade. Essa é a abertura do
pondi a diversas camadas criativas de filme; genuinamente, o primeiro instan-
burocracia para entrada nos manicômios: te de aproximação da câmera. Os meses
comitês de ética e autorizações diretoras, seguintes foram de gravações, totalizan-
familiares ou médicas. Desacredito de fil- do mais de 50 horas de filmagens. Com
mes sobre o povo de cadeia sem exibir o filme pronto, voltei ao manicômio
rostos e biografias, vozes e jeitos: a esté- judiciário; os habitantes foram os pri-
tica do encobrimento é também a do meiros a assistir e concordar com a his-
medo – pode até ser que se justifique pelo tória contada.
risco de estigma, mas não aproxima a Do filme, voltei para a ciência dos
audiência de quem é descrito como peri- números. As visitas me mostraram que
goso, louco ou bandido. sabíamos pouco sobre quem e quantos
Iniciei a pesquisa no manicômio judi- eram aqueles habitantes, desde quando e
ciário de Salvador com a figura do ladrão por que estavam nos manicômios judi-
de bicicleta, personagem encontrado em ciários. Coordenei o censo da população
todos os hospitais-presídios que visitei. de hospitais de custódia e tratamento psi-
Com Almerindo, a profecia se realizava. quiátrico (HCTPs) e alas de tratamento
Mas o filme não poderia ser apenas sobre psiquiátrico em presídios (ATPs), pois
o bom selvagem, seria muita tranquili- sequer se conhecia o número de institui-
dade para uma audiência certa de que ções no país (DINIZ, 2013b). Em 12
ali estão os loucos bandidos em surto. meses, visitamos 26 instituições, abri-
Passei meses vasculhando os arquivos do mos os documentos de cada indivíduo
hospital, e assim conheci os 158 habi- internado: a pesquisa foi feita nos dos-
tantes – primeiro, pelos dossiês (esse siês produzidos pelas unidades como
monturo de papéis produzido pela engre- arquivos da loucura bandida (FARGE,
nagem policial, penal e tutelar), para 2009). O instrumento de coleta foi digi-
depois me apresentar a eles. Fui de ala em tal; a equipe de campo era de jovens
ala, conversei com as lideranças, negociei pesquisadoras de pós-graduação e per-
presença: o termo de consentimento para seguia perguntas claras: há causalidade
a pesquisa e o de cessão de imagens para entre diagnóstico psiquiátrico e crime?
o filme foi acordado com cada habitante Qual é o perfil da população? Há quanto
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tempo vivem em clausura? Como a engre- abandonada no país: no grupo dos 18


nagem de direitos se movimenta? Essas esquecidos, Zefinha é a única mulher
perguntas se transformavam em questões (DINIZ, 2015d; DINIZ; BRITO, 2016).
do instrumento e respondiam a hipóteses Após novas autorizações, o corpus de pes-
de pesquisa. Encontramos 3.989 indiví- quisa foi o dossiê do hospital; processo
duos, sendo 1.033 provisórios e 2.956 judicial e fotografias da sobrevivência
em medida de segurança; 3.684 eram em uma minúscula cela se juntaram para
homens, e 291 mulheres: quase todos entender o passado e o presente de aban-
pretos ou pardos, com pouca escola, dono. Se o filme tinha me dado experiên-
nenhum trabalho, sozinhos ou solteiros cia sobre como escavar vivências em um
(DINIZ, 2013b). O escandaloso é que manicômio, a inquietação metodológi-
pelo menos um em cada quatro indiví- ca era nova: não seria mais arte de filme
duos não deveria estar mais por ali (por ou número sem nome, mas uma história
laudo vencido, cessação de periculosida- de acontecimento único. Zefinha é só ela,
de, sem sentença ou com extinção da não nomeá-la seria transformá-la em
medida de segurança); para 55 deles, o outra ou qualquer, como se uma nova
Estado não sabe por que mantê-los em camada de silenciamento lhe fosse
tratamento compulsório, pois têm medi- imposta – primeiro, pelo dobramento
da de segurança extinta. E a surpresa que ubuesco penal-tutelar (FOUCAULT,
agonia: 18 deles estavam presos havia 2010); depois, por nós, as escritoras que
mais de 30 anos. Entre o grupo dos esque- escavaram uma lenda desaparecida
cidos, estava Zefinha, que vive há 38 (DINIZ, 2015d; DINIZ; BRITO, 2016).
anos em Alagoas. Zefinha não é um estudo de caso, daque-
les com propriedades heurísticas para
falar das 291 mulheres na multidão dos
ZEFINHA loucos bandidos.Velha, com esquizofre-
Foi assim que voltamos ao manicômio nia e acusada de lesão corporal, é só ela.
judiciário de Alagoas para contar a histó- E nenhuma outra com mais de década
ria de Zefinha, a mulher há mais tempo vivendo em manicômio judiciário.

