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Imprensa Nacional­‑Casa da Moeda, S. A.
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1000­‑042 Lisboa

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© Leonel Ribeiro dos Santos e


Imprensa Nacional­‑Casa da Moeda

Título: Regresso a Kant


Ética, Estética, Filosofia Política
Autor: Leonel Ribeiro dos Santos
Concepção gráfica: UED — Unidade Editorial
Capa: Elisabete Gomes|Silvadesigners
Tiragem: 1000 exemplares
1.a edição: Março de 2012
ISBN: 978­‑972­‑27­‑1923­‑0
Depósito legal: 320 362/10
Edição n.o 1017893

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PREFÁCIO

O presente volume consta de uma dezena e meia de ensaios sobre a fi‑


losofia kantiana, na sua maior parte originariamente destinados a colóquios
de âmbito nacional ou internacional e publicados nas respectivas Actas ou
em publicações periódicas nacionais e estrangeiras.
O título que leva pretende sublinhar o novo «regresso a Kant» que
reconhecidamente caracteriza muitos dos debates filosóficos ­contemporâneos,
mormente em filosofia prática (ética, filosofia política e filosofia do direito) e
em filosofia estética. Deixo para um próximo volume, a publicar sob o títu‑
lo Ideia de uma Heurística Transcendental, os ensaios que versam tópi‑
cos de epistemologia ou de meta-epistemologia kantiana. No ensaio que lhe
serve de Introdução oferece­‑se uma sinopse das principais tendências da
hermenêutica do Kantismo ao longo do século xx, privilegiando­‑se as últi‑
mas quatro décadas.
Dando sempre especial atenção à peculiar linguagem filosófica de
Kant, tópico aliás expressamente abordado sob diversos pontos de vista em
alguns dos ensaios, pratica­‑se uma hermenêutica que, sem prejuízo do cui‑
dado analítico, privilegia a organicidade do pensamento kantiano, perscru‑
tando nele os cruzamentos fecundos entre filosofia moral e estética, entre
estética e filosofia da religião, entre estética e filosofia política, reavaliando,
ao mesmo tempo, com maior ou menor detenção, algumas leituras críticas
paradigmáticas da filosofia kantiana, como são as de Friedrich Schiller,
Hannah Arendt, John Rawls, Karl­‑Otto Apel, Jürgen Habermas, Michel
Foucault, entre outros.
Apesar da revisão a que foram submetidos e da eliminação de algumas
redundâncias, visíveis sobretudo quando os ensaios deixam de aparecer
como autónomos e se integram num volume com outros que os intersectam
ou lhes são contíguos, não foi possível evitar de todo algumas repetições e a

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recorrência de alguns textos kantianos considerados estratégicos ou a insis‑
tência em alguns tópicos. Essa recorrência e insistência, se dá testemunho
da mútua congruência das perspectivas oferecidas, é sobretudo reveladora
da organicidade do próprio pensamento kantiano, aspecto a que pretendi
dar particular destaque. Em todo o caso, os ensaios agora reunidos em vo‑
lume, se, por um lado, podem ser considerados como explicitação uns dos
outros, por outro, podem sempre continuar a ser lidos e a valer como sendo
ensaios autónomos.
Às muito frequentes leituras lineares e sumárias da obra kantiana, que
lhe apontam ou nela sublinham as contradições ou dificuldades de superfí‑
cie, responde-se aqui com uma hermenêutica orientada pela procura da
maior pregnância do seu sentido, o que só nos parece alcançável mediante a
atenção à sua peculiar complexidade e à diversidade dos seus contextos de
génese, de redacção e até de recepção. E mesmo que, por fim, tenhamos de
reconhecer que o filósofo que interpretamos não tem a verdade que nos con‑
vença ou que nos sirva para as nossas necessidades especulativas ou práti‑
cas, ainda assim as suas teses, se devidamente apreciadas, podem talvez
fazer sentido e a percepção deste sentido pode iluminar as nossas próprias
problematizações e soluções.
Redigidos entre o final da última década do século xx e os primeiros
oito anos do século xxi e, já reunidos em volume, propostos à INCM para
publicação no início do ano 2008, estes ensaios não podem deixar de exibir
a marca do tempo e os limites da situação dos tópicos abordados na litera‑
tura kantiana à época da sua redacção ou primeira publicação. Para a pre‑
sente edição, foram eliminadas, sempre que possível, as referências circuns‑
tanciais, sobretudo no ensaio de Introdução, que vai aqui muito alterado
em relação à sua primeira publicação, no n.o 24 da revista Philosophica,
no ano de 2004. Não foi possível, porém, apagar neles todas as marcas da
contingência e da temporalidade, nomeadamente no que concerne à actua‑
lização bibliográfica.

Lisboa, 14 de Fevereiro de 2008 e 12 de Dezembro de 2011

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INTRODUÇÃO

regresso a kant. evolução e situação


dos estudos kantianos

The pivotal position which the Kantian oeu‑


vre holds for all subsequent philosophy is indis‑
puted and cannot be overstated. That Kant’s in‑
fluence also reaches outside philosophy, to those
working in other areas of the humanities, in the
arts, and in the social and natural sciences, is a fur‑
ther mark of his centrality. Kant’s revigoration of
philosophical conceptuality and of the philosophi‑
cal lexicon has inspired philosophers since his
own time and continues to do so.
Andrea Rehberg and Rachel Jones,
«Editor’s Introduction», The Matter of Critique.
Readings in Kant’s Philosophy, Manchester, 2000, p. xiii.

I. UM NOVO «REGRESSO A KANT»?

A desmedida ambição do título desta nota introdutória só pode


ser compensada com a consciência da dificuldade ou mesmo da im‑
possibilidade de cumprir a tarefa que ele enuncia, dada a vastidão,
o volume e a dispersão mundial e temática da actual literatura kan‑
tiana.
Numa obra publicada em 1979, em que faziam o ponto da situa­
ção da «Kantforschung» entre 1953­‑1978, Volker Gerhardt e ­Friedrich
Kaulbach confrontaram-se com mais de 4000 «Kantarbeiten» 1. Por
sua vez, a revista Kant-Studien, que vinha dando anualmente infor‑
mação bibliográfica dos estudos sobre Kant, registava ao longo da
década de 90 entre 500 e 1000 títulos por ano, número que estava
certamente muito abaixo da realidade, pois há muitos ensaios de

1
  Volker Gerhardt / Friedrich Kaulbach, Kant, WBG, Darmstadt, 1979.

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maior ou menor dimensão que não chegavam ao conhecimento dos
recenseadores da revista. Nas últimas décadas, essa média deve ter
sido largamente superada, talvez mesmo duplicada ou triplicada.
E quem poderia estar — ou considerar­‑se — em condições de selec‑
cionar, de ler e de digerir numa síntese toda essa imensa produção?
Reconhecendo embora a arriscada temeridade do empreendi‑
mento, tentarei desempenhar­‑me dele de um modo elíptico. Come‑
cei por dar uma visão panorâmica — obviamente perspectivística e,
por conseguinte, limitada não só pela falta de pormenor como tam‑
bém pela curteza do horizonte de visão e incompletude da informa‑
ção — das tendências contemporâneas da hermenêutica e da litera‑
tura kantianas, reportan­do­‑me às últimas quatro décadas, mas
fazendo também uma referência de contextualização ao movimento
de «retorno a Kant» do último quartel do século xix. Seguidamente,
tentarei mostrar a efectiva presença inspiradora da filosofia kantia‑
na (ou dos seus tópicos) em alguns dos principais movimentos e
questionamentos filosóficos da actualidade.
Há uma questão que se perfila no horizonte do quadro de
diagnóstico que aqui se apresenta: será que, para além de toda a
volumosa produção de estudos interpretativos ou críticos que têm
por objecto a filosofia kantiana, vimos assistindo, nos últimos de‑
cénios do ­século xx e neste começo de um novo século, a um efec‑
tivo «regresso a Kant», com alguma analogia relativamente ao que
se verificou no último quarto do século  xix e nas duas primeiras
décadas do ­século  xx? E, se a resposta for positiva, de que teor é
esse regresso?
A pergunta não é descabida e já ocorreu a mais de um leitor dos
sinais dos tempos da recente história filosófica. Para dar apenas um
testemunho, em Abril de 1993, a revista Magazine Littéraire dedicou
o seu n.o 309 ao tema «Kant et la Modernité», oferecendo um mosai‑
co de intervenções e testemunhos que mostravam como a obra e o
pensamento do professor de Königsberg constitui uma referência
obrigatória do pensamento actual, chegando um dos colaboradores
(Luc Ferry) a dizer que se vivia na época «um momento kantiano da
filosofia» 2. Percorrendo em relance a bibliografia mais recente sobre

2
  Luc Ferry, «Kant, penseur de la Modernité» (Propos recueillis par Fran‑
çois Ewald), Magazine Littéraire, n.o 309 (Abril de 1993), p. 21: «Je dis qu’il y a
une actualité du moment kantien dans ces deux points fondamentaux qui sont
l’emergence de la laicité, c’est-à-dire le retrait du divin, l’inversion des rapports

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Kant não raro deparamos com títulos que invocam a «actualidade
de Kant» ou de alguns tópicos da sua filosofia 3. Mas importa com‑
preender em que medida este momento kantiano da filosofia se dis‑
tingue de outros e qual o modo actual da recepção da filosofia de
Kant. Pois desde há 200 anos a filosofia de Kant tornou-se realmente
incontornável para quem quer que pretenda pensar as grandes
questões filosóficas. Depois do momento pós-kantiano dos grandes
pensadores idealistas da última década do século xviii e das primei‑
ras décadas do século  xix, que pretenderam ir além de Kant apon‑
tando os erros e preenchendo as lacunas deixadas pela filosofia crí‑
tica ou realizando o sistema da razão que Kant anunciara mas não
teria chegado a cumprir, depois do movimento de «retorno a Kant»
(Zurück zu Kant) que marcou o último quartel do século  xix até ao
fim do primeiro quartel do século  xx, que tipo de Kantismo é este
que está presente na mais recente cultura filosófica? Depois da her‑
menêutica da «caça aos erros» de Kant, praticada pelos pós-kantia‑
nos e da exegese do texto kantiano por parte dos neo­kantianos,
­haverá ainda algo que a filosofia transcendental possa dizer nos de‑
bates filosóficos da actualidade?

homme-Dieu avec toute la revalorisation de la sensibilité que cela implique


(c’est le thème de mon Homo aestheticus) et d’autre part le fait que le moment
kantien représente un moment de déconstruction par rapport à l’idéal fou et
illusoire de la subjectivité métaphysique maîtresse d’elle­‑même. Le moment
kantien est encore actuel dans la mesure où Kant effectue la déconstruction de la
métaphysique tout en conservant une signification, dont nous ne pouvons pas
faire l’économie, à l’idée d’une subjectivité maîtresse d’elle­‑même.» Também
Alain Renaut, na sua obra Kant aujourd’hui (Paris, Flammarion, 1997), se propõe
fazer um balanço crítico da presente situação do Kantismo e da fecundidade da
filosofia kantiana em alguns movimentos filosóficos actuais. Num estudo cujo
título nada faz pensar em Kant ­— Dire la norme. Droit, politique et énonciation
(Bruylant / LGDJ, Bruxelles / Paris, 1996) ­—, J. Lenoble e A. Berten procedem
a um diagnóstico das mais significativas filosofias do direito e do político, em
França, na Alemanha e no espaço linguístico anglo­‑saxónico, das últimas dé‑
cadas do século xx, interpretando­‑as no seu conjunto como representando um
diversificado «retour à Kant» (v. nomeadamente o cap. ii: Modernité et Retour
à Kant). Para um balanço geral mais recente, v. Dietmar Heidemann e Kristina
Engelhard (eds.), Warum Kant heute? Systematische Bedeutung und Rezeption seiner
Philosophie in der Gegenwart, Walter de Gruyter, Berlin / New York, 2003.
3
  Só a título de exemplo, v. F. Duchesneau, G. Lafrance et Claude Piché
(eds.), Kant actuel. Hommage à Pierre Laberge, Montréal / Paris, 2000; Ursula Fran‑
ke (ed.), Kants Schlüssel zur Kritik des Geschmacks. Ästhetische Erfahrungen heute
— Studien zur Aktualität von Kants «Kritik der Urteilskraft», Hamburg, 2000.

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Schopenhauer, que foi um dos críticos mais perspicazes da obra
kantiana e também ele um arguto caçador dos erros e fragilidades
do sistema do autor da Crítica da Razão Pura, deixou uma observa‑
ção feliz que resume por antecipação o destino da fecundidade da
obra e do pensamento kantianos nos últimos dois séculos. Escreve
ele: «É mais fácil apontar as falhas e os erros na obra de um grande
espírito do que dar uma perspectiva clara e completa do seu desen‑
volvimento. Pois as falhas são algo de particular e limitado que se
deixa ver perfeitamente. Em contrapartida, constitui precisamente a
marca que o génio imprime à sua obra que o significado desta seja
inesgotável. […] A perfeita obra­‑prima de um autêntico grande es‑
pírito terá uma acção cada vez mais profunda e intensa sobre todo o
género humano, de tal modo que não pode saber-se a que séculos e
países distantes se estenderá a sua luminosa influência.» 4
E o próprio Kant terá tido o pressentimento dessa fecundidade
póstuma tardia do seu pensamento, se dermos fé ao testemunho
dos Diários de Varnhagen von Ense, evocado por Heidegger num
dos seus cursos de Marburgo, segundo o qual, o velho filósofo, nos
últimos anos da sua vida, teria desabafado em conversa: «Cheguei
um ­século adiantado com os meus escritos; dentro de um século co‑
meçarei a ser correctamente entendido e então os meus livros serão
de novo estudados e apreciados!» 5
A história dos últimos cem anos de literatura kantiana sobeja‑
mente confirma este pressentimento. De facto, mesmo sendo verda‑
de que durante toda a primeira parte do século xix o impacte da fi‑
losofia kantiana sobre o pensamento filosófico e a cultura em geral
não deixou de dar-se de uma forma decisiva, sobretudo no Idealis‑
mo e  no Romantismo germânicos, foi todavia a partir do último
quartel desse século  que, sob o mote expresso de um «retorno a
Kant» se procedeu a um conhecimento mais directo e completo

4
  Arthur Schopenhauer, Kritik der Kantischen Philosophie, Werke I, Reclam,
Leipzig, 1892, 531.
5
  «Ich bin mit meinen Schriften um ein Jahrhundert zu früh gekom‑
men; nach hundert Jahren wird man sie erst recht verstehen und dann meine
Bücher aufs neue studieren und gelten lasser!» Tagebücher I, p. 46, apud Martin
Heidegger, Phänomenologische Interpretation von Kants Kritik der reinen Vernunft,
V. Klostermann, Frankfurt a. M., 1977, p. 1. O passo já fora evocado e citado por
Hans Vaihinger na sua obra Die Philosophie des Als Ob. System der theoretischen,
praktischen und religiösen Fiktionen der Menschheit auf Grund eines idealistischen
Positi­vismus, Berlin, 1911, p. xiv.

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dos  aspectos da sua obra e pensamento, muitos dos quais, tendo
ficado na sombra durante décadas, começaram a ser apreciados na
sua pertinência e na sua fecundidade especulativa desde o final do
século xix até à actualidade.
A obra e a filosofia de Kant tornaram-se realmente incontorná‑
veis para o pensamento dos dois últimos séculos. Menos, porém,
como um monumento que se venera do que como uma interpelação
que continua a fazer pensar e a pôr em marcha o pensamento. Um
dos grandes pensadores do século  xx, que também se viu ele pró‑
prio confrontado com o mestre de Königsberg e que tomou a filoso‑
fia deste como um estímulo para o seu próprio pensamento, expôs
numa sugestiva metáfora não só o modo como Kant viveu a relação
com a sua própria filosofia (como um processo de permanente ree‑
laboração), mas também a única maneira realmente fecunda de
abordagem da filosofia kantiana. Assim escreve Jaspers: «Somos
postos em marcha no caminho do pensamento por Kant, um pensa‑
dor que para seu descanso construiu para si uma casa na beira do
caminho, mas na qual nem ele nem nós devemos morar em perma‑
nência. A casa, o sistema, é imprescindível enquanto forma de co‑
municação, para que nos lembremos dela enquanto caminhamos.
Mas há duas espécies de kantianos: aqueles que fixam habitação
permanente na casa de reflexão e aqueles que, após a reflexão, com
Kant se lançam de novo ao caminho.» 6

II. HERMENÊUTICA DO KANTISMO AO LONGO


DO Século xx

Passo a fazer uma rápida revisão histórica das hermenêuticas


do Kantismo, desde o último quartel do século xix até à ­actualidade,
dando particular atenção às quatro últimas décadas 7. As leituras

  Karl Jaspers, Kant, Pipper, Wien, p. 228.


6

  Para a história da recepção da obra de Kant até ao final do séc. xix,


7

v.  O.  Market,­ «Kant e a recepção da sua obra até ao século xx», in Fernando
Gil (co­ord.), A Recepção da Filosofia de Kant, Lisboa, F. C. Gulbenkian, 1992,
pp. xii­‑lxi.
Para o movimento neokantiano: Klaus Christian Köhnke, Entstehung und
Aufstieg des Neukantianismus. Die deutsche Universitätsphilosophie zwischen Idea­
lismus und Positivismus, Frankfurt a. M., Suhrkamp, 1986 (versão inglesa The
Rise of Neo­‑Kantianism. German academic philosophy between idealism and positi­

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e  interpretações da filosofia de Kant têm acontecido ao sabor
dos interesses e orientações especulativos de cada momento cultu‑
ral, como se de cada vez um novo Kant ou novos aspectos da sua
obra e pensamento fossem realmente descobertos pela primeira
vez.

1. O Neokantismo: significado e limites de um


explícito programa de «regresso a Kant»

Quem quiser fazer uma correcta avaliação das hermenêuticas


kantianas do século xx não pode dispensar a referência ao Neokan‑
tismo, não só porque este movimento contribuiu decisivamente
para a renovação do interesse pela filosofia de Kant com efeitos que
vêm até à actualidade, mas também porque algumas das interpreta‑
ções paradigmáticas da filosofia kantiana do século  xx se fizeram
ora ainda em continuidade com o Neokantismo, ora numa ­declarada
luta contra ele. Importa, pois, reconhecer o significado histórico e

vism, Cambridge, Cambridge University Press, 1992); Ernst Wolfgang Orth


— Helmut Holzhey (Hrsg.), Neukantianismus. Perspektiven und Probleme, Würz‑
burg, 1994 (sobretudo os artigos de R. Malter, «Grundlinien neukantianischer
Kantinterpretation», pp.  44­‑58; e de Norbert Hinske, «Kantianismus, Kant‑
forschung, Kantphilologie. Überlegungen zur Rezeptionsgeschichte des Kant­
schen Denkens», pp. 31­‑43). Wolfgang Ritzel, Studien zum Wandel der Kantaufas‑
sung. Die Kritik der reinen Vernunft nach Alois Riehl, Hermann Cohen, Max Wundt
und Bruno Bauch, Meisenheim a. Glan, 1952.
Para aspectos regionais: A. Rigobello, «Recenti posizioni dell’ermeneutica
kantiana in Italia», Giornale di Metafisica, 26 (1971), 359­‑368. A. Pieretti, «L’erme­
neutica kantiana nei paesi anglosassoni», in: A. Rigobello (ed.), Ricerche sul
trascendentale kantiano, Padova, 1973, pp. 153­‑199. M. J. Scott­‑Taggart, «Neuere
Forschungen zur Philosophie Kants» (1966), recolhido no volume editado por
P. Heintel e L. Nagl, Zur Kantforschung der Gegenwart (­Darmstadt, 1981), o qual
pretendia ser também uma espécie de balanço do estado dos estudos kantianos
da época. O volume, que reunia colaboração de alguns dos mais conceitua‑
dos especialistas da filosofia kantiana da época, organizava­‑se segundo quatro
áreas de problemas: três deles relacionados com as três Críticas e respectivas
temáticas e um quarto que dava conta do debate e confronto entre as principais
filosofias contemporâneas e a filosofia de Kant: privilegiados neste confronto
e debate eram Wittgenstein e a filosofia analítica, Heidegger, o pragmatismo
peirciano e o materialismo dialéctico.

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filosófico desse movimento e os méritos e os limites da sua interpre‑
tação da filosofia kantiana 8.
O período áureo do Neokantismo estende-se por cerca de cin‑
quenta anos entre o último quartel do século xix e o início da 3.a dé‑
cada do século  xx. Considera­‑se o ano de 1865 e a obra de Otto
­Liebmann (Kant und die Epigonen), com a sua palavra de ordem
«zurück zu Kant», como o impulso inicial desse movimento 9, o

  Sobre o Neokantismo, as suas escolas e os seus principais protagonistas,


8

para além dos títulos já aduzidos na nota 1, v. M. J. Carmo Ferreira, «Neokantis­


mo», Logos, vol. 3, 1110­‑1113; W. Flach / H. Holzhey, Erkenntnistheorie und Logik­
im Neukantianismus, Hildesheim, Gerstenberg Verlag, 1980; H.-L. Öllig, Neukan­
tianismus. Texte der Marburger und der Sudwestdeutschen Schule, ihrer Vorläufer
und Kritiker, Stuttgart, 1982; H. Holzhey, «Neukantianismus», Hist. ­Wörterbuch
d. Philosophie, vol. 6, 747­‑754; H. Holzhey, Cohen und Natorp, Basel / Stuttgart,
1986; H.-L. Öllig, Der Neukantianismus, Stuttgart, Metzler, 1979; H.-L. ­Öllig
(ed.),  Materialien zur Neukantianismus­‑Diskussion, WBG, Darmstadt, 1987;
A.  Philonenko,­ L’École de Marbourg. Cohen — Natorp — Cassirer, Vrin, Paris,
1989. H. Holzhey (Hrg.), Ethischer Sozialismus, Zur politischen Philosophie des
Neukantianismus, Frankfurt a. M., Suhrkamp, 1994; Ulrich Sieg, Aufstieg und
Niedergang des Marburger Neukantianismus — Die Geschichte einer philosophischen
Schulgemeinschaft, Würzburg, 1994;
9
  Otto Liebmann, Kant und die Epigonen, Schober, Stuttgart, 1865 (reed.
Berlin, 1912). Segundo outros, o ponto de partida do movimento teria sido uma
Lição Inaugural de Eduard Zeller — «Sobre o significado e a tarefa da teoria do
conhecimento» —, proferida em Heidelberga em 1862, onde pela primeira vez
teria sido usada a palavra de ordem «Zurück zu Kant!» (A. Philonenko, ob. cit.,
p. 9). Na verdade, o despertar do interesse pela filosofia de Kant era na época
mais geral e fazia-se notar cada vez mais ao mesmo tempo que se manifesta‑
va a desafeição pelo idealismo e hegelianismo, nomeadamente em Friedrich
Albert Lange, que foi professor em Marburgo (1872­‑1875), e em Kuno Fischer,
que foi professor em Heidelberga, e que contribuiram, sobretudo o primeiro,
para o interesse do jovem Nietzsche por Kant. De resto, o Neokantismo não
representa todo o âmbito do novo interesse despertado pela filosofia kantiana
na filosofia alemã dos últimos decénios do século xix. Há outros «neokantis‑
mos», nomeadamente o de Hans Vaihinger, o autor de Die Philosophie des Als
Ob e o intérprete de Nietzsche que primeiro pôs em realce a origem kantiana
e neokantiana (pela mediação de Lange) da doutrina nietzscheana da «vonta‑
de de ilusão» (Wille zum Schein) e da importância das ficções no processo da
criação espiritual. Assim o escreve este defensor de um «positivismo idealista»,
minucioso exegeta da Crítica da Razão Pura e fundador da revista Kant­‑Studien
e da Kant­‑Gesellschaft: «Esta origem kantiana ou, se se prefere, neokantiana
(neukantischer Ursprung) da doutrina de Nietzsche foi até agora completa‑
mente ignorada […] Na realidade, há muito de Kant em Nietzsche; não certa‑

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qual, na realidade, revela uma feição polimorfa, que se exprime se‑
gundo várias tendências e que cobre dezenas de pensadores de
maior ou menor vulto. Mas, apesar das diferenças de escolas e de
protagonistas, é reconhecível entre os neo­kantianos uma certa afini‑
dade programática, o que permite que se fale do Neokantismo
como de um movimento com alguma homogeneidade 10. Foram
dois os pólos onde o movimento se desenvolveu: as universidades
de Marburgo e de Heidelberga (Baden). Em Marburgo, onde se des‑
tacam os nomes de Hermann Cohen, Paul Natorp e Ernst Cassirer,
o movimento evolui de um transcendentalismo estrito ou de uma
lógica do pensamento puro para uma fundamentação semiótica da

mente de Kant na forma em que o encontramos exposto nos livros de texto...


mas do espírito de Kant, do Kant real, que penetrou até à medula da natureza
da aparência, mas que, apesar de ter visto através dela, também viu e reco‑
nheceu conscientemente a sua utilidade e necessidade.» (Die Philosophie des Als
Ob, ed. cit., p. 772.) O «Apêndice sobre Kant e Nietzsche» não fazia parte da
primeira versão da obra apresentada como dissertação de doutoramento em
1876. O Kant de Vaihinger, muito diferente do dos neo­kantianos propriamente
ditos, está muito mais na linha do pragmatismo de Charles S. Peirce (também
ele um assíduo leitor de Kant e mesmo um kantiano). V. G. Lehmann, «Kant
im Spätidealismus und die Anfänge der neukantischen Bewegung», in H.  L.
Öllig (ed.), Materialien zur Neukantianismus­‑Diskussion, WBG, Darmstadt, 1987,
pp. 44­‑65. Para uma reavaliação da interpretação vaihingeriana de Kant, v. o
meu ensaio «Hans Vaihinger: O Kantismo como um Ficcionalismo?», in Kant.
Posteridade e Actualidade, CFUL, Lisboa, 2007, pp. 515­‑536.
10
  Numa breve mas muito feliz síntese, Manuel José do Carmo Ferreira
expõe assim o propósito filosófico do Neokantismo: «O preconizado regresso a
Kant vem motivado, negativamente, por reacção ao irracionalismo, ao idealis‑
mo especulativo, à metafísica em geral e ao positivismo […] e, positivamente,
pela necessidade de encontrar inteligibilidade para os novos problemas que
a ciência colocava, de pensar o próprio ‘facto da ciência’ o que faz redesco‑
brir a fecundidade do método lógico­‑transcendental kantiano na determinação
dos fundamentos da legitimidade do conhecimento […]. O que estava radi‑
calmente em causa no caminho crítico reencontrado era estabelecer uma nova
funda­mentação da Filosofia como ciência, uma nova justificação do saber fi‑
losófico em face da pluralidade dos saberes que reivindicavam o carácter de
paradigmas exclusivos da cientificidade em geral. A divergência das respostas
encon­tradas torna­‑se aqui secundária […]: todas as orientações se centravam
na identificação da Filosofia com a ‘teoria do conhecimento’ e a filosofia de
Kant representava apenas o método, ou antes ‘o método do método’, na expres‑
são de Cohen, liberto de qualquer interferência de pressupostos metafísicos ou
morais.» Art. cit., 1112.

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antropologia e das ­ciências da cultura, de que é expressivo exemplo
o programa filosófico desenvolvido por Ernst Cassirer. O Neokan‑
tismo de Baden é, por seu turno, dominado pela tematização axio‑
lógica e pela explícita orientação para uma filosofia da cultura,
destacando-se entre os seus representantes os nomes de Windel‑
band, Rickert e Lask. Por vezes, o Neokantismo é considerado como
tendo sido apenas uma espécie de escolástica kantiana, uma filoso‑
fia de cátedra ou de professores. Trata-se, porém, de uma aprecia‑
ção injusta, que resulta de um mau conhecimento generalizado que
existe a respeito desse movimento, vítima dos preconceitos que a
seu respeito se forjaram a partir sobretudo da 2.a década do sé­
culo xx e que levaram a que ele se tornasse, segundo a expressão de
Cassirer, «o bode expiatório da mais recente filosofia» 11. A própria
obra filosófica de Cassirer, iniciada sob a inspiração do Neokantis‑
mo de Marburgo e mantendo sempre a matriz de inspiração kantia‑
na, é, pela vastidão dos campos que percorre, pela sua originalida‑
de e até pela energia e fecundidade especulativas, a prova da
impossibilidade de reduzir o movimento do Neokantismo a uma
mera exegese escolástica da filosofia kantiana posta exclusivamente
ao serviço duma «Erkenntnistheorie», e ainda menos duma teoria
do conhecimento científico. 12
O início da II Guerra Mundial marca também o começo do
­processo do declínio e progressiva erosão desse movimento. Isso
deve-se, em boa parte, ao facto de, para alguns, o Neokantismo ser
considerado como um judaismo disfarçado sob o nome de Kant e
sob a bandeira do Kantismo (muito embora os ataques anti-semitas
proviessem também de neokantianos, como Bruno Bauch, um discí‑
pulo de Rickert, que atacou violentamente os neo­kantianos marbur‑
genses, em particular ­Cohen, quando este publicou, em 1915, a sua
obra Deutschtum und Judentum) 13, pelo que alguns neokantianos de
origem judaica foram destituídos das suas cátedras e tiveram de
emigrar para o estrangeiro. O declínio do movimento explica-se em

11 
«Davoser Disputation zwischen E. Cassirer und M. Heidegger», in
M.  Heidegger, Kant und das Problem der Metaphysik, Frankfurt a. M., 1973,
pp. 246­‑247.
12
  V. Olivier Feron, Finitude et sensibilité dans la philosophie d’Ernst Cassirer,
Éditions Kimé, Paris, 1997.
13
  V. o artigo de J. Derrida, «Interpretations at War — Kant, le Juif, l’Alle‑
mand», in Phénomenologie et politique. Mélanges offerts à Jacques Taminiaux, Bru‑
xelles, Ousia, 1989, pp. 209-292.

17

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parte pela diáspora a que foram forçados muitos professores e inte‑
lectuais judeus alemães, mas deve-se sobretudo ao facto de terem
emergido novas perspectivas hermenêuticas a respeito do significa‑
do da filosofia kantiana, elas próprias determinadas pelos proble‑
mas filosóficos dominantes e pelas preocupações especulativas
emergentes na 3.a década do século xx.
Quanto à geração de kantianos posterior à II Guerra Mundial,
ainda quando tenha tido formação neokantiana, incorpora já as no‑
vas tendências filosóficas (fenomenologia, metafísica, hermenêutica
existencial, filosofia analítica, neo-escolástica, pragmatismo...) e as
novas problemáticas. Poderá perguntar-se se ainda sobrevive aí a he‑
rança do Neokantismo clássico. E a resposta tem de ser, apesar de
tudo, afirmativa. Pois muitas das condições para o desenvolvimento
do Kantismo foram criadas e estabelecidas pelos neo­kantianos, a
quem muito deve a «Kantphilologie» — nomeadamente as edições
de textos e de importantes comentários e estudos interpretativos das
principais obras kantianas. Infelizmente, com raras excepções (Cas‑
sirer e poucos mais), as obras dos neo­kantianos não tiveram divulga‑
ção e real eficácia fora da Alemanha e o respectivo pensamento é
ainda hoje mal conhecido, embora o panorama dê alguns sinais de
estar a mudar 14. Ultimamente têm sido publicadas antologias de tex‑
tos de alguns dos neokantianos mais ­importantes e volumes colecti‑
vos de ensaios críticos não só sobre o movimento em ­geral, como
também sobre alguns dos seus mais destacados representantes 15.
Pode dizer-se que nos últimos anos está em curso, e não só na Ale‑
manha, um movimento de reapreciação do significado histórico e
filosófico deste importante movimento filosófico em­preen­dido em
nome de Kant e da sua proposta filosófica 16. Apesar disso, e embora

14
  Sinal disso é a edição em curso da obra completa de Cassirer pela Fe‑
lix Meiner (Gesammelte Werke, Hamburger Ausgabe, ed. sob a responsabilida‑
de geral de Birgit Recki com colaboração de Tobias Berben, Claus Rosenkranz,
Reinold Schmücker, Marcel Simon e Dagmar Vogel, Hamburg, 1998 e segs.,
previstos 25 vols.). Está igualmente em curso, nas Éditons du Cerf, a publicação
da tradução francesa das obras de Cassirer, sob a direcção de F. Capeillères.
15
  V. nomeadamente a antologia organizada e apresentada por Werner
Flach e Helmut Holzhey, Erkenntnistheorie und Logik im Neukantianismus. Texte
von Cohen, Natorp, Cassirer, Windelband, Rickert, Lask, Bauch, Gerstenberg Verlag,
Hildesheim, 1980.
16
  A revisão da imagem negativa e heideggeriana do Neokantismo em
França fora já iniciada antes por H. Dussort, L’école de Marbourg (Paris, PUF,

18

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haja quem fale de um neo-Neokantismo, dificilmente se poderá iden‑
tificar na cena actual dos estudos kantianos quem se reclame herdei‑
ro directo do Neokantismo clássico, e se alguém houver, sê-lo-á me‑
nos por filiação num programa de escola orientado por uma
interpretação sistemática da filosofia crítica entendida como teoria
do conhecimento científico ou como lógica da cultura, do que pela
fidelidade ao lema que desencadeou esse movimento nos anos 60 do
século  xix — o de um sempre renovado «zurück zu Kant». Mas há
excepções 17. De resto, tem havido tentativas muito sérias no sentido
de apresentar interpretações sistemáticas — mas «descritivas» e
abertas — da filosofia kantiana. No contexto da língua alemã, cabe
destacar o nome de Friedrich Kaulbach, que dedicou ao pensamento
de Kant várias obras, sempre no intuito de captar a inspiração pe­
culiar do pensamento crítico e a sua organicidade característica 18.
Fora da Alemanha, mesmo na Europa, o Neokantismo teve es‑
cassa influência e significado. Mas há também aqui uma notável ex‑
cepção. Foi a filosofia da cultura da escola Neokantiana de Baden
que, a partir da década de 1940 e através do pensamento e obra do
jurista e filósofo brasileiro Miguel Reale, forneceu os pressupostos
para o desenvolvimento e aprofundamento do culturalismo filosófi‑

1963), e prosseguida por A. Philonenko, L’école de Marbourg (Paris, Vrin, 1989).


Recentemente foi feita por Éric Dufour e publicada uma tradução francesa do
Comentário de Hermann Cohen à Crítica da Razão Pura (Hermann Cohen, Com‑
mentaire de la «Critique de la raison pure» de Kant, Éditions Du Cerf, Paris, 2000).
17
  V., a título de exemplo, a inscrição explícita — e mesmo vigorosa —
numa tradição (que provém, aliás, já do próprio Hermann Cohen) de um
Neokantismo comprometido não apenas na fundação dos princípios e respec‑
tiva legitimação, mas também de vocação moral e social efectivas da filosofia,
em Peter Mueller, Transzendentale Kritik und moralische Teleologie. Eine Auseinan‑
dersetzung mit den zeitgenössischen Transformationen der Transzendentalphilosophie
im Hinblick auf Kant, Königshausen & Neumann, Würzburg, 1983, sobretudo o
cap. v: «Neukantianismus oder die Aktualität der Begründung des ethischen
Sozialismus», pp. 549-590. Como o título indica, a obra é um confronto com as
actuais «transformações» da filosofia kantiana, ou seja, com as interpretações
actuais do Kantismo que perderam o sentido da organicidade da filosofia trans‑
cendental.
18
  Para além das obras já citadas no capítulo anterior, refiram­‑se: Das Prin‑
zip Handlung in der Philosophie Kants, W. de Gruyter, Berlin, 1978; Studien zur
späten Rechtsphilosophie Kants und ihrer transzendentalen Methode, Königshausen
& Neumann, Würzburg, 1982; Ästhetishe Welterkenntnis bei Kant, Königshausen
& Neumann, Würzburg, 1984.

19

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co no Brasil, sendo posteriormente corrigido e completado pelas
perspectivas fenomenológica, ontognoseológica e pelo sentido his‑
tórico colhido do hegelianismo 19.
Em Portugal, as primeiras referências com alguma consistência
ao Kantismo e até ao Neokantismo encontram-se em Antero de
Quental 20. Nos seus escritos da 2.a e da 3.a décadas do século xx, Leo‑
nardo Coimbra comenta e critica com frequência algumas teses kan‑
tianas, que conheceria sobretudo através de bibliografia secundária
francesa 21. Também o racionalismo crítico de António Sérgio tem
sido conotado com o Neokantismo da escola de Marburgo 22. Mas só
nas mais recentes três décadas e meia se pode falar de um sustentado
interesse pela obra e pensamento de Kant, com dissertações acadé‑
micas de mestrado e doutoramento, com a realização de colóquios
que tiveram por objecto a análise e interpretação das obras e pensa‑
mento de Kant, com a publicação desses estudos em publicações pe‑

19
  António Paim, Problemática do Culturalismo, Porto Alegre, 1995, e
do mes­mo: «Neokantismo no Brasil», Logos, vol. 3, 1114-1117. De Miguel Reale
tenha­‑se­presente o volume A Doutrina de Kant no Brasil (2.a ed., São Paulo, 1949)
e o en­saio «Quatro momentos da doutrina de Kant no Brasil», in idem, O Belo
e Outros Valores, Rio de Janeiro, 1989, pp. 149-163). Sobre o Kantismo estético
de Miguel Reale, v. o meu ensaio «O pensamento estético de Miguel Reale», in
O Pensamento de Miguel Reale, Actas do IV Colóquio Tobias Barreto, edição do Insti‑
tuto de Filosofia Luso­‑Brasileira e Câmara Municipal de Viana do Castelo, 1998,
pp. 255-277 (retomado em L. Ribeiro dos Santos, Melancolia e Apocalipse. Estu‑
dos sobre o Pensamento Português e Brasileiro, INCM, Lisboa, 2008, pp. 397­‑422).
20
  Sobre este ponto, v. Francisco da Gama Caeiro, «Nota acerca da recep­
ção de Kant no pensamento filosófico português», in AA.  VV., Dinâmica do
­Pensar. Homenagem a Oswaldo Market, Departamento de Filosofia, Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa, 1991, pp. 59-89. V. também o ensaio «Antero
de Quental e a recepção da filosofia alemã em Portugal», in Leonel Ribeiro dos
Santos, Melancolia e Apocalipse. Estudos sobre o Pensamento Português e Brasileiro,
INCM, Lisboa, 2008, pp. 133­‑160.
21
  V. Carlos Morujão, «A interpretação leonardina de Kant», in Actas do
Congresso Internacional Pensadores Portuenses Contemporâneos — 1850-1950, Uni‑
versidade Católica Portuguesa (Centro Regional do Porto) e Imprensa Nacional­
‑Casa da Moeda, Lisboa, 2002, vol. ii, pp. 327-338.
22
  O próprio Sérgio dizia da sua filosofia que ela «poderia definir­‑se como
um Neokantismo que rejeitasse os dados da intuição sensível como a estética
transcendental os havia admitido» (Ensaios, vol. i, 2.a ed., Coimbra, 1949, «Pre‑
fácio», p. 48), por conseguinte, que antepusesse a analítica à estética transcen‑
dental ou que eliminasse mesmo esta, para assim revelar em toda a evidência a
autonomia do pensamento puro e o acto criador do juízo.

20

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riódicas ou actas de colóquios, enfim com a publicação da tradução
de algumas obras fundamentais do filósofo ­crítico 23.

2. A crise do Neokantismo e a descoberta do Kant


metafísico

A celebração, em 1904, do 2.o centenário do nascimento de Kant


proporcionou a ocasião para uma profunda viragem na interpreta‑
ção do pensamento do filósofo de Königsberg. Para a intensificação
desta viragem viria a ser decisiva a acção de Heidegger com a sua
obra Kant und das Problem der Metaphysik (1929). Mas o ambiente
havia sido preparado desde o início do século. Friedrich Paulsen,
para além de outras obras sobre Kant, publicara em 1900 o ensaio
com o título «Kants Verhältnis zur Metaphysik» 24, no qual desenvol‑
ve a analogia entre o filósofo crítico e Platão, considerando preferen‑
temente a dimensão metafísica dos respectivos pensamentos. Outro
tanto fará, dois anos depois, Hans Vaihinger, num ensaio cujo título
interrogativo não ilude a tese afirmativa 25. Assim, já não soava de
todo estranho o título da obra de Max Wundt, publicada em 1924:
Kant als Metaphysiker. Em contraposição às interpretações neokan‑
tianas dominantes, Wundt lê em Kant não tanto o metodólogo e o
teórico do conhecimento quanto o refundador da metafísica e de
uma nova visão filosófica do mundo (philosophische Weltanschauung).
E, na mesma linha se inscrevem os ensaios de Heinz Heimsoeth,
«Metaphysische Motive in der Ausbildung des kritischen Idealis‑
mus» (1924) e os de Nicolai Hartmann, «Vom Neukantianismus zur
Ontologie» (redigidos entre 1910 e 1931) 26. Heidegger tinha, pois, o
ambiente bem preparado para poder desferir o golpe decisivo no
Neokantismo, com o seu «Kantbuch» de 1929. Kant e a sua filosofia
vêem-se assim no centro de um debate entre estratégias filosóficas,
que são muito mais do que meros diferendos hermenêuticos.
Como interpreta Heidegger o Neokantismo e que lhe contra‑
põe? Para responder a esta questão nada melhor do que reportarmo­

  Dessa recente recepção do pensamento kantiano em Portugal penso ter


23

dado uma expressiva amostra no volume antológico Kant em Portugal: 1974­


‑2004 (org. de Leonel Ribeiro dos Santos), CFUL, Lisboa, 2007.
24
  Kant-Studien, 4 (1900), 413-447.
25
  «Kant ein Metaphysiker?», Kant­‑Studien, 7 (1902), 110-117.
26
  Kleinere Schriften, Bd. III, Berlin, 1958.

21

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‑nos ao debate paradigmático de Davos entre Ernst Cassirer e Mar‑
tin Heidegger. Cassirer recusa a «substancialização» do termo
«Neokantismo» operada por Heidegger e atribui a essa expressão
apenas um carácter funcional para designar não um sistema dog‑
mático de doutrina mas sim uma orientação de problematização fi‑
losófica, aliás de expressão muito variada, a qual de modo nenhum
pode ser responsabilizada, como o faz Heidegger, por todos os ma‑
les provocados e pecados cometidos pela filosofia nas primeiras
­décadas do século xx. Por seu ­turno, Heidegger considera que a es‑
sência do Neokantismo (a cuja influência nem Husserl, o pai da fe‑
nomenologia, teria escapado) reside em conceber a totalidade do
Ser apenas sob o ângulo do conhecimento e mesmo do conhecimen‑
to científico, em ter reduzido a filosofia a uma «teoria do conheci‑
mento» (Erkenntnistheorie) e em apresentar Kant como um teórico
do conhecimento físico­‑matemático. Nas ­palavras de Heidegger:
«Entendo por Neokantismo a interpretação da Crítica da Razão Pura
[…] como uma teoria do conhecimento tendo em vista a ciência da
natureza. Tenho de declarar que aquilo que aqui é destacado como
teoria do conhecimento, para Kant não era o essencial. Kant não
queria propor nenhuma teoria da ciência, mas sim indicar a proble‑
mática da Metafísica, e em especial a da Ontologia.» 27
Apesar dos seus próprios limites textuais e hermenêuticos 28, a
«violência» da leitura heideggeriana de Kant (já que, como o próprio
Heidegger escreve, «para captar, para além das palavras, o que as pa‑
lavras querem dizer, uma interpretação deve fatalmente usar de
violência») 29 viria a determinar poderosamente não só muitas das in‑
terpretações anti-neokantianas, como também as interpretações pós­
‑neokantianas da filosofia de Kant e do respectivo significado histórico­

27
  «Davoser Disputation», in M. Heidegger, Kant und das Problem der Me‑
taphysik, Klostermann, Frankfurt a. M., 1973, pp.  246-247 (trad. francesa de
P.  Aubenque, J. M. Fataud, P. Quillet: Débats sur le kantisme et la philosophie,
­Paris, Beauchesne, 1972). Entre a variada literatura sobre este debate histórico,
v. H. Declève, «Heidegger et Cassirer interprètes de Kant», Revue Philosophique
de Louvain, 67 (1969), 517-545; P. Aubenque, «Le débat de 1929 entre Cassirer
et Heidegger», in J. Seidengart (ed.), Ernst Cassirer — De Marbourg à New­‑York,
Paris, Du Cerf, 1990, pp. 81-96.
28
  V. a recensão muito crítica, mas muito pertinente, que Cassirer fez do
­«Kant­buch» heideggeriano: «Kant und das Problem der Metaphysik. Bemer­kun­
gen zu Martin Heideggers Kant­‑Interpretation», Kant­‑Studien, 39 (1931), pp. 1-26.
29
  Kant und das Problem der Metaphysik, ed. cit., p. 196.

22

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‑filosófico. Graças a Heidegger, temas como finitude, temporalidade,
imaginação transcendental e esquematismo tornaram-se decisivos e
estratégicos — quase obrigatórios — para a leitura não só da Crítica da
Razão Pura como de todo o projecto filosófico kantiano nos anos 50 e 60
do século xx. Na sua leitura de Kant, Heidegger toma a sério a afirma‑
ção tantas vezes repetida por Kant, mas segundo ele não atendida pe‑
los neo­kantianos, segundo a qual a Crítica tem a pretensão de proce‑
der a uma nova fundamentação da metafísica e de aceder a uma nova
compreensão do Ser na sua totalidade. Recusando as interpretações da
filosofia de Kant que a liam como uma teoria do conhecimento, como
uma filosofia moral ou como uma filosofia da história e da cultura,
Heidegger dirige a sua meditação ao que considera essencial na em‑
presa de Kant: o facto de ter sido ele o primeiro a colocar, ainda que de
modo imperfeito, a questão fundamental da compreensão do Ser por
relação ao tempo e de ter assim feito uma boa parte do caminho no
sentido de preparar a fundação de uma Ontologia fundamental, em‑
presa que ele próprio se propõe levar uma vez mais a cabo como «re‑
tomação» (Wiederholung) daquela mesma que Kant havia encetado,
mas não satisfatoriamente cumprido, na Crítica da Razão Pura.
Assim, o pensamento heideggeriano não rejeita de todo a he‑
rança e a inspiração kantianas. O Kantismo de Heidegger já não será
talvez e apesar de tudo um Neokantismo, como subtilmente o suge‑
ria Cassirer, no citado debate de Davos. Mas ainda assim a melodia
kantiana está sempre presente e faz-se ouvir na orquestração do seu
pensamento, mesmo se outras vozes são por vezes mais audíveis e
se lhe sobrepõem (Nietzsche, Hölderlin). Não falando já da impor‑
tância que a releitura do projecto kantiano teve na formação do cha‑
mado I Heidegger, houve mesmo quem chamasse ao pensamento
heideggeriano mais maduro um «kantismo subtil» 30. Como é natu‑
ral, o confronto entre o pensamento de Heidegger e o de Kant tem
dado matéria para uma imensa ­literatura 31 e, como já referi, a inter‑

30
  Irene Borges-Duarte, La Presencia de Kant en Heidegger. Dasein — Trans‑
cendencia — Verdad, Facultad de Filosofia, Universidad Complutense, Madrid,
1994, p. 9.
31
  Destaco três peças que dão conta desse confronto e que têm por objec‑
to a análise da presença de Kant no pensamento de Heidegger: H. Declève,
Heidegger et Kant, M. Nijhoff, La Haye, 1970; Pio Colonello, Heidegger interprete
di Kant, Genova, 1981; Irene Borges-Duarte, La Presencia de Kant en Heidegger.
­Dasein — Transcendencia — Verdad, Universidad Complutense, Madrid, 1994
(esta última com uma bibliografia muito completa e selecta).

23

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pretação heideggeriana do Kantismo, por sua vez, inspirou inúme‑
ras peças relevantes da «Kant-Literatur» do século xx 32.

3. A hermenêutica do Kantismo posterior


à II Guerra Mundial

A hermenêutica da filosofia kantiana da segunda metade do sé‑


culo xx caracteriza-se pelos seguintes aspectos gerais:

3.1.  Pela grande variedade de pontos de vista interpretativos:


fenomenológico, marxista 33, analítico, pragmatista, hermenêutico,
neometafísico, neo-escolástico, desconstrucionista, semiótico... Mui‑
tas vezes, estas perspectivas de leitura e de interpretação são cruza‑
das ou combinadas entre si, dificilmente se encontrando alguma em
estado puro.

3.2.  Pelo alargamento progressivo do horizonte textual e pro‑


blemático de referência. Cada vez mais se põe em jogo a totalidade da
obra kantiana e a multiplicidade dos problemas que a percorrem, dos
problemas do conhecimento à filosofia da religião, da filosofia prática
à estética, da metafísica à filosofia do direito, da história e da cultura.
A Crítica da Razão Pura e os problemas de carácter gnoseológico con‑
tinuam a ser objecto da maioria dos estudos dedicados a Kant, mas

  Entre os estudos sobre Kant inspirados na interpretação heideggeriana


32

destaco: Hermann Mörchen, Die Einbildungskraft bei Kant, Niemeyer, Tübingen,


1970 (1.a  ed. em 1930 no Jahrbuch für Philosophie und phänomenologische Fors‑
chung, XI); R. Daval, La Métaphysique de Kant. Perspectives sur la Métaphysique
de Kant d’après la théorie du schématisme, PUF, Paris, 1951; Walther Biemel, Die
Bedeutung von Kants Begründung der Ästhetik für die Philosophie der Kunst, 1959;
Ergänzungshefte der Kantstudien, Köln, G. Kruger, Philosophie und Moral in der
kantischen Kritik, Mohr, Tübingen, 1967; G. Granel, L’équivoque ontologique de la
pensée kantienne, Gallimard, Paris, 1970; J. Grondin, Kant et le problème de la phi‑
losophie: l’a priori, Vrin, Paris, 1989. Para uma mais ampla informação, v. Irene
Borges­‑Duarte, ob. cit., pp. 386-396.
33
  H. Ley / P. Rube / G. Stiehler (ed.), Zum Kantsverständnis unserer Zeit.
Beiträge marxistisch­‑leninistischer Kantforschung, Veb, Berlin, 1975; Stefano Poggi,
«Teleologia, spiegazione scientifica e materialismo dialettico in alcune interpre‑
tazioni della Kritik der Urteilskraft», Rivista di Filosofia, 67 (1976), pp.  497­‑521;
H. Lubbe, «Neukantianischer Sozialismus», in H.-L. Öllig (ed.), Materialien zur
Neukantianismus­‑Diskussion, WBG, Darmstadt, 1987, pp. 219­‑263.

24

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essa obra perdeu a tradicional hegemonia nessa função, passando as
outras obras e os respectivos problemas a merecer cada vez mais a
atenção dos intérpretes. Todavia, mesmo na Crítica da Razão Pura há
partes e tópicos ainda pouco explorados, nomeadamente a Dialéctica
Transcendental e a Teoria Transcendental do Método. A maior parte
das interpretações de Kant que se tornaram vulgatas, não só a dos
neo­kantianos como a do próprio Heidegger, estão construídas com
base numa leitura textualmente muito incompleta da primeira Críti‑
ca, raramente passando além da Estética Transcendental e da Analíti‑
ca Transcendental. E, todavia, facilmente se reconhecerá que se se
pretende encontrar a transição orgânica da primeira para as outras
duas Críticas é na Dialéctica Transcendental (sobretudo no respectivo
Apêndice) e na Teoria Transcendental do Método que devemos pro‑
curar os pontos de passagem e de conexão, aspecto a que alguma da
mais recente hermenêutica vem dando já alguma atenção, mas que
está ainda longe de ser suficientemente tido em conta.

3.3.  Por certo, os problemas debatidos na Crítica da Razão Pura


e na Crítica da Razão Prática — os relativos ao conhecimento científi‑
co e metafísico e seus pressupostos e limites e os relativos à funda‑
mentação da moralidade — continuam a ser ainda de longe os que
colhem a maioria dos estudos (obras e ensaios) sobre Kant e a sua
filosofia. Mas novos problemas ou círculos de problemas ganharam
entretanto cada vez maior dimensão, alcançaram autonomia e che‑
garam mesmo a levar ao reconhecimento da necessidade de se rever
a partir deles toda a ideia da filosofia transcendental. Releva o inte‑
resse que cada vez mais foi ganhando, sobretudo a partir dos
anos 70, a Crítica do Juízo e seus problemas: antes de mais, os estéti‑
cos, mas também os relacionados com a ideia de teleologia, pelo seu
alcance para a heurística filosófica e para a compreensão dos ­sistemas
orgânicos e biológicos; por fim, a própria noção de sistema e de sis‑
tematicidade da filosofia e a função sistemática da terceira Crítica no
âmbito da filosofia transcendental. Ela obrigou a rever não só a ideia
de filosofia transcendental, mas a própria ideia kantiana de Razão.
Da redescoberta (ainda em curso) desta obra tem lucrado largamen‑
te a reflexão sobre o pensamento político e jurídico, a filosofia da
história e da cultura, a filosofia da religião, obviamente não esque‑
cendo a que se ­ocupa dos problemas éticos e antropológicos. Ulti‑
mamente, esta obra de Kant começa a ser lida pelas perspectivas
que abre no sentido de permitir pensar a questão ecológica no con‑
texto de uma nova filosofia da natureza, tornada possível a partir
não só de uma reavaliação da segunda parte daquela obra dedicada

25

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ao juízo teleológico, mas precisamente também da articulação da vi‑
são teleológica da natureza com as perspectivas oferecidas pela pri‑
meira parte dedicada à crítica do juízo estético, no que desta crítica
releva para uma reapreciação da experiência estética da natureza 34.
Merece destaque a atenção que tem merecido o «último Kant», o
do Opus postumum, quer nas suas conexões sistemáticas com a Crítica
do Juízo e o respectivo tema comum do Übergang, quer na conexão
com os Primeiros fundamentos metafísicos da ciência da natureza 35. Esse
vasto conjunto de reflexões dos últimos anos e meses da vida de Kant
era conhecido desde os anos de 1882­‑84, graças à publicação parcial
que dele fez Rudolf Reicke no Altpreussische Monatschrift, mas não
despertaram na altura qualquer interesse, antes pelo contrário, dele
chegando dizer Karl Vorländer que «carecia de valor significativo e
que denunciava claramente as marcas da idade» do seu autor 36.

3.4.  A actual disponibilidade da quase totalidade da obra de


Kant não significa todavia que a hermenêutica que dela se tem ocupa‑
do tenha sido dominada por intuitos sistemáticos ou arquitectónicos.
Já Gerhard Lehmann, num ensaio publicado em 1969 em que discutia
a pretensão neokantiana de uma interpretação sistemática do Kantis‑
mo e a própria noção de sistema, dizia: «Não é inteiramente seguro se
o nosso conceito de sistema é coberto pelo conceito kantiano. E tam‑
bém não é certo se Kant, o teórico do conceito de sistema, possui real‑
mente — como sublinha o Neokantismo — apenas um único conceito
de sistema.» 37 E, contrapondo o que chamava um Kant como pensa‑
dor de problemas («aporético») a um Kant como pensador de sistema

  V. os meus ensaios: «Kant e o regresso à natureza como paradigma


34

estético», in Cristina Beckert (org.), Natureza e Ambiente. Representações na Cul‑


tura Portuguesa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2001,
pp. 169­‑193; «Da experiência estético­‑teleológica da natureza à consciência eco‑
lógica: uma leitura da Crítica do Juízo de Kant», Trans/Form/Ação, São Paulo, 29
(1), 2006, pp. 7­‑29. Neste volume, respectivamente, pp. 349-378 e 379-403.
35
  Vittorio Mathieu, «Opus postumum» e «Critica del Giudizio», Filosofia, 2
(1957), pp. 275­‑314; idem, La filosofia transcendentale e l’«Opus postumum» di Kant,
Torino, 1958.
36
  Apud O. Market, «Kant y la recepción de su obra hasta los albores del
siglo xx», Anales del Seminario de Historia de la Filosofia, 7, Universidad Complu‑
tense, Madrid, 227.
37
  «Voraussetzungen und Grenzen systematischer Kantinterpretation»,
idem, Beiträge zur Geschichte und Interpretation der Philosophie Kants, Berlin, 1969,
pp. 89­‑116.

26

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(«sistemático»), o mesmo autor apontava os limites das interpreta‑
ções intencionalmente sistemáticas e globais da filosofia kantiana,
chamando a atenção para o facto de que «o impacto histórico de Kant
proveio na maior parte dos casos de determinadas ‘partes’ da sua fi‑
losofia» e que o sistema de Kant não é uno no sentido de excluir os
momentos anti-sistemáticos, mas é antes a exposição de um processo
ou de um método para obviar a falsa sistemática da razão.
Como se tivessem presentes estas considerações do ilustre edi‑
tor e intérprete da obra kantiana, mais do que guiadas pela ideia de
fidelidade a uma tradição ou pelo esforço de reconstituição sistemá‑
tica e de uma interpretação global do Kantismo (dominante no
Neokantismo e ainda em Heidegger), as mais recentes abordagens
da filosofia de Kant têm explorado sobretudo a vertente aporética
da mesma, visando surpreender a génese dos problemas e o traba‑
lho da razão e do pensamento com vista a resolvê­‑los, mais do que
as soluções pontual ou globalmente encontradas.

3.5.  Quando expressamente procuradas, a sistematicidade, a ar‑


quitectonicidade e a unidade da filosofia kantiana tendem a sê-lo não
a partir da primeira Crítica e nem sequer a partir da doutrina kantiana
do primado do interesse e uso prático da razão, mas sim a partir das
perspectivas abertas pela terceira Crítica, a qual, na intenção do seu
autor, pretende estender a «ponte» entre a legislação do entendimen‑
to para a natureza e a legislação da razão prática para a liberdade 38.
O princípio da teleologia e a faculdade de julgar reflexionante ganha‑
ram assim um papel de primeiríssima importância, ao ponto de lhes
ser cometido todo o trabalho da filosofia transcendental, como refle‑
xão que é da razão a respeito dos seus próprios processos e respecti‑
vos pressupostos. A obra de Werkmeister constitui um dos mais con‑
seguidos esforços para mostrar a unidade e arquitectonicidade da
filosofia kantiana, reagindo às leituras fragmentárias ou sectoriais do
corpus kantiano. Mas o autor adverte o sentido em que deve entender­
‑se tal unidade: «Há uma unidade no pensamento de Kant que nos
escapa quando lemos a Crítica da Razão Pura (e quando vemos Kant
como um epistemólogo) ou lemos a Fundamentação da Metafísica dos

  Numa breve dissertação académica do ano 1925 (Über Kants Kritik der
38

Urteilskraft als Bindglied zwischen theoretischer und praktischer Philosophie, Frank‑


furt a. M.), Max Horkheimer destacava esse aspecto, que nas últimas décadas
tem sido repetidamente posto em evidência.

27

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Costumes e a Crítica da Razão Prática (e o vemos como um moralista) ou
lemos a parte i da Crítica do Juízo (e o vemos como um esteta). Mas
também falhamos no entendimento de Kant quando olhamos as obras
publicadas no seu «período crítico», tomadas no seu conjunto, como
a ­formulação explícita de um sistema filosófico bem integrado. Existe
unidade no pensamento de Kant, mas trata-se da unidade de desen‑
volvimento de um problema que se determina no seu pensamento, e
não da unidade dum sistema estático pré­‑concebido. Vista numa
perspectiva adequada esta unidade de desenvolvimento pode ser tra‑
çada desde a época da primeira publicação de Kant em 1747 até à
projectada «mais elevada forma da filosofia transcendental» com a
qual ele se ocupa nas secções finais do Opus postumum» 39.
Compreende­‑se hoje sem dificuldade que a Crítica da Razão Pura
não esgota a realização da ideia e projecto da filosofia crítica e não
fecha o círculo de pensamento da filosofia transcendental. Com­
preende-se, aliás, melhor a sua pertinência filosófica quando a lemos
pelo menos em relação orgânica com as outras duas Críticas. A Crítica
da Razão Prática e a Crítica do Juízo são tanto o desenvolvimento das
teses e ideias enunciadas na Crítica da Razão Pura como o aprofunda‑
mento e a reelaboração orgânica desta e do projecto nesta encetado.
A própria ideia da filosofia transcendental e do programa crítico só se
foi delineando à medida que se foi executando. Por isso, pode Kant
escrever no Prefácio à sua terceira Crítica: «com isto termino todo o
meu trabalho crítico» (Hiemit endige ich also mein ganzes kritisches
Geschäft) 40. Na linha desta declaração, desde a década de 60 do sé­
culo  xx, a sistematicidade interna da filosofia kantiana tem vindo a
ser procurada por vários intérpretes, advertindo-se a tendência para
colocá­‑la sob o signo da mediação estética e das perspectivas que para
uma compreensão da organicidade interna da Razão e do sistema das
faculdades do espírito são proporcionadas pela Crítica do Juízo 41.

39
  W. H. Werkmeister, Kant. The Architectonic and Development of His Phi‑
losophy, La Salle / London, 1980, «Introdução».
40
  Kritik der Urteilskraft, Ak V, 170.
41
  Günther Freudenberg, Die Rolle von Schönheit und Kunst im System der
Transzendentalphilosophie, Meisenheim a. Glan, 1960; J. Kopper, «Kants Lehre
vom Übergang als der Vollendung des Selbstbewusstseins in der Transzenden‑
talphilosophie», Kant­‑Studien, 55 (1964); Johann Heinrich Trede, Die Differenz
von theoretischen und praktischen Vernunftgebrauch und dessen Einheit innerhalb der
Kritik der Urteilskraft, Göttingen, 1969; Peter Heintel, Die Bedeutung der Kritik
der ästhetischen Urteilskraft für die transzendentale Systematik, Bonn, 1970; W. Bar‑

28

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3.6.  Nas últimas décadas, tem­‑se assistido também a uma «rea‑
bilitação» da filosofia kantiana do direito e da política, numa verdadei‑
ra descoberta do seu alcance filosófico, contra o desinteresse e mesmo
desprezo de que haviam sido objecto por parte dos contemporâneos
de Kant, dos pós­‑kantianos e da «Kantforschung» em geral. Em 1962,
ainda havia quem tinha a ousadia de perguntar: «Has Kant a Philoso‑
phy of Law?» 42 — ao que respondia negativamente. Mas nas últimas
duas décadas a atitude mudou radicalmente. A expressão «reabilita‑
ção» é de Wolfgang Kersting 43, cujo esforço por reconhecer a este as‑
pecto da filosofia kantiana a importância que realmente lhe cabe cul‑
mina várias outras tentativas que apontavam já no mesmo sentido 44.
Numa obra publicada em 1988, Gerd-Walter Kusters faz um
amplo balanço do estado da questão e declara a filosofia kantiana
do direito um campo de investigação ainda em aberto. 45 Ao mesmo

tuschat, Zum systematischen Ort von Kants Kritik der Urteilskraft, Frankfurt a. M.,
1972; N. Rothenstreich, Experience and its Systematization. Studies in Kant, The
Hague, 1972; Helga Mertens, Kommentar zur Ersten Einleitung in Kants Kritik der
Urteilskraft. Zur Systematischen Funktion der Kritik der Urteilskraft für das System
der Vernunftkritik, München, 1975; K. Konhardt, Die Einheit der Vernunft. Zum
Verhältnis von theoretischer und praktischer Vernunft in der Philosophie Immanuel
Kants, Forum Academicum, Königstein, 1979; Paolo Gambazzi, Sensibilità, Im‑
maginazione e Bellezza. Introduzione alla dimensione estetica nelle tre Critiche di Kant,
Verona, 1981; Ronald Harri Wettstein, Kants Prinzip der Urteilskraft, Königstein,
1981; Gerhard Krämling, Die systembildende Rolle von Ästhetik und Kulturphiloso‑
phie bei Kant, Alber, München, 1985; T. C. Williams, The Unity of Kant’s Critique of
Pure Reason. Experience, Language, and Knowledge, Lewinston, N. Y. / Queenston,
Ontario, 1987; Reinhard Hiltscher, Kant und das Problem der Einheit der endli‑
chen Vernunft, Königshausen & Neumann, Würzburg, 1987; Hoke Robinson
(ed.), System and Teleology in Kant’s Critique of Judgment (Spindel Conference 1991),
Southern Journal of Philosophy 30 (1992), volume suplementar (nomeadamente o
ensaio de Burkahrd Tüschling: «The System of Transcendental Idealism: Ques‑
tions Raised and Left Open in the Kritik der Urteilskraft», pp. 109-127).
42
  S. M. Brown, «Has Kant a Philosophy of Law?», in Philosophical Review,
71 (1962), pp. 33­‑48.
43
  Wolfgang Kersting, Wohlgeordnete Freiheit, W. de Gruyter, Berlin, 1984.
44
  Simone Goyard­‑Fabre, Kant et le problème du droit, Vrin, Paris, 1975;
Z. Batscha (ed.), Materialien zu Kants Rechtsphilosophie, Frankfurt a. M., Suhrkamp,
1976; Susan Meld Shell, The Rights of Reason. A Study of Kant’s Philosophy and
Politics, Toronto, 1980.
45
  Gerd-Walter Kusters, Kants Rechtsphilosophie, WBG, Darmstadt, 1988.
O  ponto da situação é confirmado e actualizado onze anos depois com con‑
tributos vários num volume coordenado por G. Landwehr: Freiheit, Gleichheit,

29

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tempo, põe em evidência o crescente reconhecimento do significado
da doutrina do direito, não só enquanto considerada em si mesma,
mas também para uma interpretação global da filosofia kantiana e
enuncia os principais problemas em aberto e em debate, a saber: o
esclarecimento da relação entre a Crítica da Razão Prática (1788) e a
Metafísica dos Costumes (1797); a relação íntima entre Crítica e Direi‑
to, denunciada pela linguagem e estrutura jurídica da construção e
exposição da filosofia transcendental 46; a clarificação do conceito
kantiano de praxis e sua aplicação ao quotidiano; o papel determi‑
nante do direito e da vivência forense para a constituição da concep‑
ção kantiana de razão e respectivos procedimentos metodológicos,
o que impõe a desmontagem das acusações do carácter monológico
da razão kantiana, nomeadamente das provenientes dos promoto‑
res da «ética do discurso» e da «razão comunicativa» (Habermas e
Apel). O legado do pensamento jurídico e político de Kant e a sua
fecundidade para repensar os problemas políticos contemporâneos
já não pode mais ser ignorado ou subavaliado 47.
Quase se poderia dizer que, se há um Neokantismo do último
quartel do século xx, ele tem como núcleo primário do seu interesse
por Kant não já os problemas epistemológicos e gnoseológicos, que os
neo­kantianos de finais do século xix e princípios do século xx ­tentavam
resolver lendo a Estética Transcendental e a Analítica Trans­cendental
da Crítica da Razão Pura, e nem sequer os problemas metafísicos ou

Selbständigkeit. Zur Aktualität der Rechstphilosophie Kants für die Gerechtigkeit in


der moder­nen Gesellschaft, Hamburg, Vandenhoeck und Ruprecht, 1999.
46
  Destaque, a este propósito, para os estudos de Friedrich Kaulbach, Stu‑
dien zur späten Rechtsphilosophie Kants, Königshausen & Neumann, Würzburg,
1982; v. também Leonel Ribeiro dos Santos, Metáforas da Razão ou Economia Poé‑
tica do Pensar Kantiano, F. C. Gulbenkian / JNICT, Lisboa, 1994, pp. 561-631.
47
  Para o espaço da língua inglesa, v. a importante antologia editada por
Ronald Beiner e William James Booth, Kant and Political Philosophy. The Con‑
temporary Legacy, Yale University Press, New Haven  /  London, 1993. Nesta
obra fala-se de um «turn to Kant» no pensamento anglo­‑americano actual no
que respeita ao pensamento político, que contrasta com o desinterese de que
fora objecto até há pouco: «The history of relative neglect of Kant as a political
philosopher has in large mesure also been rectified by recent surge of Anglo­
‑American interest in Kantian politics. Philosophers and scholars have found
his writings a rich source of ideas on the central issues of political thought,
ranging from theories of the self to questions of morality and international rela‑
tions.» (Ibidem, p. 2.) V. também, de Katrin Flickschuh, Kant and modern political
philosophy, Cambridge, Cambridge University Press, 2000.

30

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ontológicos, postos em realce pela hermenêutica heideggeriana, mas
é um Neokantismo movido por um novo interesse  pelas questões
ético­‑político­‑jurídicas, num derradeiro esforço por encontrar ainda
em Kant, e para além da crítica da Metafísica e de todos os descons‑
trucionismos contemporâneos de que esta tem sido objecto, um
modo de refundar uma racionalidade prática que possa dar sentido
(se não já um fundamento ou uma certeza absoluta) à vida dos seres
humanos, conscientes da insuperável finitude e contingência que os
afecta na sua vida mundana e histórica. Se há um neo­‑neokantismo
na actua­lidade, ele é sobretudo um Neokantismo em nome de uma
refundação da razão prática (ética, política, jurídica) 48, e que frequen‑
temente lê até as obras de Kant sobre ética (Fundamentação da Metafí‑
sica dos Costumes, Crítica da Razão Prática, Metafísica dos Costumes) pre‑
ferentemente a partir das fecundas perspectivas que a Crítica do Juízo
abre para captar a significação mais profunda da concepção kantiana
de Razão e o sentido ainda possível para a condição humana 49. Mes‑
mo em Portugal, este aspecto do pensamento kantiano tem, nos últi‑
mos anos, merecido atenção e investigação de relevo. 50

48
  É verdadeiramente digno de nota o crescente interesse pela ética kan‑
tiana no espaço linguístico­‑filosófico anglo­‑saxónico. Alguns exemplos: Hen‑
ry Allison, Kant’s Theory of Freedom, Cambridge University Press, Cambridge,
1990; Nancy Sherman, Making a Necessity of Virtue, Cambridge University Press,
Cambridge, 1997; Felicitas Munzel, Kant’s Conception of Moral Character, Chicago
University Press, Chicago, 1999; Allen Wood, Kant’s Ethical Thought, Cambridge
University Press, Cambridge, 1999; Robert Louden, Kant’s Impure Ethics, From
rational Beings to human Beings, Cambridge University Press, Cambridge, 2000;
e ainda o volume antológico (reunindo 17 ensaios de autores de língua inglesa)
sobre a Metafísica dos Costumes de Kant, obra tradicionalmente ignorada mesmo
por aqueles que tratavam da ética kantiana: Kant’s «Metaphysics of Morals». In‑
terpretative Essays, ed. por Mark Timmons, Oxford University Press, New York,
2002. Sobre a presença do Kantismo nos questionamentos éticos da actualidade,
v. Oswaldo Guariglia, «Kantismo», in Victoria Camps, Osvaldo Guariglia, Fer‑
nando Salmerón (eds.), Concepciones de la Ética, «Enciclopedia Ibero­‑Americana
de Filosofia», vol. 2, Editorial Trotta, Madrid, 1992, pp. 53-72. V. neste volume o
ensaio «Actualidade e inactualidade da ética kantiana», pp. 67 e segs.
49
  Este aspecto foi particularmente posto em realce na obra já citada de
J. Lenoble e A. Berten, ob. cit. na nota 2.
50
  Viriato Soromenho-Marques, Razão e Progresso na Filosofia de Kant, Co‑
libri, Lisboa, 1998; História e Política no Pensamento de Kant, Europa-América,
Mem Martins, 1994; Leonel Ribeiro dos Santos, «Republicanismo e cosmopo‑
litismo. A contribuição de Kant para a formação da ideia moderna de federa‑
lismo», in Ernesto Castro Leal (ed.), O Federalismo Europeu — História, Política

31

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A passagem do 2.o  centenário da publicação do ensaio Para a
Paz Perpétua (Zum ewigem Frieden, 1795) deu ampla oportunidade
para o redescobrimento do Kant pensador do direito cosmopolita,
do republicanismo, do federalismo dos povos, filósofo da paz e das
relações internacionais, pela multiplicidade de colóquios e de publi‑
cações que suscitou 51. Mas, como já várias vezes referi, até a releitu‑
ra da Crítica do Juízo tem proporcionado vasto campo de reflexão
para repensar a essência do político 52. As sugestões políticas presen‑

e Utopia, Colibri / Instituto de História Contemporânea, Lisboa, 2001, pp. 35­


‑69; Leonel Ribeiro dos Santos e José Gomes André (org.), Filosofia Kantiana
da Política e do Direito, CFUL, Lisboa, 2007; Leonel Ribeiro dos Santos, «Kant
e o republicanismo moderno», in Ernesto Castro Leal (org.), Republicanismo,
Socialismo, Democracia, Centro de História da Universidade de Lisboa, Lis‑
boa, 2010, pp.  13­‑38. Neste volume, respectivamente, pp. 429-468, 469-501.
51
  M. Buhr / S. Dietzsch (eds.), Immanuel Kant, Zum ewigen Frieden. Ein
philosophische Entwurf. Texte zur Rezeption 1796-1800, Reclam, Leipzig, 1984;
­Ottfried Höffe (ed.), Immanuel Kant: Zum ewigen Frieden, Akademie, Berlin,
1995; S. Chauvier, Du droit d’être étranger. Essai sur le droit cosmopolitique kantien,
L’Harmattan, Paris, 1996; Georg Cavallar, Pax Kantiana. Systematisch­‑historische
Untersuchung des Entwurfs «Zum ewigen Frieden» (1795), Wien / Köln / Weimar,
1992; Domenico Losurdo, Immanuel Kant. Freiheit, Recht und Revolution, Köln,
1987; Jean Ferrari / S. Goyard­‑Fabre (eds.), L’Année 1796. Sur la paix perpétuelle.
De Leibniz aux héritiers de Kant, Paris, 1998; Jürgen Habermas, Kants Idee des ewi‑
gen Friedens — aus dem historischen Abstand von 200 Jahren, Suhrkamp, Frankfurt
a. M., 1996 (trad. francesa: La paix perpétuelle. Le bicentenaire d’une idée kantienne,
Du Cerf, Paris, 1996); Roberto R. Aramayo / Javier Muguerza / Concha Roldán
(eds.), La Paz y el ideal cosmopolita de la Ilustración. A proposito del bicentenário de
Hacia la paz perpetua de Kant, Tecnos, Madrid, 1996; Valério Rohden (ed.), Kant
e a Instituição da Paz / Kant y la Institución de la Paz / Kant und die Stiftung des
Friedens, Universidade Federal do Rio Grande do Sul / Goethe­‑Institut, Porto
Alegre, 1997. Da contribuição portuguesa para este tópico, destaco os ensaios
de José Barata­‑Moura, Pedro M. S. Alves e Viriato Soromenho­‑Marques, reco‑
lhidos no volume Educação Estética e Utopia Política (coord. de Leonel Ribeiro
dos Santos), Edições Colibri / Departamento de Filosofia da Universidade de
Lisboa, Lisboa, 1996.
52
  Em meados da década de 90, Henri d’Aviau de Ternay publicava na
Revue de Métaphysique et de Morale (Junho de 1996, pp. 225-243) um artigo com
o sugestivo título «De l’opportunité d’une relecture de la philosophie du Droit
de Kant à partir de la troisième Critique». A matriz indutora desta pergunta
é sem dúvida a interpretação que H. Arendt havia feito da Crítica do Juízo, já
desde o início dos anos 60, e que sucessivamente inspiraria outros intérpretes
(E. Vollrath, «Kants Kritik der Urteilskraft als Grundlegung einer Theorie des
Politischen», Akten des 4. Internationalen Kant­‑Kongresses, Berlin/New York,

32

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tes nessa obra já Schiller as explorara, mormente nas suas Cartas so‑
bre a Educação Estética, propondo mesmo, nas últimas cartas, uma
política configurada pela mediação estética. Mas mesmo sem passar
expressamente por esta mediação schilleriana, vários pensadores
contemporâneos voltam à estética kantiana para surpreender nela
um modo fecundo de repensar as bases transcendentais em que se
funda a comunidade humana e da existência política 53.
A feição e inspiração política e jurídica da filosofia crítica e do seu
método foi, aliás, posta em grande evidência pelos estudos de F. Kaul‑
bach, nos quais se expõe amplamente a tese segundo a qual a concep‑
ção kantiana do carácter da razão filosófica é orientada pelo modelo de
administração jurídica. Nas palavras do fecundo hermeneuta da filoso‑
fia kantiana: «A razão praticada por Kant bem como o seu conceito de
razão na forma teorética e prática estão fundamentalmente marcados
por um carácter que só pode ser descrito mediante categorias jurídicas.» 54
Este carácter jurídico da filosofia kantiana não deve ser visto apenas
como uma marca peculiar, mas como uma propriedade geral, necessá‑
ria e originária da razão em geral, a qual se pode reconhecer não só na
filosofia teorética como na filosofia prática e cujo significado não pode
ser interpretado como meramente metafórico. Mas não é só a filosofia
teorética e a filosofia prática kantiana que estão formadas pelo modelo

1974, parte ii, pp. 692 e segs.; idem, Die Rekonstruktion der politischen Urteilskraft,
Stuttgart, 1977). O mesmo Henri D’Aviau de Ternai publicaria recentemente
uma ampla explicitação da ideia acima proposta na obra Un impératif de com‑
munication. Une relecture de la philosophie du droit de Kant à partir de la troisième
«Critique», Les Éditions Du Cerf, Paris, 2005.
53
  A. Negri, La comunità estetica in Kant, Laterza, Bari, 1968.
54
  Sobretudo nos Studien zur späten Rechtsphilosophie Kants und ihrer trans‑
zendentalen Methode, Königshausen & Neumann, Würzburg, 1982, pp. 111­‑112.
V.  também D. R. Doublet, Die Vernunft als Rechtsinstanz. Die «Kritik der reinen
Vernunft» als Reflexionsprozess der Vernunft, Paderborn, 1989; Leonel Ribeiro dos
Santos, Metáforas da Razão, pp. 561­‑631; idem, «A ‘revolução da razão’ ou o para‑
digma político do pensamento kantiano, Análise 16 (1992), pp. 21-33. Mais recen‑
temente, a mesma ideia tem sido sublinhada por Maximiliano Hernández Mar‑
cos (La Crítica de la Razón Pura como proceso civil. Sobre la interpretación jurídica de la
filosofia trascendental de I. Kant, Univ. de Salamanca, micro­‑fiche, 1993) e Ottfried
Höffe («La raison kantienne est­‑elle républicaine? Essai de lecture de la Critique
de la raison pure», in Kant actuel, Montréal / Paris, 2000, pp. 201­‑214; idem, Köni‑
gliche Völcker. Zu Kants kosmopolitischer Rechts ­— und Friedenstheorie, Suhrkamp,
Fankfurt a. M., 2001). V., neste volume, o ensaio «Da linguagem jurídica da filo‑
sofia crítica à arqueologia da razão prática», pp. 205-228.

33

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jurídico. Também os problemas estéticos estão pensados dentro do
mesmo paradigma metodológico e segundo categorias provenientes
do âmbito jurídico, como o mostrou o mesmo kantiano numa obra que
dedicou à interpretação e exposição do pensamento estético de Kant 55.

3.7.  Como já foi apontado mais do que uma vez ao longo des‑
ta nota, a importância reconhecida à Crítica do Juízo constitui um dos
aspectos mais marcantes das releituras e interpretações da filosofia
kantiana das últimas três décadas 56. O alcance da redescoberta des‑
sa obra não se fez sentir apenas na apreciação das questões estéticas,
mas projectou uma luz inesperada sobre quase todos os outros as‑
pectos do pensamento de Kant e permitiu uma nova compreensão
de todo o seu projecto filosófico. Esta obra, que constitui verdadei‑
ramente o «coroamento da filosofia crítica» 57, salvas as muito raras
excepções, foi subvalorizada durante quase dois séculos por suces‑
sivas gerações de intérpretes da filosofia kantiana 58. E, apesar do
novo interesse que ultimamente tem despertado, ela ainda constitui
a muitos títulos um enigma e um desafio para o hermeneuta que
queira compreender a sua génese aporética e a ligação orgânica com
as duas outras Críticas, ou que tente perceber a unidade que liga as
suas duas partes, respectivamente, a Crítica do Juízo Estético e a Crí‑
tica do Juízo Teleológico, que tente, enfim, compreender o seu lugar e
função no sistema da filosofia transcendental 59.

55
  Ästhetische Welterkenntnis bei Kant, Königshausen & Neumann, Würz‑
burg, 1984.
56
  AA.  VV., La faculté de juger, Éditions de Minuit, Paris, 1985; Domini‑
que Janicaud, Sur la troisième Critique, L’Éclat, Paris, 1994; Gernot Böhme, Kants
«Kritik der Urteilskraft» in neuer Sicht, Suhrkamp, Frankfurt a. M., 1999.
57
  Assim o dizia, glosando uma passagem do prefácio, o título da obra,
pouco atendida na altura da sua publicação, de R. A. C. Macmillan, The Crowning
Phase of the Critical Philosophy. A Study in Kant’s Critique of Judgment, London, 1912.
58
  Ao falar-se de redescoberta pretende-se dizer que, apesar de tudo, a obra
foi lida e mereceu algumas interpretações importantes, mesmo da parte dos neo­
kantianos. Hermann Cohen publicou Kants Begründung der Ästhetik (Berlin, 1889,
2.a ed.; reimpr. com «Introdução» de Helmut Holzhey, Olms, Hildesheim, 2009), e
o neokantiano de Baden, Jonas Cohen, publicou, em 1901, uma Allgemeine Ästhetik.
59
  Um ponto da situação dos problemas com que se enfrenta ainda a her‑
menêutica desta obra foi recentemente feito por Alain Renaut, na «Présentation»
da nova tradução francesa que ele próprio empreendeu dessa obra: Emmanuel
Kant, Critique de la Faculté de Juger, traduction, présentation, bibliographie et
chronologie par A. Renaut, Aubier, Paris, 1995, pp. 7­‑81.

34

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Podemos perguntar com toda a pertinência, como já o fazia
Schelling na sua Filosofia da Arte, se com a Crítica do Juízo Estético Kant
pretendia realmente oferecer uma Estética ou uma Filosofia da Arte 60.
O que é certo é que para todos os efeitos essa obra cumpriu historica‑
mente, pelo seu significado e eficácia, a função de uma Estética e pode
mesmo dizer-se que ela assinala na história do pensamento uma deci‑
siva «viragem para a Estética» 61. E embora as perspectivas kantianas
sobre a arte e a estética logo tenham sido obnubiladas pelas Lições de
Estética de Hegel, aquilo que se pode designar como a Estética kantiana
e temas conexos constitui uma das áreas que nos últimos anos tem
vindo a ser posta em evidência. Procura-se captar não só o seu alcance
histórico-filosófico e o seu interesse para se aceder a uma interpretação
imanente e orgânica da obra de Kant, mas também a sua fecundidade
especulativa para pensar e compreender não só o fenómeno estético
em geral, mas até aspectos muito particulares do pensamento estético
e da arte contemporâneos. Definitivamente, a terceira Crítica e as ques‑
tões nela abordadas deixaram de ser consideradas um apêndice ao
pensamento kantiano exposto na primeira e na segunda Críticas e são
hoje reconhecidas na sua função sistemática no conjunto da filosofia
crítica e transcendental 62. Impossível é dar uma ideia da quantidade e
variedade dos estudos que têm posto em evidência a importância des‑
ta obra de Kant, sendo de realçar o crescente interesse que os temas da
estética kantiana vêm suscitando também nos países anglo-saxónicos,
como o prova amplamente a bibliografia mais recente 63.

  F. J. Schelling, Philosophie der Kunst, WBG, Darmstadt, 1980, p. 6.


60

  Odo Marquard, «Kant und die Wende zur Ästhetik», in P.  Hein‑
61

tel / L. Nagl (eds.), Zur Kantforschung der Gegenwart, WBG, Darmstadt, 1981,


pp. 238­‑270.
62
  Wolfgang Bartuschat, Zum systematischen Ort von Kants Kritik der
Urteilskraft, Frankfurt a. M., 1972; Paolo Gambazzi, Sensibilità, Immaginazione e
Bellezza. Introduzione alla dimensione estetica nelle tre critiche di Kant, Libreria Uni‑
versitaria Editrice, Verona, 1981; Andrea Esser (Hrsg.), Autonomie der Kunst?
Zur Aktualität von Kants Ästhetik, Akademie Verlag, Berlin, 1995; Ursula Franke
(Hrsg.), Kant’s Schlüssel zur Kritik des Geschmacks: Ästhetische Erfahrung heute —
Studien zur Aktualität von Kants Kritik der Urteilskraft. Zeitschrift für Ästhetik und
allgemeine Kunstwissenschaft, Sonderheft, Hamburg, 2000.
63
  Da vasta literatura, destaco: Herman Parret (ed.), Kants Ästhetik, Kant’s
Aesthetics, L’esthétique de Kant, Walter de Gruyter, Berlin / New York, 1998; ­Rudolf
A. Makkreel, Imagination and Interpretatinon in Kant, The ­Hermeneutical ­Import
of the Critique of Judgment, The University of Chicago Press, ­Chicago  /  Lon­
don, 1990; Kenneth R. Rogerson, Kant’s Aesthetics: The Roles of Form and Expres‑
sion, University Press of America, Lanham / New York / London, 1986; John

35

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Destaco aqui, antes de mais, o reconhecimento de que a dimen‑
são estética constitui a matriz e o princípio inspirador da cultura e
até da vida política, sem se cair evidentemente numa estéril estetici‑
zação da vida, ou numa redução de tudo ao estético, mas antes ven‑
do na dimensão estética por assim dizer o elemento em que se move
e respira toda a vida do espírito. O papel mediador da estética e o
sentido antropológico da vivência estética cedo foram advertidos
pelo filósofo classicista Friedrich Schiller, que nisso via a possibili‑
dade de sanar a separação entre o entendimento e a imaginação,
entre a razão e o sentimento, que pareciam extremadas não só na
filosofia teorética como sobretudo na filosofia prática de Kant. Nas
suas Cartas sobre a Educação Estética do Ser Humano (1795), Schiller
soube dar desenvolvimento e transformar em todo um programa
orgânico a intuição kantiana segundo a qual «a beleza é o símbolo
da moralidade», soube captar a fecunda promessa para uma nova
compreensão da plenitude humana que se insinuava na ideia da
experiência estética como «harmonia das faculdades do espírito no
seu livre jogo» e compreendeu bem que o sentimento estético pode
mesmo inspirar toda uma nova forma de entender as relações entre
os homens, mesmo as políticas, e as relações entre os homens e a
natureza. Efectivamente, como já mostrei noutros ensaios, é no juízo
estético que a feição comunitária da razão kantiana se revela com
maior evidência, desmentindo aqueles que a acusam de ­monológica.
À primeira vista, esse juízo é o mais irredutivelmente subjectivo
e  singular. Nele vai, todavia, incluída uma «pretensão à validade
universal» (Anspruch auf Allgemeingültigkeit), ao «acordo universal»

H. Zammito, The Genesis of Kant’s Critique of Judgment, The University of Chi‑


cago Press, Chicago / London, 1992; Eva Schaper, Studies in Kant’s Aesthetics,
Edinburgh University Press, Edinburgh, 1979; Ralf Meerbote (ed.), Kant’s Aes‑
thetics, Ridgeview Publishing Company, Atascadero, Cal., 1991; Salim Kemal,
Kant and Fine Art, An Essay on Kant and the Philosophy of Fine Art and Culture,
Clarendon Press, Oxford, 1986; Ted Cohen e Paul Guyer (eds.), Essays in Kant’s
Aesthetics, University of Chicago Press, Chicago / London, 1982; Paul Guyer,
Kant and the Claims of Taste, Harvard University Press, Cambridge / London,
1979; Paul Guyer (ed.), Kant’s Critique of the Power of Judgment. Critical Essays,
Rowman & Litlefield Publishers, Lanham / New York / Oxford, 2003; Henry
E. Allison, Kant’s Theory of Taste. A Reading of the «Critique of Aesthetic Judgment»,
Cambridge University Press, Cambridge, 2001; Dieter Heinrich, Aesthetic Judg‑
ment and the Moral Image of the World, Studies in Kant, Stanford University Press,
Stanford, 1992; Sarah Gibbons, Kant’s Theory of Imagination, Bridging Gaps in
Judgment and Experience, Clarendon Press, Oxford, 1994.

36

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(­ allgemeine Beistimmung), à «aprovação universal» (allgemeine
Stimme) 64. O juízo estético é, por conseguinte, o juízo inalienável de
um sujeito sem contudo ser um juízo meramente privado. Na ver‑
dade, ele é mesmo posto em comum, isto é, ele abre-se e aspira ao
consenso universal. Consenso este que todavia tem de ser concedi‑
do livremente por cada um dos outros sujeitos da comunidade, uma
vez que não há norma, regra ou princípio objectivo que o possam
determinar ou impor.
Foi mérito de Kant ter reconhecido no cerne do juízo de gosto
essa postulação dum livre consentimento universal. Fê-lo ao identi‑
ficar esse juízo como uma espécie de sensus communis, uma peculiar
forma de sentimento comunitário. Lê-se no § 40 da Crítica do Juízo:
«Por sensus communis deve entender-se a ideia de um sentido comu‑
nitário [Idee eines gemeinschaftlichen Sinnes], isto é, de uma faculdade
de apreciação que na sua reflexão tem em conta (a priori) o modo de
representação de todos os outros, para de certo modo manter o seu
juízo no conjunto da razão humana.»
Não se trata aqui de uma propriedade psicológica de alguns
indivíduos, mas de uma estrutura e função transcendental da razão
humana, atribuída ao juízo reflexionante e que se revela numa qua‑
lidade específica: a amplitude de vistas, o modo amplo de pensar
(erweiterte Denkungsart). Esta capacidade de sair do seu círculo pri‑
vado e ponto de vista individual para se colocar em todos os pontos
de vista possíveis ou necessários para apreciar adequadamente uma
dada questão é algo que governa toda a filosofia kantiana e é, no
fundo, o que se designa por perspectiva transcendental. Assim al‑
cança o sujeito — seja no plano teorético, seja no prático ou no esté‑
tico — aquele «ponto de vista universal» (allgemein Standpunkt), a
partir do qual pode situar e compreender adequadamente o seu
próprio juízo e modo de pensar e, desse modo, encontrar a respecti‑
va compossibilidade com os juízos e modos de pensar dos outros,
num mesmo mundo de sentimentos, de representações, de acções,
de conhecimentos.
O alcance político desta concepção kantiana do juízo de gosto
— como sentido ou sentimento da originária comunidade da razão
e fundamento da própria Humanidade e da cultura — é óbvio e tem
sido justamente realçado por alguns intérpretes recentes da terceira
Crítica. E esse alcance não reside apenas nas implicações políticas ou

64
  Kritik der Urteilskraft, Ak V, 239.

37

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antropológicas da Estética. Particularmente decisivo é o facto de a
estrutura e lógica do juízo estético, enquanto juízo reflexionante,
permitir igualmente compreender a estrutura e lógica do juízo polí‑
tico. Também neste, com efeito, o sujeito tem de colocar­‑se fora das
condições meramente privadas do seu juízo e interesse e elevar­‑se a
um ponto de vista universal, a partir do qual possa reflectir sobre o
seu próprio juízo e compreender a sua posição no conjunto em que
se encontra com outros cidadãos. E é levado a fazer isto não por
obrigação ou coacção exteriores, mas conduzido pelo seu originário
sentimento comunitário, que, na sua reflexão, o leva a ter em consi‑
deração o modo de representação de todos os outros. O juízo políti‑
co — isto é, aquele acto que, numa perspectiva transcendental, se
pode invocar como fundador da comunidade humana — revela­‑se
homólogo do juízo estético e, compreendida a racionalidade estéti‑
ca, pode descortinar­‑se também uma nova racionalidade para o do‑
mínio do político. Kant via-a na forma da ideia republicana (respu‑
blica noumenon), que não deve confundir­‑se com as formas históricas
já experimentadas do republicanismo.
Citarei, a este respeito, em primeiro lugar, a filósofa germano­
‑americana Hannah Arendt. Já no seu ensaio «Society and Culture»
(1960) em que propõe uma meditação sobre os fundamentos e a cri‑
se da vida social e política contemporânea, Arendt escrevia que a
«crítica do juízo estético contém porventura o aspecto mais impor‑
tante e o mais original da filosofia política de Kant» 65. Trata-se nela
não apenas de garantir o acordo do sujeito consigo mesmo, mas a
capacidade de ele se colocar no lugar de um outro, da faculdade de
ver as coisas não apenas dum ponto de vista pessoal, mas na pers‑
pectiva de todos aqueles que se encontram presentes. Kant soube
reinventar o juízo como uma das faculdades fundamentais do ho‑
mem enquanto ser político, como a faculdade que o torna capaz de
se orientar no domínio público, no mundo comum e partilhado com
outros. Alguns dos antigos pensadores do político (Aristóteles, Cí‑
cero) já tinham percebido isso, mas o que é novo, e mesmo espanto‑
samente novo, nas proposições de Kant na Crítica do Juízo é o facto

  Hannah Arendt, «Society and Culture», Daedalus 89 (Primavera de 1960),


65

pp. 278­‑287, retomado em Between Past and Future, Viking Press, N. York, 1968,
pp. 197­‑226 (trad. francesa: La Crise de la Culture, Gallimard, Paris, 1972, pp. 281
e segs.). V. o meu ensaio «Da estética como filosofia política: Hannah Arendt e
a sua interpretação da Crítica do Juízo de Kant», in Hannah Arendt. Luz e Sombra,
CFUL, Lisboa, 2008, retomado neste volume, pp. 503 e segs.

38

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de ele ter descoberto este fenómeno em toda a sua amplitude preci‑
samente ao examinar o fenómeno do gosto. Estas ideias seriam pos‑
teriormente desenvolvidas num curso expressamente dedicado à
Crítica do Juízo, postumamente editado 66, e tiveram uma notável fe‑
cundidade 67.
O próprio Jürgen Habermas, indo contra as suas anteriores aprecia‑
ções da filosofia de Kant como originariamente eivada de um insanável
monologismo (e, segundo julgo, pela mão da leitura da interpretação
que Hannah Arendt fizera da Crítica do Juízo), acaba por reconhecer que
Kant teria descoberto nesta obra o a priori estético de uma verdadeira
«pragmática transcendental»: «Através da explicitação das utopias polí‑
ticas que estão pressupostas em todos os juízos de gosto, Kant fornecia
os critérios de admissibilidade racional dos nossos modelos de verdade
e de justiça. Pela tese de que, na aspiração a um reconhecimento univer‑
sal dos seus critérios de apreciação, o juízo de gosto revela o princípio de
instauração de uma comunidade supra­‑sensível realizada na comunica‑
ção sem mediação de leis ou de conceitos, a Crítica da Faculdade do Juízo
adquire assim para Habermas a condição de um verdadeiro manifesto
da modernidade estética, transforma­‑se numa utopia reguladora com um
alcance ao mesmo tempo prático e teórico.» 68
E, na mesma linha, embora provindo de uma matriz diferente
(a mediação Fichte­‑Philonenko), mas também da releitura das po‑
tencialidades da Crítica do Juízo para uma refundação da razão

66
  Hannah Arendt, Lectures on Kant’s Political Philosophy, ed. com um en‑
saio interpretativo de R. Beiner, Chicago Ill., 1982 (Das Urteilen. Texte zu Kants
politischer Philosophie, München / Zürich, 1985).
67
  E. Vollrath, «Kants ‘Kritik der Urteilskraft’ als Grundlegung einer Theorie
des politischen», Akten des 4. Internationalen Kant­‑Kongresses, W. de Gruyter, Berlin
/ New York, 1974, II, pp. 692 e segs.; Idem, Die Rekonstruktion der politischen Urteil‑
skraft, Stuttgart, 1977; Kimberley Hutchings, Kant, Critique and Politics, Routledge,
London / New York, 1996 (trata-se de um estudo sobre a presença de Kant no
pensamento de Habermas, Arendt, Lyotard, Foucault e nas teorias do feminismo);
Kyriaky Goudeli, «Kant’s Reflective Judgement: The Normalisation of Political
Judgement», Kant­‑Studien, 94 (2003), pp. 51­‑68; Markus Arnold, «Die harmonische
Stimmung aufgeklärter Bürger. Zum Verhältnis von Politik und Ästhetik in Im‑
manuel Kants «Kritik der Urteilskraft», Kant­‑Studien, 94 (2003), pp. 24­‑50.
68
  Nuno Nabais, «Para uma arqueologia do lugar de Nietzsche na estéti‑
ca da pós­‑modernidade», in idem, Metafísica do Trágico. Estudos sobre Nietzsche,
Relógio d’Água, Lisboa, 1997. De Habermas, v., nomeadamente, o ensaio «Die
Moderne — ein unvollendetes Projekt», in idem, Die Moderne — ein unvollendetes
Projekt. Philosophisch­‑politische Aufsätze, Reclam, Leipzig, 1990, p. 44.

39

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prático­‑política, vai o pensamento de dois dos mais destacados
«neo­kan­tianos» franceses da actualidade: Alain Renaut e Luc Fer‑
ry 69.
Noutra secção da Crítica do Juízo, na «Analítica do sublime»,
descobriu Lyotard uma via fecunda para compreender o modo do
compromisso humano na história e na política, ao mesmo tempo
que declarava que «a Doutrina do Direito não lhe parecia um texto per‑
tinente para o estudo do político segundo Kant» 70, parecendo­‑lhe mais
fecunda a leitura da primeira parte da terceira Crítica. O «entusias‑
mo», de que fala Kant a propósito da participação do espectador nos
acontecimentos históricos (no caso, a Revolução Francesa), é para
Lyotard «um modo extremo do sublime» 71 e, de resto, a intimidade
entre a filosofia crítica e a política é de tal ordem que «a frase filosó‑
fica segundo Kant é um análogo da frase política segundo Kant» 72.
Por outro lado, enquanto oposto do belo — como juízo que apela ao
consenso e pressupõe um sensus communis — o sublime é, para Lyo‑
tard, o sentimento da comunidade impossível, que, longe de encon‑
trar o seu cumprimento numa filosofia do sensus communis e da in‑
tersubjectividade, «quebra as normas constituídas, faz estilhaçar os
consensos, reaviva o sentido do diferendo» 73. Não é difícil reconhe‑
cer o alcance para uma filosofia das revoluções políticas desta imo‑

69
  Sobre estes, v. a obra de J. Lenoble e A. Berten, Dire la norme. Droit, poli‑
tique et énonciation, Bruylant / LGDJ, Bruxelles / Paris, 1996, sobretudo pp. 61­
‑74. Como já o propunha Philonenko, na «Introdução» à sua tradução da obra
(Critique de la Faculté de Juger, Vrin, Paris), a Crítica da Faculdade de Julgar é aquela
onde, melhor do que nas outras duas Críticas, Kant funda a intersubjectividade
humana, no que é seguido por Alain Renaut (v. deste a «Présentation» da sua
própria tradução da Critique de la Faculté de Juger (Aubier, Paris, 1995), pp. 59­
‑64. Alain Renaut et Luc Ferry, Système et critique, Essais sur la critique de la rai‑
son dans la philosophie contemporaine, Ousia, Bruxelles, 1984; Alain Renaut, Kant
aujourd’hui, Flammarion, Paris, 1997 (1999).
70
  De J.­‑F. Lyotard, v. Leçons sur l’Analytique du Sublime, Galilée, Paris, 1991;
L’enthousiasme. La critique kantienne de l’histoire, Galilée, Paris, 1986; L’inhumain.
Causeries sur le temps, Galilée, Paris, 1988. Sobre ele, Gernot Böhme, «Lyotards
Lektüre des Erhabenen», Kant­‑Studien, 89 (1998), 205­‑218.
71
  L’enthousiasme. La critique kantienne de l’histoire, Galilée, Paris, 1986,
pp. 30 e 61.
72
  Ibidem, p. 16.
73
  J.­‑F. Lyotard e Jacob Rogozinski, L’Autre Journal, Dezembro de 1985,
p. 34, cit. por N. Nabais, art. cit., p. 280; J.-F. Lyotard, «Le sublime et l’avant­
‑garde», in L’Inhumain, p. 115.

40

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lação do sublime no altar da estética, pois «o sublime nada mais é do
que o anúncio sacrificial da ética no campo estético» 74. Lyotard é um
exemplo típico de interpretação de uma parte ou de um tópico da
obra de Kant em que não se procura manter a coerência contextual.
Essa parte é retirada, violentada e usada para servir os interesses ou
necessidades do intérprete. No caso, sobretudo a de explicar certos
fenómenos da arte contemporânea que não são já subsumíveis numa
estética do belo 75.
Um outro aspecto que a releitura da terceira Crítica tem permi‑
tido é a descoberta do sentido da poética e estética da natureza
(que Kant diz com as expressões «Technik der Natur», «Natur als
Kunst»), do parentesco entre arte e natureza, do regresso à nature‑
za como paradigma estético 76. Ainda está por se explorar (e, por
conseguinte, também por se entender em todo o seu alcance) o
significado da reunião feita por Kant entre o estético e o teleológi‑
co sob uma mesma faculdade — o juízo (Urteilskraft) — e um mes‑
mo princípio transcencental — a conformidade a fins (Zweckmässi‑
gkeit), essa «associação barroca» (barocke Vereinigung), no dizer de
Schopenhauer 77, e porventura uma meditação mais aprofundada
sobre a terceira Crítica não deixaria de dar sugestivas ideias para a
actual consciência ecológica e constituir mesmo a base para uma
crítica estética de certo fundamentalismo de que dá provas a racio‑

  L’Inhumain, p. 149.
74

  V. o excelente ensaio de Ana Anahory, «Leituras do sublime: Lyotard


75

e Derrida», Philosophica, n.os 19/20 (2002), pp. 131­‑154, e o volume que reúne


ensaios de vários investigadores franceses que se movem no campo aberto por
Lyotard: Du sublime, Belin, Paris, 1988.
76
  V. os meus ensaios: «Kant e o regresso à natureza como paradigma es‑
tético», in Cristina Beckert (coord.), Natureza e Ambiente. Representações na Cul‑
tura Portuguesa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2001,
pp. 169­‑193; «Da experiência estético­‑teleológica da natureza à consciência eco‑
lógica. Uma leitura da Crítica do Juízo de Kant», Trans/Form/Ação (revista da
Facul­dade de Filosofia e Ciências da UNESP, Campus de Marília, São Paulo),
n.o 29 (1), 2006, pp. 7­‑29 (também em suporte electrónico: http://www.scielo.
br/trans); «Kant e a ideia de uma poética da natureza», Philosophica, 29 (Abril
de 2007), pp. 19­‑34; «‘Técnica da Natureza’. Reflexões em torno de um tópico
kantiano», Studia Kantiana (Revista da Sociedade Kant Brasileira), volume 9,
dezembro de 2009, pp. 118-160.
77
  Arthur Schopenhauer, Kritik der Kantischen Philosophie, Sammtliche Werke,
Reclam, Leipzig, 1892, Bd. I, p. 673.

41

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nalidade ecológica. 78 Apesar de vários estudos terem já mostrado a
inequívoca e fundamental função sistemática da beleza, da ­faculdade
de julgar e do seu princípio de Zweckmässigkeit no interior da filosofia
kantiana, ainda é bastante comum tratar­‑se separadamente as duas
partes da terceira Crítica: a primeira para os estetas, a segunda para os
epistemólogos das ciências dos organismos. 79 Pelo contrário, foi pre‑
cisamente na associação desses dois domínios aparentemente hetero‑
géneos que Goethe viu o profundo significado e alcance dessa obra e
o ponto em que o seu espírito de artista e naturalista se encontrava
inesperadamente com as perspectivas do filósofo crítico. 80
Na Crítica do Juízo se pode apreender o sentido da poética do es‑
pírito, revelada sobretudo nas criações artísticas, mas também em
todas as outras formas de criação espiritual, na filosofia e metafísica
e até na ciência e actividade cognoscitiva enquanto trabalho heurís‑
tico ou processo inventivo. Ainda está por se explorar o alcance da
teoria da imaginação desenvolvida nessa obra de Kant e a concep‑
ção do jogo e harmonia das faculdades, bem como a teoria da ideia
estética, do símbolo, da metáfora e da analogia, enfim da teleologia
e da poética da criação espiritual.
O interesse desta perspectiva atinge também a epistemologia: as
«revoluções científicas» (Thomas S. Kuhn) podem ser melhor entendi‑
das como «revoluções do modo de pensar», como deslocações do pon‑
to de vista ou da perspectiva do sujeito, naquele sentido que Kant
propõe no prefácio à 2.a edição da Crítica da Razão Pura. 81 Por outro

  Cf. Gerhard Schneider, Naturschönheit und Kritik. Zur Aktualität von


78

Kant Kritik der Urteilskraft für die Umwelterziehung, Königshausen & Neumann,
Würzburg, 1994. V. neste volume, o ensaio «Da experiência estético­‑teleológica
da natureza à consciência ecológica», pp. 379 e segs.
79
  V. J. M. Schaeffer, Magazine Littéraire, n.o 309, 1993, p. 37.
80
  «Na Crítica do Juízo eu vi as minhas ocupações mais díspares postas
uma junto da outra; os produtos da arte e da natureza considerados do mes‑
mo modo; o juízo estético e o juízo teleológico iluminando­‑se mutuamente...
Alegrava­‑me que a arte poética e a ciência natural comparada fossem tão afins
uma da outra, e que ambas estivessem subordinadas à mesma faculdade de
julgar...» Goethe, Einwirkung der neueren Philosophie (1817), publicado em Zur
Morphologie, I, 2 (1820), trad. castelhana em J. W. von Goethe, Teoria de la natura‑
leza, Tecnos, Madrid, 1997, p. 182.
81
  Kritik der reinen Vernunft, B XVIII-XXII, Ak III, 13­‑15. V. Josef Quitterer,
Kant und die These vom Paradigmenwechsel. Eine Gegenüberstellung seiner Trans­
zendentalphilosophie mit der Wissenschaftstheorie Thomas S. Kuhns, Lang, Frank‑
furt a. M. / Bern / New York, 1996.

42

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lado, a filosofia kantiana, mormente se lermos com atenção o «Apên‑
dice à dialéctica transcendental» e a «Teoria transcendental do ­método»
da Crítica da Razão Pura e se lermos bem sobretudo as duas Introdu‑
ções à Crítica do Juízo e, bem assim, vários parágrafos tanto da primeira
como da segunda parte desta obra, deixa sugestivas indicações para o
que se poderia chamar uma heurística transcendental, ou seja, a com‑
preensão dos processos e pressupostos que estão em jogo na invenção
científica e em toda a criação espiritual, seja ela artística ou ­filosófica 82.
Um campo que nos últimos anos vem recebendo maior atenção
é o da linguagem e estilo de Kant, mas também o da filosofia kantia‑
na da linguagem. Ainda aparece por vezes quem assuma a função
dos meta­‑críticos Hamann e Herder, que acusavam Kant de ter igno‑
rado ou menosprezado o papel da linguagem na construção dos con‑
ceitos e na filosofia em geral. Uma melhor atenção ao próprio texto e
letra de Kant revela, porém, muito pelo contrário, que o filósofo críti‑
co é um pensador bem consciente de que o trabalho da razão é um
trabalho com a linguagem e no elemento da linguagem, que é, em
suma, também um ministério da palavra 83. A atenção à terceira Críti‑

82
  Sob o tópico «Heurística transcendental» espero publicar em breve um
volume que reúne meia dúzia de estudos sobre aspectos da epistemologia trans‑
cendental kantiana, cuja ideia central foi já exposta no ensaio «Kant e a ideia de
uma heurística transcendental», in Razão e Liberdade. Homenagem a Manuel José
do Carmo Ferreira, CFUL, Lisboa, 2009, vol. ii, pp. 1087­‑1111 (a versão em francês
deste ensaio, sob o título «L’apport de Kant au programme de l’ars inveniendi des
Modernes», foi publicada em edição electrónica in http://www.cle.unicamp.br/
Kant e­‑prints, 2008). V. também Harald Karja, Heuristische Elemente der «Kritik der
teleologischen Urteilskraft», Heidelberg (Diss.), 1975; e, embora noutra linha — re‑
lendo a analítica transcendental como um programa epistemológico a partir do
neopositivismo de Carnap e de Mach —, também Zeljko Loparic, «Heurística
kantiana», Cadernos de História e Filosofia da Ciência, n.o 5, 1983, pp. 73­‑89.
83
  Não só este aspecto hoje é reconhecido (v. o meu ensaio «Kant e a filosofia
como análise e reinvenção da linguagem metafísica», in Leonel Ribeiro dos San‑
tos, A Razão Sensível. Estudos Kantianos, Colibri, Lisboa, 1994), como a revisitação
de certos tópicos da filosofia kantiana, tais como o esquematismo e o simbolismo,
consentem uma fecunda interpretação semiótica, do que são exemplo as varia‑
ções que sobre o tema faz Umberto Eco no seu estimulante ensaio «Kant, Peirce
e o ornitorrinco», in idem, Kant e o Ornitorrinco, Difel, Lisboa, 1999, pp. 65­‑125.
V. ainda de Claudio La Rocca, Esistenza e Giudizio. Linguaggio e Ontologia in Kant,
Pisa, Edizioni ETS, 1999. Num dos capítulos desta obra, La Rocca persegue os
contornos do programa kantiano de uma «gramática transcendental» que aflora
em algumas reflexões e sobretudo nos apontamentos de alguns cursos de Kant,
com destaque para a Metaphysik Vigilantius (Ak XXVIII, 576 e segs.).

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ca fez descobrir o interesse pelos procedimentos próprios da poética
do espírito que se manifestam sobretudo na criação da ideia estética,
na metáfora e no símbolo. Mas também a linguagem da filosofia de
Kant vem progressivamente a ser objecto de uma atenção e até de um
apreço que até há pouco quase sempre lhe haviam sido negados 84.

3.8.  É na «Analítica do sublime» da primeira parte da Crítica


do Juízo, secção tradicionalmente tão pouco atendida inclusivamen‑
te pelos que se ocupavam da estética de Kant, que, na recente déca‑
da de 80, Lyotard descobre uma fecunda via para compreender as
formas da arte de vanguarda sobretudo na pintura e na música (abs‑
traccionismo, minimalismo), que não podem ser compreendidas
dentro dos pressupostos de uma estética do belo. Assim o escreve:
«Parece­‑me indispensável voltar a percorrer a ‘Analítica do ­sublime’
da Crítica da Faculdade de Julgar de Kant se se quer fazer uma ideia
do que está em jogo no modernismo, naquilo que se chama as van‑
guardas na pintura ou na música.» 85 Com a concepção kantiana do
sublime, continua o filósofo francês, «antes mesmo que a arte ro‑
mântica tenha sido separada da figura clássica e barroca, abre-se a
porta para uma investigação em direcção à arte abstracta e à arte
minimalista. O vanguardismo encontra-se assim em germe na esté‑
tica kantiana do sublime.» 86
O sublime é, segundo Kant, a experiência do confronto com o
«sem-forma», o «informe», ou mesmo o «Absoluto sem nome». Cate­

  Jean-Luc Nancy, «Logodaedalus. Kant écrivain», Poétique, 21 (1975),


84

pp.  24­‑52; idem, Le discours de la syncope. I. Logodaedalus, Paris, 1976; Leonel


Ribeiro dos Santos, Metáforas da Razão ou Economia Poética do Pensar Kantiano,
F. C. Gulbenkian / JNICT, Lisboa, 1994 (1.a ed., como dissertação de doutora‑
mento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1989);
Willi Goetschell, Kant als Schriftsteller, Wien, 1990; Herman Parret, «La rhéto‑
rique: heuristique et méthode chez Kant», in M. Meyer / A. Lempereur (eds.),
Figures et conflicts rhétoriques, Bruxelles, 1990, pp. 103­‑114; Holger Gehle, «Die
Kant­‑Garve­‑Kontroverse zur philosophischen Sprache und Erfahrung. Phi‑
losophiedidaktische Überlegungen», Zeitschrift für Didaktik der Philosophie, 19
(1990), 8­‑13; Dieter Kimpel, «Begriff und Metapher. Die Stellung des philoso‑
phischen Gedankens zur Metapher bei Aristoteles und Kant», Zeitschrift für
­Didaktik der Philosophie, 4 (1982), 82­‑89; Y. A. Kang, Schema and Symbol. A Study
in Kant’s Doctrine of Schematism, Amsterdam, 1985.
85
  J.-F. Lyotard, «Après le sublime, état de l’esthétique», L’Inhumain, 1988,
pp. 147 e segs.
86
  L’Inhumain, p. 110.

44

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gorias que Lyotard prefere traduzir por a «a matéria» ou «a Coisa»:
«Sob o nome de matéria, entendo a Coisa. A Coisa não espera que a
destinemos, ela não espara nada, ela não faz apelo ao espírito... Ela é
a presença enquanto inapresentável ao espírito, sempre subtraída à
sua empresa. Ela não se oferece ao diálogo e à dialéctica.» 87
Como já acima referi, é ainda o sublime kantiano que permite a
este pensador da «condição pós-moderna» compreender o compro‑
misso histórico e político dos humanos entre si, e que o leva a afirmar
que a filosofia kantiana do político se encontra melhor exposta na
analítica do sublime do que na filosofia do direito. Embora Lyotard
tenda de facto a sacrificar as dimensões éticas do sublime kantiano
nas aras do estético, não deixa contudo de explorar as sugestões ou
implicações políticas daquele sentimento. No sublime não se visa a
comunidade, mas a ruptura, o choque, o diferendo; não a comunica‑
ção e a satisfação universal, mas a agressão e a violentação das facul‑
dades do destinatário ou do espectador. No vanguardismo rompe­
‑se, pois, «aquela espécie de originário contrato social, ditado pela
própria humanidade» (gleichsam als... einem ursprünglichen Vertrage,
der durch die Menschheit selbst dictirt ist) que Kant concebia como fun‑
damento da comunidade estética e, mais do que isso, como funda‑
mento da própria comunidade humana enquanto comuni­dade de
comunicação, mas também enquanto comunidade insti­tui­dora e re‑
conhecedora do sentido, pois é por assim dizer na pres­suposição
desse contrato que «cada um espera e exige que se tenha em conside‑
ração a universal comunicação de cada qual» (erwartet und fordert ein
jeder die Rücksicht auf allgemeine Mittheilung von jedermann) 88.

  Ibidem, p. 154.
87

  Kritik der Urteilskraft, Ak V, 297, e todo o § 40 (Ak V, 293­‑296). Segundo


88

Lyotard, «la communauté sociale ne se reconnait pas dans les oeuvres, elle les
ignore, elle les rejette comme incompréhensibles» (L’Inhumain, p.  112); «L’art
d’avant­‑garde abandonne le rôle d’identification que l’oeuvre jouait précédem‑
ment par rapport à la communauté des destinataires. Même conçu comme il
était par Kant, à titre d’horizon ou de présomption de jure plutôt que de réalité
de facto, un sensus communis (dont du reste Kant ne parle pas à propos du subli‑
me, mais seulement du beau) ne parvient pas à se stabiliser devant des oeuvres
interrogatives. C’est à peine s’il se forme, et trop tard, quand, déposées dans
les musées, ces oeuvres sont censées appartenir à l’héritage de la communauté
et disponibles pour sa culture et son plaisir.» (Ibidem, p.  115.) Para uma des‑
construção da mitologia das vanguardas estéticas e das estéticas de vanguarda,
v. Luc Ferry, Homo aestheticus. La formation du gout à l’âge democratique, Grasset,
Paris, 1990.

45

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A fecundidade da categoria kantiana do sublime não se esgota,
porém, nos aproveitamentos estéticos ou políticos que dela faz Lyo‑
tard 89, nem nas leituras desconstrucionistas que da mesma fizera
Jac­ques Derrida, o qual, lendo a analítica kantiana do sublime em
confronto com a concepção hegeliana do Absoluto, nela reconhece
a claudicação de uma filosofia da representação, pois o que na expe‑
riência do sublime se expõe com toda a crueza é a experiência da
representação da irrepresentabilidade, a presença impossível da
presença, o desafio extremo da presentificação do irrepresentável 90.
De facto, tendo em conta o volume de interpretações que mereceu
nas duas últimas décadas, bem se pode dizer que o tópico do subli‑
me se revelou como o «lugar onde o potencial subversivo da crítica
kantiana foi maximizado» 91. Mas esse tópico kantiano encerra ou‑
tras facetas, talvez menos subversivas, embora não menos fecun‑
das. Já Rudolf Otto (Das Heilige, 1919) tinha surpreendido nele a
capacidade de compreender a experiência humana fundamental do
sagrado, como experiência antinómica de atracção e repulsão (fasci‑
nans ac tremendum), colocando­‑a na base da sua fenomenologia da
consciência religiosa. De resto, o alcance da contraposição kantiana
entre o belo e o sublime está longe de ter sido explorado em todas
as suas virtua­lidades e, antes de mais, no que respeita ao reconheci‑
mento do seu lugar e função na própria filosofia kantiana 92. Longe
de ser uma excrescência da Estética kantiana, como alguns chega‑
ram a aventar, ela tem uma função sistemática central, que trans‑
cende o próprio plano estético, e talvez por isso Kant tenha
­demorado até à última hora a decisão relativamente à inserção

  Para uma crítica da interpretação lyotardiana do sublime kantiano,


89

v. Paul Crowther, «The Kantian Sublime, the Avant Garde and the Postmodern:
A Critique of Lyotard», New Formations, 7 (Spring, 1989), pp.  67­‑75.
90
  Jacques Derrida, La vérité en peinture, Flammarion, Paris, 1978. V. Simon
Malpas, «Framing Infinities: Kantian Aesthetics After Derrida», in Andrea Berg
e Rachel Jones (eds.), The Matter of Critique. Readings in Kant’s Philosophy, Clina‑
men Press, Manchester, 2000, pp. 147­‑162.
91
  Andrea Rehberg e Rachel Jones, «Editor’s Introduction» a The Matter of
Critique. Readings in Kant’s Philosophy, p. xix.
92
  Paul Crowther, The Kantian Sublime. From Morality to Art, Oxford, 1989;
Donald Crawford, «The Place of the Sublime in Kant’s Aesthetic Theory», in
Richard Kennington (ed.), The Philosophy of Immanuel Kant, The Catholic Uni‑
versity of America Press, Washington, D. C., 1985, pp. 161­‑183.

46

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­ essa secção na Crítica do Juízo Estético 93. Escrevi-o já noutro lugar e
d
repito­‑o: à experiência do sublime ou do abismo — o abismo é a
metáfora kantiana para o sublime — vão dar e de lá emergem todos
os caminhos da filosofia kantiana, seja no domínio teorético, seja no
domínio prático, seja no domínio estético, seja no domínio metafísi‑
co 94. Só posso, por isso, concordar com Marc Richir quando este vê
na concepção kantiana do sublime uma fenomenologia da expe­
riência abissal — da finitude — que institui o sentido mais profun‑
do da humanidade: «Nunca, sem dúvida, tanto como em Kant, a
fundação da filosofia — e mais longe: a fundação pura e simples‑
mente — sobre o abismo atingiu uma tal necessidade e um tal vi‑
gor... A extraordinária novidade do pensamento kantiano reside
nisto, a saber, que doravante, na problemática do sublime é descrita
a experiência concreta do abismo e posto em evidência o seu papel
fundador... É preciso, com efeito, compreender o pensamento kan‑
tiano do sublime desenvolvido na Crítica da Faculdade de Julgar, ao
mesmo tempo como uma verdadeira fenomenologia da experiência
do abismo e como o ponto mesmo onde se joga o enigma da insti‑
tuição simbólica da humanidade... A prova kantiana do sublime é a
prova mesma da minha finitude.» 95
Há muito que reflectir ainda sobre a relação ou cumplicidade
entre a vivência do sublime e a vivência moral 96, entre o sentimento
do sublime e a experiência metafísica e até a experiência religiosa,
entre o sentimento do sublime e a experiência cosmológica, entre o
sublime e o caos, o sublime e a consciência do trágico e da condição

  Por certo, há que ter em conta a tardia inclusão desta secção na obra e
93

mesmo as declarações de Kant que parecem minimizar a sua importância no


conjunto, ao dizer que «o conceito do sublime da natureza de longe não é tão
importante nem tão rico de consequências como o do belo da natureza; que ele
em geral não indica nenhuma conformidade a fins na própria natureza […] e
que a teoria do sublime constitui um mero apêndice [blossen Anhang] ao juízo
estético a respeito da conformidade a fins da natureza» (Ak V, 246).
94
  V. Metáforas da Razão, pp. 288­‑289.
95
  Marc Richir, «L’expérience du sublime», Magazine Littéraire, n.o  309,
1993, pp. 35­‑37.
96
  V. os meus ensaios: «Sentimento do sublime e vivência moral», in ­A Ra‑
zão Sensível. Estudos Kantianos, Colibri, Lisboa, 1994. pp. 85­‑98; «A teologia de
Job, segundo Kant: ou a experiência ético­‑religiosa entre o discurso teodiceico e
a estética do sublime», in Convergências & Afinidades. Homenagem a António Braz
Teixeira, CEFi / CFUL, Lisboa, 2008, pp. 919­‑945 (neste volume, pp. 267 e segs.).

47

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finita do homem 97. Começa actualmente a reconhecer­‑se que é a po‑
laridade kantiana belo­‑sublime que surge metamorfoseada na con‑
traposição nietzscheana entre o apolíneo e o dionisíaco. Assim o
mostrou Nuno Nabais, num seu ensaio: «o diferendo acerca do sig‑
nificado da estética kantiana para a compreensão da condição da
arte e da crítica estética na cultura contemporânea, diferendo esse
que […] se manifesta de forma mais visível na radicalização da dife‑
rença entre uma estética do belo e uma estética do sublime, tem um dos
seus momentos de origem precisamente em O Nascimento da Tragé‑
dia de Nietzsche — um texto que realiza como que a passagem ao
limite das consequências da leitura schilleriana da Crítica da Faculda‑
de do Juízo. […] A teoria estética de O Nascimento da Tragédia é quase
incompreensível fora da tradição da teoria do sublime. É que, se‑
gundo penso, o verdadeiro modelo da polaridade fundamental dio‑
nisíaco/apolíneo é a diferença sublime/belo tal como foi formulada
por Kant, posteriormente desenvolvida por Schiller e sobretudo
transformada por Schopenhauer em experiência paradigmática de
acesso à visão pessimista da existência.» 98
Deste modo se recuperaria uma outra tradição — até hoje quase
sempre silenciada — de presença profunda de Kant no pensamento
do século  xix e que chega — quem o diria? — até ao pensamento
«pós­‑moderno», ainda que os «pós-modernos», apesar de se quere‑
rem muito nietzscheanos, eles próprios a tenham ignorado.

3.9.  A segunda parte da Crítica do Juízo — Crítica do Juízo Teleoló‑


gico — também tem sido objecto de um renovado interesse e sob vá‑
rios aspectos. Não só se tem recuperado nela a ideia kantiana de teleo­
logia 99 pelo que ela significa do ponto de vista histórico­‑filosófico
como superação do mecanicismo moderno, mas também a fecundi‑
dade que revela para se compreender a peculiar racionalidade do
mundo orgânico e da biologia 100. Mais recentemente ela tem sido lida

  Haveria que reler, a partir desta perspectiva, a obra juvenil de Kant,


97

Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels, 1755. V. o meu ensaio «Ana‑
logia e conjectura no pensamento cosmológico do jovem Kant» in Kant e­‑prints,
publicação da Sociedade Kant Brasileira, secção de Campinas, série 2, v. 4, n.o 1,
Jan.­‑Jun. 2009, pp. 131­‑163.
98
  Nuno Nabais, ob. cit., sobretudo pp. 25­‑35.
99
  V. Klaus Düsing, Die Teleologie in Kants Weltbegriff, Bouvier, Bonn, 1968.
100
  Alexis Philonenko, «Kant et la philosophie biologique», idem, Études kan‑
tiennes, Vrin, Paris, 1982, pp. 118­‑134; Peter McLaughlin, Kant’s Critique of Teleology

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em articulação com a Crítica do Juízo Estético, nomeadamente nas sec‑
ções que esta dedica à análise da experiência do belo natural e do
sublime na natureza, pelas promissoras perspectivas que daí se abrem
para uma nova filosofia da natureza 101. Para esta nova filosofia da
natureza, bem como para perceber a última forma da filosofia kantia‑
na e o «mais elevado ponto de vista da filosofia transcendental» mui‑
to poderá contribuir a exploração do Opus postumum, para o que se
torna urgente, antes de mais, uma nova edição e fixação do texto das
várias centenas de páginas escritas por Kant nos últimos anos e meses
da sua vida. Desde há muito que a obra suscita o interesse dos herme‑
neutas, preocupados não só em captar a derradeira forma do pensa‑
mento de Kant e o modo como nele se reflectiam já as inflexões do
pensamento dos filósofos idealistas, mas também as conexões exis‑
tentes entre essas reflexões tardias e o seu pensamento anterior, no‑
meadamente as conexões com a obra de 1786, Fundamentos Metafísicos
da Ciência da Natureza e com a Crítica do Juízo 102.

in Biological Explanation: Antinomy and Teleology, The Edwin Mellon Press, Lewis‑
ton, N. Y., 1990; Clark Zumbach, The Transcendental Science, Kant’s Conception of
Biological Methodology, Martinus Nijhoff, The Hague / Boston / Lancaster, 1984;
António Marques, Organismo e Sistema em Kant, Presença, Lisboa, 1987; Leonel
Ribeiro dos Santos, «A formação do pensamento biológico de Kant», in Ubirajara
R. de Azevedo Marques (org.), Kant e a Biologia, Barcarolla, São Paulo, 2012.
101
  Gerahrd Schneider, ob. cit.; Rosario Assunto, «Kant, l’estetica della natura
e la difesa dell’ambiente», Il cannochiale (Roma), 1987, 1­‑2, pp. 73­‑89; Martin Seel,
«Kants Ethik der ästhetischen Natur», in R. Bubner, B. Gladigow, W. Hang (eds.),
Die Trennung von Natur und Geist. Zur Auflösung der Einheit der Wissenschaften in
der Neuzeit, W. Fink, München, 1990, pp.  181­‑208; Jane Kneller, «Beauty, Auto­
nomy and Respect for Nature», in H. Parret (ed.), Kants Ästhetik, Kant’s Aesthet‑
ics, L’esthétique de Kant, W. de Gruyter, Berlin / New York, 1998, pp.  403­‑414;
Malcolm Budd, «Delight in the natural World: Kant on the Aesthetic Apprecia‑
tion of Nature. Part I: Natural Beauty», British Journal of ­Aesthetics 38 (1998), 1­‑18;
idem, «Delight in the Natural World: Kant on the Aesthetic ­Appreciation of Na‑
ture. Part II: Natural Beauty and Morality», British Journal of Aesthetics 38 (1998),
117­‑126; idem, «Delight in the Natural World: Kant on the Aesthetic Appreciation
of Nature. Part III: The Sublime in Nature», British Journal of Aesthetics 38 (1998),
233­‑250; Birgit Recki, «Ideal der Schönheit und Primat der Natur», Proceedings
of the Eight International Kant Congress, Memphis 1995, Milwaukee, 1995, vol. 2,
pp. 473­‑480; Leonel Ribeiro dos Santos, «Kant e o regresso à natureza como para‑
digma estético», in Cristina Beckert (coord.), Natureza e Ambiente. Representações
na Cultura Portuguesa, CFUL, Lisboa, 2001, pp. 169­‑193, neste vol., pp. 349 e segs.
102
  A história da hermenêutica desta peça do corpus kantiano conta-se por
uma boa meia dúzia de obras fundamentais: Erich Adickes, Kants Opus postu‑

49

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3.10.  Em suma: a hermenêutica kantiana actual, mesmo quan‑
do aborda os problemas metodológicos e gnoseológicos da primeira
Crítica, tem em vista (mesmo se não os trata expressamente) o con‑
junto das questões filosóficas fundamentais, que o próprio Kant dei‑
xou formuladas numa das últimas secções daquela obra (KrV B 833),
mas que infelizmente muitos intérpretes não consideraram signifi‑
cativas para a interpretação do alcance filosófico da obra. Para além
dos problemas do conhecimento científico ou metafísico, estão os
problemas práticos (ético­‑políticos) e estes encontram o seu sentido
num horizonte da finitude esperançosa do homem como ser aberto
ao dom e à graça da natureza e da vida e, quem sabe, até ao dom e
à graça do Ser, tenha ele o nome ou a natureza que tiver. Mas, no
fim, é o homem que fica como questão para si mesmo. Sem cair no
«sono antropológico», antes o denunciando, como bem o notou Mi‑
chel Foucault 103, a filosofia kantiana é apesar de tudo a guardiã dos
«direitos da humanidade» e da «dignidade do homem», único ser
que leva consigo a questão do sentido do mundo e de si próprio e
também o único que é capaz de, pela sua acção moral esclarecida e
responsável, dar sentido e conferir dignidade à natureza dedicando­
‑lhe mesmo uma espécie de respeito, o que sobretudo acontece se
aquela acção moral for temperada pela experiência estética da bele‑
za e sublimidade da natureza. E, embora a ocupação com a filosofia
kantiana continue a ser fundamentalmente uma tarefa de universi‑
tários, professores e investigadores, pode dizer-se que mesmo estes
são actualmente orientados muito mais por um conceito mundano
(Weltbegriff) do que por um mero «conceito escolar» (Schulbegriff) de

mum dargestellt und beurteilt, Reuter & Reichard, Berlin, 1920; Gerhard Lehmann,
Kants Nachlasswerk und die Kritik der Urteilskraft (1939), in idem, Beiträge zur Ge‑
schichte und Interpretation der Philosophie Kants, W. de Gruyter, Berlin, 1968; Vit‑
torio Mathieu, La filosofia trascendentale e l’Opus postumum di Kant, Edizioni de
Filosofia, Torino, 1958; idem, Kants Opus postumum, V. Klostermann, Frankfurt
a. M., 1989; Burkhard Tuschling, Metaphysische und transzendentale Dynamik in
Kants Opus postumum, W. de Gruyter, Berlin, 1976; Martin Carrier (ed.), Über‑
gang: Untersuchungen zum Spätwerk Immanuel Kants, Forum für Philosophie Bad
Homburg, V. Klostermann, Frankfurt a. M., 1991; Michael Friedman, Kant and
the Exact Sciences, Harvard University Press, Cambridge, Mass., 1992; Eckart
Forster, Kant’s Transcendental Deductions: The Three Critiques and the Opus pos‑
tumum, Stanford University Press, Stanford, 1989; idem, Kant’s Final Synthesis.
An Essay on the Opus postumum, Harvard University Press, Cambridge, Mass.
/ London, 2000.
103
  Les mots et les choses, Gallimard, Paris, 1966, pp. 351 e segs.

50

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filosofia, para usar uma bem conhecida e muito pertinente distinção
elaborada pelo próprio Kant. É neste contexto que se inscrevem os
inúmeros estudos que versam a antropologia kantiana 104, a filosofia
kantiana da história e da cultura 105, a filosofia kantiana da religião, a
filosofia kantiana da educação 106, áreas que deixaram de ser consi‑
deradas como meros apêndices ou domínios menores no conjunto
da filosofia crítica 107. Mais do que procurar hoje a «pureza da ra‑
zão», os hermeneutas do Kantismo procuram antes ver como aquilo
que Kant dizia sob o nome de razão pode ainda dar um sentido às
realidades sociais, históricas e institucionais em que decorre a vida
efectiva dos humanos 108.

104
  Frederik P. Van de Pitte, Kant as Philosophical Anthropologist, M. Nijhoff,
The Hague, 1971; Pasquale Salvucci, L’Uomo di Kant, Argalìa Editore, Urbino,
1975; Frank Nobbe, Kants Frage nach dem Menschen. Die Kritik der ästhetischen Urteil‑
skraft als transzendentale Anthropologie, Lang, Frankfurt a. M. / Berlin / Bern / New
York / Paris / Wien, 1995. Uma ampla e contrastada abordagem da Antropolo‑
gia Kantiana pode ver-se em: Leonel Ribeiro dos Santos, Ubirajara R. de Azeve‑
do Marques, G. Piaia, M. Sgarbi, R. Pozzo (coord.), Was ist der Mensch? Que é o
Homem? — Antropologia, Estética e Teleologia em Kant, CFUL, Lisboa, 2010.
105
  Yirmiahu Yovel, Kant and the Philosophy of History, Princeton Univer‑
sity Press, Princeton, 1980; A. Philonenko, La théorie kantienne de l’histoire, Paris,
Vrin, 1986; Pauline Kleingeld, Fortschritt und Vernunft: Zur Geschichtsphilosophie
Kants, Königshausen & Neumann, Würzburg, 1995; G. Raulet, Kant. Histoire et
citoyenneté, Paris, PUF, 1996; Pierre­‑Etienne Druet, La Philosophie de l’Histoire
chez Kant, Paris, L’Harmattan, 2002.
106
  Klaus Nielandt, Die Relevanz der Kantischen Ethik für das theoretische Selbst­
verständnis einer emanzipatorischen Pädagogik, Peter Lang, Frankfurt a. M., 1997.
107
  A filosofia kantiana da religião tem sido objecto de uma intensa e fe‑
cunda reapreciação, quase como se se tratasse de uma quarta Crítica, que res‑
pondesse à questão «que me é permitido esperar»: Curtis H. Peters, Kant’s Phi‑
losophy of Hope, Peter Lang, New York, 1993; Sidney Axinn, The Logic of Hope:
Extensions of Kant’s View of Religion, Rodopi, Amsterdam / Atlanta, 1994; Gene
Fendt, For What May I Hope? Thinking with Kant and Kierkegaard, Peter Lang, New
York, 1990; Philip J. Rossi / Michael Wreen (eds.), Kant’s Philosophy of Religion
Reconsidered, Indiana University Press, Bloomington, 1991; M. J. Carmo Ferreira
e L. Ribeiro dos Santos (coords.), Religião, História e Razão da «Aufklärung» ao
Romantismo, Departamento de Filosofia da Universidade de Lisboa / Edições
Colibri, 1995 (actas do colóquio sobre A Religião nos Limites da Simples Razão,
realizado em Novembro de 1993).
108
  Um expressivo exemplo deste tipo de leitura complexa e saturada, que
cruza com toda a agilidade e fecundidade o transcendental com o empírico,
o especulativo com o prático, o prático com o pragmático, o puro e o impuro
— pois é assim cruzados que na vida efectiva eles realmente se dão — é a obra

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III. A PRESENÇA DE KANT NO PENSAMENTO
CONTEMPORÂNEO

Consciente de que não conseguirei evitar de todo as redundân‑


cias, passo ao último ponto desta nota, tentando identificar muito
brevemente alguns traços mais evidentes da presença de Kant no
pensamento contemporâneo. Será que a actualidade filosófica se
deixa de facto declinar como um novo «regresso a Kant»? Poderá
falar­‑se de um revivalismo kantiano ou de um novo tipo de Neokan‑
tismo que medra como planta estranha nesta época que alguns con‑
sideram como tendo consumado já o esgotamento do ciclo filosófico
da Modernidade? 109 Que cumplicidade mantém a filosofia kantiana
com a Modernidade e com o processo que a esta tem sido instaura‑
do nos últimos decénios? 110
A presença de Kant no pensamento actual é omnipresente mas
difusa, muitas vezes sem apoio textual explícito ou mesmo com ma‑
nifesto desconhecimento textual e quase sempre com absoluta igno‑
rância do estado das questões na hermenêutica kantiana e na respec‑
tiva literatura 111. Este aspecto constitui uma diferença muito clara

de Robert B. Louden, Kant’s Impure Ethics. From Rational Beings to Human Beings,
Oxford University Press, New York / Oxford, 2000.
109
  Estas perguntas não são meramente retóricas. Numa obra recente sobre
o pensamento jurídico e político actual (Dire la norme. Droit, politique et énoncia‑
tion, Bruylant, 1996), J. Lenoble e A. Berten não hesitam em intitular o segundo
capítulo desta forma: «Modernité et retour à Kant», logo especificado em três
pontos: «1. Le retour à Kant dans la philosophie française; 2. Le retour à Kant
dans la philosophie allemande; 3. Le retour à Kant dans la philosophie anglo­
‑saxone du droit.» Também Renaut e Ferry usam a expressão «D’ un retour à
Kant» na sua obra Système et critique. Essais sur la critique de la raison dans la
philosophie contemporaine, Ousia, Bruxelles, 1984, pp. 156 e segs.
110
  Esta última questão é particularmente decisiva em Habermas e sobre‑
tudo na interpretações de Luc Ferry, para quem Kant é «o pensador da moder‑
nidade» (v. «Kant, penseur de la modernité», Magazine Littéraire, n.o 309, Abril
de 1993, pp. 18­‑22.
111
  Referindo-se ao Kantismo característico de muitos pensadores actuais,
Alain Renaut diz tratar-se de um «kantisme élargi» ou «assoupli», que corre
o risco de se tornar um lugar comum ganhando em extensão o que perde em
compreensão e cujo efeito pode muito bem ser a promoção de uma banalização
da filosofia de Kant. A este processo de banalização contrapõe o pensador fran‑
cês uma reconstrução do Kantismo na sua dureza e no vigor doutrinal dos seus
conteúdos (Kant aujourd’hui, pp. 19­‑21).

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entre certos Neokantismos actuais e o Neokantismo clássico, o qual
pretendia antes de mais apreender a coerência do método transcen‑
dental e a unidade da filosofia kantiana mediante uma cuidadosa
exegese textual. Os neokantismos actuais dão­‑nos quase sempre um
Kant aos pedaços, quando não mesmo um Kant de conveniência.
Não há neles o intuito de se chegar a uma interpretação global e fiel
da filosofia kantiana. Inspiram­‑se em Kant ou em certos tópicos da
sua filosofia em que descobrem especial pertinência, tiram partido
de aspectos parcelares ou de certos motivos, que se revelam sugesti‑
vos para as problematizações filosóficas actuais, mas quase sempre à
custa de serem arrancados ao seu contexto e intenção ­originais.
Hoje também já não há kantianos ou neo­kantianos professos e
de estrita observância. Pode, todavia, dizer-se que na actualidade se
processa um efectivo, embora disseminado e difuso, movimento de
«retorno a Kant», o qual se manifesta em múltiplas direcções e com
diversos propósitos e orientações. Em todo o caso, sempre menos
com o intuito de seguir com fidelidade discipular o filósofo e o seu
sistema, do que com o objectivo de colher a inspiração que brota da
sua obra perpassada de tensões, e mais dos seus questionamentos
do que das suas soluções 112.
Na verdade, este novo tipo de tardios e livres discípulos do pro‑
fessor de Königsberg encontra a legitimação não só na atitude her‑
menêutica que o próprio Kant praticou em relação a muitos dos
pensadores que o precederam (com destaque para Platão e Leibniz),
na pretensão de os «compreender melhor do que eles se compreen‑
deram a si próprios» 113, como ainda no modo como o filósofo crítico
concebia a relação que deve existir entre os espíritos criadores, con‑
cepção que deixou expressa num dos parágrafos da sua Crítica do

112
  Seja exemplo desta atitude o pensador francês Luc Ferry. Depois de con‑
fessar que o seu projecto filosófico próprio se constituiu em 1972 por ocasião da
elaboração de um ensaio sobre o sublime na Crítica do Juízo e sobre as três grandes
interpretações de Kant (hegeliana, neokantiana e heideggeriana), Ferry, que pre‑
fere falar de uma «actualidade de Kant» em vez de um «regresso a Kant» no pen‑
samento actual, declara: «Eu não posso negar uma relação forte com Kant, mas
esta relação não é a relação, algo ridícula, de discípulo de um filósofo clássico; ela
está antes ligada a uma certa concepção das tarefas da filosofia contemporânea.»
(Magazine Littéraire, n.o 309, p. 18.) Outro tanto se poderia dizer do Kantismo hete‑
rodoxo de um John Rawls ou do aproveitamento que um Apel ou um Habermas
fazem dos princípios de universalismo e de auto­‑reflexão da ética kantiana para
as suas éticas da comunicação e do discurso.
113
  Kritik der reinen Vernunft, B 370.

53

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Juízo (§ 32): «Seguimento [Nachfolge], que se refere a um precedente
[Vorgang], e não imitação [Nachahmung], é a expressão correcta para
toda a influência que os produtos de um criador exemplar podem
ter sobre outros; o que apenas significa: criar a partir das mesmas
fontes de onde ele mesmo criou e aprender do seu antecessor ape‑
nas o modo de nisso se conduzir.» 114
Há, pois, lugar para o confronto crítico, para as «reconstruções
argumentativas» (como propõe Dieter Heinrich), para as «violên‑
cias» hermenêuticas (no sentido da proposta heideggeriana), para
todas as possíveis «transformações» (Karl­‑Otto Apel), para as «des‑
construções» (Jacques Derrida, Gilles Deleuze), para as ­redescobertas
fecundas nas zonas­‑fronteira e nos conceitos­‑limite ou nos aspectos
que os comentadores canónicos desprezaram por os considerarem
marginais 115, para a superação, ou simplesmente para a parasitagem
e o aproveitamento oportunístico de peças avulsas ou de elementos
isolados dos seus originais e naturais contextos. Segundo alguns, a
fecundidade destes elementos revela-se tanto melhor quanto justa‑
mente eles são arrancados ao seu contexto de origem. Assim expres‑
samente o declara John Rawls: «Para desenvolver uma concepção
kantiana viável da justiça a força e conteúdo da doutrina de Kant
tem de ser desvinculada das suas bases no idealismo transcendental
e dada numa interpretação processual mediante a construção da po‑
sição original.» 116 Mas outro tanto poderia dizê­‑lo Lyotard, a propó‑

  Kritik der Urteilskraft, Ak V, 283.


114

  Tal é a proposta, nomeadamente, de um Jacob Rogozinski (Kanten,


115

Esquisses kantiennes, Éditions Kimé, Paris, 1996), que se enfrenta com alguns
nódulos incómodos da filosofia kantiana (a opacidade do Eu, o mal radical, a
violência do sublime, a monstruosidade do Ungeheure) e também de um Oscar
Meo (Kantiana minora vel rariora, Il Melangolo, Genova, 2000) que percorre algu‑
mas das zonas de sombra do pensamento de Kant, esquecidas pelos intérpretes
(por exemplo os conceitos kantianos de «verdade», de «verdade transcenden‑
tal», de «lógica da verdade», de «ilusão») atento às centelhas de luz que delas
podem resultar para iluminar outros aspectos do pensamento. Na mesma linha
se pode situar o conjunto de ensaios editados por Andrea Rehberg e Rachel Jo‑
nes, The Matter of Critique. Readings in Kant’s Philosophy (Clinamen Press, Man‑
chester, 2000), como uma radicalização imanente da ideia crítica dirigida aos
próprios textos kantianos (Kant’s texts are here read against themselves and hence
are radicalised from within, p. xiv).
116
  John Rawls, «The Basic Structure as Subject», American Philosophical
Quarterly, 14, 1977, p. 165. Outros ensaios de Rawls onde o próprio mede a sua
relação com Kant: «Kantian Constructivism in Moral Theory» (Three Lectures

54

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sito da sua interpretação do sublime kantiano, também ele descon‑
textualizado do sistema orgânico da estética kantiana e da economia
da Crítica do Juízo e purificado das conotações éticas que tinha na
filosofia kantiana para poder servir melhor os propósitos e as neces‑
sidades duma estética da pós­‑modernidade.
Para fazer o reconhecimento deste regresso a Kant na filosofia
contemporânea poderíamos seguir várias vias: a dos problemas filo‑
sóficos (moral, política, direito 117, estética, epistemologia), a dos prin‑
cipais países onde há uma significativa produção filosófica que se
­reclama directa ou indirectamente da inspiração kantiana 118, a dos

given at Columbia University in April 1980, «John Dewey Lectures»), in The


Journal of Philosophy, vol. lxxvii, n.o 9, sept. 1980, pp. 515­‑573; «A Kantian Con‑
ception of Equality», in Cambridge Review, Fevereiro de 1975. Sobre Rawls:
M. Canivet, «Justice et bonheur chez Rawls et chez Kant», in J. Ladrière e Ph.
Van Parijs (ed.), Fondements d’une théorie de la justice, Essais critiques sur la phi‑
losophie politique de John Rawls, Louvain­‑la­‑Neuve, Peeters / Paris, Vrin, 1984,
pp.  153­‑182; O. Höffe, «Dans quelle mesure la théorie de John Rawls est­‑elle
kantienne?», in Individu et Justice sociale, autour de John Rawls, ibidem, pp. 54­
‑72; O. A. Johnson, «The Kantian Interpretation», in Ethics, 85 (1974), pp. 58­‑66.
117
  Por exemplo, Jan Ward, Kantianism, Post­‑modernism and Critical Legal
Thought, Kluwer, 1997. O autor sugere a possibilidade de acomodar as três mais
influentes teorias contemporâneas do direito — o Kantismo, o Pós­‑Modernismo
e o pensamento jurídico crítico — reconduzindo­‑as ao seu fundamento comum,
que se encontraria na obra de Kant. Ward apresenta uma história intelectual do
pensamento jurídico crítico, que começa em Kant e passa por filósofos e teóri‑
cos do direito tão diferentes como Heidegger, Arendt, Foucault e Derrida, Rorty
e Rawls, Unger e Dworkin. Cada um desses filósofos se inscreve no interior
de uma tradição intelectual comum e, concentrando­‑se na comunidade desta
tradição, a teoria jurídica contemporânea poderia melhor apreciar o potencial
reconstrutivo do projecto do pensamento crítico jurídico.
118
  Foi a perspectiva seguida por J. Lenoble e A. Berten, na obra já citada
acima. Assim, o recente Neokantismo francês, tornado possível pela mediação da
interpretação que da filosofia kantiana fez Alexis Philonenko desde a década de
60 partindo da primeira filosofia de Fichte como filosofia da liberdade (La liberté
humaine dans la pensée de Fichte, Vrin, Paris, 1966; Théorie et Praxis dans la Pensée mo‑
rale et politique de Kant et de Fichte en 1793, Vrin, Paris, 1968; L’Oeuvre de Kant, Vrin,
Paris, t. i, 1969, t. ii, 1972; Études kantiennes, Vrin, Paris, 1982) e representado mais
recentemente por Luc Ferry [Philosophie Politique, t. i: La Nouvelle Querelle des An‑
ciens et des Modernes; t. ii: Le Système des Philosophies de l’Histoire, PUF, Paris, 1984;
«Le criticisme est­‑il un humanisme? Reflexion sur l’interprétation de la Troisième
Critique», Carnet du Centre de Philosophie Du Droit, Université Catholique de Lou‑
vain, Louvain­‑la­‑Neuve, 1989; «Sublime et système chez Kant. Essai d’interpré‑
tation du sublime mathématique», Les études philosophiques, 3 (1975), pp. 313­‑326]

55

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principais movimentos filosóficos, ou, ainda, a dos principais prota‑
gonistas da história filosófica mais recente. No desenvolvimento do
ponto anterior, tive ocasião de citar alguns destes protagonistas, no‑
meadamente Hannah Arendt e Jean­‑François Lyotard. Mas podere‑
mos acrescentar muitos outros: Michel Foucault e a sua ideia de uma
ontologia do presente 119; John Rawls e a inspiração kantiana da sua
teoria da justiça como imparcialidade; Karl­‑Otto Apel e Jürgen
­Habermas 120 e as respectivas «transformações» da filosofia kantiana

e por Alain Renaut (Philosopphie et Droit dans la pensée de Fichte, PUF, Paris, 1985;
e também a «Introduction» à sua recente tradução da Critique de la Faculté de Ju‑
ger). Caracteriza-se este recente Neokantismo francês: 1) pela importância dada
à interpretação da terceira Crítica como via para se alcançar o significado mais
profundo de uma teoria kantiana da razão; 2) pelo reconhecimento do sentido da
finitude radical do homem, para pensar a qual a filosofia de Kant se revela muito
mais contemporânea do que a de Marx ou a de Heidegger, e 3) pelo reconheci‑
mento do alcance da filosofia de Kant no plano do direito e do político.
119
  V. Mariapaola Fimiani, Foucault et Kant, Critique Clinique Esthétique,
L’Harmattan, Paris/Montréal, 1998 (ed. original italiana: Edizioni Città del
Sole, Napoli, 1997); idem, «Foucault: Rewriting Kant», in Philosophical Inquiry
(Atenas), n.o  1, 2000; Diogo Sardinha, «Actualité de Kant, Actualité de Fou‑
cault», in Kant: Posteridade e Actualidade, pp. 725­‑734. Ainda está por fazer-se o
balanço da inspiração kantiana do programa foucaultiano de uma «arqueologia
do saber». Mas não há dúvida quanto à revisitação frequente da obra de Kant
por parte de Foucault, a começar pela tradução da Antropologia de um Ponto de
Vista Pragmático, para a qual escreveu uma longa introdução entretanto publi‑
cada (Vrin, Paris, 2008) juntamente com a tradução foucaultiana da obra de
Kant (na origem a tradução, introdução e notas à obra de Kant constituíram
a tese complementar do filósofo da «arqueologia do saber») até às reflexões
em torno do ensaio de Kant sobre a Aufklärung, passando por As Palavras e as
Coisas, obra onde Kant ocupa lugar privilegiado. Segundo Foucault, o ensaio
kantiano «Resposta à questão: que é a Aufklärung?» inaugura uma nova forma
de prática da filosofia como meditação da contemporaneidade, inaugura um
ethos do filosofar segundo o qual a crítica do que somos é ao mesmo tempo a
análise histórica dos limites que nos são postos e a prova da sua transposição
possível. A estratégia foucaultiana da pesquisa arqueológica e genealógica das
formas do saber e do poder, da racionalidade e dos seus limites (a loucura, a
doença, a anormalidade, a sexualidade, a repressão e a violência) poderiam
assim ser lidas como constituindo ainda um prosseguimento da investigação
transcendental que Kant inaugurou, como uma desconstrução dos pressupos‑
tos com que os humanos atribuem sentido às realidades e como em vista disso
se organizam as constelações de representações que envolvem as suas vidas.
120
  Stale R. S. Finke, «Habermas and Kant. Judgement and Communica‑
tive Experience», in Philosophy and Social Criticism, 26 (2000), pp. 21­‑45.

56

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no sentido de uma pragmática transcendental da linguagem e da co‑
municação; Paul Ricoeur, Hans­‑Georg Gadamer e Hans Blumenberg
e a inspiração kantiana da contemporânea racionalidade hermenêuti‑
ca 121. Seguir cada uma destas pistas obrigaria a um estudo autónomo
que não cabe na economia desta nota. Se adoptássemos como fio con‑
dutor os problemas filosóficos relevantes na actualidade, não demo‑
raríamos muito a reconhecer que não há um sequer onde Kant não
seja convocado como interlocutor privilegiado, trate­‑se de questões
epistemológico­‑metafísicas, éticas, estéticas ou político­‑jurídicas. Aci‑
ma deixámos indicado que algumas das mais significativas recupera‑
ções recentes da filosofia kantiana se relacionam com o que se poderia
designar por um «retorno do ético» no pensamento actual 122. Não há,

  Sobre a presença de Kant na contemporânea filosofia hermenêutica,


121

v. Hans­‑Georg Gadamer, «Kant und die philosophische Hermeneutik», in Kleine


Schriften, IV, Tübingen, 1977, pp. 48­‑53 (mas atenda­‑se também a toda a primeira
parte de Verdade e Método, onde se põe de manifesto o alcance da abordagem
kantiana das questões estéticas para a razão hermenêutica); Giuseppe Gianetto,
Kant e l’interpretazione, Napoli, 1978; Paul Ricoeur, «Une herméneutique philoso‑
phique de la religion: Kant», in Lectures, 3, Seuil, Paris, 1992, pp. 13­‑39. A teoria
ricoueriana do símbolo (e da metáfora) é largamente subsidiária duma leitura
dos §§ 49 e 59 da Crítica do Juízo em que Kant aborda a «ideia estética» e o símbolo
como aquela representação que não se esgotando num conceito determinado,
todavia «dá muito que pensar» (viel zu denken veranlasst). V. de P. Ricoeur, «Parole
et symbole», in Le Symbole, Revue des sciences religieuses, 49 (1975), 142­‑161. Outro
tanto se diga de Hans Blumenberg, que logo na introdução à sua programática
obra Paradigmen zu einer Metaphorologie (1960) remete expressamente para o cita‑
do § 59 da Crítica do Juízo e para a abordagem que Kant aí faz da metáfora sob
a designação de símbolo e após ter dito que quase todos os conceitos filosóficos
têm por origem um procedimento simbólico da faculdade de julgar reflexionante
(por transposição analógica de um campo semântico para outro), conclui dizendo
que essa questão ainda não tinha sido muito investigada, embora merecesse uma
mais profunda investigação (Dies Geschäft ist bis jetzt noch wenig auseinander geset‑
zt worden, so sehr es auch eine tiefere Untersuchung verdient). Contribuir para essa
mais profunda investigação acerca da condição metafórica do pensamento é o
que se propõe Blumenberg (Paradigmen zu einer Metaphorologie, 2.a ed., Suhrkamp,
Frankfurt a. M., 1998, pp. 11­‑12).
122
  Osvaldo Guariglia, «Kantismo», in Victoria Camps / O. Guariglia  /
F.  Sal­merón (eds.), Concepciones de la Ética, Editorial Trotta, Madrid, 1992,
pp.  53­‑72; Albrecht Wellmer, Ética y diálogo. Elementos del juicio moral en Kant
y en la ética del discurso, Barcelona, 1994; S. H. Furness, «Medical Ethics, Kant,
and Morality», in Raanan Gillon (ed.), Principles of Health Care Ethics, New York,
1994, pp.  159­‑171; K.­‑O. Apel, Diskurs und Verantwortung, Suhrkamp, Frankfurt
a. M.; J. Habermas, «Morality and Ethical Life: Does Hegel’s Critique of Kant

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por certo, consenso no diagnóstico deste fenómeno. Será que vivemos
definitivamente numa época do «pós­‑dever» e da «pós­‑consciência
moral», em que o princípio do individualismo hedonista parece levar
definitivamente de vencido o rigorismo kantiano da moral? 123 Ou
será ­ainda o «imperativo categórico» e a incontornável exigência da
consciência moral, tópicos tão caros a Kant, que se insinuam nas ac­
tuais formas de retorno das questões éticas, dê­‑se este retorno sob a
forma da invocação do «princípio da responsabilidade» (Hans Jonas),
da bioética, do respeito pelos direitos humanos, pelos direitos dos
animais e até pelos direitos da natureza, duma «teoria da justiça» (Ra‑
wls) ou da «ética do discurso» (Habermas e Apel)? E isso mesmo que
estas propostas, na sua superfície, se construam por vezes em explíci‑
ta referência crítica à proposta kantiana, como efectivamente acontece
com os citados autores 124.
Manifestações reconhecidamente maiores deste retorno ao ético
de inspiração kantiana no pensamento actual são sem dúvida o neo­
contratualismo ético­‑jurídico de John Rawls e a «ética do discurso»
de Karl­‑Otto Apel e Jürgen Habermas.
John Rawls expôs a sua teoria da justiça (mediante a qual pre‑
tendia superar o pragmatismo ético­‑jurídico dominante na cultura
americana do século  xx) como uma explícita reinterpretação da
doutrina moral de Kant — que desta retém sobretudo os aspectos e
pressupostos processuais (noção de autonomia, auto­‑construção da
lei por parte dos sujeitos morais, racionalidade, liberdade, igualda‑
de e equidade) e abandona os pressupostos que se poderiam desig‑
nar como metafísicos (os dualismos entre necessidade e contingên‑
cia, entre forma e conteúdo, entre razão e desejo, entre noumena e

Apply to Discoursive Ethics?», in R. Beiner / W. J. Booth (eds.), Kant & Political


Philosophy, New Haven  /  London, 1993, pp.  320­‑336; L. Ribeiro dos Santos,
«Actualidade da filosofia prática kantiana», in A Razão Sensível. Estudos Kantia‑
nos, Colibri, Lisboa, 1994. V. neste volume o capítulo «Actualidade e inactuali‑
dade da ética kantiana», pp. 67 e segs. 
123
  Gilles Lipovetsky, Le crépuscule du devoir. L’éthique indolore des nouveaux
temps démocratiques, Paris, Gallimard, 1992. V. de Cristina Beckert, «Do ‘crepús‑
culo do dever’ à ‘valsa das éticas’», Philosophica, n.os 17/18 (2001), pp. 5­‑19.
124
  Já em estudo anterior apontei este aspecto a propósito da «viragem
para a ética» que se observa no último Sartre (segundo o testemunho que se
pode considerar o seu «testamento filosófico», de Março de 1980): «Actualidade
da filosofia prática de Kant», in A Razão Sensível. Estudos Kantianos, especial‑
mente as pp. 167­‑169.

58

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phaenomena). Rawls está consciente dos limites do seu retorno a
Kant. Não é o Kant literal e ortodoxo, nem o sistema kantiano ou
sequer o contexto global das teorias kantianas que ele pretende re‑
cuperar, mas apenas aqueles aspectos da filosofia moral kantiana
que servem para uma reconstrução da doutrina da justiça que pos‑
sa constituir uma base racional e sustentável para repensar a lógica
das relações ético­‑político­‑jurídicas nas sociedades humanas. Por
certo, há evolução na atitude de Rawls em relação a Kant e à sua
filosofia, e alguns intérpretes e críticos dizem mesmo que ele se foi
afastando cada vez mais do Kantismo inicial. Vejamos como o pró‑
prio expôs o seu projecto e em que sentido se considera ele um
kantiano: «Descrevi como sendo kantiana a concepção de igualda‑
de contida nos princípios da justiça... Mas não quero dizer com isso
que esta concepção seja literalmente a concepção de Kant... Tudo
depende do que se considera como essencial. A perspectiva de Kant
está marcada por um certo número de dualismos, em particular os
dualismos entre o necessário e o contingente, a forma e o conteúdo,
a razão e o desejo, os noumena e os phaenomena. Abandonar estes
dualismos tal como ele os pensou é, para muitos, abandonar aquilo
que é distintivo desta teoria. Eu penso de modo diferente. A con‑
cepção moral de Kant tem uma estrutura característica que é mais
claramente discernível quando estes dualismos não são tomados
no sentido que ele lhes deu, mas reinterpretados e a sua força moral
reformulada dentro do objectivo de uma teoria empírica. Um dos
objectivos de Uma Teoria da Justiça era indicar como isso pode ser
feito.» 125
A teoria rawlsiana da justiça é apresentada como um neocon‑
tratualismo, na linha dos grandes contratualistas modernos (Locke,
Rousseau e Kant). Preside­‑lhe a ideia de que os princípios da justiça
podem ser concebidos como os princípios que seriam escolhidos
por sujeitos racionais e aceites por acordo de todos, sendo públicos
e iguais para todos. Fundamentais são as ideias de autonomia, de
igualdade, de liberdade e de decisão racional, de universalidade ou
acordo geral, todas elas de reconhecida inspiração kantiana: «No
essencial analisei o conteúdo do princípio da igual liberdade para
todos e o significado da prioridade dos direitos que ele define. Pa‑
rece agora adequado recordar que há uma interpretação kantiana

125
  John Rawls, «A Kantian Conception of Equality», Cambridge Review,
February 1975, p. 98.

59

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da concepção da justiça da qual este princípio deriva. Esta interpre­
tação é baseada na noção kantiana de autonomia... Por um lado, ele
[Kant] começa por invocar a ideia de que os princípios morais são
objecto de escolha racional. Eles definem a lei moral segundo a qual
os homens podem racionalmente querer orientar a sua conduta
numa comunidade ética. A filosofia moral torna­‑se um estudo da
concepção e do resultado de uma decisão racional adequadamente
definida. Esta ideia tem consequências imediatas. A partir do mo‑
mento em que pensamos nos princípios morais como sendo a legis‑
lação de um reino de objectivos morais, torna­‑se evidente que estes
princípios têm não só de ser aceitáveis para todos mas também de
ser públicos. Por último, Kant supõe que esta legislação moral deve
ser objecto de um acordo obtido em condições em que os homens
participam como sujeitos morais livres e iguais... Kant defende, em
minha opinião, que uma pessoa age de modo autónomo quando os
princípios que regem a sua acção são por ele escolhidos como a
melhor expressão possível da sua natureza enquanto ser racional
livre e igual. […] Os princípios da justiça constituem também impe‑
rativos categóricos no sentido empregue por Kant. Por imperativo
categórico Kant entende um princípio de conduta que se aplica a
um sujeito em virtude da sua natureza como ser racional livre e
igual.» 126
Outros conceitos kantianos presentes na teoria rawlsiana são o
de pessoa e o de sociedade bem ordenada, que traduz o conceito
kantiano de «reino dos fins» 127. A ideia de pessoa comporta a de li‑
berdade, de racionalidade e de responsabilidade. Mas as decisões
da pessoa são tomadas num espaço pluralmente partilhado, numa
comunidade ética, em que cada membro é considerado como legis‑
lador num reino de fins, onde o consenso e a universalidade, mais
do que pressuposta, tem de ser construída pelo esforço racional des‑
ses legisladores. Este aspecto levou Rawls a sublinhar, em ensaios
posteriores, o carácter construtivista da concepção kantiana 128.

  Uma Teoria da Justiça (1971), Presença, Lisboa, 1993, p. 203.


126

  «A Kantian Conception of Equality», 1975, p. 98.


127

128
  John Rawls, «Themes in Kant’s Moral Philosophy», in R. Beiner /
W. J. Booth (eds.), Kant & Political Philosophy. The Contemporary Legacy, Yale U. P.,
New Haven / London, 1993, pp. 291­‑319; «A Kantian Conception of ­Equality»,
Cambridge Review, February 1975, pp. 94­‑99; «Kantian Constructi­vism in Moral
Theory», The Journal of Philosophy, 77, September 1980, pp.  515­‑573; «The Basic
Structure as Subject», American Philosophical Quarterly, 14, April 1977; Ch. Kuka‑

60

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Para além de Rawls, outro importante esforço levado a cabo no
pensamento contemporâneo para elaborar uma ética possível no
contexto do pragmatismo é a chamada «ética do discurso», propos‑
ta e desenvolvida por K.­‑O. Apel e J. Habermas, com alguns pres‑
supostos comuns e com ingredientes peculiares de cada um destes
autores. Com a «ética do discurso» pretendem eles superar as difi‑
culdades e lacunas da moral kantiana. E, surpreendentemente,
todo este programa é dirigido contra o «carácter monológico da
teoria kantiana». É um caso de manifesta ignoratio elenchi, de desco‑
nhecimento do texto kantiano e de funcionamento com uma ima‑
gem ­ficcionada da filosofia kantiana que hoje já não resiste à prova
dos ­textos do filósofo e da bibliografia kantiana mais recente 129.
Como já sugeri noutro lugar, Kant ainda seria o mais natural aliado
destes proponentes duma ética do discurso e da sociedade
­comu­ni­cativa 130.
Apel propõe­‑se investir o pragmatismo peirciano na filosofia
transcendental kantiana, do que resulta uma «transformação da
filosofia transcendental», a qual assenta no reconhecimento da
transcendentalidade e aprioricidade da linguagem. Este é o ele‑
mento onde se dá e através do qual se realiza toda a racionalidade,
e ela exibe já uma forma originária de sociedade comunicativa que
está na base tanto da lógica do teórico como da do prático. Toda a
argumentação traz consigo uma exigência de sentido e de validade
que é explicitada e decidida num diálogo interpessoal. O desempe‑
nho da exigência de validade universal pressupõe que se é mem‑
bro de uma sociedade de comunicação e que, por sua vez, são re‑
conhecidos os parceiros do diálogo como pessoas autónomas,
racionais e livres. A linguagem exibe e realiza esta condição comu‑
nitária, intersubjectiva e interpessoal da razão e está, por isso, in‑
vestida de uma originária dimensão ético­‑política. Nas regras da
linguagem está contida uma espécie de a priori que é universal‑
mente aceite pelos comunicantes sob pena de contradição, e neste

thas / Ph. Pettit, Rawls: «Uma Teoria da Justiça» e os Seus Críticos, Gradiva, Lis‑
boa, 1995 (orig. de 1990).
129
  Já acima deixei registado o mais recente reconhecimento, por parte de
Habermas, de que afinal Kant, com a sua teoria do juízo estético, se teria apro‑
ximado dos pressupostos do a priori da sociedade comunicativa.
130
  V. «Kant e a ética da linguagem», in M. J. do Carmo Ferreira (coord.),
A Génese do Idealismo Alemão, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa,
Lisboa, 2000, pp. 63­‑64. Neste volume, pp. 175 e segs.

61

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sentido a linguagem é já em si e por si uma exigência ética, consti‑
tui uma ética mínima 131.
O Faktum da razão prática, que em Kant constitui o fundamento
infundado da ética, pode assim ser decifrado como sendo a norma
fundamental da reciprocidade universalizada de todas as exigên‑
cias de validade que é pressuposta como sendo necessariamente re‑
conhecida de antemão por todo aquele que fala argumentando. Nis‑
to reside a meta­‑norma da formação de um consenso sobre as
normas socialmente válidas, no sentido da mediação dos interesses
de todos os envolvidos sob as condições de diálogo de uma comu‑
nidade ideal de comunicação, a qual é fundamental em relação com
o problema da fudamentação e da legitimação de quaisquer normas
concretas 132.
Habermas parte dos mesmos pressupostos, mas renuncia a
qualquer tentativa de fundamentação da ética, mesmo a que esti‑
vesse contida nas regras do discurso, pois a coerção que estas regras
podem exercer sobre o falante não se transladam ao agente. Substi‑
tui essa instância por aquilo a que chama o «princípio de univer­
salização» 133.
A «ética do discurso» não pretende ser apenas uma moral deon‑
tológica abstracta, mas faz questão de incluir nos seus pressupostos
não só as dimensões duma vida feliz como a substância da história,
superando a dicotomia kantiana entre o plano transcendental e o
fenoménico ou empírico. Sobretudo rejeita o que Habermas consi‑
dera ser o carácter monológico e solipsista da ética de Kant, que,
segundo o filósofo de Frankfurt, se traduz no facto de a consciência
singular testar as suas máximas de acção apenas no seu foro interno.
A ética discursiva, por seu turno, fá­‑lo mediante o discurso público
intersubjectivo, através da argumentação num espaço em que a lin‑
guagem e os seus universais constituem a única coisa que é inques‑
tionável para todos, sob pena de ser inviável qualquer comunicação
e argumentação. A postulação do imperativo categórico é substituí‑
da pelo procedimento duma argumentação moral, regida por aqui‑

  K.-O. Apel, «Das Apriori der Kommunikationsgemeinschaft und die


131

Grundlagen der Ethik. Zum Problem einer rationalen Begründung der Ethik
im Zeitalter der Wissenschaft», Transformation der Philosophie, Bd. 2, pp. 358­‑435.
132
  Idem, Diskurs und Verantwortung, Suhrkamp, Frankfurt a. M., 1988,
pp. 98­‑99.
133
  Aylton Barbieri Durão, A Crítica de Habermas à Dedução Transcendental de
Kant, Editora UEL, Londrina, 1996.

62

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lo a que Habermas chama o «princípio de universalização», que se
pode expôr do seguinte modo: serão válidas apenas aquelas máxi‑
mas que obtêm o consentimento de todos os que estão envolvidos
como participantes num discurso prático 134.
Substitui­‑se assim o «eu penso» pelo «eu argumento», o impe‑
rativo categórico e suas formulações pelo princípio de universaliza‑
ção pragmático­‑transcendental, e em vez do «reino dos fins» de
Kant invoca­‑se a ideia reguladora da comunidade ideal e da consen‑
sualidade, isto é da capacidade de serem consensualizadas todas as
normas válidas por parte de todos aqueles comunicantes e argu‑
mentantes que por elas são afectados 135.
Enfim, para muitos, Kant continua a aparecer como o defensor
de uma ética rigorista e impraticável por seres humanos, que não
são apenas racionais, ou como o proponente de uma ética formalis‑
ta, sem conteúdos reais e sem substância histórico­‑social. Em con‑
trapartida, para outros, a filosofia ética e jurídica kantiana, precisa‑
mente por ter estabelecido uma distinção entre homens (pessoas) e
coisas, entre fins em si e simples meios, entre o que é objecto de dig‑
nidade e de respeito e o que é meramente objecto de um valor rela‑
tivo ou de um preço que pode ser transacionado, representaria a
forma mais extrema do antropocentrismo utilitarista na cultura oci‑
dental 136, incapaz, por conseguinte, de responder adequadamente
às novas exigências do pensamento ético da nova era tecnológica,

134
  J. Habermas, «Diskursethik — Notizen zu einer Begründungspro‑
gramm», in idem, Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln, Suhrkamp,
Frankfurt a. M., 1983, p. 75.
135
  K.-O.  Apel, «Diskursethik als Verantwortungsethik» («La ética del discur‑
so como ética de la responsabilidad. Una transformación posmetafísica de la ética
de Kant», in idem, Teoria de la verdade y ética del discurso, Paidós, Barcelona, 1991).
136
  Tal é a acusação contra a ética kantiana (e na verdade também contra
todas as éticas da tradição ocidental) que constitui o pano de fundo da obra de
Hans Jonas, Das Prinzip Verantwortung. Versuch einer Ethik für die technologische
Zivilisation, Suhrkamp, Frankfurt a. M., 1979, p. 22. Idêntica acusação fora já
feita por Hannah Arendt, na sua obra Human Condition (Chicago, 1958), poucos
anos antes de a mesma autora ter descoberto as perspectivas abertas pela crítica
kantiana do juízo estético. A pp. 155­‑156 dessa obra lê­‑se: «The anthropocen‑
tric utilitarianism of homo faber has found its greatest expression in the kantian
formula that no man must ever become a means to an end, that every human
being is an end in himself... The same operation which establishes man as the
‘supreme end’ permits him... to degrade nature and the world into mere means,
robbing both of their independent dignity.»

63

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que se proponha encontrar um fundamento não antropocêntrico, o
qual torne possível uma ética que garanta a responsabilidade e o
respeito pelos animais, pela vida em geral, pela Natureza, pela Terra
e até pelo Cosmos 137. Mas poderá o Homem, qual novo Atlante, ar‑
car com tamanha responsabilidade? Não se esconderá ainda sob a
invocação mesma do «princípio de responsabilidade» uma muito
subtil forma de antropocentrismo dada sob o modo da presunção
de uma importância e de um poder que o Homem na realidade não
tem?
Eis uma questão para o equacionamento da qual pode trazer
fecundos elementos de reflexão e de ponderação a releitura dos pa‑
rágrafos da segunda parte da Crítica do Juízo que versam a relação e
a possível acoplagem entre a Teleologia da Natureza e a Teleologia
Moral.

  Analisei estas acusações e pretendi dar-lhes resposta com argumentos


137

coligidos da releitura das obras de Kant, na comunicação apresentada ao Co‑


lóquio sobre Ética Ambiental (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,
8­‑9 de Março de 2001), sob o título «Kant e os limites do antropocentrismo ético­
‑jurídico», in Cristina Beckert (org.), Ética Ambiental, Uma Ética para o Futuro,
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2003, pp. 167­‑212. Veja­‑se neste
volume, pp. 123 e segs.

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ÉTICA E ANTROPOLOGIA

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1

ACTUALIDADE E INACTUALIDADE
DA ÉTICA KANTIANA

The influence of Kantian philosophy is tre‑


mendous — even philosophers who claim to over‑
come some implausibilities of Kantianism share
its basic practical principles.
Herlinde Pauer­‑Studer, Constructions of Practical Reason,
Stanford University Press, Stanford, 2003, p. 8.

O assunto acerca do qual me proponho aqui tratar é apenas um


aspecto particular de um tema mais vasto que seria o da actualidade
(ou inactualidade) da filosofia kantiana. Analisar esse tema em to‑
dos os seus aspectos (na filosofia do conhecimento e epistemologia,
na metafísica, na ética, na estética e na filosofia política e do direito)
exigiria muito mais do que um breve ensaio e seria mesmo tarefa
para vários estudiosos da filosofia kantiana.
Por isso, escolhi um tópico que constitui o núcleo mais íntimo do
pensamento kantiano — a filosofia moral — e que tem despertado
nos últimos decénios um grande interesse e revelado uma impressio‑
nante fecundidade para repensar os problemas éticos e ético­‑políticos
com que a humanidade se vê confrontada.
A exposição será conduzida pelo fio de três questões:

1.a O que é a actualidade em filosofia e que sentido tem


perguntar pela actualidade duma filosofia?
2. Em que sentido existe ou não na actualidade uma espe‑
a

cial preocupação filosófica com os problemas éticos?


3.a Por que sinais se revela ou se pode medir a actualidade
da filosofia moral kantiana?

Na última parte deste ensaio, abordarei alguns dos mais signi‑


ficativos projectos contemporâneos de refundação da ordem ética
que se inspiram expressamente em tópicos essenciais da filosofia
moral kantiana, embora, por outro lado, também dela se distanciem,
reinterpretando­‑a, explicitando­‑a, corrigindo­‑a ou trans­for­mando­
‑a. Por fim, farei breve recensão de um significativo conjunto de re‑

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centes propostas de interpretação, as quais, graças a uma nova ati‑
tude hermenêutica de vistas mais amplas e compreensivas, têm
vindo a fazer leituras da filosofia moral de Kant e dos seus tópicos
mais característicos que permitem redescobrir não só a sua riqueza
e complexidade, como também a sua aptidão para continuar a ilu‑
minar as questões éticas, ao mesmo tempo que tornam patentes a
estreiteza de leitura e a grosseira incompreensão de muitos dos seus
críticos e adversários tanto de ontem como de hoje.

I. Da actualidade e inactualidade da filosofia

O tema que proponho carece de uma reflexão prévia acerca do


que se entende por actualidade em filosofia. Em que consiste? Como
se mede? Que queremos dizer quando afirmamos que uma ideia ou
uma determinada visão das coisas é actual ou não é actual?
De um aparelho técnico eu posso dizer que é ou não actual, con­
soante me é ou não ainda útil. Uma peça de vestuário é ou não actual
se está ou não na moda, se cai bem ou não usá­‑la. Mas de uma filosofia,
de uma ideia filosófica ou de um sistema filosófico, poderei dizer o
mesmo? Será que também estes últimos estão sob o império da moda?
Colocar o problema da actualidade ou inactualidade de uma
dada filosofia ou de algum dos seus aspectos obriga, antes de mais,
a pensar o que se entende por actualidade ou inactualidade e, de‑
pois, a pensar o tipo de relação que a filosofia tem com a actualida‑
de. O mesmo é dizer que relação tem (ou não tem) a filosofia com a
história e com o tempo que é o seu.
Hegel, que abordou expressamente esta questão na introdução
às suas Lições de História da Filosofia, condensou a sua tese a este res‑
peito na conhecida afirmação segundo a qual toda a filosofia, quan‑
do genuína, é a consciência do seu próprio tempo, é o seu tempo em
pensamento, independentemente da consciência que os filósofos te‑
nham ou não disso 1. Neste sentido, toda a filosofia autêntica seria
uma espécie de lógica e ontologia da sua própria actualidade e to‑
das as filosofias, uma vez passado o seu tempo, seriam irremedia‑
velmente inactuais. É claro que, para Hegel, sendo as filosofias mo‑
mentos da consciência de si que o Absoluto alcança na História de

1
  G. W. F. Hegel, Introdução à História da Filosofia, Edições 70, Lisboa,
p. 122.

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que é protagonista, algo delas é assumido nas formas posteriores da
consciência filosófica. Mas como sabemos que passou o tempo de
uma filosofia? Que há que nos advirta para a emergência de um ou‑
tro Zeitgeist ou de uma outra Weltanschauung, espírito do tempo,
consciência de época ou visão do mundo?
Por outro lado, também é certo que uma filosofia, ao traduzir o
seu tempo em pensamento, sob a forma de uma arquitectura ou de
um sistema de ideias, pretende que essa tradução assuma de algum
modo a forma da intemporalidade ­— afirmando­‑se sub specie aeter‑
nitatis ­— e da universalidade, propondo­‑se como válida, pelo me‑
nos virtualmente, para qualquer época e em qualquer contexto.
Sabemos, porém, que esta visão hegeliana da correlação entre a
filosofia e o seu tempo não é partilhada por todos os filósofos. Se
pusermos a questão a Nietzsche, o autor das Considerações Inactuais
(ou intempestivas), ele dir­‑nos­‑á, ao contrário de Hegel, que a au‑
têntica filosofia é necessariamente inactual 2. Isto é, que ela não
está nem pode estar reconciliada com o seu tempo, mas está contra
ele e em ruptura com ele e que, precisamente na recusa de aceitar o
estado de coisas que lhe é dado como actual, ela torna visível e an‑
tecipa o que é verdadeiramente o mais actual, porque o mais essen‑
cial. Também Heidegger, na Introdução à Metafísica, declara que a fi‑
losofia é necessariamente e por essência inactual, não só porque é
sempre recusada pelo pensar da moda, mas sobretudo porque é da
sua própria natureza reconduzir todo o actual e todo o hoje à res‑
pectiva origem e passado. É neste recuo e nesta inadequação com o
tempo actual e com a moda que a filosofia prepara a autêntica actua­
lidade: «o que é inactual terá os seus próprios tempos» («Was unzeit­
gemäss ist, wird seine eigenen Zeiten haben») 3.
Inactual é‚ pois, a filosofia enquanto memória recuperadora do
passado que a torna possível e lhe dá actualidade. Mas, recuperado,
o passado deixa de o ser e torna­‑se ele próprio actual e, por vezes,
tão actual que é capaz de mobilizar todas as energias criadoras do
homem. Inactual é a filosofia também porque, enquanto consciên‑
cia crítica do seu tempo, ela dele se distancia e nisso antecipa o fu‑
turo. O filósofo é como um Jano bifronte: olha o passado e o futuro,

  F. Nietzsche, Unzeitgemässige Betrachtungen (1873­‑74), Kritische Gesamtaus‑


2

gabe, ed. de G. Colli / M. Montinari, Walter de Gruyter, Berlin, 3/1, 1972. Cf. R. M.
Meyer, «Nietzsches Wortbildung», Zur deutsche Wortforschung, 15 (1914), p. 105.
3
  M. Heidegger, Einführung in die Metaphysik (1935), Gesamtausgabe, Bd. 40,
V. Klostermann, Frankfurt a. M., 1983, pp. 10­‑11.

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tem uma consciência retrospectiva e prospectiva. E muitas vezes o
que é investido prospectivamente é o que foi descoberto retros­
pectivamente. De facto, na História da Filosofia assiste­‑se com fre‑
quência a movimentos de renascimento e de restauração do antigo,
mesmo do mais antigo e originário, sejam ideias ou paradigmas fi‑
losóficos. Pense­‑se no esforço de pensadores renascentistas como
Marsilio ­Ficino ou Giovanni Pico della Mirandola para recupera‑
rem a prisca theologia ou prisca sapientia dos Antigos. Aquilo que Pe‑
trarca inau­gurara um século  antes com o seu projecto pessoal de
restaurar a notitia vetustatis, para fugir da mediocridade cultural e
moral da sua época, tornou­‑se um fecundíssimo programa filosófico­
‑cultural que viria a mobilizar filósofos, sábios e artistas durante os
séculos xv e xvi. 4
Só a partir do final do século xvi — emergência daquilo a que se
tem chamado a Modernidade (temps modernes, Neuzeit)   — é que
passou a valorizar­‑se o novo por ser novo, o moderno contra o anti‑
go. Passou­‑se então a viver sob a pressão do sempre mais novo ou
do mais moderno, e isso teve como efeito directo a desvalorização
não só do antigo, mas também de todo o actual, pois o presente e o
actual são apenas o breve momento evanescente de passagem para
algo futuro que os há­‑de desqualificar. O grande escritor jesuíta bar‑
roco que foi o Padre António Vieira exprimia esta nova consciência
histórica, que partilhava com muitos outros pensadores seiscentis‑
tas (Bruno, Bacon, Hobbes, Pascal), dizendo «que os autores antigos
e mais velhos, própria e rigorosamente falando, não são os passa‑
dos, senão os presentes, não aqueles que vulgarmente são chama‑
dos os Antigos, senão os que hoje e nos tempos mais chegados a nós
se chamam Modernos» 5. O futuro torna­‑se assim o tempo da preg‑
nância ao qual todo o passado e até o presente são sacrificados e
perante o qual são desvalorizados. Ou, quando muito, são recupera‑
dos apenas como momentos preparatórios e etapas provisórias do
futuro. Mas o que seja o futuro é algo impossível de saber, pois ele
ainda não foi inventado. Por paradoxal que pareça, é o vazio, o em
aberto e o que ainda não é que serve de medida de todo o existente.

  V. o meu ensaio «Petrarca e a filosofia. Entre a invenção da Antiguidade


4

e a génese da Modernidade», in Rita Marnoto (coord.), Petrarca 700 Anos, Ins‑


tituto de Estudos Italianos, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra,
2005, pp. 459­‑487.
5
  Padre António Vieira, Livro Anteprimeiro da História do Futuro, ed. de José
van den Besselaar, Biblioteca Nacional, Lisboa, 1983, p. 131.

70

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Podemos ver aqui o velho Cronos da mitologia grega que devora os
seus filhos, ou o princípio secularizado da escatologia bíblico­‑cristã,
que vê a história como epifania do Absoluto, que terá o seu momen‑
to pletórico final a dar o sentido a todos os momentos passados.
A filosofia da história de Hegel é a consagração secularizada deste
paradigma.
Ao colocarmos a questão da actualidade de uma filosofia esta‑
mos implantados nesta consciência moderna do tempo, nesta mo‑
derna forma de entender que «a verdade é filha do tempo» (veritas
temporis filia), uma sentença muito antiga (Aulus Gelius, nas Noctes
Aticae atribui­‑a a um poeta antigo cuja identidade ignora) que Eras‑
mo recolhe nos seus Adagia e que os pensadores modernos (Giorda‑
no Bruno, Francis Bacon, Thomas Hobbes) como que reinventaram
para com ela exprimirem a sua paixão pela invenção do novo. Mas
quando perguntamos pela actualidade de uma filosofia do passado,
se não cometemos anacronismo, ou pressupomos que a sua verdade
é perene ou intemporal, ou então temos de pensar que o tempo des‑
sa filosofia se prolonga no nosso, ou que há nela como que alguma
antecipação do que nos diz respeito. Neste último caso, pode pensar­
‑se que esse poder de antecipação de uma filosofia representa sem‑
pre alguma inadequação com o seu próprio momento histórico, algo
assim como se ela tivesse chegado antes do seu verdadeiro tempo:
como se tivesse razão antes do tempo e, por isso, a sua razão é, como
dizia Nietzsche, intempestiva, inoportuna, incómoda até para os
contemporâneos. Ela não adormece os espíritos, mas acorda­‑os, não
é narcótico, mas aguilhão. Neste sentido considerada, é como se a
filosofia participasse de algum modo da condição do discurso pro‑
fético: ela decifra os sinais dos tempos e antecipa na ideia o sentido
do tempo e da história que estão a chegar.
Kant parece ter tido alguma percepção disto quando, numa con‑
versa dos últimos anos da sua vida, terá desabafado: «Cheguei um
século adiantado com os meus escritos; dentro de um século come‑
çarei a ser correctamente entendido e então os meus livros serão de
novo estudados e apreciados.» O desabafo, registado nos Diários de
Varnhagen von Ense, foi evocado por Hans Vaihinger, no prólogo a
Die Philosophie des Als Ob (1911) 6 e também por Heidegger num dos

  Die Philosophie des Als Ob. System der theoretischen, praktischen und re‑
6

ligiösen Fiktionen der Menschheit auf Grund eines idealistischen Positivismus, Berlin,
1911, p. xiv.

71

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seus cursos de Marburgo sobre a Crítica da ­Razão Pura 7. A história do
Kantismo dos últimos 130 anos confirma esta profecia do filósofo em
causa própria, se tivermos em conta o geral movimento de «retorno
a Kant», acontecido no último quarto do século xix e que continuou
por todo o século xx, com particular intensidade na segunda metade
e em evidente crescendo nas mais recentes três décadas.
Sirvam estas considerações preliminares apenas para nos ad‑
vertir da dificuldade do tema que aqui nos ocupa. Dificuldade que
aumenta se da filosofia em geral passarmos à ética. Pois, a não ser
que admitamos que esta é uma mera etologia (descrição de compor‑
tamentos, de costumes ou de hábitos) sem carácter normativo ou
imperativo, a ética ou filosofia moral confronta­‑se não com o que é
­— com um dado estado de coisas ou de factos actuais ou passados
—, mas com o que deve ser. Ora, esta condição atinge sobretudo a
ética kantiana, a qual, mais do que qualquer outra, exacerba, se não
a contradição, pelo menos a tensão entre o que o homem deve ser
enquanto ser moral ou ser que é capaz de moralidade (o homo nou‑
menon) e o que ele é enquanto ser natural (o homo phaenomenon).

II.  «Retorno» ou «crise» da Ética?

Num segundo passo, ainda preliminar ao tema que me propo‑


nho tratar, haveria que esclarecer duas coisas, a saber: se o tempo
que foi o tempo kantiano ainda é o nosso (ou se o nosso tempo e a
nossa actualidade ainda são kantianos); e se a Ética é realmente uma
questão da actualidade. Facilmente se reconhecerá que a questão da
actualidade da ética kantiana se liga com a da situação da Ética na
actualidade. E tanto uma como outra admitem respostas diferentes
e até divergentes.
Começarei pela segunda questão: se a Ética ou a Moral é um
assunto filosófico de actualidade 8.

  M. Heidegger, Phänomenologische Interpretation von Kants «Kritik der ­reinen


7

Vernunft», Gesamtausgabe, Bd. 25, V. Klostermann, Frankfurt a. M., 1977, p. 1.


8
  Tomo aqui por comodidade os dois termos ­— o de origem grega e o de
origem latina ­— por equivalentes, como o eram no tempo de Kant, embora
saiba que para muitos autores mais recentes (Ricoeur, por exemplo) não seja
assim: a Ética designaria a reflexão acerca dos princípios fundamentais que
orientam a acção humana, enquanto a Moral teria um carácter formal e im‑
perativo, convocando o sentido do dever e da responsabilidade do indivíduo

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Se atendermos à produção bibliográfica filosófica dos últimos
quinze ou vinte anos, vemos que a recorrência dos títulos parece
indicar um inequívoco retorno das questões éticas em filosofia.
A  ética e a moral estão na moda. Fala­‑se de ética empresarial, de
markética, de bioética, de ética verde ou ética ambiental, de ética
dos animais, ética do consumidor, ética das profissões 9. A ética
tornou­‑se um valor acrescentado dos produtos e dos serviços e
já aparecem obras de conceituados professores de ética com títulos
do género Rentabilidade da Ética para a Empresa 10. O que pode querer
dizer que até a ética (ou o que agora por ela se nomeia) se vende e
entrou no circuito da venalidade. Criam­‑se comissões de ética para
as ciências da vida, de âmbito nacional ou internacional. A que se
deve todo este interesse? Sem dúvida, às novas situações que afec‑
tam a humanidade, às mutações que afectam a natureza profunda,
o alcance e a qualidade do agir humano na nossa época dominada
pelas tecnociências, sobretudo quando estas se expandem no domí‑
nio da vida e das suas condições de possibilidade: engenharia ge‑
nética, clonagem humana, modificações genéticas das espécies ve‑
getais e animais incluindo o próprio homem. Os problemas do agir
humano não mudaram só de escala, mudaram também de nature‑
za. E os agentes são cada vez menos os indivíduos, envolvidos eles
próprios em engrenagens e em processos anónimos e globais que
não podem de todo con­trolar.

e a aceitação de um certo número de normas necessárias para orientar a sua


própria vida ou mesmo a vida colectiva. Christian Wolff intitulava a sua Moral
como Philosophia moralis sive Ethica. Kant prefere a designação de «Metaphysik
der Sitten» (metafísica dos costumes, fórmula que está mais próxima da raiz
latina dos mores = costumes), mas usa também como equivalentes «philosophia
practica», «philosophia moralis» e «Ethica».
9
  Criam­‑se actualmente departamentos de investigação em universidades
e linhas editoriais dedicadas a esta nova orientação, que cobre domínios que
vão desde a ética do ensino à ética dos sistemas prisionais e correcionais, pas‑
sando pela ética militar, pela ética das empresas e dos negócios, pela ética poli‑
cial, pela ética da técnica e da engenahria, ética da investigação, bioética, ética
do trabalho social, etc. Só a título de exemplo, entre muitos outros, o Centre for
Applied Philosophy and Public Ethics da Charles Sturt University (Australia),
em colaboração com a editora Ashgate, desenvolve todo um programa nesse
âmbito, dirigido por Seumas Miller e Tom Campbell: The International Library
of Essays in Public and Professional Ethics.
10
  Adela Cortina, Rentabilidad de la ética para la empresa, Fundación Argen‑
taria / Visor, Madrid, 1997.

73

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Tudo parece indicar que esta exigência geral de ética e este re‑
torno (pelo menos editorial e mediático) à moral e à exigência de
moralização caracterizariam a nossa época como um «tempo da
responsabilidade» 11. Mas há pensadores contemporâneos que não
interpretam esses sinais como uma prova inequívoca de que somos
muito moralizados ou de que estamos muito preocupados com a
moralização dos nossos costumes e comportamentos. Muito pelo
contrário, para esses vivemos numa época desmoralizada, de pós­
‑moral, de pós­‑virtude e de pós­‑dever, como igualmente vivemos
uma época pós­‑metafísica e, na exigência mediática e publicitária da
ética, vêem apenas um sintoma mais de que a ética propriamente tal
deixou de interessar realmente aos homens do nosso tempo. Tal é a
ideia que se desprende de obras relativamente recentes de alguns
autores franceses: de Gilles Lipovetsky 12, de Alain Etchegoyen 13 e
de Alain Finkielkraut 14.
Eis o diagnóstico de Etchegoyen: «Estamos hoje desmoraliza‑
dos. O que significa, aqui e agora, que já não temos moral. Os pontos
de referência desapareceram, os deveres apagaram­‑se e nós herdá‑
mos o vazio. […] Desde há alguns anos, provenientes de fontes diver‑
sas, novas palavras se juntam à confusão, sob outros enfeites e outras
palavras. As éticas substituem­‑se à moral, como um sucedâneo.
A transição da moral singular para as éticas pluralistas é um sinal
dos tempos.» 15 Do ponto de vista ético, a actual condição seria carac‑
terizada pelo imenso vazio, pela falta de valores de referência. Este
era já, de resto, o diagnóstico a que chegara, há um quarto de século,
Alasdair MacIntyre, na sua bem conhecida obra After ­Virtue 16.
Por outro lado, segundo alguns analistas, há claros sinais de
fractura na actualidade que indicam que já  não estamos mais im‑
plantados no solo da Modernidade, de que Kant foi reconhecida‑
mente um dos mais destacados expoentes e intérpretes. Para os her‑

  Frédéric Lenoir, Le temps de la responsabilité, Fayard, Paris, 1991.


11

  Le crépuscule du devoir. L’éthique indolore des nouveaux temps démocratiques,


12

Gallimard, Paris, 1992.


13
  La valse des éthiques, François Bourin, Paris, 1991.
14
  L’Humanité perdue. Essai sur le xxe. siècle, Seuil, Paris, 1996.
15
  Ibidem, pp. 13­‑14.
16
  Alasdair MacIntyre, After Virtue: A Study in Moral Theory, Duckworth,
London, 1981. V. um lúcido diagnóstico da situação actual da ética em: Cristina
Beckert, «Do ‘Crepúsculo do Dever’ à ‘Valsa das Éticas’», Philosophica, 17/18
(2001), pp. 5­‑20.

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meneutas «pós­‑modernos» ou filósofos da Pós­‑Modernidade, a
filosofia de Kant seria precisamente a expressão máxima da Moder‑
nidade enquanto programa filosófico que visava a fundamentação
do saber e do agir humanos numa subjectividade racional e autóno‑
ma e, por isso, esgotada a Modernidade, ela já para nada nos pode
servir, nestes tempos pós­‑metafísicos marcados pelo programa des‑
construcionista, que instaurou o processo a todas as filosofias do
sujeito e do fundamento. Os hermeneutas pós­‑modernos identifi‑
cam a Modernidade pelo discurso da subjectividade fundadora e
fundamentadora, pelo discurso da emancipação, da autonomia, da
liberdade e do direito dos indivíduos, reconhecidos como sujeitos
racionais e autónomos. Todos estes tópicos encontram cabal repre‑
sentação e legitimação na filosofia kantiana, mas eles perderam a
sua capacidade para mobilizar o pensamento «pós­‑moderno». E as‑
sim há quem ache que irremediavelmente «o mundo kantiano soço‑
bra na era da programação tecnológica do futuro e da alteração
ideo­lógica do passado, na era do controlo totalitário, da limpeza
­étnica e do holocausto» 17, nesta era que se tornou o nosso destino
contemporâneo.
Mas, em contrapartida, a favor da tese da actualidade de Kant
­— da presença efectiva do seu pensamento nos debates filosóficos
actuais e de modo muito particular nos debates éticos ­— fala o ele‑
vado número de estudos que lhe são dedicados, verdadeiramente
inabarcável. Na última década têm surgido mesmo títulos de obras
que claramente destacam a actualidade do pensamento kantiano e,
de um modo muito particular, a actualidade do pensamento ético
kantiano. Em Abril de 1993, o n.o 309 de Magazine Littéraire era dedi‑
cado ao tema «Kant e a Modernidade» e nele se insistia na ideia de
que mais do que estar a viver­‑se na actualidade um «retorno a Kant»,
o que na verdade acontece é que ainda vivemos no momento kantia‑
no da filosofia. Em 1997, Alain Renaut publicava uma obra que cons‑
tituia um vasto relatório reflexivo e interpretativo acerca da eficácia
dos vários aspectos da obra de Kant na filosofia contemporânea,
dando especial atenção aos problemas da filosofia prática 18. Por oca‑

  Irene Borges­‑Duarte, «O homem como fim em si? De Kant a Heidegger


17

e Jonas», Revista Portuguesa de Filosofia, 61, 2005, 841­‑862.


18
  Alain Renaut, Kant aujourd’hui, Flammarion, Paris, 1997. Também do
mesmo autor «Présences du kantisme», in Kant actuel, Hommage à Pierre Laber‑
ge, ed. por F. Duchesneau, G. Lafrance e Claude Piché, Montréal / Paris, 2000,
pp. 31­‑47.

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sião do 2.o centenário da morte do filósofo, no ano de 2004, os balan‑
ços multiplicaram­‑se sob a forma de livros, de ensaios ou de con‑
gressos. Para já não falar no Congresso Internacional de São Paulo
(4­‑9 de Setembro de 2005) dedicado ao tema «Direito e política na
filosofia de Kant», refiro apenas dois: o de Salamanca (Pontifícia
Universidade Católica) em Outubro de 2004, sobre o tema «Actuali‑
dade de Kant y su presencia en el mundo Iberoamericano», sendo
uma das sessões dedicada ao tópico «A ética de Kant e os desafios do
nosso tempo», e o de Lisboa­‑Évora, 25 a 27 de Novembro de 2004,
subordinado ao tema geral «Kant 2004: Posteridade e actualidade»,
onde o tema da recepção actual da ética kantiana também foi objecto
de atenção 19. Um dos balanços mais recentes, publicado na Alema‑
nha nesse ano de 2004 20, traça um quadro sistemático da recepção de
Kant na filosofia contemporânea e dedica um amplo capítulo à ética
kantiana 21. O que todos estes balanços mostram é que a actualidade
filosófica de Kant, para além de incontestável, não é comparável
com a de nenhum outro filósofo, seja ele mais antigo ou mais recen‑
te. E isso leva­‑nos a perguntar pela razão de tal actualidade: o que
torna a filosofia de Kant assim tão apta e disponível para ser chama‑
da a intervir de modo fecundo nos debates filosóficos actuais?
Kant foi, sem dúvida, a mais expressiva voz da Modernidade
no domínio do pensamento ético, propondo um modo de equacio‑

19
  V. Leonel Ribeiro dos Santos (coord.), Kant: Posteridade e Actualidade,
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2007. Nomeadamente
os ensaios de: Marina Savi, «Il tema del Rispetto in Kant e la sua attualità»,
pp. 269­‑290; Viriato Soromenho­‑Marques, «Kant e a comunidade dos seres ra‑
cionais», pp. 291­‑302; José Manuel Santos, «Leituras contemporâneas da ética
de Kant», pp. 621­‑640; Manfred Baum, «Direito e ética na filosofia prática de
Kant», pp. 65­‑76; Cristina Beckert, «Kant e Jonas: Do dualismo antropológico
ao monismo antropomórfico», pp. 735­‑744.
20
  Dietmar Heidemann e Kristina Engelhard (eds.), Warum Kant heute?
Systematische Bedeutung und Rezeption seiner Philosophie in der Gegenwart, Walter
de Gruyter, Berlin / New York, 2004.
21
  Eu próprio publiquei nesse mesmo ano um longo estudo no qual ten‑
tava dar conta do alcance e teor deste novo movimento de «regresso a Kant» e
também aí abordava este retorno a Kant do último quarto do século xx e este
renovado interesse pela filosofia prática kantiana. V. Leonel Ribeiro dos Santos,
«Regresso a Kant. Sobre a situação actual dos estudos kantianos», Philosophica,
24, 2004, pp. 119­‑182. O essencial desse estudo vai como Introdução geral a este
volume. O presente ensaio pode considerar­‑se como uma explicitação do que
naquele sobre o tópico se expõe de forma condensada.

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nar as questões da moralidade que, se não rompe com toda a tradi‑
ção do pensamento moral anterior, pelo menos representa um novo
paradigma. E, segundo alguns analistas, a actual crise da Ética ou
da Moral representaria a rejeição e o abandono de tudo aquilo que
constituía a essência da proposta kantiana: a universalidade da lei
moral, a incondicionalidade do dever, a imperatividade da razão
sobre as tendências passionais, o primado do esforço e do mérito
sobre o êxito e a felicidade. A isto contrapõe­‑se hoje, se não o niilis‑
mo e o indiferentismo em questões de moralidade, pelo menos o
relativismo e o pluralismo éticos (a cada um a sua moral), o indivi‑
dualismo hedonista, uma moral light, indolor e sem exigência de
esforço ou de sacrifício. Antes, a ética ou a moral exigia­‑se dos indi‑
víduos. Hoje exigem­‑se comportamentos éticos de entidades anóni‑
mas ou de colectivos sem rosto (empresas, hospitais, laboratórios de
investigação...). Há neste actual retorno do ético um recalcamento e
uma ausência do que era suposto ser precisamente a essência do
ético: a deliberação humana, a capacidade humana de agir de forma
autónoma, consciente e livre. O ético social tende hoje para a juridi‑
cização ou normatização: acaba num conjunto de normativas que
definem um quadro deontológico que estipula também as regras da
respectiva aplicação, definidas metricamente e sancionadas social‑
mente, mas sem um verdadeiro sujeito moral que tenha que correr e
assumir por conta própria o risco da deliberação. A bioética e a ética
empresarial e dos serviços tendem a fixar­‑se num código estandar‑
dizado de soluções protocolarizadas que obedecem a critérios de
objectividade mensurável, que visam evitar as decisões dos agentes
individuais envolvidos e potenciais conflitos jurídicos com os clien‑
tes. Os agentes não deliberam, nem decidem, mas seguem regras
aplicadas a situações típicas e estandardizadas. Quanto ao ético in‑
dividual, por sua vez, quando ainda se cultiva, tende para a estetici‑
zação ou para a medicalização: é uma espécie de dietética, de tera‑
pêutica, ou de ginástica para estar em boa forma. O psicanalista, o
dietista e o personal trainer são os mestres e oficiantes desta moral e
ascética dos novos tempos democráticos e das sociedades mediáti‑
cas globalizadas, as quais também têm as suas místicas à la carte, que
vão desde as mais variadas formas de budismo aos rituais do sexo
tântrico, novas formas de misticismo do espírito e do corpo, que
proliferam também entre os intelectuais, desiludidos de ideologias,
de revoluções, da política e da religião, e até da ciência e da filosofia,
sobretudo se entendidas e praticadas como paciente trabalho da ra‑
zão, e que assim saboreiam, neste crepúsculo dos deuses e dos mitos
que nos coube em sorte, a ilusão de uma espiritualidade ou até de

77

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uma religiosidade sem deuses e sem clero, mas não sem mestres e
gurus.
Como interpretar, neste contexto, que, segundo vários analis‑
tas, indicia uma indesmentível crise contemporânea da ética, o re‑
novado interesse que a filosofia de Kant, em geral, e em particular a
sua moral, têm despertado nos últimos decénios? Tratar­‑se­‑á de um
novo movimento de «regresso a Kant», análogo daquele que se vi‑
veu no último quarto do século xix, mas agora não já sob o signo da
Erkenntnistheorie e sim sob o da praktische Philosophie? Ou, como su‑
gerem alguns, não se tratará  tanto de um novo «regresso a Kant»
quanto do reconhecimento de que, pese embora todo o coro dos
«pós­‑modernos», «vivemos ainda num tempo kantiano»? Caso as‑
sim fosse, manteria toda a actualidade e pertinência o programa
kantiano de construção dum humanismo laico sustentado numa
subjectividade auto­‑reflexiva, mas porventura de matriz mais esté‑
tica do que metafísica, para além e independentemente de se saber
se Deus existe ou não, para além de apodícticas certezas ou evidên‑
cias científicas ou metafísicas acerca da natureza das coisas, do ho‑
mem, da sua história e destino. E mais do que falar de um «regresso
a Kant» deveria então dizer­‑se que ainda vivemos um tempo kantia‑
no, um tempo aberto pela filosofia kantiana. Esse tempo seria mar‑
cado por aquilo a que Luc Ferry chama a «laicidade». Seria isso o
que no fundo explicaria o grande e diversificado interesse actual
pela filosofia prática de Kant, em vários contextos culturais e em
muito diferentes tradições filosóficas: na Alemanha, em França, nos
Estados Unidos, em Inglaterra.
A actualidade de Kant no contexto da filosofia francesa mais
recente tem sido representada sobretudo por dois pensadores: Luc
Ferry e Alain Renaut. Na sua interpretação do significado actual da
filosofia kantiana, Ferry põe em destaque dois aspectos que têm que
ver directamente com a ética. Segundo ele, «a actualidade do Kan‑
tismo é a laicidade. […] Kant é aquele pensador que nos convida a
pensar não apenas a política e o direito mas também a ética e a cul‑
tura independentemente duma derivação de tipo teológico. É nisso
que ele é o pensador da modernidade. […] Há uma actualidade do
momento kantiano em dois pontos fundamentais que são a emer‑
gência da laicidade, isto é, o retraimento do divino, a inversão das
relações homem­‑Deus […] e, por outro lado, o facto de que o mo‑
mento kantiano representa um momento de desconstrução relativa‑
mente ao ideal louco e ilusório da subjectividade metafísica senhora
de si própria. O momento kantiano é ainda actual na medida em
que Kant efectua a desconstrução da metafísica, conservando embo‑

78

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ra uma significação, da qual não podemos dispensar­‑nos, para a
ideia de uma subjectividade senhora de si própria.» 22
Segundo o pensador francês, Kant teria inaugurado um «hu‑
manismo não metafísico» e teria posto a salvo a subjectividade do
processo de desconstrução da metafísica, a título de «princípio de
reflexão» para pensar um certo número de fenómenos que não po‑
demos evitar de pensar sob a categoria da subjectividade metafísica.
Tomemos um exemplo: cada vez que eu argumento, queira­‑o ou
não, sou obrigado a imputar a argumentação que desenvolvo, seja
ela moral, política, científica ou mesmo estética, a uma subjectivida‑
de fundadora, a uma subjectividade metafísica, que eu sei, de resto
­— e nisso reside o paradoxo ­—, que ela é uma ilusão no plano da
verdade e, todavia, no plano do sentido, eu não posso impedir­‑me
de pensar a minha argumentação e atribuir­‑ma a mim mesmo sob a
categoria da subjectividade metafísica. A Crítica do Juízo vai tentar
reencontrar uma significação para as ideias metafísicas apesar de a
Crítica da Razão Pura ter desconstruído a sua pretensão à verdade.
É nesta oposição entre o projecto da perda ilusória da metafísica e a
vontade de reencontrar a significação do projecto metafísico que re‑
side, segundo Ferry, a profundidade e o alcance do momento kan‑
tiano em que ainda vivemos.
A insistência na decisiva importância da Crítica do Juízo e do seu
princípio da subjectividade (ou juízo) reflexionante de matriz estéti‑
ca para se compreender todo o alcance e radicalidade da revolução
kantiana em filosofia é um dos aspectos comuns a Alain Renaut 23 e
a Luc Ferry. Aliás, esta descoberta da terceira Crítica como a obra de
Kant que permite repensar a uma nova luz as questões da filosofia
prática ­— a ética, a política e a filosofia do direito, ou mesmo como
a obra onde se pode colher a verdadeira filosofia política de Kant —
é um estranho fenómeno recorrente em alguma hermenêutica kan‑
tiana dos últimos decénios e em programas filosóficos totalmente
independentes uns dos outros. Hannah Arendt já vira nessa obra
(melhor dito, nalguns dos parágrafos da primeira parte dessa obra
sobre o juízo estético) a genuína filosofia política de Kant, que, em
contrapartida, não reconhecia nem nos escritos kantianos expressa‑
mente dedicados à ética e à filosofia do direito, nem nos escritos da

  Magazin Littéraire, número citado.


22

  V. Alain Renaut, Kant aujourd’hui, Flammarion, Paris, 1997, sobretudo


23

o cap. viii.

79

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década de 90 que o velho filósofo dedicara expressamente a ques‑
tões de filosofia política 24. Jean­‑François Lyotard fez outro tanto, pri‑
vilegiando embora a analítica do sublime daquela mesma obra, mas
concordando com Arendt em que «a Doutrina do Direito não é o texto
pertinente para o estudo da filosofia política de Kant» 25. Muito re‑
centemente, como se coligisse as sugestões provindas de diferentes
lados, também Henri d’Aviau de Ternay propôs uma ampla «relei‑
tura da filosofia kantiana do direito a partir da terceira Crítica» 26.
E ainda no espaço da cultura filosófica francófona e nesta mes‑
ma linha interpretativa de fuga aos textos canónicos onde Kant pen‑
sava ter exarado a sua filosofia prática, merece referência a interpre‑
tação foucaltiana da moral kantiana e do seu significado, lida não
nos escritos de Kant sobre a filosofia moral, mas nos ensaios do filó‑
sofo sobre a filosofia da história. Segundo Foucault, o que é relevan‑
te na proposta kantiana, lida como uma «ontologia da actualidade»,
é a temporalização do universal e a atenção à actualidade, a relação
ao presente e à situação, a ideia de que o universal é declinável no
tempo. O que importa é saber apanhar o momento, o fazer com que
a acção actual do indivíduo faça avançar a humanidade em direcção
à sua finalidade, levar a cabo o trabalho indefinido da liberdade,
realizar a constituição do próprio sujeito como sujeito autónomo.
Como nenhuma outra proposta filosófica, a ética de Kant expõe o
êthos da modernidade como tarefa do sujeito, como a infinita aber‑
tura do humano e, por conseguinte, como a impossibilidade de con‑
sagrar qualquer forma de humanismo já dada ou ainda por fazer.
O homem — saber o que é o homem ­— está permanentemente em
aberto. E assim, em vez do imperativo de Píndaro ­— «sê o que és»
—, deve antes dizer­‑se «sê o que não és», ou «não te aceites como
és». Ser aquilo que não se é, esgotar todas as possibilidades do hu‑
mano não é tanto realizar um universal abstracto como programa
de ­realização pessoal, mas é antes abrir­‑se à afirmação de todas as
singularidades e estilos de vida que são entre si incondicionalmente
incomensuráveis. E, desta feita, Foucault lê em Kant — talvez por

  Hannah Arendt, Lectures on Kant’s Political Philosophy, The University of


24

Chicago Press, 1992. Veja-se o último ensaio deste volume.


25
  Jean­‑François Lyotard, L’Enthousiasme, la critique kantienne de l’histoire,
Galilée, Paris, 1986, p. 30.
26
  Henri d’Aviau de Ternay, Un impératif de communication. Une relecture de
la philosophie du droit de Kant à partir de la troisième Critique, Les Éditions du Cerf,
Paris, 2005.

80

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intermediação de Nietzsche ­— não tanto a afirmação incondicional
da universalidade da lei, quanto o imperativo do universal respeito
absoluto das singularidades. O imperativo categórico desta moral
poderia então formular­‑se deste modo: ser respeitador quando uma
singularidade se levanta; ser intransigente sempre que o poder vio‑
la o universal. 27

III. A redescoberta da filosofia prática de Kant


na actualidade

Da leitura duma obra como a de Gilles Lipovetsky, que acima


citei, fica­‑se com a impressão de que os principais tópicos da moral
kantiana ­— dever, lei moral, obrigação, imperativo categórico — es‑
tão fora de moda. Eles cedem perante o prazer, a iniciativa e a es‑
pontaneidade e as incondicionais exigências da razão prática su‑
cumbem perante os reconhecidos direitos da sensibilidade e do
sentimento. Por outro lado, também alguns dos pressupostos da éti‑
ca kantiana, tais como a subjectividade ou a consciência moral, por
efeito das filosofias pragmatistas e descontrucionistas, estão sob
suspeita. Expulsou­‑se o sujeito, a consciência moral, a intenção, a
vontade boa. Sem estes pressupostos, não há cabimento para a pro‑
posta moral kantiana e o próprio cumprimento do dever sem eles se
torna apenas uma caricatura da moralidade.
Mas, quer sejamos kantianos quer não, há tópicos que foram
por Kant «inventados» (naquele sentido em que Schneewind fala da
invenção da autonomia por parte de Kant) ou por ele criados e tra‑
balhados para equacionar o problema da moralidade e que fazem
hoje parte do vocabulário que usamos, seja quando abordamos
questões éticas e jurídicas, seja até nos textos das leis constitucionais
dos Estados democráticos e nas declarações de direitos universais
e fundamentais do homem, da criança, da mulher, dos povos, do­
cumentos que regem actualmente a convivência entre os homens e
entre os povos e que, para todos os efeitos, constituem uma espécie
de norma moral mínima reconhecida pelo consenso tendencialmen‑
te universal dos povos (se bem que muito longe de ser universal‑
mente cumprida!). Desse vocabulário que herdámos de Kant cons‑

27
  Michel Foucault, Dits et écrits, Gallimard, Paris, 1994, vol. iv, pp.  572­
‑578, 631, 685­‑687; vol. iii, p. 794.

81

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tam tópicos tais como a autonomia, a liberdade, o respeito pelo ser
humano enquanto pessoa, a dignidade humana, a humanidade
como um fim em si mesmo. Não faltam, é claro, os que consideram
que tudo isto não passa da generalização de uma visão antropo­
‑política etnocêntrica, europeia ou ocidental! 28
Passo a referir alguns programas explícitos de retomação da éti‑
ca kantiana ou de alguns dos seus elementos.

3.1. Seja, em primeiro lugar, John Rawls e a inspiração kantiana


do seu programa filosófico proposto na obra Uma Teoria da Justiça
(1971) e explicitado noutros seus escritos posteriores. Os elementos
da ética kantiana são intencionalmente arrancados por Rawls ao seu
contexto sistemático de origem, o que tem dado razão aos que con‑
testam o carácter genuinamente kantiano da sua concepção 29. Não
discutirei aqui essa questão. É certo que há uma decisão arbitrária
sobre o que é essencial e acessório na ética kantiana: é essencial o que
serve a teoria que se quer fundar, e acessório e espúrio tudo o mais.
Procede­‑se a uma espécie de distinção entre a letra e o espírito da
proposta kantiana, libertando­‑a de elementos que, não sendo neces‑
sários à sua consistência, perturbam a sua compreensão. Já alguns
kantianos da primeira hora (Fichte, Schiller) não se entendiam entre
si quanto à questão de saber onde acaba a letra e começa o espírito
do Kantismo. Poder­‑se­‑ia mesmo perguntar se Kant, caso vivesse
hoje, não reformularia a sua proposta em nova linguagem, não a
apresentaria de modo diferente. Rawls considera legítimo o seu es‑
forço por libertar a fecundidade da proposta kantiana da ­ganga da
linguagem e das categorias e envolvimento sistemático­‑metafísico
em que foi inicialmente proposta, pois dado o seu valor substantivo

28
  V. a discussão desta interpretação no ensaio de Nythamar de Oliveira,
«Direitos humanos e universalizabilidade: Uma interpretação kantiana», Kant:
Posteridade e Actualidade, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, Lis‑
boa, 2006, pp. 685­‑696. V. também Heiner Bielefeldt, «Towards a Cosmopolitan
Framework of Freedom: The Contribution of Kantian Universalism to Cross­
‑Cultural Debates on Human Rights», Jahrbuch für Recht und Ethik, 5 (1997),
pp.  349­‑362; Clélia Aparecida Martins, «Em defesa de uma ética universal»,
Revista Portuguesa de Filosofia, 59 (2003), pp. 221­‑238.
29
  V. Christine Korsgaard, «Rawls and Kant: on the Primacy of the Prac‑
tical», Proceedings of the Eight International Kant Congress, Memphis, 1995, ed.
H. Robinson, vol. i, Milwaukee, Marquette University Press, 1995; Ottfried Höffe,
«Is Rawls’s Theory of Justice Really Kantian?», Ratio, 26 (1984), pp.  103-124.

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ela não merece ficar refém dessa linguagem e desse envolvimento.
Ouçamo­‑lo: «Descrevi como sendo kantiana a concepção de equida‑
de contida nos princípios da justiça.... Mas não quero dizer com isso
que esta concepção seja literalmente a concepção de Kant... Tudo de‑
pende do que se considera como essencial. A perspectiva de Kant
está marcada por um certo número de dualismos, em particular os
dualismos entre o necessário e o contingente, a forma e o conteúdo,
a razão e o desejo, os noumena e os phaenomena. Abandonar estes
­dualismos tal como ele os pensou é, para muitos, abandonar aquilo
que é distintivo desta teoria. Eu penso de modo diferente. A concep‑
ção moral de Kant tem uma estrutura característica que é mais clara‑
mente discernível quando estes dualismos não são tomados no sen‑
tido que ele lhes deu, mas reinterpretados e a sua força moral
reformulada dentro do objectivo de uma teoria empírica. Um dos
objectivos de Uma Teoria da Justiça era indicar como isso pode ser
feito.» 30 E noutro lugar: «Para desenvolver uma concepção kantiana
viável da justiça, a força e o conteúdo da doutrina de Kant tem de ser
desvinculada das suas bases no idealismo transcendental.» 31
Mas se é legítima a operação, podemos todavia perguntar: que
resta dessa depuração dos elementos característicos e dos cenários
envolventes da filosofia moral kantiana? Restam alguns pressupos‑
tos mínimos, e sobretudo resta a sua estrutura, o seu esqueleto, um
esquema processual, e é isso que se aproveita para a refundação de
uma teoria da justiça. A decisão sobre o que é essencial e de validade
actual no pensamento ético de Kant e o que é acessório pode parecer
arbitrária, por considerar acessório o que outros consideram funda‑
mental. Mas não praticou Kant um tipo semelhante de hermenêutica
a propósito de Platão, pretendendo entendê­‑lo melhor — sobre o sig‑
nificado das ideias ­— do que o próprio se havia entendido a si mes‑
mo (ihn sogar besser zu verstehen, als er sich selbst verstand)? 32
Com a sua nova «Teoria da Justiça», Rawls propunha­‑se contra‑
riar o utilitarismo e pragmatismo dominantes no pensamento ético­
‑jurídico anglo­‑saxónico da primeira metade do século  xx. Fá­‑lo
inscrevendo­‑se na linha do contratualismo liberal, onde se encontra
com Locke e sobretudo com Kant, e transgride os limites tradicio‑

  J. Rawls, «A Kantian Conception of Equality», Cambridge Review, Febru‑


30

ary, 1975, 98.


31
  J. Rawls, «The Basic Structure as Subject», American Philosophical Quar‑
terly, 14, 1977, 165.
32
  KrV B 370, Ak III, 246.

83

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nais da ética colocando­‑se numa zona onde o ético, o político e o
jurídico se intersectam. Um dos seus grandes méritos consiste em
ter recuperado a amplitude da noção kantiana de filosofia prática e
ter mostrado a fecundidade da moral kantiana no plano político­
‑jurídico. E esse trabalho, iniciado com Uma Teoria da Justiça, culmi‑
na numa sua outra obra fundamental: A Lei dos Povos 33. Se ali eram
os tópicos fundamentais da ética kantiana, tal como expostos na
Fundamentação da Metafísica dos Costumes, aqui são os princípios kan‑
tianos da política, expostos no ensaio de 1795 Para a Paz Perpétua, que
são expressamente assumidos: «A ideia básica é seguir a posição de
Kant tal como delineada na Paz Perpétua e a sua ideia de foedus pacifi‑
cum. Interpreto o seu pensamento de modo a começar com a ideia de
um contrato social da concepção política liberal de um regime demo‑
crático constitucional e estendê­‑la introduzindo uma segunda posi‑
ção original no segundo nível em que os representantes de povos li‑
berais celebrem um acordo com outros povos liberais.... Tudo isto é
consonante com a ideia kantiana de que um regime constitucional
deve estabelecer um Direito dos Povos efectivo com vista a realizar a
liberdade total dos seus cidadãos.» 34 No ensaio «The Idea of an Over‑
lapping Consensus», Rawls afirma expressamente: «Aceito a ideia
de Kant apresentada na Paz Perpétua segundo a qual um estado mun‑
dial seria uma autocracia opressiva ou estaria permanentemente
perturbado por guerras abertas ou latentes entre regiões e pessoas.
Assim é necessário que busquemos princípios que regulem uma
confederação de estados e especificar os poderes dos seus vários
membros.» 35 E só mais uma citação: «Não podemos permitir... que
grandes males do passado e do presente minem a nossa esperança
para o futuro da nossa sociedade enquanto pertencendo a uma So‑
ciedade de Povos decente e liberal no mundo. De outra forma, a con‑
duta ilícita, perversa e demoníaca de outros também nos destruirá a
nós e marcará a sua vitória. Em contrapartida, devemos apoiar e for‑
talecer a nossa força desenvolvendo uma concepção razoável e rea‑
lista de direito político e de justiça aplicável às relações entre povos.
Para alcançar este objectivo seguimos Kant.» 36

  The Law of Peoples, Harvard University Press, Cambridge, Mas. / Lon‑


33

don (1993), 2002.


34
  Ibidem, p. 57.
35
  John Rawls, Collected Papers, ed. Samuel Freeman, Harvard University
Press, Cambridge, Mas. / London, 2001.
36
  A Lei dos Povos, p. 22.

84

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É muito significativo que Rawls descubra em Kant a íntima so‑
lidariedade da moral e da política. É mesmo um dos traços distinti‑
vos do novo interesse pela filosofia ética de Kant o considerá­‑la no
todo da filosofia prática (ética, direito, política, englobando também
aquilo a que Robert Louden chama a «ética impura») e reconher a
razão kantiana como uma razão comum e pública, e não como uma
razão entregue a exercícios monológicos e solipsistas (como a enten‑
de Habermas). Por outro lado, é significativo que realce o carácter
construtivista da ética e da política kantianas, realçando a ideia da
autonomia dos sujeitos racionais e livres, que são chamados a criar
as leis a que eles mesmos se submetem e a participar, pelas suas
deliberações, na instauração daquela ideal mas possível «sociedade
bem ordenada» a que Kant dava o nome de «reino dos fins».
Um dos aspectos característicos da moral kantiana particular‑
mente realçado por Rawls é precisamente o seu construtivismo, tópi‑
co a que dedicou toda uma série de conferências em Abril de 1980 (as
John Dewey’s Lectures na Columbia University) e alguns artigos 37.
O carácter construtivista contrabalança o intuicionismo moral — que
se insinua na invocação do «Faktum der Vernunft» ­— e exprime­‑se
sobretudo no papel atribuído à pessoa na explicitação do que consti‑
tui a essência — a forma, a estrutura e o conteúdo — das normas
morais. Kant pressupõe agentes racionais e livres em situação de
igualdade como fazendo parte de uma sociedade de pessoas em que
cada um dos respectivos membros é legislador autónomo como se
pertencesse a um ideal «reino dos fins». A invocação kantiana da
­autonomia da vontade é outro modo de dizer isso: a lei moral deve
emanar da vontade livre do homem. A máxima da sua acção deve
ser  uma máxima sua e a razão prática deve nela reconhecer­‑se
como instituidora ou «criadora dos seus princípios» (Urheberin ihrer
Principien) 38. Mas, sem perder essa condição, logo tem de sujeitar­‑se
ao teste da sua objectividade e universalidade. A bem conhecida pri‑
meira formulação do imperativo categórico traduz isso mesmo: «Age
apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer
que ela se torne lei universal.» Portanto, o construtivismo moral kan‑
tiano tem em si mesmo o antídoto contra a arbitrariedade moral. Ele

  Destaco: «Kantian Constructivism in Moral Theory», The Journal of Phi‑


37

losophy, LXXVII ( n. 9, September), pp. 515­‑573; «Themes in Kant’s Moral Philos‑


ophy», in R. Beiner / W. J. Booth (eds.), Kant & Political Philosophy, The Contem‑
porary Legacy, Yale University Press, New Haven & London, 1993, pp. 291­‑319.
38
  Kant , Grundlegung, Ak IV, 448.