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ELA, ZEFINHA. DEBORA DINIZ, 2014.

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Zefinha é pesquisa de acontecimen- convencidos de que nenhuma experiên-


to único, e por duas razões falo em acon- cia humana é vazia de conteúdo, de que
tecimento.2 A primeira é por ser Zefinha todas merecem ser analisadas; de que
um acontecimento arqueológico – sua se podem extrair valores fundamentais
história nos mostra como se deu a (ainda que nem sempre positivos) des-
metamorfose da louca bandida na velha se mundo par ticular que estamos
abandonada, ou seja, desnuda as condi- escrevendo” (LEVI, 1988, p. 88). Como
ções de possibilidade da existência do Levi, estou convencida que sim –
manicômio judiciário em uma época Zefinha grita os sem sentidos da cadeia,
tutelar da loucura. Zefinha é ainda infa- da apartação da loucura, e as consequên-
me, aquela cuja existência imortali- cias da vida fora do bando (AGAMBEN,
zou-se pelo cruzamento com o poder e 2007). Há novidade e regularidade na
da qual só sabemos fragmentos de notí- escavação do acontecimento arqueo-
cias (FOUCAULT, 2012). Zefinha é ela lógico.
só, sem parentes ou aderentes no fora; Como uma mulher infame, cuja his-
até recentemente, nem documentos tória é obscura, os murmúrios sobre
tinha: a personagem obscura da vida dos Zefinha a tornam uma personagem len-
homens infames. Uma desaparecida, dária; “o lendário, seja qual for seu
indocumentada, sem luto pela ausên- núcleo de realidade, finalmente não é
cia, cuja aproximação com a história nada além do que a soma do que se diz.
nos provoca o ardor da infâmia, como Ele é indiferente à existência ou inexis-
disse Michel Foucault (2012). tência daquele de quem ele transmite
A segunda razão é pelo escândalo da a glória” (FOUCAULT, 2012, p. 208).
singularidade de Zefinha. Encontrá-la O que sabemos de Zefinha é o que dela
é repetir a pergunta de Primo Levi (1988) foi arquivado pela escrita disciplinar –
sobre os sobreviventes de campos de con- e, em quase 40 anos de internação,
centração (aqui não recorro a uma foram 90 páginas de dossiê e 108 pági-
reductio ad Hitlerum): “É isto uma mulher?” nas de processo judicial. É tudo que
Nomear Zefinha é reconhecê-la, apa- sabemos, pois a lenda “[...] é, por sua
recê-la para a cena da inteligibilidade natureza, sem tradição; rupturas, apa-
dos direitos, mas como fazer isso se a gamento, esquecimento, cancelamen-
mulher não mais relata a si mesma? tos, reaparições, é apenas através disso
(BUTLER, 2015): oferecendo o teste- que ela pode nos chegar” (FOUCAULT,
munho de um rosto e um passado, mas 2003, p. 209). Por isso, Zefinha saiu
em uma história de nosso tempo – dos números e foi apresentada com nome
“podemos, então perguntar-nos se vale e lenda própria, com rosto e reclame de
mesmo a pena, se convém que de tal inteligibilidade aos direitos – é a
situação humana reste alguma memó- mulher mais antiga super vivente às
ria. A essa pergunta, tenho a convicção relações de poder e força sobre a lou-
de poder responder que sim. Estamos cura criminosa.
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CADEIA DE MULHERES censo. O dado é poderoso, mas estranho