85

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postula desde a sua génese uma estrutura social de comunidade,
pressupõe seres racionais, iguais e livres que se determinam autono‑
mamente pela sua própria vontade e providencia critérios que nos
podem ajudar a ver o que nas deliberações morais é relevante, seja a
propósito das acções a realizar, ou das situações, das pessoas e das
instituições nelas envolvidas. O construtivismo kantiano sustenta
que a objectividade moral deve ser entendida em termos de um de‑
sejável ponto de vista social construído que todos os participantes
nessa construção possam aceitar. Esta interpretação rawlsiana do
sentido originariamente comunitário da ética de Kant contrasta,
como veremos, com a de Habermas, que acusa a moral kantiana de
ser expressão de uma abordagem monológica, segundo a qual o indi‑
víduo isoladamente testa as suas máximas da acção no foro interno e
na solidão da sua consciência. Por isso, para Rawls não há fosso entre
a moral e a política kantianas: os princípios e pressupostos de uma e
de outra são os mesmos e o que vale na teoria deve valer também na
prática.

3.2. Por seu turno, Karl­‑Otto Apel e Jürgen Habermas preten‑


dem a «transformação», a «reformulação» ou a «correcção» da ética
kantiana, com vista a reciclá­‑la nas suas próprias propostas da «éti‑
ca do discurso» (Habermas) ou «ética da sociedade de comunica‑
ção» (Apel). Kant está sempre no horizonte de ambos, pelo menos
como referência para uma demarcação crítica. Há nuances entre os
dois filósofos, mas o programa, quanto ao essencial, pode considerar­
‑se o mesmo e é tido pelos próprios como sendo­‑o 39.
Habermas não deixa de reconhecer que há algumas afinidades
entre a «ética do discurso» e a moral kantiana, mas prefere subli‑
nhar as diferenças. Assim, segundo o professor de Frankfurt, a ética
do discurso tem sobre a ética kantiana três vantagens essenciais:

1.a Ela permite superar a dicotomia existente na ética kan‑


tiana entre o plano inteligível (dever, vontade livre) e
o  plano fenoménico (inclinações, motivações subjecti‑
vas, instituições políticas e sociais). Segundo Habermas,

39
  V. J. Habermas, «Morality and Ethical Life: Does Hegel’s Critique of
Kant Apply to Discoursive Ethics?», in R. Beiner/W. J. Booth (eds.), ob. cit.,
p. 320; Delamar Volpato Dutra, Kant e Habermas: A Reformulação Discursiva da
Moral ­Kantiana, EDIPUCRS, Porto Alegre, 2002.

86

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a neces­sidade quase transcendental com a qual os sujei‑
tos envolvidos na interacção comunicativa se orientam
eles mesmos para exigências válidas reflecte­‑se apenas
no serem constrangidos a falar e a agir sob condições
idealizadas. O insuperável fosso que Kant viu entre o in‑
teligível e o empírico torna­‑se, na ética do discurso, uma
mera tensão que se manifesta na comunicação quotidia‑
na como a força factual de pressupostos contrafactuais.
2.a ­A «ética do discurso» rejeita o que os seus autores consi‑
deram ser a abordagem monológica de Kant, a qual as‑
sume que o indivíduo testa a sua máxima da acção no
foro interno ou na solidão da sua própria alma. A singu‑
laridade da consciência transcendental de Kant simples‑
mente dá por garantido o prévio entendimento entre
uma pluralidade de egos empíricos, como se a sua har‑
monia fosse pré­‑estabelecida. Na ética do discurso não é
assim, mas vê­‑se o entendimento partilhado a respeito
da generalizabilidade do interesse como resultado de
um discurso público construído intersubjectivamente.
3. ­A «ética do discurso» corrige a insatisfatória justificação
a

da moralidade que Kant dá apelando a um «facto da


razão», que se impõe incondicionalmente como consciên­
cia do dever ou imperativo categórico. Pelo contrário,
segundo a ética do discurso, a fundamentação da nor‑
ma obtém­‑se por um processo de argumentação entre
os sujeitos morais, um procedimento que postula o
­seguinte princípio: só podem pretender ser válidas
aquelas normas que podem encontrar­‑se no consenso
de ­todos aqueles que estão envolvidos no seu papel
como participantes num discurso prático. Uma tal refor­
mu­lação discursiva do imperativo categórico conduz
­também a uma transformação no princípio de universa‑
lização das normas, que adoptaria então a seguinte for‑
mulação: para uma norma ser válida, as consequências
e os efeitos laterais da sua observância geral para a sa‑
tisfação dos interesses particulares de cada pessoa de‑
vem ser aceitáveis por todos. Neste sentido, a ética do
discurso evitaria melhor do que a kantiana o risco de,
ao pretender justificar a universalidade da norma mo‑
ral, incorrer na «falácia etnocêntrica», generalizando
como um princípio moral válido para todos aquilo que
é simplesmente a expressão dos preconceitos do ho‑

87

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mem adulto, do homem branco, do homem culto, do
homem ocidental ou mesmo do sexo masculino. A ética
do discurso evitaria esse risco, na medida em que parte
do princípio de que cada indivíduo que seriamente se
comprometa a participar na argumentação, ao fazer isso
aceita implicitamente alguns pressupostos pragmáticos
gerais que têm um conteúdo normativo. O princípio
moral pode pois ser derivado do conteúdo destes pres‑
supostos da argumentação desde que se conheça no mí‑
nimo o que ele significa para justificar uma norma da
acção. Por outro lado, fazendo­‑se eco das críticas de He‑
gel à ética kantiana, que sublinhavam a existência nela
de uma contradição entre a lei moral e a vida, os defen‑
sores da ética do discurso pretendem alargar a concep‑
ção deontológica da ética incluindo nela os aspectos
estruturais que possam ser considerados como condi‑
ções de uma vida feliz.

O programa da «ética da sociedade de comunicação» ou «ética


do discurso» é desenvolvido a partir dos pressupostos do pragma‑
tismo de Peirce e com explícita recusa dos pressupostos arquitectó‑
nicos gerais do sistema da moral kantiana, acusada de monológica
e solipsista, de formalista e descontextualizada da realidade histó‑
rica efectiva da vida dos seres humanos a quem se destina. E, toda‑
via, nestes programas há ainda uma referência explícita à moral
kantiana, que é fixada numa interpretação redutora, criticada e
mesmo rejeitada, enquanto, por outro lado, se pretende ainda
submetê­‑la a uma «transformação» ou «correcção», abandonando a
filosofia da consciência e propondo uma fundamentação não­
‑metafísica da ética. Mas também aqui cabe a pergunta que fizemos
a propósito de Rawls: que resta da moral kantiana depois desta
«transformação pós­‑metafísica» e desta «correcção pragmático­
‑discursiva»? Resta o princípio de universalidade (ou de universa‑
lização) das regras ou a suposição de que a ética deve valer para
todos os seres que supostamente usam a razão. Mas a razão de que
aqui se trata não é a razão prática de que falava Kant, mas a razão
dada na linguagem, na discursividade e na comunicação. Em suma:
substitui­‑se o «eu penso» kantiano por um «eu falo» ou um «eu
argumento»; a lei moral como factum da razão e fundamento da
ética é substituída pelo a priori da «sociedade de comunicação»
(Kommunikationsgemeinschaft); o imperativo categórico e suas for‑
mulações são substituídos pelo princípio de universalizabilização

88

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pragmático­‑transcendental que se pode formular nestes termos:
«Toda a norma válida deve satisfazer esta condição, a saber: que os
efeitos colaterais e as consequências que previsivelmente se produ‑
ziriam a partir da sua aplicação geral a favor da satisfação dos inte‑
resses de cada um, possam ser aceites por todos os envolvidos e
possam ser preferidas aos efeitos das regulamentações possíveis
alternativas que se conheçam.» Em vez da ideia kantiana de um
«reino dos fins» ou comunidade ética, invoca­‑se a ideia reguladora
de uma comunidade ideal de discurso ou de argumentação, e em
vez da suposta racionalidade dada propõe­‑se a ideia de uma con‑
sensualidade a construir, isto é, a possibilidade de serem consensua­
lizadas todas as normas por parte de todos aqueles que por elas são
afectados 40.
Na chamada «ética da sociedade de comunicação» ou «ética
do discurso» conserva­‑se, sem dúvida, um aspecto essencial da
ética kantiana, que é o princípio de universalidade (ou de univer‑
salizabilidade), embora transformado numa feição linguístico­
‑pragmática, discursiva e argumentativa. Mas esta transformação
só parece reforçar a tónica do universalismo abstracto que, por ou‑
tro lado, tanto Apel como Habermas apontavam como vício da éti‑
ca de Kant. Alain Renaut é muito crítico quanto à pertinência desta
tentativa de substituir o paradigma do sujeito prático kantiano
pelo paradigma pragmático peirciano da comunicação e considera
como sendo ainda e apesar de tudo mais fecunda a perspectiva
original de Kant, mormente se a subjectividade prática integrar o
princípio kantiano de reflexão tal como este se propõe na terceira
Crítica. Escreve o filósofo francês: «A teoria kantiana do sujeito tal
como culmina na concepção do sujeito como sujeito prático,

  Karl­‑Otto Apel, «Das Apriori der Kommunikationsgemeinschaft und


40

die Grundlagen der Ethik. Zum Problem einer rationalen Begründung der Ethik
im Zeitalter der Wissenschaft», idem, Transformation der Philosophie, Suhrkamp,
Frankfurt/M., 2, pp.  358 e segs.; J. Habermas, Diskurs und Verantwortung,
Suhrkamp, Frankfurt/M., 1988; K.­‑O. Apel, «Diskursethik und Verantwortung‑
sethik» (La ética del discurso como ética de la responsabilidad. Una transfor‑
mación posmetafísica de la ética de Kant», in idem, Teoria de la verdad y ética del
discurso, Paidós, Barcelona, 1991; «Diskursethik ­— Notizen zu einer Begründun‑
gsprogramm», idem, Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln, Suhrkamp,
Frankfurt 1983, p. 75; idem, «Necesitamos en la actualidad una ética universalista,
o estamos ante una ideologia de poder eurocêntrica?», in V. D. García Marz ­— V.
Martínez Guzmán (orgs.) ­— Teoria de Europa, NAU Llibres, Valencia, 1993, pp. 9­‑18.

89

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parece­‑me permanecer a este respeito, filosófica e intelectualmen‑
te, o nosso presente.» 41
Há, todavia, quem interprete o programa da ética do discurso
como sendo claramente de inspiração kantiana e como sendo mesmo
uma versão da filosofia prática de Kant transposta para o âmbito da
moralidade pública. É o caso de Herlinde Pauer­‑Studer, que escreve:
«A ética do discurso de Habermas representa uma expressão especí‑
fica do pensamento prático de Kant, na medida em que reconstrói os
princípios kantianos mormente no contexto da moralidade pública...
Ao concentrar­‑se no projecto de reescrever a ética kantiana como
­moralidade pública, Habermas procura superar a filosofia metafísica
do sujeito (Subjektphilosophie). O raciocínio que subjaz a este propósito
é o seguinte: a ética de Kant, ao colocar o foco na avaliação das atitu‑
des interiores [Gesinnungen] de um indivíduo, permanece confinada
à mente racional do sujeito; mas a moralidade como um instrumento
da vida pública tem de transcender a avaliação das atitudes
individuais.» 42 Há igualmente quem acuse a proposta habermasiana
de todos os vícios — de formalismo, de vacuidade e de intelectualis‑
mo ­— que o próprio Habermas atribuía à ética kantiana 43.

3.3.  No espaço da filosofia anglo­‑saxónica, e mesmo nos


­ stados Unidos da América, sobretudo a partir da década de 70 do
E
­século passado, o interesse pela filosofia moral kantiana tem­‑se ma‑
nifestado com uma grande vitalidade. 44 Não deixa de ser surpreen‑

  A obstinação destes autores numa leitura muito parcial e desfocada da


41

moral kantiana persiste em ensaios recentes que escreveram a propósito do


tema kantiano da «paz perpétua»: K.­‑O. Apel, «Kant’s ‘Toward Perpetual Pea‑
ce’ as Historical Prognosis from the Point of View of Moral Duty»; J. Habermas,
«Kant’s Idea of Perpetual Peace...», in Perpetual Peace: Essays on Kant’s Cosmopo‑
litan Ideal, ed. by J. Bohman e M. Lutz­‑Bachmann, MIT Press, Cambridge, Ma. /
London, 1997, pp. 79­‑110 e pp. 113­‑153, respectivamente. Para uma «mediação»
entre a «ética do discurso» e a ética kantiana, v. Albrecht Wellmer, Ethik und Dia‑
log. Elemente der moralischen Urteils bei Kant und in der Diskursethik, Suhrkamp,
Frankfurt/M., 1986, sobretudo o cap. 3, pp.  114­‑172: «Ansatze einer Vermit‑
tlung zwischen Kantischer und Diskursethik».
42
  «Introduction» a Constructions of Practical Reason, pp. 8­‑9.
43
  V. «Seyla Benhabib: Discourse Ethics and Minority Rights», in Herlinde
Pauer­‑Studer (ed.), Constructions of Practical Rason. Interviews on Moral and Po‑
litical Philosophy, Stanford University Press, Stanford, Cal., 2003, pp. 29­‑49.
44
  Uma amostra desse interesse pode ver­‑se na antologia de ensaios edita‑
da por Mark Timmons (Kant’s Metaphysics of Morals. Interpretative Essays, Oxford

90

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dente este renascimento do interesse, precisamente em países domi‑
nados pela tradição filosófica do empirismo, do utilitarismo e do
pragmatismo, uma tradição alheia ou mesmo adversa às perspecti‑
vas não só da filosofia europeia continental, como sobretudo das fi‑
losofias conotadas com o idealismo e o racionalismo. Por certo, tal
renovo de interesse está directa ou indirectamente relacionado com
a atenção que a filosofia moral kantiana mereceu no pensamento de
John Rawls. De facto, alguns (ou algumas, já que um número muito
significativo destes novos leitores da ética kantiana são mulheres)
dos protagonistas desta revalorização da ética kantiana assumem­‑se
como discípulos de Rawls, embora as suas leituras da filosofia prá‑
tica de Kant difiram, na postura hermenêutica e nos objectivos, das
do autor de Uma Teoria da Justiça, nomeadamente, pelo propósito
que as anima de reconstruirem a coerência interna do pensamento
ético de Kant para chegarem a perceber a proposta kantiana en‑
quanto tal, em vez de tentarem aproveitar peças isoladas dela para
resolver problemas éticos actuais ou como peças para construir sis‑
temas de pensamento próprios. Acreditam estes novos intérpretes
que só depois de restituído à sua coerência orgânica, liberto tanto
das caricaturas a que o reduzem os seus críticos como das transfor‑
mações ou correcções arbitrárias a que o submetem os que dele se
aproveitam, pode o paradigma kantiano da ética ser devidamente
apreciado e só então também é possível ver em que medida pode ele
ou não contribuir para iluminar os problemas éticos da ­actualidade.
O que sobretudo caracteriza estes mais recentes intérpretes da
filosofia moral kantiana é a comum atitude que os leva a ler e a tentar
compreender a proposta de Kant antes de criticá­‑la e antes até de ten‑
tarem aproveitar ou adaptar algumas das ideias kantianas para os
respectivos programas filosóficos. Mas um outro traço distintivo des‑

University Press, Oxford, 2004), que têm por tema os tópicos da Metaphysik der
Sitten, obra tardia de Kant quase sempre esquecida ou mesmo desprezada pe‑
los intérpretes. A obra contém (pp. 409­‑438) uma ampla e selecta bibliografia
organizada tematicamente por Joshua Glasgow, a qual dá bem ideia desta ver‑
dadeira redescoberta da filosofia moral kantiana e dos tópicos e campos em que
tal redescoberta se tem revelado mais fecunda. O facto de nesta secção tomar‑
mos por objectivo da nossa recensão a mais recente hermenêutica anglófona
da filosofia prática kantiana não significa que a tarefa de reavaliação da Moral
de Kant não seja igualmente empreendida noutros contextos e tradições. Refiro,
apenas como um inspirador exemplo, a obra de Michèle Cohen-Halimi, Enten‑
dre raison. Essai sur la philosophie pratique de Kant, Vrim, Paris, 2004.

91

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tes novos hermeneutas da filosofia moral kantiana é o facto de não
fugirem dos textos canónicos, indo procurar noutros textos kantianos
menos óbvios a genuína filosofia prática de Kant. Os novos herme‑
neutas enfrentam os textos-chave em que se expõe a ética kantiana e
não fogem da abordagem de tópicos aparentemente já resolvidos e
pouco agradáveis por estarem inflacionados de críticas e de mal­
‑entendidos, como o dever, o imperativo categórico, o ponto de vista
dos noumena e dos phaenomena, a ideia de reino dos fins e outros seme‑
lhantes, ou simplesmente banalizados, como acontece com a ideia do
homem como um fim em si mesmo. Orienta­‑os a procura da coerên‑
cia da proposta kantiana, na tentativa de perceberem quais os proble‑
mas específicos a que é resposta, suspeitando que, por detrás das fór‑
mulas que têm sido objecto de apreciações sumárias, se pode talvez
oferecer uma nova compreensão da condição moral dos seres huma‑
nos muito mais rica e complexa do que se poderia imaginar, a qual,
porém, só se revela a quem estiver disposto a ouvir o que o filósofo
quis realmente dizer. Isto não significa que aceitem incondicional‑
mente as perspectivas de Kant. Mas que mesmo a crítica, se a ela hou‑
ver lugar, só pode nascer da justa compreensão do que o filósofo pro‑
pôs, e não das ficções levianas e distorcidas dos seus intérpretes
apressados ou críticos por antecipação. Por outro lado, os novos her‑
meneutas recusam a estratégia de extrair fórmulas ou declarações do
contexto orgânico de que fazem parte no ­pensamento kantiano para
as exibir isoladas como se elas representassem totalmente esse pensa‑
mento. Recusam igualmente as caracterizações habituais da ética
kantiana como deontológica, como ética do dever, como ética forma‑
lista, e mostram como nela estão presentes os aspectos que nela são
considerados omissos, desde que se tenha em consideração os vários
escritos de Kant sobre a problemática ética e haja o esforço de ler tudo
o que Kant disse sobre as questões em debate, e não apenas uma ou
outra passagem de uma ou outra página, de uma ou outra obra.
Passo a referir individualizadamente alguns desses recentes
restauradores da filosofia moral kantiana 45. Seja, antes de mais,

  Na impossibilidade de proceder aqui a uma recensão de todos esses


45

redescobridores da filosofia prática kantiana, a simples menção, mesmo não


exaustiva, dos seus nomes e de algumas das suas obras mais representativas já
dá para fazer uma ideia do alcance desta nova orientação da hermenêutica do
Kantismo, da qual ainda muito se pode esperar: Marcia W. Baron (Kantian Ethics
Almost without Apology, Cornell University Press, Ythaca, NY, 1995; «Love and
Respect in the Doctrine of Virtue», in M. Timmons, ed., ob. cit., pp. 391­‑407); Allen

92

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Onora O’Neill 46, professora nas Universidades de Essex e de Cam‑
bridge, a qual tem tentado mostrar a coerência do pensamento ético
kantiano e a sua capacidade para iluminar as questões éticas da ac‑
tualidade, nomeadamente no que se refere à racionalidade da acção,
aos direitos do homem e às relações interpessoais. O’Neill começa
por pôr em evidência o carácter originariamente político da empre‑
sa crítica e da primeira Crítica, fazendo dela uma leitura macroestru‑
tural e destacando as metáforas políticas e jurídicas sobre as quais
está construída. Assumindo uma declarada posição anti­‑empirista,
propõe­‑se devolver Kant a si próprio, lendo de novo as suas obras e
tentando compreender os seus argumentos, em vez de criticá­‑lo ou
usá­‑lo sem saber qual a coerência em que fazem sentido as suas
ideias ou tópicos de que nos reclamamos herdeiros, tais como a li‑
berdade, a autonomia, o respeito pela pessoa. Nomeadamente, criti‑
ca aqueles que, como Rawls, pretendem aproveitar alguns elemen‑
tos da filosofia moral kantiana que consideram recuperáveis,
embora à custa de os libertarem do enquadramento e dos pressu‑
postos metafísicos de origem. Mas a sua crítica dirige­‑se também
àqueles que, como Putnam, reconhecem por certo a pertinência da
desconstrução da metafísica tradicional levada a cabo por Kant na
sua Crítica da Razão Pura, ao mesmo tempo que consideram desti­
tuída de todo o sentido a proposta kantiana em filosofia moral.
A ideia central da leitura da ética kantiana proposta por O’Neill
caracteriza­‑se por tomar em toda a seriedade e consequência a tese
do primado do prático como ideia condutora não só da filosofia prá‑
tica kantiana mas de todo o programa da crítica kantiana da razão.
Segundo O’Neill, o imperativo categórico preside a todo o trabalho
da crítica da razão, tanto teorética como práctica. Escreve a autora:

Wood (Kant’s Ethical Thought, Cambridge University Press, 1999); Tomas E. Hill,
Jr. (Autonomy and Self­‑Respect, Cambridge ­University Press, Cambridge, 1991;
Dignity and Practical Reason in Kant’s Moral Theory, Cornell University Press,
Ythaca, NY, 1992; Respect, Pluralism, and Justice: Kantian Perspectives, Oxford
University Press, Oxford, 2000); Stephen Engstrom (Aristotle, Kant and the Stoics:
Rethinking Happiness and Duty, Cambridge University Press, Cambridge, 1996);
Onora O’Neill (Constructions of Reason: Explorations of Kant’s Practical Philosophy,
Cambridge University Press, Cambridge, 1989); Barbara Herman (The Practice
of Moral Judgment, Harvard University Press, Cambridge, MA, 1993); Jerome
Schneewind, Robert Louden, Nancy Sherman, Christine Korsgaard (v. infra).
46
  Constructions of Reason. Explorations of Kant’s Practical Philosophy, Cam‑
bridge University Press, 1989.

93

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«Kant é reverenciado pela sua incondicional defesa da liberadade
humana e respeito pelas pessoas e pela sua insistência em que a ra‑
zão pode guiar a acção. Ele é também injuriado por ter dado uma
justificação metafisicamente absurda da base da liberdade e uma
intermitentemente repelente e ao mesmo tempo insípida justifica‑
ção das obrigações humanas. Muitos proponentes contemporâneos
de ética ‘Kantiana’ pretendem ficar com a parte mais agradável das
suas conclusões éticas sem as perturbações metafísicas. Esperam
fundar uma concepção kantiana da justiça e dos direitos sobre gros‑
seiras concepções empiristas do eu, da liberdade e da acção. Nestes
ensaios eu tomei uma rota diferente. Tentei situar a ética de Kant no
contexto das suas próprias concepções de razão, acção e liberdade,
demonstrar que estas não devem ser lidas como uma extravagância
metafísica e mostrar que a sua teoria ética nem é obtusamente vazia
nem inexoravelmente estúpida. A ideia que governa esta leitura da
empresa kantiana é a de que temos de tomar a sério a ideia da crítica
da razão, pois desta decorre quase tudo o mais. As verdadeiras nor‑
mas da razão têm de ser justificadas: se elas nem são dadas nem
auto­‑evidentes, podem ter um freio recursivo e não uma justificação
fundacionalista. A filosofia deve começar com a tarefa de mostrar
porque é que algumas normas ou procedimentos para orientar o
nosso pensamento devem possuir autoridade para nós e ser tidas
como normas de razão. Esta tarefa inicial é prática: a empresa teoré‑
tica não pode ir por diante sem que as normas da razão sejam esta‑
belecidas. Em conformidade, o princípio a que Kant chama «o su‑
premo princípio da razão prática» ­— o imperativo categórico — tem
de ser central não apenas para a sua ética mas para toda a sua
filosofia». 47
O’Neill considera que, se o imperativo categórico é central para
o pensamento de Kant, então devemos questionar não apenas as
tentativas para dar à ética «kantiana» uma feição empirista, mas
também a estratégia igualmente popular de separar a filosofia prá‑
tica de Kant da sua filosofia teorética. Desenvolvendo uma interpre‑
tação austera de alguns dos mais familiares textos kantianos, O’Neill
consegue responder a muitas das críticas dos comunitaristas a res‑
peito da abstração na ética kantiana e dá a ver domínios de raciocí‑
nio prático frequentemente negligenciados mas muito fecundos e
ao mesmo tempo mostra o infundado das críticas de formalismo

47
  Ibidem, p. ix.

94

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vazio e de prescritivismo rígido feitas à moral kantiana e revela esta
muito mais como uma ética de princípios do que como uma ética de
regras, na qual se dá mais ênfase às obrigações do que aos direitos e
na qual a sensibilidade e a afectividade, longe de serem expulsas,
antes são requeridas para o contexto da moralidade.
Também Barbara Herman, na sua obra The Pratice of Moral Judg‑
ment 48 pretende romper com as interpretações estereotipadas da éti‑
ca kantiana, convencida que está de que a visão que o filósofo tem
da vida moral é muito mais complexa e subtil do que os seus intér‑
pretes e críticos dão a entender. Ao contrário daqueles que evitam
certos textos kantianos, porque são difícies ou porque parecem pro‑
por soluções que não são simpáticas, esta intérprete obriga­‑se a um
contínuo diálogo com os textos partindo do pressuposto de que a
proposta que eles expõem deve fazer sentido, mesmo que esse sen‑
tido já não nos sirva. Da sua leitura emerge um Kant que quase sur‑
preende pela acutilância das suas perspectivas, muito mais próxi‑
mas do nosso melhor desejo do que ousaríamos suspeitar.
Referência especial merece também Christine M. Korsgaard,
Professora da Universidade de Harvard e da Universidade de Chi‑
cago, que igualmente se demarca, consciente e declaradamente, das
três tradições hermenêuticas dominantes no espaço filosófico an‑
glófono: a empirista, a analítica e a pragmatista. Sensível quer à re‑
levância histórica quer à complexidade textual da proposta kantia‑
na, Kors­gaard confronta a moral de Kant com outros paradigmas
do pensamento ético que tradicionalmente foram apresentados
como sendo­‑lhe antagónicos, ao mesmo tempo que põe em relevo a
capacidade das posições kantianas para iluminar os problemas éti‑
cos contemporâneos. Rejeitando a visão tradicional e estereotipada
da ética kantiana, que a apresenta como tendo uma visão fria da
vida moral, na qual se enfatiza o dever deixando de lado a afectivi‑
dade e os valores, a autora reconstrói a filosofia moral de Kant na
sua coerência e é nessa medida que consegue mostrar também a sua
fecundidade para suscitar e equacionar questões práticas das rela‑
ções humanas do quotidiano com relevância ética e política. Esta
discípula de Rawls desenvolve um consequente e interessante pro‑
grama de reconstrução da filosofia prática com base em pressupos‑
tos kantianos reinterpretados na sua organicidade e no seu contexto
histórico (o que a distingue do próprio Rawls, mas sobretudo de

48
  Harvard University Press, Cambridge, Mas. / London, 1993.

95

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Habermas e de Apel) 49. Entre os tópicos que desenvolve está o da
conciliação e da complementaridade de Kant e de Aristóteles, des‑
tacando, mais do que as oposições, os pontos de afinidade entre a
ética aristotélica da virtude e da felicidade e a ética kantiana do
dever 50. Korsgaard desmonta os estereótipos a respeito da ética
kantiana e as críticas que comummente lhe são feitas, segundo os
quais ela é uma ética deontológica que não tem em consideração os
fins da acção, que é uma Gesinnungsethik confinada ao ponto de vis‑
ta da consciência individual, que não atende à dimensão intersub‑
jectiva da moralidade, que despreza a dimensão da afectividade e
da felicidade na vida ética, que exacerba a dimensão da universali‑
dade da lei sem ter em conta as condições concretas e particulares
da acção. Em contrapartida, sublinha a força e o carácter público e
normativo da linguagem e da razão. Mas, acima de tudo, coloca o
princípio de humanidade expresso na fórmula do imperativo cate‑
górico, que considera ser a melhor fórmula para trabalhar com os
problemas morais concretos. A partir desta fórmula desenvolve
uma teoria do valor segundo a qual são os seres humanos, enquan‑
to seres capazes de uma racionalidade prática e considerados como
fins em si mesmos, que conferem valor às coisas e, em vez de ler
nesta «fórmula da humanidade» um preconceito antropocêntrico,
como o viu Hannah Arendt e Hans Jonas, Korsgaard vê antes nesta
teoria kantiana do valor um princípio capaz de ir ao encontro até
das perspectivas ambientalistas e ecológicas no plano ético. Escreve
a autora: «Dois temas dominam a interpretação de Kant que eu ofe‑
reço. O primeiro é a teoria do valor que eu associo à fórmula da
humanidade de Kant. Kant difere dos realistas e dos empiristas não
apenas quanto aos objectos aos quais atribui valor ou no modo
como categoriza as diferentes espécies de valor, mas na explicação
que dá a respeito de porque é que existe algo como o valor no mun‑
do. De acordo com Kant nós conferimos valor aos objectos das nos‑
sas escolhas racionais. Ele defende que a concepção de nós próprios

  Da bibliografia kantiana da autora, v., sobretudo: The Sources of Norma‑


49

tivity, Cambridge University Press, Cambridge, 1996; Creating the Kingdom of


Ends, Cambridge University Press, Cambridge, 1996.
50
  Sobretudo no ensaio «From Duty and for the Sake of the Noble: Kant and
Artistotle on Morally Good Action», in Stephen Engstrom and Jeniffer Whiting
(eds.), Aristotle, Kant and the Stoics. Rethinking Happiness and Duty, Cambridge
U. P., 1996, pp.  203­‑236. E também em «Aristotle and Kant on the source of
value», in Creating the Kingdom of Ends, pp. 225­‑248.

96

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como ‘fins­‑em­‑nós­‑mesmos’ é um pressuposto das escolhas racio‑
nais. Escolher algo é tomá­‑lo como sendo digno de ser levado a
cabo, e quando escolhemos coisas porque elas são importantes para
nós estamos de facto a considerar­‑nos a nós mesmos como sendo im‑
portantes. A reflexão sobre este facto remete­‑nos para a concepção
da nossa humanidade como uma fonte de valor. Esta é a base da Fór‑
mula da Humanidade de Kant, o princípio segundo o qual se de‑
vem tratar todos os seres humanos como fins­‑em­‑si­‑mesmos. O se‑
gundo tema refere­‑se à famosa, ou infame, doutrina kantiana dos
dois pontos de vista como suporte da filosofia moral, o dos noumena
e o dos phaenomena.» 51
Christine Korsgaard recusa a ideia de que, ao propor essa dis‑
tinção, Kant está a evadir­‑se para o domínio metafísico ou a supor
a existência de dois mundos, ou um modo de existência misteriosa
num outro mundo diferente deste. Pelo contrário, ela recoloca essa
estratégica distinção no plano em que Kant a colocou: como um
«duplo ponto de vista», que temos de tomar necessariamente em
consideração se queremos salvar a vida moral e, em última instân‑
cia, a dignidade dos seres humanos. O simples facto de podermos
pensar essa possibilidade já é uma prova de que não estamos abso‑
lutamente encadeados ao mundo dos fenómenos e à sua lei deter‑
minista. Escreve a autora: «Tratar os outros como fins em si mesmos
não é matéria de descoberta de um facto metafísico a respeito deles
— que eles são livres e racionais e por isso têm valor — e então
agimos de acordo com isso. Quando se respeita a humanidade dos
outros não se olha para eles de modo algum como objectos do co‑
nhecimento — como phaenomena. Pelo contrário, olhamo­‑los como
seres activos, como autores dos seus pensamentos e escolhas, como
noumena. Respeitar os outros como fins em si mesmos é tratá­‑los
como concidadãos do ponto de vista da razão prática. Significa fa‑
zer as nossas escolhas com eles ou pelo menos de um modo tal que
seja aceitável do seu ponto de vista — isto é, escolher máximas que
possam servir como leis universais. Respeitar a humanidade dos
outros é pensar e agir como um cidadão legislador no Reino dos
Fins.» 52
É também o espírito de reconstrução orgânica que orienta os
vários escritos sobre a filosofia prática kantiana de Tomas E. Hill,

51
  Ob. cit., pp. ix­‑x.
52
  Ob. cit., pp. xi­‑xii.

97

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Jr. 53, embora sem a preocupação de uma rigorosa exegese textual e
ainda menos de tirar soluções à força da teoria kantiana. O autor
confessa que o seu projecto de tentar entender e reconstruir a teoria
kantiana da razão prática se revelou por vezes penoso, mas pensa
ter chegado a posições próprias e desenvolvido temas que, pelo me‑
nos quanto ao espírito, considera serem kantianos, embora não este‑
ja preocupado em defender a etiqueta «kantiana», e ainda menos
em invocar a aura de autoridade que ela poderia evocar. Antes, o
que lhe interessa é articular as soluções propostas com os problemas
em questão, compará­‑las com outras propostas de pensameno ético,
na esperança de que elas se revelem como alternativas mais com‑
preensíveis, e talvez mesmo mais plausíveis, tendo em conta o pro‑
pósito que o seu autor tinha em vista.
Das obras recentes que reapreciam o alcance da filosofia moral
kantiana, no contexto da reflexão dos modernos sobre as questões
éticas, há duas que se destacam: Lectures on the History of Moral Phi‑
losophy, de John Rawls 54, obra desenvolvida a partir do que come‑
çou por ser um curso sobre Kant do final dos anos 70 e que nos anos
seguintes se ampliou à abordagem também de outros filósofos mo‑
dernos, como Leibniz, Hume e Hegel, importantes para contrastar
as posições kantianas. E a obra de J. B. Schneewind, The Invention of
Autonomy. A History of Modern Moral Philosophy  55. No prefácio desta
obra lê­‑se: «A origem deste livro reside na filosofia moral de Kant e
nos inúmeros aspectos que dela me escapavam. Pareceu­‑me que te‑
ria melhor sorte de os compreender se eu focasse as questões às
quais Kant pensava dever responder quando começou a considerar
o assunto. […] Projectei desde o princípio fazer de Kant o ponto fo‑
cal deste estudo porque pensei e penso ainda que a sua concepção
da moral como autonomia fornece o melhor dos pontos de partida
legados pelos filósofos do passado para uma compreensão filosófica
contemporânea da moral.» 56 A obra termina com esta declaração:
«Podemos certamente sustentar que a nossa época suscita os seus
próprios problemas à filosofia moral, mas podemos também pensar

  Autonomy and Self­‑Respect, Cambridge University Press, Cambridge, 1991;


53

Dignity and Practical Reason, Cornell University Press, Ithaca, NY, 1992; Respect,
Pluralism and Justice: Kantian Perspectives, Oxford University Press, Oxford, 2001.
54
  Harvard University Press, 2000; trad. francesa: Leçons sur l’histoire de la
philosophie morale, La Découverte, Paris, 2002.
55
  Cambridge University Press, Cambridge / New York, 1998.
56
  Ob. cit., p. 15.

98

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que as respostas que Kant elaborou para os seus próprios problemas
são úteis para esclarecer os nossos. E se partilhamos a sua convicção
fervorosa da igual capacidade moral de todos os seres humanos
normais e da sua igual dignidade, podemos seguramente pensar
que alguma coisa como o seu princípio moral de base é mais suscep‑
tível de dar uma resposta adequada aos nossos problemas do que
qualquer outro princípio já inventado.» 57
Por seu turno, Nancy Sherman, na sua obra Making a Necessity
of Virtue. Aristotle and Kant on Virtue 58, expõe com particular ênfase o
que constitui um dos aspectos relevantes da mais recente apreciação
da ética kantiana, o qual é um novo confronto sobretudo com a ética
aristotélica (mas também com a dos estóicos) marcado não já pela
irredutibilidade de perspectivas entre uma suposta ética eudaimo‑
nista e teleológica e uma ética formalista e deontológica, mas pela
aproximação e até pelo reconhecimento de profundas afinidades.
Isso foi possível graças à atenção dada à doutrina da virtude, tópico
ao qual Kant dedicou a sua última obra de filosofia prática e uma
das últimas que publicou, e da mesma forma a atenção aos aspectos
da antropologia moral e pragmática, que sempre estiveram no hori‑
zonte das reflexões kantianas sobre a moralidade. Assim é possível
reavaliar a relação da ética kantiana com outros grandes paradig‑
mas do pensamento ético, não só com o de Aristóteles, mas também
com o dos Estóicos, e reconhecer, para além das naturais diferenças,
o íntimo parentesco que os une, a respeito não só do tópico da virtu‑
de, mas também da sabedoria prática, da importância da reflexão na
deliberação, da atenção às condições particulares e contingentes das
situações em que tem lugar a acção.
É neste mesmo registo interpretativo que se inscreve a obra edi‑
tada por Stephen Engstrom e Jennifer Whiting, Aristotle, Kant and the
Stoics. Rethinking Happiness and Duty 59, que reúne ensaios de Christine
Korsgaard, Julia Annas, J. B. Schneewind, T. H. Irwin, Stephen
­Engstrom, Allen W. Wood, Jennifer Whiting, John McDowell,
­Barbara Herman. Enquanto alguns dos colaboradores no volume
(J. McDowell e J. Whiting) interpretam a ética de Aristóteles a partir
de uma perspectiva kantiana, outros (Christine Korsgaard e Barba‑
ra Herman) relêm os tópicos da filosofia moral de Kant a partir

57
  Ob. cit., p. 619.
58
  Cambridge University Press, 1997.
59
  Cambridge University Press, Cambridge, 1996.

99

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duma perspectiva aristotélica. A aproximação e convergência, a
respeito de muitos pontos essenciais, entre os protagonistas dos
dois mais importantes paradigmas do pensamento ético no pensa‑
mento europeu e ocidental é a tónica deste conjunto de ensaios,
originariamente apresentados num simpósio realizado na Univer‑
sidade de Pittsburgh, em Março de 1994, provindos de autores que
trabalham autonomamente mas que têm por princípio metodológi‑
co rejeitar as classificações feitas e os estereótipos e voltar a ler os
autores no corpus o mais completo possível das respectivas obras.
Ora, precisamente, um dos estereótipos mais frequentes na contra‑
posição entre a ética aristotélica e a ética kantiana é a afirmação de
que falta a Kant uma doutrina do bem ou do valor, aspectos que,
pelo contrário, seriam essenciais na proposta aristotélica 60.
A nova abordagem orgânica da filosofia moral kantiana obriga a
considerar não só o plano da fundação ou fundamentação (Grund­
legung) e dos princípios racionais, mas também o da aplicação
(Anwendung) e do contexto empírico da acção, aspecto este que Kant
remetia para a «antropologia prática», mas de modo nenhum os dei‑
xando fora de consideração, embora seja essa a ideia mais comum
que da sua proposta de filosofia moral se faz, quer entre os filokantia‑
nos quer entre os críticos de Kant. Mas a atenção agora dada a estes
aspectos permite responder aos que acusam a moral kantiana de rígi‑
do formalismo, de ser uma ética para seres racionais, mas não para
seres humanos sensíveis. Da mesma forma, a preocupação de ligar o
plano da fundação da moralidade e o da sua aplicação, o racional e o
empírico, é um traço comum a muitos dos novos hermeneutas da fi‑
losofia moral kantiana. E ninguém levou esse programa com mais
consequência do que Robert B. Louden, na sua obra Kant’s Impure
Ethics. From Rational Beings to Human Beings 61. No prefácio da obra, o
autor escreve: «Este é um livro acerca da segunda parte da ética de
Kant, uma parte que — dois séculos depois da morte do filósofo e
quem sabe depois de quantos livros e artigos acerca da sua ética —
permanece infelizmente um segredo bem guardado mesmo entre os
especialistas de Kant. Kant referiu­‑se a esta segunda parte de várias
maneiras, como ‘antropologia moral’, como ‘antropologia prática’,

60
  Christine M. Korsgaard aborda e discute este tema directamente no seu
ensaio «Aristotle and Kant on the source of value», in idem, Creating the Kingdom
of Ends, pp. 225­‑248.
61
  Oxford University Press, Oxford / New York, 2000.

100

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como ‘filosofia moral aplicada’ e por vezes simplesmente como ‘an‑
tropologia’, mas o que é importante é que ela tem que ver com o es‑
tudo empírico (ou o que eu chamo ‘impuro’) da natureza humana e
não com os princípios puros (não empíricos). Embora Kant tenha
sido claro quanto a considerar a primeira parte ou pura como funda‑
cional e, por conseguinte, como mais importante do que a segunda,
ele insistiu igualmente que a segunda parte era absolutamente neces‑
sária sempre que se pretende aplicar os resultados da primeira parte
aos seres humanos. No passado, os filósofos morais que tinham sim‑
patia relativamente ao que pensavam ser as ideias de Kant tendiam a
ver a investigação empírica acerca dos seres humanos como irrele‑
vante para a teoria ética... Ao mesmo tempo, muitos críticos do que
pensavam ser as ideias de Kant rejeitaram a sua teoria ética como
uma relíquia quase­‑racionalista, alegando que a sua abordagem
­purista não reconhecia a contribuição que os estudos empíricos dos
­seres humanos podem trazer à nossa compreensão da moralidade.
A  meu ver, ambas as posições são fundamentalmente erradas. São
certamente erradas na sua leitura de Kant: se eu fui bem sucedido em
mostrar alguma coisa no estudo que proponho é que Kant atribuiu
um valor muito mais alto aos estudos empíricos para a teoria moral
do que o fizeram muitos dos seus adversários e dos seus simpatizan‑
tes. Mas eu creio que elas são erradas também filosoficamente: tanto
os estudos puros como os impuros desempenham funções necessá‑
rias e complementares para a compreensão da ética. O meu livro tem
dois objectivos: primeiro, chamar a atenção dos leitores para uma im‑
portante e severamente negligenciada dimensão da ética de Kant;
segundo, reavaliar a força e a fraqueza filosófica da sua ética, uma
vez readmitida a segunda parte no seu devido lugar no contexto da
sua filosofia prática... Dada a influência dominante que a imagem de
Kant continua a exercer sobre o pensamento ético moderno, é minha
esperança que, corrigindo os erros de interpretação repeitantes à sua
ética, pode começar a mudar também a maneira de os filósofos pen‑
sarem as relações entre a teoria ética e os estudos empíricos.» 62
No seu conjunto, esta obra é um bem documentado e compreen‑
sivo estudo da ética kantiana tal como ela se deixa ver, projectada na
acção e aplicada ao concreto, nas considerações do filósofo a respeito
da antropologia física e pragmática, da pedagogia, da filosofia da
religião, da filosofia da história, da filosofia da política e do direito.

62
  Ibidem, «Preface».

101

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IV. Balanço e conclusão

O favor que as questões éticas parecem merecer na actualidade


pode revelar­‑se ambíguo e não traduzir uma real e generalizada
convicção da necessidade de um regresso à moral ou à moralização
da vida pública e privada. Por outro lado, o favor fácil que hoje se
concede a tudo o que invoca o pluralismo e o multiculturalismo tem
reflexos decisivos na concepção dos princípios éticos, pondo em
causa a pretensão destes a terem uma validade normativa univer‑
sal, relativizando­‑o
­ s, ou reduzindo­‑os a singularidades étnicas, cul‑
turais ou mesmo tribais, com valor apenas para aqueles que com ela
se identificam. Na esfera individual, tudo indica que hoje se verifica
uma tendência para a esteticização da ética pessoal, para entender a
ética como um certo estilo de vida ou mesmo como uma vida com
estilo, como o artista que tem o seu traço pessoal, ou o escritor que
tem a sua poética própria. Glosando o que Buffon dizia acerca do
estilo, poderiamos agora dizer que «l’éthique c’est l’homme­‑même».
E esta poderia ser até, porventura, a sua melhor definição. Com isso
indica­‑se, por certo, um modo de ser, não já, porém, o do homem
enquanto ser racional ou enquanto pessoa e membro de uma comu‑
nidade racional, mas o do homem singular, que não tem qualquer
pretensão de universalizar o seu projecto de vida ou de legitimá­‑lo
a partir de uma qualquer instância de universalização. Como se
correspondesse ao desiderato formulado por Nietzsche, esta ética
singular perdeu de vista o sentido da universalidade: cada qual tem
a sua. A absoluta exigência kantiana de autonomia e de liberdade
continua a ser invocada, mas sem o sentido do dever e da lei e,
­sobretudo, sem a preocupação de que a máxima de cada qual se
submeta ao teste da universalização. Retoma­‑se assim, em certo
sentido, o princípio aristotélico da ética como uma topografia dos
costumes e géneros ou modalidades de vida e como cultivo especia‑
lizado de alguma forma de excelência ou virtude, à medida de cada
qual, seja ela de natureza desportiva, empresarial, política ou pro‑
fissional 63.

  V. a proposta de Michel Onfray, La sculpture de soi. La morale esthétique,


63

Bernard Grasset, Paris, 1993. A recuperação da ética do epicurismo, tempera‑


da embora com outros ingredientes, pode ver­‑se em várias obras de Fernando
Savater: Ética como Amor Próprio, Mondadori, Madrid, 1988; El contenido de la
felicidad, Aguilar, Madrid, 1986.

102

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Aparentemente, em questões de ética, estamos hoje muito mais
próximos de Aristóteles, de Epicuro ou de Nietzsche do que de
Kant. Todavia, a actualidade da filosofia moral de Kant demonstra­
‑se suficientemente na sua capacidade para continuar a ser a princi‑
pal interlocutora e parceira no debate ético dos nossos dias, com
particular insistência a partir dos anos 70 do século xx. Ora servindo
para o confronto crítico, ora proporcionando elementos para a ela‑
boração de novas propostas, ora até para ser criticada, corrigida ou
transformada, ela marca com o seu selo o pensamento ético do nos‑
so tempo, não apenas como ética individual, mas sobretudo, como
bem o mostra o programa de Rawls, naquele domínio onde a ética
se torna um assunto público com carácter de urgência e uma ques‑
tão de política global capaz de cuidar dos pressupostos para que a
humanidade seja ainda possível com dignidade. O que é sempre
actual na filosofia de Kant é a sua radicalidade no modo de colocar
os problemas e isso a impede de solidificar­‑se numa doutrina. A fi‑
losofia de Kant, em qualquer dos seus domínios, mas também no da
filosofia moral, tem uma feição zetética (investigativa) e heurística,
o que a torna intelectualmente fecunda para qualquer geração. Não
vamos a ela para que nos dê as respostas ou as soluções para os
nossos problemas, mas para que nos seja estímulo e guia no equa‑
cionar dos problemas. Kant ensina­‑nos a pensar por nós mesmos.
Não nos ensina pensamentos já feitos, nem sequer os seus pró‑
prios.
O nosso tempo, em relação à ética, apresenta sinais que se pres‑
tam a interpretações contraditórias. Por um lado, alguns parecem
indicar um retorno da ética e da moral. Por outro, indicadores há
que levam a pensar que vivemos já  numa civilização pós­‑moral,
pós­‑virtude e pós­‑dever, onde estas mesmas noções de moral, de
virtude e de dever deixaram de fazer sentido. Mas, tendo em conta
a irremediável quebra das relações de solidariedade e de identidade
de base religiosa, cultural ou nacional, num mundo global cada vez
mais dominado por uma cultura de base económica e técnica laici‑
zada, onde os indivíduos atomizados, apesar de tudo, trocam entre
si relações cada vez mais intensas e precisam de entender­‑se para
poderem, no mínimo, garantir as condições da sua sobrevivência
sustentável, a urgência de um conjunto mínimo de princípios ético­
‑jurídico­‑políticos comuns de regulação dessas relações, seja no pla‑
no individual, seja no plano colectivo e mundial — uma espécie de
gramática mínima que permita conjugar a humanidade em toda a
sua diferença e riqueza das suas vivências ­—, torna­‑se cada vez
mais premente. Dada a sua matriz universalista e formal, que não se

103

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vincula a uma perspectiva unilateral e regional, nem comporta es‑
sencialmente consigo, como sendo­‑lhe aderente, a substância de
uma dada cultura ou religião, estando, por conseguinte, mais imu‑
ne do que qualquer outra ao risco da «falácia etnocêntrica» (pese
embora a acusação que nesse sentido lhe faz Habermas!), dado o
seu estilo construtivista, graças ao qual os agentes éticos são convi‑
dados a participar eles mesmos na elaboração das normas por que
se devem reger, pelo seu generoso sentido cosmopolita que lhe dá a
dimensão da essencial unidade e solidariedade de todos os seres
humanos, mas, ao mesmo tempo, a abre para a atenção à diversida‑
de dos homens e das suas culturas, por tudo isso a ética kantiana
revela­‑se mais apta do que qualquer outra das disponíveis matrizes
do pensamento ético para animar o debate contemporâneo e para
nos ajudar a encontrar respostas fecundas e socialmente viáveis
para as questões éticas e políticas desta nossa época marcada e de‑
sorientada pelo impacte de dois fenómenos aparentemente contra‑
ditórios: a globalização, que homogeneiza as mentalidades e os
comportamentos, e o multiculturalismo, que relativiza e banaliza
todos os valores.

104

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2

A antropocosmologia do jovem Kant

Na parte iii da sua obra de 1755, História Universal da Natureza e


Teoria do Céu (Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels),
Kant desenvolve, como uma espécie de apêndice e sob o título
«Acerca dos habitantes dos astros» (Von den Bewohnern der Gestirne),
uma antropologia em registo cosmológico, tentando compreender
qual possa ser o lugar e a função que cabem ao homem no ­grande
cenário cosmológico­‑cosmogónico que havia delineado nas partes
anteriores.
Essa parte iii e as considerações de natureza antropológica nela
apresentadas costumam ser desprezadas pelos comentadores como
pouco relevantes 1, seja para a compreensão da mesma economia do
ensaio enquanto proposta cosmológica, seja para a compreensão da
evolução do pensamento de Kant. Para dar razão desse desinteres‑
se, poderia por certo invocar­‑se o pedido que o jovem autor faz ao
leitor, no final do prefácio, para que não seja demasiado exigente em
relação a essa parte do seu ensaio, como se com isso quisesse dizer
que ele próprio não lhe atribuía muita importância.
Contrariando a geral tendência de desvalorização dessa parte
da obra, a minha comunicação pretende antes mostrar que ela é im‑
portante não só para se compreender em todo o seu alcance a econo‑

  Há uma tradução inglesa da obra que a omite, a de W. Hastie, Kant’s


1

Cosmogony as in his Essay on the Retardation of the Rotation of the Earth and his
Natural History and Theory of the Heavens, Glasgow, 1900, reimpr. Thoemes Press,
Bristol, 1993.

105

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mia da proposta cosmológico­‑cosmogónica do ensaio, como ­também
porque nela se oferecem, na sua primeira forma, as preocupações e
meditações antropológicas do filósofo, as quais virão a revelar­‑se
cada vez mais insistentes e envolventes no seu pensamento poste‑
rior. Com efeito, aí se pode reconhecer o intenso diálogo que Kant
entabula com o pensamento cosmológico renascentista e moderno,
no qual a nova visão de um universo sem limites e povoado por
inúmeros mundos arrastava consigo a superação de concepções an‑
tropológicas segundo as quais o homem era considerado o centro e
a medida do cosmos e da realidade. Mas podemos ver também
como nessa terceira parte da obra de 1755 se delineam já de forma
inequívoca, por certo numa linguagem e num contexto cosmológi‑
cos, alguns dos tópicos maiores da antropologia kantiana, posterior‑
mente desenvolvidos, seja no âmbito dos cursos universitários e
reflexões sobre Antropologia, seja nas explicitações da filosofia mo‑
ral, seja nas considerações a respeito da acoplagem entre a teleolo‑
gia física e a teleologia moral.
A minha exposição organiza­‑se em torno de três tópicos:

1.o Os efeitos da cosmologia e astronomia renascentista e


protomoderna na antropologia;
2.o A visão antropocósmica do jovem Kant, tal como expos‑
ta sobretudo na obra de 1755;
3. A persistência de temas antropocósmicos nas ulteriores
o

fases de desenvolvimento do pensamento kantiano.

1. Um dos processos especulativos de maior alcance que de‑


correu no período da história europeia que viria a designar­‑se por
Renascimento e Proto­modernidade foi sem dúvida a profunda e de‑
cisiva alteração da imagem do cosmos. Mas o alcance dessa altera‑
ção não se limitou ao campo restrito das concepções científicas as‑
tronómicas ou cosmológicas. Ela viria a tornar­‑se paradigmática até
para a compreensão de outras revoluções ou alterações do modo de
pensar, inclusivamente na filosofia e na estratégia de abordagem
das questões metafísicas. Mas antes que isso viesse a acontecer ela
teve um quase imediato impacte nas concepções antropológicas,
tornando­‑se patente que a imagem que o homem tem do mundo é
solidária da imagem que tem de si próprio e que, alterada aquela,
também esta última se modifica.
Vários pensadores ligados ao processo da constituição da astro‑
nomia e cosmologia modernas acusaram esse efeito com maior ou
menor intensidade. A nova consciência de viver num universo sem

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limites (se não mesmo infinito) e povoado de inumeráveis mundos,
plausivelmente habitados, tal como a Terra, teve, no que ao nosso
tópico respeita, duas principais consequências: a relativização das
perspectivas humanas e o descentramento antropológico. Se, por
um lado, o homem descobre a sua insignificância num universo do
qual cada vez menos conhece os limites, embora tenha alcançado
alguma luz acerca das leis gerais que o governam e sustentam a sua
estrutura, por outro, também é levado a reconhecer que, com toda a
verosimilhança, ele não é o único ser racional da criação e nem por
certo o mais perfeito.
Kant foi entre os pensadores modernos um dos que explicita‑
mente reconheceu o impacte das perspectivas abertas pela nova cos‑
mologia sobre a filosofia em geral. É assim que lemos numa página
da Crítica da Razão Pura:

As observações e cálculos dos astrónomos ensinaram­


‑nos muitas coisas, mas a mais importante foi certamente
terem­‑nos patenteado o abismo da ignorância que a razão
humana sem esses conhecimentos nunca podia ter imagina‑
do ser tão grande e obrigou a transformar consideravelmen‑
te os objectivos finais assinalados ao uso da sua razão. 2

Inúmeras reflexões do espólio insistem nesta mesma ideia de que

as novas descobertas astronómicas põem de tal modo por


terra as exigências do homem […] e aniquilam­‑no a tal pon‑
to a seus olhos que ele chega a não atribuir­‑se importância
bastante para ser um fim da criação. 3

Estas declarações e outras do mesmo teor só se entendem em


todo o seu alcance se tivermos em conta a importância que as ques‑
tões cosmológicas desde muito cedo tiveram na formação e até na
formatação do pensamento kantiano. A obra de 1755, Allgemeine
Naturgeschichte und Theorie des Himmels, de que aqui me ocupo, lon‑
ge de representar apenas a assimilação e ampliação do campo de
aplicação dos princípios da cosmologia newtoniana, deve consi­de­
rar­‑se como sendo efectivamente a primeira síntese original do

2
  Ak III, 447.
3
  Refl. 6165, Ak XVIII, 473.

107

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pensamento kantiano, moldada por certo em matéria cosmológica,
na qual, porém, o jovem filósofo deixa enunciados temas e proble‑
mas não só de natureza cosmológica, mas também de índole epis‑
temológica, teológica e antropológica, cujos desenvolvimentos,
modulações e orquestração se deixarão ouvir nos grandes escritos
das décadas de 80 e 90 e ainda nas reflexões tardias do chamado
Opus postumum.
Mas a obra de 1755 não é apenas interessante como documen‑
to especulativo. Ela documenta também que a vivência e a consciên­
cia cósmica constituem para Kant uma verdadeira proto­‑experiência
da condição humana, com acentos de sublimidade e de trágico. No
colossal quadro cosmogónico que o autor traça no capítulo vii da
parte ii, apresenta­‑se o cosmos em processo de criação contínua.
A Terra enquanto lugar de habitação do homem e o sistema onde
ela se integra é apenas uma precária ilha de ordem num universo
em que as forças do caos continuam em luta incessante com as
forças da ordem e onde sempre novos mundos nascem para de
novo serem engolidos nos turbilhões do caos, dando assim maté‑
ria para o surgimento de outros. É «entre ruínas assustadoras de
mundos perdidos que nós habitamos», como se lê numa passagem
das Lições de Geografia Física 4. Nesta incessante mudança de cená‑
rio da colossal cosmotragédia, o homem é chamado a desempe‑
nhar um breve papel e ver­‑se­‑á arredado da peça e dela expulso
pelo autor do drama assim que tenha acabado o seu desempenho.
Mas nem mesmo a magnitude da tragédia cósmica ­— na qual o
espectador humano ao mesmo tempo se vê submetido à comum e
universal lei cósmica de destruição e recriação — consegue pertur‑
bar a felicidade do filósofo que a contempla e que nisso vê uma
inequívoca prova de que a sua destinação última não se confina ao
mundo terreno e sensível, mas se abre à comunidade com o pró‑
prio Criador do universo. O espectador que se elevou a uma tal
altura pode então dizer:

Deixemos que o nosso olhar se acostume a estas terrí‑


veis destruições como sendo os caminhos habituais da Pro‑
vidência e consideremo­‑las até como uma espécie de satis‑
fação. […] O espírito que reflecte sobre tudo isso mergulha
numa profunda admiração. […] Com que espécie de temor

4
  Ak IX, 270.

108

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reverencial a alma não deve considerar o seu próprio ser,
quando ela deve ainda sobreviver a todas essas transfor‑
mações. […] Como é feliz quando, sob o tumulto dos ele‑
mentos e dos escombros da natureza, ela se vê situada sem‑
pre a uma altura a partir da qual pode ver passar, por assim
dizer a seus pés, as devastações devidas à fragilidade das
coisas do mundo. […] A natureza inteira, que para o prazer
da divindade possui uma relação harmoniosa universal,
não pode senão encher de satisfação contínua esta criatura
racional que se encontra unida a esta fonte originária de
toda a perfeição. Vista a partir deste ponto central, a natu‑
reza mostrará por todos os lados completa segurança e con‑
veniência. As cenas cambiantes da natureza não têm poder
para perturbar o repouso da felicidade de um espírito que
se tenha elevado a uma tal altura. 5

Estas passagens só poderão ser compreendidas em todo o seu


alcance se tivermos em conta a análise que na sua terceira Crítica
Kant virá a fazer do sentimento do sublime. A contemplação do
mundo físico e do cosmos leva à evidência da insignificância huma‑
na perante a grandeza ou o poder da natureza, que o esmaga e o
aniquila como a qualquer outro ser. Mas, ao mesmo tempo, essa ex‑
periência, que em si mesma é negativa, constitui a ocasião para que
o homem descubra em si um poder e uma condição que estão infi‑
nitamente para além da natureza, que não são atingidos pelas leis
da natureza mas são de uma outra ordem. Os conhecidíssimos pa‑
rágrafos da conclusão à Crítica da Razão Prática expõem essa vivên‑
cia que tem tanto de uma experiência estética do sublime­‑trágico,
como de uma originária experiência moral, vivências afins, como de
resto o concluem todas as análises do sentimento do sublime pro‑
postas na primeira parte da Crítica do Juízo.

2. Considerarei em primeiro lugar a parte iii da obra, na qual o


jovem filósofo avança algumas considerações de natureza antropo­
lógica. Como noutra ocasião tentei mostrar, esta obra de Kant está
toda ela construída sobre o princípio da analogia, o qual suporta as
ousadas conjecturas nela propostas e um dos pressupostos dessa
racionalidade analógica é a ideia de continuidade, que se exprime

5
  Ak I, 319­‑321.

109

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profusamente através das imagens da «grande cadeia do ser» ou da
scala naturae, ideia segundo a qual «tudo se liga em todo o perímetro
da natureza numa ininterrupta sucessão de graus, mediante a har‑
monia eterna, que põe todos os membros em relação uns com os
outros» 6. Esta imagem ou ideia da «cadeia do ser» ou da scala natu‑
rae teve a sua primeira significativa exposição filosófica na escola
aristotélica e atingiu o máximo desenvolvimento no pensamento
neoplatónico, constituindo embora um pressuposto adoptado, por
vezes de modo não explicitamente assumido, por muitos filósofos
das mais variadas filiações e das mais diversas épocas. No já clássi‑
co estudo que à história desse tópico dedicou, Arthur Lovejoy des‑
taca a generalizada aceitação que essa ideia teve no século  xviii en‑
tre filósofos, poetas e naturalistas, circulando como uma espécie de
«expressão sagrada» saturada de pregnância semântica. Mas segun‑
do o mesmo Lovejoy, foi na referida obra juvenil de Kant que esse
tópico recebeu a «mais entusiástica elaboração».
Tendo delineado, na parte i da obra, o «grande mapa» ou a con‑
situição sistemática do cosmos, visto como um giga­‑sistema consti‑
tuido por mega­‑sistemas de sistemas; tendo, na parte ii, esboçado a
grandes traços os capítulos da história cósmica representada como
uma colossal cosmotragédia, na parte iii, Kant propõe­‑se compreen‑
der qual o lugar — físico, espiritual e moral — do homem nesse ce‑
nário e nesse drama c­ ósmico.
Para tornar mais verosímeis as suas conjecturas (Muthmassun‑
gen) a esse respeito, Kant propõe­‑se seguir o «fio condutor das rela‑
ções físicas» (Leitfaden der physischen Verhältnisse), o que o leva a for‑
mular as seguintes pressuposições:

1.a Que a constituição física e elementar dos planetas do


sistema solar deve com toda a verosimilhança depender
da respectiva distância relativamente ao seu centro de
calor, e que, por conseguinte, quanto mais afastados es‑
tiverem do Sol, tanto mais subtil deverá ser a respectiva
constituição elementar e material, pois menos precisam
da acção directa do Sol;

6
  Ak I, 365. V. o meu ensaio «Analogia e conjectura no pensamento cos‑
mológico do jovem Kant», apresentado no Colóquio da Secção de Campinas da
Sociedade Kant Brasileira, 18­‑22 de Maio de 2008, publicado na revista electró‑
nica: http://www.cle.unicamp.br/Kant­‑e­‑prints.

110

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2.a Que deve existir uma relação ou proporção entre a
«constituição da matéria» (Beschaffenheit der Materie) dos
planetas e a «capacidade espiritual» (geistige Fähigkeit) e
a «constituição moral» (moralische Beschaffenheit) dos res‑
pectivos habitantes que neles possa haver.

Combinando estes dois pressupostos, o jovem filósofo é levado a


conjecturar que os habitantes espiritual e materialmente mais perfei‑
tos no sistema solar deveriam ser os de Júpiter e Saturno (os planetas
gasosos), se os houve, houver ou vier a haver, coisa que Kant não
podia saber, mas admitia como possível e plausível, não só no presen‑
te, mas também no passado ou no futuro. Mas o que é mais relevante
é ver o que resulta da aplicação daqueles pressupostos para compreen­
der o que se passa em relação ao habitante desse planeta médio do
sistema solar que é a Terra. Ora, segundo Kant, dada a sua constitui‑
ção elementar e a sua condição espiritual e moral, a natureza humana
só poderia ocupar no sistema solar um planeta como a Terra. À posi‑
ção intermédia da Terra corresponde a condição média do homem, e
assim, «a natureza humana ocupa na escada dos seres como que o
degrau mais médio, encontrando­‑se no meio entre os dois extremos
limites da perfeição, de cujas extremidades se encontra igualmente
muito afastada» 7. Corresponde­‑lhe, por isso, como lugar de habita‑
ção, um planeta que é, juntamente com Marte, «o membro mais mé‑
dio do sistema planetário» (die mittelsten Glieder des planetischen
Systems) 8, e quanto à condição moral, em conformidade ainda com a
analogia, ela situa­‑se igualmente «entre os dois pontos extremos»
(zwischen den zwei Endpunkten), ou seja, entre a virtude e o vício,
«numa certa posição média entre a sabedoria e a sem­‑razão» (ein
gewisser Mittelstand zwischen der Weisheit und Unvernunft) 9. Conti­
nuando a explorar a analogia, o filósofo afirma que o homem

encontra­‑se na perigosa via média, onde a tentação dos es‑


tímulos sensíveis pode ter um forte poder contra a sobera‑
nia do espírito, mas não consegue desmentir aquela facul‑

7
  Ak I, 359.
8
  Tenha­‑se presente que na época o último planeta conhecido do sistema
solar era Saturno: os quatro primeiros planetas (Mercúrio, Vénus, Terra e Mar‑
te) eram tidos por telúricos, os dois últimos (Júpiter e Saturno) eram tidos por
gasosos. A Terra partilha com Marte da posição média dentro do sistema.
9
  Ak I, 365, 366.

111

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dade mediante a qual ele está em condição de lhe oferecer
resistência …, onde, por conseguinte, está o perigoso ponto
intermédio entre a fraqueza e o poder, pois as mesmas van‑
tagens que o elevam acima das classes mais baixas colocam­
‑no numa altura a partir da qual ele de novo pode cair infi‑
nitamente mais fundo abaixo destas. 10

Nestas considerações, que evocam as de alguns filósofos do Re‑


nascimento fortemente imbuídos de Neoplatonismo, como Nicolau
de Cusa, Giovanni Pico della Mirandola e Marsílio Ficino 11, Kant
está a glosar, mais proximamente, os versos do Essay on Man de Ale‑
xander Pope, poema filosófico que amplamente cita ao longo da
obra, e onde, também no ambiente da ideia da «Grande cadeia do
ser» (Great Chain of Being — que Kant cita na versão alemã de Bro‑
cke: «Welche eine Kette, die von Gott den Anfang nimmt…»), se
descreve a condição do homem como a de um «istmo», colocado
num «estado intermédio», suspenso na dúvida para agir ou não
agir, para preferir o seu espírito ou o seu corpo («Placed on this isth‑
mus of a middle state,/ … He hangs between; in doubt to act, or
rest; / In doubt his mind or body to prefer») 12.
Cabe perguntar que valor atribuía o jovem filósofo a estas suas
considerações ou conjecturas. Traduzirão elas uma autêntica con‑
vicção, ou são apenas um exercício lúdico da sua juvenil fantasia
ainda livre e exuberante, que, alguns anos mais tarde, se verá subme­
tida ao apertado regime dos limites impostos pelo entendimento?
Logo no prefácio, Kant advertira os seus leitores para o facto
de que não atribui a essa parte da obra o mesmo grau de certeza
que atribui às duas partes anteriores. Mais do que uma vez ele se
questiona a respeito do estatuto epistémico e da legitimidade des‑
tas supostas correspondências entre o mundo físico e o mundo
moral. Embora esteja bem consciente de que se trata nisso apenas
de «analogias mediante as quais a alma humana tenta alcançar um

  Ak I, 366.
10

  V. o meu ensaio «O humano, o inumano e o sobre­‑humano no pensa­


11

mento antropológico do Renascimento», in Leonel Ribeiro dos Santos, O ­Espírito


da Letra — Ensaios de Hermenêutica da Modernidade, INCM, Lisboa, 2007, pp. 59­
‑80.
12
  An Essay on Man, Epistle II, ed. London, 1857, 25. Repare­‑se, ao longo
da obra, na insistência de Kant em expressões como: zwischen, (gefährliche) Zwi‑
schenpunkt, Mittelstand, (gefährliche) Mittelstrasse, mittelste Sprosse...

112

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pouco de luz a respeito de tão obscuros conhecimentos», de modo
algum as considera como «ficções arbitrárias» (willkürliche Erdi‑
chtungen). São, segundo expressamente diz, conjecturas que rei‑
vindicam uma «verosimilhança fundamentada» (gegründete Wahrs‑
cheinlichkeit). E afirma mesmo que «elas possuem um grau de
credibilidade que não está muito longe de uma certeza completa»
(dieses Verhältnis eienen Grad der Glaubwürdigkeit hat, der nicht weit
von einer ausgemachten Gewissheit entfernt ist). E vai ao ponto de
declarar que elas «quase exigem uma total convicção» (sie beinahe
einen Anspruch auf eine völlige Überzeugung machen sollte) 13.
O que tais conjecturas, porém, nos colocam diante dos olhos é a
indesmentível preocupação moral e antropológica que subjaz já ao
ensaio cosmogónico de 1755. O seu autor não trata, pois, simples‑
mente de oferecer nele uma visão da génese do cosmos e da sua or‑
ganização sistemática segundo a economia das leis newtonianas da
atracção e repulsão, as quais, agindo mecanicamente, garantiriam a
extracção contínua da ordem a partir do caos. Mas já neste ensaio
ele procura, em última instância, responder à máxima questão que
se pode colocar o homem, qual é a de saber «como ocupar o seu lu‑
gar na criação e entender correctamente o que tem de ser para ser
um homem» 14.
Em suma: conduzida pelo fio da analogia físico­‑cosmológica,
começa a desenhar­‑se na obra de 1755, com seus contornos já bem
definidos, a antropologia moral kantiana, apresentando o ser huma‑
no como um istmo, suspenso entre dois mundos — o sensível e o
inteligível, o espiritual e o material, a razão e as paixões ou inclina‑
ções, a atracção para a virtude ou a tendência para o vício — tendo
por tarefa reconciliá­‑los em si mesmo mediante o esforço e a luta
permanentes no palco terreno onde se desenrola a sua existência.
Daí que, numa das suas reflexões, Kant venha a considerar que

o papel do homem é entre todos os seres deste sistema de


planetas porventura o mais trabalhoso [künstlichste] e o
mais penoso [beschwerlichste], mas no fim é também o mais
magnífico [herrlichste]. 15

13
  Ak I, 359.
14
  Bemerkungen zu Beobachtungen, Ak XX, 41.
15
  Refl. 6091, Ak XVIII, 448; Idee, Ak VIII, 23.

113

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Para além do que possa valer para a compreensão do desen‑
volvimento futuro da antropologia moral kantiana, a conjectura
proposta é ainda significativa pelo diálogo que permite estabe­
lecer entre o pensamento do jovem Kant e o pensamento antro­
pológico do Renascimento e da primeira Modernidade: a ideia
do  homem «istmo» remete para a ideia do homem copula entre
dois mundos, o superior e o inferior, o espiritual e o material, que
fora desenvolvida pelos pensadores do Renascimento. Ele tanto
pode degradar a sua condição divina, como sublimar e divinizar
a sua condição terrestre e mundana. É a sua uma função essen­
cialmente mediadora. Ele constitui o termo médio entre Deus e o
Mundo, como obsessivamente o repetirá ainda o filósofo ao longo
de toda a primeira centena de páginas que recolhem as suas der‑
radeiras reflexões e que foram editadas sob o título de Opus pos­
tumum.
Mas a referida conjectura revela ainda outras particularidades.
Nomeadamente, ela sugere ou deixa em aberto a possibilidade de o
homem não ser o único ser racional do universo, devendo antes
considerar­‑se, com toda a verosimilhança, como sendo apenas um
degrau, e mesmo o mais baixo, dos seres racionais.

3. A ideia de que o cosmos pudesse ser habitado por outros


seres racionais e que, por conseguinte, o homem não tivesse o privi‑
légio de se considerar o único nessa condição, estava muito dissemi‑
nada entre os pensadores renascentistas e modernos. Já Nicolau de
Cusa a abordara, na parte ii da sua obra Da Douta Ignorância (1440),
onde expõe a sua cosmologia especulativa. E, sucessivamente, gran‑
des cosmólogos e filósofos da natureza do tardio Renascimento e da
primeira Modernidade 16 aduziram razões de plausibilidade ou mes‑
mo de conveniência para uma tal hipótese, que viria a ser populari‑
zada por toda uma vasta galeria de escritores 17. No tempo de Kant,

16
  Como Bruno (De l’infinito, universo e mondi, 1583), Kepler (Le songe ou
Astronomie lunaire, 1634), Campanella (Apologia pro Galileo, 1622), Descartes
(Correspondance avec Burman), Christian Huyghens (Cosmotheoros sive de terris
coelestibus earumque ornatu conjecturae, 1698), etc.
17
  Como Robert Burton (The Anatomy of Melancholy, 1638), Pierre Borel
(Discours nouveau prouvant la pluralité des mondes, que les astres sont des terres
habités et la terre une étoille, 1657), François Bernier, John Wilkins, Cyrano de Ber‑
gerac (Voyage dans la Lune, L’Autre Monde ou les États et Empires de la Lune, 1657)
e Fontenelle (Entretien sur la pluralité des mondes, 1687).

114

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tal convicção estava de tal modo generalizada, mesmo entre os pen‑
sadores da Aufklärung, que Hans Blumenberg vai ao ponto de dizer
que ela tinha «o estatuto de um postulado prático» (den Rang eines
praktischen Postulats) 18.
As razões apresentadas para sustentar tal conjectura eram de
ordem diversa. Mas entre os filósofos é recorrente a invocação do
princípio de plenitude e de continuidade, associado ao princípio
de homogeneidade de todas as regiões do universo, segundo o
qual os mesmos princípios devem valer para todo o espaço cósmico.
Desse modo, nenhum planeta tem direito a reclamar ­vantagens so‑
bre os demais. Num universo, agora pensado como ilimitado, que
sentido faria pretender afirmar que só a Terra, um insignificante
planeta de um pequeno sistema solar entre infinitos outros, fosse
habitada e que, em contrapartida, todos os inumeráveis planetas
não só os do nosso sistema solar mas os de outros inumeráveis sóis
não o fossem, não o tenham alguma vez sido, ou não possam vir a
sê­‑lo?
Um dos autores que deu maior consistência de probabilidade
a essa ideia foi Christian Huyghens, no cap. viii do seu Cosmotheo‑
ros (1698, post.), onde, para além de outras razões, aduz uma razão
estética: se só a Terra fosse habitada por criaturas racionais e os
outros planetas o não fossem, a Terra não só teria uma vantagem
que não corresponde à sua importância como, além disso, o uni‑
verso não seria apreciado em toda a sua beleza, pois, para que tal
aconteça, são necessários espectadores racionais nos outros plane‑
tas 19. No que será comentado e seguido por Leibniz, que nisso vê
uma amostra do princípio de analogia e de continuidade, segundo
o qual «é razoável que haja substâncias capazes de percepção abai‑
xo de nós, da mesma forma que as há acima de nós; e que a nossa
alma, longe de ser a última de todas, se encontra num meio, do qual
se pode descer e subir» 20. É neste mesmo registo que Kant desen‑
volve o tópico, numa das reflexões do seu espólio, vendo nisso um
argumento a favor da fisicoteologia: a limitação das faculdades
humanas e da própria posição do homem no cosmos não lhe per‑

  Hans Blumenberg, Die Genesis der kopernikanischen Welt, Suhrkamp,


18

Frankfurt, Bd. 3, 789.


19
  Christian Huyghens, The Celestial Worlds Discover’d [Cosmotheoros],
Frank Cass & Co. Ltd., Oxon, 1968 (reprod. facs. da 1.a ed. inglesa de 1698),
pp. 37 e segs.
20
  Die philosophischen Schriften, VI, 543; V, 453­‑454.

115

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mitem fazer uma ideia da perfeição do universo e da sabedoria e
bondade do seu criador:

As novas descobertas na Astronomia não só ampliam


mas também modificam de alguma maneira a fisicoteolo‑
gia, pois se o género humano fosse toda a espécie de seres
racionais e a única, então não se pode compreender bem
como se concilia isso com a sabedoria e a bondade de Deus,
uma vez que pode em todo o caso pensar­‑se algo mais per‑
feito. Mas se existem milhões de outros mundos, então este
é um degrau das criaturas racionais, que, juntamente com
as suas limitações, não deveria faltar. 21

É ainda esse pressuposto que se insinua na formulação dos


próprios princípios da moral kantiana do período crítico, pensa‑
dos num tão amplo significado que devem valer «não apenas para
homens, mas para todos os seres racionais em geral» (nicht bloss für
Menschen, sondern für alle vernünftige Wesen überhaupt) 22. E sob a
estranha ideia kantiana de um «reino dos fins» o que realmente se
diz é essa possibilidade de o homem, pela sua auto­legislação mo‑
ral, se colocar na ampla comunidade dos seres racionais onde quer
que eles existam. Na tardia Antropologia segundo um Ponto de Vista
Pragmático, o filósofo admite que «pode muito bem acontecer que
existam seres racionais em algum outro planeta» 23.
Fossem tidos em conta estes aspectos, e logo se concluiria pela
insustentabilidade de certas críticas que têm sido feitas ao suposto
antropocentrismo e monologismo da ética kantiana.

4. Também o tópico da situação do homem entre dois mundos


vai persistir como um elemento estratégico no desenvolvimento

21
  Refl. 5542, Ak XVIII, 213.
22
  Grundl., Ak IV, 408.
23
  Anthropologie, Ak VII, 332. V. Viriato Soromenho­‑Marques, «Kant e a
comunidade dos seres racionais. Quatro notas críticas», in Leonel Ribeiro dos
Santos (org.), Kant: Posteridade e Actualidade, CFUL, Lisboa, 2006, pp. 291­‑301. V.
ainda: Steven J. Dick, Plurality of the Worlds: The Origin of the Extraterrestrial Life
Debate from Democritus to Kant, Cambridge University Press, Cambridge, 1982;
J. Crowe, The Extraterrestril Life Debate 1750­‑1900, The Idea of a Plurality of Worlds
from Kant to Lowel, Cambridge U. P., Cambridge, 1986.

116

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posterior do pensamento kantiano, seja no plano metafísico seja no
plano moral 24. Nos Sonhos de Um Visionário, lê­‑se que

a alma humana deve ser vista já na vida presente como li‑


gada com dois mundos ao mesmo tempo. 25

E já em pleno período crítico, toda a secção iii da Fundamentação


da Metafísica dos Costumes é dedicada à explicitação (não explicação)
dessa necessária pressuposição de o homem se considerar a partir
de dois pontos de vista, como única forma de garantir a possibilida‑
de da moralidade e o efectivo exercício da sua razão prática:

Por conseguinte, há dois pontos de vista, a partir dos


quais ele se contempla a si mesmo…, um, na medida em
que pertence ao mundo sensível, sob leis da natureza (He‑
teronomia), o outro, como pertencente ao mundo inteligí‑
vel, sob leis que, independentes da natureza, não são empí‑
ricas, mas se baseiam apenas na razão. 26

Mas esses dois «pontos de vista» ­— insiste Kant ­— não devem


ser pensados como estando ao lado um do outro, e sim como estan‑
do «necessariamente unidos no mesmo sujeito» 27.
Numa outra modulação, o mesmo tópico regressa obsessiva‑
mente na primeira centena de páginas do Opus postumum, onde o
então já septuagenário filósofo pretende ainda captar na sua máxi‑
ma economia «o mais elevado ponto de vista da filosofia transcen‑
dental». Nessas páginas atinge esta antropologia da mediação a sua

  V. Lewis White Beck, «Kant’s Strategy», Journal of the History of Ideas, 28


24

(1967), 224­‑236.
25
  Träume, Ak II, 332: «Die menschliche Seele würde ... schon in den ge‑
genwärtigen Leben als verknüpft mit zwei Welten zugleich müssen angesehen
werden.»
26
  «Mithin hat es zwei Standpunkte, daraus es sich selbst betrachten und
Gesetze des Gebrauchs seiner Kräfte, folglich aller seiner Handlungen erken‑
nen kann, einmal, so fern es zur Sinnenwelt gehört, unter Naturgesetzen (He‑
teronomie), zweytens, als zur intelligibilen Welt gehörig, unter Gesetzen, die,
von der Natur unabhängig, nicht empirisch, sondern bloss in der Vernunft ge‑
gründet sind.» Grundl. IV, 452; ibidem, 450­‑1, 453, 454, 455, 458, 462.
27
  Grundl., Ak IV, 456: «... und dass beide nicht allein gar wohl beisammen
stehen können, sondern auch als nothwendigen vereinigt in demselben Subject
gedacht werden müssen.»

117

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máxima expressão. Enquanto sujeito e pessoa, o homem é o «termo
médio» (terminus medius), a cópula (copula) que «une» (verknüpft) os
dois princípios ou ideias da razão ­— Deus e o Mundo, num todo
absoluto, para assim os «reduzir à unidade sintética» (zur synthe­
tischen Einheit zu bringen) num sistema formal de ideias de que ele
mesmo se sabe criador. Enquanto se considera na sua relação ao
mundo sensível, ele é o «cosmotheoros», isto é, aquele que cria a prio‑
ri os elementos que tornam possível o conhecimento do mundo e
lhe permitem que, sendo ele mesmo um «habitante do mundo»
(Weltbewohner), seja, ao mesmo tempo, o «contemplador do mundo»
(Weltbeschauer, Weltbeobachter). Mas, por outro lado, enquanto se
considera como pessoa, consciente da sua liberdade, participante da
legislação de um mundo moral e ligado a outros seres racionais, ele
é verdadeiramente um «cosmopolita», no mais próprio e pleno senti‑
do que pode dar­‑se a esta expressão 28.
Ao atingir assim o seu «mais elevado ponto de vista», a filosofia
transcendental kantiana mais não faz do que consumar a convicção
da condição anfíbia, média e mediadora do homem, que vimos sur‑
gir na parte iii do ensaio de 1755 e desenvolver­‑se depois como o
Leitmotiv da sua filosofia prática.

5. A cosmologia kantiana, desde cedo formulada e amadureci‑


da, oferece­‑se como um fecundo alfobre de metáforas e de analogias
que o filósofo usará nas posteriores elaborações do seu pensamento
para de algum modo fazer ver não só a estrutura como também a
dinâmica do mundo moral e político 29. A representação do cosmos
unificado constitui a primeira e essencial forma em que se modela a
noção kantiana de sistema, a qual se aplicará não só ao mundo mo‑
ral e político mas também à própria razão. «Sistema» ou «constitui‑
ção sistemática» é um todo em que os membros «estão ordenados
em torno de um ponto central comum e se movem em torno do

  Ak XXI, 31, 43, 553.


28

  Isso me levou a escrever, num outro lugar (Metáforas da Razão ou Eco‑


29

nomia Poética do Pensar Kantiano, Lisboa, 1989; reed.: F. C. Gulbenkian/JNICT,


Lisboa, 1994, p. 449): «Kant tem, na verdade, uma imaginação cosmológica, a
qual se exprime ora sob a forma do interesse científico, ora como sentimento
estético e vivência do sublime, ora como questão metafísica, ora, enfim, como
fonte de fecundas analogias que lhe permitem iluminar os mais diversos domí‑
nios sobre que se exerce o seu pensamento.»

118

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mesmo» 30. Trata­‑se de uma mesma lógica, mas não aplicada univo‑
camente, e sim sempre pensada e temperada pelo princípio de ana‑
logia: tal como no grande sistema do cosmos, cada mundo e siste‑
ma, tendo embora o seu centro em si próprio em torno do qual se
move, gira por sua vez, com outros, em torno de centros e de siste‑
mas cada vez mais vastos, assim o homem, embora pensando­‑se
como centro moral da criação, deve igualmente pensar­‑se como es‑
tando em relação com outros mundos e sistemas de criaturas racio‑
nais, cujo centro comum é Deus. E até as forças físicas antagónicas
que sustentam o mundo físico têm a sua réplica no mundo moral e
político, na forma do que Kant, na Idee, chama a insociável sociabilida‑
de (ungesellige Geselligkeit) humana, a qual é regida por leis morais
de atracção e de repulsão, graças às quais se mantém o saudável
equilíbrio tensorial que garante a coexistência das liberdades na
unidade de um sistema que consente a diferença e a autonomia dos
seus membros. Esta é mesmo uma das mais constantes analogias
que Kant tira do mundo físico e aplica ao mundo humano, moral e
político.
Na Crítica do Juízo, o seu autor dá como exemplo de um juízo
por analogia precisamente esse:

Eu posso pensar para mim, segundo a analogia com a


lei da igualdade da acção e reacção na recíproca atracção e
repulsão dos corpos entre si, também a comunidade dos
membros de uma república segundo as regras do direito. 31

Já o fizera também nos Prolegómenos, onde, no § 58, se lê:

Nada posso fazer contra outrem sem lhe dar um direi‑


to de, nas mesmas condições, fazer o mesmo contra mim;
assim como nenhum pode agir sobre outro com a sua força
motriz sem que, com isso, o outro reaja sobre ele na mesma
medida. Aqui o direito e a força motriz são coisas inteira‑
mente dissemelhantes, mas existe na sua relação uma com‑
pleta semelhança. 32

30
  Allg. Nat., Ak I, 246.
31
  Ak V, 464­‑465.
32
  Ak IV, 357­‑358.

119

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Se recuarmos aos escritos da década de 60, surpreendemos a
mesma analogia aplicada à compreensão do conflito de forças em
que consiste e subsiste a relação moral. O mesmo se encontra nas
Considerações sobre o Belo e o Sublime e, de modo insistente, nos So‑
nhos de um Visionário. Nesta última obra, lê­‑se:

Entre as forças que movem o coração humano, as mais


poderosas parecem residir fora dele, as quais, por conse‑
guinte, não se relacionam como meros meios ao proveito
próprio e à necessidade privada, como a um objectivo que
reside dentro do próprio homem, mas fazem com que as
tendências dos nossos movimentos coloquem o foco da sua
união fora de nós noutros seres racionais; do que resulta
um conflito de duas forças, a saber a da individualidade,
que relaciona tudo a si, e a da utilidade comum, mediante
a qual o espírito é impelido e atraído para fora de si em di‑
recção a outros.

É este conflito entre forças antagónicas de atracção (o princípio


de universalidade, expresso na lei) e de repulsão (o princípio de in‑
dividualidade, expresso na máxima) que está dito na concisão da
primeira formulação do imperativo categórico. Tal como acontece
no sistema solar, cada membro gira em torno de si próprio graças à
persistência nele das forças repulsivas ou centrífugas; mas ao mes‑
mo tempo gira, com todos os outros, em torno do centro comum de
atracção. Se só houvesse forças de atracção, toda a individualidade
seria absorvida no corpo central; mas se só houvesse forças repulsi‑
vas, tudo se desintegraria, e nem sequer a individualidade subsisti‑
ria. Só no equilíbrio tensorial das duas forças antagónicas subsiste o
mundo físico e, por analogia com este, também o mundo moral, o
mundo jurídico e o mundo político.
De tal modo é conatural ao espírito de Kant esta analogia que a
reencontramos numa das últimas obras que o filósofo publicou, a
Doutrina da Virtude (parte ii da Metafísica dos Costumes). As duas for‑
ças antinómicas da cosmologia newtoniana são de novo invocadas
para permitir um vislumbre da polaridade estrutural e dinâmica
que preside à relação entre os homens no Estado, expressa nos prin‑
cípios do amor e do respeito. Termino, dando a palavra a Kant:

Se se fala das leis do dever […] e isso na relação externa


dos homens entre si, então consideramo­‑nos num mundo
moral (inteligível), no qual, segundo a analogia com o

120

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[mundo] físico, a união dos seres racionais (sobre a Terra) é
efectuada mediante atracção e repulsão. Em virtude do prin‑
cípio do amor recíproco são eles levados a aproximar­‑se uns
dos outros constantemente, mediante o [princípio] do res‑
peito, que mutuamente se devem, [são levados] a manter­‑se
à distância uns dos outros. 33

33
  Ak VI, 449.

121

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3

KANT E OS LIMITES DO ANTROPOCENTRISMO


ÉTICO-JURÍDICO

Mais de faire la poignée plus grande que le


poing, la brassée plus grande que le bras, et
d’esperer enjamber plus que l’estandue de nos
jambes, cela est impossible et monstrueux. Ny que
l’homme monte au dessus de soy et de l’humanité:
car il ne peut voir que de ses yeux, ni saisir que de
ses prises.
Michel de Montaigne, Essais, II, 12.

Toda a philosophia é um anthropomorphismo.


F. Pessoa, Obras de António Mora, ed. crítica,
INCM, vol. vi, p. 294.

I.  Posição do problema

Em muitos dos debates actuais em torno da ética, sobretudo


quando são equacionadas as questões do ambiente ou da natureza e
respectiva protecção (sob designações várias, tais como: «ética da
terra», «ética ambiental», «direitos da natureza», «direitos dos ani‑
mais», ou outras do género), está implícito o esforço por encontrar
um ponto de vista não antropocêntrico (ou até mesmo não antropo‑
lógico) a partir do qual se possam estabelecer critérios ou princípios
éticos e regras ou normas jurídicas. Esse esforço costuma ir acompa‑
nhado da crítica das éticas tradicionais, que são, em geral, acusadas
do vício de antropocentrismo e, em particular, costuma ser visada
uma das últimas grandes tentativas de fundamentação da ordem
ético-jurídica que foram empreendidas na filosofia ocidental: a que
foi levada a cabo por Immanuel Kant, na Fundamentação da Metafísi‑
ca dos Costumes (1785), na Crítica da Razão Prática (1788) e nas duas
partes da Metafísica dos Costumes (1797), respectivamente, na Doutri‑
na do Direito e na Doutrina da Virtude. O sistema ético kantiano e
o  sistema jurídico que lhe corresponde seriam mesmo, segundo
­alguns, a forma extrema do antropocentrismo ético-jurídico da cul‑

123

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tura ocidental. Fundado no princípio absoluto da dignidade da Hu‑
manidade e no incondicional respeito por esta, e bem assim na au‑
tonomia do sujeito e respectiva intenção, nele não se poderia
reconhecer qualquer relevância ética nem jurídica à natureza, muito
menos qualquer «direito da natureza» ou «direito dos animais» e,
propriamente falando, talvez nem sequer algo assim como o «res‑
peito pela natureza» considerada em si e por si mesma.
O meu propósito, no presente ensaio, é, em primeiro lugar, ten‑
tar ver em que sentido se pode dizer que a filosofia kantiana é ou
não antropocêntrica e qual o tipo de antropocentrismo de que pode
ser com razão acusada; em segundo lugar, tentar surpreender em
vários estratos do pensamento kantiano — antes de mais, no pró‑
prio pensamento ético-jurídico, mas também na estética e na teleo‑
logia kantianas — as fracturas que põem a nu não só as limitações
como até a impossibilidade de qualquer projecto filosófico antropo‑
cêntrico e antropocomplacente. Ao fazer isso, pretendo também ga‑
nhar perspectiva para apreciar certas propostas éticas contemporâ‑
neas, pretensamente não antropocêntricas, que talvez possam ainda
aprender alguma coisa lendo certas páginas pouco visitadas ou não
tidas mesmo em conta do velho filósofo de Königsberg. Dito de ou‑
tro modo: para discutir os problemas actuais da ética ambiental ou
da ética da natureza, teremos que abandonar difinitivamente a lin‑
guagem kantiana e o modo kantiano de equacionar os problemas
éticos e jurídicos, ou podemos ainda aprender alguma coisa de im‑
portante num renovado regresso a Kant, numa releitura de páginas
suas esquecidas ou ­pouco lidas?
A primeira questão que importa elucidar é a de saber quão an‑
tropocêntrica é a filosofia kantiana, questão que de imediato nos
conduz a uma outra: quão antropocêntrica é a ideia kantiana de Hu‑
manidade?
Começarei por evocar algumas acusações típicas, com frequên‑
cia feitas à ética kantiana ou mesmo à filosofia kantiana em geral.
Numa obra, hoje já clássica, publicada em 1958, a filósofa ger‑
mano-americana Hannah Arendt apresentava o pensamento de
Kant como expressivo exemplo do mais extremo antropocentrismo
utilitarista do tipo do homo faber que se desenvolveu na cultura oci‑
dental moderna, de graves implicações para o entendimento da re‑
lação do homem com tudo o que não é humano, e que via exarado
no princípio da moral kantiana segundo o qual nenhum homem
pode ser usado simplesmente como um meio para um fim, mas
deve ser considerado como um fim em si mesmo. Tal princípio, ao
estabelecer o homem como «fim supremo», implicaria a degradação

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da natureza e do mundo a simples meios para os fins humanos, re‑
tirando-lhes, por conseguinte, toda a dignidade própria 1.
Cerca de 20 anos depois, é o filósofo alemão Hans Jonas que visa
de um modo muito particular a ética kantiana, ao afirmar que «toda
a ética tradicional é antropocêntrica». 2 Quer dizer: nela só é reconhe‑
cido sentido ético à relação directa do homem com o homem ou do
homem consigo mesmo. Mas, segundo Jonas, a ética kantiana tem,
além desse, ainda muitos outros defeitos. Nomeadamente, por su‑
postamente decorrer toda no plano da intenção subjectiva das acções
e do puro princípio moral que as inspira, ela não teria em conta o
plano dos efeitos das acções e, em particular, a possibilidade da des‑
truição da natureza pela intervenção técnica do homem. E ao excluir
o conhecimento da esfera da moral, ao confiar apenas na infalibilida‑
de duma intuição moral, ela não está em condições de fornecer à
­acção uma correcta representação do horizonte em que se inscreve e
se desenrola a vida humana. Como ética abstracta e formalista, não
equaciona a acção humana responsável no horizonte da história e da
solidariedade para com as gerações futuras. Mas, sobretudo, ela não
está em condições de reconhecer o direito moral próprio da nature‑
za, a exigência moral que a própria natureza «por si mesma e por
direito próprio» dirige aos humanos. Nela, só o homem é considera‑
do como fim em si mesmo, como um valor absoluto, e tudo o mais
como um simples meio para a acção humana e em função dos fins
humanos. Em alternativa a uma ética regida pelo sentido abstracto
do dever e assim eivada do vício antropocêntrico, como entende ser
a de Kant, Jonas propõe uma ética regida pelo «princípio de respon‑
sabilidade», capaz de levar o homem a respeitar os seres — o Ser — e
o contexto global e concreto das suas acções, e não apenas os estados
ou intenções da sua vontade. Que, em vez de visar como fins em si
mesmos apenas os homens, vise também como um fim em si mesma
a natureza extra-humana, a bioesfera, e não apenas como um todo,

1
  «The anthropocentric utilitarianism of homo faber has found its greatest
expression in the kantian formula that no man must ever become a means to
an end, that every human being is an end in himself. […] The same operation
which establishes man as the ‘supreme end’ permits him […] to degrade nature
and the world into mere means, robbing both of their independent dignity.» The
Human Condition, Chicago University Press, 1958, pp. 155-156.
2
  «Alle traditionelle Ethik ist anthropozentrisch.» Das Prinzip Verant‑
wortung, Versuch einer Ethik für die technologische Zivilisation, Frankfurt/M.,
Suhrkamp, 1984 (1.a ed. 1979), p. 22.

125

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mas também nas suas partes. Que, enfim, no seu propósito, tenha em
conta não apenas o bem humano, mas, incluído neste, também o
bem das coisas extra-humanas 3.
Mais recentemente, Roland Beiner, interpretando a doutrina
kantiana do sublime  4, descobre nela uma refinada e disfarçada for‑
ma de «narcisismo antropológico». Escreve Beiner: «Para Pascal, o
universo pós-copernicano era uma fonte de terror e desespero. Para
Nietzsche, a revolução coperniciana era vista como uma tremenda
libertação. Para Kant, ela coloca um enorme desafio — um desafio
que em última instância se encontra na analítica do sublime na Crí‑
tica do Juízo. Para dar um nome à solução de Kant, deveriamos de‑
signá-la, algo provocatoriamente, como o ‘narcisismo antropológi‑
co’ da concepção kantiana do sublime: o homem olha para os céus e
contempla-se... a si mesmo.» 5
Por diferentes que sejam os autores e os respectivos horizontes
de problematização, há dois tópicos que sobressaem nestas críticas e
que dariam a ideia da magnitude do antropocentrismo kantiano. Em
primeiro lugar, a contraposição entre o homem e a natureza e a ex‑
clusiva opção pelo homem, reforçada por outras oposições estratégi‑
cas da filosofia kantiana: fins em si / meios, dignidade (Würde) / preço

3
  «Es ist zumindest nicht mehr sinnlos, zu fragen, ob der Zustand der
aussermenschlichen Natur, die Biosphäre als Ganzes und in ihren Teilen, die
jetzt unserer Macht unterworfen ist, eben damit ein menschliches Treugut ge‑
worden ist und so etwas wie einen moralischen Anspruch an uns hat — nicht
nur um unsretwillen, sondern auch um ihrer selbst willen und aus eigenem
Recht. Wenn solches der Fall wäre, so würde es kein geringes Umdenken in den
Grundlagen der Ethik erfordern. Es würde bedeuten, nicht nur das menschliche
Gut, sondern auch der Gut aussermenchlicher Dinge zu suchen, das heisst die
Anerkennung von ‘Zwecken an sich selbst’ über die Sphäre des Menschen hi‑
naus auszudehnen und die Sorge dafür in den Begriff des menschlichen Guts
einzubeziehen.» Ibidem, p. 29.
4
  Roland Beiner, «Kant, the Sublime, and Nature», in Roland Beiner / Wil‑
liam James Booth (eds.), Kant & Political Philosophy, Chicago University Press,
1993, pp. 276-288.
5 
«For Pascal, the post-Copernican universe was a source of terror and des‑
peration. For Nietzsche, the Copernican revolution was perceived as a tremen‑
dous liberation. For Kant, it posed a consummate challenge — a challenge that
was ultimately met in the analytic of the sublime in the Critique of Judgment. To
give a name to Kant’s solution, one might call it, somewhat provocatively, the
‘anthropological narcissism’ of Kant’s account of the sublime: man gazes up at
the heavens and apprehends... himself.» Ibidem, p. 283.

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(Preis), pessoas / coisas. Em segundo lugar, uma disfarçada auto‑
complacência do homem em si próprio, que se insinua mesmo na‑
quele domínio onde tal menos poderia esperar-se, já que precisa‑
mente na experiência do sublime o homem é confrontado com os
seus limites (de representação, de conhecimento, de acção, de do‑
minação) em face da incomensurável magnitude e do indomável
poder da natureza.
Mas, ao mesmo tempo, vê-se que o que está em causa nas críti‑
cas apontadas — o equívoco comum em que elas laboram e que não
chegam a pensar — tem que ver precisamente com a ideia kantiana
de Homem e de Humanidade.
Poder-se-ia responder sem dificuldade a estas críticas mostran‑
do que:

1.o Nelas, não é tida em consideração, na sua complexidade


e especificidade, a ideia kantiana de Humanidade. Em
que sentido é o homem um fim em si mesmo? As críticas
à ética de Kant, que a acusam de formalista, abstracta,
a-histórica, etc., deveriam aprofundar a investigação so‑
bre a ideia kantiana de Humanidade e sua fecundidade,
seguindo-a não apenas no plano ético, mas também no
plano jurídico-político e na filosofia kantiana da história
e da cultura. Não é tida em conta nas referidas críticas,
nomeadamente, a distinção kantiana entre homo noume‑
non e homo phaenomenon e o sentido em que se deve to‑
mar a afirmação kantiana segundo a qual «a natureza
racional existe como fim em si» (die vernünftige Natur
existirt als Zweck an sich selbst) 6. Pois não é o homem en‑
quanto ser dotado de razão, na acepção tradicional e
aristotélica, que é visado nessa afirmação, mas supõe-se
a distinção entre o homem sensível, que possui mesmo
entendimento (Verstand), e o homem propriamente ra‑
cional (dotado de razão prática — Vernunft). Só neste
último sentido, ou seja, enquanto ser moral, é a criatura
racional dita um fim absoluto, para si mesma e para a
própria natureza, como adiante melhor se verá.

  I. Kant, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, Ak IV, 429. Salvo indica‑
6

ção em contrário, os textos de Kant serão citados pela Akademie-Ausgabe dos


Gesammelte Schriften (Ak), reimpr. W. de Gruyter, Berlin.

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2.o A distinção kantiana entre fins e meios, entre dignidade e
preço — e a respectiva aplicação à distinção entre pessoas
e coisas — deve ser vista não como um defeito ou um
fracasso (pelo que ainda não consegue), mas antes como
um grande ganho e um decisivo passo no sentido de al‑
cançar um ponto de vista que permitisse superar a racio‑
nalidade mercantil e contabilística, instrumentalista, in‑
teresseira e utilitária dos Modernos. Que haja algo — por
mera ideia que seja — que não entre no circuito da con‑
sumpção universal, do uso e do lucro (quando até já se
perdera o sentido do divino e de qualquer instância do
sagrado) ... e talvez assim se vislumbre a esperança de
que por aí se venha a resgatar também o resto, e a resta‑
belecê-lo na sua dignidade ontológica. E, de facto, é isso
o que se anuncia: na atitude estética (no belo ou no subli‑
me), também a natureza é resgatada da lógica do meca‑
nicismo e do utilitarismo, da arbitrariedade de qualquer
vontade ou arbítrio, do mero uso e consumo e erigida
como objecto de contemplação desinteressada, de vene‑
ração e de estima, mesmo contra o nosso interesse. Con‑
tra o que uma apressada leitura da referida distinção
kantiana poderia concluir, ela não cobre só a distinção
homens / coisas, mas há um sentido (ou mesmo vários)
em que legitimamente também os homens podem ser
pensados e usados como meios e em que, por seu turno,
os seres da natureza (pelo menos os orgânicos) podem
também ser considerados como fins e a própria natureza
no seu todo como um vasto sistema de fins.
3.o Por outro lado, segundo Kant, o sentimento do sublime
não é propriamente a ocasião para uma autocomplacên‑
cia antropocêntrica e narcisista do sujeito, mas coloca
este numa situação de desconforto, pois o que o sujeito
experimenta — na reflexão que é levado a fazer quando
envolvido em certos fenómenos naturais que, seja pela
incomensurável grandeza ou pelo desmedido poder, o
colocam perante a evidência da sua insignificância pe‑
rante a natureza — é, por certo, a consciência da sua des‑
tinação supra-sensível. Mas esta revela-se-lhe como uma
exigência moral e, ao mesmo tempo, põe-no sempre pe‑
rante a consciência da inadequação do seu estado actual
relativamente ao absoluto dessa exigência. Há, sem dú‑
vida, algo de um sentimento de prazer na complexa vi‑

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vência do sublime, e é por isso que se trata de um muito
especial sentimento estético. É, porém, de um «prazer
negativo» que se trata, mais da ordem da «admiração e
do respeito» — aliás, tanto perante a natureza como pe‑
rante si próprio —, do que de qualquer autocomplacên‑
cia narcisista do sujeito. Como mais adiante veremos, a
experiência estética do belo natural e sobretudo a do su‑
blime são precisamente aquelas onde mais claramente
se deixa ver a claudicação do antropocentrismo e, por
paradoxal que pareça, isso dá-se numa vivência que, se‑
gundo Kant, só os seres humanos podem experimentar,
que «vale apenas para os homens». 7

No decurso deste ensaio, penso poder aduzir suficientes ele‑


mentos para mostrar como os críticos do suposto antropocentrismo
kantiano teriam muito mais razão se, em vez de se fixarem em algu‑
mas fórmulas descontextualizadas, que não chegam a pensar, pro‑
cedessem a uma leitura mais ampla do vasto programa da filosofia
crítica.

II. Kant e o antropocentrismo filosófico

Se queremos entender o antropocentrismo de Kant, devemos,


antes de mais, confrontá-lo com as formas historicamente próxi‑
mas do antropocentrismo filosófico, ou seja, com as formas do su‑
posto antropocentrismo filosófico do Renascimento e da Moderni‑
dade.
Mas o que se entende por antropocentrismo, na sua expressão
filosófica? Imediatamente, qualquer doutrina que coloque o homem
no centro do universo ou dos seres, que faça girar o mundo em tor‑
no do homem, do sujeito, ou em função dele. Mas o homem pode
estar no centro — ou no meio — de muitas maneiras. Para disso nos
certificarmos, bastaria que fizéssemos o inventário das formas de
pensamento antropológico do Renascimento, época em que o géne‑
ro alcançou a sua maior expressão. Os discursos acerca da «excelên‑
cia» e «dignidade» do homem oferecem-se aí com profusão e varie‑
dade: uns, como Gianozzo Manetti, relevando as qualidades físicas

7
  Kritik der Urteilskraft, Ak V, 210.

129

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e intelectuais do homem 8. Outros pondo o acento na sua dimensão
espiritual e moral, na sua liberdade, ou na capacidade que o homem
tem de condensar em si, como num microcosmos, todas as formas
de vida do universo, de as interpretar e de as fazer comunicar umas
com as outras, tornando-se assim o elo de ligação entre o mundo
superior dos espíritos e o mundo inferior dos corpos materiais. En‑
tre esses pensadores destaca-se o jovem filósofo Giovanni Pico della
Mirandola. No seu célebre Discurso sobre a Dignidade do Homem (Ora‑
tio de Hominis Dignitate), põe na boca do supremo arquitecto do
mundo estas palavras dirigidas ao homem: «Coloquei-te no meio
do mundo» (medium te mundi posui). Mas, no mesmo contexto e ca‑
racterizando a peculiaridade ontológica dessa estranha criatura que
surge na grande arquitectura do Ser quando já tudo estava preen‑
chido, o arquitecto-criador declara que não dá ao homem nem uma
natureza determinada, nem um lugar certo, para que ele seja o que
ele mesmo determine ser, e ocupe o lugar que ele próprio escolha,
deseje e decida (nec certam sedem... ut quam sedem... tute optaveris, ea,
pro voto, pro tua sententia, habeas et possideas) 9. Segundo Pico, a condi‑
ção ontológica média do homem pode, pois, entender-se não
­propriamente como indicando uma posição ou lugar central, mas
como uma função de mediação. Como já, décadas antes, o propuse‑
ra ­Nicolau de Cusa, o homem é a copula universi — aquele que reali‑
za a conexão entre os mundos superior e inferior (entre Deus e o
Mundo) 10. É este um tópico que foi glosado por muitos pensadores

8
  Gianozzo Manetti, De dignitate et excellentia hominis (1452), ed. crit. de
E. R. Leonard, Antenore, Padova, 1975.
9
  Giovanni Pico della Mirandola, Oratio de hominis dignitate (1486), Opera
Omnia, G. Olms, Hildesheim, 1969, vol. i, p. 314.
10
  Nicolau de Cusa, De venatione sapientiae, cap. 32 (ed. da Academia de
Heidelberg, Felix Meiner, Hamburg, vol. xii, p. 91) : «Est igitur ordo univer‑
si prima et praecisior imago aeternae et incorruptibilis sapientiae, per quem
tota mundi machina pulcherrime et pacifice persistit. Quam pulchre copulam
universi et microcosmum, hominem, in supremo sensibilis naturae et infimo
intelligibilis locavit, conectens in ipso ut in medio inferiora temporalia et supe‑
riora perpetua.» No De docta ignorantia, III, cap 3: «Quapropter natura media,
quae est medium conexionis inferioris er superioris, est solum illa, quae ad
maximum convenienter elevabilis est potentia maximi infiniti dei. Nam cum
ipsa intra se complicet omnes naturas, ut supremum inferioris et infimum su‑
perioris, si ipsa secundum omnia sui ad unionem maximitatis ascenderit, om‑
nes naturas ac totum universum omni possibili modo ad summum gradum in
ipsa pervenisse constat. Humana vero natura est illa, quae est supra omnia dei

130

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do Renascimento, mas que também já o fora por alguns pensadores
medievais e no qual se pode mesmo reconhecer um tema platónico
a que o pensamento hermético deu grande expressão 11. Marsílio Fi‑
cino, na sua obra maior, a Teologia Platónica acerca da Imortalidade das
Almas, ao expor os cinco degraus da sua escada dos seres [Uno
(Deus), anjos, alma, qualidades, corpos] coloca a alma no terceiro
nível, no meio, portanto, quer se desça do Uno aos corpos, quer se
suba da matéria ao Uno: «a alma é o degrau médio das coisas e co‑
necta numa unidade todos os degraus tanto superiores como infe‑
riores, […] pelo que com razão a designamos à maneira platónica
como essência terceira ou média, pois ela é média relativamente a
todas e terceira a partir de qualquer ponto» 12.

opera elevata et paulo minus angelis minorata, intellectualem et sensibilem na‑


turam complicans ac universa intra se constringens, ut microcosmos aut parvus
mundus a veteribus rationabiliter vocitetur. Hinc ipsa est illa, quae si elevata
fuerit in unionem maximitatis, plenitudo omnium perfectionum universi et
singulorum exsisteret, ita ut in ipsa humanitate omnia supremum gradum adi‑
piscerentur.» (Ed. Felix Meiner, Hamburg, 1977, p. 20.) Sobre o tema em Cusa,
v. João Maria André, «O homem como microcosmo. Da concepção dinâmica do
homem em Nicolau de Cusa à inflexão espiritualista da antropologia de Fici‑
no», Philosophica, 14 (1999), pp. 7-30.
11
  Sobre as versões medievais do tema, v. R. Allers, «Microcosmos from
Anaximander to Paracelsus», Traditio, II (1945), pp. 344-348; A. Olerud, L’idée
de macrocosmos et microcosmos dans le «Timée» de Platon, Upsala, 1951; J. McEvoy,
«Philosophical development on the Microcosm and the Macrocosm in the thir‑
teenth century», in L’homme et son univers au Moyen Âge, ed. Ch. Wenin, Louvain,
1986, I, pp. 374-381; Francisco Bertelloni, «Contexto, consecuencias y fuentes de
la doctrina dantesca ‘homo est medium’», Patristica et Mediaevalia, XIII (1992),
pp. 3-21; idem, «El locus Homo=Microcosmos en la literatura política: Egidio
Romano y Dante Alighieri», Veritas, 44 (1999), pp. 789-804; M. Kurdzialek, «Der
Mensch als Abbild des Kosmos», in Der Begriff repraesentatio im Mittelalter (Mis‑
cellanea Mediaevalia, 8), Walter de Gruyter, Berlin /N. York, 1971, pp. 67 e segs.
Os temas antropológicos — dignidade e excelência do homem, sua natureza
divina, sua capacidade de ser igual aos deuses sem abandonar a terra, o seu
poder sobre todas as coisas mundanas, enfim o homem como «um deus mortal
sobre a terra» — estão largamente representados nos tratados do Corpus Herme‑
ticum, os quais, graças sobretudo à tradução de Ficino, tiveram ampla difusão
no Renascimento.
12
  «Anima est medius rerum gradus atque omnes gradus tam superiores
quam inferiores connectit in unum […] quam merito essentiam tertiam ac me‑
diam more Platonico nominamus, quoniam ad omnia media est et undique ter‑
tia.» Marsilio Ficino, Theologia Platonica de immortalitate animorum, ed. bilingue
de R. Marcel, Belles Lettres, Paris, 1964, Lib. Tertius, cap. ii, vol. i, pp. 137-139.

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Um outro pensador humanista, o francês Carolus Bovillus, re‑
tomará depois todos estes motivos com o intuito de marcar não só
a função do homem, mas também a sua diferença ontológica rela‑
tivamente a tudo o resto, antecipando já, de algum modo, o dualis‑
mo cartesiano da res cogitans/ res extensa. Escreve o humanista fran‑
cês: «O homem é nada de todas as coisas e foi feito e criado pela
natureza fora de todas as coisas, para que se tornasse multividente
[…] A natureza do homem é idêntica à do espelho. É da natureza
do espelho que ele esteja colocado fora de todas as coisas, no sen‑
tido contrário e oposto de todas as coisas […] Estando consuma‑
das e perfeitas todas as coisas, Deus viu que faltava o contempla‑
dor de todas as coisas e o olho que as visse todas […] Por
conseguinte, colocou o homem no lugar oposto de todas as coisas,
fora das diferenças e propriedades de todas as coisas, no meio de
todas as coisas.» 13
Os filósofos quatrocentistas ainda insistiam na comunidade que
o homem tem com todas as coisas, ao ponto de ser como que um
condensado microcosmo. E precisamente porque de todas as coisas
está constituído, porque de algum modo tem em si as sementes de
todas as coisas, pode ele conhecê-las e estabelecer ilimitadas media‑
ções entre elas. Em Bovillus, o que acima de tudo releva é a diferen‑
ça ontológica, a condição reflexiva, sublinhada pela imagem do es‑
pelho, e a centralidade ou a exterioridade dizem antes a demarcação
e distanciação do homem relativamente a todos os outros seres e são
condição para a função cognoscitiva e contemplante que na econo‑
mia universal propriamente cabe ao homem.
São inúmeras as variações sobre este tema, no pensamento dos
séculos xv e xvi, mesmo depois de Copérnico. Tem-se repetido, pelo
menos desde Nietzsche, que a cosmologia coperniciana representou
o primeiro grande golpe na visão antropocêntrica, profundamente
associada à representação geocêntrica do cosmos que estabelecia a

  «Homo nichil est omnium et a Natura extra omnia factus et creatus est:
13

ut multividus fiat... Ea siquidem Hominis est, que et speculi natura. Speculi


autem natura est, ut extra omnia locatum sit, cunctis adversum et oppositum...
Nam consummatis et perfectis omnibus... vidit Deus deesse omnium specula‑
torem et universorum oculum... Extra igitur cunctorum differentias et proprie‑
tates in opposito omnium loco, ... in omnium medio coaluit Homo.» Carolus
Bovillus, De Sapiente, cap. 26 (reimpr. facsim. da ed. de Paris, 1510, Fromann,
Stuttgart-Bad Cannstatt, 1970, fo. 132 v.º).

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Terra como a morada do homem 14. Já Kant, aliás, escrevera que a
visão dos inumeráveis mundos proporcionada pela moderna Astro‑
nomia tinha o efeito de «reduzir a nada a importância do homem
como criatura animal» (vernichtet meine Wichtigkeit, als eines thieris‑
chen Geschöpfs) 15. Mas a nova cosmologia coperniciana, embora te‑
nha obrigado a reformular também as representações antropológi‑
cas dos pensadores renascentistas, não significou um imediato
abandono da visão antropocêntrica 16. É assim que vemos um con‑
victo coperniciano e defensor do heliocentrismo, como é Kepler, a
tentar encontrar ainda, precisamente na nova visão da arquitectura
do cosmos, novas e mais fortes razões para legitimar a ideia segun‑
do a qual «o homem é o fim do mundo e de toda a criação» e, à se‑
melhança do Sol na sua relação com os seus planetas, assim é ele
«como um Deus no mundo» 17.
Seguindo um outro filão, e dando por suposta a afinidade, se‑
não a identidade, entre o antropocentrismo e o humanismo filosófi‑
co, poder-se-ia, de acordo com a proposta de Martin Heidegger, en‑
tender o antropocentrismo como aquela filosofia que, partindo
duma definição da essência do humanum, ou da determinação do
que faz o homo humanus, estabelece uma interpretação geral dos
­entes, sem pôr a questão da verdade do Ser e da relação do homem
ao Ser. O antropocentrismo — ou o humanismo — seria um caso de
cegueira ontológica, uma metafísica na forma duma antropologia: o
homem estabelecido como a medida de todas as coisas, dos entes,
do próprio Ser 18. Segundo o professor de Friburgo, todo o huma­
nismo se funda numa metafísica ou é ele mesmo o fundamento de
uma metafísica. Mas isto tem, para ele, como se sabe, um sentido

14
  Nietzsche lê a empresa de Copérnico como o início do cada vez mais
acelerado afastamento do homem do centro para ... o nada, um processo que
se consuma não só na ciência moderna, mas também na própria autocrítica do
conhecimento levada a cabo por Kant. Genealogie der Moral, Sämtliche Werke,
DTV/ W. de Gruyter, Berlin, 1980, Bd. V, 404.
15
  Kritik der praktischen Vernunft, Ak V, 162.
16
  V. Paolo Rossi, «A pluralidade dos mundos e o fim do antropocentris‑
mo», in idem, A Ciência e a Filosofia dos Modernos. Aspectos da Revolução Científica,
UNESP, São Paulo, pp. 215-263.
17
  Johannes Kepler, Mysterium Cosmographicum (1596), Gesammelte Werke,
C. H. Beck, München, Bd. VIII, pp. 90-91.
18
  Martin Heidegger, Über den Humanismus, Vittorio Klostermann, Frank‑
furt a. M., 1949.

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negativo: o pensamento que se dá como humanismo e como metafísi‑
ca — e nisso caberia, segundo Heidegger, todo o pensamento filosó­
fico ocidental desde Platão até ao século xx! —, decorre sob o signo do
esquecimento daquelas que seriam as questões essenciais do pensar:
a questão da verdade do Ser, a questão da relação do homem ao Ser.
Não seguirei o autor da famosa Carta sobre o «Humanismo» nesta
sua redutora proposta hermenêutica da história da filosofia ociden‑
tal, pois nem todas as formas do pensamento metafísico historica‑
mente recenseáveis são medularmente humanistas ou antropocên‑
tricas. E, de resto, também o antropocentrismo filosófico se exprime
ao longo da história da filosofia de muitos modos e segundo vários
registos. Mas há dois principais, que por vezes se combinam e que
estão bem representados nas duas grandes matrizes fundadoras do
pensamento ocidental: a hebraica e a grega. Direi desde já que tam‑
bém não me parece sustentável a opinião, frequente em alguma lite‑
ratura recente, que aponta a visão do mundo hebraico-cristã como o
bode expiatório de todos os males que conduziram à degradação e
destruição da natureza pela cultura tecno-científica moderna e vê
como causa de todos esses males a matriz medularmente antropo‑
cêntrica dessa visão do mundo, a qual contrastaria com a visão do
mundo supostamente fisiocêntrica ou cosmocêntrica do pensamen‑
to grego e do pensamento oriental 19.

19
  Nem os mais avisados espíritos evitam esse juízo fácil. É o caso de Clau‑
de Lévi-Strauss, muitas vezes acusado de defender um anti-humanismo, que
dessa acusação se defende nestes termos: «Ce contre quoi je me suis insurgé,
et dont je ressens profondément la nocivité, c’est cette espèce d’humanisme
dévergondé issu, d’une part, de la tradition judéo-chrétienne, et, d’autre part,
plus près de nous, de la Renaissance et du cartésianisme, qui fait de l’homme
un maître, un seigneur absolu de la création.» Claude Lévi-Strauss, «Entretien»,
Le Monde (21 janvier 1979), p. 4. Num sentido contrário, sublinhando a dupla
linhagem hebraica e grega do antropocentrismo, vai John Passmore, «Man as
Despot», in Man’s Responsability for Nature, Duckworth, London, 1980, p. 17. Em
particular, no pensamento dos estóicos, e pese embora o que se poderia consi‑
derar o paradigma fisiocêntrico do estoicismo, é comum a ideia de que «todas
as coisas foram feitas para o homem», como se lê em Cícero (De natura deo‑
rum, 2.53, 2.61) e será repetido por Marco Aurélio. Sobre esta versão estóica do
antropocentrismo, v. Alan J. Holland, «Fortitude and Tragedy: The Prospects
for a Stoic Environmentalism», in Laura Westra / Thomas M. Robinson (eds.),
The Greeks and The Environment, Rowman & Littlefield Publ., Lanham / New
York / Boulder / Oxford, 1997, pp. 151-166. Para o mesmo tema no pensamento
­oriental, v. o volume de ensaios editado por J. Baird Callicott e Roger T. Ames,

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De facto, segundo o relato de Genesis 1, 28-30, a criação do ho‑
mem ocorre após a criação de todos os outros seres e estes são dados
ao homem não só para que lhes dê nome (os conheça), mas também
como uma propriedade sobre a qual exerça o seu domínio. A concep‑
ção do homem como «fim da criação» e como «senhor da natureza»,
a quem estão submetidos e subordinados, como meios para o seu
uso, todos os seres, encontra sem dúvida neste passo bíblico uma das
mais arcaicas justificações e este texto passará a ter uma função canó‑
nica de referência: ao mesmo tempo que a legitima, é causa de uma
bem determinada visão do homem e da relação deste com os outros
seres. Assim, quando o filósofo inglês Francis Bacon, pelo ano de
1620, propõe a sua reforma da ciência e da técnica graças à qual pode‑
ria o homem vir a exercer um domínio ilimitado sobre a natureza
submetendo-a aos seus fins e interesses, sente necessidade de reforçar
retoricamente a sua proposta filosófica e a sua concepção da natureza
como regnum hominis e evoca expressamente o citado texto bíblico,
dizendo que, se outrora pelo pecado o homem havia perdido o domí‑
nio das criaturas que originariamente lhe fora dado pelo Criador, do‑
ravante, mediante a ciência e a técnica, ele pode recuperar esse domí‑
nio e assim libertar-se da condenação que lhe foi infligida, ao ser
expulso do paraíso 20. A ciência e a técnica conjugadas seriam os ga‑
rantes de uma nova utopia, do regresso a um paraíso, não já ao da
criação divina, mas a um outro de construção humana. Compreende­
‑se que alguns críticos actuais da racionalidade moderna vejam nesta
utopia baconiana, que instaura a moderna concepção do domínio
científico e técnico sobre a natureza, uma natural continuidade com o
antropocentrismo bíblico. Esquecem, porém, esses críticos e aliás Ba‑
con também o silenciava, que segundo o citado livro bíblico, antes de
ser dada como propriedade e domínio, a natureza fora criada e doada
ao homem também com a incumbência de este a cuidar e a guardar 21,

Nature in Asian Traditions of Thought: Essays in Environmental Philosophy, State


University of New York Press, Albany, N.Y., 1989. R. Mondolfo, na sua obra,
O  Homem na Cultura Antiga (Editora Mestre Jou, São Paulo, 1968; na versão
original intitulado La comprensión del sujeto humano en la cultura antigua, 1955),
mostrou o quanto o tema do homem é central no pensamento antigo, grego e
romano, relativizando a ideia de cosmocentrismo e objectivismo associada a
essas formas e épocas de pensamento.
20
  Francis Bacon, Novum Organum, II, afor. 52 (The Works of F. B., ed. Sped‑
ding/Ellis/Heath, London, 1887-1892, vol. i).
21
  Genesis, 2,15-17.

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e que a esta incumbência estava associado o sentido de um limite ao
absoluto domínio e à arbitrariedade humana, limite que não deveria
ser transgredido e que está representado na proibição de comer o fru‑
to da misteriosa árvore da ciência do bem e do mal 22. Esquecem igual‑
mente que Bacon se inspirou, para a sua visão da utopia de uma civi‑
lização técnico-científica, não apenas no citado texto bíblico, mas
também no mito grego de Prometeu, homólogo helénico do Adão dos
Hebreus, que ele interpretava como símbolo do estado do homem
(Prometheus sive status hominis) e no qual concorrem não só os motivos

22
  Essa consciência era, porém, ainda muito presente a Pico della Miran‑
dola, e está expressa no cap. vii da parte v do seu Heptaplus (Opera Omnia, ed.
1557-1573, reimpr.: Olms, Hildesheim, 1969, p. 39): «Homini mancipantur ter‑
restria, homini fauent coelestia, quia & coelestium & terrestrium uinculum &
nodus est, nec possunt utraque haec non habere cum eo pacem, si modo ipse
decum pacem habuerit, qui illorum in seipso pacem & foedera sancit. At cauea‑
mus quaeso, ne in tanta dignitate constituti non intelligamus: Verum illud ante
oculos semper animi habeamus, uti & certam & exploratam & indubiam ueri‑
tatem, sicuti fauent omnia nobis eam legem servantibus quae nobis est data,
ita si per peccatum per legis praeuaricationem de orbita defecerimus, omnia
aduersa infesta inimicaque habituros.» Quanto a Francis Bacon, ele apenas deu
voz a um sentimento que se desenvolvera no Renascimento e que associava os
ilimitados poderes reconhecidos ao homem sobre a natureza a um outro mo‑
tivo bíblico, retirado também do relato da criação, segundo o qual o homem,
imago Dei e criado ad similitudinem Dei, verdadeiramente se reconhece como um
«deus na terra» (tema que encontramos sob diversas formas em pensadores
tão diferentes e distantes quanto Coluccio Salutati, Nicolau de Cusa, Gian­nozzo
Manetti, Marsilio Ficino, Cornélio Agripa de Nettesheim, Francis Bacon, Johan‑
nes Kepler e Thomas Hobbes). Giordano Bruno dá dele um sugestivo desen‑
volvimento num dos seus diálogos morais: «Os deuses deram ao homem o
intelecto e as mãos e fizeram-no semelhante a eles, dando-lhe o poder sobre
os outros animais; o qual consiste não só em poder operar segundo a natureza
e o seu modo ordinário, mas, além disso, em operar fora das leis da natureza;
ou seja, formando ou podendo formar outras naturezas, outros cursos, outras
ordens com o engenho, com aquela liberdade sem a qual ele não teria a dita
seme­lhança, e assim fosse o deus na terra.» Lo Spaccio della bestia trionfante,
Opere italiane, II, Bari, Laterza, 1927, p. 152. O tópico do «homo quidam deus
in mundo», embora se possa considerar como sendo de originária inspiração
bíblica, recebe contudo uma enorme amplificação e desenvolvimento em dois
tratados do Corpus Hermeticum que vieram a ter larga difusão e influência no
Renascimento, o Asclepius e o Pimandro. V. o nosso ensaio «O humano, o inu‑
mano e o sobre-humano no pensamento antropológico do Renascimento», in
O  Espírito da Letra — Ensaios de Hermenêutica da Modernidade, INCM, Lisboa,
2007, pp. 59-71.

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da centralidade do homem no mundo como o seu ilimitado poder
sobre todas as coisas, graças ao fogo que brilha nas suas ciências e
aquece as forjas onde fabrica as suas artes, mediante as quais domina
a natureza e a submete aos seus propósitos 23. Esquecem, enfim, as
heteróclitas raízes herméticas (colhidas nomeadamente no Pimandro e
no Asclépio) de que se alimenta a visão renascentista e protomoderna
da natureza e da relação do homem com ela 24.
Mas há ainda uma outra matriz do pensamento antropocêntri‑
co, também representada no pensamento grego, que se compendia
na bem conhecida sentença de Protágoras: «de todas as coisas o ho‑
mem é a medida» 25. Se Bacon representa, nos alvores da Moderni‑
dade, a reinvenção do antropocentrismo bíblico e prometeico — do
homem senhor e proprietário da natureza (mas que, entretanto, per‑
deu o sentido de que esta, antes de ser propriedade sua, é para ele
um dom que gratuitamente lhe foi confiado, também para o cuidar
e conservar, e igualmente esqueceu a mensagem do mito antigo, se‑
gundo o qual também a ciência e as técnicas lhe foram dadas pelo
mítico benfeitor dos humanos, embora proviessem de um roubo fei‑
to aos deuses), Descartes, pela sua concepção da mathesis como ciên‑
cia da ordem e da medida que a tudo se aplica, pode considerar-se
o restaurador destoutro antropocentrismo de inspiração helénica 26,
embora nele também tenha eco o registo bíblico e baconiano do ho‑
mem, tornado, pelos conhecimentos úteis que a nova filosofia e
­ciência permitem, «maître et possesseur de la Nature» 27.
Na filosofia de Kant encontramos não só abundantes vestígios
destas duas matrizes de pensamento, como o respectivo ­cruzamento

23
  F. Bacon, De sapientia veterum (1609), The Works of F. B., ed. cit., vol. vi,
pp. 670-671.
24
  Como amplamente mostrou Frances Yates, sobretudo na sua obra Gior‑
dano Bruno and the Hermetic Tradition, Chicago, 1964. V. também Brian Vickers
(ed.), Occult and Scientific Mentalities in the Renaissance, Cambridge University
Press, Cambridge, 1984.
25
  Protágoras, DK 80, B 1.
26
  Ninguém insistiu mais nesta vertente interpretativa do que Martin Hei‑
degger, que vê a metafísica cartesiana da subjectividade apenas como uma ra‑
dicalização da sentença do sofista Protágoras. V. M. Heidegger, «Die Zeit des
Weltbildes», Holzwege (trad. portuguesa de Alexandre Franco de Sá: «O tempo
da imagem do mundo», Caminhos da Floresta, F. C. Gulbenkian / Centro de Fi‑
losofia da Universidade de Lisboa, 2001).
27
  R. Descartes, Discours de la Méthode, Œuvres, ed. Ch. Adam-P. Tannery,
(reimpr. Paris, Vrin, 1996), vol. vi, p. 62.

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e aprofundamento reflexivo 28. Também o filósofo crítico glosa à sua
maneira e de diversos modos a linguagem político-jurídica em que
se escreveu o programa da moderna ciência da natureza, falando
das «leis da natureza», da «legislação» do entendimento para a na‑
tureza, do entendimento e da razão como duas instâncias legislado‑
ras autónomas (uma para a natureza, a outra para a liberdade), da
natureza como um «domínio» (Gebiet, ditio) sobre o qual o entendi‑
mento exerce legitimamente a sua competência legislativa 29.
São bem conhecidas as passagens. Por exemplo, no §  36 dos
Prolegómenos, lê-se: «o entendimento cria a priori as suas leis não a
partir da natureza, mas prescreve-lhas» (der Verstand schöpft seine
Gesetze (a priori) nicht aus der Natur, sondern schreibt sie dieser vor) 30.
No prefácio à 2.ª ed. da Crítica da Razão Pura, apresenta-se a razão
como um juiz munido de leis seguras que submete a natureza a in‑
terrogatório, obrigando-a a responder às suas questões (die Ver‑
nunft... mit Principien ihrer Urtheile nach beständigen Gesetzen ... die
Natur nöthigen müsse auf ihre Fragen zu antworten) 31. De facto, a meta‑
fórica política e jurídica enquadra toda a filosofia kantiana e antes
de mais modela a própria filosofia kantiana do conhecimento que
tem por objecto a natureza 32. O homem é «senhor da natureza» (Herr
der Natur) sobretudo quando pelo entendimento legisla sobre ela.
E é esta legislação do entendimento para a natureza que garante a
este o título de «propriedade» (Besitz) que legitima o seu direito de
domínio sobre a natureza. Por certo, Kant atenua esta atitude domi‑
nadora, quando diz que o domínio do entendimento sobre a nature‑
za não deve ser violento nem dictatorial, como é o dos filósofos dog‑
máticos que estabelecem arbitrariamente as suas leis sem ter em
consideração a natureza, mas deve antes ser um domínio civilizado
e segundo a lei, procurando ouvir as testemunhas, isto é, interro‑
gando os fenómenos, mediante os procedimentos da investigação
física — a observação e a experimentação 33.

  Como já mostrei noutro lugar, o mito de Prometeu não assume qualquer


28

relevância no contexto da filosofia kantiana. V. Metáforas da Razão ou Economia


Poética do Pensar Kantiano, JNICT/F. C. Gulbenkian, Lisboa, 1994, p. 272.
29
  Kritik der Urteilskraft, Ak V, 174-175.
30
  Prolegomena, Ak IV, 320.
31
  Kritik der reinen Vernunft, B XIII, Ak III, 10.
32
  V. o meu Metáforas da Razão ou Economia Poética do Pensar Kantiano,
pp. 571 e segs.
33
  Kritik der reinen Vernunft, B 720, Ak III, 455.

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Por outro lado, na linha da concepção cartesiana do saber como
medida e ordem, também Kant apresenta o sistema de leis do en‑
tendimento como aquilo mediante o qual este mede a natureza e
lhe traça a topografia — por certo, uma topografia ou geomensura
transcendental — determinando no país do entendimento a cada
coisa o seu lugar. Numa notável página da Crítica da Razão Pura,
faz-se a síntese do trabalho desenvolvido na Analítica Transcen‑
dental, que conduziu ao estabelecimento da fundamental distinção
de todos os objectos dados à razão em fenómenos e noumenos. Es‑
creve Kant: «Não só percorremos o país do entendimento puro e
examinámos cuidadosamente cada uma das suas partes, mas tam‑
bém o medimos e nele determinámos a cada coisa a sua posição.»
(Sondern es auch durchmessen und jedem Dinge auf demselben seine
Stelle bestimmt.) 34 Mas a continuação do capítulo logo diz todo o li‑
mite desta medida e deste domínio territorial exercido pelo enten‑
dimento sobre a natureza: «Este país, porém, é uma ilha e está en‑
cerrado pela própria natureza em fronteiras imutáveis. É o país da
verdade (um estimulante nome), rodeado por um oceano imenso e
tormentoso... Antes de nos aventurarmos a este mar... lancemos
ainda um último olhar ao mapa do país, que queremos abandonar,
e perguntemos... a que título possuímos este país [unter welchem
Titel wir denn selbst dieses Land besitzen] de modo a podermos estar
seguros contra todas as pretensões inimigas.» 35 Ou seja, toda a se‑
gurança, determinação e medida, toda a propriedade — toda a
«verdade» acessível ao homem — é não só incontornavelmente li‑
mitada e insular, como é instável e ela mesma indeterminada, como
o é uma pequena ilha envolta num imenso oceano de nevoeiros e
de tormentas, cujos limites e horizonte não são perceptíveis. É, por
acréscimo, apenas de fenómenos, e não de coisas-em-si mesmas ou
de noumenos.
Em suma, a Crítica da Razão Pura dá sobejo suporte e continui‑
dade à ideia baconiana de que o homem é «senhor da natureza» e
seu «proprietário» — Herr der Natur, Meister über die Natur 36 — e à
ideia cartesiana da razão como instância que mede todo o seu espa‑
ço e nele dispõe por ordem todos os seus objectos, embora ao mes‑
mo tempo circunscreva os estreitos limites — não só extensivos

34
  Kritik der reinen Vernunft, B 294, Ak III, 202.
35
  Ibidem.
36
  Kritik der reinen Vernunft, B 753, Ak III, 476.

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como sobretudo intensivos — em que tal senhorio e domínio se pro‑
cessam. Mas não termina nela a meditação kantiana acerca destes
tópicos. Essa meditação prossegue e ganha maior densidade ainda
nos últimos parágrafos da Crítica do Juízo e mesmo em algumas
­páginas do Opus postumum. Na segunda parte da terceira Crítica, o
tópico é trabalhado não só sob a fórmula do homem como «senhor
da natureza», mas sobretudo sob a fórmula do homem como fim
final da criação, e isto não apenas como «fim último» (letzter Zweck)
no plano duma teleologia da natureza (da natureza concebida
como um sistema de fins naturais), mas sobretudo como «fim final»
­(Endzweck), no plano de uma teleologia moral que integre, já num
plano extramundano, a própria teleologia natural.
Quando, mediante a sua faculdade de julgar reflexionante, con‑
templa o espectáculo da natureza no seu todo como um grande sis‑
tema, o homem reconhece-se nela apenas como um simples elo na
vasta cadeia dos fins naturais, sem qualquer especial privilégio rela‑
tivamente aos outros seres. Mas, ao mesmo tempo, na medida em
que se descobre como sendo o único ser sobre a Terra que tem razão
e, graças a esta, a capacidade de representar para si mesmo — subjec­
tivamente, portanto — a natureza no seu todo como um vasto siste‑
ma de fins (mesmo que, objectivamente, nela tudo se processe de
facto apenas segundo o mais rigoroso determinismo), e sobretudo
porque ele, enquanto ser dotado de uma vontade livre, tem o poder
de se colocar a si mesmo fins (cuja realização deve depois prosse‑
guir mediante as suas acções), pode o homem considerar-se com
razão «senhor da natureza». Mas este senhorio ou domínio vem
afectado de uma fragilidade essencial: não decorre de um saber ab‑
soluto, mas é feito na atenção constante à natureza, numa interpre‑
tação sempre conjecturante dos fenómenos desta, uma interpretação
ou pressuposição válida apenas em função do sujeito e da sua ne‑
cessidade de dar sentido ao todo da natureza e à sua solidária rela‑
ção com esse todo. Por isso, o domínio do homem sobre a natureza,
que a apreciação teleológica permite pensar, não é visto como neces‑
sariamente negativo ou perturbador para o sistema da natureza.
Pelo contrário, sendo o homem antes de mais um ser da natureza,
cumpre também ele naturalmente no sistema da natureza a sua par‑
te, pois é legítimo pensar que, enquanto ser da natureza, também
ele tenha, na economia finalizada desta, a sua peculiar função com a
qual contribui para a realização do todo. Sendo ele mesmo um ele‑
mento da natureza, entendida esta como um vasto e complexo siste‑
ma de fins, pode ele ser também um meio para a conservação desse
complexo sistema, gerindo sensata e finalizadamente os ­mecanismos

140

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da natureza, que, deixados a si mesmos, não raro são mais destruti‑
vos do que criativos. Mas mesmo esta capacidade de gestão sensata
e finalizada é precária, não só devido à condição fragmentária e con‑
jecturante (meramente reflexionante) do seu conhecimento da com‑
plexidade do sistema da natureza, como sobretudo devido à sua
incapacidade de dominar ou de controlar de um modo absoluto me‑
diante as suas técnicas as poderosas forças da natureza e os comple‑
xos processos cósmicos que as gerem. A apreciação teleológica e o
senhorio sobre a natureza que ela permite ao homem, mais do que
garantir aquele seguro domínio sobre a natureza que Francis Bacon
sonhava poder alcançar com a ciência e a técnica, parece adequar-se
mais ao cuidado e conservação da natureza como um sistema de
fins, à gestão modesta e precária da natureza, tentando não destruir
os frágeis equilíbrios em que esta se lhe oferece, sem nada perder da
sua ilimitada diversidade, até mesmo do que imediatamente parece
ser inútil.
A consideração teleológica, que Kant atribui não ao entendi‑
mento ou à razão mas à faculdade de julgar reflexionante, coloca o
espírito numa atitude perante a natureza que tem uma profunda e
essencial analogia com a atitude estética, a qual é meramente con‑
templativa e desinteressada, e esta é sem dúvida uma das principais
razões que levaram o filósofo a associar as duas vivências (a estética
e a teleológica) e a atribuí-las à mesma faculdade do espírito. Se a
Crítica do Juízo reitera a linguagem política do senhorio humano so‑
bre a natureza, e até a amplia, é só à custa de lhe alterar profunda‑
mente o sentido. Cite-se um dos muitos textos em que Kant reelabo‑
ra a sua concepção do lugar do homem na natureza e do tipo de
relação do homem com a natureza que se torna possível a partir do
ponto de vista da «apreciação teleológica»: «O homem é sempre
apenas um elo na cadeia dos fins da natureza: sem dúvida princípio
com relação a muitos fins, para o que a natureza parece tê-lo desti‑
nado na sua disposição, e na medida em que ele próprio se faz para
isso. Mas também é meio para a conservação da conformidade a fins
no mecanismo dos restantes membros [Erhaltung der Zweckmässig­
keit im Mechanism der übrigen Glieder]. Enquanto único ser na Terra
que possui entendimento, por conseguinte, uma faculdade de vo‑
luntariamente colocar a si mesmo fins, ele é correctamente intitula‑
do senhor da natureza [Herr der Natur] e, se considerarmos esta
como um sistema teleológico, ele é correctamente denominado o
fim último da natureza segundo a sua determinação [seiner Bestim‑
mung nach der letzte Zweck der Natur]; mas ainda sempre na condição
— isto é, na medida em que o compreenda e queira — de conferir

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àquela e a si mesmo uma tal referência a fins [Zweckbeziehung] que
possa ser suficientemente independente da própria natureza, por
conseguinte, que possa ser um fim final [Endzweck], o qual, contudo
não pode de modo nenhum ser procurado na natureza.» 37
Em suma: se o homem pode ser considerado como fim da cria‑
ção, já no plano de uma consideração teleológica da natureza, há
ainda um outro plano onde essa sua prerrogativa se revela melhor e
em toda a sua dimensão. «Senhor da natureza», «fim último da cria‑
ção» é o homem, sim, mas não tanto enquanto ser físico, ou mesmo
enquanto ser dotado de razão especulativa capaz de usar para de‑
terminados objectivos os seres da natureza, e sim enquanto um ser
moral, capaz de dar-se a si e à natureza uma destinação supra-sen‑
sível. Não o homem, portanto, enquanto capaz de conhecer a natu‑
reza, ou enquanto capaz de a usar em seu proveito, e nem sequer
mesmo enquanto capaz de a contemplar teleologicamente e apre‑
ciar esteticamente. E sim apenas enquanto um ser que descobre em
si mesmo algo que constitui um valor absoluto e um fim em si mes‑
mo — uma boa vontade. Por conseguinte, «só enquanto ser moral
pode o homem ser um fim final da criação» (der Mensch nur als mo‑
ralisches Wesen ein Endzweck der Schöpfung sein könne) 38.
O § 87 da mesma obra insiste nesta ideia: «Existe um princípio
que a razão mais comum tem que imediatamente aprovar: se deve
haver um fim final [Endzweck] que a razão tem que indicar, este não
pode ser outro senão o homem (qualquer ser racional do mundo)
sob leis morais. É que (assim julga toda a gente) se o mundo fosse
constituído por seres sem vida, ou então em parte por seres vivos
mas privados de razão, a sua existência não teria absolutamente ne‑
nhum valor, porque nele nenhum ser existiria que tivesse o mínimo
conceito de um valor. Pelo contrário, se existissem seres racionais,
cuja razão porém tivesse condições para colocar o valor da existên‑
cia das coisas somente na relação da natureza com eles (com o seu
bem-estar), mas não para originariamente (na liberdade) conseguir
para eles mesmos esse valor, nesse caso, existiriam na verdade fins
(relativos) no mundo, mas nenhum (absoluto) fim final [Endzweck],
já que então a existência de tais seres racionais seria sempre privada
de fim. Mas as leis morais têm como característica peculiar o facto
de prescreverem incondicionalmente à razão algo como fim, por

37
  Kritik der Urteilskraft, Ak V, 430-431.
38
  Kritik der Urteilskraft , Ak V, 449-450.

142

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conseguinte, precisamente como é exigido pelo conceito de um fim.
Por isso, a existência de uma tal razão, que na relação final consigo
mesma pode ser a lei suprema — por outras palavras, unicamente a
existência de seres racionais sob leis morais — pode ser pensada
como fim final [Endzweck] da existência do mundo... A lei moral,
enquanto condição formal da razão no que respeita ao uso da nossa
liberdade, obriga-nos só por si, sem depender de qualquer fim como
condição material. Mas todavia também nos determina, e mesmo a
priori, um fim final [Endzweck], para o qual ela nos obriga e este é o
bem supremo no mundo possível pela liberdade [höchste durch
Freiheit mögliche Gut in der Welt].» 39
Temos seguido o fio condutor da ideia kantiana do homem
como «senhor da natureza» e como «fim da criação» e visto o signi‑
ficado que estas expressões alcançam no contexto da filosofia crítica,
onde são submetidas a uma profunda transformação do seu sentido
mais óbvio e comum. Noutros textos do filósofo, a relação do ho‑
mem com a natureza e o seu lugar nela são ditos por outras ima‑
gens. Assim, nas Lições sobre Filosofia da Religião, diz-se que o homem
considera-se «o centrum da criação com o qual tudo no mundo tem
relação», mas só é isso graças à sua condição racional e moral — en‑
quanto pessoa, portanto. Não se interprete, porém, apressadamente
esta afirmação, como se ela confirmasse a recaída num explícito e
redutor antropocentrismo. Na verdade, tal como no grande sistema
do cosmos, cada mundo e sistema, tendo embora o seu centro, gira
por sua vez em torno de centros e de sistemas cada vez mais vastos,
assim também o homem, embora centro moral da criação, está, to‑
davia em relação com outros mundos e sistemas de criaturas racio‑
nais cujo centro comum e cuja periferia é Deus 40. De facto, a estru­
tura policêntrica do cosmos físico tem a sua correspondência na
organização policêntrica do mundo moral. E assim, não é tanto a
imagem geométrica do centro quanto a imagem óptica do foco (pon‑
to de relação) que melhor diz essa condição do homem. Escreve
Kant: «Como pessoa ele — o homem — é um focus (um ponto de
referência) da criação, mas nenhum centrum, embora ele pretenda

  Kritik der Urteilskraft , Ak V, 449-450.


39

  «Die vernünftige Geschöpfe das Centrum der Schöpfung ausmachen,


40

auf welches Alles in der Welt Beziehung hat, die aber unter einander sich wied‑
er als wechselseitige Mittel auf einander beziehen.» Vorl. ü. phil. Religionslehre,
ed. K. H. L. Politz, Leipzig, 1830 (reimpr. WBG, Darmstadt, 1982), p. 195.

143

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constituir-se como tal.» 41 Propriamente falando, pois, o homem é,
segundo Kant, um ser descentrado, excêntrico, suspenso entre
dois  mundos, um ser anfíbio, colocado numa «situação média»
­(Mittelstand) igualmente afastada dos extremos, situado no «perigo‑
so ponto intermédio» (gefährliche Zwischenpunkt) ou na «perigosa
via média» (in der gefährlichen Mittelstrasse) da cadeia dos seres 42.
Por isso mesmo, ele é o ser da mediação, o istmo, a copula mundi, o
terminus medius. Se as referidas primeiras expressões dão o tom da
antropologia kantiana que se desenha no contexto do seu pensa‑
mento cosmológico-teodiceico do ano de 1755, exposto na parte iii
da História Universal da Natureza e Teoria do Firmamento (Allgemeine
Naturgeschichte und Theorie des Himmels), já as últimas são recorren‑
tes sobretudo nas derradeiras reflexões registadas nas folhas soltas
do que se convencionou chamar o Opus postumum. Aqui, sob a epí‑
grafe «O mais elevado ponto de vista da filosofia transcendental»,
surpreendemos esta síntese em diversas formulações: o Homem, en‑
quanto pessoa, enquanto ser moral, enquanto ser do mundo, que ao
mesmo tempo julga e pensa, é o «medius terminus», a «copula», o «meio
de ligação» (Verbindungsmittel) que une em si mesmo pelo pensamen‑
to Deus e o Mundo numa relação real. Cite-se extensivamente um
desses desenvolvimentos: «Sistema da filosofia transcendental em
três divisões — Deus, o Mundo, universum e eu próprio o Homem
como ser moral... Deus, o Mundo e aquilo que pensa ambos frente a
frente numa relação real, o sujeito como ser mundano racional. O me‑
dius terminus (copula) no juízo é aqui o sujeito que julga (o ser munda‑
no pensante, o Homem, no mundo).» 43
Como se vê, não só nos seus primeiros escritos mas também nas
suas derradeiras reflexões, Kant recupera para o contexto da sua fi‑
losofia transcendental as fórmulas aparentemente arcaicas em que
muitos pensadores renascentistas e até mesmo alguns medievais e
tardo-antigos haviam dado forma à sua antropologia, insistindo
também ele na função do Homem como mediador entre o mundo
sensível (a natureza, o mundo) e o mundo inteligível (Deus).

  «Als Persohn ist er — der Mensch — ein focus (Beziehungspunkt) der


41

Schöpfung, aber kein Centrum, wozu er sich doch gern macht.» Refl. 1482,
Ak XV, 662
42
  Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels, Ak I, 359, 365-366.
43
  Opus Postumum, Ak XXI, 29-31.

144

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III.  A ideia kantiana de Humanidade

Deixámos acima indicada uma outra pista que devemos seguir


para chegarmos a perceber o quanto a filosofia kantiana é ou não
antropocêntrica: a do esclarecimento da suspeita ideia de Humani‑
dade, recorrente sobretudo no contexto da filosofia moral kantiana.
«Que é o homem?» (Was ist der Mensch?) é, como se sabe, uma das
quatro questões da filosofia, segundo o entendimento que Kant tinha
desta, e é mesmo a questão a que se reduzem todas as outras (que pos‑
so conhecer? Que devo fazer? Que me é permitido esperar?). Mas, por
muito que o filósofo tenha escrito sobre antropologia «pragmática», so‑
bre antropologia descritiva e sobre antropologia moral, a questão do
homem ficou ainda em aberto no seu pensamento. Michel Foucault,
profundo conhecedor da antropologia kantiana, acusou o pensamento
contemporâneo de ser dominado por um «sono antropológico», mas
não envolveu nessa acusação a filosofia de Kant, pois reconhece que, ao
contrário dos pensadores que lhe seguiram, em Kant está sempre pre‑
sente a distinção entre o ponto de vista empírico e o ponto de vista
transcendental 44. Ora é precisamente esta confusão de planos que im‑
pede ainda hoje a compreensão da filosofia de Kant por parte de mui‑
tos dos seus críticos. Na verdade, a primeira separação que Kant nos
propõe não é entre homens e coisas, mas sim, no próprio homem, entre
Homem e Humanidade (entre o homem, enquanto ser físico sensível e
racional, e o homem enquanto pessoa ou ser racional moral), entre homo
phaenomenon e homo noumenon. Esta distinção — este duplo ponto de
vista — é não só essencial e fundamental, como é uma distinção estra‑
tégica e se ela não for presente corre-se o risco de não se entender nada
do que Kant nos diz a respeito do Homem e da ­Humanidade.
Muitas passagens poderiam ser citadas para documentar este
tópico. Mas vou limitar-me a algumas poucas.
Numa das últimas obras publicadas por Kant, a Doutrina da Virtu‑
de, lê-se este passo que pode considerar-se como uma feliz síntese do
seu pensamento sobre o assunto: «O homem no sistema da natureza
(homo phaenomenon, animal rationale) é um ser de diminuto significado
e tem com os restantes animais, enquanto produtos da terra, um valor
vulgar (pretium vulgare). Mesmo que em relação a estes ele tenha a
vantagem do entendimento e possa pôr-se fins a si mesmo, isso só lhe

44
  Michel Foucault, Les mots et les choses, Paris, 1966 (trad. portuguesa:
As Palavras e as Coisas, Lisboa, Portugália, s. d., pp. 443 e segs).

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dá um valor exterior da sua utilidade (pretium usus), a saber de um
homem em comparação com outro, isto é um preço, como uma merca‑
doria, no comércio com estes animais enquanto coisas, onde ele por
certo tem um valor ainda menor do que o meio de troca universal, o
dinheiro, cujo valor por isso é chamado insigne (pretium eminens).
­Somente o homem considerado enquanto Pessoa, isto é, enquanto su‑
jeito de uma razão moral-prática, é sublime acima de qualquer preço,
pois enquanto tal (homo noumenon), ele deve ser apreciado não como
simples meio para os fins próprios de outros e nem mesmo para os
seus próprios, mas enquanto fim em si mesmo, isto é, ele possui uma
dignidade (um valor íntimo absoluto), graças à qual ele requer para si
o respeito de todos os outros seres racionais do mundo.» 45
Muitos textos insistem nesta distinção sobre a qual se funda e
em torno da qual gira toda a ética kantiana. Na Crítica da Razão Prá‑
tica lê-se: «O homem é por certo suficientemente profano, mas a Hu‑
manidade na sua pessoa deve ser para ele sagrada. Em toda a cria‑
ção tudo pode ser usado simplesmente como meio, tanto quanto se
queira e se possa; somente o homem e com ele toda a criatura racio‑
nal é fim em si mesmo.» 46

45
  «Der Mensch im System der Natur (homo phaenomenon, animal ­rationale)
ist  ein Wesen von geringer Bedeutung und hat mit den übrigen Tieren, als
Erzeugnissen des Bodens, einen gemeinen Wert (pretium vulgare). Selbst, dass er
vor diesen den Verstand voraus hat, und sich selbst Zwecke setzen kann, das gibt
ihm doch nur einen äusseren Wert seiner Brauchbarkeit (pretium usus), nämlich
eines Menschen vor dem anderen, d. i. ein Preis, als einer Wäre, in dem Verkehr
mit diesen Tieren als Sachen, wo er doch noch einen niedrigen Wert hat, als das
allgemeine Tauschmittel, das Geld, dessen Wert daher ausgezeichnet (pretium
­eminens) gennant wird. Allein der Mensch als Person betrachtet, d. i. als Subjekt
einer moralisch-praktischen Vernunft, ist über allen Preis erhaben; denn als ein
solcher (homo noumenon) ist er nicht bloss als Mittel zu anderer ihrem, ja selbst
seinen eigenen Zwecken, sondern als Zweck an sich selbst zu schätzen, d. i. er
besitzt eine Würde (einen absoluten innern Wert), wodurch er allen andern ver‑
nünftigen Weltwesen Achtung für ihn abnötigt.» Tugendlehre, § 11, Ak VII, 434­
‑435. Über Pädagogik, (ed. Weischedel, 10, 749): «Der Mensch in seinem Innern
eine gewisse Würde habe, die ihn vor allen Geschöpfen adelt, und seine Pflicht
ist es, diese Würde der Menschheit in seiner eignen Person nicht zu verleugen.»
46
  «Der Mensch ist zwar unheilig genug, aber die Menschheit in seiner
Person muss ihm heilig sein. In der ganzen Schöpfung kann alles, was man
will, und vorüber man etwas vermag, auch blos als Mittel gebraucht werden;
nur der Mensch und mit ihm jedes venünftige Geschöpf ist Zweck an sich
selbst.» Kritik der praktischen Vernunft, Ak V, 87.

146

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É a Humanidade no homem — a condição moral, o homem en‑
quanto pessoa ou ser racional mas moralmente considerado —, e
não o homem físico (considerado seja enquanto indivíduo ou espé‑
cie, e mesmo enquanto ser dotado de entendimento), o que para
Kant deve ser considerado como algo sagrado, absoluto, sublime,
objecto de respeito, reconhecido com dignidade e acima de qual‑
quer valor ou preço, não só como um fim em si mesmo mas também
como o fim final (Endzweck) de toda a criação. A ideia kantiana de
Huma­nidade inscreve-se no reino dos fins práticos (morais), mas
também na ordem dos fins da natureza e isso indica já o carácter
teleológico e o alcance regulador dessa ideia também no plano da
história e da cultura humana e da política. A Humanidade é para o
homem antes de mais uma íntima tarefa, uma exigência, o horizonte
de realização do imperativo da sua razão moral, mas igualmente o
horizonte teleo­lógico de toda a história e cultura humanas. E, toda‑
via, é uma «mera ideia»: o respeito por uma mera ideia. Como se lê
na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, obra onde pela primei‑
ra vez o tema é proposto na sua completa constelação de motivos:
«Nisto reside exactamente o paradoxo: que simplesmente a digni‑
dade da Humanidade como natureza racional, sem qualquer outro
fim ou vantagem a atingir por meio dela, portanto o respeito por
uma mera ideia, deva servir no entanto de prescrição imprescindí‑
vel da vontade, e que precisamente nesta independência da máxima
de todos esses motivos consista a sua sublimidade e a dignidade de
todo o sujeito racional consista em ser um membro legislador no
reino dos fins; pois de contrário teríamos que representar-no-lo so‑
mente como submetido à lei natural das suas necessidades.» 47
Esta «mera ideia» está no cerne do pensamento moral kantiano.
Ela indica o que separa o homem da sua própria animalidade e o
separa de si mesmo, levando-o a superar-se a si mesmo. É por ela
que ele é digno de respeito, tem dignidade e sublimidade. É ela que

47
  «Und hierin liegt eben das Paradoxon: dass bloss die Würde der Men‑
schheit als vernünftiger Natur ohne irgend einen andern dadurch zu errei­
chenden Zweck oder Vortheil, mithin die Achtung für eine blosse Idee dennoch
zur unnachlässlichen Vorschrift des Willens dienen sollte, und dass gerade in
dieser Unabhängigkeit der Maxime von allen solchen Triebfedern die Erhaben‑
heit derselben bestehe und die Würdigkeit eines jeden vernünftigen Subjects,
ein gesetzgebendes Glied im Reiche der Zwecke zu sein; denn sonst würde es
nur als dem Naturgesetze seines Bedürfnisses unterworfen vorgestellt werden
müssen.» Grundlegung, Ak IV, 439.

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o torna capaz de moralidade. Ela é o próprio objecto da lei moral e
por isso esta pode formular-se no imperativo: «Age de tal modo que
uses a Humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de qual‑
quer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simples‑
mente como meio.»  48
Nesta segunda fórmula do imperativo categórico, expõe-se não
já apenas uma exigência formal de coerência lógica e de universaliza‑
ção, como na primeira fórmula, mas algo que constitui por assim di‑
zer a matéria e o conteúdo da lei moral kantiana: a sua ontologia.
A  Humanidade é algo que, sendo uma mera ideia, constitui o que
também se deve realizar como tarefa na história. É algo simultanea‑
mente indeterminado e finalizado: indeterminado, porque não se liga
a nenhuma essência a priori, a nenhum modelo que se trate de aplicar.
Pelo contrário, a Humanidade supõe no homem uma indeterminação
original, uma faculdade de auto-superação que nada a priori pode li‑
mitar. Mas, por outro lado, essa «mera ideia» não é absolutamente
indeterminada. Kant desenha o percurso e aponta as etapas ou tarefas
que a espécie humana deve percorrer no plano histórico e institucio‑
nal para realizar todas as disposições originárias que a sábia natureza
nela terá colocado até ser plena Humanidade: saindo do estado de
natureza para o estado civil, realizando na cultura a verdadeira natu‑
reza do homem, a qual se consuma no estado cosmopolita e no estado
ético. É na ideia de Humanidade que porventura melhor se capta o
íntimo compromisso da filosofia kantiana com a história, e não ape‑
nas com a presente, mas também com a das gerações futuras. Por ela
se ultrapassa o individualismo, o formalismo da mera intenção que
não visasse os efeitos, o plano da abstracção intemporal, pois ela é
uma exigência, uma tarefa que conduz a história e envolve entre si,
numa íntima solidariedade — que não é apenas histórica, mas tam‑
bém verdadeiramente moral — todas as gerações humanas.
Num ensaio de 1793, Kant como que responde por antecipação
aos críticos que, como Hans Jonas, acusam a sua moral de ser des‑
provida de sentido histórico e de não ter em conta as gerações futu‑
ras. Escreve o filósofo, desconstruindo o pressuposto em que se re‑
fugiam todos os políticos pragmáticos que se crêem dispensados de
princípios morais nas suas decisões (expresso no dito vulgar «isso

48
  «Handle so, dass du die Menschheit sowohl in deiner Person, als in der
Person eines jeden andern jederzeit zugleich als Zweck, niemals bloss als Mittel
brauchst.» Grundlegung, Ak IV, 429.

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pode ser verdade na teoria, mas não vale na prática») e ao mesmo
tempo defendendo claramente não só a necessidade como a possibi‑
lidade de aplicar na prática os princípios morais da razão: «Eu te‑
nho pois de admitir que dado que o género humano está constante‑
mente em avanço no que respeita à cultura, como o seu fim natural,
deve conceber-se que está também em progresso para o melhor no
que respeita ao fim moral da sua existência, e que este pode por
certo por vezes ser interrompido, mas nunca destruído. Não tenho
necessidade de demonstrar este pressuposto; o opositor dele é que
tem de demonstrar. Pois eu baseio-me no meu dever inato e no de
cada membro da série das gerações, na qual eu (como homem em
geral) me inscrevo, de agir de tal maneira sobre a posteridade que
ela se torne melhor... e assim este dever transmitir-se-á regularmen‑
te de um membro a outro na série das gerações.» 49
Que outra coisa se expõe neste trecho a não ser a inequívoca
ideia de uma originária solidariedade moral intergeracional?
Imperativo moral, a ideia kantiana da Humanidade como um
fim em si mesma e como horizonte que dá sentido à moralidade, é
também uma ideia teleológica, que aponta ao horizonte do futuro
histórico dos humanos e que, por isso mesmo, abre e cria o Futuro
como horizonte. O modesto optimismo e a esperança que a razão
prática se consente a si mesma é, no fundo, uma fé na Humanidade,
a qual, porém, se prova apenas e precisamente na medida em que os
homens agem de acordo com essa mesma fé ou pressuposto.
O alcance teleológico e prático-jurídico da «mera ideia» que é a
ideia da Humanidade como um fim em si mesma revela-se em toda
a sua eficácia na noção kantiana do direito cosmopolita, como prin‑
cípio regulador de toda a teleologia histórica. No plano da história,
aquilo que é uma «mera ideia», faz-se cultura segundo as exigências
do direito e da ética, isto é, abrindo passo ao efectivo reconhecimen‑
to da liberdade e dignidade dos homens. Kant nem sempre é muito
claro quanto ao conteúdo desse direito cosmopolita. Por vezes, pa‑
rece reduzi-lo ao direito de visita que todo o cidadão da Terra tem
de viajar e ser recebido sem violência pelos naturais de qualquer
país; portanto, o direito à hospitalidade universal. Mas há outras

  «Denn ich stütze mich auf meine angeborne Pflicht, in jedem Gliede
49

der Reihe der Zeugungen — worin ich (als Mensch überhaupt) bin... — so auf
die Nachkommenschaft zu wirken, dass sie immer besser werde ... und dass so
diese Pflicht von einem Gliede der Zeugungen zum andern sich rechtmässig
vererben könne.» Über den Gemeinspruch, Ak VIII, 308-309.

149

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passagens onde Kant parece apontar para um conteúdo mais vasto
que este direito deverá ter e que obrigará, quando efectivamente
reconhecido, a reformular todo o sistema do direito público (o civil
e o das gentes). Desse conteúdo faz parte, nomeadamente, o sentido
da propriedade originária do solo, que é comum a todos os homens.
Não se trata, porém, da defesa de uma primitiva propriedade comu‑
nitária da terra (dum comunitarismo primitivo), que alguma vez
tenha acontecido na história. Mas precisamente porque não se trata
de um dado histórico e empírico do passado e sim dum conceito
prático da razão constitui ele um critério que em cada época põe em
causa todos os sistemas de apropriação positiva e a respectiva regu‑
lamentação jurídica. Assim, o direito cosmopolita poderá um dia,
em nome desse princípio, impôr regras para uma gestão justa e sis‑
témica (ou global) dos recursos da Terra, que obriguem a relativizar
as formas jurídicas de propriedade privada individual, ou mesmo a
soberania absoluta de cada Estado 50.
Na verdade, Kant tinha uma muito aguda percepção do quanto os
problemas políticos e jurídicos estavam intimamente ligados com a
geo­grafia física (condições climáticas, recursos) e económica (comércio
internacional, interdependência dos Estados) e de como deveriam, por
isso, ser equacionados no plano de uma gestão global da Terra. O se‑
dentário filósofo de Königsberg, tantas vezes acusado de formalista,
possuía na verdade um apurado sentido de responsabilidade geopolí‑
tica e indicava já, como sendo de todo incontornável a breve prazo
— não só devido à esfericidade da Terra, que obriga os homens a encon‑
trar-se uns com os outros, mas também pela limitação dos recursos que
os obriga a dependerem uns dos outros e a gerirem globalmente e com
justiça os bens disponíveis —, a tarefa de uma verdadeira Weltpolitik ou
Weltethik. Deixou isso bem exarado nesta notável passagem de um seu
ensaio de 1795: «a violação do direito num lugar da Terra é sentida em
todos» (Die Rechtsverletzung an einem Platz an allen gefühlt wird) 51.
Estas considerações são expressas no contexto duma crítica das
relações coloniais das nações europeias com os povos de outros con‑
tinentes, que eram expropriados e expoliados das suas riquezas e até

50
  Rechtslehre, Ak VI, 262; Zum ewigen Frieden, Ak VIII, 357-358. V. o meu
ensaio «Republicanismo e cosmopolitismo. A contribuição de Kant para a
­formação da ideia moderna de federalismo», in Ernesto Castro Leal (org.),
­O Federalismo Europeu — História, Política e Utopia, Edições Colibri, Lisboa, 2001,
pp. 59-60. Retomado neste volume, pp. 463-464.
51
  Zum ewigen Frieden, Ak VIII, 360.

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da sua identidade, por aquelas nações, as quais, violando o mais ele‑
mentar direito de visita, os escravizavam e os instrumentalizavam
para os seus fins de lucro, não raro fazendo tudo isso invocando ge‑
nerosas e pias razões — a difusão da civilização e do progresso, a ex‑
pansão da verdadeira religião. Se tivéssemos em conta o facto de que
no tempo de Kant a escravatura de homens — a sua instrumentaliza‑
ção como meros meios, a violação dos seus direitos e a denegação da
sua dignidade de pessoas — era ainda moeda corrente, apreciariamos
melhor o alcance e a fecundidade moral e jurídica da distinção kantia‑
na entre fins e meios e o seu absoluto da Humanidade (na própria
pessoa ou na de outros) como fim em si mesma, como algo merecedor
de incondicional respeito, como algo que não tem um preço mas sim
dignidade 52. Compreenderíamos melhor o compromisso íntimo da
razão com a história efectiva dos homens. Numa época em que os
direitos dos homens não eram geralmente reconhecidos nem mesmo
nas civilizadas e esclarecidas nações europeias, como não ver o sub‑
versivo que se dizia nesta afirmação de Kant: «O direito dos homens
tem de ser tido como sagrado, por muito que isso custe ao poder do‑
minante... Toda a política deve dobrar os joelhos perante ele.» 53 Antes
que os humanos aprendessem a respeitar a natureza e os animais, ti‑
nham de aprender a respeitar-se a si mesmos e aos outros humanos
nos seus direitos e na sua comum Humanidade.
À ideia kantiana de Humanidade está intimamente associada a
ideia de liberdade — da autonomia da vontade — e também esta é
muitas vezes entendida como um pressuposto de absoluto e incon‑
dicional domínio do homem, um princípio de arbitrária tirania não
só sobre as coisas mas até sobre si próprio. Mas não é assim. A noção
de liberdade moral está em Kant sempre conexa com a ideia da lei

  Já na Fundamentação Kant tem em vista o alcance da ideia de Humanida‑


52

de como fim em si mesma como a garantia para que sejam respeitados os direitos
dos homens: «Denn da leucht klar ein, dass der Übertreter der Rechte der Mens‑
chen, sich der Person anderer bloss als Mittel zu bedienen, gesonnen sei, ohne in
Betracht zu ziehen, dass sie als vernünftige Wesen jederzeit zugleich als Zwecke,
d. i. nur als solche, die von eben derselben Handlung auch in sich den Zweck
mussen enthalten können, geschätzt werden sollen.» Grundlegung, Ak IV, 430.
53
  «Das Recht der Menschen muss heilig gehalten werden, der herrschenden
Gewalt mag es auch noch so grosse Aufopferung kosten. […] Alle Politik muss
ihre Kniee vor dem erstern beugen.» Zum ewigen Frieden, Ak VIII, 380. V. tam‑
bém Reflexion 7308, Ak XIX, 308: «Heilig ist nichts auf der Welt als die Rechte
der Menschheit in unserer Person und das Recht der Menschen.»

151

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— da lei moral e do dever. Ela obedece, por conseguinte, a uma eco‑
nomia interna de auto-restrição. Num seu Curso de Ética, Kant expõe
esse aspecto com grande clareza: «A liberdade tem de ser restringi‑
da, mas não por forças alheias, e sim por si mesma. A sua regra é a
seguinte: em todas as acções relacionadas connosco mesmos o em‑
prego das forças há-de compatibilizar-se com o maior uso possível
das mesmas; por exemplo, beber até perder o sentido impede-me de
utilizar a minha liberdade e as minhas forças, assim como se me
suicido eu tiro a mim mesmo a faculdade do seu uso. Isto não se
compadece com o maior uso possível da liberdade que se descobre
a si mesma como o princípio supremo da vida e do seu próprio uso.
A liberdade só pode coincidir consigo mesma sob certas condições,
as quais impedem que entre em colisão consigo mesma. Com uma
liberdade desenfreada suprime-se toda a lei e desaparece a ordem
da natureza.»  54 Há, pois, uma exigência de pregnância e de maximi‑
zação a presidir à moral kantiana. Essa exigência é dita ora sob a
fórmula do «maior uso possível da liberdade» ou do «princípio su‑
premo da vida e do seu uso», ora sob a fórmula da «realização do
supremo bem possível no mundo». Nesta exigência de pregnância e
de maximização pode ver-se também um princípio de descentra‑
mento antropológico. Assim se lê numa passagem da Crítica do Juí‑
zo: «A lei moral, enquanto condição formal da razão no que respeita
ao uso da nossa liberdade, obriga-nos só por si, sem depender de
qualquer fim como condição material. Mas, todavia, também nos
determina, e mesmo a priori, um fim final [Endzweck], para o qual ela
nos obriga e este é o bem supremo possível no mundo mediante a
liberdade.» 55 Quer dizer: a realização plena da liberdade humana
responsável não é um assunto meramente privado ou que diga res‑
peito apenas a uma consciência individual fechada sobre si própria,
mas só é efectiva no respeito pelas condições que tornam possíveis
a vida e o próprio uso pleno da liberdade. Por outro lado, a procura
de concretização do supremo bem possível no mundo mediante a
liberdade abre um horizonte de amplas e complexas relações no es‑
paço e no tempo, nas quais o homem se reconhece por certo como
qualificado actor e mediador, mas não é de modo algum compatível
com a estreiteza de projectos humanos egoístas e antropocêntricos.

54
  Eine Vorlesung über Ethik, ed. de G. Gerhardt, Fischer Verlag, Frankfurt a.
M., 1990, p. 135.
55
  Kritik der Urteilskraft, Ak V, 449.

152

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IV.  Para além do antropocentrismo

Até ao presente, vimos os aspectos da filosofia kantiana que po‑


deriam revelá-la como antropocêntrica, embora o aprofundamento
desses tópicos nos tenha mostrado o quanto eles implicam já de des‑
construção de um ingénuo antropocentrismo. Vejamos agora alguns
aspectos do pensamento kantiano que põem de manifesto a impos‑
sibilidade mesma do antropocentrismo.
Esta impossibilidade é manifesta já se se tiver presente a condi‑
ção cósmica e telúrica do homem. Kant reedita a seu modo o tópico
pascaliano da «miséria do homem» e da sua insignificância enquan‑
to ser físico, só compensada pela sua grandeza enquanto ser pen‑
sante e moral. Os escritos do ano 1755 sobre a História Universal da
Natureza e sobre o terremoto de Lisboa expõem largamente essa
perspectiva. Quando contempla a história do universo e acompa‑
nha a série de revoluções e cataclismos que a constituem e graças
aos quais todos os seres da criação, incluindo os humanos, vieram à
existência e subsistem na sua essencial fragilidade, o homem expe‑
rimenta a sua insignificância e reconhece que não pode reivindicar
para si nenhuma atenção especial, nenhuma excepção a seu favor
das leis gerais da natureza. A contemplação do espectáculo trágico­
‑sublime da história do Cosmos e da Terra ensina ao homem qual a
sua verdadeira dimensão e qual o seu verdadeiro lugar nessa histó‑
ria. Mas que o mundo não corresponda aos desejos e propósitos do
homem é, segundo Kant, precisamente uma prova insofismável de
que o homem não nasceu para construir eterna morada neste teatro
demasiado instável e muito hostil onde decorre a sua existência ter‑
rena. Tal é a lição que o filósofo de Königsberg retirava dos trágicos
acontecimentos do terremoto de Lisboa de 1 de Novembro de 1755:
«A contemplação de tais acidentes horríveis é instrutiva. Ela humi‑
lha [demüthigt] o homem, porque lhe faz ver que ele não tem ne‑
nhum direito — ou que pelo menos o perdeu — de esperar conse‑
quências favoráveis das leis da natureza que Deus pre-ordenou; que
este campo de jogos das suas paixões não pode conter o objectivo
adequado de todas as suas intenções.» 56
Com alguma frequência se faz ouvir nos primeiros escritos de
Kant uma linguagem que evoca o princípio estóico segundo o qual
«o homem deve aprender a adequar-se à natureza» (der Mensch muss

56
  Ak I, 431.

153

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sich in die Natur schicken lernen) 57, deve saber ocupar nela o seu mo‑
desto lugar, em vez de pretender constituir-se como o centro em
torno do qual tudo gira. Ele gostaria muito que a natureza fosse ao
seu jeito, mas é ele que tem de aprender a conformar-se com ela.
«Ele pretende ser o único objectivo de toda a criação e, sendo apenas
uma parte desta, quer ser o todo.» 58 Esta matriz estóica permanecerá
como uma presença subterrânea, sustentando mesmo a filosofia
kantiana da maturidade e é decisiva para se compreender a visão
kantiana da história e da política, cuja racionalidade, estranhamen‑
te, é pensada como se cumprisse, não um plano gizado pela razão
autónoma de seres humanos conscientes e livres, mas um «secreto
plano» duma natureza sábia, previdente e providente que os con‑
duz, mesmo contra as suas vontades 59.
O que os escritos kantianos da primeira fase documentam é,
por um lado, a inscrição do homem enquanto fisicamente conside‑
rado (e mesmo a história do homem e da humanidade) numa «his‑
tória da natureza», jogado no jogo da natureza e submetido aos aca‑
sos das revoluções da história da natureza, actor passageiro no palco
dum teatro cósmico onde decorre uma peça de que ele não é autor e
de cujo desenrolar e desfecho não tem a plena ciência, mas apenas,
quando muito, uma vaga e muito provisória conjectura. Mas, por
outro lado, insinua-se já nessa primeira fase do pensamento kantia‑
no a inscrição da própria natureza numa ordem dos fins humanos,
enquanto fins morais, como seu sentido último. Este aspecto, não
estando de todo ausente nos escritos de meados da década de 50,
encontrará todavia a sua completa expressão na segunda parte da
Crítica do Juízo.
Profundo conhecedor e cultor da geografia, Kant não só reconhece
como essencial a relação do homem com a natureza física e com a Terra,
mas sublinha mesmo a condição insuperavelmente terrena do homem.
Assim o escreve numa das reflexões: «Podemos ver outros mundos
longínquos, mas a gravidade obriga-nos a permanecer na Terra; pode‑
mos ver ainda outras perfeições dos espíritos que estão acima de nós,
mas a nossa natureza obriga-nos a permanecer humanos.» 60

  Ak I, 456.
57

  «Der Mensch […] sich lediglich als das einzige Ziel der Anstalten Gottes
58

ansieht, gleich als wenn diese kein anderer Augenmerk hatten als ihn allein […]
Wir sind ein Theil... und wollen das Ganze sein.» Ak I, 460.
59
  Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht, Ak VIII, 18.
60
  Ak XX, 153.

154

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A geografia física é a base da filosofia da história, da filosofia
política e da antropologia kantianas. Kant reconhece, de facto, o de‑
cisivo impacte da natureza física não só sobre a condição física e
moral (costumes) dos homens, como reconhece também o efeito da
acção dos homens sobre a natureza. A natureza, o universo e a Terra
não são para ele realidades estáveis e submetidas a uma regularida‑
de absoluta, mas têm uma história de recíprocas relações e devem
ser encaradas numa perspectiva dinâmica, a qual é resultado de
causas físicas e simplesmente naturais (convulsões cósmicas, terre‑
motos, vulcões, afastamento ou invasão das águas do mar, que ora
deixam terras a descoberto ora inundam outras, erosão por efeito
dos ventos, dos rios, das cheias e do degelo) e também de causas
humanas (deflorestação, drenagem de pântanos e conquista de ter‑
ras baixas aos mares para cultivo, como acontecia na Holanda). Mas
os efeitos do factor humano na modificação do estado da Terra são
incomensuravelmente menos significativos do que as outras causas
físicas que causaram profundas revoluções geológicas, geográficas e
climáticas. Kant vivia numa época pré-industrial e não podia imagi‑
nar os impactes da industrialização intensiva sobre a natureza, ocor‑
ridos nos dois séculos que decorreram entre a sua morte e a nossa
própria época. A acção humana, tal como ele a via no seu tempo,
tinha um alcance relativamente limitado, a não ser em certos casos
extremos, como as guerras, cujos efeitos devastadores não deixa de
advertir. Todavia, este atento filósofo-geógrafo apontava já, no seu
Curso de Geografia Física, o efeito considerável que deverá ter tido
nas mudanças climáticas a devastação pelos humanos das antigas
florestas do centro da Europa para obter combustível e ganhar terre‑
nos de cultivo 61. Antigamente, observa Kant, as florestas retinham a
neve durante muito mais tempo e o clima era muito mais frio 62.
­Reconhece igualmente a capacidade do homem para evitar os efei‑
tos devastadores das forças da natureza, por exemplo, das avalan‑
ches, plantando determinado tipo de árvores nas montanhas 63, exer‑
cendo assim uma acção de gestão finalizada da natureza, naquele
sentido que virá mais tarde a tratar na Crítica do Juízo. Kant nota
também que, por efeito das viagens marítimas da época moderna,
certas espécies vegetais e animais foram disseminadas por toda a

61
  Ph. Geographie, Ak IX, 298.
62
  Ak IX, 295.
63
  Ak IX, 253.

155

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Terra, a partir dos seus ambientes de origem. Não vê nisso uma vio‑
lência feita à boa ordem da natureza, como Rousseau 64, mas apenas
o aditamento humano a um trabalho que as próprias forças da natu‑
reza e outros animais também levam a efeito (os ventos, as águas
dos rios e oceanos e as aves, nas suas migrações, transportando se‑
mentes para outras paragens).
Kant estava convicto de que a Terra é um sistema global no
qual tudo de algum modo se liga e onde mesmo os fenómenos
geológicos estão associados uns aos outros, não tendo apenas uma
dimensão local, mas uma dimensão planetária e até cósmica.
As  erupções vulcânicas, por exemplo, não são fenómenos isola‑
dos, quer na sua distribuição geográfica, quer na sua ocorrência
temporal, mas estão ligados entre si, e associados aos terremotos e
a outros fenómenos telúricos 65. Todavia, estes acontecimentos re‑
volucionários e terríveis da história do Cosmos e da Terra não são
vistos como tendo apenas aspectos negativos e destrutivos, mas
como trazendo também aspectos positivos e novas possibilidades.
Há perdas, mas há também ganhos. Neles se leva a efeito a obra
ainda em curso da criação, a qual está muito longe de se encon­
trar  completa. Mais tarde, esses fenómenos serão reconhecidos
como objecto de uma peculiar experiência estética, a vivência do
­sublime.
O Cosmos está ainda em formação a partir do caos e se há já
pequenos arquipélagos ou ilhas de ordem no imenso universo caó‑
tico onde algures outros mundos estão ainda a ser formados, não
significa que o pequeno arquipélago cósmico que é o nosso sistema
solar ou a pequena ilha que é o nosso planeta estejam a salvo para
sempre das grandes convulsões ainda a acontecer algures nos con‑
fins do universo. E, tal como o Cosmos no seu todo, também a Terra
tem uma história e está em contínuo desenvolvimento e numa in‑
cessante luta entre as forças caóticas e as forças da ordem. Se à su‑
perfície ela está já relativamente consolidada, no seu interior está
ainda submetida a movimentos caóticos e o trabalho aí ainda não
acabou. Nem sempre ela pôde acolher seres vivos e haverá um mo‑
mento da sua evolução em que, por natural envelhecimento ou ar‑
refecimento, ela não os poderá acolher mais. Em suma: tal como o

64
  V. o início do livro i do Émile ou de l’éducation (ed. de Charles Wirz, Galli‑
mard, Paris, 1969, p. 81).
65
  Ph. Geographie, Ak IX, 266, 269.

156

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Cosmos, também a Terra está em evolução altamente instável e é
«entre ruínas assustadoras que nós habi­tamos» 66.
É sobre esta consciência cósmica e telúrica, fortemente marcada
pelo sentido da finitude e da essencial instabilidade, com um inegá‑
vel cunho trágico só esteticamente temperado, que assenta a antropo‑
logia kantiana. Ela é herdeira da revolução acontecida na representa‑
ção pós-coperniciana do Cosmos, segundo a qual o homem passou a
ter de medir-se com o incomensurável e nesse esforço de automensu‑
ração conclui numa consciência abissal de si próprio. Do ponto de
vista da sua existência física, o homem, não só como indivíduo mas
mesmo como espécie, é algo insignificante. Chamado a desempenhar
o seu papel no grande drama da criação cujo sentido final desconhe‑
ce, ele é posto em cena e dela expulso pelo autor da peça, assim que
tenha acabado o seu breve desempenho. Está vedada ao homem
qualquer autocomplacência, qualquer sentimento de definitiva segu‑
rança que lhe seja dado pela sua ciência da natureza ou pela sua téc‑
nica. Uma das decisivas lições que Kant extraía da astronomia mo‑
derna era precisamente a revelação inequívoca dos limites do homem:
dos limites do seu conhecimento, mas também da sua própria insig‑
nificância. A mais recente Astronomia, escreve o filósofo, ensinou ao
homem a sua descentração e a sua relativização: «a não considerar a
nossa Terra como constituindo todo o espectáculo da sabedoria
divina» 67. As novas descobertas astronómicas do início da época mo‑
derna tiveram o efeito de «aniquilar o homem a tal ponto a seus pró‑
prios olhos que ele mesmo já não se atribui importância bastante para
ser um fim da criação» 68.
Mas esta visão cosmicamente descentrada dum universo de que
não vê nem mede os limites, relativiza-o até na sua condição de ser ra‑
cional, levando-o a pensar, com toda a verosimilhança, que ele não é o
único ser racional da criação e nem sequer o mais perfeito: «As novas
descobertas na astronomia não só ampliam mas também modificam de
alguma maneira a fisicoteleologia, pois se o género humano é toda a
espécie de seres racionais e a única, então não se pode compreender
bem como se concilia isso com a sabedoria e a bondade de Deus, uma
vez que se pode em todo o caso pensar algo mais perfeito. Mas se exis‑
tem milhões de outros mundos, então este é um grau das criaturas ra‑

66
  Ak IX, 270.
67
  Refl. 6091, Ak XVIII, 447.
68
  Refl. 6165, Ak XVIII, 473.

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cionais, que, juntamente com as suas carências, não deveria faltar.» 69
Tal como Leibniz, Kant está convicto de que, na sua economia, a natu‑
reza segue a máxima da «continuidade» e, como Alexander Pope, tam‑
bém ele subscreve a ideia da «grande cadeia do ser» que liga num sis‑
tema todos os seres do universo, por diversos que eles sejam. O homem,
como o mostrará amplamente o filósofo na segunda parte da Crítica do
Juízo, faz parte do conjunto da criação e é, antes de mais, como qual‑
quer outra criatura, um elo e um «membro na grande cadeia dos fins da
natureza» (Glied in der Kette der Naturzwecke) 70. Mas, para além disso, e
mesmo como ser racional e moral, o homem é, segundo Kant, membro
também duma vasta comunidade de seres racionais, que o filósofo de‑
signa pela mítica e enigmática noção de «reino dos fins» 71. Por conse‑
guinte, o homem não deve pensar-se como sendo o único ser racional
do universo. Desde a juventude até aos seus últimos anos, e tal como
muitos pensadores da época moderna e do seu próprio século, Kant
admitia como possível e verosímil a existência de seres racionais nou‑
tros planetas. Num dos seus últimos textos publicados, lê-se ainda esta
nota: «pode muito bem acontecer que existam seres racionais em al‑
gum outro planeta» 72. Daí, talvez, aquela intrigante passagem da Fun‑
damentação, onde se propõe uma moral não só para homens mas para
seres humanos e mais que humanos, ou seja para «seres racionais em
geral»: «a lei da moralidade tem uma significação tão ampla, que ela
não se aplica apenas a homens, mas a seres racionais em geral, como
prescrição universal para toda a natureza racional, como lei da deter‑
minação da vontade de um ser racional em geral» 73.

69
  Refl. 5542, Ak XVIII, 213.
70
  Kritik der Urteilskraft, Ak V, 430 e segs.
71
  Tema pouco explorado da ética kantiana, é este todavia um tópico es‑
sencial para lhe dar coerência. V. A. Rigobello (ed.), Il «regno dei fini» in Kant,
I. I. S. F., Napoli, 1969; idem (ed.), Ricerche sul «regno dei fini» kantiano, Bulzoni,
Roma, 1974; Alberto Pirni, Il «regno dei fini» in Kant. Morale, religione, politica in
collegamento sistematico, Il Melangolo, Genova, 2000.
72
  «Es könnte wohl sein: dass auf irgend einem anderen Planeten vernünfti‑
ge Wesen wären...» Anthropologie in pragmatischer Hinsicht, Ak VII, 332. Sobre esta
questão, v. Steven J. Dick, Plurality of Worlds: The Origins of the Extraterrestrial Life
Debate from Democritus to Kant, Cambridge University Press, 1982.
73
  «... sein Gesetz von so ausgebreiteter Bedeutung sei, dass es nicht bloss
für Menschen, sondern alle vernünftige Wesen überhaupt, ... als allgemeine
Vorschrift für jede vernünftige Natur ... für Gesetze der Bestimmung des Wil‑
lens eines vernünftiges Wesens überhaupt.» Grundlegung, Ak IV, 408. V. Viriato
Soromenho-Marques, «Kant e a comunidade de seres racionais. Quatro notas

158

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Esta simples passagem bastaria para refutar as acusações feitas
à ética kantiana de ser antropocêntrica. Mas é claro que logo surgi‑
riam outros críticos a acusá-la de, precisamente por isso, ser uma
ética desumana, por pretender medir o homem por algo que está
para além dele próprio.
Se há na filosofia kantiana um domínio onde a natureza é reco‑
nhecida (e restabelecida) na sua dignidade e autonomia, onde inclu‑
sivamente ela própria é pensada não apenas como meio mas tam‑
bém como um sistema de fins, esse é o domínio da vivência estética
e da visão teleológica. Na apreciação teleológica, a natureza como
que ganha autonomia própria, pois é vista pelo sujeito como se ela
mesma se propusesse fins e agisse finalizadamente, como sendo um
«análogo da arte», mas duma arte sobre-humana, ou antes, como
sendo um «análogo da vida»; em suma, é pensada como sendo uma
artista que intimamente conduz a geração dos seus produtos e cuja
maravilhosa poética — que Kant designa pela expressão «técnica
da natureza» (Technik der Natur) 74 — maximamente se revela nos
seres orgânicos. Na própria natureza, há seres cuja possibilidade
tem de ser pensada não apenas segundo uma racionalidade mecâ‑
nica, como se eles fossem apenas meios para outros, mas segundo
uma racionalidade teleológica, como sendo simultaneamente fins,
segundo uma lógica de reciprocidade entre os seres e não já de
mera subordinação mecânica de uns a outros. Pois, segundo Kant,
«característica de um produto orgânico da natureza é que nele
tudo seja fim e meio, ao mesmo tempo e reciprocamente» (ein orga‑
nisirtes ­Product der Natur ist das, in welchem alles Zweck und wechsel‑
seitig auch Mittel ist) 75. Mas o princípio da teleologia leva ainda o
espírito que contempla a natureza a pressupor e a descobrir senti‑
do naquilo mesmo que nela parece não tê-lo, de acordo com a ava‑
ra e interesseira economia de uma lógica meramente instrumental
e utilitária.
Onde, porém, melhor ainda se revela a dignidade, a sublimida‑
de e até a transcendência da natureza é na vivência estética do belo
e do sublime. Mediante estas vivências, redescobre o homem a sua
mais adequada e, por assim dizer, também a mais originária atitude

críticas», in Leonel Ribeiro dos Santos (coord.), Kant. Posteridade e Actualidade,


CFUL, Lisboa, 2006, pp. 291-301.
74
  Kritik der Urteilskraft, Ak V, 246, 390-391; Erste Einleitung in die Kritik der
Urteilskraft, Ak XX, 213-214, 217-219, 234.
75
  Kritik der Urteilskraft, Ak V, 376.

159

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em relação com a natureza, a qual se traduz ora numa «contempla‑
ção desinteressada», ora numa «espécie de respeito» por ela. Para
além da relação jurídica e ética, para além da lógica da dominação
ou do confronto, acede o homem, na vivência estética, a uma nova e
qualificada relação com a natureza muito diferente daquela que se
lhe abria pela ciência ou pela moral. A lógica do interesse é aqui
superada pela lógica do jogo gratuito ou desinteressado: «O belo,
diz Kant, prepara-nos para amar qualquer coisa, mesmo a natureza,
de um modo desinteressado; o sublime prepara-nos para a estimar
altamente, mesmo contra o nosso interesse (sensível).» 76 Na vivên‑
cia do sublime, para aquele que é emocionado pela sua grandeza ou
pelo seu poder, a natureza torna-se objecto de «uma espécie de res‑
peito» (eine Art von Achtung) 77, um sentimento análogo daquele que,
no contexto da ética kantiana, se reserva exclusivamente para as
pessoas ou para seres capazes de moralidade. Enquanto objecto ou
ocasião de uma vivência do sublime, a natureza aparece-nos como
algo que, seja pela sua grandeza seja pelo seu poder, nos subjuga e
domina absolutamente, furtando-se às nossas armadilhas de apre‑
ensão representacional e cognoscitiva, mas também a todas as nos‑
sas técnicas. Na sua irrecusável presença e irrepresentabilidade, a
natureza insinua-se como o esquema do infinito e do absoluto su‑
pra-sensível 78, enquanto, por outro lado, na vivência estética do belo
natural, ela se oferece pródiga de formas espontâneas e belas, muito
antes que o entendimento sobre ela aplique a sua legislação infor‑
madora. Não é já a linguagem do domínio do homem e da sua razão
sobre a natureza, a que pode traduzir esta nova experiência a que o
homem tem acesso na vivência estética. É a linguagem da amabili‑
dade, da gentileza e da cortesia, duma amabilidade, gentileza e cor‑
tesia recípocas. A natureza corresponde com os seus favores ao fa‑
vor que o homem lhe faz de a considerar bela, ou de a respeitar,
mesmo sem ter nisso qualquer perspectiva interessada 79. Em suma:
não só a contemplação teleológica como sobretudo a experiência es‑
tética do belo natural e do sublime da natureza permitem que o ho‑
mem aceda a uma relação com a natureza que não é já a da posse, a
do uso e a do domínio mecânico e instrumental e muito menos a da

76
  Kritik der Urteilskraft, Ak V, 267.
77
  Kritik der Urteilskraft, Ak V, 249.
78
  Kritik der Urteilskraft, Ak V, 268.
79
  Kritik der Urteilskraft, Ak V, 380.

160

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agressão e da violência, e nem sequer apenas a do respeito, mas a da
recíproca dependência e solidariedade, e mesmo a da gentileza, a do
livre favor, a da espontânea gratuidade e doação. Todavia, não é só
a natureza que nesta nova relação é reconhecida na sua dignidade e
transcendência por parte do homem, mas é também o homem que,
deste modo — isto é, admirando e respeitando a natureza e os seus
processos finalizados, sendo gentil e amável para com ela —, se sen‑
te ele próprio enobrecido e surpreende em si uma nova dimensão,
como se também ele visse desse modo ampliada a sua própria Hu‑
manidade.

V. Os deveres do homem para com a natureza


e para com os animais no contexto da ética
kantiana

Vejamos, por fim, se a natureza e os seres naturais têm um lugar


e que lugar têm no contexto da ética kantiana 80. Mas a primeira ques‑
tão que a este respeito se deveria colocar seria esta: pode realmente a
natureza fundar uma ética ou um sistema jurídico? O que seriam
uma ética e um sistema jurídico centrados ou fundados na natureza?
Responder a estas questões implicaria que antes de mais se pu‑
desse responder à pergunta: o que é a natureza? E a estoutra: qual é
com toda a segurança a «lei da natureza» e onde se revela ela de
modo inequívoco? Reconhecido é que não há porventura ideia com
maior amplitude semântica e maior ambiguidade no vocabulário
dos filósofos do que a ideia de natureza. Embora, por certo, outro
tanto se pudesse dizer de outras ideias igualmente candidatas a cons‑
tituir-se como fundamento de uma ética, de uma moral ou de um
sistema jurídico, tais como Homem, Humanidade, Razão, Deus! Na
própria filosofia kantiana o termo natureza tem várias significações e
é pensado segundo muitos diversos paradigmas, consoante nos si‑
tuemos no plano da ciência físico-matemática dos modernos — da

  O tópico começa a surgir na literatura kantiana. V. Lara Denis, «Kant’s


80

Conception of Duties Regarding Animals: Reconstruction and Reconsidera‑


tion», History of Philosophy Quarterly (Bowling Green, OH), 17, 2000, pp. 405-
423; Birgit Recki, «Achtung vor der zweckmässigen Natur. Die Erweiterung
der Kantischen Ethik durch die dritte Kritik», Kant und die Berliner Aufklärung,
Akten des IX. Internationalen Kant-Kongresses, Berlin/New York, 2001, Bd. 3,
pp. 296-304.

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ciência ou filosofia da natureza entendida como sistema de leis que
regem os fenómenos segundo uma lógica mecanicista de causas efi‑
cientes, ou duma natureza como princípio espontâneo de actividade
que se manifesta na produção da ilimitada variedade de géneros e
espécies e que parece antes ser regida por uma lógica da finalidade
ou da conformidade a fins, ou mesmo duma natureza pensada à ma‑
neira do estoicismo como sinónimo de um princípio benfazejo e pro‑
vidente, identificado com a própria divindade, que garante a ordem
e a permanência do mundo no seu todo e nas suas partes.
Desde a Antiguidade houve sistemas filosóficos que invocaram
a natureza como fundamento da conduta humana, no plano ético
ou no plano jurídico. Foi o caso do estoicismo e do epicurismo. Os
dois sistemas são, à primeira vista, antagónicos, embora, nas suas
Cartas a Lucílio, Séneca tenha posto em evidência as afinidades que
existem entre eles. O estoicismo supõe a natureza como governada
por uma ordem ou razão imanente e é essa ordem natural que se
exprime no homem precisamente como razão. Por isso, para o estói‑
co, a lei da razão coincide com a lei da natureza e «viver segundo a
natureza» ou «agir segundo a natureza» é, para o homem, viver e
agir segundo a razão. Mesmo quando os acontecimentos são desfa‑
voráveis ao homem, este não deve resistir-lhes, mas deve antes acei‑
tar o destino, a «ordem da natureza». A isso chama o estóico virtude,
ou seja a coragem e resistência, mesmo na adversidade. Por seu tur‑
no, para o epicurista a natureza não obedece a qualquer plano fina‑
lizado, não é regida por nenhuma razão imanente, mas pelo acaso.
Não há aqui a percepção de uma ordem comum de todas as coisas,
a que o homem deva submeter-se, mas cada indivíduo procura o
seu máximo de prazer ou, pelo menos, evitar o sofrimento, jogando
com o acaso e fortuito das situações. O estudo da natureza visa al‑
cançar a imperturbabilidade do ânimo, a ataraxia. Aprendendo e
conhecendo como se passam as coisas, o homem liberta-se dos te‑
mores e perturbações que estão associados ao facto de pensar que as
coisas decorrem por causas ocultas e transcendentes. O critério para
o acordo com a natureza não reside já na razão, mas na sensação e
no prazer ou desprazer que as sensações provocam 81.
Na época moderna, o sistema filosófico que mais consequente‑
mente erigiu a comum lei da natureza dos estóicos como princípio

81
  Sobre as éticas (antigas e modernas) de matriz naturalista, v. Maximilien
Forschner, Über das Handeln im Einklang mit der Natur, WBG, Darmstadt, 1998.

162

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ético foi o de Espinosa, em cuja Ética Demonstrada à Maneira dos Geó‑
metras se lê o propósito de recolocar o homem dentro do único impé‑
rio da natureza, em vez de o considerar como um império à parte ou
como um «império dentro doutro império». A ética espinosiana é
uma física aplicada às paixões do homem, uma mecânica dos afectos.
Por todo o século xviii floresceriam outras tentativas de fundar a mo‑
ral na natureza, nas leis da natureza, ou numa reinventada boa natu‑
reza perdida. Mas só o tema ou o mote é idêntico, porque de resto não
só as variações são divergentes como o desconcerto das vozes é total.
Invocando aparentemente a mesma natureza, os filósofos naturalistas
setecentistas chegam a propostas não só diversas como antagónicas,
como, aliás, já acontecia no pensamento antigo, nos sistemas éticos de
estóicos e epicuristas, sistemas que largamente inspiram os naturalis‑
mos dos séculos xvii e xviii. A natureza que invocam um Espinosa,
um Rousseau, um d’Holbach, um La Mettrie, um Helvétius, um
­Diderot ou um Sade só aparentemente é a mesma. O que têm de co‑
mum é a pretensão de deduzirem de uma determinada física ou filo‑
sofia da natureza uma determinada antropologia ou psicologia, à
qual corresponde uma moral ou um sistema de deveres «fundados na
natureza» 82. Da natureza, porém, tanto se podia extrair uma doutrina
de deveres altruístas, uma ética da universal piedade ou compaixão,
como uma doutrina do prazer egoísta conseguido mesmo à custa da
crueldade infligida aos outros. Leia-se o marquês de Sade: «Falam­
‑nos duma voz quimérica pertencente a essa Natureza que nos ensina
que não devemos fazer aos outros o que não queremos que nos façam
a nós, mas tão absurdo conselho só o ouvimos da boca dos homens, e
dos homens fracos... A Natureza nossa mãe, mãe de todos só nos fala
de nós próprios; nada é tão egoísta como a sua voz, e o que nela ve‑
mos mais clara e imutavelmente, e o seu mais santo conselho é de nos
deleitarmos à custa seja de quem for. Mas os outros, dizem, podem
então vingar-se... Ora ainda bem, a razão caberá ao mais forte. E aí
teremos nós o primitivo e perpétuo estado de guerra e destruição
para que a sua mão nos criou, e no qual é vantajoso que continuemos.» 83
Estamos nos antípodas desse outro discípulo da boa mãe natureza
que dá pelo nome de Jean-Jacques Rousseau!

  Como se lê, entre tantos outros exemplos, no título duma conhecida


82

obra de Paul Henri d’Holbach, La morale universelle, ou les devoirs de l’Homme


fondés sur la Nature, Amsterdam, 1776.
83
  A Filosofia de Antecâmara (3.o diálogo), in Roland Desné, Os Materialistas
Franceses de 1750 a 1800, Seara Nova, Lisboa, 1969, pp. 252-253.

163

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Kant não desconhecia esses projectos modernos de morais ou
sistemas jurídicos fundados na natureza. Mas rejeita totalmente
qualquer princípio naturalista como fundamento da sua ética. Para
ele, a moralidade, enquanto o que precisamente distingue o homem
de todos os outros seres e até de si mesmo, enquanto considerado
apenas como um ser da natureza (sensível, animal), começa pela
ruptura com a natureza. A moralidade é o reino da liberdade e, como
tal, está para além do reino da natureza, que é regido pela necessi‑
dade e pelo determinismo. Por certo que há pontes entre estes dois
reinos — a perspectiva estética e teleológica é uma dessas pontes —,
mas elas são lançadas sobre o prévio reconhecimento da irredutibi‑
lidade abissal desses dois domínios 84. A diferença de Kant em rela‑
ção a Rousseau é neste ponto total. Num ensaio em que o filósofo
crítico comenta os primeiros capítulos do livro bíblico do Genesis,
lê-se um trecho que permite entender toda a distância entre ele e o
autor do Discurso sobre a Origem e os Funda­mentos da Desigualdade
Entre os Homens. Escreve Kant: «A saída do homem do paraíso, que
a razão lhe apresenta como a primeira morada da sua espécie, mais
não foi do que a transição do estado de rudeza de uma criatura me‑
ramente animal para a humanidade, do apoio das muletas do ins‑
tinto para a condução da razão, numa palavra, da tutela da natureza
para o estado da liberdade [aus der Vormundschaft der Natur in den
Stand der Freiheit]. […] Antes de a razão despertar, não havia qual‑
quer prescrição ou interdição e, portanto, qualquer transgressão;
mas quando a razão iniciou a sua actividade e, apesar da sua fra‑
queza, entrou em conflito com a animalidade em toda a sua força,
tiveram de surgir males e, o que é pior, com o cultivo da razão, <sur‑
giram> vícios que eram totalmente estranhos ao estado de ignorân‑
cia, por conseguinte, de inocência. O primeiro passo para sair deste
estado foi, portanto, uma queda do ponto de vista moral; do ponto
de vista físico, a consequência desta queda foi uma quantidade de
males até então desconhecidos da vida e, por conseguinte, um casti‑
go. A história da natureza começa, portanto, com o bem, pois ela é
obra de Deus; a história da liberdade começa com o mal, pois ela é
obra do homem.» (Die Geschichte der Natur fangt also vom Guten an,
denn sie ist das Werk Gottes; die Geschichte der Freiheit vom Bösen, denn
sie ist Menschenwerk.) 85

84
  Kritik der Urteilskraft, Ak V, 176-179.
85
  Muthmasslicher Anfang der Menschengeschichte, Ak VIII, 115.

164

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Há assim, segundo Kant, um antagonismo original (mas de or‑
dem moral) inscrito na relação do homem com a natureza. E este
antagonismo só pode ser superado pela cultura enquanto obra hu‑
mana, a qual, ao mesmo tempo, deve desenvolver e actualizar todas
as disposições e potencialidades com que a natureza originariamen‑
te dotou a espécie humana. Daí a conclusão de Kant nesse mesmo
ensaio, segundo a qual é a cultura que, levada à sua perfeição, reali‑
za a natureza: «o artifício tornado perfeito tansforma-se de novo em
natureza, o que constitui o objectivo último da destinação moral do
género humano» 86.
Kant também não admite que o princípio epicurista do prazer
constitua o fundamento da moralidade e nem sequer a finalidade da
vida moral ou o merecido prémio de uma vida virtuosa (o que, to‑
davia, não significa que a filosofia moral kantiana exclua de todo o
prazer ou a felicidade do plano da vivência moral, como frequente‑
mente se tem escrito). Kant recusa mesmo admitir que a natureza
tenha tido a felicidade ou o prazer como seu fim último no plano
duma teleologia natural (se acaso ela pudesse dar-se a si mesma um
fim!), seja em relação ao homem, seja mesmo em relação aos outros
seres. Se assim fosse, como entender o sofrimento que ela impõe a
todos os seres, obrigando-os a lutar pela sobrevivência, sendo sem‑
pre a de uns conseguida à custa do prejuízo e destruição de outros?
Como entender o cortejo de hecatombes que resultam dos aconteci‑
mentos naturais da história da Terra (cataclismos, terremotos, erup‑
ções vulcânicas, dilúvios e inundações...), os quais não escolhem as
suas vítimas — se têm vida ou não, se são homens, animais ou plan‑
tas, se são inocentes ou culpados —, mas a todos atingem por igual?
A natureza não só parece não ter tido como objectivo final a felicida‑
de de todos ou do maior número, como parece nem sequer ter pro‑
videnciado na sua economia a eliminação da dor e do sofrimento.
E pode até presumir-se que uma natureza, onde o princípio do pra‑
zer e da felicidade tivessem sido erigidos como único e absoluto
princípio, por paradoxal que isso possa parecer, seria uma natureza
morta. O que faz viver e mover os seres é o sentimento que têm da
carência de algo, o desconforto maior ou menor de existência em
que se encontram e que pecisamente se esforçam por compensar,
sendo para isso levados a agir.

86
  «... vollkommene Kunst wieder Natur wird: als welches das letzte Ziel
der sittlichen Bestimmung der Menschengattung ist.» Ak VIII, 117-118.

165

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Kant não incorre naquilo que, já advertido por David Hume,
desde G. E. Moore se tem chamado a «falácia naturalista» 87: deduzir
uma norma do juízo moral a partir da descrição de um facto ou es‑
tado de coisas, de uma hipótese ou teoria científica ou mesmo meta‑
física, passar do ser (is) — do que é ou se presume que é — ao dever
ser (ought), do plano descritivo ao plano prescritivo ou normativo,
como se um estado de coisas determinasse ou pudesse constituir
por si o valor moral de uma acção. Tem que ver também com isso a
separação kantiana entre a ordem teorética e a ordem prática, pois
só à custa dessa separação se mantém a autonomia da razão prática,
a qual não tira os seus princípios nem duma teologia, nem duma
metafísica, nem duma física ou de qualquer ciência objectiva da na‑
tureza (psicologia, biologia, antropologia, etc.). Para Kant, a ordem
ética caracteriza-se precisamente por ser independente da natureza.
Ela é o que o homem faz de si, a partir da sua liberdade, indepen‑
dentemente da natureza, mas por certo também enquanto ser da
natureza, agindo na natureza e contando com a natureza. Seguir a
natureza, diz Kant, poderia constituir uma regra de prudência, mas
não um princípio moral e nem sequer seria sempre uma boa regra
de prudência, pois a invocação da natureza pelos moralistas está
carregada de ambiguidades. Diz-se — dizem-no tanto os estóicos
como os epicuristas, tanto os naturalistas antigos como os moder‑
nos: orienta as tuas acções de tal modo que elas concordem com a
natureza. Mas, com isso, não ficamos a saber se é incondicionalmen‑
te bom que as nossas acções concordem com a natureza e precisaria‑
mos antes de sabê-lo para então adoptarmos esse princípio como
uma máxima de conduta prudente 88. Kant considera ainda outras
possibilidades de fundação da ética que igualmente rejeita: a lógica
(a verdade) e a teologia (vontade de Deus). No primeiro caso, equi‑
valeria a erigir a verdade como princípio da acção moral; no segun‑
do, o princípio moral seriam os mandamentos de um Deus legisla‑
dor. Mas, no primeiro caso, teriamos antes de certificar-nos (e poder
fazê-lo) de que estamos de posse efectiva da verdade das coisas
mesmas; e, no segundo, teriamos que certificar-nos de que é mesmo
Deus que nos fala pelos seus supostos mandamentos. Ora, nem uma

87
  Cf. David Hume, A Treatise of Human Nature, Book III, ed. Fontana / Col‑
lins, London/Glasgow, 1978, vol. ii, p. 203; G. E. Moore, Principia Ethica (1903),
reimpr. Cambridge University Press, 1965.
88
  Eine Vorlesung über Ethik, 37.

166

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coisa nem outra pode alguma vez o homem chegar a certificá-la 89.
Mas, mesmo que isso fosse possível, as éticas fundadas nesses pres‑
supostos estariam feridas de heteronomia.
Segundo Kant, pois, a natureza não pode constituir-se como
fundamento da moralidade dos seres racionais humanos. Mas isso
não significa que a natureza ou antes os seres naturais sejam excluí‑
dos do âmbito da moralidade humana. Há um momento em que
Kant aborda expressamente, no contexto da sua filosofia moral, o
problema duma ética em atenção à natureza e aos animais. É num
Curso de Ética e na exposição da Doutrina da Virtude, sob a rubrica
«deveres do homem para com as coisas inanimadas» e «deveres do
homem para com os animais». A tese fundamental é, nos dois tex‑
tos, a mesma e, à primeira vista, ela só parece confirmar a ideia de
que o sistema ético-jurídico kantiano é incapaz de sair do círculo
antropocêntrico. Propriamente falando, diz Kant, não há deveres
para com os animais e para com as coisas inanimadas. Dever é algo
que só tem sentido referido à Humanidade e, mesmo nesta, àquilo
que eleva o homem acima de si próprio 90. Por isso, «todos os deve‑
res para com os animais e as coisas inanimadas são indirectamente
ainda deveres para com a Humanidade» 91. Esta conclusão pode, à
primeira vista, desiludir e parecer uma desvalorização ética da na‑
tureza e dos animais. Mas, se tivermos em conta a noção kantiana
de Humanidade, que acima explicitámos, e a noção kantiana de de‑
ver, veremos que é precisamente o contrário que se verifica: a me‑
diação da ideia de Humanidade introduz na consideração dos deve‑
res para com a natureza um alcance muito mais vasto do que se eles
se baseassem na mera compaixão, na solidariedade biológica, ou
numa qualquer teoria naturalista.
Mas porque não se pode falar de direitos da natureza ou dos
animais? Isso decorre da própria noção de relação ética ou jurídica.
Quem responderia pela natureza, ou pelos animais? Podem estes ao
menos responder por si? A relação ética e jurídica é uma relação que
só tem lugar entre pessoas que se reconhecem como tais e que são
considerados (ou presumidos) como autores conscientes, livres e
responsáveis das suas acções. Só por analogia e extensivo abuso de

  Ibidem, 48-49.
89

  V. Kritik der praktischen Vernunft, Ak V, 86-87.


90

91
  «Also alle Pflichten gegen Tiere, andere Wesen und Sachen zielen indi‑
rekt auf die Pflichten gegen die Menschheit ab.» Eine Vorlesung über Ethik, 258.

167

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linguagem se pode falar de «direitos da natureza» ou de «direitos
dos animais» 92. Mas, propriamente falando, o homem nem sequer
tem deveres para com a natureza e para com os animais, simplesmen‑
te porque estes não podem ser sujeitos pessoais de uma relação éti‑
co-jurídica. O que não quer dizer que o homem não tenha deveres
que têm por objecto directo esses seres e aquilo que designamos
­genericamente por natureza. Tem-nos de facto. Mas, tendo embora
por objecto a natureza ou os animais, tais deveres são ainda e sempre
deveres para com os homens, ou antes, para com a ­Humanidade.
No § 16 da sua Doutrina da Virtude, escreve Kant: «Segundo a
mera razão, o homem não tem outros deveres a não ser os deveres
em relação ao homem (relativamente a si mesmo ou relativamente a
outro). Com efeito, o seu dever relativamente a um sujeito qualquer
que ele seja é a obrigação moral determinada pela vontade deste su‑
jeito. O sujeito que constrange (que obriga) deve, pois, primeiramen‑
te ser uma pessoa e, em segundo lugar, esta pessoa deve ser dada
como objecto da experiência, pois o homem deve colaborar para a
realização do fim da sua vontade, o que não pode fazer-se senão na
relação de dois seres existentes (pois um mero ente de razão não
pode ser causa de qualquer efeito que aconteça segundo fins). Ora,
em toda a nossa experiência nós não temos conhecimento de um ser
capaz de obrigação (activa ou passiva) a não ser o homem. O homem
não pode, pois, ter deveres relativamente a um outro ser que não o
homem e se ele ainda assim representa tais deveres, isso só pode fa‑
zer-se à custa de uma anfibolia dos conceitos da reflexão; e esses pre‑
tensos deveres relativamente a outros seres não são senão deveres
relativamente a si mesmo; é levado a este erro pelo facto de confun‑
dir os seus deveres em atenção a outros seres [in Ansehung anderer
Wesen] com um dever para com estes seres [gegen diese Wesen]. Este
pretenso dever pode referir-se seja a seres impessoais, seja a seres

92
  Aparentemente pouco promissora, a tese kantiana encontra eco em al‑
guns pensadores contemporâneos que abordam as questões da natureza, do
ambiente e dos animais na perspectiva ética. V., nomeadamente: Holmes Rols‑
ton III, «Rights and Responsabilities on the Home Planet», The Yale Journal of
International Law, 18 (1993), pp. 251-279; Dominique Bourg, «Posfácio: Moder‑
nidade e natureza», in idem (dir.), Os Sentimentos da Natureza, Instituto Piaget,
Lisboa, 1997, pp. 243-263. Aqui se lê (p. 248): «A ideia de um direito da natu‑
reza, considerada como tendo um valor intrínseco, é insustentável, pois este
valor existe apenas para a humanidade e tanto quanto ela própria o conceda à
natureza.»

168

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sem dúvida pessoais, mas absolutamente invisíveis (que não podem
ser expostos aos sentidos externos). Os primeiros (inferiores ao ho‑
mem) podem ser a simples natureza material, ou a natureza organi‑
zada em vista da reprodução mas destituída de sensação ou aquela
parte da natureza que é dotada de sensação e de vontade (minerais,
plantas, animais). […] Trata-se de saber se relativamente a estes seres
pode haver uma relação de dever e de que tipo é ela.» 93
A posição kantiana pode parecer formalista: é a própria noção
de relação ética e de relação jurídica o que impede que se fale de
uma «ética da natureza» ou duma «ética animal», de «direitos da
natureza» ou de «direitos dos animais». Quem assim fala, comete
uma subrepção e atribui à natureza ou aos animais um tipo de rela‑
ção que só tem pertinência entre seres humanos, isto é, entre ­pessoas,
presumidas como conscientes e livres, que podem ser respon­sa­
bilizadas perante outras pelos seus actos e podem exigir a respon‑
sabilidade dos outros. Segundo Kant, os defensores da «ética ani‑
mal» e da «ética da Terra» ou dos «direitos dos animais» e dos
«direitos da natureza» incorreriam assim não só na «falácia natura‑
lista», mas sobretudo incorrem também numa falácia antropologis‑
ta, que consiste em fazer valer univocamente para o todo da natu‑
reza um tipo de relações que só tem significado e pertinência no
âmbito propriamente inter-humano e interpessoal. Em contraparti‑
da, a posição kantiana — que é uma solução por via indirecta e
aparentemente minimalista — não só evita as referidas dificuldades
e contradições formais, como ao limite pode garantir de uma forma
muito mais eficaz aquilo que pretendem os defensores da ética e
dos direitos da natureza ou dos animais.
Nos debates acerca duma ética da natureza que invocasse o
princípio de responsabilidade há um momento em que não pode
evitar-se esta questão: pode o homem realmente responsabilizar-se
pela natureza como um todo? Ele que nem sequer tem condições
para poder responsabilizar-se pela série completa dos efeitos das
suas acções, não só físicas como morais, as quais se entretecem de
muitos acasos que não dependem apenas dele, ainda menos está em
condições de poder responsabilizar-se pela natureza, cuja economia
e processos mais íntimos e poderosos nem sequer conhece suficien‑
temente e muito menos pode eficazmente controlar. De que homem,
de que natureza, de que responsabilidade se fala?

93
  Tugendlehre, Ak VI, 442.

169

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A responsabilização do homem pela natureza, com tudo o que
isso implica, só pode entender-se a uma escala humana e ainda as‑
sim de um modo muito limitado. Mas atenção, se o homem não
pode responsabilizar-se pela natureza, disso não decorre que seja
absolutamente irresponsável por ela ou que possa relacionar-se com
ela irresponsavelmente. Ora, segundo creio, é precisamente a pers‑
pectiva estética e teleológica, tal como proposta por Kant na sua tre‑
ceira Crítica, que nos pode ajudar a compreender melhor o teor e os
limites desta peculiar responsabilidade humana pela natureza, a
qual deve ser entendida menos num sentido moralista ou jurídico e
mais no sentido de uma mudança radical da atitude humana frente
à natureza, a qual passe do confronto ao diálogo, da dominação à
atenção vigilante e respeituosa, da vontade de exploração e destrui‑
ção à disponibilidade para aceitar e agradecer o dom, a graça e os
favores que a natureza prodigamente nos dispensa, para a contem‑
plação desinteressada ou para tomar interesse no deixar a natureza
simplesmente ser sem que dela nada se perca. A dimensão teleoló‑
gica e estética não anula, mas relativiza na raiz e tempera a relação
científico-técnica e a relação jurídico-moral do homem para com a
natureza.
Podemos então continuar lendo a Doutrina da Virtude, no seu
§ 17, onde Kant escreve: «No que respeita ao belo da natureza, ainda
que inanimado, a tendência para o mero destruir (spiritus destructio‑
nis) é contrário ao dever do homem para consigo próprio; porque
enfraquece ou extermina no homem aquele sentimento, que embora
não sendo por si apenas já <um sentimento> moral, prepara todavia
este, na medida em que promove muito aquela disposição da sensi‑
bilidade que nos leva a amar algo mesmo sem ter em vista a utilida‑
de (por ex., as belas cristalizações, a indescritível beleza do reino
vegetal).» 94
Esta passagem só ganha todo o seu alcance se colocada no con‑
texto da ampla reflexão kantiana sobre o juízo estético e o primado
que é reconhecido por Kant à experiência estética da natureza 95.
Pode então dizer-se que aquele que tem o sentido da moralidade em

  Ibidem, Ak VI, 443.


94

  V. o meu ensaio «Kant e o regresso à natureza como paradigma estéti‑


95

co», in Cristina Beckert (org.), Natureza e Ambiente. Representações na Cultura Por‑


tuguesa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2001, pp. 169­
‑193. Neste volume, pp. 349-378.

170

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relação aos homens tem-no também em relação à natureza e vice­
‑versa. Ou seja, usando as palavras de Kant: «só pode ter uma vi‑
vência estética do belo natural e do sublime da natureza aquele que
tem já desenvolvidos em si os sentimentos morais» 96. E assim, no
citado parágrafo da Doutrina da Virtude, prossegue Kant: «Relativa‑
mente à parte das criaturas que é viva, embora irracional, o tratar
com violência e crueldade os animais é muito intimamente contrá‑
rio ao dever do homem para consigo mesmo, porque desse modo
embota no homem a compaixão [Mitgefühl] nos seus sofrimentos e
assim enfraquece cada vez mais e acaba por exterminar uma dispo‑
sição natural muito favorável à moralidade na relação com os ou‑
tros homens. O homem conta entre as suas competências ­[Befügnisse]
a de matar os animais (mas sem os torturar) ou de lhes impor um
trabalho (a isso também nós temos de nos submeter) mas que não
exceda as suas capacidades; em contrapartida, devem ser rejeitadas
as experiências [Versuche] físicas martirizantes feitas com o mero in‑
teresse da especulação, quando o objectivo pode ser alcançado sem
elas. — Mesmo a gratidão [Dankbarkeit] pelo serviço prestado du‑
rante longo tempo por um velho cavalo ou por um cão (como se eles
fossem pessoas domésticas [Hausgenossen]) pertence indirectamente
ao dever do homem, se o considerarmos em atenção a estes animais,
mas directamente é sempre apenas um dever do homem em relação
a si próprio.» 97
No já citado Curso de Ética, Kant sugere mesmo uma progressi‑
va humanização das relações com os animais, não só evitando a vio‑
lência sobre eles, mas aprendendo os homens com os próprios ani‑
mais a ser mais humanos. Escreve o filósofo: «Quanto mais nos
ocupamos em observar os animais e o seu comportamento tanto
mais os amamos, dado que temos ocasião de ver como cuidam das
suas crias. Desta forma nem sequer seremos capazes de albergar
pensamentos cruéis em relação a um lobo.» 98 E cita o exemplo de
Leibniz, o qual, depois de ter observado e estudado a forma e com‑
portamento de um pequeno verme, o colocava de novo na folha da
árvore de onde o tirara, evitando causar-lhe qualquer dano, pois
lamentava destruir sem razão uma criatura que tantas coisas lhe ha‑
via ensinado. A ternura para com o mais insignificante dos seres

96
  Kritik der Urteilskraft, Ak V, 299.
97
  Tugendlehre, Ak VI, 443.
98
  Eine Vorlesung über Ethik, 257.

171

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acaba por calar fundo no coração e no espírito do homem. Na conti‑
nuação, Kant condena como totalmente imoral o espírito destrutivo
exercido sobre coisas que, não nos sendo úteis, podem ainda ser
utilizadas por outros e vai ao ponto de dizer que não temos sequer
o direito de destruir aquilo em que não vemos qualquer utilidade
possível. Entre essas coisas «inúteis» conta-se a beleza da natureza.
Nas palavras do filósofo: «Nenhum ser humano deve destruir a be‑
leza da natureza [Schönheit der Natur], pois mesmo quando ele pró‑
prio possa não fazer uso dela, outros homens podem ainda vir a
fazer uso [Gebrauch] dela. E mesmo que não faça isso em considera‑
ção das coisas mesmas, deve fazê-lo em atenção aos outros homens.
Por conseguinte, todos os deveres relativamente aos animais, a ou‑
tros seres e coisas têm em vista indirectamente os deveres para com
a Humanidade.» 99
Ainda aqui se vê a função reguladora e teleológica da ideia kan‑
tiana de Humanidade, que acima expus. O que me é inútil hoje pode
um dia ser ainda útil a outros; naquilo em que hoje não reconheço
qualquer utilidade e sentido, podem outros no futuro descobrir não
só préstimo como até um profundo significado.

VI.  Conclusão

Kant não só estava bem consciente da falácia naturalista em que


incorrem as éticas fundadas na natureza, como põe mesmo a desco‑
berto a subrepção de princípios em que se movem as éticas dos ani‑
mais e da natureza e denuncia o camuflado antropocentrismo e an‑
tropomorfismo que se aninha ainda no fundo dessas éticas. Por
muito generosas e de vistas amplas que elas possam parecer e pen‑
sem ser, é sempre uma determinada (regional, étnica, epocal) visão
ou representação humana da natureza que está na base dessas éticas,
seja ela inspirada numa qualquer ciência (cosmologia, física, quími‑
ca, biologia, ecologia, sociologia), seja baseada num vago sentimen‑
to de solidariedade biosférica ou biológica, terrena, sensível, cósmi‑
ca, ou num sentimento de piedade e compaixão universal, seja,
enfim, baseada num amor desinteressado de natureza estética, ou
numa qualquer intuição de místico naturalismo. Mas Kant indica
também um modo possível segundo o qual a ordem ética e jurídica,

99
  Ibidem.

172

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sendo propriamente uma ordem humana e entre humanos, pode
alargar-se à natureza, sem incorrer em subrepções ou falácias, por‑
que consciente dos limites dessa extensão: esse modo é o que se abre
pela apreciação teleológica e pela vivência estética. A perspectiva
estética e a teleológica em face da natureza, de resto afins entre si,
não só corrigem e educam a visão meramente técnico-científica e
económica da natureza, como podem também temperar as formas
do fundamentalismo ético-jurídico, e não só e antes de mais o kan‑
tiano, como também e porventura ainda mais o de alguns propo‑
nentes das éticas ambientais e das éticas da natureza e o de alguns
advogados dos direitos da natureza e dos direitos dos animais.
Não foi, como escreveu Hannah Arendt, porque tivesse posto a
«dignidade» da Humanidade e da pessoa humana contra o «preço»
venal das coisas que Kant degradou tudo aquilo que não era huma‑
no à condição de simples meio. Bem pelo contrário. Só à custa de ter
encontrado no homem (mas, de algum modo, acima dele mesmo)
aquilo mediante o qual um ser humano pode atribuir dignidade a si
mesmo, Kant conseguiu um ponto de vista a partir do qual também
os seres da natureza poderiam vir a ser reconhecidos numa certa
dignidade e transcendência, e até amados e respeitados por si mes‑
mos. Mas quem pode fazer isso senão só e ainda o homem? Ou seja,
aquele ser peculiar que descobriu em si o sentido daquilo que pode
dar um valor absoluto e dignidade a si mesmo e a tudo o mais.
Aquele ser que aprendeu, na atitude estética, a desprender-se dos
seus interesses e a contemplar desinteressadamente os seres da na‑
tureza, a admirá-los e até a amá-los, «não querendo de modo algum
que eles se percam da natureza, mesmo que disso lhe advenham
alguns prejuízos e que não tire disso nenhum proveito próprio» [sie
nicht gerne in der Natur überhaupt vermissen zu wollen, ob ihm gleich
dadurch einiger Schaden geschähe, viel weniger ein Nutzen daraus für ihn
hervorleuchtete]; aquele ser a quem «a simples existência dos seres
naturais lhe agrada, mesmo que não sejam para ele ocasião de qual‑
quer prazer sensível ou não veja neles qualquer finalidade» [das
­Dasein desselben gefällt ihm, ohne dass ein Sinnenreiz daran Antheil ­hätte,
oder er auch irgend einen Zweck damit verbände] 100.
Depois da viagem que fizemos pelos escritos de Kant, talvez
estejamos em condições de entender o teor do antropocentrismo crí‑
tico que se expõe numa passagem de um dos últimos e decisivos

100
  Kritik der Urteilskraft, Ak V, 299.

173

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parágrafos da segunda parte da terceira Crítica (§ 86): «Há um juízo
que mesmo o mais comum entendimento não pode deixar de fazer,
quando pensa acerca da existência das coisas no mundo e da exis‑
tência do próprio mundo: a saber, que todas as múltiplas criaturas,
por maior que possa ser o artifício da sua construção e por mais di‑
versa que seja a conexão teleoforme que exista entre elas e mesmo
entre o todo de tantos sistemas das mesmas, tudo isso seria em vão,
se nele <no mundo> não houvesse homens (seres racionais em ge‑
ral); i. e., que, sem os homens, toda a criação seria um mero deserto
[blosse Wüste], algo em vão e sem um fim final [Endzweck].» 101
Em suma, o que Kant parece dizer-nos é que só pela mediação
humana a natureza pode ser também ela resgatada para uma ordem
dos fins e sublimada ela própria de algum modo como um fim em si
mesma, e não já considerada apenas e tratada como um simples
meio para o lucro, para o consumo, para o uso ou o abuso. Mas, para
que esse resgate e essa sublimação aconteçam, é necessário que an‑
tes de mais os homens descubram eles próprios e realizem a sua
plena dimensão moral, a sua plena humanidade.