Cheguei à cadeia feminina da capital do jeito de fazer acadêmico pela distância
país com os modos tradicionais de cien- da realidade da vida em prisão. Chegamos
tista social: prancheta, questionários, ali com os trejeitos típicos de pesquisado-
hipóteses e autorizações. O pedido era ras iluminadas, “Você é livre para parti-
ousado, mover o presídio para que todas cipar”, anunciávamos. Não importa o que
as mulheres em regime fechado de prisão fôssemos fazer, sem vínculo com as
fossem entrevistadas. Assim foi feito, os mulheres, o anúncio da liberdade como
jeitos foram meio tortos, mas os disponí- possibilidade teria única resposta, “Não”.
veis para retratar a massa: as mulheres Poder escolher em presídio é resistir às
saíam das celas, arrumavam-se em blo- ordens, até porque elas são soberanas
cos de 10 ou 20 na capela e, sempre na quando ditadas pelo colete preto da vigi-
presença de agentes de segurança, res- lância. Saímos à procura de outra forma
pondiam aos questionários. As perguntas de aproximar os sentidos da pesquisa –
eram definidas previamente por nós, não o anúncio da liberdade de escolha era
havia isso de escutar e rever o que pode- convite à recusa, e nossas aparências de
ria ser conhecido: queríamos ciência para mulheres distantes da realidade da cadeia
o que se escondia nas dificuldades de eram território estrangeiro, ao que a
pesquisa em presídio. O questionário epistemologia da “vista do ponto” melhor
não pedia privacidade, as perguntas explicava que a do “ponto de vista”
eram anunciadas e respondidas, preenchi- (HARAWAY, 1995). Como benefício
das pela pesquisadora, que segurava a compartilhado pela pesquisa, os questio-
prancheta e a caneta. É desse método de nários moviam agenda de demandas e
pesquisa que anunciamos: uma em cada necessidades; montamos plantão de
quatro mulheres presas em regime fecha- socorro para as visitadoras ou presas. Ao
do passou por unidades socioeducativas final, só duas mulheres se recusaram a
de internação na adolescência. Elas são responder ao questionário.
jovens, pretas e pardas, de pouca escola Depois de muito perguntar, ouvir res-
e trabalho informal, com filhos no fora ou postas a perguntas pré-determinadas,
por ali (DINIZ; PAIVA, 2014). Estão pre- resolvi retornar à cadeia de outro jeito:
sas pelo comércio ilegal de drogas ou, sentei-me no Núcleo de Saúde do presí-
como contou uma delas, “por vender dio durante seis meses, de onde só tomei
maconha com pamonha” (DINIZ, 2015a). notas do vivido e ouvido entre presas e
Pelos manuais de pesquisa, o feito jaleco branco (DINIZ, 2015a). Cadeia é
recebe nome importante – censo das espaço organizado pelas cores do poder:
mulheres em regime fechado quanto a preto é cor de vigilância; branco, de visi-
perfil, benefícios sociais, trabalhos e esco- tadora de quinta-feira; laranja, de presa.
las. Sistematizamos o que já se sabia de Cheguei a pensar em uma quarta cor
outros estudos localizados ou, talvez, sem para acomodar-me no Núcleo de Saúde
tão grande magnitude quanto a de um – diferente do manicômio judiciário,
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nem cogitei o branco como passe livre desimportante. Os minutos de acolhi-


para escuta; queria gritar escuta diferen- mento pelo jaleco branco são preciosos
te, por isso vesti preto, a cor da vigilância. para serem gastos com escutadeira que se
Uma presa não me confundia com a car- anuncia como pesquisadora. Uma presa
cereira, faltava-me não só a imponência teve que atravessar barreiras de poder
do corpo, mas o brasão da segurança e a para ser ouvida pelo jaleco branco: um
voz de mando. Do pouco que falei, foi só catatau – pequeno bilhete do tamanho de
para me apresentar e arranhar pedido um telegrama, a escrita típica de presídio
de consentimento, mas, com o tempo, – sai da cela, é recolhido no pátio por
até isso foi feito pelo jaleco branco em colete preto, para ser selecionado por
meu lugar. curadora do Núcleo de Saúde, antes de
No Núcleo de Saúde escutei necessi- chegar à mesa de jaleco branco do aten-
dades e precisões, tomei nota do vivido dimento. Foi do assento da escuta que
no instante do dito e negociado, pois, ouvi as histórias no miúdo e na multidão:
como disse, nunca fiz pergunta a presa. por ali passaram as loucas, as suicidas, as
Não me descrevo como invisível naque- mães e as grávidas, as indígenas ou mui-
le apertado conjunto de salas, mas como to jovens, as crackeiras e as bicudas.