101
  Kritik der Urteilskraft, Ak V, 442.

174

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4

KANT E A ÉTICA DA LINGUAGEM

A verdade é pois um dever necessário do ho‑


mem. Verdade relativamente ao que dizemos e ao
que em nós pensamos, sentimentos sinceros relati‑
vamente a Deus e à religião, eis uma condição sob
a qual toda a conduta tem um valor. 1

1. O título deste ensaio pode suscitar alguma ambiguidade,


que importa desde já esclarecer. Poderia nomeadamente parecer
que promete a abordagem da relação que pode ter com a filosofia
kantiana a chamada «ética do discurso» (Diskursethik), desenvolvi‑
da desde a década de 70 do século xx por Karl­‑Otto Apel e Jürgen
Habermas. Essa via seria possível e por certo fecunda, já que aque‑
les filósofos erigiram a sua «ética do discurso» em confronto crítico
explícito e privilegiado com a ética kantiana 2. Não é isso, porém, o
que me proponho trazer aqui à consideração. E sim, apenas, chamar
a atenção para um conjunto de reflexões recorrentes na obra de
Kant, as quais insistem na ideia de que a veracidade constitui um
mandamento sagrado da razão, incondicionalmente exigido e não
limitado por conveniência ou circunstância alguma, e que a mentira

1
  «Die Wahrheit ist nun eine nothwendige Pflicht des Menschen. Wahrheit
in Ansehung dessen was wir sagen und in uns denken, aufrichtige Gesinnun‑
gen in Ansehung Göttes und der Religion, das ist eine Bedingung unter der
alles Betragen einen Werth hat.» Immanuel Kant, Praktische Philosophie Powal‑
ski, Vorlesungen über Moralphilosophie, Kants Gesammelte Schriften, Akademie­
‑Ausgabe [Ak] XXVII, 232.
2
  V. Albrecht Welmer, Ethik und Dialog. Elemente der moralischen Urteils
bei Kant und in der Diskursethik, Suhrkamp, Frankfurt / M., 1986, sobretudo o
cap. 3 (pp. l14­‑172): «Ansätze einer Vermittlung zwischen Kantiscber und Dis‑
kursethik.» Pode ler­‑se também com proveito a obra de J. Lenoble e A. Ber‑
ten, Dire la norme. Droit, politique et énontiation, L. G. D. J.­‑Bruylant, Paris, 1996,
pp. 75­‑89.

175

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constitui o pecado original da razão, que corrompe na raiz todas as
coisas humanas e mina os fundamentos não só da dignidade do ho‑
mem como também da sociedade e comunidade humanas.
O tópico, como disse, é recorrente e pode rastrear­‑se desde mui‑
to cedo nos escritos de Kant, com desenvolvimentos de extensão
variável. A primeira formulação que dele colhemos encontra­‑se
numa extensa nota em latim escrita à margem das Beobachtungen
(1764), na qual é já visível a centralidade do tema e a sua íntima re‑
lação com o que se poderá considerar como uma das primeiras for‑
mulações da ética kantiana. Diz Kant:

Poderia por certo acontecer que em certas circunstân‑


cias da vida a mentira fosse de tal modo útil que a regra de
prudência aconselhasse que se mentisse, mas para isso
requer­‑se uma grande astúcia e uma consequente sagacida‑
de, ao passo que considerado moralmente e segundo a sim‑
plicidade moral conhece­‑se imediatamente o que é necessá‑
rio fazer. Ainda que a falsidade seja muito útil ela é todavia
mentira, a não ser que seja imposta por uma obrigação es‑
trita e, por isso, se vê que a veracidade não depende da fi‑
lantropia mas do sentimento do direito pelo qual distingui‑
mos o que é lícito ou ilícito. Este sentimento, porém, tira a
sua origem da natureza da mente humana pela qual ela jul‑
ga o que seja o bem categoricamente (e não utilmente), não
a partir da consideração da comodidade própria ou alheia,
mas colocando a mesma acção nos outros e, no caso de sur‑
gir oposição e contrariedade, ela desagrada, ao passo que
se surgir harmonia e consenso ela agrada. Daí a faculdade
das situações morais como meio heurístico. Pois somos por
natureza sociáveis e o que desaprovamos nos outros não
podemos aprová­‑lo com mente sincera em nós mesmos.
O sentimento comum do verdadeiro e do falso não é senão
a razão humana em geral enquanto critério do verdadeiro e
do falso e o sentimento do bem e do mal é o critério comum
do mesmo. Mentes opostas entre si destroem a certeza lógi‑
ca, corações opostos entre si destroem a certeza moral. 3

  «Poterit equidem in quibusdam vitae conditionibus mendacium esse


3

admodum utile ideoque per regulam prudentiae mentiendum sed ad hoc


requiritur vasta astucia et sagacitas consectaria si moraliter consideratur per

176

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O tópico alcança, todavia, a sua mais explícita e extremada ex‑
pressão nos escritos dos anos 96 e 97, em particular, no ensaio
Verkündigung des nahen Abschlusses eines Traktats zum ewigen Frieden
in der Philosophie, publicado na Berlinische Monatschrjft de Dezembro
de 1796, no § 9 da Metaphysik der Sitten, Tugendlehre e no ensaio Über
ein vermeintes Recht aus Menschenliebe zu lügen, estes últimos publica‑
dos no ano de 1797 4. O último dos ensaios citados é aquele que leva
mais longe a afirmação da exigência incondicional da veracidade, e
não já apenas no plano ético mas também no plano jurídico. Este
ensaio foi directamente motivado por um outro do filósofo político
francês Benjamin Constant 5, o qual, visando um certo «filósofo ale‑

simplicitatem moralem illico cognoscitur quod factu opus sit. Quantumvis


falsiloquium aliis aliquando admodum sit utile tamen erit mendacium nisi ad
illud incumbat obligatio stricta hinc videre est veracitatem non a Philanthropia
sed a sensu juris quo fas ac nefas distinguimus pendere. Hinc sensus autem
originem ducit a mentis humanae natura per quam quid sit bonum categorice
(non utile) judicat non ex privato commodo nec ex alieno sed eandem actionem
ponendo in aliis si oritur oppositio et contrarietas displicet si harmonia et
consensus placet. Hinc facultas stationum moralium ut medium heuristicum.
Sumus enim a natura sociabiles et quod improbamus in aliis in nobis probare
sincera mente non possumus. Est enim sensus communis veri et falsi non nisi
ratio humana generatim tanquam criterium veri et falsi et sensus boni vel mali
communis criterium illius. Capita sibi opposita certitudinem logicam corda
moralem tollerent.» Bemerkungen, Ak XX, 155­‑156.
4
  Os textos mais importantes de Kant onde o tema da mentira / veracidade
é desenvolvido foram reunidos por Georg Geismann e Hariolf Oberer, no ­volume
Kant und das Recht der Lüge, Königshausen & Neumann, Würzburg, 1986. Para
além duma introdução de H. Oberer — «Zur Vor — und Nachgeschichte der
Lehre Kants vom Recht der Lüge» (pp. 7­‑22), integram o volume o apontamento
de Benjamin Constant (pp. 23­‑25) que motivou um dos mais incisivos ensaios de
Kant sobre a veracidade e ainda alguns ensaios de reputados hermeneutas da
filosofia kantiana (Herbert Paton, Julius Ebbinghaus, Norman Gillespie, Hans
Wagner, Jules Vuillemin) em que esse ponto crítico do pensamento kantiano é
directamente analisado e discutido. V. ainda Christine M. Korsgaard, «The Right
to Lie. Kant on Dealing with Devil» e «Two arguments against lying», in idem,
Creating the Kingdom of Ends, Cambridge U. P., Cambridge, 1996, pp. 311­‑334 e
335­‑362; Zeljko Loparic, «Kant e o pretenso direito de mentir», in José Oscar de
Almeida Marques (org.), Verdades e Mentiras. 30 Ensaios em Torno de Jean­‑Jacques
Rousseau, Editora Unijuí, Ijuí, 2005, pp. 75­‑97; Jong­‑Gook Kim, «Kants Lügenver‑
bot in sozialethischer Perspektive», Kant­‑Studien, 95 (2004), 226­‑234.
5
  Embora nascido em Lausanne, de uma família de protestantes franceses
refugiados por motivos de religião, Constant sempre se considerou francês por
razões culturais e afectivas, tendo­‑se naturalizado francês.

177

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mão» não identificado, sustentara a seguinte tese: «O princípio mo‑
ral que impõe como um dever o dizer a verdade [dire la vérité est un
devoir], se fosse considerado como absoluto e de modo isolado [abso‑
lue et isolée], tornaria impossível todo o tipo de sociedade, sendo
disso prova as conclusões que um filósofo alemão tirou directamen‑
te de um tal princípio, chegando ao ponto de sustentar que, frente a
um assassino que nos perguntasse se um nosso amigo, que ele per‑
segue, se encontra refugiado na nossa casa, a mentira [mensonge]
seria um crime.» 6 O exemplo aduzido pelo filósofo francês não se
encontra de facto em nenhum escrito de Kant 7. Mas este, embora

6
  Über ein vermeintes Recht, Ak VIII, 423. Não é minha intenção analisar ou
discutir na economia deste ensaio a subtil e aparentemente moderada tese de
Constant e confrontá­‑la com a posição aparentemente extremista e rigorista de
Kant a respeito do princípio segundo o qual «dizer a verdade é um dever». A
subtileza de Constant reside nas distinções que introduz na consideração dum
problema que labora num paradoxo, pois, como ele diz, se o princípio segundo
o qual «dizer a verdade é um dever», considerado isoladamente é inaplicável
e se fosse aplicado absolutamente destruiria a sociedade, também é verdade
que, se o recusamos, toda a sociedade será igualmente destruída, pois todos
os fundamentos da moral e da vida jurídica seriam arrasados. Constant não
recusa o princípio, e considera mesmo que um princípio reconhecido como ver‑
dadeiro não deve ser nunca abandonado, quaisquer que sejam os seus perigos
aparentes. Todavia, introduz na apreciação do princípio as condições da sua
aplicação e o que chama os princípios intermédios entre o princípio absoluto
e a respectiva aplicação. Assim: «Dizer a verdade é um dever. Mas que coisa é
um dever? A ideia de dever é inseparável da de direito: um dever é aquilo que,
num indivíduo, corresponde aos direitos de um outro. Onde não há direitos,
também não há deveres. Dizer a verdade é, por conseguinte, um dever mas
somente em relação àqueles que têm o direito à verdade [droit à la vérité]. Ora
nenhum homem tem direito a uma verdade que prejudica os outros. Eis como
me parece que o princípio seja aplicável. Definindo­‑o, descobrimos o nexo que
o unia a um outro princípio e a conexão destes dois princípios forneceu­‑nos a
solução para a dificuldade com que nos confrontávamos.» (V. na trad. italiana
de Silvia Manzoni e Elisa Tetamo, La verità e la menzogna, pp. 211­‑213.) Para um
confronto entre as posições de Kant e de Constant, v., para além da introdução
de Andrea Tagliapietra a La verità e la menzogna, também Zeljko Loparic, «Kant
e o pretenso direito de mentir», in José Oscar de Almeida Marques (org.), Verda‑
des e Mentiras. 30 Ensaios em Torno de Jean­‑Jacques Rousseau, Editora Unijuí, Ijuí,
2005, pp. 73­‑97.
7
  O exemplo mais próximo é o que surge no citado § 9 («Sobre a mentira»)
da Metafisica dos Costumes, Doutrina da Virtude (Ak VI, 431), que Kant estava a
redigir por essa mesma época. Aí Kant dá o exemplo de um criado que mente
negando a presença em casa do seu senhor, procurado pela polícia. Segundo

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não podendo identificar na sua obra o lugar ou o contexto precisos
onde tivesse exposto o exemplo apontado por Constant, admite ter
realmente sustentado aquela tese e reconhece­‑se como o «filósofo
alemão» visado, desenvolvendo, em resposta, uma defesa intransi‑
gente do princípio absoluto da veracidade, em termos tais que cos‑
tumam ser considerados por alguns comentadores e críticos como a
prova iniludível não só do carácter rigorista e formalista como até
da crueldade e desumanidade da ética kantiana 8.
Por estranho que pareça, as reflexões do filósofo crítico sobre a
mentira, a veracidade e, em geral, sobre a ética da linguagem não
foram advertidas nem tidas em conta pelos recentes promotores da
«ética do discurso», os quais, todavia, não só criticaram como ainda
se propuseram corrigir e transformar, num sentido linguístico e
pragmático, a filosofia transcendental kantiana 9. Julgo, porém, que
a consideração do tópico kantiano da veracidade e dos respectivos
pressupostos pode levar ao reconhecimento não só do carácter ori‑
ginariamente prático­‑político da razão, como também da sua condi‑
ção linguística e comunicacional. As reiteradas críticas de Apel e
sobretudo de Habermas ao carácter solipsista e monológico da ra‑
zão kantiana seriam assim desmentidas não só pelo espírito como
também pela letra da filosofia transcendental. Aqueles pensadores
neopragmatistas rejeitam uma concepção simplista da consciência

Cramer, o editor do ensaio de Constant, teria sido o Prof. J. D. Michaelis de Gõt‑


tingen quem primeiro sustentara aquela opinião, embora fosse realmente Kant
o «filósofo alemão» visado pelo filósofo francês. Na realidade, em substância, o
exemplo é clássico e encontra­‑se já no De mendacio de Santo Agostinho (Patrolo‑
gia Latina, t. 40, 489­‑490, 503­‑504). No que se refere a Kant, Constant poderia ter
tido presentes certas passagens do prefácio à Religion innerhalb der Grenzen der
blossen Vernunft (Ak VI, 3) ou da Kritik der praktischen Vernunft (Ak V, 87­‑88).
8
  Cf. Paul K. Feyerabend, Dialogo sul metodo, Laterza, Roma­‑Bari, 1995,
pp.  7­‑8. Para além dos ensaios já referidos e reunidos em Kant und das ­Recht
der Lüge, v. Jean Lefranc, «Le paradoxe kantien de la véracité», Révue de
l’enseignement philosophique, 31 (1981), 24­‑41.
9
  De Karl­‑Otto Apel, v. «Das Apriori der Kommunikationsgemeinschaft
und die Grundlagen der Ethik», in Transformation der Philosophie, Suhrkamp,
Frankfurt /M., 1973, vol. ii, pp.  358­‑436; «Diskursethik als Verantwortungse‑
thik: eine Postmetaphysische Transformation der Ethik Kants», in Teoria de la
verdad y ética del discurso, trad. de Norberto Smilg e introd. de Adela Cortina,
Ediciones Paidós, Barcelona, 1991, pp.  147­‑184. De J. Habermas, v. «Diskur‑
sethik — Notizen zu einer Begründungsprogramm», in Moralbewusstsein und
kommunikatives Handeln, Suhrkamp, Frankfurt/M., 1983, pp. 53­‑126.

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que atribuem a Kant, mas que, na verdade, nada tem que ver com a
complexidade da concepção kantiana do que é a consciência moral
e do processo que nela está envolvido 10. Por outro lado, Kant não
está tão sozinho na defesa intransigente da veracidade como pode‑
ria à primeira vista parecer: a sua atitude inscreve­‑se numa longa e
bem representada tradição, que, desde Platão e Cícero, passando
por Agostinho de Hipona, chega ao pensamento renascentista e mo‑
derno nos desenvolvimentos de Lutero, Melanchthon, Montaigne e
Descartes, neste último com o explícito reconhecimento de que «o
primeiro atributo de Deus que nos vem à consideração é que ele é
sumamente veraz» (primum Dei atributum quod hic venit in considera‑
tionem, est, quod sit summè verax) 11.

2. O tom com que Kant aborda o tema da veracidade e da men‑


tira denuncia uma relação apaixonada. Num pensador como Kant
não é de esperar que seja por paixão que se sustenta uma tese que
parece ofender tão obviamente o senso comum. Mas se tivermos em
conta o que ele escreveu em 1764 nas Observações sobre o Sentimento
do Belo e do Sublime acerca do melancólico, a saber que para este «a
veracidade é sublime e ele odeia mentiras ou fingimento» 12 e se re‑
conhecermos nesse perfil caracteriológico os traços de um auto­
‑retrato do filósofo, não é de estranhar o tom em que o tema é
­tratado.
Como tentarei mostrar, se se pode falar de rigorismo e formalis‑
mo acerca deste tópico, eles estão na verdade ao serviço de causas
que Kant tem muito a peito como homem e como pensador: a comu‑
nidade humana, a humanidade, a dignidade do homem. Comece‑
mos pela tipificação da mentira, coligindo as passagens onde Kant
sistematiza as suas ideias sobre o assunto:

Pode acontecer que não tudo seja verdadeiro daquilo


que um homem tem por tal (pois ele pode errar); mas em
tudo o que ele diz, deve ser veraz (ele não deve enganar):

  V., a título de exemplo, a análise do complexo processo judicial que se


10

desenvolve na consciência moral, tal como é exposta em Metaphysik der Sitten.


Metaphysische Anfangsgründe der Tugendlehre, Ak VI, 437­‑440.
11
  Descartes, Principia Philosophiae, I, § 29, in Œuvres (ed. Charles Adam­
‑Paul Tannery), reimpr. Vrin, Paris, 1996, vol. viii, p. 16.
12
  «Wahrhaftigkeit ist erhaben, und er hasst Lügen oder Verstellung.» Beo‑
bachtungen über das Gefühl des Schönen und Erhabenen, Ak II, 221.

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pode acontecer que a sua confissão seja simplesmente ínti‑
ma (perante Deus) ou seja também exterior. A transgressão
deste dever da veracidade chama­‑se a mentira; pelo que
pode dar­‑se uma mentira externa mas também uma menti‑
ra íntima. [...] A mentira, seja ela íntima ou exterior, é de
dois tipos: 1) quando se faz passar por verdadeiro aquilo de
que se tem consciência que é não­‑verdadeiro, 2) quando se
faz passar como sendo certo aquilo de que se tem consciên‑
cia que é subjectivamente incerto. 13

Ressaltam alguns tópicos, que importa identificar. Em primeiro


lugar, a distinção entre mentira e erro, ou entre veracidade e verda‑
de, entre o plano ético e o plano lógico­‑epistemológico. Que o ho‑
mem erre ou desconheça a verdade, é algo que depende das suas
limitações naturais, do estado histórico ou pessoal do desenvolvi‑
mento dos conhecimentos. Que ele minta, porém, depende da sua
liberdade, qualquer que seja o grau do seu saber ou ignorância, o
alcance e qualidade dos seus talentos cognoscitivos. Kant desloca
assim o problema do terreno lógico e científico — da coerência for‑
mal e da objectividade — para o domínio ético, do plano da relação
triangular — pensamento/ palavra/realidade — para o da relação
intersubjectiva entre pessoas que comunicam entre si os seus pensa‑
mentos e confiam umas nas outras, sendo a palavra o sacramento
(sinal) desse acontecimento comunicativo e o gerador da própria
comunidade e humanidade. A palavra é uma promessa de comuni‑
cação, que seria negada se aquela fosse mentirosa. A própria comu‑
nidade e sociedade humanas fundam­‑se na fé que os homens se dão
na e pela palavra que mutuamente se dirigem. A palavra humana
tem, por conseguinte, uma substância que não se esgota na mera
função de veículo ou de meio informativo. Mas isto não significa
que para Kant o problema da veracidade fique confinado ao domí‑

13
  «Es kann sein, dass nicht Alles wahr ist, was ein Mensch dafür halt (denn
er kann irren): aber in Allem, was er sagt, muss er wahrhaft sein (er soll nicht
täuschen): es mag nun sein, dass sein Bekenntniss bloss innerlich (vor Gott)
oder auch ein äusseres sei. — Die Übertretung dieser Pflicht der Wahrhaftigkeit
heisst die Lüge; weshalb es äussere, aber auch eine innere Lüge geben kann:
[...] — Eine Lüge aber, sie mag innerlich oder äusserlich sein, ist zwiefacher Art:
1) wenn man das für wahr ausgibt, dessen man sich doch als unwahr bewusst
ist, 2) wenn man etwas für gewiss ausgiebt, wovon man sich doch bewusst ist
subjectiv ungewiss zu sein.» Verkündigung, Ak VIII, 421.

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nio ético e jurídico. A veracidade é também o fundamento da autên‑
tica fé religiosa, que Kant vê tipificada na sincera e humilde postura
de Job, em confronto com a pretensa teologia positiva e afirmativa
dos seus amigos 14. E, como veremos, dela decorre também a correc‑
ta atitude da razão para consigo mesma e para com a razão humana
comum, mesmo no seu exercício especulativo, em particular quan‑
do aborda as questões metafísicas. Pelo que se pode inferir que, se‑
gundo Kant, a própria filosofia especulativa é originariamente con‑
duzida por uma exigência ética de veracidade. Em segundo lugar, a
distinção entre mentira externa (a um outro) e a mentira íntima (a si
mesmo). Se a primeira destrói a base de toda a sociedade baseada na
fé dada à palavra, nos pactos e nos contratos, a segunda implica a
destruição do sentido da dignidade humana e da própria humani‑
dade. Pela primeira, diz Kant, o homem torna­‑se objecto de despre‑
zo aos olhos dos outros, mas, pela segunda, o que é muito mais
grave, ele torna­‑se objecto de desprezo aos seus próprios olhos e
ofende a dignidade da humanidade na sua própria pessoa 15. Um
terceiro aspecto merece destaque: para ser considerada rejeitável, a
mentira não necessita de causar prejuízo a alguém. Ou seja, não é
pelas suas consequências que ela é condenável. E tão pouco há lugar
para boas mentiras, ou mentiras que se justifiquem como meios para
atingir bons objectivos, mesmo por razões humanitárias ou por
amor dos homens (aus Menschenliebe). A hipotética bondade dos
conteúdos ou dos fins visados não justifica a perversão da forma.
É em si mesma e na sua mera forma que a mentira constitui «um
crime do homem contra a sua própria pessoa e uma indignidade,
que torna o homem desprezível aos seus próprios olhos» 16.
A distinção feita por Kant entre a mentira que consiste em fazer
passar por verdadeiro (wahr) o que se sabe não ser tal e a mentira que
consiste em fazer passar por certo (gewiss) o que se sabe não sê­‑lo,

14
  «Hiob […] der die gewissenhaftete Redlichkeit zum Princip aller seiner
Glaubenaussprüche machte; ein Grundsatz von dem man weil er so klar
einleuchtet vermuthen sollte er werde allgemein seyn der aber wegen eines
eingewurtzelten Hanges des Menschen zur Unlauterkeit Falschheit die bis zur
inneren Lüge geht.» Vorarbeit zu Über das Misslingen aller philosophischen Versuche in
der Theodicee, Ak XXIII, 85. V. a bela invocação à sinceridade (Aufrichtigkeit) como
fundamento da consciência moral e de toda a religião, em Die Religion, Ak VI, 190.
Veja-se, neste volume, o ensaio «A teologia de Job, segundo Kant», pp. 267-299.
15
  Metaphysik der Sitten, Ak VI, 429.
16
  Metaphysik der Sitten, Ak VI, 430.

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parecendo constituir apenas um apuramento analítico, é todavia im‑
portante na economia da filosofia kantiana 17. Ela aplica­‑se directa‑
mente ao trabalho da crítica da razão, o qual tem por objectivo evitar
que a razão minta a si mesma, atribuindo às suas proposições metafí‑
sicas um sentido de objectividade, de realidade ou de certeza que elas
não têm. Lê­‑se num dos últimos capítulos da Crítica da Razão Pura:

Há na natureza humana uma certa deslealdade […], a


saber, uma inclinação para esconder os próprios verdadei‑
ros sentimentos e exibir certos outros que são tidos por
bons e dignos de honra […]. É­‑me penoso notar esta desleal­
dade, esta dissimulação e hipocrisia mesmo nas manifesta‑
ções do pensamento especulativo onde, todavia, os homens
encontram muito menos obstáculos para declarar aberta‑
mente os seus pensamentos […]. Com efeito, que coisa pode
haver mais prejudicial aos conhecimentos do que comuni‑
car uns aos outros mesmo que seja apenas meros pensa‑
mentos falsificados, do que esconder dúvidas que sentimos
levantar­‑se contra as nossas afirmações ou dar uma pintura
de evidência a argumentos que nem a nós ­próprios satisfa‑
zem? […] Eu penso todavia que nada no mundo se adequa
menos ao desígnio de sustentar uma boa causa do que a
astúcia, a dissimulação e o engano. Na apreciação dos prin‑
cípios racionais da simples especulação tudo deve ser ex‑
posto lealmente: é o mínimo que se pode exigir. É pouca
coisa; mas se ao menos pudéssemos contar seguramente
com isso, a luta da razão especulativa a respeito das graves
questões de Deus, da imortalidade (da alma) e da liberdade
já teria terminado há muito tempo ou não tardaria a termi‑
nar. Assim, frequentemente, a pureza dos sentimentos está
na razão inversa da bondade da causa, e esta última tem
porventura mais adversários sinceros e honestos do que
defensores. 18

  Cf. Verkündigung, Ak VIII, 422.


17

  «Es giebt eine gewisse Unlauterkeit in der menschlichen Natur […]


18

nämlich eine Neigung, seine wahre Gesinnungen zu verhehlen und gewisse


anfgenommene, die man für gut und rühmliche halt, zur Schau zu tragen. […]
Es thut mir leid, eben dieselbe Unlauterkeit, Verstellung und Heuchelei sogar in
den Äusserungen der speculativen Denkungsart wahrzunehmen […] Denn was
kann den Einsichten nachtheiliger sein, als sogar blosse Gedanken verfalscht

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Estas palavras são dirigidas aos metafísicos dogmáticos, que, a
pretexto de defenderem a causa pública da razão dos ataques dos
cépticos contra as verdades metafísicas, em vez do tom moderado
de uma «convicção meramente prática», pretendem para as suas
proposições — «sobretudo naquilo que respeita ao supra­‑sensível»
(vornehrnlich in dem, was das Übersinnliche betrifft) 19 — uma certeza
apodíctica que elas não podem garantir.

3. Sempre que se trata de esclarecer a origem e a natureza da


tendência dos homens para a mentira, a dissimulação, a insincerida‑
de, Kant recorre à linguagem mítica da Escritura, que interpreta, a
seu modo, entrelaçando vários textos bíblicos. Assim, numa passa‑
gem da Metafisica dos Costumes, lê­‑se:

É digno de nota que a Bíblia date o primeiro crime, me‑


diante o qual o mal entrou no mundo, não a partir do assas‑
sínio do irmão (de Caim) mas a partir da primeira mentira
(pois contra aquele indigna­‑se a própria natureza), e chame
ao criador de todo o mal o mentiroso do início e o pai das
mentiras; se bem que a razão nenhum fundamento possa
acrescentar para esta tendência dos homens para a hipocri‑
sia (esprit fourbe), a qual por certo deve ter vindo antes: pois
um acto da liberdade não pode ser deduzido e explicado
(como um efeito físico) segundo a lei da natureza da cone‑
xão do efeito e da sua causa, os quais no seu conjunto são
fenómenos. 20

einander mitzutheilen, Zweifel, die wir wider unsere eigene Behauptungen


fühlen, zu verhehlen, oder Beweisgründen, die uns selbst nicht genugthun,
einen Anstrich von Evidenz zu geben? […] Indessen sollte ich denken, dass
sich mit der Absicht, eine gute Sache zu behaupten, in der Welt wohl nichts
übler als Hinterlist, Verstellung und Betrug vereinigen lasse […] So steht öfters
die Lauterkeit der Gesinnung im umgekehrten Verhältnisse der Gutartigkeit
der Sache selbst, und diese hat vielleicht mehr aufrichtige und redliche Gegner
als Vertheidiger.» Kritik der reinen Vernunft, B 776­‑778, Ak III, 489­‑491.
19
  Verkündigung, Ak VIII, 422.
20
  «Es ist merkwürdig, dass die Bibel das erste Verbrechen, wodurch das
Böse in die Welt gekommen ist, nicht vom Brüdermörde (Kains), sondern von der
ersten Lüge (weil gegen jenen sich doch die Natur empört) und als den Urheber
alles Bösen den Lügner von Anfang und den Vater der Lügen nennt; wiewohl die
Vernunft von diesem Hänge der Menschen zur Gleisnerei (esprit fourbe), der doch
vorher gegangen sein muss, keinen Grund weiter angeben kann: weil ein Act

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Na mesma linha, é sugerida num outro ensaio a identificação da
mentira com o princípio de toda a perversão — o pecado original —
da razão: «A mentira (‘do pai da mentira, por quem todo o mal veio
ao mundo’) é a verdadeira corrupção original na natureza humana.» 21
Não há uma história natural da mentira. A mentira é um acto da
liberdade, uma «corrupção do modo de pensar, e um mal positivo»
(eine Corruption der Denkungsart und ein positives Böse) 22. Não se explica
nem por uma mera fraqueza psicológica 23, nem por uma imperfeição
ou falta de conhecimento. A razão não pode aduzir uma explicação
natural para ela. O recurso à explicação mítica indica a dificuldade
em que a razão se vê de, por um lado, ter de reconhecer a incontorná‑
vel realidade dessa tendência e, por outro, não poder dar para ela
uma explicação racional. A situação é perfeitamente análoga daquela
que o filósofo enfrenta quando aborda a questão da natureza e ori‑
gem do «mal radical» na natureza humana. A tendência para a men‑
tira, tal como a tendência para o mal, são algo impenetrável e incom‑

der Freiheit nicht (gleich einer physischen Wirkung) nach dem Naturgesetzen
des Zusammenhanges der Wirkung und ihrer Ursache, welche insgesammt
Erscheinungen sind, deducirt und erklärt werden kann.» Metaphysik der Sitten,
Ak VI, 429­‑431. Kant relaciona a passagem do Evangelho de João (Jo, 8, 44) com a
do Génesis (Gn, 3, 13), onde a serpente é apresentada como aquela que «enganou»
Eva. A serpente é o símbolo da mentira, ao passo que a linha recta é a imagem
da verdade. Lutero, nos seus Tischreden, faz o seguinte comentário: «A serpente
é a imagem da mentira. Pois ela torce­‑se sempre, quer corra quer esteja parada,
só quando está morta fica direita.» (Die Schlange ist das Abbild der Lüge. Denn
sie windet sich immer, ob sie lauft oder ob sie liegt, nur wenn sie tot ist, ist sie
gerade.) Martin Luther, Tischreden, ed. de Kurt Aland, Stuttgart, Reclam. 1960,
p. 230. Esta exegese não era desconhecida de Kant, segundo se pode concluir de
uma passagem dos seus Cursos de Filosofia Moral: «Die Wahrheit ist immer eine
rectitudo, die Lüge aber eine Schlangen Linie.» Praktische Philosophie Powalski,
Vorlesungen über Moralphilosophie, Ak XXVII, 231.
21
  «Die Lüge (vom Vater der Lügen, durch den alles Böse in die WeIt ge‑
kommen ist) ist der eigentliche faule Fleck in der menschliche Natur.» Verkün‑
digung, Ak VIII, 422.
22
  Entwurf eines Briefes an Fräulein Maria von Herbert, Ak XI, 332.
23
  Passagens há onde Kant associa o carácter moral à mentira ou à ve‑
racidade (v. supra, nota 12). Assim, enquanto o corajoso ama incondicional‑
mente a verdade, o mentiroso é um cobarde (no que Kant retoma um motivo
que havia sido exposto por Montaigne). «Ein Lügner ist em feiger Mensch...
Ein Herzhafter aber wird die Wahrheit lieben und keinen casus necessitatis
­stattfinden lassen.» (Eine Vorlesung über Ethik, ed. Gerd Gerhardt, p. 245.) Sobre
o tema em Montaigne, v. Essais, II, chap. 18, Œeuvres, Seuil, Paris, p. 276.

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preensível para a razão 24. Os dois temas não só são solidários como
no fundo são o mesmo. Pois o «mal radical» é a capacidade que a
vontade tem de perverter em si mesma as suas máximas — a Unlau‑
terkeit (misturando nela elementos não puramente morais de deter‑
minação) e a Verderbtheit (antepondo móbeis não morais aos morais).
Deste modo, as acções aparecem à consciência e aos outros como sen‑
do moralmente boas, embora sejam o fruto de uma consciência que se
autoperverte. O «mal radical» na natureza humana é, por conseguin‑
te, uma espécie de mentira da consciência a si mesma, um lançar po‑
eira nos próprios olhos, uma espécie de auto­‑engano. Como se lê
numa passagem de A Religião nos Limites da Simples Razão:

Esta fraudulência que consiste em mentir a si próprio,


impede­‑nos a fundação de uma genuína intenção moral e
estende­‑se então também exteriormente à falsidade e ao en‑
gano de outros, o que, se não houver de se chamar malda‑
de, merece pelo menos apelidar­‑se de indignidade, e reside
no mal radical da natureza humana, o qual […] constitui a
mancha de corrupção da nossa espécie. 25

4. A insistência de Kant no tema da veracidade revela inequi‑


vocamente o carácter originariamente moral da razão e exprime
bem quanto o interesse primeiro e essencial desta é o interesse prá‑
tico. Antes que a exigência da verdade, no sentido da lógica tradi‑
cional como coerência formal de enunciados, ou mesmo, no sentido
da lógica transcendental, como correspondência entre as represen‑
tações e os objectos, impõe­‑se, como uma exigência absoluta e impe‑
rativa, a veracidade, a qual constitui uma espécie de pacto originá‑
rio da consciência e da razão consigo mesma. Sobre esse acto mínimo
se funda a comunidade de comunicação que é a humanidade, den‑

24
  Die Religion, Ak VI, 43. Kant insiste na incompreensibilidade (Unbegrei‑
flichkeit), na insondabilidade (bleibt uns unerforschlich), na falta de uma razão
compreensível que explique a nossa tendência para o mal (für uns ist also kein
begreiflicher Grund da).
25
  «Diese Unredlichkeit, sich selbst blauen Dunft vorzumachen, welche
die Gründung ächter moralischer Gesinnung in uns abhält, erweitert sich denn
auch äusserlich zur Falschheit und Täuschung anderer, welche, wenn sie nicht
Bösheit genannt werden soll, doch wenigstens Nichtswürdigkeit zu heissen
verdient, und liegt in dem radicalen Bösen der menschlichen Natur welches
[…] den faulen Fleck unserer Gattung ausmacht.» Die Religion, Ak VI, 38.

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tro da qual, apenas, pode acontecer a pretensão das proposições te‑
oréticas, práticas ou estéticas à verdade, ao sentido e à validade, ou
seja ao reconhecimento universal. Penso ter mostrado noutro lugar
como a filosofia kantiana está toda ela construída como uma grande
alegoria, à maneira de um estado republicano, onde a livre e leal
expressão do pensamento é condição básica de saudável sobrevi‑
vência da própria razão 26. Não admira, pois, que numa tal concep‑
ção da filosofia e da razão o supremo mandamento seja o de não
mentir, o supremo imperativo seja o da veracidade:

Adoptar intimamente por princípio na filosofia, en‑


quanto uma doutrina de sabedoria, o mandamento: tu de‑
ves não mentir (ainda que fosse com a mais devota das in‑
tenções), não só realizaria nela a paz duradoura como
poderia garanti­‑la por todo o sempre. 27

Este mandamento, antes de mais, exprime e ao mesmo tempo


funda o carácter eminentemente prático­‑político da razão:

A veracidade é um dever que deve ser considerado


como base de todos os deveres fundados num contrato,
cuja lei, se lhe concedermos uma excepção, por mínima que
seja, se torna vacilante e inútil. Há, pois, um mandamento
sagrado da razão, que ordena incondicionalmente e não é
limitado por nenhumas conveniências: ser veraz (leal) em
todas as declarações. 28

  V. Metáforas da Razão ou Economia Poética do Pensar Kantiano, F. C. Gul‑


26

benkian/JNICT, Lisboa, 1994, pp. 605­‑616; A Razão Sensível. Estudos Kantianos,


Edições Colibri, Lisboa, 1994, pp. 72­‑84.
27
  «Das Gebot: du sollst (und wenn es auch in der frömmsten Absicht wäre)
nicht lügen, zum Grundsatz in die Philosophie als eine Weisheitslehre innigst
aufgenommen, würde allein den ewigen Frieden in ihr nicht nur bewirken,
sondern auch in alle Zukunft sichern können.» Verkündigung, Ak VIII, 422.
28
  «Weil Wahrhaftigkeit eine Pflicht ist, die als Basis aller auf Vertrag zu
gründenden Pflichten angesehen werden muss, deren Gesetz, wenn man ihr
auch nur die geringste Ausnahme einräumt, schwankend und unnütz gemacht
wird. Es ist also ein heiliges, unbedingt gebietendes, durch keine Convenienzen
einzuschränkendes Vernunftgebot: in allen Erklärungen wahrhaft (ehrlich) zu
sein.» Über ein vermeintes Recht, Ak VIII.

187

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Primeiro dever do homem para consigo mesmo e para com a
humanidade na sua pessoa, única fonte da dignidade que o homem
pode reivindicar enquanto tal, a veracidade revela­‑se também como
a base dos contratos em que se funda toda a existência social e cuja
violação «torna inútil a fonte do direito» (die Rechtsquelle unbrauch‑
bar macht) 29 e torna duvidosa e suspeita a confiança na própria vir‑
tude 30. Podemos agora compreender melhor as razões da recusa por
parte de Kant da tese de Benjamin Constant que defendia a mentira
por razões de humanidade. No essencial, as ideias expostas no en‑
saio de 97 encontram­‑se em momentos anteriores da obra de Kant e
por isso o filósofo crítico podia com razão reconhecer­‑se o «filósofo
alemão» visado pelo filósofo francês. No plano estritamente ético, a
mentira é sempre condenável, pois representa, segundo o filósofo
crítico, a destruição da dignidade do homem. Mesmo quando não
prejudicasse ninguém em particular, a mentira prejudicaria e ofen‑
deria a humanidade na própria pessoa.
No plano político­‑jurídico, a mentira destrói a confiança com
base na qual todos os contratos e todo o direito se constroem. A ve‑
racidade é, pois, o fundamento da sociedade, a base do direito. Di‑
zer que há um direito de mentir por humanidade é um absurdo.
Pois a mentira mina as bases em que se funda o sentido da humani‑
dade e da dignidade humana, ao mesmo tempo que perverte a pró‑
pria base da existência jurídica. Numa reflexão à margem das Obser‑
vações sobre o Sentimento do Belo e do Sublime, Kant escrevia:

Dado que na sociedade todo o meu e o teu depende de


pactos (pacta) e estes dependem da manutenção da palavra (auf
Worthaltung), então o amor da verdade (Wahrheitsliebe) é o fun‑
damento de toda a virtude social e a mentira é o vício ­capital. 31

E numa passagem de um dos seus Cursos de Ética, lê­‑se:

A coisa mais importante da sociedade dos homens é a


comu­nicação das intenções e nisto o mais importante é que
cada qual seja veraz no que se refere aos seus pensamentos.
Pois sem isso cessa todo o valor do trato entre os homens.

29
  Verkündigung, Ak VIII, 426.
30
  Entwurf eines Briefes an Fräulein Maria von Herbert, Ak XI, 332.
31
  Ak XX, 153.

188

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Só se pode julgar o que outro pensa a partir das suas decla‑
rações; e se ele declara querer exprimir os seus pensamen‑
tos, deve fazê­‑lo efectivamente, pois de outro modo não
pode subsistir nenhuma sociedade entre os homens. A co‑
munidade é apenas a segunda condição da sociedade. Mas
o mentiroso suprime a comunidade. Por isto se despreza o
mentiroso, pois a mentira torna o homem incapaz de tirar
da conversação do outro algo de bom. 32

Estas passagens dizem a natureza contratual de toda a sociedade


humana. E o contrato supõe a palavra dos contratantes e a confiança
que mutuamente se dão. A sociedade é para Kant uma sociedade de
comunicação e de partilha da palavra. É por isso que toda a mentira é
sempre algo condenável e digno de desprezo, pois, ao falar, declara‑
mos manifestar a outrém a nossa intenção, mas, mentindo, rompe‑
mos esse pacto e agimos contra o direito da humanidade 33.
Em algum momento, Kant terá considerado um único caso de
excepção em que seria justificada a mentira. O Curso de Ética regista
essa concessão e apresenta de facto uma posição menos extrema e
rigorista do que a que é desenvolvida no ensaio de 1797, em respos‑
ta a Constant. Admite­‑se ali a prudência e a mentira como arma de
defesa perante um agressor que nos forçasse a uma declaração que
sabemos virá a usar indevidamente:

A declaração sob coacção que será usada indevidamen‑


te, autoriza­‑me a defender­‑me. […] Por conseguinte, não
existe nenhum caso em que a minha mentira por necessida‑
de deva ter lugar, a não ser quando a declaração me é ar‑
rancada à força e também estou convencido de que o outro
quer fazer um uso incorrecto dela. 34

  Eine Vorlesung über Ethik, ed. Gerhardt, Fischer, Frankfurt / M., 1990, p. 240.
32

33
  «Jede Lüge ist was Verwerfliches und Verachtungswürdiges, den wir
deklarieren einmal, unseren Sinn dem anderen zu äussern, und tun es nicht.
So haben wir das Pactum gebrochen und wider das Recht der Menschheit
gehandelt.» Eine Vorlesung über Ethik, ed. cit., p. 244.
34
  «Die abgenögtigte Declaration, die gemissbraucht wird, erlaubt
mir,  mich zu verteidigen… Also ist kein Fall, wo meine Notlüge stattfinden
soll, als wenn  die Declaration abgezungen wird und ich auch überzeugt bin
dass der andere einen unrechtmässigen Gebrauch davon machen will.» Eine
Vorlesung über Ethik, ed. cit., p. 244.

189

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Embora reconheça o quanto é delicado para o filósofo moral ad‑
mitir a «mentira em caso de necessidade» (Notlüge) e explicitando o
carácter indeterminado e arbitrário do que seja um «caso de necessi‑
dade» e o risco que a invocação de tal conceito representa para a mo‑
ralidade — pois cada qual pode sempre pensar para consigo mesmo
que está perante um caso de necessidade que justificaria a mentira —,
Kant revela­‑se, no texto deste seu Curso de Ética, muito mais próximo
da tese de Constant, a qual, como vimos, propunha o princípio se‑
gundo o qual o dever que me obriga a dizer a verdade é recíproco do
direito do meu interlocutor à verdade, dever esse que cessa quando
alguém quer com a minha verdade prejudicar outrém. Diz Kant:

Se devemos em todos os casos dizer com precisão a ver‑


dade, poderemos muitas vezes ser vítimas da maldade dos
outros, que pretenderão fazer mau uso desta verdade. Se to‑
dos os homens fossem bem intencionados, seria não só um
dever nunca mentir, mas ninguém seria sequer tentado a
mentir, pois não teria ocasião para isso. Mas como os ho‑
mens são maus, não se pode negar que haja frequentemente
um perigo em dizer com precisão a verdade a todos e por
isso é que se forjou o conceito de mentira em caso de neces‑
sidade, o qual constitui um ponto muito delicado para um
filósofo moral. Pois se se pudessem justificar o roubo, o as‑
sassínio e a mentira por necessidade, o caso de necessidade
perverteria toda a moralidade. Ficaria à mercê do juízo de
cada qual estipular o que haveria de considerar­‑se como caso
de necessidade. E, não existindo um critério preciso para o
determinar, tornar­‑se­‑iam inseguras as regras morais. 35

35
  «Wenn wir aber in allen Fä1Ien der Pünktlichkeit der Wahrheit möchten
treu bleiben, so möchten wir uns oft der Bösheit anderer preisgeben, die aus unserer
Wahrheit einen Missbrauch machen wollten. Wenn alle gutgesinnt wären, so
würde es nicht allein Pflicht sein, nicht zu lügen, sondern es möchte es auch keiner
tun, weil er nichts zu besorgen hätte. Aber jetzt, da die Menschen boshaft sind, so
ist es wahr, dass man oft durch pünktliche Beobachtung der Wahrheit Gefahr läuft,
und daher hat man den Begriff der Notlüge bekommen, welches ein sehr kritischer
Punkt für einen Moralphilosophen ist. Da man nun aber aus Not stehlen, töten
und betrügen kann, so verdirbt der Notfall die ganze Moralität. Denn wird ein
Notfall behauptet, so beruht es auf jedem seinem Urteil, ob er es für Notfall hällt
oder nicht. Und da hier der Grund nicht bestimmt ist, wo ein Notfall ist, so sind die
moralischen Regeln nicht sicher.» Eine Vorlesung über Ethik, ed. cit., p. 244.

190

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Ora, é precisamente o princípio formulado por Constant — «di‑
zer a verdade é um dever, mas só perante aquele que tem direito à
verdade» — que Kant toma como tópico central do seu ensaio de
1797 Sobre um Pretenso Direito de Mentir por Humanidade, ­refutando­‑o
de forma contundente e contrapondo­‑lhe a afirmação incondicional
do sagrado dever de dizer a verdade, sem qualquer limite, excepção
ou condição.

5. Mas a insistência de Kant no tópico da veracidade expõe


ainda um outro aspecto que se pode designar como a dimensão lin‑
guística e comunicacional da razão. Coisa aparentemente estranha,
num filósofo que muitos acusaram e outros ainda acusam de falta
de sensibilidade à linguagem. Já noutra ocasião tentei mostrar o in‑
fundado de tais acusações e o quanto elas passam ao lado da letra
(efectivamente lida) e ainda mais do espírito da filosofia transcen‑
dental 36. Mas agora estamos perante um novo aspecto, em relação
ao qual nem mesmo os filósofos da linguagem têm manifestado par‑
ticular interesse, o da ética da linguagem, aspecto que na realidade
transborda os limites do que é vulgarmente considerado ético, mas
alcança, como vimos, os domínios da especulação metafísica e da
genuína fé religiosa.
Para Kant, a linguagem não é um simples meio, mas é um meio
que ao mesmo tempo é um fim. Daí que o filósofo recuse a ideia de
reduzi­‑la a um processo mecânico e o homem a uma «máquina de
falar»:

O homem enquanto ser moral (homo noumenon) não


pode fazer uso de si enquanto ser físico (homo phaenomenon)
como um simples meio (máquina de falar), que não estivesse
vinculado ao fim íntimo (da comunicação de pensamen‑
tos), mas está vinculado à condição da concordância com a
declaração (declaratio) do primeiro e obrigado para consigo
mesmo à veracidade. 37

  V. A Razão Sensível. Estudos Kantianos, pp. 39­‑67.


36

  «Der Mensch als moralisches Wesen (homo noumenon) kann sich selbst als
37

physisches Wesen (homo phaenomenon) nicht als blosses Mittel (Sprachmaschine)


brauchen, das an den inneren Zweck (der Gedankenmittheilung) nicht gebunden
wäre, sondern ist an die Bedingung der Übereinstimmung mit der Erklärung
(declaratio) des ersteren gebunden und gegen sich selbst zur Wahrhaftigkeit
verpflichtet.» Metaphysik der Sitten, Ak VI, 430.

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A mentira revela­‑se assim como a contradição inscrita na pró‑
pria essência da linguagem. É a comunicação prometida e ao mes‑
mo tempo negada, a linguagem reduzida a uma finalidade que se
auto­‑aniquila. Por isso, «a sinceridade é a condição sem a qual o fa‑
lar conteria em si uma utilidade sem qualquer uso possível» 38. Kant
vai ainda mais longe na sua condenação do desvio que a mentira faz
ao uso e função natural da linguagem, sublinhando a degradação
humana que nisso está implicada:

Um homem que não crê ele próprio no que diz a um


outro (mesmo que esse outro seja uma pessoa meramente
ideal) tem um valor ainda menor do que se fosse uma sim‑
ples coisa; pois das propriedades desta pode por certo al‑
guém aproveitar algo ou fazer qualquer uso, dado que se
trata de algo real e dado; mas a comunicação dos próprios
pensamentos a alguém mediante palavras que contêm pre‑
cisamente o contrário do que (intencionalmente) o falante
com elas pensa, é um fim directamente contrário à finalida‑
de natural do seu poder de comunicação, e representa a re‑
núncia à própria personalidade e faz dele uma mera enga‑
nadora aparência de homem, mas não o homem mesmo. 39

A mesma ideia encontra­‑se desenvolvida numa reflexão, nestes


termos:

Falar é o poder de comunicar os próprios pensamentos


ao mesmo tempo com a vontade de que a comunicação es‑

  «Aufrichtigkeit ist die Bedingung ohne die das Sprechen eine


38

Brauchbarkeit ohne allen möglichen Gebrauch enthalten würde.» Vorarbeiten


zur Rechtslehre, Ak XXIII, 267.
39
  «Ein Mensch, der selbst nicht glaubt, was er einem Anderen (wenn es
auch blos idealische Person wäre) sagt, hat einen noch geringeren Werth, als
wenn er blos Sache wäre; denn von dieser ihrer Eigenschaft etwas zu nutzen,
kann ein anderer doch irgend einen Gebrauch machen, weil sie etwas Wirkliches
und Gegebenes ist; aber die Mittheilung seiner Gedanken an jemanden durch
Wörte, die doch das Gegentheil von dem (absichtlich) enthalten, was der
Sprechende dabei denkt, ist ein natürlichen Zweckmässigkeit seines Vermögens
der Mittheilung seiner Gedanken gerade entgegen gesetzter Zweck, mithin
Verzichtthuung auf seine Persönlichkeit und eine blos täuschende Erscheinung
vom Menschen, nicht der Mensch selbst.» Metaphysik der Sitten, Ak VI, 429.

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teja plenamente de acordo com aquilo que se pensa. Por
conseguinte, ao mesmo tempo é promessa [Versprechen]
deste acordo. A sinceridade [Aufrichtigkeit] é a condição
sem a qual o falar seria uma utilidade sem qualquer uso
possível. Aquele útil que não pode ser usado de outro modo
que não seja mediante comunicação é um meio [Mittel] em
si, o qual, por conseguinte, tem de ser visto directamente
também como um fim [Zweck]. 40

A palavra não é aqui vista tanto como um meio de designação


de objectos quanto como designação de pensamentos e a respectiva
partilha com outros. Falar é comunicar aos outros os próprios pen‑
samentos e receber destes também os respectivos pensamentos. Mas
este falar­‑pensar com os outros não se reduz a uma pragmática co‑
municacional, a acordos ou consensos já conseguidos ou a ­conseguir
na experiência. O pensar, tal como Kant o entende, para além das
dimensões da coerência e da autonomia, supõe um exercício trans‑
cendental — uma espécie de experiência que a razão faz consigo
mesma — mediante a qual se divide em falante e ouvinte, em actora
e espectadora, colocando­‑se no ponto de vista do outro e por assim
dizer fora de si mesma, num ponto de vista universal. Kant chama a
isso o modo de pensar de vistas largas, função e qualidade que atri‑
bui a uma faculdade específica do espírito que garante o sentimento
da originária pertença de todos os indivíduos singulares à humani‑
dade — a faculdade de julgar reflexionante. Graças a essa função
transcendental, cada indivíduo é capaz de se libertar das condições
privadas subjectivas do juízo e apreciar o seu próprio ­juízo e ponto
de vista particular a partir de um ponto de vista universal (aus einem
allgemeinen Standpunkte), o qual só é determinável na medida em
que ele por assim dizer se coloca no lugar dos outros 41. Esse homem
possui o sensus communis, que Kant entende como um «sentido co‑
munitário» (gemeinschaflhiche Sinn), como um poder de apreciação
que na sua reflexão tem em consideração o modo de representação
de todos os outros, como se fosse guiado pelo intuito de manter o
seu próprio juízo na comunidade da razão humana (an die gesammte
Menschenvernunft) e desse modo evitar a ilusão resultante das con‑
dições privadas subjectivas. A razão, no seu funcionamento inter‑

40
  Ak XXIII, 267.
41
  Cf. Kritik der Urteilskraft, § 40, Ak V, 293­‑295.

193

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subjectivo, está, por assim dizer, instituída sobre uma espécie de
contrato originário entre falantes ou comunicantes. Poder­‑se­‑ia su‑
por que o pensar dispensa a linguagem. Houve mesmo quem che‑
gasse a dizer que a filosofia de Kant é tão desafeiçoada da atenção à
linguagem que se os homens tivessem sido kantianos no momento
em que inventaram a linguagem não a teriam por certo inventado 42.
Mas o verdadeiro pensamento do filósofo crítico é totalmente outro.
Pois este vai ao ponto de declarar que não se pode verdadeiramente
falar de liberdade de pensamento ali onde se rouba aos homens a
possibilidade de falarem e comunicarem uns aos outros livremente
as suas ideias. Só no espaço da livre comunicação, pela palavra ou
pela escrita, o pensamento encontra a sua justeza. A liberdade de
pensamento supõe a liberdade de comunicar e partilhar com outros
os próprios pensamentos, num regime de reciprocidade e de lealda‑
de, do qual nada há a temer (antes pelo contrário) para o bem­‑estar
público e para a paz da razão. Nas palavras de Kant:

É verdade que se diz: a liberdade de falar ou de escrever


poderia ser­‑nos tirada por um poder superior, mas a liber‑
dade de pensar não nos pode ser tirada. Mas quanto e com
que justeza pensaríamos nós, se ao mesmo tempo não pen‑
sássemos em comunidade com outros aos quais comunica‑
mos os nossos pensamentos e eles nos comunicam os seus?
Por conseguinte, pode bem dizer­‑se que aquele poder exte‑
rior que rouba aos homens a liberdade de comunicar publi‑
camente os seus pensamentos, tira­‑lhes também a liberda‑
de de pensar. 43

Se não está aqui em jogo o a priori da «sociedade da comunica‑


ção» ou do «agir comunicativo», então o que é que está?

6. Gostaria de concluir este apontamento sublinhando a ideia,


já atrás enunciada, de que Kant, por estranha e extrema que pareça a
sua posição rigorista de recusa incondicional da mentira mesmo por

  V. Bruno Liebrucks, Sprache und Bewusstsein. Bd. iv: Die erste Revolution
42

der Denkungsart, Frankfurt/M., 1968, p. 532; Dimitrios Markis, «Das Problem


der Sprache bei Kant», in Brigitte Scheer / G. Wohlfart (eds.), Dimensionen der
Sprache in der Philosophie des Deutschen Idealismus, Königshausen & Neumann,
Würzburg, 1982, pp. 110­‑154.
43
  Was heisst: sich im Denken orientieren?, Ak VIII, 144.

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razões de humanidade, não está só e tem mesmo por companhia
outros destacados pensadores. Se os refiro e os cito extensamente, é
porque não vi até agora ainda devidamente tratado este aspecto, o
qual, todavia, me parece poder melhor contextualizar a posição kan‑
tiana e projectar alguma luz para uma mais adequada interpretação
da mesma. Tanto na República como nas Leis, Platão estabelece a ve‑
racidade como fundamento da sociedade racional, nestes termos:

A mentira será pois odiada não só pelos deuses mas


também pelos homens […] Que ninguém, nem por pala‑
vras nem por acções, diga nenhuma mentira, nenhum en‑
gano, que não falsifique nada tomando a família dos deu‑
ses como testemunha se não quer tornar­‑se o ser mais
detestado pelos deuses. 44

Por seu turno, Cícero, no De Officiis, insiste na ideia, presente na


mais antiga concepção romana da vida, segundo a qual «em tudo
deve ser suprimida a simulação e a dissimulação» (ex omni vita simu‑
latio dissimulatioque tollenda est) e a sociedade subsiste na base da
mútua confiança ou boa­‑fé («bona fides»). Por isso, o ­«fundamento
da justiça é a fé, ou seja a fidelidade e a verdade nas palavras e nos

  Rep. 382 a­‑e; Leis, 916e­‑917a. Por certo, o problema da mentira em Pla‑
44

tão é tema de cuja complexidade e envolvente controvérsia não é possível dar


conta aqui. Em Rep. 389b, apresenta­‑se a mentira como uma espécie de remédio
cujo uso se consente apenas aos governantes no suposto «interesse do Estado»,
que eles próprios julgam e aplicam, seja em relação aos inimigos seja em rela‑
ção aos seus próprios concidadãos. E em Rep. 414b­‑415d, propõe­‑se a fundação
do próprio Estado com base numa «nobre mentira». Para além das contun‑
dentes críticas de Karl Popper a esta precoce versão da teoria da «razão de
­Estado» (The Open Society and Its Enemies), tenha­‑se presente o ensaio de Han‑
nah ­Arendt, «Lying in Politics», in Crisis of the Republic, Harcourt Brace & Co.,
New York, 1972. V. também Alexander Koyré, Réflexions sur le mensonge, Alia,
Paris, 1998; José Barata­‑Moura, Da Mentira, Caminho, Lisboa, 2007; Fernando
E. Rey Puente (org.), Os Filósofos e a Mentira, Editora da UFMG, Belo Horizonte,
2002. Nos seus dias, Kant pôde ver­‑se confrontado com este problema da men‑
tira política, pois a Real Academia Prussiana de Ciências e Belas Letras pôs a
concurso, para o ano de 1780, a seguinte questão: «Est­‑il utile au Peuple d’être
trompé?» As 39 respostas apresentadas (24 em alemão e 15 em francês) foram
recentemente publicadas com estudo introdutório por Hans Adler (ed.), Nützt
es dem Volke, betrogen zu werden? Est­‑il utile au Peuple d’être trompé?, Frommann­
‑Holzboog, Stuttgartt­‑Bad Cannstatt, 2007.

195

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acordos» 45. Esta exigência é particularmente explícita no juramento,
o qual constitui uma afirmação religiosa, uma promessa feita invo‑
cando deus como testemunha: «O juramento é uma afirmação reli‑
giosa; aquilo que prometeres afirmativamente como se deus fosse
testemunha, isso deves mantê­‑lo. […] Quem viola o juramento, vio‑
la a Fé, a qual os nossos maiores quiseram colocar no Capitólio ao
lado de Júpiter.» 46
Agostinho foi, porém, o primeiro filósofo que reconheceu o al‑
cance e a importância da questão da mentira, não só para a moral
como também para a filosofia e a teologia, dedicando­‑lhe dois en‑
saios autónomos, o De mendacio (395) e o Contra mendacium (420). No
primeiro deles, escreve:

Importante questão é esta da mentira, que frequente‑


mente nos perturba mesmo nos nossos actos quotidianos,
ao ponto de por vezes considerarmos mentira o que o não
é, ou de julgarmos que se deve mentir por uma qualquer
mentira honesta e de compaixão. 47

Para além de caracterizar a mentira e de identificar as dife­


rentes formas em que ela pode manifestar­‑se, o bispo de Hipona
discute as opiniões a favor e contra a mentira, interpretando as pas‑
sagens da Escritura em que se poderiam apoiar, e analisa situações
controversas (por exemplo, a mentira para esconder um homicida,
ou para esconder alguém que, sendo inocente, é procurado para ser
supliciado) 48.

45
  «Fundamentum autem est iustitiae fides, id est dictorum conventorum‑
que constantia et veritas.» Cicero, De Officiis, 1, 7; III, 15. 17.
46
  «Est enim ius iurandum affirmatio religiosa; quod autem affirmate qua‑
si deo teste promiseris, id tenendum est. […] Quis ius igitur iurandum violat,
is Fidem violat, quam in Capitolio vicinam lovis optimi maximi […] maiores
nostri esse voluerunt.» De Officiis, III, 29.
47
  «Magna quaestio est de mendacio, quae nos in ipsis quotidianis acti‑
bus nostris saepe conturbat: ne aut temere accusemus mendacium, quod non
est mendacium; aut arbitremur aliquando esse mentiendum, honesto quodam
et officioso ac misericordi mendacio.» De mendacio liber unus, Patrologia Latina,
t.  40, 395. V. Arno Baruzzi, Philosophie der Lüge, WBG, Darmstadt, 1996. Para
além do capítulo dedicado a Agostinho e a Kant, sobressai nesta obra a aproxi‑
mação e o confronto entre as posições dos dois filósofos, aqueles em que o tema
maior relevo alcançou na história da filosofia.
48
  De mendacio, ibidem, 503­‑504.

196

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No Contra mendacium, Agostinho rejeita com particular ênfase o
recurso à mentira para induzir os outros à verdade da fé cristã, mos‑
trando a contradição que nisso está envolvida: ao mentir numa
­coisa, dissolve­‑se a fé em todas as outras e tudo e todos se tornam
suspeitos; ao pretender­‑se com a mentira levar à fé, o que se alcança
é banir a confiança que é o pressuposto mesmo da fé 49. E conclui
recusando de todo a mentira (nunquam esse omnino mentiendum) 50,
mormente nas questões de religião (inconcusse teneas et defendas in
divina religione nunquam omnino esse mentiendum) 51. Não é admissível
mentir mesmo com boa intenção (mendacium nulla velut bona inten‑
tione admittendum) 52, pois a mentira é sempre uma injustiça, uma vez
que é pecado e contrária à verdade (mendacium semper esse injustum,
cum sit peccatum et veritati contrarium) 53.
O tópico é retomado no Renascimento, antes de mais no âmbito
do pensamento dos teólogos reformadores. No seu Compêndio de Fi‑
losofia Moral, o humanista e teólogo Philipp Melanchthon escreve:

Nada existe mais prejudicial do que a mentira: a falsa


doutrina corrompe as religiões, os costumes, as artes; su‑
primida a verdade, não podem subsistir nenhuns juízos,
nenhuns contratos. 54

E na mesma linha insiste Montaigne, que ao tema da mentira


dedica dois capítulos dos Essais, sublinhando os aspectos antropoló‑
gicos e éticos nela envolvidos:

Na verdade, mentir é um vício maldito. Somos homens


apenas e relacionamo­‑nos uns com os outros somente pela

49
  «Mentienti in uno, nondum haberi fidem in aliis […] Non solum nos
illis, ipsique nobis, sed omnis frater omni fratri non immerito videatur esse
suspectus. Atque ita dum per mendacium tenditur ut doceatur fides, id agitur
potius ut nulli habenda sit fides.» Contra mendacium, Patrologia Latina, t. 40, 523.
50 
De mendacio, ibidem, 515.
51
  Contra mendacium, ibidem, 548.
52
  Ibidem, 527.
53
  Ibidem, 539.
54
  «Nihil enim nocentius est mendacio, falsa doctrina corrumpit religiones,
mores, artes, nulla iudicia, nulli contractus existere possunt, sublata veritate.»
Philipp Melanchthon, Philosophiae moralis epitomes (1546), Werke in Auswahl, ed.
de R. Stupperich, Gütersloh, 1978, vol. ii, 290.

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palavra. Se conhecêssemos o horror e o peso da mentira
persegui­‑la­‑íamos com o fogo com mais razão do que ou‑
tros crimes. 55

E noutro lugar:

O primeiro sinal da corrupção dos costumes é o bani‑


mento da verdade: pois, como dizia Píndaro, o ser verdadei‑
ro é o começo de uma grande virtude e o primeiro artigo que
Platão pede ao governante da sua república. […] Mentir é
um vício vil que um antigo pintou bem vergonhosamente
quando disse que é dar testemunho de desprezar Deus e ao
mesmo tempo de temer os homens. Não é possível represen‑
tar melhor o horror, a vileza e o desregramento. Com efeito,
que coisa pode imaginar­‑se de mais vil do que ser cobarde
frente aos homens e valente frente a Deus? Conduzindo­‑se a
nossa inteligência apenas pela via da palavra, aquele que a
falseia, atraiçoa a sociedade pública. A palavra é o único ins‑
trumento por meio do qual se comunicam as nossas vonta‑
des e os nossos pensamentos, ela é o intérprete da nossa
alma: se nos falta, não nos mantemos, deixamos de nos co‑
nhecer uns aos outros. Se nos engana, dissolve­‑se todo o co‑
mércio e todos os laços da nossa política. 56

55
  «En vérité, le mentir est un maudit vice. Nous ne sommes hommes, et
ne nous tenons les uns aux autres que par la parole. Si nous en connaissions
l’horreur et le poids nous le poursuivrions à feu plus justement que d’autres
crimes.» Michel de Montaigne, Essais, 1, chap. 9, in Œeuvres, Seuil, Paris, p. 31.
56
  «Le premier trait de la corruption des moeurs, c’est le bannissement de
la vérité: car, comme disait Pindare, l’être véritable est le commencement d’une
grande vertu et le premier article que Platon demande au gouverneur de sa
république. […] C’est un vilain vice que le mentir et qu’un ancien peint bien
honteusement quand il dit que c’est donner témoignage de mépriser Dieu, et
quand et quand de craindre les hommes. Il n’est pas possible d’en représenter
plus richement l’horreur, la vilité et le déréglement. Car que peut­‑on imaginer
plus vilain que d’être covard à l’endroit des hommes et brave à l’endroit de
Dieu? Notre intelligence se conduisant par la seule voie de la parole, celui qui
la fausse, trahit la societé publique. C’est le seul outil par le moyen duquel se
communiquent nos volontés et nos pensées, c’est le truchement de notre âme:
s’il nous faut, nous ne nous tenons plus, nous ne nous entre­‑connaissons plus.
S’il nous trompe, il rompt tout notre commerce et dissout toutes les liaisons de
notre police.» Ibidem, II, chap. 18, ed. cit., pp. 275­‑276.

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Idêntico é o pensamento de Bernardino Telesio, que ao tópico
dedica o capítulo xiii do livro ix do seu De rerum natura (1586):

Dado que os homens não se manteriam de facto unidos


nem conversariam entre si e ninguém cuidaria daquelas
coisas que dizem respeito à comodidade pública ou priva‑
da se não se pudesse ter alguma confiança naquilo que cada
qual diz; entendendo que devem ser ditas e mostradas as
coisas como o devem ser e que devem ser mantidas as pro‑
messas e que os outros não devem ser enganados nem com
as palavras nem com os factos e que deve ser tornado ma‑
nifesto seja o sentimento íntimo do espírito seja o íntimo
das coisas tal como elas são, tal é a virtude que se chama
Verdade, a qual é própria de um espírito nobre e maxima‑
mente generoso, o qual a nada mais atribui importância
senão à sua própria pureza. 57

Os grandes fundadores da consciência moderna — da filosofia


da subjectividade prática de Lutero e da filosofia da subjectividade
teórica de Descartes — não encontraram outro fundamento que não
o da figura do «Deus verax» 58 ou o supremo atributo da veracidade

57
  «Et quia nequaquam homines sibis ipsis coëant unquam nec secum
ipsis colloquantur aut eorum, quae vel publicum vel privatum spectant
commodum, tractent quicquam, si singulorum dictis fides nulla haberi possit;
utique intelligens quae ea, quae enuntianda sunt ostendendaque qualia sunt
enuntianda ostendendaque, et promissa quae sunt servanda, quae omnino
reliquos nec dictis nec factis decipiendos sed et internum spiritus sensum
internasque etiam res, cujusmodi sunt, patefaciendas decernit, virtus quae
Veritas dicitur, et spiritus est summe nobilis generosique, qui omnino nihil
nisi sui ipsius puritatem magnifaciat.» Bernardino Telesio, De rerum natura,
Libri VII­‑IX, testo critico e trad. italiana di Luigi de Franco, La Nuova Italia
Editrice, Firenze, 1976, pp. 386­‑388.
58
  Gerahrd Ebeling, «Gewissheit und Zweifel. Die Situation des Glaubens
im Zeitalter nach Luther und Descartes», Zeitschrift für Theologie und Kirche, 64
(1967), p. 314. De Lutero tenha­‑se presente, a título de amostra, esta passagem:
«Nostra theologia est certa, quia ponit nos extra nos: non debeo niti in conscientia
mea, sensuali persona, opere, sed in promissione divina, veritate, quae non
potest fallere.» Werke, Weimar­‑Ausgabe, 40, 1, 589. E ainda: «Nisi nos omnes
mendaces simus, Deus nobis verax esse non potest. […] Veritas Dei abundat
in nostro mendacio.» M. Lutheri, Opera latina, ed. de H. Schmidt, Francofurti
ad M., 1867, vol. iv, p. 338. Ph. Melanchthon, Commentarii in EpistoIam Pauli ad

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divina. Em Descartes, a hipótese perturbadora do deus enganador
ou do génio maligno e a necessidade de eliminá­‑la não é um mero
exagero hiperbólico da consciência dubitante. É um problema real
de uma filosofia que deixou de ter o seu suporte e a sua segurança
nas coisas exteriores e tem de encontrar a certificação da verdade do
conhecimento num plano da subjectividade ou da consciência. Só a
figura de uma consciência absolutamente transparente e moralmen‑
te configurada pode dar essa garantia. Deus aparece à consciência
finita do homem como tal: dos seus atributos o primeiro que se nos
impõe é a veracidade, pois nos repugna que ele nos engane ou nos
tenha dado uma faculdade de conhecimento perversa que tomasse
o que é falso por verdadeiro ou o verdadeiro por falso, sem poder‑
mos distinguir um do outro. É assim, conclui Descartes, que se eli‑
mina a grande dúvida que resultava de a razão não saber se porven‑
tura não era de uma natureza tal que se enganasse mesmo naquilo
que lhe parece evidentíssimo 59.
Seja ainda um último testemunho, já contemporâneo de Kant: o
de Jean­‑Jacques Rousseau. O filósofo de Genève ocupa­‑se extensa‑
mente do tema na IV Promenade das suas Rêvèries du promeneur soli‑
taire: «Je resolus d’employer à m’examiner sur le mensonge.» 60 É um
exercício do que se poderia chamar uma poética da sinceridade, da
veracidade e da transparência, num registo essencialmente psicológi‑
co e confessional de auto­‑análise, no qual se insinuam já algumas dis‑
tinções e reflexões que antecipam os paradoxos da posição kantiana,
a réplica de Constant e a contra­‑réplica de Kant. Escreve Rousseau:

Lembro­‑me de ter lido num livro de filosofia que men‑


tir é esconder uma verdade que se deve manifestar. Segue­
‑se desta definição que calar uma verdade que não somos
obrigados a dizer não é mentir; mas aquele que não conten‑
te em semelhante caso de não dizer a verdade diz o contrá‑
rio, será que mente ou não mente? Segundo a definição, não
poderíamos dizer que ele mente. Pois se der uma moeda
falsa a um homem ao qual não deve nada, ele engana sem

Romanos (1532), Werke, ed. R. Stupperich, vol. v, pp. 91­‑92: «Non igitur pendent
promissiones ex nostra dignitate, sed ex eo, quod ‘Deus verax est’».
59
  Descartes, Principia Philosophiae, 1, §§ 29­‑30, ed. cit., vol. viii, p. 16.
60
  J.­‑J. Rousseau, Rêvéries du promeneur solitaire, Garnier­‑Flammarion,
Paris, p. 75.

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dúvida esse homem, mas não o rouba. Apresentam­‑se aqui
duas questões para examinar, muito importantes uma e ou‑
tra. A primeira, quando e como devemos a outrém a verda‑
de, uma vez que não a devemos sempre. A segunda, se há
casos em que se possa enganar inocentemente. Esta segun‑
da questão é muito decidida, sei­‑o bem; negativamente, nos
livros, onde a mais austera moral nada custa ao autor; afir‑
mativamente, na sociedade, onde a moral dos livros passa
por uma tagarelice impossível de praticar. Deixemos pois
estas autoridades que se contradizem e procuremos pelos
meus próprios princípios resolver para mim mesmo estas
questões... Assim, a verdade devida é a que interessa à justi‑
ça e é profanar este nome sagrado de verdade aplicá­‑lo a
coisas vãs cuja existência é indiferente a todos, e cujo conhe‑
cimento é inútil a tudo. A verdade, liberta de toda a espécie
de utilidade mesmo possível, não pode pois ser uma coisa
devida e, por conseguinte, aquele que a cala ou disfarça não
mente. Não dizer o que é verdadeiro e dizer o que é falso
são duas coisas muito diferentes, mas de que pode todavia
resultar o mesmo efeito... De quantas embaraçosas dis­
cussões seria fácil livrar­‑nos se disséssemos: sejamos sem‑
pre verdadeiros mesmo correndo o risco de tudo o que pode
acontecer. A própria justiça está na verdade das coisas; a
mentira é sempre iniquidade, o erro é sempre impostura,
quando se dá o que não é como regra do que se deve fazer
ou crer: e qualquer que seja o efeito que resulte da verdade
somos sempre inculpáveis quando a dizemos, porque nada
aí pusemos de próprio... Mentir para seu próprio proveito é
impostura, mentir para proveito de outrém é fraude, mentir
para prejudicar é calúnia e esta é a pior espécie de mentira.
Mentir sem proveito nem prejuízo para si próprio ou para
outrém não é mentir: não é mentira, é ficção... Segue­‑se de
todas estas reflexões que a profissão de veracidade que eu
fiz tem por seu fundamento mais os sentimentos de rectidão
e de equidade do que a realidade das coisas e que eu segui
na práctica mais as direcções morais da minha consciência
do que as noções abstractas do verdadeiro e do falso. 61

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  «Je me souviens d’avoir lu dans un livre de philosophie que mentir
c’est cacher une vérité que l’on doit manifester. Il suit bien de cette définition

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São as diferentes mas apesar de tudo entre si consonantes vozes
desta tradição de pensamento que se ouvem ainda com nitidez no
tratamento que Kant dá ao tema da veracidade. Por certo o filósofo
crítico já não pode acudir a um Deus veraz ou não enganador com a
segurança com que o faziam tanto Lutero como Descartes, para sus‑
tentar as respectivas convicções, no plano ético­‑existencial ou no
plano epistemológico­‑metafísico. Mas por isso mesmo necessita ele
ainda mais da veracidade no espaço apenas intersubjectivo onde
agora se move a razão. Para Kant, Deus é apenas a hipostasiação
ideal da consciência finita do homem que se cinde em actora e es‑
pectadora, em contraente e testemunha. Mas subsiste ainda assim

que taire une vérité qu’on n’est pas obligé n’est pas mentir; mais celui qui non
content en pareil cas de ne pas dire la vérité dit le contraire, ment­‑il alors, ou ne
ment­‑il pas? Selon la définition, l’on ne saurait dire qu’il ment. Car s’il donne de
la fausse monnaie à un homme auquel il ne doit rien, il trompe cet homme, sans
doute, mais il ne le vole pas. ­— Il se présente ici deux questions à examiner,
très importantes l’une et l’autre. La première, quand et comment on doit à
autrui la vérité, puisqu’on ne la doit pas toujours. La seconde, s’il est des cas
où l’on puisse tromper innocemment. Cette seconde question est très décidée,
je le sais bien; négativement dans les livres, ou la plus austère morale ne coute
rien à l’auteur, affirmativement dans la société ou la morale des livres passe
pour un bavardage impossible à pratiquer. Laissons donc ces autorités qui se
contredisent, et cherchons par mes propres principes à résoudre pour moi ces
questions… Ainsi, la vérité due est celle qui intéresse la justice et c’est profaner
ce nom sacré de vérité que de l’appliquer aux choses vaines dont l’existence ets
indifférente à tous, et dont la connaissance est inutile à tout. La vérité dépouillée
de toute espèce d’utilité même possible, ne peut donc pas être une chose due, et
par conséquent celui qui la tait ou la deguise ne ment point. Ne pas dire ce qui
est vrai et dire ce qui est faux sont deux choses très différentes, mais dont peut
néanmoins résulter le même effet... Que d’embarrassantes discussions dont il
serait aisé de se tirer en se disant, soyons toujours vrai au risque de tout ce qui en
peut arriver. La justice elle­‑même est dans la vérité des choses; le mensonge est
toujours iniquité, l’erreur est toujours imposture, quand on donne ce qui n’est
pas pour la règle de ce qu’on doit faire ou croire: et quelque effet qui résulte
de la vérité on est toujours inculpable quand on l’a dite, parce qu’on n’y a rien
mis de sien... ­— Mentir pour son avantage à soi­‑même est imposture, mentir
pour l’avantage d’autrui est fraude, mentir pour nuire est calomnie; c’est la pire
espèce de mensonge. Mentir sans profit ni préjudice de soi ni d’autrui n’est pas
mentir: ce n’est pas mensonge, c’est fiction. ... Il suit de toutes ces réflexions
que la profession de véracité que je me suis faite a plus son fondement sur des
sentiments de droiture et d’équité que sur la réalité des choses, et que j’ai plus
suivi dans la pratique les directions morales de ma conscience que les notions
abstraites du vrai et du faux.» Rêvèries du promeneur solitaire, pp. 75­‑90.

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no tratamento kantiano do tema da veracidade uma inequívoca am‑
biência religiosa, cuja arqueologia se pode surpreender na noção de
juramento, como o expõe esta passagem do Opus postumum, que pa‑
rece ser uma glosa da de Cícero, que acima citei: «Juro, isto é, afirmo
tomando Deus por testemunha. Com isso eu não sei se Deus existe;
simplesmente assumo na minha consciência que se falto à verdade
sou um mentiroso. Jurare é Ju orare (Ju é Jehova Jahi Jupiter, perante o
qual o íntimo é descoberto, o perscrutador do coração).» 62
Esta passagem permite­‑nos reconhecer o ambiente de onde co‑
lhe o seu significado o tópico kantiano da veracidade, como condi‑
ção sem a qual não há contratos, nem direito, nem moralidade, nem
religião, nem filosofia, — numa palavra — nem razão — que subsis‑
ta. Lutero e Melanchthon faziam depender a salvação humana da
promessa do «Deus verax». Descartes fez depender a própria evi‑
dência das proposições matemáticas da certificação de que Deus é
veraz. Em Kant, não podendo já invocar Deus e a sua veracidade, a
razão tem todavia de confiar em si mesma 63 como condição mínima
da sua auto­‑conservação (Selbsterhaltung) e nessa medida ela é tam‑
bém o espaço da confiança onde se dá a comunicação humana e
sobre que se fundam a moralidade, a racionalidade científica e espe‑
culativa, a sociedade e a humanidade: este fundamento é meramen‑
te subjectivo (ou intersubjectivo) e subsiste apesar da ignorância ou
deficiência estrutural ou histórica dos seus conhecimentos.

  «Juro: i. e. per deum testem affirmo. Dadurch weiss ich nicht das Gott sey
62

schlechthin: Ich nehme es auf mein Gewissen, wenn ich unwahr spreche ein
Lügner zu heissen. […] Jurare ist Ju orare (Ju ist Jehova Jahi Jupiter, vor dem
das Innere aufgedeckt ist der Herzens Kundiger).» Ak XXI, 148.
63
  Parece­‑me ser esse o significado da expressão kantiana Vernunftglauben,
desenvolvido no ensaio Was heisst: sich im Denken zu orientieren?, Ak VIII.

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5

Da Linguagem Jurídica da Filosofia Crítica


à Arqueologia da Razão Prática

Numa obra publicada há já mais de três décadas, Susan Meld


Shell formulava esta declaração: «Eu considero a teoria kantiana do
direito enquanto ela informa tanto a sua política como a sua filosofia
como um todo. Um estudo do direito kantiano no contexto mais
amplo do seu pensamento é necessário para clari­ficar a conexão es‑
sencial que existe entre a sua filosofia política e a sua filosofia como
um todo, uma conexão que os críticos sentiram mas nunca explora‑
ram ade­quadamente.» 1
Já anteriormente alguns raros intérpretes haviam chamado a aten‑
ção para a importância que a política e o direito têm no pensamento
kantiano, independente­mente das páginas que a esses domínios fo‑
ram expressamente dedicadas pelo filó­sofo. Num ensaio publicado
em 1921, Bruno Bauch, contrariando a geral tendência da hermenêuti‑
ca neokantiana da época, fazia notar que o direito não é para Kant
meramente um domínio regional de reflexão, mas está indissoluvel‑
mente ligado ao conceito kantiano de razão e à problematização críti‑
ca 2. Mais de três décadas depois, na monografia que dedicou a Kant

1
  The Rights of Reason. A Study of Kant’s Philosophy and Politics, Toronto,
1980, p. 9. Retomo neste ensaio e explicito, de forma mais documentada, um
tópico que já abordei em forma condensada na minha dissertação de douto‑
ramento, Metáforas da Razão ou Economia Poética do Pensar Kantiano (Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 1989), F. C. Gulbenkian/JNICT,
Lisboa, 1994, pp. 591­‑599.
2
  Bruno Bauch, «Das Rechtsproblem in der Kantischen Philosophie», Zeit‑
schrift für Rechts­philosophie, 3 (1921), pp. 1­‑26.

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na série dos «Grandes Filósofos», Karl Jaspers escrevia: «Tem de ser
política a essência de uma filosofia cuja primeira e última questão é a
questão do homem.» 3 E Jean Lacroix declarava, em 1973: «Kant, no
mais íntimo do seu ser e do seu génio, é o homem do direito.» 4
Característico nestas apreciações é, por um lado, o facto de elas
não virem imbuídas de uma carga negativa e, por outro, o facto de
elas obrigarem a uma rea­preciação da totalidade da obra kantiana a
partir de uma nova perspectiva. De facto, no âmbito das interpreta‑
ções dominantes da obra de Kant o pensamento político e jurídico
fora geralmente tido por secundário, ou mesmo como algo exte­rior
ao projecto e realização da filosofia transcendental, não faltando até
quem con­siderasse isso um domínio em que o pensamento kantiano
teria permanecido irre­mediavelmente preso na sua fase dogmática
e que seria ferido de insuficiente fun­dação transcendental 5.

  Kant. Leben, Werk, Wirkung, Piper, Wien/München/Zürich, 1956, p. 146.


3

  Kant et le Kantisme, PUF, Paris, 1973, p. 12.


4

5
  Assim acontecia em geral entre os neo­kantianos, como mostrou Gerd­
‑Walter Küsters, Kants Rech­tsphilosophie, WBG, Darsmtadt, 1988, p.  19: «Im
Neukantianismus kaum direkte Untersuchungen zur Rechtslehre [Kants]
angestellt worden sind. Vielmehr hat der Neukantianismus die negative
Einschätzung der Rechtslehre dadurch vollendet, dass er das Argument des
unkritischen Charakters der Rechtslehre, der ungenügenden transzendentalen
Fundierung u. s. w. entscheidend verschärft hat. Der Neukantianismus entwarf
seine Rechtsphilosophie ohne den Rekurs auf die Rechtslehre [Kants].» Sobre
este tópico, v. também José Lamego, «’Facticidade’ e ‘validade’ do direito:
A  matriz da filosofia do direito crítico­‑transcendental», in Leonel Ribeiro dos
Santos (coord.), Kant: Posteridade e Actualidade, CFUL, Lisboa, 2007, pp. 601­‑609.
Ao debate em torno do carácter crítico ou dogmático da filosofia do
direito de Kant andava asso­ciado o debate acerca da importância dessa parte
da obra kantiana e do respectivo desenvolvimento. V. Hariolf Oberer, «Ist
Kants Rechtslehre kritische Philosophie? Zu Werner Buschs Untersuchung der
Kantischen Reschtsphilosophie», Kant­‑Studien, 74, 1983, pp.  217­‑224. Trata­‑se
de uma recensão crítica da obra de Werner Busch, Die Entstehung der kritischen
Rechtsphilosophie Kants 1762­‑1780 (Kant­‑Studien­‑Ergänzungsheft Nr. 110, Walter
de Gruyter, Berlin/New York, 1979), mas faz referência também às obras de
Christian Ritter, Der Rechtsgedanke Kants nach den frühen Quellen (1971) e Josef
Schmucker, Die Ursprünge der Ethik Kants in seinen vorkritischen Schriften und
Reflexionen (Meisenheim am Glan, 1961) e ainda à obra de Friedrich Kaulbach,
Studien zur späten Rechtsphilosophie Kants und ihrer transzen­dentalen Methode
(Würzburg, 1982) e, por fim, ao ensaio de K.­‑H. Ilting, «Gibt es eine kritische
Ethik und Rechtsphilosophie Kants?», Archiv für Geschichte der Philosophie, 63,
1981, pp. 325­‑345.

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É bem conhecido o desprezo que Schopenhauer manifestava
pela obra tardia em que Kant expôs a sua doutrina do direito,
considerando­‑a uma espécie de «paródia satírica da maneira kantia‑
na de pensar» (eine satyrische Parodie der Kan­tischen Manier), tão fraca
que não valia o desperdício de uma refutação (obgleich ich sie gänzli‑
ch missbillige, ich eine Polemik gegen dieselbe für überflüssig halte) 6. Na
melhor das hipóteses, considerava­‑se a filosofia kantiana do direito
e da política como um corolário ou como a aplicação da parte práti‑
ca da filosofia crítica. Não se suspeitava que pudesse dar­‑se a situa‑
ção inversa, isto é, que fosse antes o direito o verdadeiro lugar de
origem e a fonte de inspiração de todo o idealismo crítico e da filo‑
sofia transcendental e de algum modo o seu molde.
Nas últimas quatro décadas a situação alterou­‑se completamen‑
te e a filosofia kantiana do direito viu por fim reconhecida a sua im‑
portância e pode mesmo dizer­‑se que se deu uma verdadeira redes‑
coberta dessa área por parte dos intérpretes da obra kantiana. E esta
redescoberta não conduziu apenas ao reconhecimento da ins­crição
desse domínio no programa global da revolução do modo de pensar
proposto pela filosofia transcendental, como veio igualmente pôr em
evidência a profunda e essencial determinação jurídica e até política
do pensamento kantiano no seu con­junto. A filosofia kantiana do di‑
reito deixou de ser vista como um domínio secun­dário onde veio a
ser tardiamente aplicado o método da filosofia crítica. Ela revela­‑se
antes como o domínio onde a filosofia kantiana tem o seu ambiente
natural e de onde colhe os princípios e pressupostos que desde o
início dirigem o seu próprio trabalho de reflexão.
Os que a partir dos anos 60 do século passado se aplicaram a
estudar a filo­sofia política e jurídica de Kant libertos dos pressupos‑
tos do Neokantismo foram os primeiros a dar­‑se conta da importân‑
cia que esse domínio tinha para se aceder a uma compreensão de
todo o programa da filosofia kantiana. Georges Vlachos, na sua obra
sobre o pensamento político de Kant, punha em destaque o papel
das ideias morais e políticas na elaboração da filosofia crítica, e es‑
crevia: «Pensa­‑se geralmente que o idealismo kantiano assenta no
seu conjunto sobre a distinção entre o entendimento e a razão, dis‑
tinção anunciada na Dissertação e executada na Crítica da Razão Pura.
O próprio Kant apresenta o seu idealismo político como um aspecto

6
  A. Schopenhauer, Die Welt als Wille und Vorstellung, Anhang: Kritik der
Kantischen Philosophie, ed. Ph. Reclam, Leipzig, 1892, vol. i, p. 669.

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particular do seu idealismo noológico. Mas o percurso do pensa‑
mento kan­tiano parece­‑nos ser o inverso.» 7 E o mesmo autor sugere
que o pensamento polí­tico e jurídico de Kant se constituiu muito
antes que estivessem apuradas as noções básicas da filosofia trans‑
cendental (nomeadamente, a idealidade do espaço e do tempo) e
cita Gerhard Lehmann, segundo o qual, «no domínio da filosofia do
direito, Kant tinha já atingido entre 1760 e 1770 as concepções que
viriam a ser incorporadas mais tarde no seu sistema sob a forma de
consequências da sua crítica da razão teórica, mas que seria impos‑
sível deduzir partindo unicamente desta» 8. Por sua vez, Simone
Goyard­‑Fabre, numa obra dedicada ao estudo da filosofia kantiana
do direito, concluía que «o fim da metafísica ontológica e a formula‑
ção do problema crítico correspondem a uma inspiração profunda‑
mente jurídica» 9.
Aquilo que nestes intérpretes era ainda uma vaga percepção
torna­‑se cada vez mais uma evidência. E, assim, sobretudo a partir
da década de 80, ao mesmo tempo que se ia descobrindo a filosofia
kantiana do direito e do Estado 10, advertia­‑se também a importância
que têm os procedimentos jurídicos e a linguagem meta­fórica jurídi‑
ca e jurídico­‑política em todo o âmbito do pensar kantiano, onde
quer que este se exercesse: na filosofia teorética, na filosofia prática,
na filosofia da religião, na filosofia estética. Depois dos escritos kan‑
tianos de Friedrich Kaulbach já quase não haveria necessidade de
chamar a atenção para a importância da lin­guagem e metafórica ju‑
rídicas na filosofia kantiana 11. Não seria mesmo necessário insistir

7
  Georges Vlachos, La Pensée Politique de Kant, Paris, 1962, pp. 19­‑20.
8
  Ibidem. Segundo Werner Busch, por volta de 1772 dar­‑se­‑ia a fundação
crítica da filosofia kan­tiana do direito sobre o conceito de liberdade, conceito
sobre que assentam também as doutrinas centrais da Crítica da Razão Pura e
também a Doutrina do Direito da tardia Metafísica dos Costumes.
9
  Kant et le problème du droit, Paris, 1972, p. 9.
10
  V. Wolfgang Kersting, Wohlgeordnete Freiheit. Immanuel Kants Recht­—
und Staats­philosophie, Berlin, 1983; Georg Geismann, Freiheit und Herrschaft.
Die Prinzipien des Vernunftrechts, Würzburg, 1983; Reinhard Brandt, «Das
Erlaubnisgesetz, oder: Vernunft und Geschichte in Kants Rechtslehre», in idem
(ed.), Rechtsphilosophie der Aufklärung, Berlin, 1984.
11
  V., nomeadamente, Studien zur späten Rechtsphilosophie Kants (Das
transzendental­‑juridische Grundverhältnis in Vernunftbegriff Kants), pp.  111 e
segs: «Die von Kants praktizierte Vernunft wie auch sein Begriff von Vernunft in
theorethischer und praktischer Gestalt von Grund aus einen Charakter tragen,
der durch juridische Kategorien zu beschreiben ist. … Es ist bemerkenswert, dass

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no facto de que o conceito kantiano de razão e de filosofia está
cunhado num molde jurídico. Resta, porém, ainda amplo campo de
investigação, não só para determinar o contexto filosófico e o modo
exacto como tal cunhagem se deu, mas também para tentar averi‑
guar a eficácia desse molde noutros domínios do pensa­mento, no‑
meadamente na filosofia da religião. O paradigma jurídico (com
tudo o que ele implica de conceitos, de linguagem, de procedimen‑
tos, de cenários) reve­lar­‑se­‑ia então melhor como um dos elementos
estruturais e estruturantes que asse­guram a unidade de inspiração
e de expressão do pensamento kantiano e apareceria como a marca
inconfundível do modo kantiano de pensar.
Num outro momento tentei identificar o modelo político e jurí‑
dico que pre­side assim tão profusa e profundamente à construção e
exposição do pensamento kantiano 12. Tentei mostrar que não é o
direito em geral, nem o sistema jurídico prussiano, como por vezes
o insinuaram alguns dos que foram sensíveis à recor­rente lingua‑
gem jurídica de Kant, mas a liam apenas como sintoma de um vício.
O paradigma jurídico que preside à filosofia kantiana, ao ponto de
toda ela, mesmo a teorética, estar construída no ambiente de uma
grande alegoria político­‑jurídica, é aquele mesmo que vem a ser

an mehreren Knotenpunkten des Kantischen Gedankengeflechts Wendungen der


Rechtssprache begegnen. … Das Auftreten juridischer Denk­‑und Sprechfiguren
an den Punkten des praktischen Gedankenganges, an denen wesentliche
Begriffe des transzendentalen Konzepts zur Sprache gebracht werden, legt
die Vermutung nahe, dass diese für die Entwicklung und Darstellung der
Transzendentalphilosophie nicht nur metaphorische Funktion haben, dass
sich in ihnen vielmehr die Figuren gedanklichen Handelns darstellen, die den
transzendental­‑philosophischen Ansatz von seinem Ursprung her eigentümlich
sind (p. 112) … eine gemeinsame und identische Wurzel von Erkenntnisvernunft
und Rechtvernunft (p.  113) nicht die Identität von theoretischer Vernunft und
Rechtsvernunft behauptet wird: vielmehr hat die Behauptung den Inhalt, dass
sich bei der transzendental­‑philosophischen Fundierung beider eine gemeinsame
Wurzel zeigt.» (pp.  113­‑114) e Philosophie als Wissenschaft. Eine Einleitung zum
Studium von Kants «Kritik der reinen Vernunft» in Vorlesungen, Gerstenberg Verlag,
Hildesheim, 1981, 10. Vorlesung: «Juridischer Vernunftbe­griff». V. também
Maximiliano Hernández Marcos, La crítica de la razón pura como proceso civil. Sobre
la interpretación jurídica de la filosofia transcendental de I. Kant, Salamanca, 1993.
12
  V. Metáforas da Razão ou Economia Poética do Pensar Kantiano, pp. 605­‑631:
«A instaura­ção republicana da razão»; e também o meu ensaio «A ‘Revolução
da Razão’ ou o paradigma político do pensamento kantiano», publicado ori‑
ginalmente na revista Análise, 16 (1992), pp. 21-33, retomado in Leonel Ribeiro
dos Santos, A Razão Sensível. Estudos Kantianos, Colibri, Lisboa, 1994, pp. 69­‑84.

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e­ xposto na tardia Doutrina do Direito (1797). Ou seja, antes de expor
a sua concepção da vida política regida pelos princípios do republi‑
canismo — por certo, os de uma respublica noumenon — Kant
­desenvolveu toda a sua filosofia teorética na Crítica da Razão Pura no
elemento de uma com­plexa alegoria expondo a natureza e o funcio‑
namento da razão como se efectiva­mente de um estado republicano
ideal se tratasse. Os elementos dessa alegoria, dispersos por toda a
obra, encontram­‑se organicamente expostos sobretudo no capítulo
da segunda parte da obra intitulado «A disciplina da razão pura no
que respeita ao seu uso polémico», o qual nos dá uma chave para a
leitura da própria Crítica e de todo o empreendimento filosófico de
Kant.
Também a tardia Doutrina do Direito constitui uma espécie de
chave de código de todo o seu pensamento que o filósofo só no fim
do seu percurso filosó­fico nos entrega. É como se Kant não necessi‑
tasse realmente de escrever expressa­mente a sua filosofia do direito,
nem de delinear em alguns pequenos ensaios os contornos da sua
filosofia política e jurídica, pois tanto uma como a outra estavam já
inscritas suficientemente na letra e no espírito da sua filosofia da
razão pura. Tantas são na verdade as homologias existentes entre a
filosofia kantiana do direito e da política e a filosofia transcendental
que somos levados a concluir que uma e outra decorrem de uma
mesma estrutura mental e exprimem um mesmo modo de pensar.
Tal como não tem já cabimento considerar a filosofia do direito ape‑
nas como mera aplicação do método transcendental a um campo
específico de proble­mas, assim também não tem sentido falar de
uma transferência de modelos políti­cos ou jurídicos para o domínio
da filosofia lógica transcendental. Uma e a mesma é a fonte da razão
e do direito. Com mais razão do que de qualquer outra, se pode di‑
zer da metafórica jurídico­‑política que, sendo metáfora, ela é simul‑
taneamente muito mais do que metáfora. Pois em nenhum outro
caso a metáfora diz tanto a coisa ou a causa mesma da razão como o
faz aqui. Aqui verdadeiramente a forma é conteúdo e o conteúdo é
forma.
Com alguma frequência, mesmo os que advertem a presença da
linguagem jurídica ou política na filosofia kantiana são levados a
pensar que o que o filósofo faz é transferir para a sua filosofia um
determinado modelo que se encontrava dis­ponível no seu contexto
histórico­‑filosófico de pensamento. Assim, a recorrência da lingua‑
gem política seria devida à importância que a política assumira nas
últi­mas décadas do século  xviii, generalizando­‑se o uso de catego‑
rias tiradas do campo político para falar de qualquer assunto rele‑

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vante e até mesmo de assuntos filosóficos, estéticos e literários 13.
O paradigma republicano seria, por sua vez, devido à decisiva in‑
fluência que sobre Kant exerceram os escritos de Rousseau. A tão
estrategicamente importante noção de autonomia, em torno da qual
gira toda a ­filosofia moral kantiana, seria importada do contexto da
concepção do estado auto­nómico moderno, embora recentemente
Jerome ­Schneewind tenha contrariado um pouco esta interpretação
na sua obra sobre a moral kantiana, declarando que se trata nisso de
uma verdadeira «invenção» por parte de Kant: «a moral como auto­
nomia é inteiramente nova na história da filosofia» 14. A doutrina da
tripartição dos poderes seria tomada de Montesquieu. E assim por
diante.
Não se trata, evidentemente, de negar essas dívidas, algumas
delas bem documentáveis pelos próprios textos. Trata­‑se sim de ten‑
tar compreendê­‑las melhor. E parece­‑me que a hermenêutica da dí‑
vida ou da influência não explica suficientemente o que está real‑
mente em causa. A via que quero aqui propor é dife­rente. Trata­‑se
de tentar captar, por assim dizer, in nido o que poderia explicar o
alcance e a amplitude da recorrência da metafórica e das categorias
jurídicas e políticas na filosofia kantiana. Segundo me parece e ten‑
tarei mostrar, essa ampli­tude de uso não ocorre por mera trans­
ferência de um paradigma exterior à razão para expor o trabalho
próprio desta, ou por um aproveitamento oportunista colhido na
literatura filosófica de uma época em que os problemas políticos se
impuseram poderosamente também à reflexão dos filósofos, mas
deve­‑se antes a um aprofun­damento da própria natureza da razão,
a qual, escavando até às suas fontes e fun­damentos, aí se surpreen‑
de configurada como tal. Para mostrar isso acompanharei Kant nal‑
guns dos momentos da sua obra onde ele procede ao que se poderia
cha­mar uma explanação fenomenológica da génese da razão práti‑
ca, explanação essa mediante a qual se chega também à arqueologia
da razão — ao seu ponto ou estrato mais fundo — e, ao fazê­‑lo,
encontra­‑se aí o que se poderia considerar como o fundo arqueoló‑

13
  V. Hans­‑Wolf Jäger, Politische Kategorien in Poetik und Rhetorik der zweiten
Hälfte des 18. Jahrhunderts, J. B. Metzlersche Verlagsbuchhandlung, Stuttgart,
1970.
14
  Jerome B. Schneewind, The Invention of Autonomy. A History of Modern
Moral Philosophy, Cam­bridge University Press, 1998; trad. francesa: L’invention
de l’autonomie. Une histoire de la philosophie morale moderne, Gallimard, Paris,
2001, p. 543.

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gico comum da racionalidade humana, pelo menos tal como ele se
objecti­vou nas mais importantes instituições dos povos europeus ou
indo­‑europeus 15.
Seguirei, em primeiro lugar, o fio condutor da etimologia. Em
Leis, IV, 714a (mas também em Leis, XII, 957c, e noutros lugares de
outras suas obras), Platão sugere expressamente a comum origem e
o parentesco dos vocábulos gregos nous ou noos (intelecto ou razão)
e nomos (lei), de que a proximidade gráfica e fónica ainda guardaria
o vestígio e a memória: uma razão, portanto, que se exprime quali­
ficadamente como ordem política e jurídica. O mesmo se passa na
língua latina, onde ratio (do verbo reor) diz a regra, a ordem, a justa
proporção, e também o juízo e o bom senso. A língua alemã guarda
igualmente memória desse originário parentesco entre a razão e a
lei. Já advertido isto por Giambatista Vico 16, foi Herder quem lhe
deu voz e, significativamente, no contexto da sua agressiva meta­
‑crítica da crítica kantiana da razão, discutindo precisamente a falta
de pertinência da céle­bre metáfora kantiana do «tribunal da razão»,
que ocorre no prefácio à primeira edição da Crítica da Razão Pura.
Segundo o filósofo meta­‑crítico, é a razão que é a instân­cia crítica, e
não a Crítica que se pode arvorar em instância crítica da razão! Só
que Herder não se dá conta de que o verdadeiro autor da obra não é
Kant mas a própria razão, e que nela se trata verdadeiramente de
uma auto­‑crítica da razão em que esta é simultaneamente objecto e
sujeito da crítica. Trata-se obviamente de um artifício retórico. Quan‑
to à parte que nisso tem o filó­sofo enquanto tal, vale a epígrafe ba‑
coniana posta à cabeça da obra: «De nobis ipsis silemus…» No se‑
guimento da sua crítica à Crítica, escreve Herder: «A lín­gua alemã
dispõe de pregnantes palavras tomadas do domínio forense, muitas
das quais são pertinentemente aplicadas às nossas faculdades da
alma.» E cita, desig­nadamente, o termo Vernunft, que significaria,
no alemão antigo, o «exame ou o interrogatório judicial» (in der alten
Sprache hiess das gerichtliche Vornehmen und Verhor, Vornunft, Ver‑
nunft). E por isso se pode dizer que «a razão é o nosso tribu­nal su‑
premo» (Vernunft ist unser höchstes Gericht). Da mesma forma,
­urtheilen (julgar) teria significado originariamente ertheilen: dar a
cada um a sua parte, após ponderação justa (Urtheilen ist ertheilen,

15
  Das Ende aller Dinge, Ak VIII, 328­‑329; Die Religion innerhalb der Grenzen
der bloßen Vernunft, Ak VI, 140­‑141; Zum ewigen Frieden, Ak VIII, 359­‑360.
16
  La Scienza Nuova, Rizzoli, Milano, 1963, vol. i, p. 112.

212

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nach ­richtiger Abwägung jedem seinen Theil geben); por conseguinte, no
mesmo sentido da ratio latina como proportio. O mesmo Herder refe‑
re ainda o originário significado forense de outras expressões de
amplo uso em filosofia, como Sache (coisa/causa), Ding e seus deri‑
vados (bedin­gen, bedingt, unbedingt), e faz notar que da correcta com‑
preensão jurídica destes termos depende a compreensão daquilo
que no uso da razão se designa por «condi­cionado» (bedingt) ou
­«incondicionado» (unbedingt) 17. Aparentemente sem conhecer estas
observações de Herder, a mesma originária significação jurídica,
não já da Vernunft, mas do Verstand, foi também mais recentemente
apontada por Hans­‑Georg Gadamer 18.
Não sabemos se Kant teria tido de facto presente este sentido
originário de termos dos quais fez amplo uso mesmo na sua filoso‑
fia teorética. A julgar, porém, pela consciência que revelou ter das
potencialidades e particularidades da língua alemã, pela sensibili‑
dade que em tantos outros casos demonstrou ter para apreender o
sentido originário dos conceitos filosóficos e pelo consequente es‑
forço por res­taurá­‑los na sua primeira e genuína significação, pode‑
mos presumir que também não lhe terá passado despercebido o sig‑
nificado primeiro do próprio conceito de razão, do qual a sua
filosofia pretende ser, ao fim de contas, a mais cabal explicita­ção 19.
Mas apreciada a partir deste ponto de vista, a linguagem e a meta‑
fórica jurídi­cas da filosofia kantiana ganhariam um alcance herme‑
nêutico inesperado, na medida em que, pela identificação de alguns
vestígios, poderíamos chegar a reconstruir o que se poderia chamar
a arqueologia da razão. O fio condutor de algumas etimologias po‑
deria assim conduzir­‑nos às primeiras sedimentações da razão em
instituições e formas de representação, nas quais podemos, em par‑
ticular, captar a génese, a estrutura e o funcionamento originaria‑
mente jurídicos da razão prática. De resto, o próprio Kant ensaiou

17
  J. G. Herder, Verstand und Erfahrung. Eine Metakritik zur Kritik der reinen
Vernunft, Leipzig, 1799, II, pp. 11-16.
18
  «Der juristische Sinn von Verstehen, d. h. das Vertreten einer causa vor
Gericht, scheint die Urbedeutung zu sein.» Wahrheit und Methode, Tübingen,
1975, p. 246.
19
  Sobre este ponto v. o meu ensaio «Kant e a filosofia como análise e
reinvenção da lingua­gem metafísica», in Nuno Nabais (org.), Vieira de Almeida
(1888­‑1988). Colóquio do Centenário, Lisboa, 1991, pp.  199­‑223, retomado in
Leonel Ribeiro dos Santos, A Razão Sensível. Estudos Kantianos, Colibri, Lisboa,
1994, pp. 39­‑67.

213

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esta estratégia de arqueologia linguística a propósito dos conceitos
morais presentes nas mais antigas tradições sapienciais e religiosas
conhecidas, interpretando essa comunidade como reveladora de
uma comum origem da civilização humana e, em última instância,
como prova da uni­dade da razão humana naquele domínio que lhe
é verdadeiramente essencial 20.
Giambatista Vico, para quem a língua dos povos antigos, no‑
meadamente dos itálicos, constituía o texto mais autêntico da sua
sabedoria, o sedimento da sua experiência e o testemunho fiel dos
seus costumes, reputava por muito sérias as provas filológicas ex‑
traídas da língua latina, designadamente as respeitantes aos con‑
ceitos jurídicos 21. Era assim que lia, na identidade de raiz de ius
(direito) e de Ious (Júpiter), a originária coalescência da justiça e da
piedade, do direito e da reli­gião, como base da concepção romana
da exis­tência 22. Esta cumplicidade de ori­gem entre o direito e a re‑
ligião, ­também sugerida no final do século  xiv pelo humanista flo‑
rentino Coluccio Salutati 23, e que viria a ser confirmada e reforçada,
na segunda metade do século  xx, pela etimologia comparada das
línguas indo­‑europeias 24, era bem presente aos antigos escritores

20
  V. o meu ensaio «O eurocentrismo crítico de Kant», in A Ideia Romântica
de Europa — Novos Rumos, Antigos Caminhos, Colibri, Lisboa, 2002, pp. 168­‑170.
21
  Giambatista Vico, Scienza nuova, vol. i, p. 112.
22
  Ibidem, vol. i, p.  33: «Giove (dal quale, appo i latini chiamato Ious, ne fu
anticamente detto ious il gius, che poi, contratto, si disse ‘ius’, onde la giustizia appo
tutte le nazioni s’insegna naturalmente con la pietà.»
23
  Coluccio Salutati, De nobilitate legum et medicine, ed. bilingue Latim­
‑Alemão, trad. de P. M. Schenkel, Wilhelm Fink, München, 1990, p.  160: «Ius
igitur, quod a iuvando dicitur vel forsitan a Iove.»
24
  V. nomeadamente Émile Benveniste, Le Vocabulaire des Institutions Indo­
‑européennes, Mi­nuit, Paris, 1969, vol. 2, p.  119. Depois de ter reconstituído a
arqueologia comparativa dos termos ius e iurare, Benveniste conclui: «En
restituant à ius sa valeur pleine telle que la précisent à la fois les correspon­
dances étymologiques et la dérivation latine, nous remontons au­‑delà du ‘droit’.
C’est d’un concept qui n’est plus seulement moral, mais d’abord religieux que
le mot tire sa valeur: la notion indo­‑européenne de conformité à une règle,
de conditions à remplir pour que l’objet (chose ou personne) soit agréé, qu’il
rem­plisse son office et qu’il ait toute son efficace: yoh en védique, yaožda — en
avestique, sont imprégnés de cette valeur. D’autre part, nous avons constaté
la liaison, dans le vocabulaire latin, par l’intermédiaire de iurare, entre ius et
sacramentum. Ainsi, les origines religieuses et morales du droit se marquent
clairement dans les termes fondamentaux.» Noutro passo da mesma obra
(vol. 1, p.  121), a investigação conduzida a propósito da fides vem confirmar

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latinos. Assim, Cícero, ao esclarecer o que se entende por juramento
(ius iurandum), diz: «O juramento é uma afirmação religiosa; o que
prometeres afirmativamente como se Deus fosse teste­munha, deve
ser mantido… Aquele que viola o juramento, esse viola a Fé, que e
os nossos maiores quiseram que estivesse ao lado de Júpiter no
Capitólio.» 25
Também Kant está consciente desta comum origem do direito,
da moral e da religião. E apoia a informação, colhida provavel‑
mente na leitura directa da citada obra de Cícero, com sugestivas
analogias linguísticas. Procedendo como um genuíno comparatis‑
ta do sé­culo xx (como um Émile Benveniste ou um Georges Dumé­
zil), faz notar que a raiz da palavra mediante a qual se designa no
latim o direito — ius — e o juramento — iurare — se encontra tam‑
bém nas palavras por meio das quais vários povos antigos nomea‑
ram Deus. Assim se lê numa passagem do Opus postu­mum: «Juro,
i.  e., afirmo tomando Deus por testemunha. Com isso eu não sei se
Deus existe [;] pura e simplesmente: eu aceito na minha consciên‑
cia que se falto à verdade sou um mentiroso. Jurare é Ju orare (Ju é
Jehova, Jahi, Júpiter, perante o qual o íntimo é descoberto [,] o pers‑
crutador do coração).» 26
Como já noutra ocasião referi 27, esta passagem permite­‑nos re‑
conhecer o con­texto de onde recebe o seu pregnante significado o
tópico kantiano da veracidade, como condição sem a qual nem há
contratos, nem direito, nem moralidade, nem religião, nem ­filosofia
— numa palavra, sem a qual não há razão que subsista. Mas nesta
passagem surpreende­‑se também a mais genuína ­noção kantiana de

a indicação ciceroniana acima citada. «Dans ces deux termes (fides/credo) on


rejoint des notions où le juridique ne diffère pas du réligieux: tout le vieux droit
n’est qu’un domaine particulier régi par les pratiques et les règles qui baignent
encore dans le mystique.»
25
  «Est enim ius iurandum affirmatio religiosa; quod autem affirmate quasi
Deo teste promiseris, id te­nendum est… Qui ius igitur violat, is Fidem violat quam
in Capitolio vicinam Iovis… maiores nostri esse voluerunt.» De Officiis, III, 28­‑29.
26
  «Juro: i. e. per deum testem affirmo. Dadurch weiss ich nicht dass Gott sey
schlechthin: Ich nehme es auf mein Gewissen, wenn ich unwahr spreche ein
Lügner zu heissen…. Jurare ist Ju orare (Ju ist Jehova, Jahi Jupiter, vor dem das Innere
aufgedeckt ist der Herzens Kündiger).» Opus postumum, Ak XXI, p.  148. V.  a
confirmação desta intuição kantiana por Émile Benveniste, ob. cit., vol. 2, p. 111.
27
  V. o meu ensaio «Kant e a ética da linguagem», in M. J. do Carmo Fer‑
reira (coord.), A Génese do Idealismo Alemão, CFUL, Lisboa, 2000, p.  81. Neste
volume, p. 203.