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CATATAU. DEBORA DINIZ, 2013.

No livro Cadeia: relatos sobre mulhe- o método por palavreado conhecido na


res, conto a história de 50 encontros casa: “puxo um plantão”.
(DINIZ, 2015a). Não pude voltar ao
presídio para ler as narrativas, como fiz
no filme A casa dos mortos. 3 Sem ter as CADEIA DE PAPEL
presas como leitoras, resolvi fazer Um plantão é de 24 horas a cada três
retorno noutro lugar: na cadeia de dias: esse é meu ritmo na cadeia de papel.
papel, o reformatório compulsório que O nome não foi inventado por mim,
acomodou uma em cada quatro mulhe- mas é palavra conhecida como ironia
res para o futuro na prisão. Há quase um própria pelas meninas que ali vivem –
ano, frequento a unidade socioeducati- nem tanto uma cadeia, mas já um pro-
va de internação da capital do país. Por jeto de prisão. Como puxadora de
ali, ouço histórias, observo a vida, dur- plantão, ainda não tinha aprendido tudo
mo na jega, tiro fotos e troco cartas. que devia na cadeia quando ali cheguei,
Faço o que se apresenta nos manuais ainda com os modos de manual de pes-
como etnografia, mas prefiro descrever quisa, só sem prancheta ou gravador.
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Novamente vesti preto e, com voz de eram alguns dos temas – e a distribuí
quem já tem geração de avó de quem ali nas celas. As meninas queriam me conhe-
habita, anunciei ser pesquisadora e cer antes que eu lhes fizesse perguntas:
escritora. Me ouviram admiradas – foi assim que falamos primeiro sobre
como eu não seria uma pastora ou ofi- quem eu era, o que penso e escrevo,
cineira? O tema de deus ou da arte foi para devagar minhas vontades de pes-
logo esquecido, mas as meninas recla- quisadora serem aceitas (DINIZ,
maram escritos que atestassem o título 2015b). O encontro foi traduzido nova-
de escritora. Montei pasta variada de mente por elas, “vamos pegar sentimento,
escritos estranhos – aborto ou racismo d. Debora”.

CADEIA DE PAPEL. DEBORA DINIZ, 2015.

Foi preciso o tempo de manicômio e papel, os escritos estão por todos os


de presídio feminino para entender o lados – na parede das celas das provisó-
quanto a escrita é sobrevivência para a rias, nos bilhetes da escola, nas cartas
vida em cadeia (ARTIÈRES, 2014; que passamos a trocar. Como puxadora
GOMÉZ; BLAS, 2005). Na cadeia de de plantão, sigo o ritmo da vida regrada
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pelos conferes e revistas, pela escola, faço sombra às Donagentes. Ali também
pelo banho de sol, pelo corre da faxina, o poder organiza as cores, mas a proxi-
pelo recolher noturno, mas, principal- midade com o preto bagunçou meu
mente, pela escrita e leitura de cartas. binarismo tolo de antes da chegada. Nem
São já centenas delas: começamos pela só de preto repressor sobrevive uma
literatura, deslizamos para o passado e menina, a vigilância é recheada de cuida-
pelos segredos, e o assunto não termina dos. No território das celas, não entram
enquanto a sentença de liberdade não é técnicos nem familiares, só as agentes de
decretada. As cartas são letras da solidão, preto. Dra. Juíza é visitante de semes-
mas integram uma ordem disciplinar da tre, dra. Promotora ou dra. Defensora
escrita como forma de arrependimento: nunca as vi por ali. Pastoras oram aos
cadeias são instituições cuja memória e domingos, mães chegam ao pátio aos
permanência se dá pela escrita disciplinar sábados. De resto, a semana só é visita-
e normalizadora (FOUCAULT, 2010). da por Donagentes e, a cada três dias,
Se no Núcleo de Saúde do presídio por mim, uma puxadora de plantão
feminino minha permanência foi ao lado encantada com o recém-descoberto
do jaleco branco, na cadeia de papel, mundo da cadeia de papel.

BARRACOS DE MENINAS. DEBORA DINIZ, 2015.