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Deus: «Deus é o perscrutador universal do coração e,  ao mesmo
tempo, o todo­‑poderoso que, na cadeira de juiz, ­recompensa e casti‑
ga», como se lê num outro passo do Opus pos­tumum 28.
Compreenderemos melhor este ponto verdadeiramente nuclear
do pensa­mento kantiano se atendermos ao desenvolvimento que o
filósofo faz do tema da consciência moral (Gewissen) como sendo
um «juiz inato» (angeborne Richter), «a consciência de um tribunal
interior no homem» (das Bewusstsein eines inneren Gerichtsfoffes im
Menschen… ist das Gewissen) 29. Poderia tomar­‑se isso apenas como
resíduo de um motivo tradicional da teologia e filosofia moral, so‑
bretudo daquela que assenta na experiência da consciência da culpa
e, por conseguinte, na consciência da lei e da sua transgressão, como
é o caso na moral judaica e cristã, mas, para além da recorrência do
tema, significativa é a explicitação a que Kant o submete. Trata­‑se
verdadeiramente da experiência mais originária da razão, aquela
onde ela precisamente se surpreende como prática, aquela de onde
promana, depois, toda a arquitectura da filosofia crítica, se levar‑
mos a sério a declaração do filósofo numa das suas reflexões segun‑
do a qual «a origem da filosofia crítica é a moral» (Ursprung der
critischen Philosophie ist moral) 30. É a consciência do dever (ou do
imperativo categórico) que constitui realmente o Faktum der Ver‑
nunft, o Faktum realmente originarium. E esse Faktum desencadeia
um processo ou revela­‑se como um processo íntimo que tem a sua
expressão externa no processo judicial. Se há na obra de Kant domí‑
nio onde a metáfora do tribunal seja abundante e preg­nante de sig‑
nificado é sem dúvida este e sobretudo aqui vale dizer que a metá‑
fora é muito mais do que metáfora, que não é o tribunal interior
que é pensado por analo­gia com o exterior, mas que, ao contrário, é
o tribunal exterior que é moldado à imagem do forum que é a cons­
ciência moral 31.

28
  «Gott ist der allgemeine Herzenskündiger und zugleich der allgewältig
vor dem höchsten Richterstuhl belohnt u. bestraft.» Opus postumum, Ak XXI,
p. 147.
29
  Metaphysik der Sitten, Tugendlehre, Ak VI, p. 438. Cf. Kritik der praklischen
Vernunft, Ak V, 98.
30
  Lose Blätter zu den Fortschritten der Metaphysik, Ak XX, 335.
31
  É a esta conclusão que chega também o único estudo que conheço
directamente dedicado a este tópico, o ensaio de Fumiyasu Ishikawa, «Das
Gerichtshof­‑Modell des Gewissens», Aufklärung, 7 (1992), pp.  43­‑55: «…tritt
das Gerichtshof­‑Modell des Gewissens in Wahrheit gar nicht als Gleichnis

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Podemos acompanhar o explícito desenvolvimento deste tema
por parte de Kant pelo menos desde as Lições de Ética, proferidas entre
os anos 1775 e 1785, até às páginas do Opus postumum, com ecos tam‑
bém na Crítica da Razão Prática (A, 175) e em muitas páginas de A Reli­
gião nos Limites da Simples Razão (1793). Mas há um lugar onde toda a
substância do tópico se explana e em toda a sua dimensão. Trata­‑se do
§ 13 da Doutrina da Virtude, a segunda parte da Metafísica dos Costumes,
publicada em 1797. O contexto de inscrição e a linguagem variam nes‑
sas obras que correspondem a épo­cas e a programas diferentes, mas o
problema é o mesmo. Nas Lições de Ética, ele surge sob a epígrafe do
tópico da imputação das acções e da consciência moral e o contexto
em que se expõe é o de um forum ou tribunal que tem competência
para julgar as acções com força jurídica. Segundo o filósofo, para além
do forum exter­num (o tribunal civil que julga as acções exteriores dos
homens), há o forum inter­num ou forum conscientiae, ao qual está ligado
o forum divinum, e a tal ponto que o forum divinum não é outra coisa
senão o próprio forum conscientiae. O mote pode tê­‑lo colhido de Ale‑
xander Gottlieb Baumgarten, cuja obra Initia philoso­phiae practicae pri‑
mae Kant usava como manual para os seus cursos universitários de
Filosofia Moral 32. Mas aquilo que no texto do professor de Halle era um

auf, wie man üblicherweise annimmt… Umgekehrt kann man sich hier gegen
das übliche Verständnis des Gewissens als eines Gerichtshofes, das es als ein
blosses Gleichnis ansieht, sogar auf ein Beispiel berufen, das dazu fähig ist,
zu erweisen, dass gerade der innere Gerichtshof der Ursprung des äusseren
sein kann… dies bekündet ausdrücklich, dass der Anhaltspunkt des äusseren,
weltlichen Gerichtshofs letzten Endes nichts anderes als das Gewissen als innerer
Gerichtshof ist. Insofern kann man mit Recht sagen, dass der äussere Gerichtshof,
als Entäusserungsform des inneren analog zu diesem betrieben wird und
zumindest nicht umgekehrt.» (p. 48). V. também Nestore Pirillo, «Il giuramento e
il tribunale della coscienza», in idem (ed.), Kant e la Filosofia della Religione, Istituto
di Scienze Religiose in Trento, Trento, 1996, pp.  81­‑111; Johannes Strangas, «I
rapporti tra fondamentalismo religioso ed esperienza giuridica in quanto modo
di emergenza del problema dei rapporti tra morale e diritto», Rivista Internazionale
della Filosofia del Diritto (Milano), 5, 1998, pp. 418­‑461. Também: Norbert Bilbeny,
Kant y el tribunal de la conciencia, Editorial Gredisa, Barcelona, 1994.
32
  Alexander Gottlieb Baumgarten, Initia philosophiae practicae primae, Halle
1760, § 182 (reimpr. in Kant’s gesammelte Schriften, Ak XIX, pp. 121 e segs.). Uma
outra fonte do tema, porventura muito mais importante ainda do que Baumgarten,
é Rousseau e o desenvolvimento que ao tópico da cons­cience ele dá, nomeadamente
na parte iv do Émile (Profession de Foi du Vicaire Savoyard), mas também noutras
obras, contrapondo a conscience às lumières de la raison e interpretando­‑a como um
«sentimento inato», um «instinto divino». Baumgarten definia a conscientia como

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breve parágrafo sofre no professor de Königsberg um desenvolvimen‑
to considerável 33. A consciência moral é apresentada por Kant não
apenas como uma faculdade que o homem pode usar ao sabor da sua
vontade, mas é descrita como um instinto (Ins­tinkt) ou impulso (Trieb),
com o que se pretende sublinhar o seu carácter originá­rio, imediato e
absoluto. É aqui bem audível o eco das convicções que Rousseau colo‑
ca na boca do seu Vigário de Sabóia: «Conscience! Conscience! Instinct
divin, immortelle et céleste voix; guide assuré d’un être ignorant et
borné, mais intelligent et libre; juge infaillible du bien et du mal, qui
rends l’homme semblable à Dieu, c’est toi qui fais l’excellence de sa
nature et la moralité de ses actions; sans toi je ne sens rien en moi qui
m’élève au­‑dessus des bêtes, que le triste privilège de m’égarer
d’erreurs en erreurs à l’aide d’un entendement sans règle et d’une rai‑
son sans principe.» 34 Mas ao atribuir a consciência ao entendimento

uma faculdade de imputação de acções: «Cum conscientia sit actus, vel facultas,
vel habitus facta sibi imputandi et his leges aplicandi.» Erläuterungen Kants zu
A. G. Baumgartens «Initia Philosophiae Practicae Primae» Ak xix, 89-91.
33
  Há quem considere estranho que o tópico da consciência (Gewissen) não
mereça especial desenvol­vimento nos principais escritos kantianos de filosofia
moral, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes e na Crítica da Razão Prática.
Nesta última obra há, todavia, pelo menos um passo importante (Ak V, 98) onde se
fala «daquele admirável poder que em nós existe, a que chamamos consciência»
(desjenigen wundersamen Vermögens in uns, welches wir Gewissen nennen). A razão
dessa ausência relativa explica­‑se, a meu ver, pelo facto de a cons­ciência moral
(Gewissen) ser para Kant um outro modo de dizer o «sentimento moral» e a «razão
prática» no seu aspecto subjectivo, ou a consciência subjectiva da lei e do dever,
como se pode ver nesta passagem da introdução aos Fundamentos Metafísicos
da Doutrina da Virtude: «A  consciência moral é a razão prática mostrando
ao homem o seu dever em cada caso concreto de uma lei, absolvendo­‑o ou
condenando­‑o.» (Gewissen ist die dem Menschen in jedem Fall eines Gesetzes seine
Pflicht zum Lossprechen oder Verur­theilen vorhaltende praktische Vernunft.) (Ak VI,
400.) No mesmo contexto se afirma o carácter «originá­rio» (não «adquirido»)
da consciência moral: «A consciência moral não é algo que possa adquirir­‑se…;
mas todo o homem, como ser moral, tem­‑na originariamente em si.» (Eben so ist
das ­Gewissen nicht etwas Erwerbliches…; sondern jeder Mensch, als sittliches Wesen,
hat ein solches ursprünglich in sich.) Esse carácter originário e não adquirido da
consciência moral era sublinhado nas Lições de Ética chamando à consciência
um «instinto» ou um «impulso». Da relativamente escassa literatura sobre o
tema, v. Rudolph Hofmann, Die Lehre von dem Gewissen, Leipzig, 1866; Wilhelm
Wohlrabe, Kants Lehre vom Gewissen, Gotha, 1880.
34
  V. a edição autónoma desta peça em Jean­‑Jacques Rousseau, Profession
de Foi du Vicaire Sa­voyard, présentation, notes, bibliographie et chronologie par

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(prático), ao mesmo tempo que a considera um instinto ou um impul‑
so — e mais tarde um «facto incontornável» que «originariamente»
todo o homem tem em si —, Kant realiza a fusão (aparentemente im‑
possível) da matriz racionalista da escola wolffiana com a matriz rous‑
seauana, a qual, precisamente, contrapunha a imediatez e certeza da
consciência (moral) à razão e às luzes incertas desta, concebendo aque‑
la como um «instinto» ou um «sentimento inato», dotada de um «prin‑
cípio imediato e indepen­dente da razão» 35.
Lê­‑se, com efeito, nas Lições de Ética: «Temos um poder de julgar
se algo é correcto ou incorrecto, e isso refere­‑se tanto às nossas ac‑
ções como às dos outros. Este poder reside no entendimento. Possu‑
ímos também um poder de prazer e des­prazer, na medida em que
julgamos acerca de nós ou dos outros sobre o que agrada ou desa‑
grada, e isto é o sentimento moral. Se nós, porém, pressupusermos o
juízo moral e a lei moral, então encontramos em nós ainda um tercei‑
ro instinto, um involuntário e irresistível impulso na nossa natureza,
que nos obriga [zwingt] a julgar acerca das nossas acções com força
jurídica [rechtkräftig]… A consciência é o instinto [Instinkt] que nos
leva a apreciar e a julgar as nossas acções. Não é nenhum poder, mas
instinto [Es ist kein Vermögen, sondern Instinkt]. Se ela fosse um poder
voluntário, não seria nenhum tribunal, pois não nos poderia obrigar.
Se tem de haver um tribunal íntimo então ele tem de ter poder para,
independente­mente da nossa vontade, nos obrigar a apreciar e a jul‑
gar [zu urteilen und zu rich­ten] as nossas acções e para absolver­‑nos
ou condenar­‑nos intimamente. Cada qual tem um poder de apreciar
[urteilen] especulativamente, o qual está em poder da nossa vontade;
mas há em nós algo que nos obriga a julgar as nossas acções, que nos
coloca perante a lei e nos compele a comparecer perante o juiz, que
nos julga contra a nossa vontade, e que por isso é um verdadeiro
juiz. Este forum internum é um forum divinum, na medida em que ele
mesmo nos julga segundo as nossas intenções; e não podemos fazer
outro conceito do forum divinum a não ser este que nós mesmos nos
julgamos segundo as nossas intenções. Por conseguinte, a cons­
ciência é o representante do forum divinum.» 36

Bruno Bernardi, Garnier­‑Flammarion, Paris, 1996, p. 90.


35
  «Le principe immédiat de la conscience, indépendant de la raison
même… le témoignage inté­rieur, et la voix de la conscience qui dépose pour
elle­‑même.» Ibidem. V., também, Rêveries, 4.e Promenade.
36
  I. Kant, Eine Vorlesung über Ethik, ed. Gerd Gerhardt, Fischer, Frankfurt
a. M., 1990, pp.  77­‑78. Numa outra formulação da tese, no mesmo contexto,

219

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A versão do § 13 da Doutrina da Virtude traz explicitações muito
significativas ao tema, o qual agora se inscreve sob a epígrafe
«Do dever do homem para consigo próprio, enquanto juiz inato de
si mesmo». Cai a referência à consciência moral como um «instin‑
to» ou um «impulso», mas não ao seu carácter absoluto e incon­
dicional, apontando­‑se o seu carácter «originário» — «disposição
originária» (ursprüngliche Anlage) — e a sua realidade de «facto in‑
contornável» (unausbleibliche Thatsache) 37. Cada homem, escreve
Kant, se vê como sendo «obser­vado por um juiz interior» (durch
einen inneren Richter beobachtet), que por toda a parte o segue «como
a sua sombra» (wie sein Schatten), e cuja «voz temí­vel» (furchtbare
Stimme) não pode impedir­‑se de ouvir (sie zu horen, kann er doch
­nicht vermeiden).
Prosseguindo a análise da consciência moral, que se diz sob estas
imagens da sombra, da voz, do escrutinador e juiz íntimo, Kant chega
ao que pode considerar­‑se uma descrição fenomenológica da génese
da consciência moral e religiosa, expondo o processo de surgimento
de Deus na consciência do homem como sendo o Outro do próprio
homem na auto­consciência de si; por conseguinte, como sendo uma
criação hipostasiada da razão moral em resposta a uma sua imanente
necessi­dade. O homem põe fora de si o legislador e o juiz que, na
verdade, residem apenas na sua própria consciência e são verdadei‑
ramente uma criação desta 38. Fá­‑lo não só para escapar a uma contra‑

lê­‑se: «Das Forum ist zweierlei: forum externum, welches das forum humanum
ist, und forum internum, welches das forum conscientiae ist. Mit diesem foro
interno verbinden wir zugleich das forum divinum; denn unsere Facta können
nicht anders in diesem Leben vor dem göttlichen foro imputiert werden als per
conscientiam, demnach ist das forum internum in diesem Leben ein forum divinum.
Ein Forum soll Zwang ausüben, sein Urteil soll rechtskräftig sein, es soll die
consectaria des Gesetzen auszuführen zwingen können.» (Ibidem, p. 77.)
37
  Tugendlehre, Ak VI, 400, 438.
38
  Não posso deixar de estabelecer um confronto — por proximidade e
também por diferença — com a explicação que o sofista Crítias (Diels­‑Kranz:
Fragm. B 25) apresentava para a génese das leis e do seu carácter absoluto e
dos deuses como garantia das mesmas — enfim, para a génese da consciência
moral e religiosa —, por interiorização de uma necessidade da razão social.
Transcrevo excertos dessa notável fábula da invenção das leis (do direito e da
moral) e dos deuses (da religião): «Outrora, houve um tempo em que o homem
vivia sem leis como um fauno, respeitando apenas a força; em que os bons
não obtinham qualquer recompensa e em que os maus também ficavam impu‑
nes. Só depois os homens estabeleceram leis de repressão — pelo menos essa

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dição interna da consciência consigo mesma, mas tam­bém para asse‑
gurar a eficácia da legislação moral e, no fundo, para garantir a
eficá­cia e a coerência da moralidade como um todo. Mas, ao fugir de
uma contradição, incorre, senão noutra, pelo menos no paradoxo,
que só não será contradição porque a consciência é capaz de se colo‑
car ela própria, sendo a mesma, em diferentes pontos de vista.
Dou a palavra ao velho filósofo: «Esta originária disposição
[ursprüngliche Anlage] intelectual e moral chamada consciência
[Gewissen], sendo embora a sua ocupação uma ocupação do homem
consigo mesmo, tem em si a particularidade de este se ver todavia
obrigado pela sua razão a executá­‑la como se fosse à ordem de uma
outra pessoa. Pois o assunto é aqui a condução de uma causa (causa)
perante o tribunal. Mas se se representasse numa e mesma pessoa
aquele que é acusado pela sua consciência e o juiz, isso seria uma
absurda maneira de representar um tribunal; pois, nesse caso, o acu‑
sador perderia sempre. — Por conseguinte, a consciência do homem
tem de pensar para si um Outro diferente dela própria, como juiz
das suas acções, se não quer estar em contradição consigo mesma.
Este Outro pode ser uma pessoa real, ou uma meramente ideal, que
a razão para si mesma cria. Uma tal pes­soa ideal (o autorizado juiz
da consciência) tem de ser um perscrutador do coração; pois o tribu‑
nal está instalado no interior do homem, mas ao mesmo tempo tem

é a minha opinião — para que a lei reinasse como senhora soberana, e desse
modo dominasse a sua louca des­mesura. A partir de então era possível castigar
os faltosos. Seguidamente, como as leis reprimiam os delitos proibindo que se
realizassem às claras os crimes, mas não em segredo, foi então, creio eu, que
um sábio, que sabia por sabedoria profunda, forjou para os mortais os Deuses
para inspirar o temor aos maus que se escondem para agir, ou falar, ou mesmo
para pensar. Essa é a razão por que introduziu Deus dizendo­‑lhes que goza de
uma vida eterna e que pelo entendimento entende e vê e julga todos os actos
cometidos; que a sua natureza é divina, que ele perscruta todas as intenções
dos mortais e que tem meios para ver tudo o que eles fazem. Mesmo quando
calasses o golpe que preparas os Deuses dar­‑se­‑iam conta, pois neles existe o
Pensamento. Proferindo tais palavras, o sábio envolveu a lição na agradável
forma do mito, velando a verdade com um discurso de ficção. O brilho do seu
discurso atribuiu morada condigna à divindade e mediante as leis ele pôs fim à
desigualdade… Assim, creio eu, houve alguém que foi o primeiro a persuadir
os mortais de que existem Deuses.» V. G. B. Kerferd, The Sophistic Movement,
Cambridge U. P., Cambridge, 1981, pp. 162-172; Sofistas, Testemunhos e Fragmen‑
tos, introdução de Maria José Vaz Pinto, trad. e notas de Ana Alexandra Alves
de Sousa e Maria José Vaz Pinto, INCM, Lisboa, 2005, pp. 260­‑261.

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de impor­‑se universalmente, isto é, tem de ser uma pessoa (ou como
tal pensada) em relação à qual todos os deveres em geral sejam con‑
siderados como mandamentos: pois a consciência é o juiz interior
sobre todas as acções livres.» 39
Ora, conclui Kant, um tal ser ideal é o que chamamos Deus.
E,  segundo­ o filósofo, o conceito deste, como supremo legislador e
juiz, está sempre incluído na autoconsciência moral do homem, mes‑
mo que por vezes de um modo confuso. Religião e Moral são assim as
duas faces de uma mesma vivência, a imputabilidade moral é outro
nome para aquilo a que se chama religião. Se «a religião consiste toda
em considerar Deus como o legislador universal para todos os nossos
deve­res» 40, de igual modo, a consciência moral, que é «a voz do juiz
interior» (die Stimme des inneren Richters) 41, «do incorruptível juiz que
existe em nós» (dieser unbestechliche Richter in uns) 42, deve considerar­‑se
como sendo a representante na terra do juízo de Deus: «Deus julga­
‑nos mediante a nossa consciência; esta é aqui na terra o seu
representante.» 43 As Lições sobre Filosofia da Religião secundam a tese
que encontrámos nas Lições de Ética e que serão aprofundadas na Dou‑
trina da Virtude, a segunda parte da tardia Metafísica dos Costumes.
Mas voltemos ao § 13 da Doutrina da Virtude e vejamos como Kant
explica aí o funcionamento desse tribunal íntimo e qual é, no juízo
moral, a função respectiva de cada uma das faculdades práticas nele
envolvidas. Prossegue o filó­sofo: «Todo o conceito do dever inclui
coacção objectiva mediante a lei (enquanto imperativo moral que li‑
mita a nossa liberdade) e compete ao entendimento prático, o qual dá
a regra; mas a íntima imputação de um acto, como de um caso que
está sob a alçada da lei… cabe ao juízo (iudicium), o qual, enquanto
princípio subjec­tivo da imputação da acção, julga com força jurídica
[rechtskräftig] se ela aconte­ceu ou não como acto (como acção subme‑
tida a uma lei); ao que segue então a conclusão da razão (a sentença),
i. e., a ligação do efeito jurídico com a acção (a condenação ou absol‑
vição): tudo isto acontece perante o juízo (coram iudicio), como peran‑
te uma pessoa moral que torna efectiva a lei, e a que se chama tribunal

  Tugendlehre, Ak VI, 438­‑439. V. a tradução portuguesa por José Lamego,


39

em I. Kant, A Meta­física dos Costumes, F. C. Gulbenkian, Lisboa, 2005, pp. 373­‑374.


40
  Die Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft, Ak VI, 103.
41
  Tugendlehre, Ak VI, 401; trad. port. cit., pp. 314­‑315.
42
  Vorlesungen über philosophische Religionslehre, ed. de K. H. L. Pölitz, reim‑
pr. WBG, Darmstadt, 1982, p. 167.
43
  Ibidem, p. 170.

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[Gerichtshof] (forum). A consciência de um tribunal interior no homem
(perante o qual os seus pensa­mentos se acusam ou desculpam entre
si) é a consciência moral [Gewissen].» 44
Tanto se pode dizer que o genuíno processo judicial civil executa
um racio­cínio prático da consciência moral como dizer que o raciocí‑
nio prático da cons­ciência moral funciona à semelhança de um tribu‑
nal civil. Numa versão mais sin­tética do tema, lê­‑se esta formulação:
«A consciência é um tribunal, no qual o entendimento é o legislador,
o juízo é o acusador e advogado, e a razão é o juiz.» 45 E, numa nota
ao § 13, Kant explicita este desdobramento da consciên­cia do homem
enquanto acusado, acusador e juiz, tentando mostrar que não se in‑
corre aí numa contradição. Escreve Kant: «Esta dupla personalidade
[zwiefache Persön­lichkeit], na qual tem de se pensar o homem que se
acusa e julga na consciência moral, este duplo eu [doppelte Selbst], que
tem de, por um lado, comparecer tre­mendo perante a barra de um
tribunal [vor den Schranken eines Gerichtshofes], que, todavia, lhe está
a ele próprio confiado, e que, por outro lado, tem ele mesmo nas suas
mãos o cargo de juiz por autoridade inata [Richteramt aus angeborener
Autorität], necessita de um esclarecimento, para que a razão não caia
em contradi­ção consigo mesma. — Eu, o acusador, e, no entanto,
também acusado, sou o mesmo homem (numero idem); mas, como
sujeito da legislação moral procedente do conceito de liberdade,
onde o homem está submetido a uma lei que ele a si pró­prio se dá
(homo noumenon), há­‑de considerar­‑se como um outro (specie diver‑
sus) em relação ao homem sensível dotado de razão, mas apenas sob
o ponto de vista prático. […] O primeiro é o acusador, frente ao qual
se concede ao acusado uma defesa jurídica (o seu advogado). Depois
de concluída a discussão, o juiz interior [der innere Richter], como pes‑
soa com poder [als machthabende Person], profere o veredicto sobre a
felicidade ou miséria como consequências morais da acção.» 46
O que neste processo forense se surpreende é igualmente a génese
moral da Religião. Direito, Moral e Religião têm, por conseguinte, a
mesma génese no seio da consciência subjectiva, que é levada a objecti‑
var, como se fosse diferente dela mesma, a fonte da lei a que se sente
submetida e a instância que intimamente a julga segundo essa lei. Kant
move­‑se aqui num equilíbrio perigoso, tentando evitar sair da imanên‑

44
  Tugendlehre, Ak VI, 438; trad. port. cit., p. 372.
45
  Reflexion 6815, Ak XIX, 170.
46
  Tugendlehre, Ak VI, 439; trad. port. cit., p. 374.

223

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cia da consciência para a suposição da existência transcendente de um
ser absolutamente santo, omnipotente e justo, que fosse exterior à cons‑
ciência humana, a qual, por outro lado, se reconhece como subordina‑
da à lei (ou manda­mento) e sempre limitada no cumprimento dos seus
deveres. Escreve Kant: «Dado que um tal ser moral — o legislador e o
juiz — tem de ter simultaneamente todo o poder (no céu e na terra),
pois que, caso contrário, não poderia proporcionar às suas leis a eficácia
que lhe corresponde (o que compete, pois, necessariamente à judi­
catura), e, dado que se chama Deus a um ser moral omnipotente, a
consciência moral terá, deste modo, de ser concebida como princípio
subjectivo de uma respon­sabilidade dos próprios actos perante Deus;
mais: este último conceito estará sem­pre contido (se bem que apenas de
um modo obscuro) naquela consciência moral de si próprio. Ora, isto
não equivale a dizer que o homem se encontra autorizado, nem, muito
menos ainda, obrigado por esta ideia a que o conduz inevitavelmente
a sua consciência moral a admitir um tal ser supremo como existência
real fora de si; pois que esta ideia não lhe é dada objectivamente pela
razão teórica, mas tão­‑somente subjectivamente pela razão prática, que
se obriga a si mesma a agir em conformidade com ela; e, por intermé‑
dio desta ideia, unicamente por analogia com um legislador de todos
os seres racionais do mundo, o homem recebe uma simples orientação,
que consiste em se representar a imputabilidade moral (que também se
chama religio) como responsabilidade perante um ser santo (a razão
moralmente legisladora) distinto de nós próprios, mas, no entanto, in‑
timamente presente em nós, e submeter a sua vontade às regras da
justiça. O conceito de religião em geral é aqui para o homem unicamen‑
te ‘um princípio de apreciação de todos os seus deveres como manda‑
dos divinos’.» 47 Kant de modo algum concede que se saia da imanência
da consciência ou da razão: o ser que é pensado como diferente de nós,
está em nós, e é testemunhado apenas pela voz subjectiva da consciên‑
cia moral e não por qualquer evidência objectiva exterior.
Este é, pois, o estranho — e até aparentemente contraditório ou
pelo menos paradoxal — paradigma processual que preside à repre‑
sentação kantiana da vivência moral: há na unidade orgânica da ra‑
zão prática ou da consciência moral uma dife­renciação tripartida de
faculdades cujas funções são descritas como sendo de natu­reza foren‑
se. Antes de se compreender o alcance da filosofia crítica como tribu‑
nal da razão pura para julgar todas as suas causas acerca dos assuntos

47
  Tugendlehre, Ak VI, 439; trad. port. cit., pp. 374­‑375.

224

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supremos de que a razão pode alguma vez ocupar­‑se, há que reco‑
nhecer a primazia e a pregnância que tem na filosofia de Kant este
tribunal da razão prática, sobre que se funda tam­bém a genuína expe‑
riência religiosa: «a lei santa permanece sempre diante dos nossos
olhos e representa­‑nos continuamente cada mais pequeno desvio em
relação à vontade divina como condenado por um juiz severo e
justo» 48. Kant, de resto, poderia encontrar sobeja confirmação desta
sua versão na mais genuína tradição do pensamento ocidental e na
religião da maior parte dos povos que lhe eram conheci­dos, merecen‑
do realce, sob este aspecto, e antes de mais, a própria representação
bíblica do carácter absoluto da Lei e de Deus como legislador e juiz,
concepção que veio a ter, na neo­testamentária teologia paulina, deci‑
sivo aprofundamento num sentido imanente e subjectivo 49, mas que
se encontrava já admiravelmente compendiada e até filosoficamente
problematizada sob a forma de uma teodiceia representada na cons‑
ciência moral do homem, naquele que Kant considerava «o mais filo‑
sófico dos livros vetero­‑testamen­tá­rios» 50, o livro de Job 51.
Mais surpreendente ainda é que esse mesmo paradigma e pro‑
cesso se repli­que no modo como Kant concebe a economia trinitária

  «…das heilige Gesetz uns jederzeit vor Augen liege und uns jede auch
48

die kleinste Abweichung von dem göttlichen Willen als verurteilt von einem
unnachsichtlichen und gerechten Richter unaufhörlich vor halte». Carta a La‑
vater, 28 de Abril de 1775, Ak X, 179.
49
  Rom 2,12­‑15: «Quando os que não são judeus, sem terem a lei de Moisés,
cumprem naturalmente a lei, eles são a lei para si mesmos. Mostram pelo seu pro‑
ceder que trazem escrito no coração aquilo que a lei ordena. A voz da sua consciên­
cia ensina­‑lhes o que devem fazer e acusa­‑os ou defende­‑os, conforme os casos.»
50
  I. Kant, Danziger Rationaltheologie, Ak XXVIII, 1287: «Leibnitzens Theo‑
dizee ist in der Absicht geschrieben, um diese Einwürfe [wider die Eigenschaf‑
ten Gottes: Heiligkeit, Gütigkeit, Gerechtigkeit] zu widerlegen. Das Buch Hiob
im A. T. zweckt dahin ab, und das ist das philosophischeste Buch im A.T.»
51
  Job 23: «Quem me dera saber onde encontrá­‑lo e poder chegar até ao
seu tribunal! Apresentaria diante dele a minha causa; eu mesmo discutiria as
questões… Se eu pudesse discutir lealmente com ele, conseguiria fazer vencer
a minha causa.» Todo este singular livro bíblico, como antes de qualquer outro
bem o advertiu o próprio Kant, está escrito como um processo judicial em que
Job apresenta perante Deus a causa da sua justiça, uma causa que é também
a causa de Deus (uma teodiceia), cuja justiça é posta em causa. Sobre a inter‑
pretação kantiana da personagem Job e do significado do drama exposto nesse
livro bíblico, veja­‑se o ensaio «A teologia de Job, segundo Kant: ou a experi‑
ência ético­‑religiosa entre o discurso teodiceico e a estética do sublime», neste
volume, pp. 267 e segs.

225

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da ideia moral de Deus 52. Segundo o filósofo, a trindade divina é o
«documento de uma antiga concepção moral» da razão humana
(trinitas probat conceptum antiquum moralem) 53, «o sím­bolo sagrado da
teologia moral, o monograma da sua misteriosa essência» 54, o qual
constitui o substrato de todas as religiões e que corresponde igual‑
mente às três funções políticas (trias politica) de um Estado bem or‑
ganizado. A representação trinitária da divindade ou do Estado
obedecem assim à mesma exigência de coe­rência que levou a cons‑
ciência moral a hipostasiar­‑se em três instâncias diferentes na uni‑
dade orgânica de si mesma. Nas Lições sobre a Filosofia da Religião,
lê­‑se: «A razão conduz­‑nos a Deus, como um legislador santo, a nos‑
sa inclinação para a felicidade deseja­‑se nele como um governador
do mundo bondoso, e a nossa cons­ciência moral representa­‑no­‑lo
diante dos olhos como um juiz justo.» 55 Noutros lugares são apre‑
sentadas como sendo homólogas a trindade prática da consciência
moral, a trindade teológica (ou representação moral de Deus) e a
trindade política, com a diferença de que em Deus ou na consciência
moral as três funções são pen­sadas como reunidas num único ser
(ideia) ou consciência, enquanto num Estado bem ordenado elas são
cometidas a pessoas diferentes. E assim, a trias politica ou a divisão
tripartida dos poderes (potestas legislatoria, rectoria et iudiciaria),
caracte­rística de um estado republicano, é vista não só como um
símbolo da trindade de funções e dos atributos divinos, mas igual‑
mente comparada com um raciocínio prático (gleich den drei Sätzen
in einem praktischen Vernunftschluss) 56.
Em A Religião nos Limites da Simples Razão, Kant desenvolve a sua
teologia trinitária, associando expressamente a consciência moral
(Gewissen), enquanto função de julgar, à terceira pessoa da Trinda‑
de, o Espírito Santo, ao mesmo tempo que mostra a possível coerên‑
cia das aparentemente contraditórias fórmulas bíbli­cas neotesta‑

52
  V. o desenvolvimento que fizemos deste tópico em Metáforas da Razão ou
Economia Poé­tica do Pensar Kantiano, pp. 661­‑666.
53
  Reflexion 5658, Ak XVIII, 318.
54
  Reflexion 6093, Ak XVIII, 449.
55
  «Die Vernunft leitet uns auf Got, als einen heiligen Gesetzgeber, unsere
Neigung für Glückseligkeit wünscht sie in ihm einen gütigen Weltregierer, und
unser Gewissen stellet uns ihm als ein gerechten Richter vor Augen.» (Vorlesungen
über philosophische Religionslehre, ed. cit., p. 145.)
56
  Rechtslehre, § 45 (Ak VI, 313­‑314); Vorlesungen über Rationaltheologie
(Danziger Rationaltheologie), Ak XXVIII, 1284-1285.

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mentárias, as quais ora atribuem essa função de julgar ao Filho ora
ao Espírito Santo. Escreve Kant: «Este Espírito — pelo qual o amor
de Deus como beatificante (pro­priamente o nosso amor de resposta
a Ele) se une ao temor como legislador, i. e., o condicionado à condi‑
ção — pode representar­‑se ‘como procedente de ambos’; além de
‘conduzir a toda a verdade (observância do dever)’, ele é ao mesmo
tempo o genuíno juiz dos homens (perante a sua consciência). Com
efeito, julgar pode tomar­‑se em dois sentidos: ou como julgar sobre
o mérito e a falta de mérito, ou sobre a culpa e a inocência. Deus
considerado como o amor (no seu Filho) julga os homens na medida
em que, para além da sua obrigação, lhes pode ainda correspon­der
um mérito, e então a sua sentença é: digno ou indigno… Separa
como seus aqueles a quem tal mérito pode ser imputado. Os outros
vão com as mãos vazias. Pelo contrário, a sentença do juiz de acordo
com a justiça (do que em rigor se deve chamar juiz, sob o nome de
Espírito Santo) sobre aqueles a quem nenhum mérito pode caber é:
culpado ou inocente, i. e., condenação ou absolvição. Julgar signifi‑
ca, no primeiro caso, separar os merecedores dos não merecedores,
que aspiram reci­procamente a um prémio (o da beatitude). Mas por
mérito não se entende aqui uma vantagem da moralidade em rela‑
ção à lei (a cujo respeito não pode caber­‑nos nenhum excedente da
observância do dever sobre a nossa obrigação), mas em comparação
com outros homens, no tocante à sua disposição de ânimo moral.
[…] Portanto, quem julga na primeira qualidade (como brabeuta)
pronuncia o juízo de eleição entre duas pessoas (ou partidos) que
aspiram ao prémio (da beatitude); mas quem julga na segunda qua‑
lidade (o verdadeiro juiz) pronuncia a sentença sobre uma e a mesma
pessoa perante um tribunal (a consciência moral) que decide entre o
acusador e o advogado.» 57
Estes testemunhos textuais revelam a que ponto não só a filoso‑
fia moral kantiana mas também a filosofia kantiana da religião e a
filosofia kantiana da política estão determinadas no seu próprio cer‑
ne pelo paradigma forense. Julgo ter dado suficientes razões para
apoiar a ideia de que isso não acontece propriamente por transfe‑
rência do exterior para o interior da razão ou da consciência do
proce­dimento que ocorre num tribunal civil, mas sim que é o esfor‑
ço de fidelidade da razão às suas próprias fontes e o autoconhe­

57
  Die Religion, Ak VI, 145­‑146 (trad. port.: A Religião nos Limites da Simples
Razão, Edições 70, Lis­boa, pp. 151­‑152).

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cimento que alcança de si própria quando reflecte sobre o seu modo
de proceder, seja na sua experiência moral e nos juízos morais ou na
sua vivência religiosa, o que, em última instância, explica a omnien‑
volvência daquele paradigma. O que ocorre aí é o funcionamento
sintético de uma razão finita, a qual não procede por um movimen‑
to analítico­‑dedutivo, mas só pode partir do condicionado para a
sua condição e ligar um e outro pela media­ção de um terceiro ter‑
mo 58. É nesse movimento imanente em que um mesmo espí­rito ou
razão se desdobra em diferentes instâncias que se expõe a fenome‑
nologia da razão humana. Uma derradeira tentativa de formulação
desse processo, inexplicá­vel e todavia incontornável, encontra­‑se
numa página quase cifrada do Opus pos­tumum, nestes termos: «Exis‑
te um ser em mim, distinto de mim, que tem poder sobre mim (agit,
facit, operatur) na relação causal de eficácia (nexus effectivus), que,
sendo ele mesmo livre, isto é sem ser dependente da lei da natureza
no espaço e no tempo, me julga interiormente (justifica ou condena);
e eu, o homem, eu sou eu próprio este ser, e aquele outro não é, por
exemplo, uma substância fora de mim, e o que é mais estranho: a
causalidade é todavia na determinação para a acção em liberdade
(não como necessidade da natureza). — Esta disposição interior
inexplicá­vel descobre­‑se por um facto, o imperativo categó­rico do
dever (nexus finalis), Deus; effectivus o mundo, seja ele afirmativo ou
negativo (ordem ou interdito). O espírito do homem (mens) numa
coacção que não é possível a não ser por meio da liber­dade.» 59
Se esta formulação tardia não traz mais luz a quanto tentámos
mostrar ao longo deste ensaio, talvez sim quanto anteriormente es‑
crevemos possa iluminá-la um pouco.

58
  KU, Einleitung, Ak V, 197.
59
  Opus postumum, Ak XXI, 25.

228

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6

Hércules e as Graças,
ou da «condição estética da virtude»:
Kant, leitor de Schiller

Acostumamo­‑nos muito facilmente a pensar


o elemento material simplesmente como obstá­culo
e a representar a sen­sibilidade numa contradição
necessária com a razão… Um tal modo de repre‑
sentação não se encontra de modo algum no espíri‑
to do sistema kantiano, embora possa eventual‑
mente encontrar­‑se na letra do mesmo. 1

1. Se o tópico da relação de Schiller com a filosofia e a pessoa


de Kant tem sido muitas vezes extensamente abordado, já muito
menos o tem sido o da relação de Kant com a pessoa de Schiller e
com a obra e o pensamento schillerianos 2. Sem dúvida a razão para
isso reside em que o confronto de Schiller com o pensamento kantia‑
no é tema de vasta matéria, ao passo que o confronto de Kant com a
obra de Schiller pode considerar­‑se um episódio menor e de pouca
importância. Ainda assim, com plena consciência da escassez da

1
  «…gewöhnt man sich gar leicht, das Materielle sich bloss als Hindernis
zu denken und die Sinn­lichkeit… in einem notwendigen Widerspruch mit der
Vernunft vorzustellen. Eine solche Vorstellungsart liegt zwar auf keine Weise
im Geiste des Kantischen Systems, aber im Buchstaben desselben könnte sie
gar wohl liegen.» Schiller, Über die ästhetische Erziehung des Menschen, 13. Brief,
Sämtliche Werke, WBG, Darmstadt, Bd. 5, 607­‑608.
2
  Entre as excepções, v. Karl Vorländer, Kant­‑Schiller­‑Goethe. Gesammelte
Aufsätze, Verlag der Dürr’schen Buchhandlung, Leipzig, 1907 (reimpr. da
2.a ed. de Leipzig, 1923, pela Scientia Verlag, Aalen, 1984). Citamos a obra pela
1.a ed. Os ensaios sobre as relações pessoais e filosóficas entre Schiller e Kant
haviam sido publicados nos Philosophische Monatshefte, vol. xxx (1894). V. ainda
Hans Reiner, Duty and Inclination: The Fundamental of Morality Discussed and
­Redefined with special Regard to Kant and Schiller, Haia, 1983; Birgit Recki, Ästhetik
der ­Sitten. Die Affinität von ästhetischem Gefühl und praktischer Vernunft bei Kant,
Vittorio Klostermann, Frankfurt a. M., 2001.

229

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matéria, não considero de todo inútil o esforço para tentar ver a re‑
lação entre os dois pensadores também pelo lado de Kant.
Schiller ocupou­‑se de Kant muito antes que este se tivesse
ocupa­do de Schiller. E o primeiro interesse do poeta e dramaturgo
pela filosofia kantiana orientou­‑se para um dos considerados escri‑
tos menores do professor de Königsberg, o ensaio de 1784, Ideia para
Uma História Universal de Um Ponto de Vista Cosmopolita. Sabemo­‑lo
por uma carta do próprio a Körner, de 29 de Agosto de 1787, onde
confessa que foi esse ensaio que o moveu a interessar­‑se cada vez
mais pelo pensa­mento de Kant. Este testemunho é confirmado por
uma posterior carta de Reinhold a Kant, de 14 de Junho de 1789, na
qual o professor de filosofia de Jena, discípulo, destacado intérprete
e divulgador do pensamento kantiano, dá conta ao autor da Crítica
da Razão Pura de que o seu novo colega na universidade se propu‑
nha elaborar uma História Universal de acordo com o plano deline‑
ado por Kant no citado ensaio de 84 e que já começara mesmo a dar
as suas lições segundo esse plano 3.
Embora Schiller fosse por essa época já bem conhecido pela sua
obra dra­mática e poética, talvez tenha sido esta a primeira vez que
Kant ouviu falar dele. O convívio com Reinhold, em Jena, deverá ter
proporcionado ao poeta e dramaturgo a oportunidade para desen‑
volver um conhecimento mais aprofundado da filosofia kantiana.
Mas esse conhecimento nunca foi muito longe nas questões da filo‑
sofia teorética, relativamente às quais Schiller, como muitos outros
seus contemporâ­neos, confessava a sua dificuldade de nelas entrar.
Decisiva vai ser, porém, a partir de 1791, a leitura da Crítica do Juízo,
sobretudo da primeira parte, dedicada ao juízo estético. Nesta obra
pôde ele encontrar uma substancial afinidade entre as ideias de
Kant e as suas próprias intuições e preocupações de poeta, tal como,
por outro lado, também Goethe viria a reconhecer a afinidade entre
a sua própria visão do mundo de artista e naturalista e as ideias
expostas por Kant na sua terceira Crí­tica. Com a diferença, porém,
de que enquanto Schiller vai explorar os temas esté­ticos e as anolo‑
gias entre a estética e a moral, entre a liberdade moral e a liberdade

  «Die Universalgeschichte die er schaffen wird, ist nach ihrem Plan


3

angelegt, den er mit einer Reinheit und einem Feuer auffasste, die mir ihn noch
einmal so theuere machten. Er hat bereits seine Vorlesungen angefangen mit
einem Beyfall den hier noch keiner vielleicht in diesem Grade gefunden hat. Er
hat mich gebethen seine Person unter ihren warmsten und innigsten Verehren
zu nennen.» Kant’s Briefwechsel, Ak XI, 62.

230

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da aparência estética, assim formulando a sua concepção da dimen‑
são estética da própria moralidade, Goethe, por seu turno, vai sentir­
‑se estimulado sobretudo pela segunda parte da obra dedicada ao
juízo teleológico e pelas sugestivas analogias entre a arte e a nature‑
za que nessa obra são propostas.
Ao ler a Crítica do Juízo, Schiller podia sentir que muitas das
ideias desen­volvidas pelo velho filósofo vinham ao encontro das
suas próprias intuições, como se Kant lhe proporcionasse a instru‑
mentação categorial para ele próprio elaborar reflexivamente os te‑
mas que já havia exposto sob a forma poética, em particular no lon‑
go poema «Os Artistas» (1789). E a consolidação e maturação do
pensamento estético de Schiller vai dar­‑se ao longo da década de 90
em grande medida como uma explicitação das suas próprias intui‑
ções estéticas originais, mas com os princí­pios e instrumentos
­kantianos. Entre essas intuições — algumas das quais também en‑
contravam eco explícito na primeira parte da terceira Crítica de Kant
— contam­‑se: o significado antropológico da arte e o humanismo de
feição estética que tra­duz a real condição do homem enquanto ser
racional que é simultaneamente sensí­vel 4, o reconhecimento dos di‑
reitos (pela respectiva legitimação transcendental) do sentimento e
da sensibilidade, do belo e do sublime, a função mediadora da arte
e do juízo estético entre a natureza e a liberdade, a ideia de espon­
tânea concordância e harmonia entre as faculdades do espírito
­(imaginação e entendimento, imaginação e razão) descrita em ter‑
mos de «livre jogo», enfim a ideia da «plena humanidade» (vollende‑
te ­Menschheit) subentendida em Kant na visão orgânica do sistema
das faculdades do espírito.
Schiller deu a essa elaboração das suas intuições e convicções
pessoais, com os instrumentos e os pressupostos não só da filosofia
estética mas também da filo­sofia moral kantiana, que expressamen‑
te aceitava, uma feição muito própria, não apenas no estilo ou na
estratégia de exposição, como também no enquadramento espe­
culativo. Destaca­‑se nele uma extraordinária capacidade para aten‑
der ao domí­nio da psicologia concreta dos humanos e à inscrição
dos princípios morais nessa psicologia antropológica, para equacio‑
nar não apenas a formulação objectiva dos princípios mas também

  A afirmação de Kant, segundo a qual «Kunst [gilt] nur für Menschen»


4

(Kritik der Urteilskraft, Ak V, 210) como que responde ao verso do referido poe­
ma de Schiller: «Die Kunst oh Mensch hast du allein!»

231

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a dimensão subjectiva da sua aceitação por seres humanos con­cretos
e da sua aplicação e vivência efectivas. Daí uma sua muito ­peculiar
resistência à ideia de ter de sacrificar incondicionalmente nas aras
do dever e da lei moral da razão tudo quanto se referisse ao domínio
do sentimento, da afectividade e da sensibilidade, dimensões estas
que considerava deverem antes entrar na efec­tiva realização da hu‑
manidade completa, que é, em última instância, o verdadeiro fim da
perfeição moral humana. Neste sentido, pode dizer­‑se que Schiller
não ape­nas desenvolve intuições próprias com os instrumentos
kantianos ou em confronto com eles, mas também que, fazendo isso,
por assim dizer obriga a filosofia kan­tiana a explicitar as perspecti‑
vas que a terceira Crítica deixava abertas para uma reapreciação or‑
gânica de toda a filosofia moral kantiana. Para glosar uma expres­
são que é do próprio Schiller, este teve de ir além da (ou até contra
a) letra de Kant, mas para melhor apreender e revelar o verdadeiro
espírito da filosofia kantiana.
Mas, apesar da sua dívida em relação a Kant, mesmo em doutri‑
na estética, Schiller sustenta teses próprias, marcadas pela preocupa‑
ção de salvar, frente ao subjectivismo estético kantiano, ao mesmo
tempo a dimensão objectiva e a condi­ção sensível da beleza. Numa
carta a Körner de 25 de Janeiro de 1793, propõe uma tipologia das
doutrinas estéticas obtida por combinação cruzada dos adjectivos
subjectivo/objectivo e racional/sensível, e classifica a sua própria
teoria do belo como «objectiva sensível» (sinnlich objektiv), a de Kant
como «racional subjec­tiva» (subjektiv rational), a de Baumgarten como
«objectiva racional» (rational objektiv), a de Burke como «subjectiva
sensível» (sinnlich subjektiv). E propõe uma definição da beleza cons‑
truída sobre a analogia da estética com a moral, da espontaneidade
estética com a liberdade moral, ou seja com a forma da razão prá­tica,
afirmando que «a beleza não é mais do que a liberdade na aparên‑
cia» (Schö­nheit also ist nichts anders als Freiheit in der Erscheinung) 5.
Kant vira no belo o símbolo da moralidade. Schiller vai um
pouco mais longe e vê beleza na própria moralidade. Esta nuance
não é de pouco significado, pois ela permite precisamente reconhe‑
cer já no mundo da aparência sensível, regido pela imaginação, as
características do mundo moral, regido pela razão e, por conseguin‑
te, pode­‑se abandonar a linguagem kantiana da oposição entre a
razão e a sensibilidade para adoptar a da reconciliação entre os dois

5
  Carta a Körner, 25 de Janeiro de 1793, Kallias, SW, V, 400.

232

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planos. Kant afirmava que a liberdade é própria do mundo moral e
que o belo é o símbolo do bem moral e o que com isso fazia era indi‑
car a sub­‑reptícia presença da moral ou do mundo supra­‑sensível
no próprio juízo estético. Ao afirmar, embora por analogia e apenas
sob a forma da aparência, a liberdade do e no mundo sensível, Schil‑
ler não só reconhece a capacidade da sensibilidade e do que dela
releva para ser ingrediente e veículo do mundo moral, como tende
a sublinhar a dimensão estética ou sensível e afectiva da própria
moralidade.

2. Um dos primeiros ensaios de Schiller onde é já reconhecível


o impacte das ideias éticas e estéticas kantianas é também aquele
onde se expõe com toda a clareza o que distingue os dois pensado‑
res. Aparece aí em toda a evidência a pers­pectiva do filósofo esteta
em confronto com a do filósofo moralista. O ensaio, publicado no
3.o número da revista Thalia e intitulado «Über Anmut und Würde»
(«Sobre graciosidade e dignidade»), abre com a evocação da fábula
grega que atribui à deusa da beleza (Vénus) um cinto que possui a
faculdade de conceder a quem o leva a graciosidade e o amor e lhe
dá por companhia as Graças. Explorando filoso­ficamente a alegoria
contida na fábula, Schiller quer mostrar que os Gregos conce­biam
como sendo coisas distintas a beleza (Schönheit) e a graça ou gracio‑
sidade (Anmut) e que, se toda a graciosidade é bela, nem toda a
­beleza é graciosa. Tenta assim separar a graciosidade da beleza e
deixar a primeira livre para poder ser um atributo não só do que é
menos belo como até do que não é belo. A graciosidade é o elemento
subjectivo da beleza, aquilo que nesta não releva da natureza ou do
objecto, mas é a parte do sujeito. A graciosidade (Anmut) pode pois
acompanhar também o carácter moral do homem. Ela é mesmo a
expressão ao nível fenoménico da reconciliação ou da harmonia da
sensibilidade e da razão, da inclinação e do dever que caracterizam
a «bela alma».
O ensaio desenvolve uma visão estética da moralidade, onde o
dever e a lei da razão prática perdem a sua aparência tirânica e
opressiva sobre a sensibilidade e as inclinações naturais e se deixam
ver antes sob o aspecto positivo da afirmação da liberdade e
­autonomia humanas, em que as faculdades do homem — razão e
sen­sibilidade, dever e inclinação — se unem numa personalidade
harmoniosa. Segundo Schiller, o ser humano é unidade de raciona‑
lidade e sensibilidade e não tem o direito de contrapor ou de sacri‑
ficar uma à outra. A relação entre razão e sensibili­dade não deve ser
de domínio ou de opressão, mas de reconciliação (Versöhnung) e de

233

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harmonia. É neste contexto que surge a referência à filosofia moral
de Kant e o reparo crítico quanto ao modo duro como esta é apre‑
sentada pelo seu autor. Schil­ler declara­‑se de acordo com os princí‑
pios objectivos da moralidade ditados pela razão prática. Mas tenta
conciliar o sentido objectivo da lei pura da razão com a atenção dada
à dimensão subjectiva da sua efectiva eficácia nos seres humanos.
Diz estar de acordo com os rigoristas da moral, mas querer defender
também, no campo do fenómeno e na execução real do dever moral,
as exigências da sensibili­dade (Ansprüche der Sinnlichkeit) que são
completamente rejeitadas no campo da razão pura e da legislação
moral. Na verdade, o filósofo­‑esteta advoga duas causas, que não
quer todavia reconhecer como antagónicas, mas como sendo real‑
mente reconciliáveis. Ouçamo­‑lo:

Do mesmo modo que estou de facto convencido — e


precisamente porque o estou — de que a participação da
inclinação [Neigung] numa acção livre nada prova quanto à
mera conformidade com o dever da mesma acção, creio po‑
der deduzir precisamente a partir disso que a perfeição éti‑
ca do ser humano só pode tornar­‑se clara a partir da parti‑
cipação da sua inclinação na sua acção moral. O ser humano
não é destinado para executar acções éticas isoladas, mas
para ser um ente ético [sittliches Wesen]. O que lhe está pres‑
crito não são virtudes, mas a virtude, e a virtude nada mais
é  do que «uma inclinação para o dever» [Neigung zu der
­Pflicht]. Por mais, pois, que as acções executadas por incli‑
nação e as que são cumpridas por dever se encontrem em
campos opostos no sentido objectivo, tal não acontece no
sentido subjectivo, e o ser humano não só pode mas deve
fazer com que o prazer e o dever entrem em ligação [Lust
und Pflicht in Verbindung bringen]; deve obedecer à sua ra‑
zão com alegria [er soll seiner Vernunft mit Freuden gehor‑
chen]. Não para que ele a deite fora como uma carga [Last],
ou para que a rejeite como um invólucro tosco, não, mas
sim para que ele a combine da maneira mais íntima com o
seu ser próprio mais elevado [mit seinem höhern Selbst], foi
associada uma natureza sensível à sua pura natureza espi­
ritual. Já pelo facto de a natureza o ter tornado num ser ra‑
cional e sensível, i. e., num homem, ela anunciou­‑lhe a obri‑
gação de não separar o que ela juntou, não deixando para
trás a parte sensível mesmo nas mais puras expressões da
sua parte divina, nem baseando o triunfo de uma na opres‑

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são [Unterdrückung] da outra. Só quando surge o efeito uni‑
ficado de ambos os princípios a partir da sua humanidade
completa [aus seiner gesamten Menschheit], quando ela se tornou
para ele natureza [wenn sie ihm zur Natur geworden ist], é que
a sua maneira ética de pensar [sittliche Denkart] se encontra
protegida, pois enquanto o espírito ético [sittliche Geist]
usar ainda de vio­lência [Gewalt], o impulso natural [Natur‑
trieb] terá ainda poder [Macht] para se lhe opôr. O inimigo
que foi apenas derrubado [niedergeworfene] pode levantar­‑se
de novo, mas o inimigo reconciliado [versöhnte] encontra­‑se
verdadeiramente ven­cido. 6

É no seguimento desta luminosa página que vem todo um pa‑


rágrafo crítico sobre a filosofia moral kantiana. Nestes termos:

Na filosofia moral kantiana a ideia do dever é apresen‑


tada com uma dureza que assusta todas as Graças e pode
facilmente induzir um fraco entendimento a procurar a
perfeição moral pela via de um ascetismo sinistro e monás‑
tico [ist die Idee der Pflicht mit einer Härte vorgetragen, die alle
Grazien davon zurückschreckt und einen schwachen Verstand
leicht versuchen könnte, auf dem Wege einer finstern und mön‑
chischen Asketik die moralische Vollkommenheit zu suchen]. Por
mais que o grande filósofo [Weltweise] tenha tentado evitar
esta interpretação errónea, que deve precisamente ser a que
mais indigna o seu espírito sereno e livre, foi ele próprio,
segundo penso, que deu para isso uma forte ocasião (em‑
bora, tendo em conta a sua intenção, talvez dificilmente
evitável), ao opor de modo rigoroso e nítido ambos os prin‑
cípios que actuam sobre a vontade do ser humano. Acerca
da coisa mesma, depois das provas por ele aduzidas, já não
pode haver discussão entre cabeças pen­santes que querem
convencer­‑se, e eu mal saberia encontrar alternativa a uma
com­pleta renúncia à condição humana se quisesse obter
outro resultado por parte da razão. Mas quanto mais puro
foi o modo como ele empreendeu a investigação da verda‑

  F. Schiller, «Sobre graciosidade e dignidade», in Textos sobre o Belo, o Su‑


6

blime e o Trágico, trad., introd., comentário e glossário de Teresa Cadete, IN­CM,


Lisboa, 1997, pp. 121­‑122.

235

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de, e por muito que tudo aqui se explique a partir de fun‑
damentos meramente objectivos, porém, na apresentação
da verdade encontrada, ele parece ter sido guiado por uma
máxima mais subjectiva que, como creio, não é difícil de
explicar a partir das condições epocais.

No parágrafo seguinte, Schiller tenta compreender e desculpar


o modo de exposição de Kant como resposta à situação da filosofia
moral e da prática moral do seu tempo:

Ele dirigiu portanto a mais poderosa força dos seus


fundamentos para onde o perigo era mais declarado e a
reforma mais urgente, fazendo lei da intenção de per­seguir
sem tréguas a sensibilidade, tanto nas situações em que
esta escarnece atrevi­damente do sentimento ético como na
capa imponente de fins moralmente louváveis, nos quais
um certo espírito entusiástico de confraria sabe perfeita‑
mente como escondê­‑la. Ele não tinha de ensinar a ignorân‑
cia mas de corrigir a perversão. A cura exigia um choque,
não insinuação ou persuasão; e quanto mais duro fosse o
golpe feito pelo princípio da verdade às máximas domi‑
nantes, maior podia ser a sua expectativa de despertar uma
reflexão acerca disso. Ele foi o Drácon da sua época, uma
vez que ela não lhe pareceu ainda digna de um Sólon nem
receptiva ao mesmo. Ao santuário da razão pura ele foi
buscar a lei moral, estranha e contudo tão conhe­cida,
expondo­‑a em toda a sua sacralidade perante o degradado
século e não inda­gando se não haveria olhares que não su‑
portariam o seu fulgor.

Mas se compreende a oportunidade e necessidade da terapia de


choque prati­cada pelo filósofo da razão prática, Schiller insiste na
sua ideia de reconciliar entre si as faculdades do homem, como uma
exigência da própria moralidade e até mesmo em proveito desta.
Diz ele:

Não é certamente vantajoso para as verdades morais


que o ser humano tenha contra si próprio sentimentos que
não pode confessar­‑se sem corar. Como deverão porém
os sentimentos de beleza e liberdade ser compatíveis com
o espírito austero de uma lei que o guia mais por receio
­[Furcht] do que por confiança [Zuversicht], que tende a

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separá­‑lo [vereinzeln], a ele que a natureza contudo unificou
[­ vereinigte], só asse­gurando o domínio sobre uma parte do
seu ser ao causar desconfiança em relação à outra? A natu‑
reza humana é na realidade um todo mais unido [verbun‑
deneres Ganze] do que é permitido ao filósofo, que só con‑
segue alguma coisa mediante o separar [Trennen], fazer
com que ela o pareça. A razão nunca pode rejeitar, como
sendo indignos dela, afectos [Affekte] que o coração reco‑
nhece com alegria [Freu­digkeit], não podendo o ser huma‑
no subir no respeito por si próprio em situações em que se
afunde moralmente. Se a natureza sensível sempre fosse
apenas a parte opri­mida no ético [im Sittlichen], e nunca a
parte colaborante [mitwirkende], como poderia ela dar o
fogo dos seus sentimentos [Gefühle] a um triunfo celebra‑
do sobre ela mesma? Como poderia ser uma participante
tão viva na autoconsciência do espí­rito puro, se nunca pu‑
desse por fim associar­‑se a ele de maneira tão íntima que
nem o entendimento analítico é capaz de separá­‑la dele
sem exercer violência? 7

A estratégia proposta por Schiller consiste em tratar a sensibili‑


dade como se ela fosse cúmplice e não inimiga da moralidade.
A  sensibilidade, ao contrário do que parece acontecer na filosofia
moral kantiana, não é algo para ser vencido e oprimido pela razão,
mas algo a ser atraído pela razão e para o próprio projecto desta.
Em suma, na sua crítica, Schiller:

1.o Declara o seu pleno acordo com Kant nos princípios,


mas o desacordo quanto à forma da respectiva apresen‑
tação. Segundo ele, a moral kantiana não só suporta
como até exige, segundo o seu genuíno espírito, uma
forma de exposição muito diferente da proposta pelo
seu autor, que seja capaz de a incutir nos ânimos em vez
de os afastar dela ou os induzir a fazer dela uma carica‑
tura. Já aqui Schiller se propõe distinguir o espírito da
filosofia moral kantiana da sua letra, no que insistirá a
l3.a Carta sobre a educação estética, onde também se tra‑
ta do entendi­mento das relações entre razão e sensibili‑

7
  Ibidem, pp. 122­‑123.

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dade, entre a forma e a matéria. Segundo o reparo do
filósofo­‑esteta, a letra da filosofia moral kantiana trai o
seu genuíno espírito (com o qual Schiller se reconhece
em plena consonância) e, por conse­guinte, a crítica visa
obrigar a filosofia moral de Kant a ser coerente consigo
mesma também na sua letra;
2.o Manifesta até compreensão pela estratégia de Kant, jus‑
tificada pelas cir­cunstâncias, como terapêutica adequa‑
da à doença duma época em que a degradação dos cos‑
tumes era ainda apoiada pela perversão das doutrinas
morais dos filósofos inspiradas pelo sensualismo e pelo
materialismo;
3.o Acusa, todavia, o manifesto exagero da forma e do modo
de apresentação, o qual pode perverter o próprio conteú­
do objectivo e assim se volta contra a inten­ção do médi‑
co moral que aplicara draconianamente o seu antídoto
contra a doença moral do século. Em vez de uma estra‑
tégia negativa — que oprima o homem, o assuste e afas‑
te ou o torne inimigo de si próprio e dividido contra si
mesmo —, Schiller propõe uma estratégia positiva que o
faça reconhecer e experimentar a grandeza e sublimida‑
de da sua condição que não é a de um servo mas a de um
ser livre, que o faça sentir e saborear a autonomia e a li‑
berdade, que é precisamente o que constitui e funda a
sua natureza moral;
4.o Enuncia com firmeza os seus próprios princípios filosó­
fico­‑antropo­ló­gicos, no centro dos quais se encontra a
ideia da unidade do homem que se alcança não pela
contraposição mas pela reconciliação (Versöhnung) dos
dois princípios da sua natureza. Em vez de opor a sensi‑
bilidade à razão como inimiga desta, trata­‑se de atraí­‑la
para ela se tornar colaboradora da razão. Assim se pode
realizar a «plena humanidade» (vollendete Menschheit) a
que a natureza destina o homem, um ideal que o poeta­
‑filósofo traduz na sua noção de «bela alma» (schöne
­Seele): «Chama­‑se uma bela alma àquela em que o senti‑
mento ético de todas as sensações do homem acabou
por atingir um grau de segurança que permite àquele
confiar sem reservas ao afecto a direcção da vontade,
nunca correndo o perigo de entrar em con­tradição com
as decisões do ­mesmo. É portanto numa bela alma que
sensibilidade e razão, dever e inclinação estão em har‑

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monia, sendo a graça [Grazie] a sua expres­são ao nível
da aparência. Só ao serviço de uma bela alma é que a
natureza pode em simultâneo ter liberdade e conservar
a sua forma, uma vez que perde a primeira sob o domí‑
nio de um ânimo rigoroso e a última sob a anar­quia da
sensibilidade.» 8

Na bela alma, a virtude — o cumprimento do dever — deixa de


ser sentida como obrigação e torna­‑se espontânea, como se fosse
natureza e não luta contra a natureza. A natureza reconcilia­‑se assim
com a liberdade, e a liberdade tal como a natureza revelam­‑se como
pura espontaneidade. A virtude não só pode como tem de deixar­‑se
acompanhar pelas Graças.

3. Kant terá tido conhecimento da crítica de Schiller por uma


carta que lhe foi escrita por Johann Erich Biester, a 5 de Outubro de
1793, na qual se exprime o desejo de que o autor do ensaio sobre o
«mal radical» na natureza humana, que acabara de ser publicado na
Berlinische Monatschrift (Setembro de 93), preste atenção ao que
Schiller havia escrito «com muita delicadeza» (recht speciös) sobre o
seu sistema moral, a saber que «nele se faz ouvir a dura voz do de‑
ver sendo dada muito pouca atenção à inclinação». 9
Com raras excepções, Kant não tinha por costume responder
directamente às críticas que eram feitas às suas ideias. 10 Mas numa
nota à segunda edição da sua obra Die Religion innerhalb der Grenzen
der blossen Vernunft (1794), a propósito do primeiro ensaio, onde
contrapõe os rigoristas e os latitudinários em doutrina moral, res‑
ponde directamente a Schiller, nestes termos:

No seu ensaio «Sobre graciosidade e dignidade» (Tha‑


lia, 1793, n.o 3), escrito com mão de mestre, o Senhor Profes‑
sor Schiller desaprova esta maneira de representar o carác‑
ter obrigatório na Moral, como se ela comportasse uma
disposição de espírito à maneira da Cartuxa [eine Kartäuse­r­
artige Gemüthsstimmung]; mas, dado que estamos de acordo

  Ibidem, p. 124.
8

  Ak XI, 456­‑457.
9

10
  Algumas excepções notáveis: a Tissel (88), a Garve (93), a Constant (97)
e a Schiller (93).

239

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nos princípios mais importantes, eu posso registar que não
existe nenhum desacordo também neste ponto, desde que
nos tornemos inteligíveis um ao outro. Eu confesso de bom
grado que não associo nenhuma graciosidade [Anmuth] ao
conceito do dever precisamente devido à sua dignidade [Wür‑
de]. Pois ele contém incondicional obrigação, com o que a
graça está em directa contradição. A majestade da lei (tal
como no Sinai) provoca temor reverencial [Ehrfurcht] (não
medo [Scheu], que repele, e tam­bém não o encanto [Reiz],
que convida à confiança [Zuverzicht]), que desperta o res­
peito [Achtung] do subordinado frente ao seu soberano, nes‑
te caso, porém, uma vez que este reside em nós mesmos,
desperta um sentimento do sublime [Gefühl des Erha­benen] da
nossa própria destinação, que nos arrebata mais do que
todo o belo.
Mas a virtude, isto é a disposição firmemente funda‑
mentada de cumprir o seu dever escrupulosamente, é nas
suas consequências também bemfazeja, mais do que tudo
aquilo que a natureza ou a arte no mundo possa propor‑
cionar; e a magnífica ima­gem da humanidade [herrliche
Bild der Menschheit] apresentada nesta sua forma, con­sente
por certo bem o acompanhamento das Graças, as quais,
­porém, se se fala ainda apenas de dever, se mantêm a
uma  respeitosa distância. Mas se se atender às graciosas
[anmüthigen] consequências que a virtude espalharia no
mundo se alguma vez nele encontrasse entrada geral, en‑
tão a razão moralmente orientada poria em jogo a sensibi­
lidade (mediante a imaginação). Só depois de dominados
os monstros Hércules se torna Musageta, perante cujo tra‑
balho aquelas boas irmãs recuam. Estas companheiras da
Vénus Urania tornam­‑se irmãs cortesãs em companhia da
Vénus Dione, logo que se imiscuem na tarefa da determi‑
nação do dever e querem dar os motivos [Triebfedern] para
isso.
Mas se agora se perguntar: qual é a condição [Beschaffen­
heit] estética, ou o tem­peramento da virtude, se é corajoso e
portanto alegre [muthig, mithin fröhlich] ou se é angustiada‑
mente deprimido e abatido [ängstlich­‑gebeugt und niederges‑
chlagen]? então quase não é necessária uma resposta. Esta
última servil disposição de espírito nunca pode dar­‑se sem
um oculto ódio da lei e o coração alegre [fröhliche Herz] no
cumpri­mento [Befolgung] do seu dever (não a agradabili‑

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dade no reconhecimento [Anerken­nung] do mesmo) é um
sinal da autenticidade de uma disposição virtuosa [Ächtheit
tugendhafter Gesinnung], mesmo na religiosidade [Frömmig­
keit], que não consiste na auto­‑mortificação do pecador pe‑
nitente (a qual é muito ambígua e comummente con­siste
apenas numa censura interior por se ter transgredido a re‑
gra da prudência), mas no firme propósito de fazer melhor
futuramente, o que, excitado pela boa continuação, tem de
provocar uma alegre disposição do espírito sem a qual
nunca se teria a certeza de também nos afeiçoarmos ao bem
[das Gute auch lieb gewonnen], isto é de o termos acolhido na
nossa máxima. 11

A resposta de Kant é interessante a vários níveis. O primeiro


aspecto que importa destacar é que ela se coloca no mesmo registo
e ambiente em que Schiller se colocara: ou seja, num ambiente e re‑
gisto estéticos, respondendo com uma fábula a outra fábula. Schiller
glosara a fábula da deusa da beleza com o seu cinto de graciosidade
e o seu cortejo de deusas graciosas. Kant responde­‑lhe glosando a
fábula de Hércules, aquela em que o herói tem de escolher entre a
virtude e o pra­zer e só depois de ter passado pelos ingentes traba‑
lhos consente a companhia das Graças.
Kant não vê qualquer divergência entre a sua própria tese e a de
Schiller, nem no fundo nem na forma, considerando que a aparente
divergência se dissolve com um mero esclarecimento mútuo. Isto
significa que aceita o princípio de Schil­ler de que a vida moral deve
mobilizar também as energias sensíveis do homem e exprimir­‑se
nelas. Insiste todavia em afirmar incondicionalmente o princípio do
dever e de tal modo que na sua determinação objectiva não deve
entrar a inclinação ou o factor do prazer, mas apenas a razão prática
legisladora. Admite, porém, que no plano subjectivo — isto é, do
ponto de vista do sujeito que age moralmente ­—, a dimensão estéti‑
ca não só pode estar como deve mesmo estar presente.
A lei moral e o conceito do dever não estão para Kant tanto do
lado da graça (Anmut) quando da dignidade (Würde). Neles não
fala  a beleza ou o encanto, mas a sublimidade (Erhabenheit). Por
isso, na sua majestade, eles suscitam o respeito (Achtung), mas não

11
  Immanuel Kant, Die Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft,
Ak VI, 23­‑24.

241

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convidam propriamente à confiança (Zuversicht). Por conse­guinte,
se há uma estética da moralidade — na sua pura manifestação ob‑
jectiva na razão prática — ela está mais do lado do sublime do que
do lado da beleza. E Kant evoca aqui muito discretamente um im‑
portante passo da terceira Crítica, aquele onde compara a revelação
da lei na consciência moral à revelação de Deus a Moi­sés no Sinai e
tece considerações sobre o poderoso efeito — que raia o entusias­
mo — que essa revelação tem sobre o espírito e sobre o tipo de ex‑
posição de que é sus­ceptível 12.
Kant reafirma assim os seus princípios e distingue claramente o
plano objec­tivo do plano subjectivo da moralidade. Se nos coloca‑
mos no plano objectivo, não há aí lugar para mais nada além da
pura representação da lei moral incondicional­mente imperativa.
Mas se nos colocarmos no plano subjectivo do agente moral, no pla‑
no da virtude enquanto intenção constante de cumprir o próprio
dever, aí Kant está de acordo com Schiller, admitindo que a virtude
não só pode como deve mesmo ser acompanhada pela graça, pela
sensibilidade e sentimento. A sensibili­dade e as inclinações não en‑
tram na determinação da vontade, mas nada impede que num espí‑
rito virtuoso a sensibilidade e o sentimento sejam educados ao pon‑
to de acompanharem e darem estímulo a uma vontade moralmente
boa. É essa a lição da fábula: cumprido o dever, domados os mons‑
tros, Hércules consente o prazer ou a felicidade simbolizados pela
companhia das Graças. Há assim, segundo Kant, um «temperamen‑
to da virtude» — um «modo de ser estético» que acompanha o ho‑
mem virtuoso —, e esse temperamento ou modo de ser, longe de ser
sombrio e deprimido, é antes alegre e corajoso.
Por certo, assim como poderíamos perguntar se Schiller terá
compreendido bem o espírito da filosofia moral kantiana, também
caberia perguntar se Kant terá entendido todo o alcance da crítica
de Schiller. Será que, descontado o modo de exposição, o entendi‑
mento e o acordo quanto aos princípios e ao fundo da questão é
mesmo completo entre os dois pensadores? Aparentemente sim.
Kant assim o julgou e nessa convicção é confirmado pela posterior
carta de Schiller, em que este lhe agradece a resposta que se dignou
dar à sua crítica, reiterando­‑lhe também ele o acordo quanto aos
princípios. Em momentos posteriores da obra schilleriana ouvi­mos
ainda os ecos deste encontro do poeta­‑filósofo com a moral ­kantiana.

12
  Kritik der Urteilskraft, Ak V, 274.

242

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Por exemplo, quando, na sua última carta sobre a educação estética,
aludindo à fábula de Hércules, diz que «a força deve deixar­‑se enca‑
dear pelas Graças e o indómito leão tem de ser amansado pelo
Amor» 13; ou ainda quando, na carta imediatamente anterior, res‑
pondendo à questão «Até que ponto tem cabimento a aparência no
mundo moral?», escreve: «terá cabimento na medida em que seja
aparência esté­tica, isto é, uma aparência que não pretende substituir
a realidade, nem necessita que a realidade a substitua. A aparência
estética nunca pode tornar­‑se perigosa para a verdade moral…» 14
Com igual pertinência se poderia perguntar se Kant entendeu
verdadeira­mente o que era visado na crítica de Schiller e se ele teve
razão ao dizer que não havia nenhuma oposição nem de princípio
nem de forma entre ele próprio e o autor do ensaio «Sobre a gracio‑
sidade e a dignidade». Cito, a este propósito, Luigi Parey­son:

Se se olhar bem, Kant não capta verdadeiramente a in‑


tenção de Schiller. Não se deu conta do facto de que Schil‑
ler, na lei moral, mais do que a imperatividade entendida
como oposição à sensibilidade, acentua a autonomia da ra‑
zão e a liberdade da vontade; que Schiller, quando fala do
ideal da humanidade completa, mais do que pensar numa
educação da sensibilidade como necessariamente implícita
no cumpri­mento da lei moral, tem em vista a exigência de
unidade e de totalidade no homem, conseguida pela har‑
monia das suas duas naturezas, a sensível e a racional; que
Schiller, quando fala do carácter jovial e não deprimido da
virtude, refere­‑se sobre­tudo ao facto de que na moralidade,
em vez de deprimir­‑se a sensibilidade do ponto de vista da
racionalidade e da lei imperativa da razão, deve exaltar­‑se,
já do ponto de vista da própria sensibilidade, a racionali­
dade e com ela a vontade livre. À primeira vista, parece
que Kant acolhe todas as instâncias de Schiller e, por certo,
o desenvol­vimento proposto por Schiller não pretendia

13
  «Die Kraft muss sich binden lassen durch die Huldgöttinen und der
trotzige Löwe dem Zaum eines Amors gehorchen.» Briefe, SW, V, 668­‑669.
14
  «Auf die Frage ‘In wie weit darf Schein in der moralischen Welt seyn?’,
ist also die Antwort so kurz als bündig diese: in so weit es ästhetischer Schein
ist, d. h. Schein, der weder Realität vertreten will, noch von derselben vertreten
zu werden braucht. Der ästhetische Schein kann der Wahrheit der Sitten niemals
gefährlich werden…» Briefe, SW, V, 660.

243

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contrapor­‑se à filosofia kantiana, mas apenas corrigir a sua
letra e integrá­‑la no seu espírito. Mas é claro que as
preocupa­ções de um e de outro são diversas e Schiller tem
em mente um ideal de humanidade completa e perfeita que
não pode subsistir senão como um ideal estético. Certa‑
mente Schiller pelo simples facto de apresentar a sua dou‑
trina como conciliável com a de Kant, e mesmo como sendo
o verdadeiro espírito da teoria kantiana, manifesta uma fi‑
delidade a Kant que o leva até a representar a perfeição
humana como residindo na pura moralidade, do que resul‑
tam as suas aparentes oscilações entre este ideal moral kan‑
tiano e o outro ideal puramente estético do homem, que
deriva desta sua primi­tiva exigência de uma harmonia en‑
tre todas as faculdades humanas, igualmente desenvolvi‑
das autonomamente e em equilíbrio no que consiste a ri‑
queza da espiri­tualidade humana. Em todo o caso, a partir
da réplica de Kant pode­‑se facilmente ver onde reside o
fundamental acordo que une e o desacordo que ao mesmo
tempo divide Schiller e Kant: o acordo reside no que se re‑
fere ao ponto de vista da morali­dade, mas o desacordo so‑
brevem porque Schiller se transpõe para um ponto de vista
no qual Kant não se envolveu nem pretendeu envolver­‑se,
o ponto de vista esté­tico. 15

Não estou de pleno acordo com Pareyson. Por certo, há uma


inspiração matricial de origem diferente entre os dois pensadores,
correspondente à diferente formação e programas filosóficos. Num
domina a inspiração moral, nunca abando­nada; no outro, a inspira‑
ção estética. Mas também é certo que se o idealismo moral kantiano
é assumido no idealismo estético de Schiller, assim também se pode
reco­nhecer que o idealismo prático kantiano é fortemente tempera‑
do pelo elemento estético e é­‑o, antes de mais, pelas próprias ideias
de Kant acerca do juízo estético e da solidariedade e parentesco que
este revela ter com o sentimento moral e o modo moral de pensar,
dê­‑se ele como sentimento do belo natural 16 ou da sublimi­dade da
natureza 17.

15
  Luigi Pareyson, L’estetica del idealismo tedesco, Torino, 1950, pp. 226­‑227.
16
  KU, § 42, Ak V, 298­‑299.
17
  KU, § 28, Ak V, 262­‑264.

244

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Neste sentido, até se poderia dizer que Schiller, a seu modo,
obrigou Kant a explicitar as consequências da sua terceira Crítica
para o entendimento da sua filo­sofia moral, nomeadamente no que
respeita à dimensão estética da mesma ou às afinidades nessa obra
recorrentemente sugeridas entre os sentimentos estéticos do belo e
do sublime e o sentimento moral ou a própria moralidade 18. Parece­
‑me que Karl Vorländer entendeu bem o que se passou no encontro
entre os dois pensado­res. Não se deve pensar que Schiller apenas
tratou de adoçar o rigorismo ético de Kant. Mas antes que «ele com‑
preendeu e reconheceu profundamente o rigorismo ético de Kant na
sua necessidade metódica e, pela sua parte, apenas destacou ener­
gicamente e desenvolveu o respectivo complemento estético, que é
compatível com o mais estrito ponto de vista transcendental, mas
que em Kant ficou apenas em germe» 19.

4. Vejamos agora se também nos escritos posteriores de Kant


há algum eco deste fortuito encontro com o pensamento ético­
‑estético de Schiller. Por certo, este não será expressamente nomea­
do, mas Kant passa de facto a dar mais atenção aos aspectos
­estéticos e subjectivos da moralidade, quer no plano pessoal quer
no plano social. Não será a isso indiferente o facto de que o faz em
obras que se colocam não já no plano da fundamentação e da
­clarificação dos princípios mas no plano da aplicação, obras de
resto de matriz didáctica, pois em boa parte recolhem o con­teúdo
dos cursos universitários de Kant sobre Ética e Antropologia, ca‑
bendo naquilo a que Robert B. Louden chamou a «ética impura»
de Kant 20.

18
  V. a obra de Birgit Recki, Ästhetik der Sitten. Die Affinität von ästhetischem
Gefühl und praktischer Vernunft bei Kant, V. Klostermann, Frankfurt a. M., 2001;
Jérome de Gramont, Kant et la question de l’affectivité. Lecture de la troisième
Critique, Vrin, Paris, 1996; Andrews Reath, «Kant’s Theory of Moral Sensibility:
Respect for the Moral Law and the Influence of Inclinations», Kant­‑Studien, 80
(1989), pp. 284­‑302.
19
  «Er hat vielmehr Kants ethischen Rigorismus in seiner methodischen
Notwendigkeit durchaus begriffen und anerkannt und nur dessen ästhetische
Ergänzung, die mit dem strengsten transzendentalen Standpunkt vereinbar ist,
aber bei Kant erst im Keime vorliegt, seinerseits starker hervorgehoben und
weiter ausgebildet.» Karl Vorländer, Kant, Schiller, Goethe, Gesammelte Aufsätze,
Leipzig, 1907 (ed. cit.), p. vi.
20
  Robert B. Louden, Kant’s Impure Ethics, From Rational Beings to Human
Beings, Oxford University Press, Oxford / New York, 2000.

245

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Assim, na introdução à Doutrina da Virtude (1797), todo um pa‑
rágrafo é dedicado a explicitar «as noções estéticas preliminares da
receptividade do espírito ao conceito de dever em geral» (ästhetis‑
cher Vorbegriffe der Empfänglichkeit des Gemüths für Pflichtbegriffe
überhaupt) 21. Trata­‑se de condições subjectivas da recep­tividade para
o conceito do dever, que não estão na base da moralidade como con‑
dições objectivas, mas são predisposições do espírito de tipo estéti‑
co, que devem ser pressupostas como algo natural e preliminar para
que o homem possa ser afectado pelo conceito do dever. Essas pre‑
disposições não podem considerar­‑se como objecto do dever (isto é,
não é um dever tê­‑las), mas têm de ser pressupostas em todo o ser
humano capaz de moralidade. Por outro lado, a consciência destas
predisposições não é de origem empírica, mas nasce da consciência
da lei moral como sendo um efeito desta sobre o espírito. Essas pre‑
disposições subjectivas e estéticas da moralidade são: o sentimento
moral, a consciência moral, o amor ao próximo e o respeito por si
próprio ou auto­‑estima.
Ainda num outro passo da mesma obra, Kant evoca de novo a
«bela fábula de Hércules, que tem de escolher entre a virtude e o
prazer» 22, vendo­‑a como sím­bolo da condição do homem que está
posto numa encruzilhada em que tem que decidir, sendo nele mais
forte a tendência para ceder à inclinação do que para obe­decer à lei
da sua razão. As inclinações — e isso foi algo que talvez Schiller não
tenha entendido completamente — não têm para Kant um aspecto
meramente nega­tivo. Ou antes, nelas se revela toda a força positiva
do negativo, que é o que dá ten­são e grandeza à vida moral do
­homem virtuoso, o qual só pode tornar­‑se consciente da sua força
humana na luta com as suas próprias tendências. Se estas não exis‑
tissem ou fossem por fim silenciadas, como no ideal schilleriano da
«bela alma», a vida moral do homem perderia o seu interesse, pois
não teria mais nada que lhe oferecesse resistência. O próprio Schil‑
ler, em ensaio posterior, acaba por reconhecer isso quando escreve:

É inteiramente correcto dizer que a verdadeira morali‑


dade só se afirma na escola da adversidade, e que uma feli‑
cidade constante facilmente se torna num escolho para a
virtude… O ser humano que é ininterruptamente feliz nun‑

21
  Metaph. der Sitten, Tugendlehre, Ak VI, 399 e segs.
22
  Ibidem, Ak VI, 380.

246

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ca encara de frente o dever, uma vez que as suas inclina‑
ções, conformes às leis e ordenadas, sempre ante­cipam o
comando da razão e nenhuma tentação de violar a lei lhe
lembra a existên­cia da lei. Governado apenas pelo sentido
da beleza… ele irá para o túmulo sem ter experimentado a
dignidade da sua destinação [Würde seiner Bestimmung].
O  infeliz, em contrapartida, se for simultaneamente um
ser virtuoso, goza do sublime privilégio de privar directa‑
mente com a divina majestade da lei [göttlichen Majestät des
­Gesetzes] e, uma vez que a sua virtude não é apoiada por
nenhuma inclinação, de demonstrar ainda enquanto ho‑
mem a liberdade do divino [Freiheit des Dämons]. 23

Estas palavras surpreendem vindas do filósofo da «bela alma».


Terá ele aprendido a lição de Kant também neste ponto? Kant, efec‑
tivamente, tem da vida moral humana uma visão dramática e herói‑
ca, concebendo­‑a como uma luta inte­rior do homem consigo mesmo
nunca plenamente resolvida. O homem virtuoso nunca será defini‑
tivamente santo. A figura de Hércules é a própria expressão desta
condição moral do homem, que tem de lutar permanentemente com
os monstros que residem na sua própria natureza, e não apenas com
os que provêm da sua natu­reza sensível e das suas inclinações, mas
também e talvez mais ainda com os que provêm, embora de um
modo incompreensível, da sua natureza racional e da sua própria
liberdade, nas quais se aninha um «mal radical» dificilmente extir‑
pável.
No § 53 da Doutrina da Virtude, Kant aborda o tema da ascética
ética, redu­zindo as regras para exercitar a virtude a duas dispo­
sições do ânimo: ser corajoso e jovial (wackeren und fröhlichen Ge‑
müths), o animus strenuus et hilaris no cum­primento dos próprios
deveres. E,  no seguimento, propõe uma conciliação do pro­grama
estóico — da virtude como exercício vigoroso, corajoso e galhardo
— e do programa epicurista de uma fruição alegre da própria vida,
aliando assim a virtude e o prazer. Escreve Kant:

Para vencer os obstáculos com que tem de lutar, a vir‑


tude há­‑de reunir todas as suas forças e, ao mesmo tempo,

23
  F. Schiller, Über die notwendige Grenzen beim Gebrauch schöner Formen,
Sämtliche Werke, WBG, Darmstadt, 1989, Band V, 693.

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sacrificar muitas das alegrias da vida, cuja perda pode às
vezes tornar o ânimo sombrio e lamuriento [finstern und
mürrisch]; mas aquilo que não se faz com prazer mas uni‑
camente como um serviço escravo [Frohn­dienst] não tem
valor intrínseco para aquele que desse modo obedece ao
seu dever mas não o ama, evitando, ao invés, na medida
do possível, a ocasião para a sua prá­tica. O cultivo da vir‑
tude, isto é, a ascética moral, tem como princípio o exercí‑
cio da virtude, exercício vigoroso, corajoso e galhardo, a
divisa dos estóicos: habitua­‑te a suportar os males ocasio‑
nais da vida e também a prescindir das comodidades
supér­fluas (assuesce incomodis et desuesce commoditatibus vi‑
tae). Manter­‑se moralmente são é para o homem uma for‑
ma de dietética. Mas a saúde é só um bem­‑estar nega­tivo,
não podendo ela ser sentida em si própria. É necessário
acrescentar algo que proporcione uma fruição agradável
da vida e que seja, no entanto, unicamente moral. Esse
algo é, na ideia do virtuoso Epicuro, o coração permanen‑
temente alegre [jeder­zeit fröhliche Herz in der Idee des tugend­
haften Epikurs… sich in eine fröhliche Gemüthsstimmung zu
versetzen und sie habituell zu machen…]. Em contrapartida,
a ascese monástica que se entrega à autopunição e à mor‑
tificação da carne, não está dirigida à virtude mas sim à
expiação fanática do pecado …. e uma tal punição…. não
pode produzir a jovialidade que acompanha a virtude
[Frohsinn, der die Tugend begleitet], antes não tendo lugar
sem um secreto ódio contra o mandamento da virtude.
A ginástica ética consiste, portanto, na luta contra os im‑
pulsos naturais até os dominar nos casos em que é posta
em perigo a moralidade; por conseguinte, ela torna o ho‑
mem corajoso e jovial [wacker und fröh­lich], graças à cons‑
ciência de ter reconquistado a sua liberdade… A disciplina
­[Zucht] que o homem impõe a si próprio só pode tornar­‑se
meritória e exemplar mediante a jovialidade [Frohsinn]
que a acompanha.

Mas a dimensão estética da moralidade revela­‑se também no


plano das vir­tudes da convivência social. É este um tópico que en‑
contramos seja na Metafísica dos Costumes seja na Antropologia. No
§ 48 da primeira destas obras, Kant escreve: «É um dever… cultivar
a afabilidade no trato, a tolerância, o amor e res­peito recíprocos
(a cortesia e o decoro, humanitas aesthetica et decorum), asso­ciando,

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assim, as Graças à Virtude» (so der Tugend die Grazien beizugesellen) 24,
o  que parece ser uma evocação da acima citada passagem da
27.a Car­ta de Schiller. E no § 69 da Antropologia lê­‑se: «tornar os ho‑
mens polidos [gesittet] não significa por certo o mesmo que educá­
‑los para serem moralmente bons, mas prepara­‑os para isso, e pode
assim dizer­‑se que o gosto é a moralidade na sua aparência exte­
rior» (könnte man den Geschmack Moralität in der äusseren Erscheinung
nennen) 25. E ainda noutro passo desta mesma obra: «Por insignifi‑
cantes que estas leis da humanidade refinada possam parecer,
sobre­tudo se as comparamos com as puramente morais, ainda as‑
sim tudo aquilo que pro­move a socialidade, mesmo que consista
apenas em máximas ou maneiras do gosto, é de recomendar como
uma vantajosa veste da virtude. O purismo do cínico e a morti­
ficação da carne do anacoreta … são formas desfiguradas da virtu‑
de que a ela não convidam; abandonadas pelas Graças, elas não
podem reivindicar a pretensão à humanidade.» 26 No que também
se pode ouvir o eco das duas últimas Cartas de Schil­ler. E o mesmo
se diga daquele passo onde se diz que «a humanidade tanto mais
civilizada é quanto mais representa» (je zivilisierter, desto mehr
Schauspieler), que evoca não só a associação estabelecida na Crítica
do Juízo entre a beleza e o «jogo das faculdades», mas também a
identificação schilleriana entre beleza e ins­tinto de jogo (Spieltrieb) e
a célebre declaração da 15.a Carta sobre a educação esté­tica, de acor‑
do com a qual «o homem só joga quando é homem na plena acep‑
ção da palavra e ele só é completamente homem quando joga» 27.
Será legítimo pretender ler estes passos das últimas obras de
Kant ainda como um eco do efeito da crítica de Schiller? De modo

24
  Kant, Metaphysik der Sitten, Ak VI, 473.
25
  Kant, Anthropologie in pragmatischer Hinsicht, Ak VII, 244.
26
  «So unbedeutend diese Gesetze der verfeinerten Menschheit auch
scheinen mögen, vornehmlich wenn man sie mit dem reinmoralischen vergleicht,
so ist doch alles, was Geselligkeit befördert, wenn es auch nur in gefallenden
Maximen oder Manieren bestände, ein die Tugend vortheilhaft kleidendes
Gewand, ­welches der letzteren auch in ernsthafter Rücksicht zu empfehlen ist.
— Der Purism des Cynikers und die Fleischestödtung des Anachoreten… sind
verzerrte Gestalten der Tugend und für diese nicht einladend; sondern, von
den Grazien verlassen, können sie auf Humanität nicht Anspruch machen.»
Anthropologie, § 88, Ak VII, 282.
27
  «Der Mensch spielt nur, wo er in voller Bedeutung des Worts Mensch
ist, und er ist da ganz Mensch, wo er spielt.» Schiller, Briefe, SW, V, 618.

249

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algum quero sugerir que haja neles uma influência de Schiller sobre
Kant, mas apenas que neles se prolonga o diálogo entre dois espíri‑
tos cujas órbitas em certo momento passaram muito pró­ximas uma
da outra ou até mesmo se cruzaram. Não há dúvida, porém, de que
Kant revela nos seus últimos escritos uma maior sensibilidade para
a dimensão subjec­tiva da moralidade, sob o ponto de vista estético
do sentimento subjectivo que a acompanha e da sua apresentação
sensível.

5. Na já citada carta de 13 de Junho de 94, Schiller agradece a


Kant a «ben­fazeja luz que acendeu no seu espírito», a atenção que
deu ao seu ensaio e o facto de ter entendido a sua intenção, que não
era a de pôr em causa a sua filosofia moral, mas apenas a de tentar
propô­‑la numa feição mais agradável, de modo a reconciliar com o
rigor do sistema kantiano uma parte considerável do público. Reite‑
ra a sua concordância com os princípios kantianos e formula o con‑
vite para que Kant colabore na nova revista que se propõe fundar e
que coloca à disposição do filósofo como uma tribuna para ele di‑
fundir o seu pensamento a um novo público. Que Schiller esperava
uma resposta positiva de Kant, mostra­‑o a carta a Friedrich von Ho‑
ven de 21 de Novembro de 94, ao qual igualmente anuncia a criação
da nova revista de colaboração com Goethe. «Talvez consigamos
também Kant como colaborador: eu convidei­‑o. Ele respondeu de
forma muito bela ao ataque [Angriff] que eu lhe fiz no meu Anmuth
und Würde e isso pôs­‑me em relação com ele. Depois que estou de
novo em Jena, dediquei­‑me muito à filosofia kantiana e encontro­
‑me nisso muito bem.» 28
Kant não respondeu à carta nem ao pedido de Schiller (pedido
feito também por intermédio de Fichte, em carta deste a Kant, de 17
de Junho de 94 29, reiterado a 6 de Outubro de 94) 30. Em carta de Março
de 95, já a revista estava em publicação (haviam saído as 9 primeiras
cartas sobre a educação estética em 15 de Janeiro e as 8 seguintes em
20 de Fevereiro), Schiller solicita uma vez mais a Kant que se alie à
sociedade (isto é, a ele próprio, a Goethe e a Fichte, que também fora
convidado a colaborar na revista e chegou a publicar um ensaio no
primeiro número) e ofereça um breve escrito seu para a nova revista.

28
  Schillers Briefe, ed. F. Jonas (Stuttgart, 1892­‑96), Bd. IV.
29
  Kant’s Briefwechsel, Ak XI, 511.
30
  Ibidem, Ak XI, 526.

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Junto com a carta envia os números já saídos da revista e manifesta o
desejo de obter um parecer do filósofo sobre as Cartas já publicadas,
considerando­‑as como «o fruto do estudo dos escritos kantia­nos» e
diz que ficaria muito animado se Kant não «desse pela falta do ­espírito
da sua filosofia nessa aplicação da mesma [dass Sie den Geist Ihrer Phi‑
losophie in dieser Anwendung derselben nicht vermissen]» 31.
Kant responderá a esta segunda carta, a 30 de Março de 95,
­acusando tam­bém a recepção dos dois primeiros números da revis‑
ta contendo as 17 primeiras Briefe. Diz que as considera excelentes e
que as estudará para poder comunicar­‑lhe mais tarde o que a respei‑
to delas pensa (Die Briefe über die ästhetische Mensche­nerziehung finde
ich vortrefflich und werde sie studieren, um Ihnen meine Gedan­ken ­hierüber
dereinst mittheilen zu können) 32.
Não há todavia nada que nos indique que se ocupou expressa‑
mente disso. Nos meses seguintes — talvez no início do Verão —
redige o ensaio Zum ewigen Frieden. Kant nada publicará na revista
de Schiller, a qual se viria a extinguir alguns meses depois, não sem
entretanto ter dado azo ao desentendimento entre Schiller e Fichte,
quando este, a 21 de Junho de 95, enviou um segundo ensaio para a
revista, cuja publicação seria recusada por Schiller. A razão invoca‑
da para a recusa do ensaio era uma questão de estilo filosófico, mas
no cerne do conflito estava realmente uma verdadeira incompatibi‑
lidade de concepções filosóficas, que Schiller acabara por descobrir
à medida que melhor ia conhecendo o novo filósofo de Jena que de
início o entusiasmara. Na carta que dirige a Fichte comunicando­‑lhe
a recusa do seu ensaio, escreve Schiller:

Exijo de uma boa exposição antes de mais uma homoge‑


neidade no tom e, se se pretende que ela tenha valor estético,
uma acção recíproca [Wechselwirkung] entre imagem e con‑
ceito, não uma alternância [Abwechselung] entre ambos…
Não entendo em absoluto por que razão tenham de ser ne‑
cessárias formas de dureza para uma boa expo­sição. 33

31
  Ibidem, Ak XII,
32
  Ibidem, Ak XII, 11.
33
  Sobre este conflito, v. o meu ensaio «O espírito da letra. Sobre o conflito
entre Fichte e Schiller a respeito da linguagem da Filosofia e da natureza do
estético», Philosophica, 19/20 (2002), pp.  87­‑114. Agora também em Leonel
Ribeiro dos Santos, O Espírito da Letra. Ensaios de Hermenêutica da Modernidade,
IN­CM, Lisboa, 2007, pp. 273­‑310.

251

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Caso Kant tivesse correspondido ao convite e enviado um seu
ensaio para a revista de Schiller, teria este podido invocar, para
eventualmente o recusar, as mesmas razões que invocou para re­
cusar o ensaio fichteano? Consinta­‑se­‑me a pergunta pelo menos
para que eu possa inscrever um outro ponto de afinidade entre Kant
e Schiller, o qual geralmente não é abordado: a preocupação com o
estilo ou modo estético de exposição da filosofia.
Aparentemente, o estilo de Schiller não está menos afastado do
de Kant do que do de Fichte. Hegel reconhecia como grande mérito
de Schiller precisamente o «ter ele rompido com a subjectividade kan‑
tiana e a abstracção do pensamento e ter captado a unidade e a recon‑
ciliação como sendo a verdade e isso de um modo poé­tico» 34. O ensaio
onde Schiller desenvolve extensamente as suas ideias sobre este tópi‑
co é o que leva o título «Sobre os limites necessários no uso de formas
belas», e foi publicado em Setembro de 1795, na revista Die Horen, já
no rescaldo da polé­mica e da ruptura com Fichte, e pode até considerar­
‑se como sendo a resposta final de Schiller a Fichte. O objectivo de
Schiller com este ensaio é unir o interesse da razão com o da sensibili‑
dade no domínio da escrita filosófica. Aprendera com Kant que «por
mais abstracto que possamos pensar é sempre por fim algo sensível o
que está no fundamento do nosso pensamento». Mas só a maneira
estética de escrever (schöne Schreibart) é capaz de realizar o objectivo
de «pôr em harmonia as forças sensíveis e as forças espiri­tuais do
homem e uni­‑las numa íntima aliança». Ela satisfaz o entendimento
porque assegura a conformidade à lei, mas ao mesmo tempo dá a
impressão de ser um produto espontâneo da imaginação, e não algo
mecânico, como é a exposição meramente científica e lógica. A expo‑
sição do pen­samento deve ser simultaneamente livre e ­sensível:

Livre será a exposição, se o entendimento determinan‑


do por certo a conexão das ideias, o faz com uma conformi‑
dade à lei tão oculta, que a imaginação parece tra­balhar aí
de um modo completamente arbitrário e seguir apenas o
acaso da ligação temporal. Sensível será a exposição se o
geral se oculta no particular e se fornece à fantasia a ima‑
gem viva (a representação total), onde apenas se trata do
conceito (a representação parcial).

34
  Hegel, Vorlesungen über die Ästhetik, Jubiläumausgabe, Stuttgart­‑Bad
Cannstatt, 1971, Bd. XII, 96.

252

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É na criação metafórica que melhor se alcança esse desiderato:

Aí onde se pretende obter uma rigorosa convicção a


partir de princípios, não basta expor a verdade apenas em
conteúdo; a prova da verdade deve estar simultanea­mente
contida na forma da exposição. 35

Esta declaração, que sem dúvida visava directamente a filosofia


de Fichte, não visaria a filosofia kantiana, pelo menos quanto ao seu
espírito. Mas não será que podia visá­‑la quanto à sua letra?
Há todavia quatro parágrafos da Antropologia nos quais Kant
vem por assim responder à nota da carta 13.a e em apoio das ideias
expostas por Schiller no seu ensaio publicado em Setembro de 95.
Esse conjunto de parágrafos traz o sugestivo título «Apologia da
sensibilidade» e apresenta­‑se como uma «justificação da sensi­
bilidade» contra as acusações que lhe são feitas. Kant começa por
referir as acusa­ções que lhe são dirigidas por parte dos lógicos: 1)
que a sensibilidade desorienta (verwirre) a faculdade de representa‑
ção (o entendimento); 2) que ela levanta a voz e se torna uma domi‑
nadora teimosa e indomável, em vez de ser a servidora do entendi‑
mento, e 3) que ela engana e em relação a ela nunca podemos estar
em segu­rança. Em contrapartida, diz Kant, os poetas e as pessoas de
gosto consideram que só mediante a sensificação (Versinnlichung) dos
conceitos do entendimento se alcança a pregnância (das Prägnante) ou
riqueza de pensamento, o enfático (das Emphatische) ou vigor da ex‑
pressão e da linguagem e o brilho (das Einleuchtende) ou clareza das
representações, ao passo que a nudez do entendimento (Nacktheit
des Verstandes) não passa de simples miséria (Dürftigkeit).
Kant declara que a perfeição íntima do homem consiste em que
ele tenha em seu poder o uso de todas as suas faculdades, para o
submeter à sua livre vontade. Mas para isso é necessário que o en‑
tendimento domine sem contudo enfraquecer a sensibilidade: pois
sem ela nenhuma matéria seria dada que possa ser elaborada para
uso do entendimento legislador 36.

  Schiller, Über die notwendigen Grenzen beim Gebrauch schöner Formen, SW, V, 774.


35

  «Dass er den Gebrauch aller seiner Vermögen in seiner Gewalt habe,


36

um ihn seiner freien Willkür zu unterwerfen. Dazu aber wir erfordert, dass der
Verstand herrsche, ohne doch die Sinnlichkeit […] zu schwächen: weil ohne sie
es keinen Stoff geben würde, der zum Gebrauch des gesetzgebenden Verstandes
verarbeitet werden könnte.» Anthropologie in pragmatischer Hinsicht, Ak VII, 144.

253

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Neste conflito entre lógicos e estetas, Kant assume expressa‑
mente a função de advogado da sensibilidade e responde às três
acusações contra ela feitas, colo­cando­‑se do lado dos que lhe fazem
justiça. Por si mesmos, os sentidos não pertur­bam, não mandam
sobre o entendimento, nem enganam. Por certo as representações
sensíveis antecipam­‑se às do entendimento e expõem­‑se amontoa­
damente. Mas o seu contributo é tanto mais rico quanto o entendi‑
mento for capaz de lhes dar a sua ordenação e forma e, desse modo,
fornecer à consciência expres­sões pregnantes (prägnante) para o con‑
ceito (Begriff), enfáticas (emphatische) para o sentimento (Gefühl) e
representações interessantes (interessante) para a determinação da
vontade. A riqueza que as obras do espírito na eloquência ou na
poesia apresentam ao entendimento de um só golpe pode, por ve‑
zes, embaraçá­‑lo, se ele tem de utilizá­‑la racionalmente e o entendi‑
mento pode sentir­‑se perturbado quando tenta tornar distintos e
separar todos os actos de reflexão que aí estão real­mente envolvi‑
dos, ainda que obscuramente; mas nisso não há culpa alguma da
sen­sibilidade; pelo contrário, é antes mérito dela o ter fornecido ao
entendimento um rico material em face do qual os conceitos abs‑
tractos do entendimento não passam frequentemente de brilhantes
misérias. E o advogado conclui a sua apologia da sensibilidade com
estas palavras: a lógica acusa a sensibilidade de que o conheci­
mento que ela promove tem um carácter de superficialidade (Seich­
tigkeit) (porque individual, limitado ao singular), ao passo que o
entendimento, que se move no universal, precisamente por isso se
presta a abstracções e incorre na acusação de aridez (Trockenheit).
Ora, tal como Schiller, no seu citado ensaio, Kant aponta uma via
intermédia que evita tanto um vício como o outro. E essa via é a
aborda­gem estética: «a abordagem estética, cuja primeira exigência
é a popularidade, segue um caminho que permite evitar os dois
defeitos» 37.
Estes parágrafos, se não foram inspirados pela leitura dos es‑
critos estéticos de Schiller, nomeadamente do ensaio publicado em
Setembro de 95, bem podiam tê­‑lo sido. Mas também neste ponto
Kant não precisava de aprender do seu discí­pulo. Bastava­‑lhe ler
neste, mais explícitos, os seus próprios e bem antigos pressu­

37
  «Die ästhetische Behandlung, deren erste Forderung Popularität ist,
schlägt aber einen Weg ein, auf dem beiden Fehlern ausgebeugt werden kann.»
Ibidem, Ak VII, 143­‑146.

254

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postos 38. Na parte final dos prefácios às 1.a e 2.a eds. da primeira
Crítica, Kant declara que a «clareza estética» e não apenas a «clareza
lógica» é um direito do leitor, o que revela a sua atenção ao que se
poderia chamar a dimensão estético­‑retórica da filosofia. Há, por
certo, declarações do filósofo que se referem ao carácter natural‑
mente prosaico da filosofia, mas elas são proferidas em contexto po‑
lémico contra os que se sentem habitados pela genialidade filosófica
e por isso se julgam no direito de dispensar e de desprezar o pacien‑
te trabalho da razão, e tais declarações não podem fazer esquecer as
muitas outras que revelam uma convicta preocupação não só com a
clareza da exposição lógica (mediante con­ceitos), mas também com
a claridade intuitiva das ideias filosóficas (mediante exemplos, com­
parações, imagens), a preocupação com o carácter da exposição
(Darstellung) das ideias e do modo da sua sen­sificação (Versinnli‑
chung). Este tópico é expressa­mente abordado nos §§ 49 e 59 da Crí‑
tica do Juízo e o ­alcance desses parágrafos está longe de se limitar ao
domínio da criação artística, à poesia e às questões esté­ticas. Na ver‑
dade, dado que às ideias da razão não é possível dar uma corres­­
pon­dência e expressão sensível directamente, é pela mediação da
imaginação na sua função estética e, por conseguinte, mediante as
ideias estéticas, que o pode fazer. No § 59 da mesma obra, Kant dirá
mesmo que a maioria dos con­ceitos filosóficos é obtida por um pro‑
cesso de criação analógica, mediante símbo­los e metáforas.

38
  Nos §§ 6­‑12 da sua Aesthetica, Alexander Baumgarten elenca as acusações
formuladas contra a sensibilidade e responde­‑lhes: «Objectar­‑se­‑á que as facul‑
dades inferiores — a carne — devem ser submetidas de preferência a serem ex‑
citadas e reforçadas. A minha resposta é: a) Que é o domínio sobre as faculdades
inferiores, e não a tirania, o que é requerido. b) Que para este fim, na medida em
que isso pode ser obtido naturalmente, a estética conduz­‑nos de alguma maneira
pela mão. c) Que não se trata para os estéticos de excitar e reforçar as faculdades
inferiores, na medida em que elas são corrompidas, mas de as dirigir a fim de que
elas não sejam antes corrompidas pelos exercícios lastimáveis ou que, sob o pre‑
guiçoso pretexto de evitar o abuso, não se faça desaparecer o uso de um talento
que Deus nos concedeu.» [§ 12: Ob. 10) «Facultates inferiores, caro, debellandae
potius sunt, quam excitandae et confirmandae. — Resp. a) Imperium in faculta‑
tes inferiores poscitur, non tyrannis. b) Ad hoc, quatenus naturaliter impetrari po‑
test, manu quasi ducet aesthetica. c) Facultates inferiores non, quatenus corruptae
sunt, excitandae confirmandaeque sunt aestheticis, sed iisdem ­dirigendae, ne si‑
nistris exercitiis magis corrumpantur, aut pigro vitandi abusus praetextu tollatur
usus concessi divinitus talenti.»] A. G. Baumgarten, Aesthetica, 2 Teile, Frankfurt
a. d. Oder, 1750/1758 (reimpr. Olms, Hildesheim, 1961).

255

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E se tivermos em conta a correspondência de Kant com alguns
dos seus ami­gos (Herz, Garve) e discípulos (Reinhold, Bouterwek…)
ainda mais se perceberá a importância que esta questão tinha para o
filósofo. Numa carta a Bouterwek 39, Kant confessa: «O que eu dese‑
java era ter um espírito poético, dotado do poder de exposição ade­
quada aos conceitos puros do entendimento… para promover a co‑
municação destes princípios, poder unir a exactidão escolástica na
determinação dos conceitos com a popularidade de uma imagina‑
ção exuberante.» E a mesma ideia ocorre numa nota a propósito de
Reinhold, discípulo e expositor da sua filosofia: «O talento de uma
luminosa e ao mesmo tempo graciosa exposição de doutrinas áridas
sem perda da profundidade é tão raro… e ao mesmo tempo tão útil,
e quero dizê­‑lo, não apenas para recomendação, mas mesmo para a
clareza da ideia, da compreensibilidade e da convicção que lhe está
associada —, que eu sinto­‑me obrigado a manifestar publica­mente
o meu agradecimento àquele homem que completou de tal modo os
meus tra­balhos, com esta facilitação que eu não era capaz de lhes
proporcionar.» 40
Kant tinha por certo uma excessivamente má imagem de si
próprio como escritor. Mas de modo algum isso significa que de‑
fendesse a exposição seca e meramente escolástica da filosofia. Em
várias reflexões do seu espólio surpreende­‑se antes o seu íntimo
desejo de poder unir a exposição rigorosa e profunda das doutri‑
nas filosóficas com a agilidade da linguagem do génio. Numa de‑
las lê­‑se mesmo este lamento, que é ao mesmo tempo a confissão
de um desiderato:

Tratar de um modo genial questões filosóficas profun‑


damente complicadas é honra à qual não aspiro. Eu esforço­
‑me apenas por tratá­‑las de um modo escolar. Se, nisto, o
trabalho que requer contínua diligência e atenção for bem

  Kant’s Briefwechsel, Ak XII, 431­‑432.


39

  «Das Talent einer lichtvollen, sogar anmüthigen Darstellung trockener


40

abgezogener Lehren ohne Verlust ihrer Gründlichkeit ist so selten… und


gleichwohl so nützlich, ich will nicht sagen blos zur Empfehlung, sondern
selbst zur Klarheit der Einsicht, der Verständlichkeit und damit verknüpften
Überzeugung, — dass ich mich verbunden halte, demjenigen Manne, der
meine Arbeiten, welchen ich diese Erleichterung nicht verschaffen könnte, auf
solche Weise ergänzte, meinen Dank öffentlich abzustatten.» I. Kant, Über den
Gebrauch teleologischer Principien in der Philosophie, Ak VIII, 183.

256

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sucedido, compete então ao verdadeiro génio (não aquele
que pensa poder fazer tudo a partir do nada) juntar­‑lhe o
sublime ímpeto do espírito e assim pôr em movimento o
uso dos princípios abstractos. 41

Segundo Kant, o génio consiste precisamente nesse poder de


«descobrir rela­ções felizes entre as coisas, de, para um dado concei‑
to, inventar ideias e para estas encontrar a expressão mediante a
qual o estado de espírito subjectivo por ela pro­duzido pode ser co‑
municado a outros» 42.
Schiller recusou o segundo ensaio de Fichte «Sobre o espírito e
a letra em filosofia» invocando razões de estilo. Se Kant tivesse che‑
gado a enviar algum ensaio para a revista por certo o editor Schiller
não precisaria de invocar razões de estilo para o aceitar, pois a afini‑
dade a este respeito era muito mais íntima entre Schiller e Kant do
que podia sê­‑lo entre Schiller e Fichte. O ensaio de Schiller «Sobre os
necessários limites no uso de formas belas», sendo uma reflexão
amadu­recida sobre o seu próprio estilo e uma ampliação da sua
concepção filosófica do estético ao domínio da linguagem filosófica,
pode ler­‑se também como um amplo comentário e desenvolvimento
dos citados §§ 49 e 59 da terceira Crítica de Kant.