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ESCRITAS E VIDÊNCIAS formas de escritura e vidência. A pri-


É da incerteza do presente que gostaria meira é covarde de tão simples. O
de encerrar este ensaio – não sei o que campo do direito penal, da sociologia da
escreverei sobre os meses de puxadora de punição e, mesmo, da criminologia é
plantão na cadeia de papel. Por ora, pre- dominado por autores homens. As
firo pensar sobre os meios e jeitos com cadeias estão abarrotadas de homens
que escrevemos como pesquisadoras de presos. Crime, castigo e autoria são
cadeia. Há raiva e ressentimento pelo questões masculinas. Mas é a segunda
visto e vivido; a denúncia do escândalo de versão da tese a que mais me interessa
Zefinha exige pressa; o suicídio de Janete – a hegemonia dos homens impôs uma
Maria no presídio reclama luto no fora. forma de falar sobre cadeia: a linguagem
Somos autoras abusadas, e com razão; é a do sangue, da denúncia e do escân-
feministas cansadas do justo distante e dalo. Essas são estratégias impactantes,
militantes inquietas pelo equívoco do é verdade, mas receio pela potência de
modelo punitivo. É verdade, o diagnós- mobilização. Prefiro arriscar outros
tico me parece correto; minha dúvida é caminhos, quem sabe, o do encantamen-
sobre nossos modos para falar sobre to – não falo poesia, não reclamo isso de
isso tudo. linguagem poética sobre o horror da
Há gênero nas pesquisas em cadeia, cadeia. Peço o encantamento de quem
e mais do que um estilo literário: a cor- faz desaparecer o medo para dar lugar
porificação da autoria agenda o campo. ao reconhecimento: escritura e vidên-
Gênero não é apenas a sexagem de nos- cia importam para tornar visível o
sos corpos e o dobramento com as formas escondido ou desaparecido.
de vivermos a sexualidade. É mais: gêne-
ro é um regime político de governo da
vida pelo patriarcado (DINIZ, 2015c). MODOS DE FALAR
Poderia ter contado minhas histórias de • Banho de sol: tempo de convívio
pesquisa pela sexagem das personagens fora da cela.
– os loucos do manicômio, Zefinha, as • Cadeia de papel: unidade
presas ou as meninas bandidas. Essa é socioeducativa de internação.
uma das formas de olhar gêneros nas pes- • Catatau: bilhete.
quisas de cadeia. Eu ensaiei outra via: a • Colete preto: carcereiro.
da escritura e a da vidência. A escrita • Confere: procedimento da
sobre crime, bandidagem e cadeia é mas- vigilância.
culina, está imersa no patriarcado e • Corre: trabalhos cotidianos.
reproduz a linguagem hegemônica do • Donagente: agente de vigilância
gênero. A pesquisa e a escrita sobre cadeia em unidade socioeducativa.
são de homens e sobre homens. • Jaleco branco: profissional de saúde.
Há duas formas de provocar minha • Jega: cama de cadeia.
tese da masculinidade do campo e suas • Manicômio judiciário: hospitais de
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custódia e tratamento psiquiátrico. • Revista: procedimento da vigilância


• Massa: multidão de presas. de checagem do corpo.

NOTAS

1 Uma versão deste ensaio foi discutida no I força e método do trabalho histórico. Aqui me debruço na
Seminário Internacional de Pesquisa em Prisão, promovido ideia do método da pesquisa histórica: escavação e novidade.
pela Fundação Getulio Vargas em São Paulo, em outubro
de 2015. 3 Depois da publicação do livro, fui proibida de
retornar ao presídio. Mesmo com autorizações judiciais,
2 Foucault se move por, pelo menos, quatro sentidos a alegação da direção do presídio é escassez de escolta
para acontecimento: novidade, regularidade, relações de para me garantir a segurança.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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586 : PESQUISAS EM CADEIA

______. Os anormais: curso no Collège de HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão


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Debora Diniz
Brasília – DF – Brasil DOUTORA EM ANTROPOLOGIA.
d.diniz@anis.org.br PROFESSORA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA.
PESQUISADORA DA ANIS – INSTITUTO DE BIOÉTICA.

REVISTA DIREITO GV, SÃO PAULO


11(2) | P. 573-586 | JUL-DEZ 2015

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