6. Kant acabou por não cumprir a sua promessa de estudar as


Cartas sobre a Educação Estética, que Schiller lhe havia enviado, para
dar a respeito delas uma apreciação mais desenvolvida. Mas pode‑
mos pelo menos ter a certeza de que se ocupou delas ou de alguma
delas, embora não seja claro o propósito com que o fez.
No vastíssimo espólio correspondente aos últimos anos de vida
do filósofo, para o qual os editores propuseram o nome de Opus
postumum e que ocupa na edi­ção da Academia os vols. xxi e xxii,
encontra­‑se quase toda uma página que é a transcrição de um longo
parágrafo da 19.a carta de Schiller, do que podemos induzir que

41
  «Geniemässig tief verwickelte philosophische Fragen zu behandeln: auf
diese Ehre thue ich gänzlich verzicht. Ich unternehme es nur sie schulmässig zu
bearbeiten. Wenn hierin die Arbeit, die stetigen Fleis und Behutsamkeit bedarf,
gelungen ist, so bleibt es wahren Genies… (nicht denen, die aus Nichts alles
zu machen unternehmen) überlassen, den erhabenen Geistesschwung damit
zu verbinden und so den Gebrauch trockener Principien in Gang zu bringen.»
Refl. 990. Ak XV, 435.
42
  KU, Ak V, 317.

257

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Kant terá também lido a última série de 11 cartas publicadas no
6.o número de Die Horen, a 22 de Junho de 1995.
Os editores desta volumosa e complexa parte do espólio de
Kant (primeiro E. Adickes, para a sua datação em 1916 e depois
Gerhard Lehmann, para a sua publicação em 1936­‑1938) aceitaram e
transcreveram o texto sem se terem dado conta de que Kant não era
o seu autor e que se tratava de uma transcrição feita pelo velho filó‑
sofo, inserida nas suas próprias tardias reflexões acerca da ideia de
filoso­fia transcendental 43. A transcrição consta de 19 linhas na edi‑
ção da Academia (vol. xxi, p. 76) e, em relação ao texto das Briefe,
apresenta pequenas variantes: omis­são de alguma pontuação (vír‑
gulas) e de três palavras — im Gemüthe, die — e a interpolação de
duas palavras — der Möglichkeit ­—, além de muitas palavras e frases
inteiras destacadas ou sublinhadas. Eis o texto em tradução:

Há que recordar aqui que temos perante nós o espírito


finito e não o infinito. O espírito finito é aquele que só pelo
sofrimento [durch Leiden] se torna activo, que só alcança o
absoluto [zum Absoluten] através de limitações [durch
Schranken]: só na medida em que recebe matéria [Stoff] ele
age e forma [handelt und bildet]. Um tal espírito unirá por‑
tanto ao impulso para a forma [Trieb nach Form] ou para o
absoluto um impulso para a matéria [Trieb nach Stoff] ou
para a limitação [Schran­ken], condição sem a qual ele não
poderia ter nem satisfazer o primeiro daqueles impulsos.
Em que medida duas tendências [Tendenzen] tão contrapos‑
tas podem sub­sistir no mesmo ser, eis um problema que
pode causar embaraço ao metafísico, mas não ao filósofo
transcendental. Este não pretende explicar a possibilidade
das coisas, mas contenta­‑se com estabelecer os conheci‑

43
  Todavia, Karl Vorländer tinha já identificado essa página de Schiller en‑
tre as folhas soltas do Opus postumum, tendo dado disso notícia num ­ensaio
publicado no vol. xxx dos Philosophische Monatshefte (1894), pp.  57­‑62. V., do
mesmo autor, Kant­‑Schiller­‑Goethe. Gesammelte Aufsätze, Leipzig, 1907, onde
se lê (p. 36): «Vielleicht ist die Stelle aus dem 19. ästhetischen Briefe, die wir
in Kants Opus postumum fast wörtlich wieder entdeckten und seinerzeit
veröffentlichten ein Zeichen davon, dass Kant sich Notizen zum Zwecke einer
beabsichtigten ­Besprechung der Schillerschen Briefe gemacht hatte, zu welcher
er dann infolge der Überhäufung mit anderen Arbeiten, in Verbindung mit der
zunehmenden Schwäche des Alters, nicht mehr gelangte.»

258

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mentos a partir dos quais se compreende a possibilidade
<da possibilidade> da experiência [die Möglichkeit <der
Möglich­keit> der Erfahrung]. E como a experiência não seria
possível sem aquela contrapo­sição [Entgegensetzung] <no
espírito> [<im Gemüthe>] tal como sem <a> [< die >] unida‑
de absoluta do mesmo, ele estabelece estes dois conceitos
com plena compe­tência como condições igualmente neces‑
sárias da experiência, sem se preocupar mais com a sua
compatibilidade. 44

Que faz este texto no contexto em que aparece? É uma citação


para confir­mar ou apoiar o desenvolvimento de um pensamento
próprio de Kant? Ou é uma transcrição feita por Kant com vista a
cumprir a prometida apreciação da referida obra de Schiller, e que
se interpolou nas próprias reflexões do filósofo acerca da ideia de
filosofia transcendental? Esta última hipótese é plausível. Mas, por
outro lado, o texto de Schiller não destoa completamente do contex‑
to das reflexões kan­tianas envolventes, embora alguma da lingua‑
gem nele utilizada não seja propria­mente kantiana, mas schilleriana
ou até fichteana (é o caso da referência aos dois impulsos funda‑
mentais — o Trieb nach Form e o Trieb nach Stoff). Outros tópicos da
transcrição evocam claramente a linguagem peculiar da filosofia
kantiana: a distinção entre espírito finito e espírito infinito, a distin‑
ção entre o metafísico e o filósofo transcendental, a caracterização
da filosofia transcendental como a investigação que apenas se ocu‑
pa com o estabelecimento dos princípios da possibilidade da expe‑
riência e não, como a Metafísica, dos princípios da possibili­dade das
coisas mesmas. Kant podia verter facilmente a linguagem fichtiana
ou schilleriana do Trieb nach Form e do Trieb nach Stoff na linguagem
da sua própria filosofia transcendental como sendo o que nesta de‑
signa por Forma e Matéria, ou pelo Formal e o Material. O próprio
Schiller, numa nota à sua 13.a carta, expusera nesses termos a essên‑
cia da filosofia transcendental kantiana.
Será que Kant reconheceu no texto de Schiller uma feliz síntese
do programa da sua própria filosofia e por isso o transcreveu como
uma confirmação das suas sucessivas formulações da ideia de filo‑
sofia transcendental que se estendem pela primeira centena de pá‑
ginas do Opus postumum? Mas o texto de Schiller, embora usando no

44
  Opus postumum, Ak XXI, 76.

259

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essencial a linguagem kantiana, está fora do seu verdadeiro contex‑
to de origem. Pois, precisamente, o autor das Cartas mostra que os
dois impulsos con­trapostos, o impulso para forma e o impulso para
a matéria, vão ser mediados por um terceiro impulso fundamental,
que permite o restabelecimento da unidade da natureza humana.
Esse terceiro mediador é para Schiller o impulso do jogo ou impulso
estético — a beleza: «mediante a beleza é o homem sensível orienta‑
do para a forma e o pensamento; mediante a beleza é o homem
­espiritual reconduzido à matéria e devolvido ao mundo dos sen­
tidos» 45. Kant tivera um problema seme­lhante e resolvera­‑o median‑
te a sua teoria do esquematismo, como resultado do trabalho da
imaginação que consegue um produto meio intelectual e meio sen‑
sível que lhe permite ligar o plano formal dos conceitos com o plano
material das intui­ções. Mas enquanto Kant se situa no plano da ex‑
periência e do conhecimento objectivo da natureza, Schiller está a
tratar de fundar a sua antropologia estética, embora não se coíba de
usar mesmo aí os instrumentos conceptuais da filosofia teorética
kantiana.

7. Sem dúvida, o encontro entre os dois pensadores foi muito


mais provei­toso para Schiller do que o foi para Kant. Quando to‑
mou contacto com as ideias de Schiller, Kant tinha dado por acaba‑
do o seu programa de investigação transcen­dental com a terceira
Crítica, precisamente a obra que mais vai contribuir para a formação
do pensamento estético schilleriano da maturidade, aquela que con‑
firma o artista, dramaturgo e poeta nas suas intuições próprias e a
que lhe fornece as categorias para desenvolver e sistematizar as suas
próprias ideias acerca do trágico, do sublime, da educação estética e
o seu humanismo e idealismo de fei­ção estética.
As afinidades entre ambos os pensadores no que toca ao proble‑
ma da moral e da estética são visíveis e Kant poderia ler as teses de
Schiller como as de um autónomo discípulo que captara em toda a
intensidade alguns dos tópicos que, na primeira parte da sua Crítica
do Juízo, ele próprio deixara sugeridos e como que a pedir maior
explicitação: a afinidade entre os sentimentos estéticos do belo natu‑

45
  «Durch die Schönheit wird der sinnliche Mensch zur Form und zum
Denken geleitet; durch die Schönheit wird der geistige Mensch zur Materie
zurückgeführt, und der Sinnenwelt wiedergegeben.» Início da Carta 18.a, SW,
V, 624.

260

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ral e do sublime e o próprio sentimento moral ou a maneira moral
de pensar, o belo como símbolo da moralidade, o sentimento estéti‑
co como vivência da espontânea harmonia das faculdades, a ideia
de jogo harmónico das faculdades no qual a faculdade mobilizado‑
ra da sensibilidade — a imaginação — trabalha em liberdade e toda‑
via em espontânea concordância com o entendimento (no belo) e
com a razão (no sublime), a função mediadora do sentimento estéti‑
co entre o sensível e o moral na medida em que é um prazer desin‑
teressado que liberta o homem dos estímulos meramente sensíveis:
«a espontaneidade no jogo das faculdades de conhecimento, cujo
acordo contém o fundamento deste prazer <estético> torna adequa‑
do o conceito pensado para uma mediação da conexão dos domí­
nios do conceito de natureza com o conceito de liberdade nas suas
consequências, na medida em que este acordo promove ao mesmo
tempo a receptividade do ânimo ao sentimento moral» 46, ou para a
passagem — Übergang — do estímulo dos sen­tidos para o interesse
moral habitual sem um salto demasiado violento 47.
Mas, apesar das afinidades, a inspiração de origem de um e de
outro é clara­mente distinta. Kant revela uma vincada inspiração
moral e o seu idealismo é um idealismo prático, a sua proposta de
educação da humanidade culmina na educação moral e tem a sua
extensão no plano das instituições jurídicas e políticas. Por certo,
Kant não só consente como requer na sua antropologia moral, mor‑
mente na sua parte subjectiva, o aspecto do sentimento, não apenas
daquele sentimento moral que se dá como respeito pela sublimida‑
de da lei, mas também do sentimento estético que se dá como vivên‑
cia da harmonia das faculdades humanas na espontânea expressão
dos seus respectivos princípios. Todavia, Kant não tem a respeito
dos sentimentos e inclinações a visão francamente optimista que en‑
contramos em Schiller. Numa das últimas obras que publicou, ape‑
sar das concessões aí feitas à «estética dos costu­mes», Kant continua
a afirmar que, no plano ético, «se a razão não toma nas suas mãos as

46
  «Die Spontaneität im Spiele der Erkenntnisvermögen, deren Zusam‑
menstimmung den Grund dieser Lust enthält, macht den gedachten Begriff zur
Vermittlung der Verknüpfung der Gebiete des Naturbegriffs mit dem Freiheits‑
begriffe in ihren Folgen tauglich, indem diese zugleich die Empfänglichkeit des
Gemüts für das moralische Gefühl befördert.» KU, Einl., IX, Ak V, 197.
47
  «Der Geschmack macht gleichsam den Übergang vom Sinnenreiz
zum habituellen moralischen Interesse ohne einen zu gewaltsamen Sprung
­möglich.» Ak V, 354.

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rédeas da governação, os sentimentos e as inclinações tornam­‑se
mestres e senhores do homem» 48. Schiller, por seu turno, é animado
desde o princípio por uma visão estética do mundo e a própria vi‑
vência moral, que nele é por certo essencial, é como que banhada já
num elemento estético. A ideia que o move é a de uma completa
humanidade, alcançada pela reconciliação e harmonia das faculda‑
des sensíveis e intelectuais, das energias sentimentais e morais do
homem. Mais do que da morali­dade das acções isoladas, o autor das
Cartas sobre a Educação Estética preocupa­‑se com o ideal de uma
­personalidade humana harmoniosa que reconciliou em si as suas
faculdades e em quem o cumprimento do dever deixou de ser uma
obrigação para se tornar um modo habitual e espontâneo de ser.
A moralidade aparece integrada neste humanismo estético, que se
condensa na noção de bela alma, uma expressão também usada por
Kant no § 42 da Crítica do Juízo. Para Kant, a bela alma do apreciador
estético da beleza da natureza indica que estamos perante uma boa
alma. Para Schiller, a bela alma integra a boa alma: naquela, a von‑
tade não é apenas determinada pelo dever, mas também a sensibili‑
dade concorda espontaneamente com a lei moral e a vontade é boa
não apenas na medida em que se impõe à sensibilidade e às tendên­
cias, mas na medida em que as educa e mobiliza para a seguirem
espontaneamente e quase para a precederem no querer o bem.
Pode dizer­‑se que Schiller soube extrair com grande acerto as
consequências que a terceira Crítica deixava apenas sugeridas para
o plano ético, ou seja para uma reconfiguração da exposição da filo‑
sofia moral a partir das perspectivas duma filo­sofia que termina por
afirmar a radicalidade do princípio reflexionante, do senti­mento e
da faculdade estética por excelência que é a imaginação no sistema
orgânico das faculdades do espírito. Isso em nada atinge propria‑
mente o que res­peita à fundamentação da moralidade, mas apenas
tem que ver com a sua exposição e a sua aplicação. Kant insiste na
sua distinção — que pode representar também uma contraposição
de interesses — entre o homo noumenon e o homo phaenomenon. Mas
Schiller tem razão em insistir na ideia de que se a moral quer ser
eficaz ela só o pode ser no homem concreto, sensível e finito. Mas
qual a melhor estratégia para ser eficaz? Pondo o homem em luta
permanente consigo mesmo, em oposição a si mesmo, ou, pelo con‑
trário, tentando mobilizar todas as suas energias para o que nele é

48
  Metaph. der Sitten, Tugendlehre, Einl., XVI, Ak VI, 408.

262

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essencial, implicando­‑as também na realização da sua completa
humani­dade? Neste caso, elas já não seriam inimigas a combater,
mas colaborantes. Não uma lógica de domínio e de opressão, mas
uma de reconciliação e de cooperação. Kant, apesar de estar de acor‑
do com a segunda estratégia, que é inequivocamente a que tem a
escolha de Schiller, pelo modo como expõe o seu programa deixa
ver demasiado o aspecto da dureza da lei e da imperatividade coer‑
civa do dever, por mais que invoque que é precisamente nessa con‑
dição que melhor se descobre a sublimidade da destinação humana.
Kant vê a moral pelo seu lado negativo — pelo que ela exige e faz
sofrer — Schiller apresenta­‑a pelo seu lado positivo — pelo que ela
revela de sublime no homem, de autonomia, de liberdade. São duas
pedagogias diferentes, cada qual com os seus riscos e as suas poten‑
cialidades.
Se quiséssemos reduzir a uma formulação sintética a diferença
que, sob um fundo de essencial comunidade e afinidade de perspec‑
tivas, subsiste entre os dois pensadores, diríamos que domina em
Schiller a sensibilidade estética (com o sen­tido pregnante que esta
expressão nele adquire), mesmo tratando­‑se de assuntos da moral;
em Kant, por seu turno, é preponderante a inspiração e a sensibili‑
dade moral, mesmo quando se trata de questões estéticas.

263

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ESTÉTICA
E FILOSOFIA DA RELIGIÃO

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7

A TEOLOGIA DE JOB, SEGUNDO KANT:


OU A EXPERIÊNCIA ÉTICO­‑RELIGIOSA
ENTRE O DISCURSO TEODICEICO
E A ESTÉTICA DO SUBLIME

Wer kan wider ihn bestehen? Hiob.


Kant, Ak xviii, 450.

1. No mês de Setembro do ano de 1791, Kant publica numa


revista de Berlim (Berlinische Monatsschrift) um ensaio intitulado
«Sobre o insucesso de todas as tentativas filosóficas na teodiceia»
 1
(Über das Misslingen aller philosophischen Versuche in der Theodicee).
O ensaio surpreeende logo pelo seu título, pois parece representar o
regresso do seu autor a uma temática arcaica — a da teodiceia —,
uma temática que Leibniz pusera no centro da inquirição filosófica
no início do século, em resposta às objecções feitas por Pierre Bayle
(nomeadamente no Dictionnaire historique et critique, 1.a ed., 1696, art.
«Rorarius»), à sua tese da absoluta perfeição de Deus, da qual fazia
decorrer a harmonia e a ordem do mundo, desde que se tivesse em
 2
conta a perspectiva do todo e não a das partes isoladas . Essa ques‑
tão viria a mobilizar muitos outros pensadores ao longo da primeira
metade do século, entre os quais até o poeta­‑filósofo inglês Alexan‑
der Pope, autor do Essay on Man (1733­‑1734). Também Kant dela se
ocupara, em meados da década de 50, redigindo as suas reflexões

1
  Este ensaio bem como os outros escritos de Kant serão citados pela
Akademie­‑Ausgabe (Ak) dos Kant’s Gesammelte Schriften. Para o presente en‑
saio: Ak VIII, 255­‑271
2
  Leibniz, Essais de Théodicée, sur la bonté de Dieu, la liberté de l’homme et
l’origine du mal (1710). Foi praticamente a única grande obra de Leibniz pu‑
blicada em vida do filósofo, sendo através dela que o pensamento leibniziano
foi conhecido até à década de 60 do século, quando vieram a ser publicadas
duas edições mais amplas da sua obra: a edição Raspe (1765) e a edição Dutens
(1768).

267

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sobre a teodiceia e o optimismo como esboços de resposta a uma
questão posta a concurso no ano 1753 pela Academia de Berlim, que
tinha por tema o confronto entre o optimismo de Pope e o de Leib‑
 3
niz . Com os argumentos da Crítica da Razão Pura contra as preten‑
sões da teologia especulativa dogmática seríamos levados a pensar
que no espírito de Kant a antiga questão da teodiceia estivesse defi‑
nitivamente encerrada. Mas, na verdade, o problema teodiceico
como problema filosófico sobrevive no cerne da filosofia crítica de
Kant, onde deixa, porém, de ser encarado como um problema reso‑
lúvel do ponto de vista da metafísica especulativa, passando a ser
 4
enquadrado no contexto de uma filosofia moral .
Os pequenos ensaios ou artigos de Kant, publicados em revistas
periódicas, pontuam com grande regularidade a sua produção filo‑
sófica. Através deles o filósofo fazia chegar a um público leitor mais
vasto as suas ideias, praticando assim aquela sua noção de uma filo‑
sofia que não apenas se dirige à escola e aos especialistas, mas que
se preocupa com o mundo e os homens comuns. Essas peças têm
sido quase sempre secundarizadas pelos intérpretes da filosofia
kantiana, sendo consideradas como um género menor de filosofia
popular ou de divulgação. Mas a hermenêutica mais recente tem
vindo a reconhecer que, na sua economia própria, esses ensaios
constituem momentos importantes na elaboração do pensamento
kantiano e não podem ser deixados de lado quando se quer ter uma
visão de conjunto do significado desse pensamento. Neles, ora se
antecipam ideias seminais que virão a ser posteriormente desenvol‑
vidas de modo mais sistemático, ora se condensa numa perspectiva
sinóptica todo um feixe de problemas complexos que já haviam sido
tratados em diversas obras.
É o caso do presente ensaio. Por um lado, ele assinala a inflexão
de Kant para uma intensa meditação filosófica sobre o fenómeno da
religião, que prossegue com o ensaio de 1792 Sobre o Mal Radical e

  V. a Reflexão 3703, Ak XVII, 229­‑239 (confronto entre o optimismo de Lei‑


3

bniz e o de Pope, preferindo as razões deste último e pondo em realce as difi‑


culdades da tese de Leibniz) e o ensaio de 59 (como anúncio dos seus cursos)
«Considerações sobre o optimismo», onde, em contrapartida, já se revela mais
próximo de Leibniz.
4
  Para uma visão de conjunto do problema teodiceico e sua importância
no  pensamento da modernidade setecentista, v. Hans­‑Gerd Janßen, Gott —
Freiheit — Leid. Das Theodizeeproblem in der Philosophie der Neuzeit, WBG, Darm‑
stadt, 1989 (sobre Kant, pp. 50­‑70).

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culmina com a obra A Religião nos Limites da Simples Razão (1793).
Uma inflexão que fora, todavia, preparada pelos seus cursos univer‑
sitários sobre Filosofia da Religião, leccionados ao longo da década
 5
de 80 . Com esta série de escritos e de cursos, Kant tentava respon‑
der expressamente à terceira das questões que ele próprio inventa‑
riara como sendo uma das mais importantes que se colocam no
campo da filosofia e que enunciara sob a conhecida fórmula: «Que
me é permitido esperar?» Uma questão que diz cair na competência
 6
da Religião (entenda­‑se, da filosofia da religião) . Mas, por outro
lado, no ensaio que aqui consideramos, o seu autor reata fios essen‑
ciais que ligam as suas primeiras preocupações filosóficas com as
perspectivas alcançadas pelo empreendimento da filosofia crítica
acabado de concluir com a publicação da Crítica do Juízo.
Ao voltar, no início da década de 90, à temática da teodiceia
leibniziana, de que se ocupara em várias Reflexões havia já mais de
três décadas, Kant não estava apenas a fazer o inventário das difi‑
culdades e das razões do insucesso do discurso filosófico teodiceico,
mas podia agora apresentar a sua perspectiva acerca dum problema
ainda não resolvido especulativamente (e que, na verdade, segundo
o mostrou a Crítica da Razão Pura, nunca será resolúvel no plano
­teorético pelos filósofos), o qual era o de como explicar a desordem
e o mal no mundo, caso se admita que o mundo é obra de um supre‑
mo criador sábio, poderoso, bom e justo. Não há passagem directa
possível do conhecimento teorético do mundo para o conhecimento
de Deus como criador do mundo. Ao tentar essa passagem, a razão
teórica enreda­‑se em contradições insuperáveis. Podemos até ter in‑
teresse especulativo em admitir a existência desse ser como uma

5
  I. Kant, Vorlesungen über die philosophische Religionslehre, ed. de K. H. L.
Pölitz, Leipzig, 1830, reimpr. WBG, Darmstadt, 1982. Sobre a datação destes
cursos, veja­‑se a «Introduzione» de Costantino Esposito à sua tradução ita‑
liana das Lezioni di Filosofia della Religione de Kant (Bibliopolis, Napoli, 1988,
pp. 28­‑31).
6
  Carta a C. F. Stäudlin (4 de Maio de 1793): «Com a obra que junto —­A Re‑
ligião nos Limites da Mera Razão —, tento executar a terceira parte do meu plano,
trabalho no qual uma consciência escrupulosa e um verdadeiro respeito pela
religião cristã, mas também o princípio de uma conveniente franqueza [einer
geziemenden Freimütigkeit], me guiaram no sentido de nada esconder mas ex‑
por abertamente o modo como eu creio ser possível a união daquela [religião
cristã] com a mais pura razão prática.» Kant, Lettres sur la morale et la religion
(ed. bilingue alemão­‑francês); introduction, traduction, commentaries par Jean­
‑Louis Bruch, Aubier­‑Montaigne, Paris, 1969, pp. 188­‑189.

269

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hipótese fecunda do ponto de vista heurístico e sistemático, mas
essa hipótese tem um valor meramente subjectivo e nunca podere‑
mos demonstrá­‑la como tendo também valor objectivo; isto é, como
correspondendo a um objecto da nossa experiência espácio­‑tem­
poral. Mas o que pela via do conhecimento teorético não é possível
encontra saída pela via prática ou moral, e aqui a convicção não tem
já apenas motivos subjectivos, mas também objectivos e, segundo
Kant, deve ser assumida não como uma mera hipótese, mas efecti‑
vamente como um postulado prático, fundado na natureza da pró‑
pria razão humana. Incapaz de criar uma teologia dogmática espe‑
culativa, obtém assim a razão uma teologia moral que conduz à
religião, ligando firmemente a sua ideia de Deus com a moralidade,
e que lhe serve não para que o homem conheça Deus, mas para que
se torne moralmente melhor. Como o filósofo insistentemente repe‑
te, não é a religião que funda a moral e a ela pode conduzir, mas,
inversamente, é a moral que funda a religião e que a ela se estende
como ao seu ambiente vivencial. Esta teologia moral kantiana não
se funda sobre um saber especulativo, mas funda­‑se numa fé moral.
Lê­‑se num passo das Lições de Filosofia da Religião: «Esta fé não é um
saber, e, sorte a nossa que o não seja! Pois nisso se revela a divina
sabedoria, que não sabemos, mas devemos crer, que existe um Deus.
Pois se pudéssemos, mediante a experiência ou por qualquer outro
modo, alcançar um saber [Wissen] da existência de Deus, toda a mo‑
ralidade ruiria. O homem, em cada sua acção, representar­‑se­‑ia
Deus como um papão [Bergelter] e vingador [Racher]; e essa ima‑
gem impor­‑se­‑ia involuntariamente na sua alma de tal maneira que,
em vez das motivações morais, seriam a esperança de recompensa
e o medo de castigo que o moveriam; o homem seria virtuoso por
 7
motivos sensíveis.» Em face disto, Kant podia com razão dizer
que toda a instrumentação da sua crítica da razão visava apenas
pôr a moralidade e a religião a salvo dos ataques da especulação
teórica e que precisamente para isso teve de «suprimir o saber para
encontrar lugar para a fé» (Ich musste also das Wissen aufheben, um
zum Glauben Platz zu bekommen), segundo a enigmática e muito
pouco atendida declaração do «Prefácio» à 2.a edição da Crítica da
 8
Razão Pura . Esta saída pela fé moral não deve ser encarada como
um salva­‑vidas para o naufrágio da razão especulativa. Antes, foi

7
  I. Kant, Vorlesungen über die philosophische Religionslehre, ed. cit., p. 161.
8
  Kritik der reinen Vernunft [KrV] B XXX, Ak III, 19.

270

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para salvar a moralidade que foi necessária a ­Crítica da razão, com
vista a neutralizar a razão teórica, seja quanto à sua pretensão de
afirmar (isto é, de chegar a um saber positivo das realidades do
mundo supra­‑sensível, para o que não tem competência), seja
quanto à sua pretensão de negar o mundo supra­‑sensível, sem o
qual não fariam sentido as exigências da razão prática.
A estratégia kantiana passa pela demarcação entre o percurso
da razão teórica e o da razão prática, mostrando que esta última
nada sofre do fracasso daquela. Assim, a ideia de Deus com a qual a
razão imediatamente se depara a priori não é a de um Deus criador
sábio do mundo, cujo conhecimento fosse dado directamente à ra‑
zão, fundado por esta ou retirado do conhecimento do mundo como
efeito para a sua causa extra-mundana, mas a de um Deus legisla‑
dor incondicional da razão prática, cuja vontade se impõe e cuja voz
se faz ouvir nesse Faktum incontornável da consciência moral que é
 9
a lei moral . A autêntica ideia de Deus acessível directamente à ra‑
zão prática é, pois, a de um ser moral, descoberto por certo na pró‑
pria razão, mas apenas na medida em que ela se sente moralmente
determinada pela lei que se lhe impõe como provindo dela mesma.
E por isso também a prova que ela possa vir a ter da existência de
Deus e a justificação de Deus em face do mal e desordem do mundo
só pode obter­‑se por uma via moral, por uma «fé moral» (moralische
Glaube). Como se lê no ensaio que nos ocupa: «O conceito de Deus
que deve ser apto para a religião tem de ser o de um ser moral… e a
 10
prova da existência de um tal ser não pode ser outra senão moral.»
O ensaio de 91 prolonga também as considerações dos últimos pa‑
rágrafos da terceira Crítica sobre a conexão entre a físico­‑teologia e a
ético­‑teologia, entre a teleologia física e a teleologia moral. Ao intro‑
duzir o princípio da conformidade a fins da natureza, mas
concedendo­‑lhe apenas uma pertinência subjectiva e reflexionante,
a Crítica do Juízo, estendia uma ponte entre o domínio da liberdade
moral e o da necessidade da natureza e deixava aberto o passo à
religião e à filosofia da religião, sem fazer depender estas dum saber
teorético acerca do autor da natureza. Como se lê nas últimas linhas
da obra, «a teologia física ou físico­‑teleologia pode servir ao menos

  Kritik der praktischen Vernunft [KpV], Ak V, 31.


9

  «Der Begriff von Gott, der für Religion tauglich sein soll… ein Begriff
10

von ihm als einem moralischen Wesen sein muss… so leuchtet genugsam
ein, dass der Beweis des Daseins eines solchen Wesens kein anderer als ein
moralischer sein könne.» Ak VIII, 256.

271

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como propedêutica para a verdadeira teologia, na medida em que
possibilita, através da consideração dos fins da natureza, a ideia de
um final [Endzweck] que a natureza não pode apresentar; por conse‑
guinte, pode fazer sentir a necessidade de uma teologia que deter‑
mine suficientemente o conceito de Deus para o uso prático supre‑
mo da razão, mas não pode produzi­‑la e fundá­‑la suficientemente
 11
com base nas suas provas» .
 12
Kant sempre manifestou, desde a sua juventude e até na Crí‑
tica da Razão Pura (v., por exemplo, B 651­‑652), uma especial predi‑
lecção por esta prova físico­‑teológica, uma prova indirecta e a bem
dizer frágil da existência de um sábio autor do mundo, cuja exis‑
tência, essência e atributos não são nem assim conhecidos pela ra‑
zão, mas pelo menos podem ser por ela pressupostos para dar con‑
ta da ordem, beleza, regularidade e conformidade a fins que todos
os dias descobrimos nos mais pequenos detalhes da natureza. Mas
por essa prova o mais que podemos atingir é a ideia de um sábio
arquitecto do mundo, não a da existência de um criador do mundo.
Segundo o autor da Crítica do Juízo, se os homens se tornaram sen‑
síveis à beleza e finalidade da natureza não foi por uma preocupa‑
ção estética ou científica, mas por um interesse de ordem moral
(porque viram nisso uma vaga confirmação da exigência duma
­ordem moral do mundo garantida por um supremo legislador da or­
dem moral que fosse também o garante da ordem do mundo natu‑
ral e assim permitisse pensar que, no fundo, há uma harmonia en‑
tre ambas as ordens, embora o modo como isso acontece seja oculto
para nós). Mas, por outro lado, uma vez despertados pelo interesse
moral, o sentimento da beleza e a apreciação dos fins da natureza
contribuem para fortalecer eles mesmos o interesse moral que os
suscitou. Isto explica as recorrentes passagens da terceira Crítica
nas quais se põem em realce as analogias ou o parentesco que exis‑
tem entre os sentimentos estéticos da beleza e da sublimidade da
natureza e a apreciação teleo­lógica da natureza e o sentimento mo‑
ral e até mesmo o genuíno sentimento religioso. Citarei apenas uma
dessas passagens: «A admiração da beleza bem como a emoção
suscitada pelos fins tão diversos da natureza, que um espírito que
reflecte está em condição de experimentar antes mesmo de possuir

  Kritik der Urteilskraft [KU], Ak V, 485.


11

  Der einzig mögliche Beweisgrund zu einer Demonstration des Daseins Gottes,


12

Ak II, 126 e segs.

272

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uma clara representação de um autor racional do mundo, tem em
si qualquer coisa de semelhante a um sentimento religioso. Elas
parecem agir sobre o sentimento moral (de gratidão e de veneração
[der Dankbarkeit und der Verehrung] relativamente àquela causa que
nos é desconhecida) por uma espécie de apreciação desta beleza
e  destes fins que seria análoga ao modo de apreciação moral da
mesma [durch eine der moralischen analoge Beurtheilungsart], susci‑
tando no espírito ideias morais, quando causam aquela admiração
que está ligada a um interesse e que é de longe muito maior do
que  aquela que pode produzir uma contemplação simplesmente
 13
teórica.»
No ensaio de 91 há ecos bem audíveis não só dos parágrafos fi‑
nais da terceira Crítica sobre a relação entre a teleologia moral e a
teleologia física, entre a físico­‑teologia e a ético­‑teologia, mas tam‑
bém ecos da meditação kantiana em torno do sentimento da beleza
e sublimidade da natureza. A resposta de Deus a Job é uma súmula
da ideia central da terceira Crítica respeitante ao modo como é pos‑
sível pensar a ligação entre a físico­‑teologia e a teologia moral. Num
dos parágrafos do ensaio, lê­‑se: «Nós temos da sabedoria artística na
disposição deste mundo um conceito, ao qual, em relação ao nosso
poder racional especulativo [speculatives Vernunftvermögens] não fal‑
ta realidade objectiva para alcançar uma físico­‑teologia. Da mesma
forma temos também um conceito de uma sabedoria moral, a qual
num mundo em geral pode ter sido posta pelo mais perfeito criador
[Urheber] na ideia moral da nossa própria razão prática. Mas da uni‑
dade na conexão daquela sabedoria artística com a sabedoria moral
num mundo sensível [Sinnenwelt] não temos qualquer conceito e
não podemos também esperar alguma vez alcançá­‑lo. Pois ser uma
criatura e, enquanto ser que age livremente (o qual tem a sua vonta‑
de independente do influxo exterior), ser capaz de imputação [Zu­
rechnung] e, todavia, ver a sua própria acção [That] ao mesmo tempo
como efeito de um ser superior: é uma conciliação de conceitos que
nós, por certo, podemos pensar ao mesmo tempo na ideia de um
mundo enquanto supremo bem; mas que só pode compreender
[einsehen] aquele que penetra até ao conhecimento do mundo supra­
‑sensível (inteligível) e que vê [einsieht] o modo como ele constitui o
fundamento do mundo sensível [der Sinnenwelt zum Grunde liegt]:
somente sobre essa compreensão se pode fundar a prova da sabedo‑

13
  KU, Ak V, 482.

273

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ria moral do criador do mundo no mundo sensível, pois este mundo
sensível por certo apenas fornece àquele primeiro a aparência [Er­
scheinung], mas isso é uma compreensão [Einsicht] à qual nenhum
 14
mortal pode chegar.»
Pela via da reflexão estética e teleológica, aparentemente frágil,
se comparada com a pretensa evidência dum saber teórico, não só
fica salvaguardada a possibilidade da moral, como também fica pro‑
tegida a dignidade da religião, evitando­‑se que aquela se desmorone
porque deixaria de ser possível a liberdade humana e que a religião
se converta num mesquinho cálculo de interesses. Se Deus não nos
fosse oculto, toda a vida moral se desmoronaria, pois Deus e a eter‑
nidade estariam permanentemente diante dos nossos olhos com toda
a sua terrível majestade, faríamos tudo por medo, e as nossas acções
perderiam todo o valor moral. Sem verdadeira autonomia, liberdade
e dignidade, o comportamento moral do homem tornar­‑se­‑ia um
puro mecanismo. Mas o espectáculo da natureza na sua beleza e su‑
blimidade — e não só nos fenómenos que revelam uma finalidade
mas também naqueles que parecem ser apenas regidos por forças
destruidoras e sem qualquer finalidade reconhecível —, se não dá ao
homem a garantia de um saber acerca da ordem do mundo natural e
da conexão deste com a ordem do mundo moral, dá­‑lhe pelo menos
um ténue e todavia suficiente sinal (Wink) de que deve haver um
superior sentido do mundo e que esse sentido, mesmo que seja para
ele incompreensível, só pode ser um sentido moral que não desmin‑
ta as incondicionais exigências da sua razão prática.

2. Mas o que me leva a trazer aqui o ensaio de Kant é o facto


de o filósofo pretender ver a essência daquilo que considera ser a
«autêntica teodiceia» (ou a pertinente justificação de Deus face às
objecções feitas à sua sabedoria, bondade e justiça a partir da evi‑
dência do mal e da desordem que se revela no mundo físico e no
mundo moral) admiravelmente exposta no livro bíblico que leva o
nome de Job e de reconhecer, na atitude ou carácter da personagem
central desse antigo livro, aquela que deve ser a conveniente atitu‑
de do filósofo crítico em matéria de teologia natural, de filosofia da
religião e de filosofia moral. A referência a Job e a interpretação do
drama vivido pela personagem que dá nome a um dos mais singu‑
lares ­livros bíblicos do Antigo Testamento ocupa parte substancial

14
  Ak VIII, 263.

274

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do ensaio e constitui uma boa amostra do modo como Kant inter‑
preta os textos da Bíblia, surpreendendo neles um conteúdo de pro‑
funda e genuína significação moral. Os princípios hermenêuticos
da Escritura são ditados pelas exigências da razão moral, e não se
trata de descobrir na Bíblia uma qualquer verdade literal, histórica
ou doutrinal. A razão é o supremo exegeta, mas só enquanto guiada
 15
pelo princípio da morali­dade . Certos textos e figuras prestam­‑se
assim a uma interpretação que Kant entende ser de tipo alegórico,
na medida em que o texto bíblico é o veículo de uma mensagem
que tem de ser descodificada pela razão segundo um sentido mo‑
 16
ral . Mas não é só em relação aos livros bíblicos que a razão moral
reivindica a sua competência de intérprete. Reivindica­‑a também
no que se refere à interpretação da natureza, à descoberta do senti‑
do do livro do mundo. Lê­‑se no ensaio: «Enquanto obra de Deus, o
mundo pode ser considerado como uma manifestação divina das
intenções da sua vontade. Mas nisso é ele para nós frequentemente
um livro fechado; é­‑o, porém, sempre que pretendemos descobrir
nele, embora sendo um objecto da experiência, a intenção final de
Deus, a qual é sempre moral. As tentativas filosóficas deste tipo são
doutrinais e constituem a teodiceia propriamente dita, que se pode
chamar a teo­diceia doutrinal. Mas não se pode recusar o nome de
teodiceia à simples rejeição de todas as objecções contra a sabedoria
divina, quando ela é uma decisão divina [göttlicher Machtspruch] ou
(o que no caso vem a dar no mesmo) quando é uma sentença [Auss‑
pruch] da mesma razão, mediante a qual formamos para nós o con‑
ceito de Deus como um ser moral e sábio, necessariamente e antes
de toda a experiência. Pois então é Deus mesmo, mediante a nossa

15
  I. Kant, Die Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft, Ak VI,
110­‑114. Os princípios kantianos de hermenêutica bíblica serão explicitados so‑
bretudo em Die Religion (1793) e em Der Streit der Fakultäten (1797). Mas a citada
carta a Stäudlin contém uma súmula da concepção kantiana da hermenêutica e
do auxílio que o filósofo pode dar ao teólogo bíblico.
16
  A importância da fonte bíblica como inspiradora de temas e soluções do
pensamento kantiano bem como os princípios kantianos de hermenêutica bíbli‑
ca têm merecido a atenção de investigadores recentes. Henri d’Aviau de Ternay,
Traces bibliques dans la morale de Kant (Beauchesne, Paris, 1986), mostrou como
a Bíblia fornece a Kant uma tópica de problemas, de motivos e de imagens que
o filósofo usa discretamente nos seus escritos. Sobre os princípios kantianos de
hermenêutica bíblica, v. Andrés Lema­‑Hincapié, Kant y la Biblia. Princípios kan‑
tianos de exégesis bíblica, prefácio de Jean Grondin, Anthropos, Barcelona, 2006.

275

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razão, o intérprete da sua vontade manifestada através da sua cria‑
ção e a esta interpretação podemos chamá­‑la teodiceia autêntica.
Não se trata, porém, da interpretação de uma razão raciocinante
­[vernünftelnden] (especulativa), mas de uma razão prática imperati‑
va [machthabenden], a qual […] deve ser vista como imediata expli‑
cação e voz de Deus, mediante as quais ele dá um significado às
 17
letras da sua criação.»
Como já se depreendia dos últimos parágrafos da terceira Críti‑
ca, a físico­‑teologia, isto é, todo o sentido do mundo que se possa
depreender da conformidade a fins da natureza, não é ainda o sen‑
tido final nem para o homem nem para o mundo. Este sentido final
só a teologia moral ou a ético­‑teologia o pode proporcionar. Do que
há que concluir que só o homem, mas apenas enquanto ser moral,
pode ser considerado como o fim final (Endzweck) da criação, como
o ser capaz de dar um sentido final não só a si próprio mas também
 18
à existência do mundo .
Mas, voltando à interpretação do texto bíblico, no presente caso,
não se trata apenas da interpretação do sentido de uma passagem
ou de um episódio, mas do significado de todo um livro bíblico e do
drama que nele se expõe, o qual é lido por Kant como se aí estivesse
 19
condensado, sob o modo da alegoria (allegorisch ausgedrükt) , o cer‑
ne da sua própria filosofia. E, tratando­‑se de teodiceia, há que reco‑
nhecer que o livro de Job é na verdade todo ele um «ensaio de teo‑
diceia», o primeiro que alguma vez foi escrito. O que nele se expõe
é o atrevimento de um homem justo que ousa pedir contas a Deus
pelo mal no mundo; em particular, por não garantir, no seu caso, a
correspondência entre a rectidão moral e a felicidade. Job expõe em
carne viva a contradição e a desordem moral do mundo: a sua cons‑
ciência de nada o acusa e, todavia, vê­‑se reduzido à maior miséria e
ainda por cima sozinho com a sua própria consciência, abandonado
pelos mais próximos e lutando contra as censuras e acusações dos
seus amigos. O livro de Job descreve um processo judicial ou uma
causa — a causa de Job que é o queixoso, mas também a causa de
Deus, cujas bondade e justiça são postas em causa. Job, o acusador
de Deus, é também ele mesmo acusado pelos seus amigos; os ami‑
gos de Job desempenham a função de advogados de Deus e de

17
  Ak VIII, 264.
18
  KU, § 86, Ak V, 442­‑443.
19
  Ak VIII, 264.

276

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a­ cusadores de Job. Job apresenta a sua causa e toma ele mesmo o
encargo da sua defesa contra as acusações e argumentos dos seus
amigos, invocando o próprio Deus, que considera responsável pela
sua sorte, como sua última testemunha e seu derradeiro defensor
(Job, 23, 1­‑7; 27, 1­‑6; 31, 34­‑35).
A leitura do livro de Job por Kant em clave de discurso teodicei‑
co é claramente assumida numa passagem dum Curso de Teologia
Racional, onde o livro bíblico é posto em explícita relação com a Teo­
diceia de Leibniz, nestes termos: «A Teodiceia de Leibniz foi escrita
com a intenção de refutar as objecções contra os atributos de Deus:
Santidade, Bondade e Justiça. O livro de Job também aponta nessa
 20
direcção e é o livro mais filosófico do Antigo Testamento.» Mas, na
economia do ensaio, esta aproximação tem um significado ainda
mais relevante, pois o que nele se põe em confronto é o discurso teo­
diceico doutrinal, que tem por paradigma a teodiceia de Leibniz, e
que se considera votado ao fracasso, frente à autêntica teodiceia,
representada pelo livro de Job e sobretudo pela atitude de Job.
Job faz parte de um pequeno número de figuras antropológicas
que compõem a galeria de heróis em que se revê a filosofia kantiana
por algum dos seus aspectos. Sísifo representa nela a condição da
razão humana e da própria humanidade no curso da história ten‑
tando caminhar no sentido da resposta aos seus problemas ou no
sentido do progresso, mas tendo de regressar muitas vezes ao ponto
 21
de partida e recomeçar de novo a sua tarefa . Hércules, «a bela fá‑
bula de Hércules», por sua vez, representa a condição do homem
posto numa encruzilhada em que tem de escolher entre a virtude e
 22
o prazer . Job é o símbolo da fé moral kantiana e na sua figura se
condensa o essencial da filosofia kantiana da moral e da religião.
Frequentemente acusado de ser um pensador abstracto e formalista,
Kant revela­‑se neste ensaio capaz de expor a sua filosofia de um
modo estético com o exemplo concreto da vivência singular de um
homem que representa a condição humana levada ao seu limite.

  «Leibnitzens Theodizee ist in der Absicht geschrieben, um diese


20

Einwürfe [wider die Eigenschaften Gottes: Heiligkeit, Gütigkeit, Gerechtigkeit]


zu widerlegen. Das Buch Hiob im A. T. zweckt dahin ab, und das ist das
philosophischeste Buch im A. T.» Danziger Rationaltheologie, Ak XXVIII, 1287.
21
  Über den Gemeinspruch, Ak VIII, 307. V. o nosso Metáforas da Razão ou Eco‑
nomia Poética do Pensar Kantiano, F. C. Gulbenkian, Lisboa, 1994, pp. 271­‑278.
22
  Metaph. der Sitten, Ak VI, 380.

277

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A alegoria cai no âmbito daquele tipo de exposição não lógica mas
estética a que Kant chamou a «ideia estética», uma forma de repre‑
sentação criada pela imaginação para expor ideias que não cabem
numa exposição conceptual e que, embora não nos ajude a conhecer
algo objectivamente falando, «dá todavia muito que pensar» (viel zu
denken veranlasst), põe o espírito em movimento e abre­‑lhe perspec‑
tivas para um ilimitado campo de representações entre si aparenta‑
 23
das . Em registo estético, o ensaio dá­‑nos a súmula da filosofia de
Kant em clave de um drama existencial e moral. Não se trata de dar
a figura de Job propriamente como exemplo de moralidade ou de
atitude religiosa. É sabido como Kant resiste ao princípio de exem‑
plaridade e de imitação nessas matérias: o princípio da conduta
deve provir da razão e é o princípio da razão que aprecia e julga da
qualidade do exemplo e não o inverso. Os exemplos servem para
encorajamento e para emulação, não para serem usados como mo‑
delos. Mas expor uma ideia no concreto de um exemplo, de uma
metáfora, de uma alegoria ou de uma fábula faz ver essa ideia de
 24
uma forma muito mais clara . Ainda assim, como o escreveu um
intérprete da filosofia kantiana da religião, «Job é o único herói do
Antigo Testamento ao qual Kant dá um lugar na sua religião moral,
e isso não é por acaso: sem que o filósofo o tenha dito expressamen‑
te, o ponto de partida do drama é de espírito kantiano, e a situação
de Job poderia ter figurado entre os exemplos da primeira secção da
 25
Grundlegung».
O modo como Kant interpreta Job e o seu drama é bem caracte‑
rístico e revela melhor a sua originalidade se o compararmos com

  KU, § 49, Ak V, 315.


23

  I. Kant, Eine Vorlesung über Ethik, ed. de G. Gerhardt, Fischer


24

Taschenbuch Verlag, Frankfurt a. M., 1990, p. 122: «Sind keine Beispiele in


Sachen der Religion und Moral nötig. Es gibt also keine Muster in der Religion,
weil der Grund, das Principium des Verhaltens in der Vernunft liegen muss
und nicht a posteriori abgeleitet werden kann; wenn mir die Erfahrung auch
kein einziges Beispiel der Ehrlichkeit, der Rechtschafenheit, der Tugend gibt,
so sagt mir doch die Vernunft, ich soll so sein. Ja die Beispielen selbst müssen in
der Religion aus allgemeinen Prinzipien beurteilt werden, ob sie gut sind oder
nicht, aber nicht die Sittlichkeit und Religion aus den Beispielen. Die Beispiele
dienen zur Aufmunterung und zur Nachfolge, aber als Muster müssen sie nicht
gebraucht werden.»
25
  Jean­‑Louis Bruch, La philosophie religieuse de Kant, Aubier, Paris, 1968,
p. 206.

278

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 26
outras interpretações filosóficas do mesmo drama . Não há por cer‑
to figura bíblica que tenha merecido mais a atenção dos filósofos, os
quais a têm interpretado de muito diferentes maneiras, de acordo
com os próprios pressupostos filosóficos, destacando um ou outro
aspecto dessa polissémica personagem e do drama que ela protago‑
 27
niza . Uns vêem no livro bíblico, apesar das distâncias, o análogo
de uma tragédia grega. Job seria um Prometeu bíblico, mas aqui
castigado ou submetido a uma prova extrema sem ter cometido ne‑
nhum crime. A condição de Job é assumida no livro bíblico num
explícito registo de prova, de experiência levada ao limite. Mas, se‑
gundo alguns, o núcleo trágico do poema dissolve­‑se em farsa ou
 28
comédia, caso se tenha em conta a economia global da obra . Ou‑
tros intérpretes (é o caso de Hobbes) surpreendem nessa obra uma
filosofia do poder absoluto e incontestado de um Deus do qual se
conhecem os decretos mas não se sondam os desígnios, de um abso‑
luto a quem os humanos não têm o direito de pedir contas. Em re‑
gisto moralista, ora se destaca a paciência de Job, ora o seu sofri‑
mento desproporcionado e inconcebível. Em registo religioso, põe­‑se
em relevo a humildade da personagem bíblica e a sua aceitação final
do veredicto divino. Nietzsche coloca Job no restrito número daque‑
 29
les verdadeiros heróis trágicos que souberam dizer sim (Hiob bejaht) .
Nesse homem, que talvez nem pertencesse ao povo eleito (pois era

  O tópico atraiu já a atenção de alguns intérpretes. V. W. Strolz, «Die


26

Hiob­‑Interpretation bei Kant, Kierkegaard und Bloch», Kairos, 23 (1981),


pp. 75­‑87; M. Régnier, recensão da obra (a que não conseguimos acesso) de
A. L. ­Loades, Kant and Job’s Conforters, in Archives de Philosophie, 49 (1986),
pp. 661 e segs.; Livio Sichirollo, «Fede e sapere. Giobbe e gli amici. Riflessioni
in tema di filosofia, religione e filosofia della religione in Kant e in Hegel»,
in Valerio Verra (a cura di), Hegel interprete di Kant, Prismi Editrice, Napoli,
1981, pp. 219­‑266; Domenico Venturelli, «Forme del male e interrogazione jo‑
bica nella filosofia di Kant?», in idem, Etica e Tempo, Morcelliana, Brescia, 1999,
cap. 4, pp. 73­‑99.
27
  V. J. T. Wilcox, The Bitterness of Job: A Philosophical Reading, Ann Arbor,
1989; Giovanni Moreto, Giustificazione e interrogazione. Giobbe nella filosofia,
Napoli, 1991; idem, «Presenza del ‘Libro di Giobbe’ nel pensiero moderno.
Una bibliografia», Giornale di Metafisica (Nuova Serie), IV, 1982, 209­‑218; C.­‑F.
Geyer, «Wirkungsgeschichtliche Aspekte der biblischen Hiobdichtung», in W.
Oelmüller (Hrsg.), Leiden, Paderborn, 1986, pp. 28­‑39.
28
  L. Alonso­‑Schökel, «Towards a Dramatic Reading of the Book of Job»,
Semeia, 7, 1977, 45­‑59; W. Whedbee, «The Comedy of Job», Semeia, 7, 1977, 1­‑39.
29
  Nietzsche, Werke, ed. K. Schlechta, Hanser, München, 1969, III, 784.

279

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um edomita), mas que ousa questionar Deus, viu Ernst Bloch a
emergência e a inscrição do princípio de ateísmo no interior das
próprias experiência e fé religiosa bíblicas. Outros há que são sensí‑
veis ao escândalo do mal (Paul Ricoeur, Hans Jonas), ou mesmo ao
 30
«excesso do mal» que na personagem bíblica se exibe, ou que pro‑
jectam sobre a história de Job a história da paixão de Cristo, e vice­
‑versa, vendo numa e noutra casos exemplares do «mecanismo viti‑
mário», em que o justo atrai sobre si o ódio da comunidade e é
 31
transformado em «bode expiatório» (René Girard) . Søren Kierke‑
gaard, Rudolf Otto, Carl Jung… vasta e variada é a galeria de notá‑
veis intérpretes e apreciadores desse livro bíblico, o qual talvez te‑
nha mais verdadeiros admiradores entre os filósofos do que entre os
 32
teólogos . A razão de tanto apreço dos filósofos por esse livro bíbli‑
co reside na seriedade do drama que ele exibe, na profundidade do
debate (entre Job e os amigos, entre Job e Deus, entre Job e a sua
consciência) que nele se trava, no poder humano e quase mais que
humano e na digni­dade da singular figura humana que o habita, a
qual, no dizer de Lutero, «conhecia todos os pensamentos e refle‑
 33
xões que podem ocor­rer ao coração humano» . Por tudo isso, Job
em todas as épocas tem sido considerado, pelos pensadores mais
diversos, ora como o símbolo universal da condição humana (Vol‑
taire, Kafka, Camus), ora como o porta­‑voz de todas as vítimas in‑
ocentes. O herói bíblico expõe em carne viva o caso­‑limite — e es‑
candaloso para o sentido simplesmente humano de justiça — em
que não há conexão compreensível (antes há contradição flagrante)
entre a moralidade e a felicidade, entre a ordem do mundo moral e
a ordem do mundo natural.
Nos escritos de Kant, as referências explícitas ou implícitas a
Job não são muito numerosas, mas são ainda assim relativamente
frequentes e sobretudo são muito significativas porque pontuam
momentos decisivos ou tópicos maiores da filosofia kantiana. Uma
dessas referências ocorre numa carta de 28 de Abril de 1775 a ­Lavater

30
  Philippe Nemo, Job et l’excès du mal, Grasset, Paris, 1978.
31
  R. Girard, Job: The Victim of his People, Stanford, 1987.
32
  Sobre os problemas que envolvem a exegese e a história da exegese des‑
te livro bíblico, v. Hans­‑Peter Müller, Das Hiobproblem. Seine Stellung und Entste‑
hung im Alten Orient und im Alten Testament, WBG, Darmstadt, 1978; James L.
Crenshaw, «Book of Job», The Anchor Bible Dictionary, vol. 3, 858­‑868.
33
  Martin Luther, Tischreden (ed. de Kurt Aland), Reclam, Stuttgart, 1960,
p. 12.

280

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e o seu alcance reside sobretudo em exprimir ela uma identificação
pessoal do filósofo com a figura bíblica. O pastor Johann Kaspar
Lavater enviara a Kant um tratado sobre a fé e a oração, solicitando­
‑lhe um juízo sobre o mesmo. A resposta de Kant contém em germe
toda a filosofia kantiana da religião — duma religião nos limites da
mera razão — e nela são já identificáveis os tópicos essenciais que
irão ser explicitados nos escritos do início da década de 90: a ideia
de um mal radical inscrito na natureza humana, dita sob a forma de
uma «insuperável maldade dos nossos corações», a pura «fé moral»
(moralische Glaube) como sendo a essência da mensagem dos Evan‑
gelhos, a distinção entre o genuíno ensinamento moral de Cristo e o
conjunto das narrações e preceitos secundários ou mesmo espúrios
que os envolvem, a ideia de um necessário complemento divino à
fragilidade humana, sob um modo para nós escondido nas profun‑
dezas dos decretos divinos. Mas, antes de expor estes tópicos, Kant
dirige­‑se ao seu correspondente nestes termos: «Solicitais o meu ju‑
ízo a respeito do vosso tratado Da Fé e da Oração. Sabeis a quem vos
dirigis? A alguém que não conhece nenhum meio que permaneça de
pé no último instante da vida a não ser a mais pura sinceridade no
que concerne às convicções mais secretas do coração [als die reinste
Aufrichtigkeit in Ansehung der verborgensten Gesinnungen des Herzens]
e que com Job considera como um crime adular [schmeicheln] Deus e
fazer confissões [Bekenntnisse] íntimas, forçadas talvez pelo medo,
mas com as quais não concorda o ânimo [Gemüt] numa fé livre [in
 34
freiem Glauben].»
Esta passagem é particularmente significativa já pelo contexto
em que surge, como prelúdio a um sumário dos tópicos da filosofia
kantiana da religião. Mas é­‑o ainda mais pela identificação pessoal
do filósofo com a personagem bíblica e por aquilo que põe em des‑
taque no carácter da personagem: a absoluta sinceridade. Eis um
tópico que o filósofo crítico toma muito a peito no desempenho do
seu programa filosófico, em particular na sua filosofia da religião,
associando­‑o com frequência explicitamente à figura do herói bíbli‑
co, embora o tema da sinceridade ou veracidade acabe por ganhar
 35
no pensamento kantiano uma autonomia própria .

  Carta a Lavater, 28 de Abril de 1775 (ed. J.­‑L.Bruch, Kant, Lettres sur la


34

Morale et la Religion, Aubier, Paris, 1969, pp. 22­‑24).


35
  V. o meu ensaio «Kant e a ética da linguagem», in Manuel José do Car‑
mo Ferreira (coord.), A Génese do Idealismo Alemão, CFUL, Lisboa, 2000, pp.  61­
‑81. Neste volume, pp. 175-203.

281

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3. Sigamos então mais de perto a leitura kantiana do livro bíbli‑
co. O que atrai a atenção do filósofo são os protagonistas da história:
Job, os amigos de Job e Deus. Vejamos como vê cada um deles.
Em primeiro lugar, Job e os amigos. No breve sumário em que,
seguindo o texto bíblico, relata como o herói passou da situação de
uma vida próspera e feliz para a mais completa miséria e abandono,
Kant destaca como «o mais importante de tudo», a condição moral
do herói, o qual «vivia em paz consigo mesmo numa boa consciên‑
cia» (mit sich selbst zufrieden in einem guten Gewissen). E logo se con‑
centra na controvérsia que se estabelece entre o herói e os seus ami‑
gos que acorrem com o pretexto de o consolar. O que nessa
controvérsia reconhece é que cada uma das partes expõe a sua pró‑
pria teodiceia, cada qual segundo o seu modo de pensar e a respec‑
tiva posição, tentando encontrar uma explicação para tão infeliz
destino. Os amigos de Job defendem a tese que explica todos os ma‑
les do mundo a partir da justiça divina (System der Erklärung aller
Übel in der Welt aus der göttlichen Gerechtigkeit), como sendo outros
tantos castigos por crimes cometidos; e ainda que não consigam in‑
dicar nenhum crime de que Job seja culpado, pensam, todavia, po‑
der afirmar a priori que ele deve ter cometido algum, e grave, pois,
se assim não fosse, a justiça divina não teria permitido que ele se
tivesse tornado infeliz. Job, pelo contrário, protesta com veemência
que a consciência de toda a sua vida não o acusa de nada e que, no
que se refere às faltas resultantes da fragilidade humana, Deus sabe
muito bem que o criou como um ser falível, mas declara­‑se a favor
do sistema que explica a sua situação por um incompreensível de‑
creto incondicionado divino (System des unbedingten göttlichen Rath­
schlusses), o que exprime nestas suas palavras: «Ele é único e faz o
que quer.» (Job 23,13.)
Mais, porém, do que o sistema de explicação que cada parte
protagoniza ou do que as razões que cada qual expõe, considera
Kant ser digno de atenção o carácter (Charakter) ou atitude de espí‑
rito com que o fazem. É a qualidade moral que distingue os prota‑
gonistas. Escreve Kant: «Job fala como pensa, e como lhe vai na
alma, e também como qualquer homem na sua posição o faria
[Hiob spricht, wie er denkt, und wie ihm zu Muthe ist, auch wohl jedem
 36
Menschen in seiner Lage zu Muthe sein würde].» Em contrapartida,
os  amigos de Job falam como se fosse para serem ouvidos pelo

36
  Ak VIII, 265.

282

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todo­‑poderoso, sobre cuja causa dissertam correctamente como se,
mediante o seu juízo, revelassem mais empenho em atrair sobre
si  as boas graças de Deus do que em dizer a verdade. Esta
sua ­per­fídia, de «afirmar simuladamente coisas relativamente às
quais ­deveriam antes confessar que as não entendem e de aparen‑
tar uma convicção que na realidade não têm, contrasta com a rec‑
ta  franqueza [gerade Freimüthigkeit] de Job, que está tão longe de
toda a falsa adulação que quase toca as raias do atrevimento [an
 37
­Vermessenheit gränzt]».
Essa perfídia ou dissimulação dos seus amigos foi, aliás, notada
por Job, o qual, dirigindo­‑se aos advogados de Deus, lhes pergunta:
«É com a injustiça que quereis defender Deus? Falais assim por ter‑
des em consideração a sua pessoa? Quereis representar Deus? Ele
castigar­‑vos­‑á se fizerdes secretamente acepção de pessoas! Ne‑
 38
nhum hipócrita vai à sua presença.»
Os amigos de Job são apresentados como típicos teólogos dog‑
máticos, que representam a ortodoxia do sistema teológico conven‑
cional, o qual escamoteia ou minimiza os problemas reais e se refu‑
gia comodamente em soluções feitas. Kant não duvida de que eles
passariam no exame de ortodoxia teológica, pois desenvolvem dis‑
cursos razoáveis e aparentam uma religiosa humildade. Já quanto a
Job, caso comparecesse diante de um tribunal de teólogos dogmáti‑
cos, de um sínodo, de uma inquisição, de uma assembleia de vene‑
ráveis ou até de um qualquer consistório moderno, haveria de sofrer
um triste destino. Uma premonição do que ao próprio filósofo viria
a acontecer muito pouco tempo depois (Junho de 1792 e em 1794),
ao ver recusado pelos censores (Hermes e Hillmer) um seu ensaio
sobre filosofia da religião enviado também para a Berlinische Mo‑
natsschrift e, após a edição de Die Religion, ao ser­‑lhe imposta pelo
ministro Wöllner a proibição não só de publicar como até de prosse‑
guir as investigações sobre filosofia da religião.
O primeiro aspecto que ressalta na interpretação kantiana de
Job é o perfil moral da personagem bíblica. A sua atitude representa
aquilo que Kant entende como a autêntica fé moral, uma fé que não
nasce da resolução das suas dúvidas mas do reconhecimento da ig‑
norância dum homem que, no meio das suas incertezas mais angus‑
tiantes, podia dizer que até ao fim dos seus dias não queria afastar­

37
  Ak VIII, 265­‑266.
38
  Job 13, 7­‑11,16.

283

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 39
‑se da sua piedade . «Com esta atitude», diz Kant, «ele provou que
a sua moralidade não se fundava na fé, mas sim que a fé se fundava
na moralidade e, por frágil que fosse, essa fé era sincera e autêntica,
capaz de fundar uma religião não para obter favores mas uma reli‑
 40
gião da boa conduta de vida.»
Temos aqui a insistente tese de Kant que resume toda a sua filo‑
sofia da religião e a sua concepção da relação entre moral e religião.
Mas o envolvimento do drama de Job apresenta ingredientes que
são importantes para melhor se compreender a filosofia kantiana da
moralidade e da religião. Uma e outra banham­‑se numa ambiência
estética do sublime. Representará Job uma figura do trágico kantia‑
no, a exibição exemplar da moralidade trágica como solidão do ho‑
mem justo consigo mesmo, perante o silêncio de Deus e o silêncio
do mundo? Vários intérpretes consideram que Job tem todos os in‑
gredientes para ser considerado um herói trágico. Segundo Benno
 41
de Wiese , seria mesmo a única figura bíblica do trágico no Antigo
Testamento, a que corresponde no Novo Testamento a figura de
Cristo. Houve quem o associasse ao Prometeu helénico. Mas na for‑
ma actual da obra, a tragédia resolve­‑se numa história edificante e
moralizante, ou, segundo alguns comentadores, degenera mesmo
em comédia e em farsa. A introdução e a conclusão em prosa, que
enquadram o poema, diluem a força do drama exposto no poema
numa história compatível com a doutrina tradicional fazendo de
Job uma figura exemplar: Job foi submetido a uma prova e passou
nela, acabando por reconhecer que não tinha o direito de pedir con‑
tas a Deus e confessando a sua incapacidade para compreender os
desígnios do Criador, humilhando­‑se perante a sentença divina. Por
isso foi reintegrado na sua anterior prosperidade e felicidade. Mas
nem Job nem os amigos de Job sabiam que estavam envolvidos
numa prova ou situação experimental. É bem possível que o poema
propriamente dito constituísse um desenvolvimento autónomo, e
até anterior, em relação à história popular, com a qual de resto se

39
  Job 27, 5­‑6.
40
  «Denn mit dieser Gesinnung bewies er, dass er nicht seine Moralität auf
den Glauben, sondern den Glauben auf die Moralität gründete: in welchem
Falle dieser, so schwach er auch sein mag, doch allein lauter und ächter Art,
d. i. von derjenigen Art ist, welche eine Religion nicht der Gunstbewerbung,
sondern des guten Lebenswandelns gründet.» Ak VIII, 267.
41
  Benno de Wiese, Die Deutsche Tragödie von Lessing bis Hebbel, 1. Teil:
Tragödie und Theodizee, 5.a ed., Hamburg, 1961.

284

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articula mal, pois não resolve a antinomia, mas a deixa em carne
viva, mostrando como a lógica da aliança claudica e como não fun‑
ciona o mecanismo causal da acção­‑recompensa, que constitui a
base da argumentação dos amigos de Job e da introdução e conclu‑
são do livro. No poema, a experiência humana de Job fala mais forte
do que todas as pretensas certezas da teologia convencional desfia‑
das pelos seus amigos. Kierkegaard tem razão quando diz que a
grandeza de Job reside na sua paixão pela liberdade da sua consciên­
cia, a qual não se deixa paralisar ou acalmar por nenhum sofisma:
«Job mantém a sua pretensão de ter razão. Com isso ele dá testemu‑
nho da nobre coragem do homem que conhece a sua condição; ape‑
sar das suas fraquezas e da sua vida que rapidamente murcha como
a das flores, ele é grande pela sua liberdade; ele possui a consciência
de que o próprio Deus não lha pode tirar, ainda que lha tenha dado.
De resto, Job mantém a sua pretensão de tal maneira que se vê nele
o amor e a confiança firmes de que Deus pode muito bem explicar
 42
tudo, desde que se lhe fale com franqueza e directamente.»
Em certo sentido, o abandono por Deus e o longo silêncio de
Deus que não responde às instâncias de Job são a prova da grandeza
deste homem que ousa questionar Deus. Mesmo que Deus acabe por
não ouvi­‑lo ou por não lhe dar resposta e razão, a sua própria consciên­
cia é o que constitui para Job o absoluto. É ela que em derradeira
instância o salva ou o condena. Como diz o próprio Kant: «Sob um
regime estabelecido por Deus, o homem, mesmo o melhor, deve espe‑
rar a sua felicidade não da justiça divina, mas unicamente do seu
próprio mérito; e aquele que cumpre todo o seu dever não tem ne‑
 43
nhum direito aos favores de Deus.» Outro modo de dizer que o ho‑
mem não deve preocupar­‑se com ser feliz, mas deve agir para tornar­
‑se digno da felicidade. Quer esta lhe advenha ou não, ele tem já nas
suas próprias acção e consciência virtuosas a gratificação bastante.
A dizer a verdade, não é tanto a sua miséria e dor o que corrói
Job, quanto o não poder convencer os amigos e o próprio Deus da
sua justiça. Mas, no fundo, é sobre a sua consciência apenas que ele

42
  S. Kierkegaard, La répétition. Œuvres complètes, Éditions de l’Orante, Pa‑
ris, vol. 5, pp. 74 e segs.
43
  Ak VIII, 258: «Denn in einer göttlichen Regierung kann auch der beste
Mensch seinen Wunsch zum Wohlergehen nicht auf die göttliche Gerechtigkeit,
sondern muss ihn jederzeit auf seine Güte gründen: weil der, welcher bloss
seine Schuldigkeit thut, keinen Rechtsanspruch auf das Wohlthun Gottes haben
kann.»

285

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se firma, mesmo que tudo o mais o desampare. Mesmo que Deus
não seja justo, ou não olhe pelas coisas humanas, ou não lhe respon‑
da, ou até nem exista, isso não afecta o homem virtuoso no mais
fundo de si mesmo. Job ama Deus e é virtuoso por nada, sem uma
razão, tal como vem a saber, pelo discurso final de Deus, que tam‑
bém a sua própria existência tal como a de todos os outros seres está
aí por nada e sem uma razão determinada final que o homem possa
compreender. O drama moral do livro de Job termina num cenário
onde se compensam imagens da beleza e da sublimidade da nature‑
za, manifestações que mostram a finalidade da natureza e as que
deixam ver as forças caóticas da natureza em todo o seu poder de
destruição. Passagens da resposta de Deus a Job eram citadas pelos
analistas setecentistas dos sentimentos estéticos como insuperáveis
exemplos de uma retórica do sublime. É o caso de Edmund Burke,
 44
na sua Investigação sobre o Sentimento do Sublime e do Belo (1757) .
Essas imagens constituem o cenário habitual de uma teofania, mas,
no presente caso, trata­‑se da teofania negativa de um Deus que se
esconde por detrás da ambiguidade das suas obras. Shaftesbury, na
Carta sobre o Entusiasmo (1708), via em Job uma figura do «autêntico
entusiasmo» e reconhecia a sua grandeza não na paciência ou na
capacidade de suportar a prova do sofrimento, mas na ousadia e
íntima liberdade que o levava a expor directamente as suas queixas
 45
a Deus, como que medindo­‑se com ele . Se tivermos presente a ca‑
racteriologia antropológico­‑moral, proposta por Kant no ensaio in‑
titulado Considerações acerca do Sentimento do Belo e do Sublime (1764),
Job é uma figura que cai na tipologia do melancólico, cujos senti‑
mentos são da ordem do sublime e se exprimem sobretudo num
registo moral: é alguém que não se preocupa com o que os outros
julgam bom ou verdadeiro, mas toma por base apenas a própria
convicção, que ama a sinceridade e odeia mentiras e fingimento,
que possui um elevado sentimento da dignidade da natureza hu‑
mana, que não tolera nenhuma subserviência abjecta e cujo nobre
 46
coração respira liberdade . Em Job reúnem­‑se as qualidades do su‑

  E. Burke, A philosophical Enquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime
44

and Beautiful, ed. Adam Phillips, Oxford University Press, Oxford/New York,
1990, pp. 61­‑64.
45
  Sobre Job como figura do sublime nos pensadores setecentistas, v. Bal­
dine Saint Girons, Fiat Lux. Une philosophie du sublime, Quai Voltaire, Paris, 1993,
pp. 160, 319, 371, 437 e 494.
46
  Beobachtungen über das Gefühl des Schönen und Erhabenen, Ak II, 32­‑33.

286

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blime e da moralidade e nessa figura se mostra também o como e o
quanto a moral kantiana se move numa ambiência do sublime e
 47
como não pode entender­‑se adequadamente sem essa ambiência .
Na carne de Job é exteriormente negada a sua íntima rectidão, na
miséria que o atinge é negada a sua justiça moral pela razão huma‑
na que aprecia as situações segundo o princípio duma relação e pro‑
porção directas entre causas e efeitos. E, todavia, Job não troca por
nada a sua convicção íntima. É no contraste entre esta íntima liber‑
dade e grandeza ou dignidade moral da personagem bíblica e o so‑
frimento extremo e abandono em que se encontra que melhor brilha
a sua sublimidade trágica. Job não corresponderia à ideia schilleria‑
na da «bela alma», onde a graça acompanha a dignidade, onde até
as tendências sensíveis e a harmonia dos sentimentos predispõem à
prática da virtude. Como Kant responderá a Schiller, a moralidade e
a sua dignidade estão mais do lado da sublimidade perante a majes‑
tade da lei do que do lado da graciosidade e da beleza e atractivos
sensíveis. Mas, curiosamente, é Schiller que, tendo talvez interiori‑
zado a lição de Kant, parece compreender esta condição simulta‑
neamente sublime e trágica do homem virtuoso, quando, num seu
ensaio do ano 1795, escreve o seguinte: «É inteiramente correcto
dizer que a verdadeira moralidade só se afirma na escola da adver‑
sidade, e que uma felicidade constante facilmente se torna um es‑
colho para a virtude… O homem que é ininterruptamente feliz
nunca encara de frente o dever, uma vez que as suas inclinações,
conformes às leis e ordenadas, antecipam sempre o comando da
razão e nenhuma tentação de violar a lei lhe lembra a existência da
lei. Governado apenas pelo sentido da beleza, … ele irá para o tú‑
mulo sem ter experimentado a dignidade da sua destinação. O in‑
feliz, porém, se for simultaneamente um ser virtuoso, saboreia o
sublime privilégio de privar directamente com a divina majestade
da lei e, uma vez que nenhuma inclinação vem em auxílio da sua
virtude, ele demonstra ainda enquanto homem a liberdade de um
 48
ser divino.» Também para Schiller, Job é exemplo do trágico, não
tanto pelo seu sofrimento quanto pela sua liberdade moral no so‑

47
  Como tentei mostrar no ensaio «Sentimento do sublime e vivência mo‑
ral», in A Razão Sensível. Estudos Kantianos, Colibri, Lisboa, 1994, pp. 85­‑98.
48
  F. Schiller, Notwendige Grenzen beim Gebrauch schöner Formen, Sämtliche
Werke, WBG, Darmstadt, 1989, Bd.V, 693. Sobre a figura de Job em Schiller, v. Re‑
nate Homann, Erhabenes und Satirisches. Zur Grundlegung einer Theorie ästhetischer
Literatur bei Kant und Schiller, Fink, München, 1977, p. 79.

287

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frimento, uma liberdade que se torna ainda mais visível na resis‑
tência ao sofrimento.
Job expõe a solidão do homem moral perante a opacidade de
um mundo onde não descobre um inequívoco sentido, perante as
certezas humanas que não lhe dão conforto nem lhe desfazem as
suas dúvidas, perante o silêncio do Absoluto que, ou não responde
às suas instâncias ou, respondendo­‑lhes, se nega a prestar­‑lhe con‑
tas, exibindo antes diante dele o estendal de manifestações do seu
poder a que preside uma lógica de incompreensibilidade. Job é o
homem moral ou o homem justo em sofrimento extremo, cujo maior
sofrimento não é, porém, o que lhe advém de ter perdido os seus
bens, os filhos, a sua saúde e a antiga felicidade, mas o de não ter o
conforto de ninguém naquilo que verdadeiramente o consome e
que é o não poder provar, nem aos amigos nem a Deus, a íntima
verdade da sua consciência que de nada o acusa. Apesar de segura
em si mesma, por estranho que pareça, a consciência necessita do
reconhecimento perante uma outra consciência, precisa do veredic‑
to de um juiz. Ainda assim, por nada Job desistiria da sua consciên‑
cia. Pois, a que se agarraria ele então? Mesmo que Deus não lhe
responda, ou não lhe faça justiça, ele não deixará de ser recto, nem
desistirá da convicção íntima da sua rectidão e da sua justiça. A sua
convicção é de tal ordem que, ao limite, ele dispensaria até o reco‑
nhecimento que lhe viesse dos amigos, da boa doutrina, da boa or‑
dem da natureza, ou do próprio Deus. No fundo, ele está convicto
de que Deus é justo e lhe há­‑de fazer justiça e dar razão. Mas se o
próprio Deus não fosse justo, o problema seria dele! Num dos seus
Sermões, Mestre Eckhart escreveu algo que vai no mesmo sentido, a
saber, que «os homens justos tomam a justiça de tal modo a sério
que se Deus não fosse justo eles não atribuiriam mais importância a
 49
Deus do que a um feijão» . Esta observação do místico renano po‑
deria bem aplicar­‑se ao justo Job.
Na verdade, o drama de Job é um drama que decorre todo na
consciência do homem, à imagem de um processo judicial conduzi‑
do perante um tribunal interior no qual os pensamentos se acusam
ou desculpam como se estivessem perante um supremo juiz que é

49
  «Den gerechten Menschen ist es so Ernst mit der Gerechtigkeit, dass
sie, wenn Gott nicht gerecht wäre, sich nicht die Bohne um Gott kümmern
würden.» Meister Eckhart, Deutsche Predigten und Traktate, Insel­‑Verlag, Lei­
pzig, 1938, p. 267.

288

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ainda uma instância da própria consciência moral. Compreendere‑
mos isto se tivermos em conta a exposição que o filósofo faz da
génese fenomenológica e do funcionamento da consciência moral
no § 13 da sua Doutrina da Virtude (como de resto o fazia nas suas
Lições de Ética), um documento que nos leva directamente ao estrato
mais fundo do pensamento kantiano, à arqueologia da consciência
moral e àquele momento em que a razão se constitui e se revela
como razão prática; que nos leva, em suma, à génese simultânea da
consciência moral e da consciência religiosa. Dada a importância
 50
arqueológica deste tópico , o texto que o expõe merece uma cita‑
ção extensiva: «Todo o homem tem consciência moral e encontra­‑se
em observação por um juiz interior, que o ameaça e, em geral, o
mantém em respeito (respeito associado ao temor), e este respeito
que vela nele pela observância das leis não é algo que ele elabora
(arbitrariamente) para si próprio, mas é algo que está incorporado
no seu ser… Esta disposição originária, intelectual e moral (porque
é uma representação do dever), chamada consciência moral, tem de
peculiar em si o facto de que, embora esta tarefa seja algo que o
homem trata consigo próprio, no entanto, vê­‑se obrigado pela sua
razão a desempenhá­‑la como se fosse por ordem de outra pessoa.
Porque se trata aqui de apresentar uma causa judicial (causa) pe‑
rante um tribunal. Mas representar o acusado pela sua consciência
moral como uma e a mesma pessoa que o juiz é uma forma absurda
de representar um tribunal; pois que então o acusador perderia
sempre. — Daí que em relação a todos os deveres a consciência
moral do homem tenha de imaginar um outro (como homem em
geral), distinto de si próprio, como juiz das suas acções, se não qui‑
ser estar em contradição consigo mesma. Ora, este outro pode ser
uma pessoa real ou meramente ideal, que a razão por si própria
cria. Uma tal pessoa ideal (o juiz autorizado da consciência moral)
tem de ser escrutinador de corações; pois que o tribunal se estabe‑
lece no interior do homem; — mas, ao mesmo tempo, tem de ser
alguém que obriga sempre, quer dizer, tem de ser aquela pessoa, ou

  Para o enquadramento deste tópico, v. Leonel Ribeiro dos Santos, Metá‑


50

foras da Razão ou Economia Poética do Pensar Kantiano, JNICT/F. C. Gulbenkian,


Lisboa, 1994, pp.  591 e segs., e o ensaio «Da linguagem jurídica da filosofia
crítica à arqueologia da razão prática», in Leonel Ribeiro dos Santos (coord.),
Filosofia Kantiana do Direito e da Política, Actas do Seminário Internacional (7 e 8 de
Abril de 2006), Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2007,
pp. 205­‑223. Neste volume, pp. 205 e segs.

289

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tem de pensar­‑se como aquela pessoa, em relação à qual todos os
deveres em geral têm de ser também considerados como manda‑
dos seus: porque a consciência moral é o juiz interior de todas as
acções livres. — Ora, dado que um tal ser moral tem de ter simulta‑
neamente todo o poder (no céu e na terra), pois que, caso contrário,
não poderia proporcionar às suas leis a eficácia que lhes correspon‑
de… e, dado que se chama Deus a um ser moral omnipotente, a
consciência moral terá, deste modo, de ser concebida como princí‑
pio subjectivo de uma responsabilidade dos próprios actos perante
Deus; mais: este último conceito estará sempre contido (se bem que
apenas de um modo obscuro) naquela consciência moral de si pró‑
prio. Ora, isto não equivale a dizer que o homem se encontra auto‑
rizado, nem, muito menos ainda, obrigado por esta ideia a que o
conduz inevitavelmente a sua consciência moral a admitir um tal
ser supremo com existência real fora de si; pois que esta ideia não
lhe é dada objectivamente pela razão teórica, mas tão­‑somente sub‑
jectivamente pela razão prática, que se obriga a si mesma a agir em
conformidade com ela; e, por intermédio desta ideia, unicamente
por analogia com um legislador de todos os seres racionais do
mundo, o homem recebe uma simples orientação, que consiste em
representar para si mesmo a imputabilidade moral (que também se
chama religio) como responsabilidade perante um ser santo (a razão
moralmente legisladora) distinto de nós próprios, mas, no entanto,
intimamente presente em nós, e submeter a sua vontade às regras
da justiça. O conceito de religião em geral é aqui para o homem
unicamente um princípio de apreciação de todos os seus deveres
 51
como mandados divinos.»

4. O segundo aspecto que Kant destaca no carácter e atitude


de Job, em contraste com os dos seus amigos, é a sinceridade. Num
primeiro esboço do ensaio que venho comentando, Kant escreveu:
«Job pôs como princípio de todas as suas confissões de fé a cons‑
cienciosa sinceridade; um princípio que deveríamos presumir ser
universal, tanta é a clareza com que brilha e, todavia, devido a uma
enraizada tendência do homem para a deslealdade, a falsidade che‑
 52
ga ao ponto de ir até à mentira íntima.» E toda a última parte da

  Metaphysik der Sitten, Ak VI, 437­‑439.


51

  «Hiob… der die gewissenhaftete Redlichkeit zum Princip aller seiner


52

Glaubenaussprüche machte; ein Grundsatz von dem man weil er so klar

290

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versão final publicada é uma explicitação deste tópico. Kant começa
por mostrar como a sinceridade está intimamente associada à qua­
lidade da teologia ou teodiceia que se pretende propor. A boa
­dou­trina, sobretudo em tais matérias, não pode fundar­‑se sobre a
deslealdade e a mentira da razão ou da consciência a si mesmas,
pretendendo provar ou dar por provado o que sabem não poder
provar, pretendendo conhecer ou dizer que se conhece o que sabem
não poder conhecer. A única coisa a fazer em tal situação é, como o
fez Job, reconhecer a sua ignorância em tais matérias, confessar leal‑
mente a sua impotência para delas falar, expressar com simplicida‑
de e liberdade as próprias dúvidas e perplexidades. A teodiceia ou
teologia não será então uma questão de ciência, mas será uma ques‑
tão de fé digna. Na continuação, Kant toma da própria réplica de
Job aos discursos dos seus amigos o mote para desenvolver uma
reflexão acerca da tendência para a mentira e a duplicidade «como
vício capital da natureza humana». Este tópico ganha particular im‑
portância e densidade no ensaio, sendo­‑lhe dedicada toda a última
secção, na qual o autor desenvolve as suas reflexões sobre a contra‑
dição que frequentemente constata existir entre a sinceridade, en‑
quanto exigência essencial nas coisas da fé, e a tendência para a fal‑
sidade (Falschheit) e para a deslealdade (Unlauterkeit). Faz notar que
a constatação de que há essa deslealdade no coração humano não é
nova, pois Job já a fez, mas quase parece nova, tendo em conta a
pouca atenção que lhe concedem os professores de Moral e de Reli‑
gião. Revisita­‑se assim aquela que era a ideia central da referência a
Job na citada carta a Lavater e antecipa­‑se o tema do ensaio de 1792
«sobre o mal radical na natureza humana», identificado como sendo
a mentira.
O tema da sinceridade ou da veracidade tem na filosofia kantia‑
na um alcance que vai muito para além do âmbito da moral e da
religião. No ensaio «Sobre o mal radical» (reintegrado depois como
primeiro capítulo da Religião nos Limites da Simples Razão), a mentira
— sobretudo na forma da tendência da consciência para mentir a si
mesma — é igualmente considerada o vício original da natureza
humana que perverte na sua raiz tudo o que o homem faz ou pensa.

einleuchtet vermuthen sollte er werde allgemein seyn der aber wegen eines
eingewurtzelten Hanges des Menschen zur Unlauterkeit Falschheit die bis zur
inneren Lüge geht.» Vorarbeit zu Über das Misslingen aller philosophischen Versuche
in der Theodicee, Ak XXIII, 85.

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Ela não é um acontecimento que se explique naturalmente por uma
fraqueza ou falibilidade, mas é um inexplicável acto da liberdade
humana: «Esta fraudulência que consiste em mentir a si próprio
impede­‑nos a fundação de uma genuína intenção moral e estende­
‑se então também exteriormente à falsidade e ao engano de outros e
 53
ela constitui a mancha de corrupção da nossa espécie.»
Como já o disse, o tópico da sinceridade (ou o seu contrário, da
mentira e falsidade) aparece nos escritos de Kant quase sempre em
explícita referência a Job. Ele deixa­‑se dizer sob várias designações
com sentidos muito próximos (Ehrlichkeit, Rechtschaffenheit, Red­
lichkeit, Lauterkeit, Aufrichtigkeit, Wahrhaftigkeit…), como se pode
ver nesta Reflexão que apresenta uma espécie de catálogo semântico
do tema: «Lealdade por princípios (relativamente aos outros); hones‑
tidade é ainda mais, a saber, a sinceridade em relação a si mesmo no
mais severo auto­‑exame. Job. O prejuízo que resulta para as ciências
se não somos leais, e para a religião quando não se é honesto. Que é
verdade?, é uma questão lógica na religião e aí é diferente a ortodoxia.
Que é veracidade e honestidade?, é uma questão prática (moral), e aí
pode facilmente ver­‑se que cada qual tem de seguir a sua razão e
 54
consciência.» Num passo de um Curso de Teologia Racional encontra­
‑se esta observação: «Deus é descrito como sincero para que os ho‑
mens devam ser em relação a ele também igualmente sinceros, e isto
é muito raro. Na investigação dos assuntos de religião deve haver
 55
sinceridade e por isso [também] liberdade.»
Como se vê, a sinceridade ou veracidade importa não só à reli‑
gião e à moral, mas também à ciência e à metafísica. Há a exigência

  Religion, Ak VI, 38.


53

  «Ehrlichkeit aus Grundsätzen (gegen andere); Rechtschaffenheit ist


54

noch mehr, nämlich Aufrichtigkeit in Ansehung seiner selbst bey der scharfsten
selbstprüfung. Hiob. Der Schade, der daraus den Wissenschaften entspringt,
wenn man nicht redlich ist, der Religion, wenn man nicht rechtschaffen ist. Was
ist Wahrheit?, ist eine logische Frage in der Religion, und da ist die Orthodoxie
verschieden. Was ist Wahrhaftigkeit und Rechtschaffenheit?, ist eine praktische
(moralische) Frage, und da kan man leicht einsehen, dass jeder seiner Vernunft
und Gewissen folgen müsse.» Refl. 6309, Ak XVIII, 603­‑604.
55
  «Gott wird als aufrichtig beschrieben, darum dass Menschen auch
so aufrichtig gegen ihn sein sollen, und das ist sehr selten. In Untersuchung
der Religionssachen muss Aufrichtigkeit und daher Freiheit sein.» Danziger
Rationaltheologie, Ak XXVIII, 1296. Sobre a sinceridade (Aufrichtigkeit) como
atributo de Deus, v. também Vorles. über die philosoph. Religionslehre, ed. cit.,
pp. 161­‑162.

292

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originária de uma atitude ética no próprio fundamento do trabalho
especulativo da razão. Por isso, a sinceridade para consigo próprio
e a lealdade para com os outros dirigem o trabalho da crítica da
razão, o qual tem por objectivo evitar que a razão minta a si mesma,
atribuindo às suas proposições metafísicas um valor de objectivi‑
dade e de certeza que sabe que elas não têm e que, dessa feita, en‑
gane também os outros a quem comunica os próprios pensamen‑
tos. É  num dos últimos capítulos da Crítica da Razão Pura que se
pode ler esta passagem que evoca a censura que Job faz aos seus
amigos, mostrando a contradição em que incorrem ao pretender
 56
defender uma boa causa de forma desonesta e desleal . Escreve
Kant: «Há na natureza humana uma certa deslealdade… a saber,
uma inclinação para esconder os próprios verdadeiros sentimentos
e exibir certos outros que são tidos por bons e dignos de honra…
É­‑me penoso notar esta deslealdade, esta dissimulação e hipocrisia
mesmo nas manifestações do pensamento especulativo onde, toda‑
via, os homens encontram muito menos obstáculos para declarar
abertamente os seus pensamentos… Com efeito, que coisa pode
haver mais prejudicial aos conhecimentos do que comunicar uns
aos outros mesmo que seja apenas meros pensamentos falsificados,
do que esconder dúvidas que sentimos levantar­‑se contra as nossas
afirmações ou dar uma pintura de evidência a argumentos que nem
a nós próprios satisfazem?… Eu penso, todavia, que nada no mun‑
do se adequa menos ao desígnio de sustentar uma boa causa do
que a astúcia, a dissimulação e o engano. Na apreciação dos princí‑
pios racionais da simples especulação tudo deve ser exposto leal‑
mente: é o mínimo que se pode exigir. É pouca coisa; mas se ao
menos pudéssemos contar seguramente com isso, a luta da razão

  Francis Bacon usara este motivo no Novum Organum (I, 89), denuncian‑
56

do aqueles que misturavam a teologia com a filosofia e queriam assim honrar


Deus com a mentira («quod nihil aliud est, quam Deo per mendacium gratifi‑
cari velle»). E no De Augmentis, lib. i: «Àqueles que afirmam que a demasiada
ciência inclina a mente para o ateísmo e que a ignorância das causas segundas
nos impõe a piedade em relação à causa primeira, eu interpelo com a questão
de Job: se é necessário mentir por Deus e se é conveniente usar da falsidade
para conseguir o seu favor?» («Namque eos qui autumant nimiam scientiam
inclinare mentem in atheismum, ignorantiamque secundarum causarum pie‑
tati erga primam obstricari, libenter compellarem Jobi quaestione, An oporteat
mentiri pro Deo, et ejus gratia dolum loqui conveniat, ut ipsi gratificemur?»)
The Works of F. Bacon, ed. Spedding/Ellis/Heath, London, 1858, vol. i, p. 436.

293

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especulativa a respeito das graves questões de Deus, da imortali‑
dade (da alma) e da liberdade já teria terminado há muito tempo
ou não tardaria a terminar. Assim, frequentemente, a pureza dos
sentimentos está na razão inversa da bondade da causa, e esta úl‑
tima tem porventura mais adversários sinceros e honestos do que
 57
defensores.»
Kant escreve isto no contexto da apreciação das dúvidas do
cepticismo de Hume contra as pretensas certezas dos metafísicos
dogmáticos. Que é a atitude de Job o que ele tem em mente ao es‑
crever essa página confirma­‑o uma Reflexão do espólio, na qual, o
filósofo crítico em idêntico contexto evoca expressamente o herói
bíblico em confronto com os seus amigos. A Reflexão diz o seguin‑
te: «O  leitor sente um certo receio envergonhado de se envolver
nas considerações e objecções de Hume, e vê nelas a expressão de
um atrevimento. Mas por outro lado reluz também por certo algo
nobre, franco e sincero no atrevimento do juízo sem receio, tal
como Job, não para condenar os caminhos de Deus, mas para con‑
fessar a si mesmo as próprias perplexidades sinceramente, sem
medo de vir a ser tido por desrespeituoso, renunciando aos enalte‑
cidos louvores lisonjeiros dos amigos de Job. O governo de Deus
não é despótico, mas paternal. Não diz: não raciocineis, mas obe‑
decei; antes pelo contrário, diz: raciocinai diligentemente, para
que desse modo pela vossa própria convicção voluntariamente
possais demonstrar a glória de Deus, o que não teria qualquer va‑
 58
lor se fosse forçado.»

  KrV B 776­‑778, Ak III, 489­‑491.


57

  Refl. 6087, Ak  XVIII, 445­‑446: «Der Leser fühlt eine gewisse scheue
58

[Furcht]  Besorgnis, sich in die Betrachtungen und Einwürfe des Hume


einzulassen, und siehet darin den ausdruck einer Vermessenheit. Dagegen
leuchtet daraus doch auch etwas edeles, aufrichtiges und ungeheucheltes hervor,
sich ohne slavische Ängstlichkeit wie Hiob des Urtheilens zu unterwinde,
nicht um Gottes wege zu verurtheilen, sondern sich seine Scrupel unverholen
selbst zu gestehen [und], ohne sich durch Besorgnis, man werde dadurch
unehrerbietig werden, zu unterdrükung derselben und schmeichlerischen
Lobeserhebungen verleiten zu lassen, wie Hiobs Freunde. Die Regierung
Gottes ist nicht despotisch, sondern väterlich. Es heist nicht: räsonnirt nicht,
sondern gehorcht, sondern vielmehr: raisonnirt fleissig, damit ihr aus eigener
Überzeugung freywillig und ungeschreckt die Verehrung Gott beweisen könnt,
die [nichts] von gar keinem Wert seyn würde, wenn sie abgedrungen wäre.»

294

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5. O Deus de Job é inequivocamente o Deus da consciência
moral, questionado pela sua justiça e bondade, invocado como juiz,
testemunha, redentor. Como vimos, para Kant, não há conceito ge‑
nuíno de Deus fora do que se encontra na e pela consciência moral.
O Deus da resposta a Job é o Deus cujos atributos são o poder — pe‑
rante o qual o homem é posto em respeito e ao qual é incapaz de
resistir — e a incompreensibilidade dos seus desígnios. É um Deus
que não satisfaz a curiosidade do homem e não se revê nas ortodo‑
xas certezas dos devotos teólogos que pensam servi­‑lo e defender a
sua causa com os seus discursos piedosos. É um Deus escondido,
que fala e se faz ouvir como exigência absoluta, mas não deixa ver o
seu rosto. Todavia, não é um Deus tirânico, nem amante de escravos
ou de servis aduladores. Deus não responde aos quesitos de Job.
Devolve­‑lhe antes um interminável catálogo de perguntas que o
confundem e o reduzem ao sentimento da sua insensatez em querer
pedir contas a Deus por aquilo que faz ou deixa de fazer. Na sua
resposta, Deus faz passar diante de Job quadros que evidenciam o
lado belo da criação e outros que exibem o seu lado caótico e temí‑
vel. Mostra­‑lhe indícios de finalidade, mas também exemplos das
forças destruidoras que parecem incompatíveis com a economia li‑
near de um plano estabelecido pela bondade e sabedoria. Os fenó‑
menos que Deus faz passar diante de Job desafiam as capacidades
humanas de compreensão. A experiência do mundo excede o seu
sentido, há muito mais mundo e realidade para além do que faz
sentido. As perguntas de Job a Deus não tiveram uma resposta, mas
Job entendeu por fim que a resposta é o não terem resposta, porque
mesmo que esta existisse ele não estaria em condições de a entender.
Deus humilha, mas ao mesmo tempo aprecia Job e reconhece a dig‑
nidade da sua atitude e até do seu atrevimento, preferível à atitude
aduladora dos seus amigos. A resposta de Deus às perguntas de Job
é um cortejo de questões perante as quais o herói bíblico só pode
cair no silêncio e reconhecer que foi inconsideradamente que abrira
antes a sua boca. Se, perante o estendal da criação de Deus, o ho‑
mem se vê reduzido à insignificância, por outro lado, vê­‑se reconhe‑
cido e sancionado na sua grandeza moral. Em suma, o Deus que Job
acusa de injustiça não se deixa conter na concepção da moralidade
tradicional e convencional e a ideia que dele se colhe não é a de um
Deus doméstico e confortante, da mesma forma que não é domesti‑
cável e previsível o universo que ele criou.
Mais uma vez é a analítica kantiana do sentimento do sublime
que nos pode ajudar a compreender melhor o Deus de Job. Uma pas‑
sagem do § 28 da terceira Crítica ajuda­‑nos a entender a epifania

295

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­ egativa que constitui o desenlace do poema bíblico. Deus revela­‑se
n
a Job numa experiência do sublime, da qual se nutre a vivência moral
e a própria vivência religiosa. Na sua análise do sentimento do subli‑
me que o homem experimenta perante os fenómenos do poder da
­natureza, Kant tenta mostrar que esse sentimento não deve confundir­
‑se com o sentimento de medo que nos abate, pois os fenómenos que
consideramos sublimes são antes ocasião para que desperte em nós
uma força anímica invulgar, a qual nos eleva acima da natureza e nos
faz sentir a sublimidade da nossa própria destinação. Logo de segui‑
da, Kant aplica essa sua análise à fenomenologia da experiência reli‑
giosa, mostrando a essencial diferença que existe entre a mera supers‑
tição (que vê nos fenómenos aterrorizadores da natureza temíveis
manifestações da cólera de Deus) e a verdadeira religião, que, através
desses fenómenos, é levada a reconhecer a sublimidade da divindade
que venera e respeita. Ouçamos o filósofo: «Na religião em geral, a
prosternação, a adoração com a cabeça inclinada, com gestos e vozes
contritos cheios de temor, parece ser o único comportamento conve‑
niente em presença da divindade, o qual por isso a maioria dos povos
adoptou e ainda pratica. Mas esta disposição do ânimo está longe de
se encontrar em si necessariamente ligada à ideia da sublimidade de
uma religião e do seu objecto. O homem que realmente teme porque
encontra para isso razão, na medida em que tem consciência de com a
sua condenável atitude ofender um poder cuja vontade é irresistível e
ao mesmo tempo justa, não se encontra de modo nenhum na atitude
de espírito para admirar a grandeza divina, para o que se requer uma
disposição para a calma contemplação e um juízo totalmente livre.
Somente quando ele está consciente da sua atitude sincera e agradável
a Deus, aqueles efeitos do poder servem para despertar nele a ideia da
sublimidade deste ser, na medida em que ele reconhece em si próprio
uma sublimidade da atitude conforme àquela vontade e deste modo é
elevado acima do medo face a tais efeitos da natureza, que ele não
considera como expressões da sua cólera. […] Só deste modo se distin‑
gue internamente a religião da superstição: esta última não funda no
ânimo veneração pelo sublime, mas medo e angústia diante do ser
todo­‑poderoso, a cuja vontade o homem aterrorizado se vê submeti‑
do, sem contudo o apreciar muito; do que certamente não pode resul‑
tar nada mais senão a procura de favor e a adulação, em vez de uma
 59
religião da boa conduta de vida.»

59
  KU, Ak V, 263.

296

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Noutro passo da mesma obra, Kant expõe o modo como enten‑
de o verdadeiro sentimento religioso: «O discurso religioso que re‑
comenda o rastejante e vil granjeamento de favores e que abandona
toda a confiança na capacidade própria de resistência contra o mal
em nós, em vez da vigorosa resolução de tentar todas as forças que
apesar de toda a nossa fragilidade ainda nos restam para a supera‑
ção das inclinações; a falsa humildade, que considera o desprezo de
si próprio, o arrependimento lamentoso e fingido e uma atitude me‑
ramente sofredora do ânimo como sendo a única maneira de se po‑
der agradar ao ser supremo: não se conciliam nem sequer com aqui‑
lo que pode ser tomado como beleza e muito menos ainda com o
que pode ser considerado como sublimidade da maneira de ser do
 60
espírito [Gemütsart].»
A teofania final do poema bíblico evoca a teofania do Sinai, não
só pelas manifestações físicas exteriores que a acompanham, mas
também pela sua natureza mesma. Em Job é o Deus juiz que pronun‑
cia a sentença e se faz ouvir; no Sinai, era o Deus legislador. Num e
noutro caso, porém, é o mesmo Deus que se revela, ocultando­‑se
sob a consciência moral. Num e noutro caso, é um Deus que não
deixa ver o seu rosto, ou que proíbe mesmo que dele se faça imagem
e qualquer representação que seja que permita a sua objectivação e
instrumentalização. O Deus de Job é um ser incomensuravelmente
maior do que alguma razão humana possa pensar, ele não cabe em
conceitos, não se domestica nem se deixa arrumar numa teologia de
deve­‑haver, de custo­‑benefício, de dever­‑recompensa. Os supremos
atributos que o revelam são o poder e a incompreensibilidade.
Mais do que uma vez, Kant associa expressamente a emergên‑
cia da consciênca moral à teofania do Sinai e interpreta uma e outra
como experiências de sublime. Num caso como noutro, a teofania é
negativa. Numa notável página da Crítica do Juízo, surpreende­‑se
esta confirmação da íntima solidariedade que existe entre o senti‑
mento do sublime e a genuína representação da moralidade e da
religião, dados sob a forma de «uma apresentação meramente nega‑
tiva, que no entanto alarga a alma» (bloss negative Darstellung, die
aber doch die Seele erweitert). Escreve Kant: «Talvez não haja no Livro
da Lei dos Judeus nenhuma passagem mais sublime do que o
­mandamento: não deves fazer nenhuma imagem, nem qualquer
símbolo, nem do que está no céu ou na terra ou sob a terra, etc. Este

60
  KU, Ak V, 273.

297

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mandamento por si só pode explicar o entusiasmo que o povo judeu
na sua época florescente sentia pela sua religião quando se compa‑
rava com outros povos, ou ainda aquele orgulho que o maometismo
inspira. O mesmo vale no que se refere à representação da lei moral
e da disposição para a moralidade em nós. É uma preocupação
­totalmente errada supor que se a privarmos de tudo o que a pode
recomendar aos sentidos, ela só pode induzir uma aprovação fria
e  sem vida e não comporta nenhuma força motriz e comoção
[Rührung]. É precisamente o contrário, pois aí onde agora os senti‑
dos mais nada vêem diante de si e onde todavia a inconfundível e
inextinguível ideia da moralidade permanece, seria antes necessário
conter o ímpeto [Schwung] de uma imaginação sem limites, para
não a deixar elevar­‑se até ao entusiasmo, do que temer a fraqueza
destas ideias e procurar vir em seu auxílio com imagens e com um
aparato pueril. Foi por isso que os governos permitiram de bom
grado que se provesse ricamente a religião com tais acessórios, pro‑
curando assim retirar aos seus súbditos não somente o esforço
[Mühe] mas também o poder [Vermögen] de alargarem as suas ener‑
gias da alma para além dos limites que se lhes podem impor arbitra‑
riamente e desse modo podem mais facilmente manipulá­‑los, como
 61
seres meramente passivos.»
Numa já atrás evocada resposta de Kant a uma observação de
Schiller, em que lembra a este crítico do rigorismo da sua moral que
esta tem mais que ver com a sublimidade e a majestade do que com
a beleza e a graciosidade, escreve o filósofo: «Tal como no Sinai, a
majestade da lei [Majestät des Gesetzes] infunde um temor reveren‑
cial [Ehrfurcht], o qual suscita o respeito [Achtung] do subordinado
perante o seu senhor; neste caso, porém, dado que este <senhor>
reside em nós mesmos, <ela suscita> um sentimento do sublime
[Gefühl des Erhabenen] da nossa própria destinação, o qual nos atrai
 62
mais do que todo o belo.» Como já deixei acima indicado, tudo se
passa de facto na imanência da consciência moral. A cons­ciência, diz
Kant, «representa em nós o tribunal divino: primeiramente, porque

  KU, Ak V, 274­‑275.
61

  Die Religion, Ak VI, 23. V. o meu ensaio «Hércules e as Graças, ou da


62

‘condição estética da virtude’: Kant, leitor de Schiller», in Teresa Rodrigues


­Cadete e Leonel Ribeiro dos Santos (coords.), Schiller, Cidadão do Mundo, Actas
do Colóquio Internacional (Lisboa, 6­‑7 de Dezembro de 2005), Centro de Estudos
Europeus e Alemães/Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, Lisboa,
2007, pp. 57­‑83. Neste volume, pp. 229 e segs.

298

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julga as nossas intenções e acções segundo a santidade e pureza da
lei; em segundo lugar, porque nós não a podemos enganar; final‑
mente em terceiro lugar, porque não podemos subtrair­‑nos a esse
 63
tribunal que nos é tão presente como a omnipresença divina» .
Debatendo­‑se com Deus e com os seus amigos, Job está no fundo a
debater­‑se consigo mesmo no tribunal da sua consciência moral,
desdobrando­‑se aí em juiz, em acusador, em apresentador e advo‑
gado da sua causa, que é também a causa de Deus, e o incondiciona‑
do decreto divino que aí ouve e a que obedece — o juízo que aí ca‑
tegoricamente se pronuncia — é a sentença da sua própria razão.

  «Das Gewissen stellt den göttlichen Gerichtshof in uns vor: erstlich, weil
63

es unsere Gesinnungen und Handlungen nach der Heiligkeit und Reinigkeit


des Gesetzes beurteilt; zweitens, weil wir es nicht betrügen können; und
endlich drittens, weil wir demselben nicht entgehen können, weil es uns gleich
der göttlichen Allgegenwart gegenwärtig ist.» I. Kant, Eine Vorlesung über Ethik,
ed. cit., p. 146.

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8

A CONCEPÇÃO KANTIANA DA EXPERIÊNCIA


ESTÉTICA: NOVIDADE, TENSÕES E EQUILÍBRIOS

O objectivo deste ensaio 1 é identificar alguns dos aspectos pe­


culiares da problematização kantiana do sentimento estético, assina‑
lar as suas tensões e os equilíbrios que a sustentam e mostrar como a
sua fecundidade especulativa não se esgota no aproveitamento que
a geração pós­‑kantiana (do classicismo, romantismo e idealismo) fez
de alguns dos seus elementos, mas continua a revelar­‑se na redesco‑
berta que nas últimas décadas dela vem sendo feita e cujo significado
vai muito para além da possibilidade que oferece para revitalizar os
debates acerca dos problemas estéticos e artísticos propriamente di‑
tos. Constitui, de facto, um dos aspectos mais relevantes do interesse
pela filosofia de Kant nas últimas quatro décadas, a par com a desco‑
berta da filosofia prática (entendida no seu sentido amplo como Filo‑
sofia Moral, Filosofia Política e Filosofia do Direito), também a des‑
coberta da terceira Crítica, a Crítica do Juízo (Kritik der Urteilskraft,
1790), cuja primeira parte se intitula «Crítica do juízo estético».
Na verdade, embora a intenção de Kant, ao escrever essa primeira
parte da sua Crítica do Juízo, não fosse propor uma «Estética», à maneira
de Baumgarten, e ainda menos uma «Filosofia da Arte ou das Artes»
— embora dê para esta última interessantes indicações em alguns dos
parágrafos da obra —, todavia, a sua singular abordagem dos proble‑
mas estéticos, sob a forma de «Crítica do juízo estético» ou «Crítica do

  Numa primeira e abreviada forma, ele foi apresentado como comunica‑


1

ção no colóquio realizado na Universidade Estadual de Maringá (PR, Brasil),


que teve lugar de 10 a 14 de Agosto de 2008.

301

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juízo de gosto», representa um marco decisivo na história do pensa‑
mento estético, o qual, se por um lado confirma e consagra o reconhe‑
cimento da natureza peculiar da experiência e sentimento estéticos e a
respectiva irredutibilidade e autonomia frente à experiência científica e
ética, por outro, assinala aquilo a que já se chamou a «viragem para a
Estética», ou seja o reconhecimento da importância fundamental da
experiência estética e até do primado da Arte no sistema das realiza‑
ções superiores do espírito, o que veio a ser protagonizado na cultura
germânica pelos movimentos classicista, romântico e idealista de finais
do século xviii e começos do século xix, com reflexos e efeitos directos ou
diferidos por todo o espaço da cultura europeia oitocentista.
A estratégia seguida por Kant no tratamento das questões estéti‑
cas não visa propor uma filosofia do belo ou uma teoria das belas ar‑
tes, nem fornecer uma descrição das obras de arte e das suas qualida‑
des estéticas. O que ele faz é verdadeiramente o que se poderia chamar
uma abordagem fenomenológica, dada sob a forma de uma análise
da experiência estética − do juízo estético ou juízo de gosto − no intui‑
to de captar, interpretar e compreender o que nela está envolvido.
Esse tipo de abordagem é o que Kant designa por «crítica» e, por isso,
a meditação kantiana sobre os problemas estéticos dá­‑se como uma
«Crítica do juízo estético» ou «crítica do gosto». O que é que acontece
ou está em causa quando dizemos (ou pensamos para nós próprios),
a propósito, por exemplo, de uma flor que encontramos na natureza
ou num jardim, que ela é bela? Contrapondo­‑se a uma teoria norma‑
tiva do gosto, a crítica do juízo estético explicita­‑se antes como uma
analítica do mesmo, visando surpreender a sua especificidade e ca‑
racterísticas (o que o distingue seja da simples sensação de agrado
sensível, seja de outros tipos de juízos: lógico­‑cognitivos, morais), a
sua tipologia (sentimento do belo e sentimento do sublime), a facul‑
dade do espírito a cuja competência pertence, o princípio que invoca,
que o legitima ou o fundamenta; enfim, aquilo a que na linguagem
kantiana se chama os seus pressupostos transcendentais. Mas a críti‑
ca kantiana atende igualmente à dialéctica ou às antinomias com que
se debate o juízo estético: é ele um juízo meramente singular e priva‑
do, ou um juízo com valor universal? É um juízo meramente subjec‑
tivo, ou possui algum tipo de objectividade?
O reconhecimento da importância do que hoje consideramos o
campo dos problemas estéticos (noção de arte e de bela arte, constitui‑
ção do sistema das artes, análise e fenomenologia dos sentimentos es‑
téticos e da vivência estética, concepção do artista e do génio)
desenvolveu­‑se na cultura europeia com particular intensidade a par‑
tir do século xv, a par com o próprio renascimento e florescimento ar‑

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tístico, e a reflexão dos filósofos sobre esses problemas atingiu a matu‑
ridade ao longo do século xviii e primeiras décadas do século xix, sendo
que a própria meditação kantiana sobre esses tópicos constitui tanto
um ponto de culminância como um ponto de viragem e representa
um momento de instável equilíbrio entre dois regimes ou paradigmas
de pensamento estético: um, girando em torno da categoria do gosto,
noção ainda fortemente marcada por um sentido social e concebido
mesmo como uma espécie de sentido comum ou de sentido comuni‑
tário (gemein Sinn, gemeinchaftliches Sinn); o outro centrado na catego‑
ria do génio e no consequente pressuposto do carácter absoluto da
individualidade e subjectividade criadora; um, assente na reabilitação
da sensibilidade humana (Sinnlichkeit) e das qualidades sensíveis dos
objectos do mundo contemplados ou apreciados pelo sujeito; o outro
centrado na ideia do sentimento (Gefühl), entendido como algo inalie‑
nável e irredutivelmente subjectivo da vivência individual.

I. A especificidade do estético: da sensibilidade


ao sentimento

Coube ao filósofo alemão Alexandre Baumgarten, um original


seguidor da escola leibniziano­‑wolffiana, o mérito de sistematizar a
abordagem das questões estéticas numa nova disciplina filosófica a
que chamou precisamente Aesthetica, cujo 1.o volume foi publicado
em 1750 (o 2.o sê­‑lo­‑ia em 1758). Os assuntos estéticos até então ou
eram tratados à mistura com considerações de natureza moral e psi‑
cológica (a propósito dos sentimentos), ou envolvidos em conside‑
rações metafísicas (a ideia de beleza convocava as — ou era convo‑
cada pelas — de perfeição, de harmonia, de ordem, de simetria, de
regularidade), ou, pelo que respeitava aos aspectos expressivos,
eram tópicos dos Tratados de Poética e de Retórica, que haviam co‑
nhecido grande proliferação no período do Barroco. Desenharam­‑se
assim três linhas de reflexão relativamente autónomas, mas que por
vezes se cruzavam, nas quais se alinhavam os diferentes autores se‑
gundo as suas afinidades ou preocupações dominantes: uma linha
de reflexão prevalentemente metafísica sobre a ideia de beleza, no
seguimento da tradição platónica e neoplatónica, que fora reaviva‑
da na segunda metade do século  xv por Marsílio Ficino e que, no
pensamento alemão moderno, fora protagonizada por Leibniz e
seus discípulos e, na época de Kant, era representada pelo seu ami‑
go Moses Mendelssohn; uma linha de análise psico­‑empírica da fe‑
nomenologia dos sentimentos dos indivíduos (do seu modo de sen‑

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tir), desenvolvida sobretudo pelos pensadores ingleses e escoceses
de orientação empirista (David Hume, Adam Smith), e uma linha
de orientação mais técnica de reflexão sobre o fazer artístico e os
processos da criação e produção nas diferentes artes, a que se pode‑
ria chamar a filosofia das artes (da Pintura, da Arquitectura, da Mú‑
sica, da Poesia, da Retórica…), um género que tem por mais antigos
paradigmas a Poética e a Retórica de Aristóteles e que teve grande
expressão a partir do Renascimento (pense­‑se em Leon Battista Al‑
berti, em Leonardo da Vinci, em Francisco de Holanda, em Loma‑
zzo, em Palladio, e em tantos outros). Ao criar e autonomizar a nova
disciplina, agora reconhecida na sua legitimidade entre os outros
saberes filosóficos (a Metafísica, a Ética e a Lógica), Baumgarten não
só reunia e dava fundamentação e consistência sistemática a refle‑
xões e perspectivas que até então andavam dispersas, mas punha
em evidência a importância das faculdades sensíveis humanas, ge‑
ralmente desconsideradas a favor das faculdades intelectuais. Ele
definia a nova disciplina como «ciência do conhecimento sensitivo,
lógica da faculdade cognoscitiva inferior, gnosiologia inferior», por
contraste com a Lógica, entendida como ciência do conhecimento
racional. A sua ideia era mostrar que a sensibilidade tem uma lógica
autónoma e se regula por princípios próprios, os quais não devem
ser extraídos da lógica do entendimento ou da razão, mas sim da
fantasia ou imaginação 2. Num opúsculo publicado em 1735, o mes‑
mo Baumgarten invocava, em abono da sua causa, a distinção feita
pelos Antigos entre os aistheta e os noeta, entre as coisas que se refe‑
rem à sensibilidade — os sensíveis — e as que se referem ao ­inteligível

  Alexander G. Baumgarten, Ästhetik (Latein­‑Deutsch), Felix Meiner,


2

Hamburg, 2007, § 1, Teil 1, p. 10. A ideia de que há uma «lógica da fantasia» ou


«lógica da imaginação» (Logik der Phantasie/ Logik der Einbildungskraft) fora
já avançada pelo pensador suíço Johann Jacob Breitinger, na sua obra Critische
Abhandlung von der Natur, den Absichten und dem Gebrauche der Gleichnisse (Zü­
rich, 1740), onde se lê, nas pp. 238­‑239: «Muitas vezes me ocorreu a ideia de
que a imaginação, tal como o entendimento, necessita de uma certa Lógica. […]
Se as imagens dos sentidos entre si concordantes se ligam entre si, nascem na
Lógica da fantasia as metáforas, tal como, na Lógica da razão, da ligação dos
conceitos que se deixam pensar resultam as proposições.» [Es ist mir manch‑
mahl in den Sinn gekommen, dass die Einbildungs­‑Kraft eben so wohl als der
Verstand einer gewissen Logik vonnöthen habe. […] Wenn die zusammenstim‑
menden <Sinnen­‑Bilder> mit einander verbunden werden, so entstehen in der
Logik der Phantasie die Gleichniss­‑Bilder, wie in der Vernunft­‑Lehre aus der
Verknüpfung der Begriffe, die sich gedencken lassen, die Sätze hervorwachsen.]

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— os inteligíveis: a estas corresponde a Lógica, àquelas corresponde
a epistéme aisthetiké, a Estética 3. Não se pode subestimar a importân‑
cia da instituição da Estética como disciplina filosófica por parte de
Baumgarten. O resultado desse acontecimento pode ver­‑se não só
no reconhecimento do significado desse campo de problemas e de
vivências, agora apreciados em toda a sua dignidade e importância
filosófica, mas também no efeito que isso viria a ter na transforma‑
ção da própria ideia de filosofia. Esta deixará de medir­‑se preferen‑
temente com a Matese e a Geometria, como sendo os seus paradig‑
mas de cientificidade (assim o fora desde o século  anterior, com
Descartes, Hobbes, Espinosa, Leibniz…), e passará a medir­‑se antes
pela Poesia e pela Arte, como se fossem o seu organon e a considerar­
‑se ela mesma como sendo obra não do trabalho mecânico do enten‑
dimento segundo regras determinadas, mas como criação e desen‑
volvimento espontâneos do génio, como um produto do «génio da
razão» (Vernunftgenius) 4. O próprio Baumgarten, no citado opús­
culo de 1735, propusera­‑se já «mostrar o íntimo parentesco que exis‑
te entre a filosofia e a ciência poética» 5. Intuito que será consumado,
no final do século, pelo reconhecimento de que a Poesia — entendi‑
da como o nome colectivo das Artes — é o arche e o telos da filosofia 6.

3
  A. G. Baumgarten, Meditationes philosophicae de nonnullis ad poema perti‑
nentibus (Latein­‑Deutsch), trad. e introd. de H. Paetzold, Felix Meiner, Ham‑
burg, 1983, § 96 (pp.  84­‑86): «graeci iam philosophi et patres inter aistheta et
noetá sedulo semper distinxerunt […] Sint ergo noetá cognoscenda facultate
superiore obiectum Logices; aisthetá, epistémes aisthetikés, sive AESTHETICAE.»
4
  É bem significativo que seja Kant a registar isso, e fá­‑lo em várias oca­
siões, de que dou exemplos: Ak XX, 343; Ak XXI, 140; Ak XVI, 65, 66, 67, 68.
5
  «Philosophiam et poematis pangendi scientiam, habitas saepe pro dis‑
sitissimis, amicissimo iunctas ponerem ob oculos.» Meditationes philosophicae de
nonnulis ad poema pertinentibus, ed. cit., p. 4.
6
  Schelling, Sistema do Idealismo Transcendental, 1800: «…a arte é o modelo
da ciência e somente onde há arte pode chegar a ciência. A partir disto se ex‑
plica também por que razão e em que medida não há nenhum génio nas ciên­
cias, não porque seja impossível resolver genialmente uma tarefa científica,
mas porque a mesma tarefa cuja solução pode ser encontrada por um génio
é também resolúvel mecanicamente, por exemplo, o sistema gravitacional de
Newton, que pode ter sido uma invenção (Erfindung) genial, e o foi realmente
no seu primeiro inventor, Kepler, e da mesma forma pôde ser inteiramente
científica, no que se transformou por obra de Newton. Somente aquilo que a
arte produz é possível pura e exclusivamente por um génio.» F. W. J. Schelling,
System des transzendentalen Idealismus, in: Schellings Werke, II, ed. de M. Schröter,
Beck, München, 1927, p. 623.

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Essa consumação traduz­‑se não já apenas no reconhecimento de
que a Estética é um domínio filosófico autónomo, ao lado da Meta‑
física, da Lógica, da Filosofia Natural e da Moral, mas que ela é o
centro de onde irradiam e para onde tendem todas as superiores
realizações do espírito e que, em suma, «o supremo acto da razão
é um acto estético», como o diziam, em 1796, num seu programa
filosófico comum, três jovens pensadores que viriam a ser famosos
e dão pelos nomes de Hölderlin, Schelling e Hegel 7. Pode consi­
derar­‑se esse extraordinário e fecundo momento como o da sagra‑
ção da Estética e da Arte enquanto formas qualificadas de expres‑
são e manifestação do Absoluto para a consciência moderna. Mas,
apesar da importância decisiva da realização de Baumgarten, não
só para o pensamento estético, em particular, mas, em geral, tam‑
bém para o pensamento filosófico, Kant não irá reconhecer grande
pertinência nem no título escolhido para a obra do professor de
Halle, nem no propósito da mesma. É assim que, na Crítica da ­Razão
Pura, invocando aquela mesma distinção dos Antigos entre os sen‑
síveis (aistheta) e os inteligíveis (noeta), que Baumgarten também
havia mencionado para justificar o nome da nova disciplina filosó‑
fica, Kant, desconhecendo o citado opúsculo do seu antecessor,
opta por chamar «Estética transcendental» (transcendentale Ästhe‑
tik) à primeira secção da primeira parte da sua obra, entendendo
por tal a «doutrina da sensibilidade», isto é, a doutrina das formas
a priori da sensibilidade, mas enquanto estas intervêm, subsumi‑
das pelas categorias do entendimento, na construção do conheci‑
mento dos objectos. Por conseguinte, numa perspectiva gnoseoló‑
gica, e não psicológico­‑vivencial, ou enquanto se refere a uma
ciência ou arte do belo pensar (ars pulchre cogitandi), que visasse o
prazer ou a mera satisfação do sujeito. Por outro lado, Kant não
reconhece, nesse momento, que seja possível subordinar as ques‑
tões estéticas propriamente ditas a regras ou princípios a priori e
elaborar uma ciência ou doutrina estética, como parece ser a pre‑
tensão de Baumgarten. Pois, segundo crê, e isso tanto na 1.a como
ainda na 2.a edição da Crítica da Razão Pura, os princípios do gosto
ou «são meramente empíricos», ou «são­‑no na sua maioria», sendo

7
  O Mais Antigo Programa de Sistema do Idealismo Alemão. Este singular ma‑
nifesto filosófico foi editado, traduzido, introduzido e anotado por Manuel José
do Carmo Ferreira, in Philosophica, 9 (1997), 225­‑226.

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empresa vã o pretender sujeitá­‑los a princípios racionais e propor
a seu respeito uma ciência ou uma teoria 8.
Hoje podemos reconhecer que Kant não foi completamente jus‑
to para com o seu predecessor e que o terá lido e interpretado de
modo parcial. De qualquer modo, Kant tinha um outro programa e
preferiu seguir uma outra tradição de reflexão sobre os problemas
estéticos, a qual era representada sobretudo por alguns filósofos se‑
tecentistas ingleses (mas também franceses e até alemães), que abor‑
davam as questões relativas aos sentimentos estéticos (do belo e do
sublime) num tipo de consideração a que chamavam expressamente
«Crítica do Gosto» (Critique of Taste; Kritik des Geschmacks) ou refle‑
xões e considerações (Beobachtungen) sobre o «gosto» ou sobre os
sentimentos do belo e do sublime 9, ou também «inquirições filosófi‑
cas acerca da origem das ideias do sublime e do belo» 10.
A noção de «gosto», sobre a qual e em torno da qual se desen‑
volve uma considerável parte do pensamento estético setecentista
— (a par com outros tópicos como o belo, as belas­‑artes, o génio) —,
era extraída, por transposição metafórica da arte culinária e gastro‑
nómica, do sentido físico do gosto — da capacidade de apreciar o
paladar e o sabor dos alimentos — e era usada num sentido estético
já desde o Renascimento (século  xvi) 11. Mas ela tinha conotações

8
  KrV A 22: «Os alemães são presentemente os únicos que se servem da
palavra Estética para designar aquilo que outros chamam crítica do gosto. Re‑
side na base disso uma falhada esperança que o notável analista abraçou de su‑
bordinar a apreciação crítica do belo a princípios racionais e de elevar as regras
da mesma a uma ciência. Só que este esforço é em vão. Pois as supostas regras
ou os critérios, no que respeita às suas [principais — B] fontes, são meramente
empíricas e nunca podem servir para leis [determinadas — B] a priori, segundo
as quais o nosso juízo de gosto se deva reger, sendo antes este último propria‑
mente a pedra­‑de­‑toque da correcção daquelas.»
9
  Nesta linha se inscreve o ensaio de Kant de 1764, Beobachtungen über das
Gefühl des Schönen und Erhabenen.
10
  Tal o título da obra de Edmund Burke, A Philosophical Enquiry into the ­Origin
of our Ideas of the Sublime and Beautiful, 1757, na qual Kant largamente se inspira.
11
  Não deixa de ser estranho que precisamente aquele sentido que mais
irredutível é à beleza e o mais impuro seja assim a base da Estética da Moderni‑
dade. Os sentidos tradicionalmente considerados estéticos eram a vista e o ou‑
vido, capazes, um, de captar as formas, as figuras, a luz, o brilho e as simetrias
e proporções, e o outro, as harmonias (outra espécie de proporções ou relações).
O próprio Rousseau, no Émile (IV), diz, do gosto, que «l’activité de ce sens est
toute physique et matérielle».

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também sociais, indicando a capacidade de certos indivíduos para
apreciarem e pronunciarem o seu juízo acerca do que num determi‑
nado domínio se considerava como sendo pertinente ou como ten‑
do gosto, assim se constituindo como críticos do gosto e juízes do
«gosto são» ou do «bom gosto», seja na convivência e trato de socie‑
dade, seja nas artes, seja até nas ciências e na filosofia. Foi tal a difu‑
são desta categoria no século  xviii, quer no contexto da vida de so‑
ciedade quer no contexto propriamente estético e filosófico, que esse
século mereceu os epítetos de «século do gosto» e «século da críti‑
ca». Com efeito, a noção de «crítica» — que ocorre, aliás, no título
das três principais obras de Kant — desenvolveu­‑se e apurou­‑se no
ambiente das reflexões sobre o gosto, como algo em que se exerce
uma peculiar faculdade de apreciar ou de julgar (a gereifte ­Urteilskraft
ou a reflektierende Urteilskraft) 12. Um dos méritos de Kant foi, como o
reconheceu Hannah Arendt, precisamente o ter posto em relevo a
importância dessa faculdade — o juízo ou faculdade de julgar —,
que até à época era reconhecida apenas pela sua função lógica, en‑
quanto subordinada ao entendimento e reduzida ao serviço da apli‑
cação dos conceitos deste aos casos particulares. E deve dizer­‑se
que, como o próprio confessa, foi reflectindo sobre os problemas es‑
téticos e procurando os princípios do juízo de gosto, que Kant che‑
gou à descoberta da nova e importantíssima função dessa faculdade
de julgar, função que passou a designar por reflexionante, uma função
sem intenção objectivante, mas meramente subjectiva, na qual o su‑
jeito reflecte sobre o seu próprio processo de representação e percebe
o que nesse processo está envolvido, nomeadamente, como nisso se
relacionam em espontânea harmonia, as suas diferentes faculdades;
função enfim a que atribui a invenção e a descoberta de sentido ou
de pertinência (princípio ou regra) para aquilo que, sendo dado con‑
tingentemente como singular e avulso, não cai dentro de nenhum

12
  V. Alexander von Bormann (Hrsg.), Vom Laienurteil zum Kunstgefühl,
Max Niemeyer Verlag, Tübingen, 1974. Nomeadamente o texto de Friedrich
Nicolai (1755), pp. 125­‑129: «Eine genaue und gesunde Kritik, <ist>das einzige
Mittel, den guten Geschmack zu erhalten, und zu bestimmen. … Die Hülfe der
Kritik ist uns nur desto unentbehrlicher, da wir anfangen müssen, die feinen
Schönheiten zu erreichen, und die feinen Fehler zu vermeiden, die nicht, gleich
den gröbern, sogleich in die Sinne fallen, und auf die wir bisher zu wenig Acht
gegeben haben. ... Die Kritik ist die einzige Helferin, die, indem sie unsere Un‑
vollkommenheiten aufdeckt, in uns zugleich die Begierde nach höhern Voll‑
kommenheiten anfachen kan.»

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conceito ou regra dados ou conhecidos de antemão. E nisso cabe não
só a invenção nas artes como a invenção do novo nas ciências.
Foi efectivamente como uma Kritik des Geschmacks, que durante
vários anos foi anunciada e até parcialmente elaborada aquela obra
que só muito tardiamente (menos de um ano antes de ser publicada)
viria a chamar­‑se a Kritik der Urteilskraft, em cuja nova arquitectura
a «Crítica do juízo estético» (Kritik der ästhetischen Urteilskraft) ou do
«juízo de gosto» (Geschmacksurteils) acabará por constituir apenas
uma das duas partes. Na primeira introdução que escreveu para
esta obra de 1790, encontramos reiterada e explicada a recusa da
designação «Estética» para a primeira parte da obra, ao mesmo tem‑
po que é explicitado o sentido em que se faz uso do adjectivo «esté‑
tico» para designar uma modalidade peculiar de juízo, o «juízo es‑
tético», sempre entendido como sinónimo de «juízo de gosto»: «o
gosto é o poder de apreciação do belo» (Geschmack… das Vermögen
der Beurteilung des Schönen sei) 13.
Não sendo aqui o lugar para analisar e discutir tudo o que está em
causa na dissensão de Kant relativamente a Baumgarten (e, ainda me‑
nos, para assinalar as ambiguidades que subsistem na própria utiliza‑
ção que Kant faz do termo «estético» no conjunto das suas obras) 14, o
que importa é tentar compreender o que tal desacordo revela quanto à

13
  KU, § 1, Ak V, 203; Erste Einleitung in die Kritik der Urtelskraft, xi (ed. Leh‑
mann, 56): «Wir werden die Kritik dieses Vermögens in Ansehung der ersteren
Art Urteile [ästhetische Urteile] nicht Ästhetik (gleichsam Sinnenlehre), son‑
dern Kritik der ästhetischen Urteilskraft nennen, weil der erstere Ausdruck von
zu weitläufiger Bedeutung ist, indem er auch die Sinnlichkeit der Anschauung,
die zum theoretischen Erkenntnis gehört und zu logischen (objektiven) Urtei‑
len den Stoff hergibt, bedeuten könnte, daher wir auch schon den Ausdruck
Ästhetik ausschliessungsweise für das Prädikat, was in Erkenntnisurteilen zur
Anschauung gehört, bestimmt haben. Eine Urteilskraft aber ästhetisch zu nen‑
nen, darum, weil sie die Vorstellung eines Objekts nicht auf Begriffe und das
Urteil also nicht aufs Erkenntnis bezieht (gar nicht bestimmend, sondern nur
reflektierend ist), das lässt keine Missdeutung besorgen; denn für die logische
Urteilskraft müssen Anschauungen, ob sie gleich sinnlich (ästhetisch) sind,
dennoch zuvor zu Begriffen erhoben werden, um zum Erkenntnisse des Ob‑
jekts zu dienen, welches bei der ästhetischen Urteilskraft nicht der Fall ist.»
14
  Kant continuará a usar o adjectivo «estético» no sentido do que se refere
ao intuitivo e sensível, como oposto ao lógico (discursivo, intelectual). Sobre
isso, v. o meu ensaio «O estatuto da sensibilidade no pensamento kantiano:
­Lógica e poética do pensamento sensível», in Leonel Ribeiro dos Santos, A Razão­
Sensível. Estudos Kantianos, Edições Colibri, Lisboa, 1994, pp. 13­‑37.

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novidade do programa filosófico kantiano no que concerne à aborda‑
gem dos problemas estéticos. E o que de imediato salta à vista é a in‑
tenção do filósofo crítico de libertar o enfoque das questões estéticas
dos pressupostos metafísico­‑objectivos e intelectualistas da tradição
racionalista, segundo os quais a beleza é considerada um atributo da
realidade ou de algumas realidades e é na medida em que conhece
esse atributo que o indivíduo pode pronunciar um juízo estético acer‑
ca da beleza, um juízo que, por isso mesmo, também pode ser univer‑
salmente reconhecido por todos os indivíduos. Mas, sendo assim, não
se vê o que distinguiria um juízo estético dum juízo de conhecimento
e a pretendida autonomização da Estética ficaria comprometida.
Será que, ao recusar o racionalismo estético da escola leibniziano­
‑wolffiana, o filósofo crítico fica à mercê do empirismo e do subjec‑
tivismo, incapaz de livrar­‑se do completo relativismo ou da mera
arbitrariedade em questões de gosto?
Kant considera que a vivência estética é propriamente a vivência
de um indivíduo, é uma vivência radicalmente subjectiva. E isto quer
dizer que nela não se tem em vista nada que contribua para o conheci‑
mento do objecto enquanto tal. Este vai ser mesmo um dos novos sen‑
tidos que ele dá à noção de estético, que define, logo no 1.o parágrafo da
obra, que leva o título «o juízo de gosto é estético»: o adjectivo «estéti‑
co» não indica aqui qualidade nenhuma no objecto, mas um modo de
o sujeito ser afectado quando representa ou contempla um objecto.
«Estético» designa uma determinação do sujeito (um modo de ele ser
afectado) e não uma determinação do objecto. Escreve Kant:

Para distinguir se algo é belo ou não, referimos a repre‑


sentação não através do entendimento ao objecto [Objekt]
com vista ao conhecimento, mas mediante a imaginação ao
sujeito e ao seu sentimento de prazer ou desprazer. O juízo
de gosto não é, pois, nenhum juízo de conhecimento, por
conseguinte, não é lógico mas estético, pelo que se entende
aquilo cujo fundamento de determinação não pode ser se‑
não subjectivo [nicht anders als subjektiv]. Toda a referência
[Beziehung] das representações, mesmo a das sensações
[Empfindungen], pode, porém, ser objectiva (ela significa
nesse caso o real de uma representação empírica); só não
pode sê­‑lo a referência ao sentimento de prazer e despra‑
zer, mediante o qual não é designado absolutamente nada
no objecto [Objekt], mas no qual o sujeito sente­‑se a si pró‑
prio [sich selbst fühlt] do modo como é afectado [affiziert
wird] pela representação.

310

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E logo explicita com um exemplo:

Apreender pela sua faculdade de conhecimento um edi‑


fício regular teleoforme [zweckmässiges], seja numa forma de
representação clara ou confusa, é algo completamente dife‑
rente do que estar consciente desta representação com a sen‑
sação de satisfação [mit der Empfindung des Wohlgefallens].
Aqui a representação é referida inteiramente ao sujeito e,
mais precisamente, ao seu sentimento vital [Lebensgefühl des‑
selben: sentimento de vida, sentimento de estar vivo], sob o
nome de sentimento de prazer ou desprazer; o qual funda
um muito peculiar poder de discernir e de julgar que em
nada contribui para o conhecimento, mas simplesmente con‑
fronta a representação dada no sujeito com todo o poder das
representações, do qual o espírito [Gemüt] se torna conscien‑
te no sentimento do seu estado [dessen sich das Gemüt im Ge‑
fühl seines Zustandes bewusst wird].

Kant conclui:

Representações dadas num juízo podem ser empíricas


(por conseguinte, estéticas), mas o juízo que é proferido atra‑
vés delas é lógico, se no juízo elas são referidas apenas ao ob‑
jecto [Objekt]. Inversamente, porém, mesmo se as representa‑
ções dadas fossem completamente racionais [gar rational], caso
num juízo elas fossem referidas simplesmente ao sujeito (ao
seu sentimento [sein Gefühl]), elas seriam sempre enquanto
tais estéticas [so sind sie sofern jederzeit ästhetisch].

Ou seja, não é o facto de uma representação ser sensível o que a


torna estética (no novo sentido do termo que lhe dá Kant), pois o sen‑
sível das intuições pode servir como matéria para os conceitos do
entendimento, por conseguinte, para o conhecimento dos objectos.
Mas, por outro lado, também não é o facto de as representações serem
intelectuais o que as impede de serem estéticas no novo sentido que
Kant dá ao termo, pois elas podem ainda assim ser referidas apenas
ao sentimento do sujeito, e por conseguinte ser estéticas, para além do
que possam representar também como conhecimento objectivo.
Este primeiro parágrafo da obra, apesar de aparentemente pouco
claro, é todavia de importância decisiva, pois ele divide dois regimes
de pensamento estético. Um, caracterizado como o que se refere ao
que é sensível por sua natureza e se apreende na sensibilidade; por

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conseguinte, ainda remetido à exterioridade e ao mundo dos objectos
e das suas qualidades sensíveis. Era deste mundo sensível (de objec‑
tos com qualidades sensíveis) e apreendido na sensibilidade ou pelos
sentidos do homem que sobretudo tratava a Estética de Baumgarten
e, da mesma forma, muitas das doutrinas estéticas setecentistas, in‑
clusivamente as de inspiração empirista e sensualista.
O novo regime do estético de que se ocupa a «Crítica do juízo
estético», porém, não trata já propriamente da sensibilidade (Sinn­
lichkeit e ainda menos da Sinnenlehre), mas do sentimento (Gefühl),
isto é da capacidade de o sujeito ser afectado (é isso que é dito pela
expressão Empfindung) 15 em si mesmo e no seu íntimo, da sua vivên‑
cia enquanto tal, tenha esta por ocasião ou motivo uma representa‑
ção sensível, ou uma representação intelectual 16. É o modo subjectivo
da vivência, não o seu conteúdo objectivo (seja ele sensível ou
­intelectual), o que decide da sua qualidade ou condição estética. Por
este novo sentido que atribui ao estético Kant abre as portas ao Ro‑
mantismo. O novo sentido do «estético» — aparentemente sem ob‑
jecto e sem ser por este determinado — ganha uma amplitude que o
torna capaz de acontecer a propósito de qualquer objecto ou de
qualquer representação, seja ela de ordem sensitiva, intelectual ou
moral. Sem que as constitua enquanto tais ou para elas contribua
minimamente, a dimensão estética pode todavia acompanhar tanto
uma representação teórica da natureza como uma atitude moral.
Ao longo da sua obra Kant assinala ou sugere muitas vezes o
parentesco que existe entre o sentimento estético da beleza da nature‑

15
  Empfindung tanto pode dizer a sensação, como o sentir, como o sentimen‑
to. Em qualquer caso, indica a dimensão subjectiva — a capacidade de o sujeito
ser intimamente afectado e o modo de o ser.
16
  KU, Ak V, 277: «Es ist auch nicht zu läugnen, dass alle Vorstellungen in
uns, sie mögen objectiv bloss sinnlich, oder ganz intellectuell sein, doch subjectiv mit
Vergnügen oder Schmerz, so unmerklich beides auch sein mag, verbunden werden kön‑
nen (weil sie insgesammt das Gefühl des Lebens afficiren, und keine derselbe, sofern
als sie Modifikation des Subjects ist, indifferent sein kann); sogar dass, wie Epikur
behauptete, immer Vergnügen und Schmerz zuletzt doch körperlich sei, es mag
von der Einbildung, oder gar von Verstandesvorstellungen anfangen: weil
das Leben ohne das Gefühl des körperlichen Organs bloss Bewusstsein seiner
­Existenz, aber kein Gefühl des Wohl­‑oder Übelbefindens, d. i. der Beförderung
oder Hemmung der Lebenskräfte, sei; weil das Gemüth für sich allein ganz Le‑
ben (das Lebensprincip selbst) ist, und Hindernisse oder Beförderungen ausser
demselben und doch im Menschen selbst, mithin in der Verbindung mit seinem
Körper gesucht werden müssen.»

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za e a contemplação teleológica da natureza (que, na verdade, é feita
com base em representações do entendimento), a invenção científica
ou a descoberta das leis empíricas da natureza, a vivência moral e até
a experiência religiosa, sem que, todavia, aquele sentimento perca
com isso a sua especificidade ou veja ferida a sua autonomia.
Kant radicaliza assim a dimensão subjectiva da experiência esté‑
tica e consagra mesmo aquilo a que Hans­‑Georg Gadamer chamou a
«subjectivação da estética» 17: o estético não é uma qualidade ou atri‑
buto dos objectos (sejam eles produtos da natureza ou produtos da
arte humana), mas sim um determinado investimento humano sub‑
jectivo — um determinado modo de o sujeito ser afectado no seu sen‑
timento vital (Lebensgefühl) — por ocasião embora da apreensão ou
contemplação de um objecto. O filósofo vai mesmo ao ponto de decla‑
rar que «a beleza é algo que vale apenas para os homens», mas não
enquanto seres racionais ou espirituais, mas sim enquanto seres dota‑
dos de uma natureza que é animal (sensível) e ao mesmo tempo ra‑
cional. 18 De onde se poderia concluir que os puros espíritos e o pró‑
prio Deus não são capazes nem de sentimentos estéticos nem de
saborear a beleza. Pois a este sentimento e a esta ideia está associada
uma capacidade de ser afectado, que indica uma limitação ou falta, o
que não é concebível em seres perfeitos; a gratificação da beleza indi‑
ca uma carência e é do preenchimento dessa carência que resulta o
prazer, a satisfação; ou então ela indica um excesso, algo que vem por
acréscimo, que não estava previsto segundo uma ordem de necessi‑
dade, mas sobrevém de forma contingente, como algo que é graciosa‑
mente dado e como tal também é acolhido; não, porém, como algo
que se espere como tendo que acontecer. Kant fala a propósito de um
Gunst der Natur, de um favor que a natureza nos faz.
Característica da concepção kantiana do juízo estético é que ele
obedeça a certos requisitos: que seja desinteressado (ohne alles Inte­
resse: pelo que se distingue do agradável e do moralmente bom); que
o agrado que suscita não seja determinado por um conceito do objec‑
to, isto é, por um conhecimento enquanto tal; que tenha por funda‑
mento apenas a «forma da teleoformidade» (Form der Zweckmässigkeit)
de um objecto ou da representação de um objecto (e não vise a satis‑

  Wahrheit und Methode, Mohr, Tübingen, 1975 (4.a ed.).


17

  «Schönheit nur für Menschen, d. i. tierische, aber doch vernünftige We‑


18

sen, aber doch nicht bloss als solche (z. B. Geister), sondern zugleich als tieri‑
sche.» KU, §5, Ak V, 210.

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fação de uma utilidade ou de um objectivo determinado, nem decor‑
ra de uma qualquer ideia da função ou da perfeição do objecto ou do
que ele deva ser). Assim, a beleza é descrita como sendo «a forma da
teleo­formidade <da conformidade a um fim> de um objecto, na me‑
dida em que ela é percepcionada sem a representação de um fim» 19.
Mas o que é isso da «forma da teleoformidade de um objecto»
que é percepcionada sem a representação de um fim?
Este tópico é importante, pois é aquele que parece permitir iden‑
tificar algo que transcende a dimensão subjectiva e encontrar no ob‑
jecto do juízo de gosto o que lhe serve de fundamento. Esse algo é
dito mediante um oxímoro, género de expressão muito ao gosto dos
escritores da época do barroco e frequente também em Kant, sobretu‑
do nesta obra (Zweckmässigkeit <der Form> ohne Zweck — uma teleo‑
formidade sem fim da forma) 20. Um exemplo torna mais compreensí‑
vel o que o filósofo quer dizer com esta estranha expressão, que
representa o que se poderia chamar um curto­‑circuito da linguagem,

19
  «Schönheit ist Form der Zweckmässigkeit eines Gegenstandes, sofern
sie ohne Vorstellung eines Zwecks an ihm wahrgenommen ist.» Ak V, 236.
Como traduzir a expressão alemã «Zweckmässigkeit»? Finalidade?, conformi‑
dade a um fim?, teleoformidade? Temos adoptado esta última solução, pois nos
parece inadequada a primeira e para evitar o circunlóquio da segunda.
20
  São do género várias expressões usadas por Nicolau de Cusa: «douta ig‑
norância», «altíssima profundidade», «possest»; ou a «música calada» do poeta
barroco e místico espanhol San Juan de la Cruz. São também exemplos de ex‑
pressões oxímoras (que se auto­‑anulam, que dizem o mesmo e o seu contrário,
provocando o paradoxo ou a perplexidade) na Crítica do Juízo: «Kunst als Natur
/ Natur als Kunst»; «Gesetzmässigkeit ohne Gesetz», «freie Gesetzmässigkeit»
(Ak V, 241): para falar do modo de produção da imaginação: «Dass die Einbil‑
dungskraft frei und doch von selbst gesetzmässig sei, d. i. dass sie eine Autono‑
mie bei sich führe, ist ein Widerspruch. Der Verstand allein gibt das Gesetz. Wenn
aber die Einbildungskraft nach einem bestimmten Gesetze zu verfahren genötigt
wird, so wird ihr Produkt, der Form nach, durch Begriffe bestimmt, wie es sein
soll; aber alsdann ist das Wohlgefallen, wie oben gezeigt, nicht das am Schönen,
sondern am Guten (der Vollkommenheit, allenfalls bloss der formalen), und das
Urteil ist kein Urteil durch Geschmack. Es wird also eine Gesetzmässigkeit ohne
Gesetz, und eine subjektive Übereinstimmung der Einbildungskraft zum Ver‑
stande ohne eine objektive, da die Vorstellung auf einen bestimmten Begriff von
einem Gegenstande bezogen wird, mit der freien Gesetzmässigkeit des Verstan‑
des (welche auch Zweckmässigkeit ohne Zweck genannt worden) und mit der
Eigentümlichkeit eines Geschmacksurteils allein zusammen bestehen können.»
Note­‑se que a Gesetzmässigkeit ohne Gesetz ou a freie Gesetzmässigkeit = Zweckmäs‑
sigkeit ohne Zweck, o que significa que Einbildungskraft = Urteilskraft!

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isto é, uma auto­‑contradição ou auto­‑anulação no discurso, pois que
afirma e nega ao mesmo tempo o que afirma. Escreve Kant:

Uma flor, por exemplo, uma túlipa é tida por bela, por‑
que na percepção dela se encontra uma certa teleoformida‑
de, a qual, na medida em que a apreciamos, não está rela‑
cionada absolutamente com nenhum fim. 21

Podem o jardineiro, o botânico ou a florista virem dizer­‑nos que


há imperfeição na floração, que a túlipa é atrofiada, que as pétalas
estão irregularmente distribuídas, que precisamente aquele exem‑
plar que nós achamos belo não tem qualquer valor comercial, etc.
Da mesma maneira, a percepção da beleza da túlipa não depende de
sabermos para quê ela está aí, qual a sua finalidade. Para nos agra‑
dar? Para mostrar a exuberância, a perdulariedade ou a capacidade
de esbanjamento da natureza? Ou as do sábio autor da natureza, se
é que esta tem um tal autor? A túlipa, que achamos bela, tal como a
rosa de Silesius, é sem porquê! Num outro passo da sua obra, Kant
dirá que ela é percepcionada como algo gratuito, como se fosse um
favor que a natureza nos faz, sem ter que fazê­‑lo! Apenas uma certa
teleoformidade ou conveniência dos elementos num todo dado à
nossa percepção é o que nela tomamos por belo. Mas essa conve­
niência ou «teleoformidade da forma» é exactamente aquilo que ao
objecto ou à representação do objecto é atribuído pelo juízo reflexio‑
nante como sendo o princípio próprio desta faculdade, a saber, o
princípio da teleoformidade, avançado apenas para a sua aprecia‑
ção e numa intenção subjectiva, não porém como sendo de facto
uma qualidade existente no objecto enquanto tal, mas apenas no
sujeito que o aprecia 22. A beleza refere­‑se propriamente apenas à for‑
ma, não à matéria do objecto (Schönheit... die doch eigentlich bloss die
Form betreffen sollte), e tem por fundamento a mera teleoformidade

21
  «Eine Blume, z. B. eine Tulpe, wird für schön gehalten, weil eine ge‑
wisse Zweckmässigkeit, die so, wie wir sie beurteilen, auf gar keinen Zweck
bezogen wird, in ihrer Wahrnehmung angetroffen wird.» Ak V, 236.
22
  «Dieser transzendentaler Begriff einer Zweckmässigkeit der Natur...
gar nichts dem Objekte (der Natur) beilegt, sondern nur die einzige Art, wie
wir in der Reflexion über die Gegenstände der Natur […] vorstelle, folglich
ein subjektives Prinzip (Maxime) der Urteilskraft; daher wir auch, gleich als
ob es ein glücklicher unsre Absicht begünstigender Zufall wäre, erfreuet […]
werden.» Einl.,V. KU, Ak V, 184.

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da forma (bloss die Zweckmässigkeit der Form zum Bestimmungsgrunde
hat), como se lê no § 13. Kant insiste neste ponto. Assim, no § 11:

O juízo de gosto não tem por fundamento outra coisa


senão a forma da teleoformidade de um objecto (ou do modo
da representação deste objecto). […] Por conseguinte, é
apenas a teleoformidade subjectiva na representação de
um objecto, sem qualquer fim (nem objectivo nem subjecti‑
vo), por conseguinte, a simples forma da teleoformidade na
representação mediante a qual um objecto nos é dado, o
que constitui a satisfação que, sem qualquer conceito, nós
julgamos como universalmente comunicável e, por conse‑
guinte, como o princípio determinante do juízo de gosto. 23

E no § 12:

A consciência da teleoformidade meramente formal no


jogo das faculdades de conhecimento do sujeito, por oca‑
sião de uma representação, mediante a qual um objecto nos
é dado, é o próprio prazer, porque ela contém um princípio
determinante da actividade do sujeito com vista à dinami‑
zação das faculdades de conhecimento do mesmo, por con‑
seguinte, uma causalidade interna (que é teleoforme) […]
uma simples forma da teleoformidade subjectiva de uma
representação num juízo estético. 24

  «Das Geschmacksurteil hat nichts als die Form der Zweckmässigkeit eines
23

Gegenstandes (oder der Vorstellungsart desselben) zum Grunde. […] Also


kann nichts anders als die subjektive Zweckmässigkeit in der Vorstellung eines
Gegenstandes, ohne allen (weder objektiven noch subjektiven) Zweck, folglich
die blosse Form der Zweckmässigkeit in der Vorstellung, wodur uns ein
Gegenstand gegeben wird, sofern wir uns ihrer bewusst sind, das Wohlgefallen,
welches wir ohne Begriff, als allgemeine mitteilbar beurteilen, mithin den
Bestimmungsgrund des Geschmacksurteils, ausmachen.» KU, § 11, Ak V, 221.
24
  «Das Bewusstsein der bloss formalen Zweckmässigkeit im Spiele der
Erkenntniskräfte des Subjekts, bei einer Vorstellung, wodurch ein Gegenstand
gegeben wird, ist die Lus selbst, weil es einen Bestimmungsgrund der Tätigkeit
des Subjekts in Ansehung der Belebung der Erkenntniskräfte desselben, also
eine innere Kausalität (welche zweckmässig ist) in Ansehung der Erkenntnis
überhaupt, aber ohne auf eine bestimmte Erkenntnis eingeschränkt zu sein,
mithin eine blosse Form der subjektiven Zweckmässigkeit einer Vorstellung in
einem ästhetischen Urteile enthält.» KU, § 12, Ak V, 222.

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De acordo com este pressuposto, não há objectos que são esté‑
ticos por si e outros que o não são; pois em qualquer um pode um
sujeito descobrir a teleoformidade de uma forma que o torna para
ele ocasião de um juízo ou sentimento estético. Pense­‑se, por exem‑
plo, no quadro de Van Gogh, Sapatos Velhos com Atilhos. Nada reco‑
mendaria aqueles objectos como belos, nem sequer como dignos
da atenção e muito menos para um juízo estético ou sequer como
matéria para o pintor. Deixá­‑los­‑íamos à porta da rua para que os
recolhedores do lixo os levassem para a lixeira, pois — assim ve‑
lhos, gastos, rotos, deformados, sujos — já nem préstimo para o
uso de um pedinte têm. Muito menos nos ocorreria a ideia de os
levar para os entronizar como um objecto de contemplação numa
das salas da nossa casa. Todavia, ao caírem sob o olhar do pintor
ou do artista, eles são, por assim dizer, transfigurados por esse
olhar e logo também pela sua arte, revelando, não só para o artista,
mas também para os que venham a contemplá­‑los, uma qualidade
estética — isto é, a capacidade de suscitarem ou darem ocasião
para um sentimento —, a qual, todavia, lhes é conferida apenas
pela intencionali­dade subjectiva de quem os pinta ou os contem‑
pla. É o olhar — do pintor e do contemplador — que os transfigura
esteticamente 25. Isto foi dito com simplicidade e acerto pelas pala‑

25
  O mesmo se poderia dizer do famoso urinol de Duchamp, resgatado da
sua muito útil mas baixa e vil função e, uma vez rebaptizado como Fonte, vê­‑se
sublimado esteticamente, tornando­‑se um nobre objecto estético, não tanto,
talvez, para uma mera contemplação desinteressada quanto, muito mais, para
sobejas dissertações e discussões acaloradas acerca da natureza e estranho des‑
tino da arte contemporânea! (Veja-se T. de Duve, Kant nach Duchamp, Boer,
München, 1993.) Por muito que tal nos pareça algo contra­‑natura, Kant ver­‑se­
‑ia assim, não ultrapassado e negado, mas antes promovido a verdadeiro pa‑
trocinador intelectual de toda a arte do modernismo e até do pós­‑modernismo
(J­.‑F. Lyotard, Leçons sur l’Analytique du Sublime, Galilée, Paris, 1991; L’inhumain.
Causeries sur le temps, Galilée, Paris, 1988 («Le sublime et l’avant­‑garde»). Deve,
todavia, ter­‑se em conta que Kant dispunha de contrapesos à arbitrariedade
instituinte do artista que os modernistas e pós­‑modernistas já não têm. Tais
contra­pesos eram a natureza, o sentido comum, e, em última instância, uma
visão moral do mundo, a qual no fundo envolve toda a concepção kantiana
das questões estéticas.

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vras de um poeta, o heterónimo de Fernando Pessoa que dá pelo
nome de Alberto Caeiro:

A belleza é o nome de qualquer cousa que não existe


Que eu dou às cousas em troca do agrado que me dão. 26

Por conseguinte, pode dizer­‑se que, ao limite, qualquer objecto


pode ser ocasião para uma experiência estética ou vir a ser transfigu­
rado por ela. É isso o que Kant designa por idealismo estético: não o
pensar que o mundo é belo, ou que há no mundo coisas belas, mas
o dispôr o espírito para transfigurar esteticamente e embelezar o
mundo. Foi isso que os Românticos radicalizaram com o seu ­projecto
de «romantizar o mundo», segundo o conhecido lema de Novalis
— «Die Welt muss romantisiert werden» —, considerando o mundo
como um universal tropo — sím­bolo ou metáfora — do espírito hu‑
mano e dos respectivos sentimentos.
É na doutrina kantiana do juízo estético que se afirma de modo
mais extremo a autonomia da subjectividade, não só enquanto es‑
pontaneidade criadora de formas, mas também enquanto poder de
reflexão «heautonómica», sobre si própria e para si própria. Aquilo
que na contemplação do objecto estético produz satisfação é a forma
que o espírito nele vê reflectida, mas como algo que pelo mesmo
sujeito é atribuído ao objecto, sem outro intuito que não seja o da
sua «mera contemplação» e fruição desinteressada. Tal forma — a
«teleoformidade da forma» — outra coisa não é, porém, senão o
efeito do jogo espontâneo e harmónico das diferentes faculdades do
espírito (imaginação e entendimento), experimentado pelo próprio
sujeito no acto de reflexão que faz sobre si próprio quando contem‑
pla um objecto que lhe é dado. É como se o objecto da contemplação
ficasse entre parênteses e não fosse visado enquanto tal. E, todavia,
é desse modo que ele ganha a sua autonomia e até transcendência,
deixando de ser encarado como algo meramente útil, usável e con‑
sumível no circuito dos interesses ou das necessidades. Sendo a ex‑
periência da máxima autonomia e dignidade do sujeito, a experiên‑
cia estética é também a revelação máxima da dignidade do objecto,
que assim é transfigurado e instituído como algo absoluto e válido
por si mesmo, como um objecto para a pura contemplação. A partir

26
  Fernando Pessoa, Poemas Completos de Alberto Caeiro, ed. de Teresa So‑
bral Cunha, Presença, Lisboa, 1994, p. 76.

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de Kant, e depois de Kant, a vivência estética torna­‑se, para a cons‑
ciência moderna, o análogo e até mesmo o sucedâneo de uma vivên‑
cia religiosa, que garante o acesso a um domínio onde, num mundo
cada vez mais secularizado, ainda subsiste alguma memória do ab‑
soluto e do sagrado. E a própria arte ver­‑se­‑á instituída como o últi‑
mo grande mito do homem, onde este se reconhece como livre cria‑
dor de um mundo de objectos e de significações propriamente
humanos que se propõem desafiar o tempo 27.
O juízo estético — nomeadamente o do belo da natureza — é a
experiência de um feliz encontro e de um espontâneo acordo entre a
«forma da teleoformidade» (do sujeito) e a «teleoformidade da for‑
ma» (do objecto) que nos é dado na aparição singular deste. O objec‑
to não é, propriamente falando, a causa do sentimento estético. Para
dizer o tipo de acção do objecto sobre o sujeito que desencadeia a
reflexão em que consiste a experiência estética, Kant usa termos
como «suscitar», «despertar», «ser ocasião de». De modo algum, po‑
rém, se pode concluir que pode haver experiência estética sem ob‑
jecto (Gegenstand) real, representado ou ideal. Kant não sancionaria
um intimismo estético que trabalhasse no vácuo. Mas o facto de fa‑
zer consistir a essência do juízo estético na percepção da «teleofor‑
midade da forma» do objecto que o suscita coloca­‑o perante uma
dificuldade, pois isso vale para o sentimento do belo, mas parece ser
totalmente contrariado pelo sentimento do sublime. Se a experiên‑
cia do belo da natureza é a gratificante experiência da harmonia das
faculdades (imaginação e entendimento) no seu livre jogo, o espon‑
tâneo acordo da forma da teleoformidade do objecto com a teleo­
formidade da forma do sujeito, que nos faz sentir em originária
­sintonia com a natureza (o objecto), a qual se entrega à nossa repre‑
sentação como se tivesse sido feita para nós e nós para ela, já a expe‑
riência do sublime da natureza, pelo contrário, nos coloca perante
certas manifestações que revelam a natureza como sendo em si mes‑
ma desprovida de qualquer teleoformidade, entregue à mercê de
forças caóticas, descontroladas e destruidoras, que não só ofendem
a nossa sensibilidade como são mesmo irredutíveis à apreensão pe‑
las nossas capacidades de representação, apresentando­‑se como

  O escritor, ensaísta e pensador português Vergílio Ferreira, viu isso com


27

particular lucidez na sua obra, Invocação ao Meu Corpo, Lisboa, 1968. V. o meu
ensaio, «A arte como obsessão, ou o humanismo estético de Vergílio Ferrei‑
ra», in L. Ribeiro dos Santos, Melancolia e Apocalipse. Estudos sobre o Pensamento
­Português e Brasileiro, INCM, Lisboa, 2008, pp. 349-374.

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algo informe (formlos) e irredutível a qualquer forma, e isso seja pela
sua desmedida grandeza ou pelo seu desmedido poder. Por isso, o
sentimento do sublime é mais um sentimento de desprazer do que
de prazer, ou é um sentimento de prazer negativo, que põe de ma‑
nifesto a inadequação da imaginação humana para apreender e re‑
presentar a natureza na sua incomensurabilidade e poder. Mas é
precisamente nessa violência que a natureza — enquanto objecto de
um sentimento do sublime — exerce sobre a nossa imaginação e na
inadequação desta para captar a natureza numa forma que, segun‑
do Kant, se revela uma superior teleoformidade, não já da natureza,
mas do sistema das faculdades espirituais do homem, que impele a
imaginação a relacionar­‑se não com o entendimento no âmbito da
natureza, mas com a razão e as suas ideias morais, no âmbito da
destinação supra­‑sensível do homem. O sentimento do sublime re‑
vela assim, esteticamente, isto é, na própria sensibilidade e no senti‑
mento — (Kant fala aqui de comoção do ânimo — um abalo que nos
atinge totalmente — e não de mera contemplação tranquila, como no
caso do belo) — que a condição do homem não se cumpre no plano
da natureza. Pelo sentimento do sublime, a própria natureza, me‑
diante algumas suas manifestações de grandeza e poder, fala­‑nos do
que está para além dela, revela­‑nos a nossa condição moral, oferece­
‑se como um símbolo do absoluto e do infinito. A explicação de Kant
é complexa. Ouçamo­‑la:

A natureza do sentimento do sublime consiste em que


ele é um sentimento de desprazer num objecto, contudo re‑
presentado ao mesmo tempo como conforme a fins; o que é
possível pelo facto de que a falta de poder [Unvermögen]
própria descobre a consciência de um poder [Vermögen] ili‑
mitado do mesmo sujeito e o ânimo só pode ajuizar estetica‑
mente a última através da primeira […]. Se uma grandeza
quase atinge numa intuição o extremo da nossa faculdade
de compreensão e a imaginação é contudo desafiada, atra‑
vés de grandezas numéricas […] à compreensão estética em
uma unidade maior, então sentimo­‑nos no ânimo como que
esteticamente encerrados dentro de limites; e, contudo, o
desprazer é representado como conforme a fins com respei‑
to à ampliação necessária da imaginação para a adequação
ao que na nossa faculdade da razão é ilimitado, ou seja, a
ideia do todo absoluto, por conseguinte, a ausência de fina‑
lidade [Unzweckmässigkeit] do poder da imaginação para as
ideias da razão e para o despertar destas. Mas, precisamente

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por isso, o próprio juízo estético torna­‑se subjectivamente
conforme a fins [subjektiv­‑zweckmässig] para a razão como
fonte das ideias, ou seja, de uma compreensão [Zusammen‑
fassung] intelectual relativamente à qual toda a compreen‑
são estética é pequena; e o objecto é acolhido como sublime
com um prazer que só é possível mediante um desprazer. 28

Mais claro ainda é o § 28:

Rochedos audaciosamente suspensos por cima de nós


pesando como uma ameaça, nuvens de tempestade acumu­
lando­‑se no céu avançando com relâmpagos e trovões, vul‑
cões em sua inteira força destruidora, furacões deixando
atrás de si a devastação, o ilimitado oceano revolto, as cata‑
ratas de um rio poderoso, etc., tornam a nossa capacidade
de resistência de uma pequenez insignificante em compa‑
ração com o seu poder. Mas o seu espectáculo só se torna
tanto mais atraente quanto mais terrível ele é, contanto que
nos encontremos em segurança; e de bom grado denomina‑
mos estes objectos sublimes, porque eles elevam a fortaleza
da alma acima de seu nível médio e permitem descobrir em
nós uma faculdade de resistência de uma espécie totalmen‑
te diversa, a qual nos encoraja a medir­‑nos com a aparente
omnipotência da natureza. Pois assim como na verdade en‑
contramos a nossa própria limitação na incomensurabilida‑
de da natureza e na insuficiência da nossa faculdade para
tomar um padrão de medida proporcionado à avaliação es‑
tética da grandeza do seu domínio, e todavia também ao
mesmo tempo encontramos em nossa faculdade da razão
um outro padrão de medida não sensível, que tem sob si
como unidade aquela própria infinitude e em confronto
com o qual tudo na natureza é pequeno; por conseguinte,
encontramos em nosso ânimo uma superioridade sobre a
própria natureza em sua incomensurabilidade; assim tam‑
bém o carácter irresistível de seu poder dá­‑nos a conhecer,
a nós considerados como seres da natureza, a nossa impo‑
tência física, mas descobre ao mesmo tempo uma facul­dade
de ajuizar­‑nos como independentes dela e uma superiori‑

28
  KU, § 27, Ak V, 259-260.

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dade sobre a natureza, sobre a qual se funda uma auto­
‑conservação de espécie totalmente diferente daquela que
pode ser atacada e posta em perigo pela natureza fora de
nós, com o que a humanidade em nossa pessoa não fica
rebaixada, mesmo que o homem tivesse que sucumbir
àquela força. […] Portanto, a natureza aqui chama­‑se subli‑
me simplesmente porque ela eleva a faculdade da imagina‑
ção à apresentação daqueles casos nos quais o ânimo pode
tornar capaz de ser sentida a sublimidade da sua destina‑
ção, mesmo acima da natureza.

A explicação parece muito rebuscada e artificial. Kant, porém,


assegura que ela corresponde à observação de qualquer ser humano
e que está na base dos juízos mais comuns, ainda que nem sempre se
tenha disso consciência. Mas o que tal explicação expõe é todo o po‑
der analítico de Kant, ao mesmo tempo que nela se revela o esforço
do filósofo para dar conta da tensão que existe na própria condição
estética do homem e para realçar a harmonia ou adequação superior
— dita pelo termo Zweckmässigkeit — e até a ampliação das forças
anímicas que resulta desse conflito estético entre o sentimento do
belo e do sublime. Se na experiência do belo se revelava o espontâ‑
neo acordo entre a imaginação e o entendimento, na experiência do
sublime, de uma forma por certo muito mais complexa, revela­‑se, já
no domínio estético e sensível, o acordo entre a imaginação e a razão
enquanto faculdade das ideias e da moralidade. No conjunto, as
duas experiências estéticas, aparentemente e fenomenologicamente
antitéticas, põem em evidência, no plano da sensibilidade e do senti‑
mento, a complexa harmonia do organismo do espírito. 29

29
  Por isso Kant sente­‑se autorizado a considerar os dois sentimentos — o
do belo e o do sublime — como partes da crítica do juízo estético: «A capaci‑
dade de sentir um prazer [Empfänglichkeit einer Lust] a partir da reflexão acerca
das formas das coisas (tanto da natureza como da arte) não indica apenas uma
teleoformidade [Zweckmässigkeit] dos objectos em relação à faculdade de jul‑
gar reflexionante, conforme [gemäss] ao conceito de natureza no sujeito, mas
também, inversamente, uma <teleoformidade> do sujeito em vista dos objectos
[Gegenstände] quanto à sua forma ou mesmo à falta de forma [Unform], segun‑
do o conceito de liberdade; e assim acontece que o juízo estético se refere não
apenas ao belo como juízo de gosto, mas também, enquanto nascido de um
sentimento do espírito [aus einem Geistesgefühl entsprungenes], ao sublime [Erha‑
bene].» Einl., vii, Ak V, 192.

322

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Mas precisamente no sentimento do sublime é ainda mais evi‑
dente o efeito da subjectivação da estética que a concepção kantiana
consagra, pois o que aí se torna manifesto é que, propriamente fa‑
lando,

a sublimidade não está contida em nenhuma coisa da natu‑


reza, mas só no nosso ânimo, na medida em que podemos
ser conscientes de ser superiores à natureza em nós e tam‑
bém à natureza fora de nós… Tudo o que desperta em nós
este sentimento, como é o caso da força da natureza que
desafia as nossas forças, chama­‑se então (ainda que impro‑
priamente) sublime; e é somente na pressuposição desta
ideia em nós e em referência a ela que somos capazes de
chegar à ideia da sublimidade daquele Ser que provoca em

Na Primeira Introdução (xii), Kant é ainda mais explícito: «A forma de


um objecto pode, primeiramente, ser percepcionada por si mesma já como teleo‑
forme [zweckmässige], isto é, na simples intuição sem conceito para a faculdade
de julgar reflexionante e, neste caso, a teleoformidade subjectiva é atribuída à
coisa e à natureza mesma; em segundo lugar, pode muito bem o objecto [Objekt]
na percepção não ter em si o mínimo de teleoforme [das mindeste Zweckmäs‑
sige] para a determinação da sua forma na reflexão, ainda que todavia a sua
representação pode fundar um juízo estético sobre uma teleoformidade que
reside a priori no sujeito, para suscitar um sentimento da mesma (talvez o da
determinação supra­‑sensível das energias do ânimo [Gemütskräfte] do sujei‑
to); neste caso o juízo refere­‑se igualmente a um princípio a priori (por certo
simplesmente subjectivo), não como no primeiro, a uma teleoformidade da
natureza [Zweckmässigkeit der Natur] em atenção ao sujeito, mas apenas em
atenção a um possível uso teleoforme de certas intuições sensíveis, segundo
a sua forma, por intermédio da faculdade de julgar meramente reflexionante.
Se, por conseguinte, o primeiro juízo atribui beleza aos objectos da natureza, o
segundo atribui­‑lhes a sublimidade, e isso, nos dois casos, unicamente através
de juízos estéticos (reflexionantes), sem conceitos do objecto e não tendo em
vista senão a teleoformidade subjectiva; mas, em relação ao último, não há
que pressupor nenhuma técnica da natureza especial, pois aí depende apenas
de um uso contingente da representação tendo em vista não o conhecimento
do objecto, mas um outro sentimento, a saber o da íntima teleoformidade na
disposição das faculdades do ânimo [sondern eines andern Gefühls, nämlich dem
der innern Zweckmässigkeit in der Anlage der Gemüthskräfte]. Por conseguinte,
o juízo sobre o sublime na natureza não deverá ser excluído da divisão da
estética da faculdade de julgar reflexionante, pois ele exprime também uma
teleoformidade subjectiva que não se funda sobre um conceito do objecto.»
(ed. Lehmann, pp. 59­‑61).

323

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nós um profundo respeito, não apenas através da força que
ele manifesta na natureza, mas ainda mais através do po‑
der que se encontra inscrito em nós de ajuizar sem medo
aquela força e pensar a nossa destinação como sublime
para além dela. 30

II. Que tipo de universalidade e de necessidade


podem pretender os juízos estéticos?

A recusa de uma Estética fundada metafisicamente, numa or‑


dem do ser e dos respectivos atributos ou qualidades, e a insistên‑
cia na condição de subjectividade do juízo estético coloca a Kant o
problema de como dar razão da peculiar necessidade e universali‑
dade com que os juízos estéticos se apresentam, de tal modo que,
quando, por exemplo, dizemos que uma rosa (ou uma paisagem) é
bela, não consentimos que os outros tenham uma opinião diferen‑
te da nossa, embora não sejamos capazes de apresentar nenhuma
razão objectiva para os convencermos de que devem concordar
com esse nosso juízo. O que nos dá o direito a tal pretensão ou
presunção? Temos ao menos o direito de esperar que a apreciação
estética que nós fazemos de um objecto possa ser compartilhada
por outros? Ou devemos render­‑nos à condição meramente priva‑
da dos nossos sentimentos e juízos estéticos? Por outras palavras:
sendo o juízo estético uma vivência inalienável de um sujeito, que
tipo de universalidade e de necessidade é possível reconhecer­‑lhe,
ou de todo não é possível atribuir­‑lhe qualquer pretensão de uni‑
versalidade e necessidade, e, ao limite, nem sequer de comunica‑
bilidade?
Há muitos indícios que revelam que esta questão preocupou
Kant durante longos anos e desde muito cedo, pelo menos desde o
início dos anos 70, e que ele ensaiou diferentes maneiras de lhe dar
resposta, chegando mesmo a desesperar de a encontrar. Algumas
Reflexões dos primeiros anos da década de 70 (1770­‑1773) revelam
que o filósofo tentou fundar uma teoria do juízo do belo e do gosto,
enquanto sentimentos «válidos para todos», sobre os recém­‑des­co­
bertos princípios formais da sensibilidade (as intuições a priori do
espaço e do tempo). A Reflexão 672, provavelmente contemporânea

30
  KU, § 28, parágrafo final.

324

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da redacção da Dissertação de 1770, ou pouco posterior, é particular‑
mente significativa a este respeito. Ela diz o seguinte:

Dado que cada objecto da sensibilidade tem uma rela‑


ção com o nosso estado, mesmo naquilo que pertence ao
conhecimento e não à sensação [Empfindung], designada‑
mente no confronto do múltiplo e da forma (pois este con‑
fronto afecta o nosso estado, na medida em que nos pesa ou
nos é leve, em que anima ou inibe toda a nossa actividade),
nessa medida existe algo em todo o conhecimento que é da
ordem da agradabilidade [Annehmlichkeit]; mas, nesse caso,
a aprovação [Billigung] não se refere ao objecto e a beleza
não é algo que pode ser conhecido, mas apenas sentido [nur
empfunden]. Aquilo que no objecto agrada e que considera‑
mos como uma propriedade do mesmo, tem de consistir no
que vale para todos [was vor iedermann gilt]. Ora as relações
do espaço e do tempo valem para todos, quaisquer que se‑
jam as sensações [Empfindungen] que se tenham. Portanto,
em todos os fenómenos [Erscheinungen] a forma é univer‑
salmente válida; e esta forma é conhecida também segundo
regras comuns de coor­denação; por conseguinte, aquilo
que é conforme à regra de coordenação no espaço e no tem‑
po, isso agrada necessariamente a todos e é belo [was also
der Regel der Coordination in Raum und Zeit gemäss ist, das
gefält nothwendig iedermann und ist schön]. O agradável na
intui­ção da beleza depende da apreensibilidade de um
todo, mas a beleza depende da validade universal destas
proporcionadas relações [das Angenehme in dem Anschauen
der Schönheit komt an auf die Fasslichkeit eines Ganzen, allein
die Schönheit auf die allgemeine Gültigkeit dieser schiklichen
Verhältnisse]. 31

Desta mesma solução encontramos ainda vestígios no Curso de


Lógica, tardiamente publicado por Jäsche (1800), onde lemos:

A perfeição estética consiste na concordância do co‑


nhecimento com o sujeito e baseia­‑se na sensibilidade
­particular do ser humano. Por isso, no caso da perfeição

31
  Reflexion 672, Ak XV, 298.

325

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e­ sté­tica, não há lugar para leis objectivas e universalmente
válidas, relativamente às quais ela se deixaria avaliar a
­priori de uma maneira universalmente válida para todos os
seres pensantes em geral. Na medida, porém, em que tam‑
bém há leis universais da sensibilidade, que, muito embora
não tenham ­validade objectivamente e para todos os seres
pensantes em geral, têm, contudo, subjectivamente valida‑
de para o conjunto da humanidade: é possível também
pensar uma perfeição estética que contenha o fundamento
de um agrado subjectivamente universal. Tal é a beleza —
aquilo que agrada aos sentidos na intuição e, exactamente
por isso, pode ser o objecto de um agrado universal, porque
as leis da intuição são leis universais da sensibilidade. É por
essa concordância com as leis universais da sensibilidade
que se distingue, quanto à espécie, o belo propriamente dito,
auto­‑subsistente, cuja essência consiste na mera forma, do
aprazível, que agrada unicamente na sensação pelo encanto
ou emoção e, por essa razão, só pode ser também o funda‑
mento de um mero agrado privado. 32

E é ainda nesta mesma linha que vão os desenvolvimentos do


Curso de Lógica (Logik­‑Philippi), registados em Maio de 1772, por um
dos alunos de Kant, onde se lê:

O fundamento do comprazimento nas proposições da


razão reside, se não me engano, na multiplicação das pers‑

  «Die ästhetische Vollkommenheit besteht in der Übereinstimmung des


32

Erkenntnisses mit dem Subjekte, und gründet sich auf die besondre Sinnlichkeit
des Menschen. Es finden daher bei der ästhetischen Vollkommenheit keine
objektiv — und allgemeingültigen Gesetze statt, in Beziehung auf welche sie sich a
priori auf eine für alle denkende Wesen überhaupt, doch subjektiv für die gesamte
Menschheit Gültigkeit haben: lässt sich auch eine ästhetische Vollkommenheit
denken, die den Grund eines subjektiv­‑allgemeinen Wohlgefallens enthält.
Dieses ist die Schönheit — das, was den Sinnen in der Anschauung gefällt und
eben darum der Gegenstand eines allgemeinen Wohlgefallens sein kann, weil die
Gesetze der Anschauung allgemeine Gesetze der Sinnlichkeit sind. Durch diese
Übereinstimmung mit den allgemeinen Gesetzen der Sinnlichkeit unterscheidet
sich der Art nach das eigentliche, selbständige Schöne, dessen Wesen in der blossen
Form besteht, von dem Angenehmen, das lediglich in der Empfindgung durch
Reiz oder Rührung gefällt, und um deswillen auch nur der Grund eines blossen
Privat­‑Wohlgefallens sein kann.» Ak IX, 36­‑37.

326

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pectivas, e a perfeição das mesmas nos produtos do gosto,
na facilidade de captar uma multidão de múltiplas impres‑
sões, ordená­‑las sem esforço, distingui­‑las, senti­‑las com
vivacidade e poder abrangê­‑las com a vista num todo.
Como acima dissemos, as leis da nossa sensibilidade são
muito concordantes com as leis da sensibilidade dos outros
e disso resultam as regras fundamentais do gosto. Mas que
tipo de leis são essas? A nossa sensibilidade está em cons‑
tante actividade e quer estar assim constantemente. Desta
lei fundamental da sensibilidade se deduz a regra do gosto:
se um objecto da sensibilidade deve agradar, então deve
haver nele multiplicidade, para que tenha material com o
qual se possa ocupar: o espírito é activo na forma de todos
os objectos. Ele fornece os materiais e quer transformá­‑los
mediante o objecto. — Tudo o que obstaculiza esta activida‑
de da sensibilidade, é­‑lhe desgostoso e desagradável. Da‑
qui resulta a regra: esforçamo­‑nos por colocar no múltiplo
simetria, harmonia e clareza e em geral compreensibilida‑
de, com o que a sensibilidade possa captar o objecto sem
esforço, e distinguir facilmente e sentir as impressões do
mesmo. Por conseguinte, o gosto requer multiplicidade,
contraste, harmonia, facilidade, clareza e uma contínua
passagem de uma coisa para o seu oposto, o salto perturba
a sensibilidade. Um objecto no qual tudo isto está dado
numa relação compreensível, é essencialmente belo e agra‑
da universalmente. Um objecto grande como um edifício
agrada se nele houver simetria; ela facilita a contemplação
do edifício. […] Há pois certas leis comuns da sensibilidade
no que respeita à forma e, se não me engano, estas são as
que até agora percorri. — Só que o estímulo sensorial deve
ser completamente isolado. […] Se um homem não conhece
as leis da sensibilidade também o belo não lhe pode agra‑
dar. Pois os objectos dos sentidos têm de ser apreciados
segundo as leis da sensibilidade. Um tal homem aprecia
então segundo o estímulo sensorial. 33

  «Der Grund des Wohlgefallens bei Vernunftsätzen liegt, wo ich nicht


33

irre, in der Vermehrung der Einsichten, und Vollkommenheit derselben bei


Produkten des Geschmacks, in der Leichtigkeit eine Menge mannigfaltiger
Eindrücke aufnehmen, sie ohne Mühe ordnen, unterscheiden, lebhaft empfinden
und im Ganzen überschauen zu können. Unsere Sinnlichkeit Gesetze sagten wir

327

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A solução apresentada nas passagens anteriormente citadas pa‑
rece apontar no sentido de conciliar os pressupostos de uma estética
racionalista (a percepção da unidade de um múltiplo, da simetria,
da harmonia, da perfeição, da clareza), com os de uma estética em‑
pirista ou sensualista, segundo o que aquela unidade e demais qua‑
lidades são percebidas não pela razão mas pela sensibilidade me‑
diante as intuições do espaço e do tempo. Tal como há princípios de
ordem e beleza que regem o conhecimento racional assim os há tam‑
bém no conhecimento sensível: à perfeição lógica corresponde uma
perfeição estética. Apesar de tudo, Kant está nessas reflexões muito
próximo da proposta baumgarteniana da Estética entendida como
uma lógica da sensibilidade, mediante a qual o sujeito capta a per‑
feição do mundo sensível.
Todavia, na Crítica da Razão Pura, seja na primeira ou na segun‑
da edição da obra, não há qualquer vestígio de continuidade com

oben sind mit dem Gesetzen der Sinnlichkeit anderer sehr übereinstimmend,
und daraus werden die Grundregeln des Geschmacks bezogen. Was sind
das für Gesetze? — Unsere Sinnlichkeit ist in beständiger Aktivität und will
es auch beständig sein. Aus diesem Grundgesetz der Sinnlichkeit zieht man
die Regel des Geschmacks: soll ein Objekt der Sinnlichkeit gefallen, so muss
darin Mannigfaltigkeit angebracht werden, damit sie Stoff bekomme womit
sie sich beschäftigen kann: Das Gemüt ist bei der Form aller Gegenstände
tätig. Es gibt die Materialien her, und will sie durch den Gegenstand gebildet
haben. — Alles was diese Aktivität der Sinnlichkeit hindert, ist ihr verdriesslich
und unangenehm. Hieraus fliesst die Regel: man bemühe sich in dem
Mannigfaltigen, Symmetrie, Harmonie und Klarheit und überhaupt Fasslichkeit
anzubringen, damit die Sinnlichkeit den Gegenstand ohne Mühe fassen, die
Eindrücke desselben leicht unterscheiden und empfinden kann. Also fordert
der Geschmack Mannigfaltigkeit, Kontrast, Harmonie, Leichtigkeit, Klarheit
und einen allmählichen Übergang von einem bis aufs Oppositum desselben,
der Sprung verwirrt die Sinnlichkeit. Ein Gegenstand an dem dieses alles in
einem fasslichen Verhältnis angebracht ist, ist wesentlich schön und gefällt
allgemein. Ein grosser Gegenstand als ein Gebäude gefällt wenn Symmetrie
darin angebracht ist; sie erleichtert den Anblick des Gebäudes. […] Es gibt also
gewisse gemeine Gesetze der Sinnlichkeit in Ansehung der Form und dieses
werden, wo ich nicht irre, diejenigen sein die ich bisher durchgegangen. —
Allein es muss der Reiz gans abgesondert werden. […] Wenn ein Mensch
die Gesetze der Sinnlichkeit nicht weiss, so kann ihm auch das Schöne nicht
gefallen: denn Gegenstände der Sinne müssen nach Gesetzen der Sinnlichkeit
beurteilt werden; ein solcher Mensch urteilt dann nach dem Reiz.» (Logik­
‑Philippi, Ak XXIV, Berlin, 1966, apud Jens Kulemkampf, Materialien zu Kants
Kritik der Urteilskraft, Suhrkamp, Frankfurt a. M., pp. 106­‑107.)

328

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esta linha de solução. Pelo contrário, Kant parece ter deixado defi‑
nitivamente de esperar encontrar uma explicação para uma possí‑
vel universalidade dos princípios do gosto e declara mesmo ex‑
pressamente que «os princípios do gosto são meramente [ou na sua
maior parte, segundo a versão B] empíricos [ihren vornehmsten Quel‑
len nach bloss empirisch]». É só numa carta a Reinhold, de finais de
Dezembro de 1787, por conseguinte, já depois de publicada a se‑
gunda edição da Crítica, que, pela primeira vez, Kant revela ter
«descoberto» um novo princípio a priori, o qual preside o sentimen‑
to de prazer e desprazer, e isso, como igualmente aí refere, depois
de ter desesperado de o encontrar. E embora na Crítica do Juízo te‑
nha dado uma solução positiva a esse problema, ainda assim o filó‑
sofo continua a referir­‑se a esse sentimento como estando envolvi‑
do por uma natural obscuridade ou complexidade, que torna difícil
a sua abordagem e a compreensão da sua verdadeira natureza, a
qual no fundo, permanece um mistério não completamente revela‑
do 34. Ao longo de toda a primeira parte da terceira Crítica, Kant
enfrenta o problema em vários momentos, tentando garantir para
os juízos estéticos um certo tipo de universalidade e de necessida‑
de, a qual é, porém, radicalmente distinta da universalidade lógica
e da necessidade fundada num conhecimento objectivo, não po‑
dendo, por conseguinte, ser objecto de uma demonstração median‑
te a invocação de determinadas qualidades ou propriedades do
objecto do juízo; distinta também da universalidade imperativa e
categórica, que é própria dos princípios da moralidade. Graças a
esse esforço, da mesma forma que antes o vimos superar o pressu‑
posto do racionalismo estético, Kant tenta ultrapassar o pressupos‑
to do empirismo e sensualismo estéticos, que inspirava a concepção
de fundo de muitos pensadores de cujas obras se alimentou desde
cedo a sua reflexão acerca do temas do gosto e dos sentimentos do

34
  Assim no Prefácio da KU: «… kann die grosse Schwierigkeit, ein Pro‑
blem, welches die Natur so verwickelt hat, aufzulösen, einiger nicht ganz zu
vermeindenden Dunkelheit in der Auflösung desselben, wie ich hoffe, zur
Entschuldigung dienen…» Ak V, 170. Também a carta a Reichardt (15  de
­Outubro de 1790, Ak  XI, 228) fala do «so schweer zu erforschenden Ge‑
schmacksvermögen». Noutros lugares, Kant sugere que a comunicabilidade
e universalidade do gosto se funda na proximidade que esse sentimento tem
com o sentimento moral. A já citada carta a Reichardt di­‑lo sem ambiguidade
(texto citado infra, nota 52): sem sentimento moral não teríamos qualquer sen‑
timento do belo e do sublime.

329

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belo e do sublime (1764: Beobachtungen über das Gefühl des Schönen
und Erhabenen) a sua própria reflexão, sobretudo Edmund Burke
(Philosophical Enquiry Into the Origins of Our Ideas of the Sublime and
the Beautiful, 1757), mas também David Hume (Of the Standard of
Taste, 1757) 35, e ainda outros, como Hutcheson, Shaftesbury, Gerard,
Hogarth.
Segundo o filósofo, a comunicabilidade dos juízos estéticos e a
universalidade que lhes é peculiar e que nós com direito presumi‑
mos, funda­‑se num «sentido comum» que existe em todos os seres
humanos e que Kant interpreta não como um vago senso comum
mas como sendo propriamente um sensus communis aestheticus, que
se identifica com o próprio gosto (Geschmack) e que define como «o
poder de apre­ciação daquilo que, numa dada representação e sem
mediação de um conceito, o nosso sentimento torna universalmente
comunicável» 36.
Por certo, esta comunicabilidade é, como vimos (§ 11), facilitada
já pelo facto de que o que se comunica na experiência estética não é
um prazer que se refira à matéria do objecto ou dela resulte, e sim
apenas a satisfação que nasce da percepção da mera forma ­— «for‑
ma da teleoformidade ou teleoformidade da forma» ­— que o sujei‑
to, na sua reflexão, atribui ao objecto. Desse modo, Kant pode afir‑
mar que a necessidade do assentimento universal, que é pensada
num juízo de gosto, é uma necessidade subjectiva, que, sob a pres‑
suposição da existência de um sentido comum em todos os homens,
é representada como objectiva. Reporta­‑se a esse originário sentido
comum ou comunitário a capacidade de criar ou inventar uma «nor‑
ma ideal mas indeterminada» do juízo de gosto, que se pressupõe

35
  Segundo Hume, o que funda a pertinência do juízo de gosto e estabele‑
ce as normas do gosto é o conhecimento dos experimentados, por conseguinte,
a comunidade dos conhecedores, que aliás são raros. A universalidade do gosto
é estatística: o que de uma forma permanente é altamente apreciado pelo maior
número de pessoas, isso deve ser tido por belo e bom. Hume até concede que
«as normas universais do gosto são as mesmas para a natureza humana em
geral»; mas as diferenças entre os indivíduos, as deficiências e os preconceitos
de cada um deles, as diferenças entre culturas, países e épocas tornam muito
improvável, senão até impossível, o acordo inequívoco e duradouro num juízo
de gosto.
36
  «Man könnte sogar den Geschmack durch das Beurteilungsvermögen
desjenigen, was unter Gefühl an einer gegebenen Vorstellung ohne Vermittlung
eines Begriffs allgemein mitteilbar macht, definieren.» KU, § 40, Ak V, 295.

330

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existir em todos os seres humanos e que garante a comunicabilidade
dos sentimentos entre eles. Assim se lê no § 22:

Em todos os juízos mediante os quais declaramos algo


belo não permitimos a ninguém que seja de outra opinião,
sem com isso fundarmos o nosso juízo sobre conceitos, mas
somente sobre o nosso sentimento; o qual, por conseguinte,
colocamos por fundamento, não como sentimento privado,
mas como um sentimento comunitário [gemeinschaftliches
Gefühl] … Assim o sentido comum [Gemeinsinn] de que dou
como exemplo aqui o meu juízo de gosto conferindo­‑lhe
uma validade exemplar, é uma simples norma ideal, cuja
pressuposição poderia permitir que cada um estabelecesse
como regra um juízo que estivesse de acordo com ela e a
satisfação num objecto que nela se exprime. Esta norma in‑
determinada de um sentido comum é efectivamente pres‑
suposta por nós, como se prova pela nossa presunção de
proferir juízos de gosto.

Por muito complexa e rebuscada que possa parecer — ou mes‑


mo ser — esta solução, ela revela­‑se de uma impressionante novi‑
dade e fecundidade. Em primeiro lugar, porque não precisa de fun‑
dar a universalidade dos juízos estéticos numa ordem do
conhecimento, mantendo­‑a sim no plano do sentimento: há uma
universalidade e capacidade de comunicação universal dos senti‑
mentos que não depende da — nem passa pela — ordem dum co‑
nhecimento objectivo e intelectual, conceptualizado e argumentado
com razões objectivas de ciência. Em segundo lugar, esse «senti‑
mento comunitário» ou «sentido comum» é mais originário do que
a capacidade de pensar e comunicar pensamentos ou ideias logica‑
mente, o que coloca o sentimento estético num plano mais fundo
da subjectividade humana, a que Kant chama o Gemüt (o ânimo, o
espírito: animus, mens — o sentimento de unidade de todas as facul‑
dades anímicas, por isso Kant também fala de sentimento vital ou
de vida — Lebensgefühl). Em terceiro lugar, esse «sentido comum»
(Gemeinsinn) é mesmo comum a todos, isto é, qualquer ser humano
o possui, pelo que a capacidade para o sentimento estético ou para
emitir apreciações estéticas é muito mais básica e fundamental nos
seres humanos do que a capacidade para o conhecimento científico
e para emitir juízos lógicos, que supõe cultivo e treino. A capacida‑
de estética — para a apreciação estética, para ter sentimentos esté‑
ticos ou para emitir juízos de gosto — não está pois reservada a al‑

331

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guns indivíduos com qualidades especiais, mas é originariamente
dada a todos os seres humanos pelo simples facto de serem huma‑
nos. Em suma: a ordem de onde brota o sentimento estético é mes‑
mo mais originária do que a ordem do entendimento ou da razão,
e há uma comunicação autónoma dos sentimentos que não passa
pelas vias da comunicação intelectual ou racional. O a priori kantia‑
no da comunicabilidade humana sobre que se funda toda a civiliza‑
ção, a cultura, a sociabilidade e até a existência política é de matriz
estética: é um sentimento.
Mas essa ordem do sentimento, não sendo da ordem do conhe‑
cimento intelectual, é todavia da ordem da reflexão: o juízo estético
ou de gosto é um acto duma faculdade também ela peculiar, a facul‑
dade de julgar reflexionante, que não se deve confundir com a vul‑
gar faculdade de emitir juízos lógicos ou científicos, mas deve sim
entender­‑se como

a capacidade de ajuizamento que, na sua reflexão, toma em


consideração em pensamento (a priori) o modo de represen‑
tação de qualquer outro, como que para ater o seu juízo à
inteira razão humana e assim escapar à ilusão que, a partir
de condições privadas subjectivas — as quais facilmente
poderiam ser tomadas por objectivas —, teria influência
prejudicial sobre o juízo. 37

E assim o § 40 conclui:

O gosto poderia ser chamado sensus communis e o juízo


estético, com muito mais razão do que o juízo intelectual,
pode ser chamado um sentido comum a todos [eines ge‑
meinschaftliches Sinnes], se se quiser empregar a palavra
sentido [Sinn] como um efeito da simples reflexão sobre o âni‑
mo [Gemüt]; pois aí entende­‑se por sentido [Sinn] o senti‑
mento de prazer [Gefühl der Lust]. Poder­‑se­‑ia até definir o
gosto como o poder de apreciação [Beurteilungsvermögen]
­daquilo que, numa dada representação e sem mediação de
um conceito, torna universalmente comunicável o nosso
­sentimento. 38

37
  Ak V, 294.
38
  Ak V, 295.

332

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Nos §§ 56 e 57 da obra, Kant aborda este mesmo problema dis‑
cutindo alguns lugares comuns que costumam ouvir­‑se a respeito
das questões estéticas, a saber, que «cada qual possui o seu próprio
gosto», ou que «acerca dos gostos não se disputa» (de gustibus non
disputandum).
A primeira fórmula pressupõe que o gosto é um assunto priva‑
do e incomunicável; a segunda pode, à primeira vista, considerar­‑se
uma réplica da primeira, mas parece pressupor que, mesmo que o
juízo de gosto fosse objectivo, não seria possível reduzi­‑lo a concei‑
tos determinados e provar a sua objectividade com argumentos.
Tanto num caso como no outro, nega­‑se a pretensão de universali‑
dade e de comunicabilidade, qualidades que os juízos estéticos to‑
davia parecem reivindicar.
Ora, Kant pensa que entre aquelas duas sentenças há lugar para
uma terceira, que seria esta: «acerca do gosto é possível pleitear
(streiten), ainda que não seja possível disputar [disputieren] […], pois
onde é permitido pleitear, é necessário que haja a esperança de se
chegar a um acordo» (Denn worüber es erlaubt sein soll zu streiten, da
muss Hoffnung sein, unter einander übereinzukommen) 39. Este presumi‑
do e esperado acordo, porém, não sendo constrangido por nenhum
argumento objectivo, só pode aspirar a ser o resultado do livre as‑
sentimento dos parceiros da discussão. Isso explicaria a pretensão
com que um juízo de gosto se apresenta, quando o formulamos, de,
por assim dizer, exigirmos de cada qual que concorde connosco,
como se isso constituisse para ele um dever (gleichsam als Pflicht je‑
dermann zugemutet werde), sem contudo termos o direito de o obri‑
gar a que o aceite 40.
Kant mantém e garante assim um equilíbrio tenso — nunca
dado por definitivamente adquirido, mas sempre a exigir negocia‑
ção, conversação ou discussão — entre a individualidade inaliená‑
vel da experiência estética e a sua comunicabilidade e abertura à
universalidade. O meu juízo, sendo originariamente meu, abre­‑se
contudo à comunicação e espera ser acolhido por todos aqueles que
compartilham comigo a condição de seres humanos. Kant chega

  KU, § 56; Ak V, 338.


39

  KU, § 40, Ak V, 296. Foi esta muito peculiar natureza do juízo de gosto
40

que levou Hannah Arendt a reconhecer neste tópico não tanto as virtualidades
para compreender as questões estéticas, quanto o núcleo mais original e fe‑
cundo para pensar a filosofia política de Kant e a própria essência do político.
Veja-se, neste volume, pp. 503-546.

333

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mesmo a dizer que esta comunicabilidade universal dos sentimen‑
tos se funda numa espécie de «contrato originário que é ditado pela
própria humanidade» 41.
Mas, como acima disse, Kant parece hesitar a respeito da me‑
lhor solução para garantir a necessidade e universalidade dos juízos
estéticos. Ou, pelo menos, vê­‑se na necessidade de reforçar a sua
ideia dum «sentido comum estético» com a do sentimento moral,
como fundamento para garantir a necessidade e a universalidade
que aqueles juízos reivindicam 42. Isso é particularmente visível na
abordagem que o filósofo faz do sentimento do sublime, na qual,
como vimos antes, pôs em evidência o íntimo e profundo parentes‑
co que esse sentimento tem com o sentimento moral. No § 29 diz
Kant de forma inequívoca:

O juízo sobre o sublime da natureza […] tem o seu fun‑


damento na natureza humana e mais precisamente naquilo
mesmo que, juntamente com o são entendimento, se pode
esperar e exigir de cada qual, a saber, a disposição para o
sentimento das ideias (práticas), isto é, para o sentimento
moral [in der Anlage zum Gefühl für (pracktische) Ideen, d. i. zu
dem moralischen]. Sobre isso funda­‑se então a necessidade
de assentimento do juízo de outros com o nosso acerca do
sublime, a qual ao mesmo tempo incluímos neste juízo.
Pois assim como censuramos de carência de gosto aquele
que é indiferente ao ajuizamento de um objecto da nature‑
za que achamos belo, assim dizemos que não tem nenhum
sentimento aquele que permanece inerte junto ao que julga‑
mos sublime. Exigimos, porém, ambas as qualidades de
cada homem e também as pressupomos nele, se ele tem al‑

  KU, § 41.
41

  A associação entre o bom e o belo estava difusa na tradição filosófica


42

desde Platão e encontra expressão em muitos ensaios de autores do sé­culo xviii.


Já no início dos anos 70 (Aus einer Logikvorlesung, Logik­‑Philippi [May 1772];
Ak  XXIV, Berlin, 1966), Kant declara que «Das Gute ist der essentiale Grund
des Schönen. Das Wohlgefallen ist nur ein akzidentaler und die Gründe des‑
selben zufällig.» (Apud J. Kulenkampf, Materialien…, p. 111.) V. abaixo, nota 52,
passagens das Lições de Antropologia e da Correspondência que afirmam não só
uma íntima afinidade entre o sentimento estético e o sentimento moral, mas
sugerem mesmo que o que garante a universalidade do juízo estético é a sua
origem no sentimento moral.

334

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guma cultura; com a diferença apenas de que exigimos a
primeira terminantemente de qualquer um, porque a facul‑
dade do juízo nisso refere a imaginação apenas ao entendi‑
mento como faculdade dos conceitos; a segunda, porém,
porque ela aí refere a faculdade da imaginação à razão
como faculdade das ideias, exigimo­‑la somente sob uma
pressuposição subjectiva (que, porém, nos cremos autori‑
zados a poder imputar a qualquer um), ou seja, a do senti‑
mento moral no homem, e com isso também atribuímos
necessidade a este juízo estético.

E Kant conclui:

Nesta modalidade dos juízos estéticos, a saber, da ne‑


cessidade a eles atribuída, reside um momento capital para
a crítica da faculdade de julgar. Pois ela faz precisamente
reconhecer neles um princípio a priori e subtrai­‑os à psico‑
logia empírica, onde, de contrário, ficariam sepultados sob
os sentimentos de deleite e de dor [Gefühlen des Vergnügens
und Schmerzens] (somente sob o epíteto, que nada diz, de se
tratar de um sentimento mais requintado [eines feinern Ge‑
fühls]), colocando­‑os e, mediante eles, a faculdade de julgar
[Urteilskraft], na classe daqueles que têm por fundamento
princípios a priori, fazendo­‑os passar enquanto tais para a
filosofia transcendental. 43

Há assim nos juízos estéticos uma dialéctica entre o privado (o


meramente subjectivo) e o universal (a comunicabilidade possível e
aberta a todos os humanos, o que testemunha uma certa necessida‑
de e objectividade nesses juízos, embora, como vimos, o que consti‑
tui propriamente o objecto e a matéria do juízo estético é a mera for‑
ma da teleoformidade). Esta dialéctica entre o singular e o universal no
juízo estético manifesta­‑se de um modo peculiar na tensão entre o
gosto e o génio, entre a expectativa de acordo universal dos senti‑
mentos e a exigência do absoluto daquela forma superlativa de in‑
dividualidade que, nas suas criações ou produções, não obedece a
regras dadas, mas mediante elas cria as regras que servirão depois a
outros de referência.

43
  KU, § 29, último parágrafo.

335

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A noção de génio desenvolveu­‑se ao longo do século xviii vin‑
do a tornar­‑se uma categoria essencial da Estética do Romantismo
e do Idealismo e, por vezes, até a absolutizar­‑se, entendida como
uma figura superlativa da subjectividade criadora que nos artistas
se exprime 44. Kant foi dos pensadores setecentistas que mais con‑
tribuiu para a elaboração do sentido estético dessa noção, subli‑
nhando as qualidades e faculdades que são requeridas para que
alguém possa ser considerado génio. Em particular, a imaginação,
enquanto livre poder de criar ideias estéticas, mas, ao mesmo tem‑
po, o juízo para apreciar a sua pertinência (Zweckmässigkeit), e até
o entendimento, para encontrar o modo de as comunicar. Do génio
exige­‑se que dê alma ou espírito às suas obras, graças ao que elas
se tornam efectivamente cheias de significado (sinnreich) e inspira‑
doras para outros. Requer­‑se, por fim, que ele tenha também gos‑
to, isto é, capacidade de apreciar ou ajuizar a pertinência das suas
obras e a sua capacidade de serem apreciadas e significativas para
outros.
Apesar de toda a importância que atribui ao génio, no contexto
do seu pensamento estético, ainda aí Kant tenta manter o equilíbrio
entre dois princípios: o da apreciação e o da criação original, a exi‑
gência de comunicabilidade universal, representada pelo princípio
do gosto, e a instauração original do sentido pela individualidade
criadora que é o génio, o qual não obedece às regras feitas ou já es‑
tabelecidas da arte, mas através de cuja criação é como se a própria
natureza desse regras à arte e se constituísse como referência ideal
do gosto para os vindouros. Esse equilíbrio entre os dois princípios
— um representado na noção de gosto e o outro representado na
noção de génio — logo será rompido na geração pós­‑kantiana, ro‑
mântica e idealista, para a qual o génio (identificado com o artista)
se institui como princípio absoluto. Em suma, Kant conclui que, em
caso de conflito entre a exigência do génio e a exigência do gosto,
deve ser aquele que deve ser parcialmente sacrificado, precisamente
para que a sua criação seja acolhida e reconhecida e possa assim
manifestar e exercer toda a sua fecundidade no espaço da comuni‑
dade humana. A extraordinária riqueza de ideias e a ilimitada liber‑

44
  Sobre a concepção kantiana do génio, v. O. Schlapp, Kants Lehre vom Genie
und die Entstehung der Kritik der Urteilskraft, Göttingen, 1901; Jürgen Saartrowe,
Genie und Reflexion. Zu Kants Theorie des Ästhetischen, Neuburgweier/Karlsruhe,
1971.

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dade da imaginação, que são as peculiares qualidades que se reco‑
nhece ao génio, devem ceder perante a exigência de pertinência
(Zweckmässigkeit) requerida pelo gosto ou faculdade de julgar. Na
linguagem de Kant:

O gosto é […] a disciplina do génio; ele corta­‑lhe as asas,


torna­‑o civilizado e polido [beschneidet diesem sehr die Flügel
und macht es gesittet oder geschliffen]; mas ao mesmo tempo
dá­‑lhe uma orientação, indicando­‑lhe em que sentido e até
onde ele deve estender­‑se para poder permanecer pertinen‑
te [zweckmässig] e, na medida em que introduz clareza e or‑
dem na profusão dos pensamentos, torna as suas ideias con‑
sistentes, capazes de obterem uma aprovação duradoura e
ao mesmo tempo universal e de serem seguidas por outros
e assim promoverem uma cultura sempre crescente. Se, por
conseguinte, em caso de conflito entre estas duas proprieda‑
des algo num produto [artístico] deve ser sacrificado, deve
sê­‑lo preferentemente do lado do génio; e o juízo, que nos
assuntos da bela arte profere a sentença a partir de princí‑
pios próprios, autorizará que se prejudique antes a liberda‑
de e a riqueza da imaginação do que o entendimento. 45

Em suma, se o gosto — o juízo — «corta as asas ao génio», não


é por certo para impedi­‑lo de voar, mas sim para que o seu voo se
mantenha a uma altura tal que as suas obras possam ainda ser vis‑
tas, apreciadas, compreendidas e fecundas para a sociedade e co‑
munidade dos homens à qual ele as dirige e as propõe. Esta relativa
precedência que Kant reconhece ao gosto sobre o génio — por con‑
seguinte, ao juízo reflexionante sobre a imaginação — explica que a
sua obra tenha por título Kritik der Urteilskraft, e não «Kritik der Ein‑
bildungskraft», como poderia muito bem tê­‑lo tido, se o acento ti‑
vesse sido posto na faculdade estética criadora por excelência, e
não, como foi o caso, na faculdade apreciadora, a qual é chamada a
julgar da pertinência das criações do espírito mesmo quando elas
trazem o selo do génio. Na hora de decidir a qual das faculdades do
ânimo atribuir o papel fundamental de mediação entre as outras
faculdades e de administração orgânica de toda a vida espiritual,
Kant escolheu inequivocamente o juízo, designadamente o juízo re‑

45
  KU, § 50.

337

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flexionante. 46 Colocado no ponto de viragem de dois regimes do
pensamento estético, ao mesmo tempo que leva um ao limite e abre
ao outro as portas, Kant revela­‑se, todavia, mais como sendo ainda o
representante de uma estética classicista do gosto e da reflexão con‑
templativa do que como o incondicional paladino de uma estética
romântico­‑idealista do génio, entendido como um eu individual ab‑
soluto que fosse deixado entregue à liberdade sem peias — ou mes‑
mo à arbitrariedade — da sua inesgotável imaginação criadora.

III. Carácter mediador da beleza e matriz


estética da civilização humana

Já vimos que o pensamento estético do século  xviii se elaborou


na sua maior parte em torno da categoria do gosto e que esta cate‑
goria tinha, para além do seu sentido estético, e de resto a ele ligado,
também um eminente sentido social. Este aspecto é também vinca‑
do por Kant, o qual não só correlaciona o interesse pela beleza à
condição originariamente social do homem, mas vê nesse interesse
o princípio sobre o qual se funda e desenvolve a civilização huma‑
na, desde as formas mais elementares até às mais refinadas, sugerin‑
do assim a matriz e inspiração estéticas de toda a civilização. O filó‑
sofo faz notar que só em sociedade nos interessamos pelo belo, que

um homem, abandonado numa ilha deserta, não adornaria


para si só nem a sua cabana nem a si próprio, nem procura‑
ria flores, e muito menos as plantaria para se enfeitar com
elas; mas só em sociedade lhe ocorre ser não simplesmente
um homem, mas também um homem fino à sua maneira
(no que se pode ver o começo da civilização); pois é como
tal que se ajuíza aquele que é inclinado e apto a comunicar
o seu prazer a outros e ao qual um objecto não satisfaz se
não se pode sentir a complacência do mesmo em comuni‑
dade com outros. […] E assim, de início, por certo somente
atractivos, por exemplo, cores para pintar­‑se (o rocou entre
os caribenhos e o cinabre entre os iroqueses), ou flores, con‑

46
  Aspecto este especialmente destacado por Hannah Arendt, na sua in‑
terpretação da filosofia política de Kant e da Crítica do Juízo. Veja-se o último
ensaio deste volume.

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chas, penas de pássaros belamente coloridas; com o tempo,
porém, também belas formas (como em canoas, vestidos,
etc.), que não comportam absolutamente nenhum deleite,
isto é, complacência do gozo, tornam­‑se importantes em
sociedade e são objecto de um grande interesse; até que, fi‑
nalmente, a civilização, chegada ao ponto mais alto, faz dis‑
so quase o objectivo principal da inclinação refinada e as
sensações serão consideradas valiosas somente na medida
em que elas possam ser universalmente comunicadas. 47

Parece­‑me ser muito significativo o facto de Kant apontar assim


tão claramente a matriz estética como inspiradora do processo e de‑
senvolvimento da civilização, da cultura e da história humanas, da
própria vida política enquanto organização da vida em sociedade.
O filósofo reconhece que o cultivo do gosto prepara até o processo da
moralização da humanidade, na medida em que leva os homens a
superar os prazeres sensíveis e os interesses meramente privados e a
partilhar os seus sentimentos, educando­‑os no sentido de abandona‑
rem as formas rudes e bárbaras de convivência, próximas ainda da
condição animal, para adoptarem progressivamente formas de civili‑
dade que promovem o agrado geral e que os antigos designavam pela
expressão humaniora, isto é, aquelas coisas ou assuntos que são «os
mais humanos de todos» e por isso são capazes de interessar a todos
os homens ou ao maior número possível de homens 48. O conjunto de
competências que sob esse termo se designa não resulta de regras e
preceitos, mas supõe o cultivo individual e livre das faculdades hu‑
manas estéticas, nomeadamente da imaginação e do juízo, e Kant
relaciona­‑o expressamente com o universal sentimento de participa‑
ção que é expresso pela palavra Humanität e com o poder que os seres
humanos têm de comunicarem entre si e universalmente os respecti‑
vos sentimentos íntimos e de se associarem e organizarem em formas

  KU, § 41.
47

  Embora o tenha feito por uma torção hermenêutica, foi com toda a ra‑
48

zão que Hannah Arendt apontou a extraordinária fecundidade da abordagem


kantiana do juízo de gosto para se compreender não só o cerne da filosofia
política kantiana mas também para uma refundação filosófica do sentido da
existência social e política dos homens. V., a propósito, o meu ensaio «Da esté‑
tica como filosofia política: Hannah Arendt e a sua interpretação da Crítica do
Juízo de Kant», in Hannah Arendt: Luz e Sombra, Lisboa, CFUL, 2007, pp. 157­‑192.
Neste volume, pp. 503 e segs.

339

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de existência social e política, mormente naquela forma qualificada
que compatibiliza a liberdade, a igualdade e a coerção legal, como é a
forma da república. A cultura e educação estéticas constituem uma
propedêutica para a cultura política. Escreve Kant no § 60 da Crítica do
Juízo:

Chamamos a isso as humaniora, presumivelmente por‑


que Humanidade [Humanität] significa, por um lado, o uni‑
versal sentimento de participação [allgemeine Theilnehmungs‑
gefühl] e, por outro, a faculdade de poder comunicar­‑se
íntima e universalmente; estas propriedades ligadas entre si
constituem a socialidade conveniente à humanidade [die der
Menschheit angemessene Geselligkeit] pela qual ela se distin‑
gue da limitação animal. A época e os povos, nos quais o
activo impulso para a socialidade legal [Trieb zur gezetlichen
Geselligkeit], mediante o qual um povo constitui uma repú‑
blica duradoura [dauerndes gemeines Wesen ausmacht], lutou
com as grandes dificuldades que envolvem a difícil tarefa de
unir a liberdade (e portanto também a igualdade) com a co‑
erção (baseada mais no respeito e submissão por dever do
que por medo): uma tal época e um tal povo tiveram que
inventar primeiro a arte da comunicação recíproca das ideias
[Kunst der wechselseitigen Mittheilung der Ideen] da parte mais
culta com a mais rude, a sintonização [Abstimmung] do de‑
senvolvimento e do refinamento da primeira com a simplici‑
dade e originalidade naturais da segunda, inventando assim
entre a cultura superior e a simples natureza aquele meio
[Mittel] que constitui também para o gosto, enquanto senti‑
do humano universal, o padrão de medida correcto, que não
pode ser indicado por nenhuma regra universal.

Mas não só. O cultivo do gosto é também uma propedêutica para


a moralidade. «O gosto — escreve Kant — como que torna possível a
passagem do estímulo sensível para o interesse moral habitual, sem
um salto muito violento.» 49 Por certo, também é verdade o inverso, a
saber: que o desenvolvimento das ideias morais e o cultivo do senti‑

49
  «Der Geschmack macht gleichsam den Übergang vom Sinnereiz zum
habituellen moralischen Interesse ohne einen zu gewaltsamen Sprung mög‑
lich.» Ak V, 354.

340

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mento moral constituem a verdadeira propedêutica para a fundação
e promoção do gosto. Esta circularidade dá testemunho não de uma
contradição, mas do íntimo parentesco que existe entre os dois senti‑
mentos, o estético e o moral, parentesco e solidariedade sempre pres‑
supostos e muitas vezes expressamente afirmados por Kant, como
neste caso:

O gosto é no fundo um poder de apreciar [Beurteilungs‑


vermögen] o modo de tornar sensíveis [Versinnlichung] as
ideias morais e porque é também deste poder bem como da
grande receptividade para o sentimento derivado daquelas
ideias (a que chamamos sentimento moral) que decorre
aquele prazer que o gosto proclama como válido para a hu‑
manidade em geral e não simplesmente para o sentimento
pessoal próprio de cada um, torna­‑se evidente que a verda‑
deira propedêutica para a fundação do gosto é o desenvol‑
vimento das ideias morais e o cultivo do sentimento moral;
pois só no caso de a sensibilidade chegar a estar conforme
com este último é que o gosto autêntico pode receber uma
forma determinada e imutável. 50

É esta função mediadora entre o natural e o moral e esta capaci‑


dade educadora, civilizadora e mesmo moralizadora revelada pelo
gosto e pelo sentimento estético o que veio a constituir o tema cen‑
tral das Cartas sobre a Educação Estética do Ser Humano (1795) de Schil‑
ler, obra que o seu autor reputava como sendo uma aplicação dos
princípios da filosofia moral e estética kantiana e uma interpretação
do genuíno espírito desta 51.
Mas a íntima e conatural solidariedade entre o gosto — senti‑
mento estético — e a moralidade não se verifica apenas na capacida‑
de que o primeiro tem para insensivelmente preparar os indivíduos
para a segunda. Passagens há, na própria Crítica do Juízo e também
em outras obras posteriores de Kant, nas quais o filósofo aponta o

  KU, § 60.
50

  «Não quero ocultar a origem kantiana da maior parte dos princípios


51

em que repousam as afirmações que se seguirão.» Briefe I. E numa carta a Kant


(de 20 de Fevereiro de 1795) considera as Cartas (de que envia as 17 primeiras)
como «fruto do estudo dos escritos kantianos» e espera que o filósofo «não dê
pela falta do espírito da sua filosofia nessa aplicação que ele dela faz» (dass Sie
den Geist Ihrer Philosophie in dieser Anwendung derselben nicht vermissen).

341

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íntimo parentesco entre o sentimento estético do belo e do sublime
da natureza e o sentimento moral, em algumas chegando mesmo a
sugerir uma origem moral do sentimento estético, o que, à primeira
vista, parece comprometer a proclamada autonomia deste último,
mas na verdade o que faz é sublinhar a organicidade e harmonia
das faculdades do espírito, organicidade e harmonia que compete
precisamente ao sentimento estético manifestar. 52
Já acima destaquei isso em relação ao sentimento do sublime da
natureza. Mas outro tanto se pode dizer a respeito da experiência da
beleza da natureza. Comentarei brevemente o § 42:

Afirmo que tomar um interesse imediato pela beleza da


natureza (e não apenas ter gosto para apreciá­‑la) é sempre

  Anthropologie­‑Vorlesung (Anon­‑Starke, 2, p. 39) «Jedes Geschmacksurteil


52

hat einen Grund a priori und kann nicht aus Erfahrung abgeleitet werden. […]
Der Grund a priori aber liegt in der Anlage zur Moralität in unserm Subjecte,
welche macht, dass alle Menschen an dieser oder jener Sache ein Gefallen finden
müssen. Der wahre und ächte Geschmack ist unzertrennlich vom moralischen
Gefühle.» (Semestre de Inverno 1790-1791, apud H. Klemme, «Einleitung» à sua
ed. da Kritik der Urteilskraft, Meiner, Hamburg, 2006.)
Na Anthropologie (Ak VII, 244): «Nun ist das Wohlgefallen, was […] als
allgemeingültig betrachtet werden kann, weil es Notwendigkeit (dieses
Wohlgefallens), mithin ein Prinzip desselben a priori enthalten muss, um als ein
solches gedacht werden zu können, ein Wohlgefallen an der Übereinstimmung
der Lust des Subjekts mit dem Gefühl jedes anderen nach einem allgemeinen
Gesetz, welches aus der allgemeinen Gesetzgebung des Fühlenden, mithin aus
der Vernunft entspringen muss: d. i. die Wahl nach diesem Wohlgefallen steht
der Form nach unter dem Prinzip der Pflicht. Also hat der ideale Geschmack
eine Tendenz zur äusseren Beförderung der Moralität.»
Numa carta a Reichardt (15 de Outubro de 1790; Ak XI, 228), falando
do propósito que teve com a Crítica do Juízo ao tratar os traços fundamentais
(Grundzüge) da tão difícil de investigar faculdade do gosto (so schweer zu
erforschenden Geschmacksvermögen) escreve: «Ich habe mich damit begnügt,
zu zeigen: dass ohne sittliches Gefühl es für uns nichts schönes oder Erhabenes
geben würde: dass sich eben darauf der gleichsam gesetzmässige Anspruch
auf Beyfall bey allem, was diesen Nahmen führen soll, gründe und dass das
Subjektive der Moralität in unserem Wesen, welches unter dem Namen des
sittlichen Gefühls unerforschlich ist, dasjenige sey, worauf, mithin nicht auf
obiective Vernunftbegriffe, dergleichen sie Beurtheilung nach moralischen
Gesetzen erfordert, in Beziehung, urtheilen zu können, Geschmack sey: der
also keineswegs das Zufällige der Empfindgung, sondern ein (obzwar nicht
discursives, sondern intuitives) Princip a priori zum Grunde hat.»

342

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um sinal de uma boa alma; e que, se este interesse for habi‑
tual, ele indica pelo menos uma disposição de ânimo favo‑
rável ao sentimento moral se de bom grado se associa à
contemplação da natureza [Beschauung der Natur]. […] O âni‑
mo [Gemüt] não pode meditar [nachdenken] sobre a beleza da
natureza sem que ao mesmo tempo se interesse por ela. Este
interesse, porém, é moral por afinidade; e aquele que toma
um tal interesse pelo belo da natureza, somente pode tomá­
‑lo, na medida em que já antes tenha solidamente fundado
o seu interesse no bem moral [am Sittlich­‑Guten]. Por conse‑
guinte, naquele a quem a beleza da natureza interessa ime‑
diatamente, temos razão para supor pelo menos uma dis‑
posição para um modo de pensar moralmente bom [zu
guter moralischer Gesinnung].

E noutro passo do mesmo parágrafo:

Este privilégio da beleza da natureza face à beleza da


arte […] de só ela despertar um interesse imediato, concor‑
da com o modo de pensar apurado e profundo e com a
sólida maneira de pensar de todos os homens que cultiva‑
ram o seu sentimento moral. Se um homem, que tem gosto
suficiente para julgar sobre produtos da arte bela com a
máxima correcção e finura, de bom grado abandona o sa‑
lão no qual se encontram aquelas belezas que entretêm a
vaidade e em todo o caso os prazeres em sociedade, e se
volta para o belo da natureza, para encontrar aí como que
uma espécie de volúpia para o seu espírito num curso de
pensamentos [um hier gleichsam Wollust für seinen Geist in
einem Gedankengange zu finden], que ele nunca pode desen‑
volver completamente; então consideraremos esta sua es‑
colha com veneração e pressuporemos nele uma bela alma
[schöne Seele], o que nenhum versado em arte e seu amante
pode reivindicar em virtude do interesse que toma por
seus objectos. 53

Estas considerações de Kant — a respeito de um interesse desin­


teressado que envolve o juízo estético a respeito do belo natural —

53
  KU, § 42; Ak V, 298­‑299.

343

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podem soar estranhas aos nossos ouvidos. Podem até parecer que
contradizem o seu esforço por mostrar a peculiaridade e autonomia
do juízo estético, que ele não se reduz nem ao meramente agradável
na sensibilidade, que não é um juízo teórico que vise o conhecimen‑
to dos objectos ou por tal conhecimento seja determinado, nem um
juízo moral. Por outro lado, quando actualmente se fala de expe­
riência estética, de imediato somos levados a pensar que se trata de
uma determinada capacidade para apreciar objectos ou produtos
artísticos de qualquer uma das artes: da pintura, da escultura, da
arquitectura, da música, da poesia ou de qualquer outra, pois que o
sistema das artes se tem modificado e ampliado ao longo da histó‑
ria. E a maior parte dos estudos que há sobre o pensamento estético
de Kant dão­‑nos frequentemente a ilusão de que o filósofo, quando
fala do juízo estético ou do juízo de gosto ou do objecto que os sus‑
cita, está a falar tomando por referência imediata a apreciação das
obras de arte humanas e a apreciação destas. Mas não é assim. Reco‑
nhecidamente, a competência artística e até o conhecimento de obras
de arte por parte de Kant eram muito reduzidos, havendo alguns
intérpretes que vão ao ponto de perguntar como é que uma pessoa
com tão escasso conhecimento da arte se atreveu a escrever sobre
assuntos estéticos. Na verdade, aquela vivência que para Kant cons‑
titui a matriz da experiência estética e serve de referência para com‑
preender até o significado da arte humana é a experiência da beleza
da natureza, aspecto que passou despercebido a muitos intérpretes
do pensamento estético kantiano desde há dois séculos até à actua‑
lidade 54. Mas só a atenção a ele permite a compreensão não só da
peculiar concepção de Kant acerca das questões estéticas, como da
razão pela qual a obra que trata na sua primeira parte das questões
estéticas é aquela mesma que na segunda parte trata da teleologia

54
  Disso foi Hegel o principal responsável, especulativamente falando.
Nas suas Lições sobre Estética, desde o primeiro parágrafo ele decide que nelas
se trata de uma filosofia da arte e da beleza artística, com isso significando que
toda a teoria estética se centra na obra de arte como produção e afirmação do
espírito e da autónoma subjectividade do artista, desqualificando como irre‑
levante e deixando mesmo fora de consideração tudo o que se refere ao belo
natural como algo que, por si mesmo, é desprovido de qualidade ou significado
estéticos, só os tendo como reflexo do belo artístico. Hegel radicalizou ainda
mais e absolutizou a subjectivização da estética e rompeu aquele equilíbrio ten‑
so e fecundo que na concepção kantiana dos sentimentos estéticos se mantinha
entre o sujeito (a arte) e a natureza.

344

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da natureza. Que relação existe entre o juízo estético e o juízo teleo‑
lógico para que sejam reunidos na mesma obra, atribuídos à mesma
faculdade do espírito e pensados sob o mesmo princípio transcen­
dental?
Num passo do último parágrafo da Primeira Introdução que Kant
escreveu para a sua Crítica do Juízo, lê­‑se esta declaração:

Uma observação se impõe: é com respeito à técnica na


natureza [Technik in der Natur], e não à da causalidade das
faculdades de representação do homem a que chamamos
arte (no sentido próprio da palavra), que se investiga aqui
a teleoformidade [Zweckmässigkeit] como um conceito re‑
gulador da faculdade de julgar, e não o princípio da beleza
artística [Kunstschönheit] ou duma perfeição artística
[Kunstvollkommenheit], ainda que se possa designar a natu‑
reza como técnica [technisch] no seu modo de proceder, ou
seja de algum modo como artística [künstlich], se a consi‑
deramos como técnica (ou plástica [plastisch]), em virtude
de uma analogia segundo a qual a sua causalidade deve
ser representada como a da arte. Pois trata­‑se do princípio
da faculdade de julgar simplesmente reflexionante, e não
da determinante (ao modo daquela que está no funda‑
mento de todas as obras de arte produzidas pelo homem),
e a teleoformidade que aí se encontra deve, por conseguin‑
te, ser apreciada como não­‑intencional [unabsichtlich], só
podendo convir à natureza. E assim a apreciação da beleza
artística [Kunstschönheit] deverá ser considerada como
mera consequência [blosse Folgerung] dos mesmos princí‑
pios que estão na base do juízo sobre a beleza da natureza
[Naturschönheit].

A última frase do texto permite­‑nos medir a enorme distância


que, a propósito da abordagem das questões estéticas, vai de Kant
a Hegel. Se em Kant é a experiência da beleza da natureza que se
revela como a matriz originária e o critério de toda a experiência
estética e da própria experiência da beleza artística, em Hegel, pelo
contrário, é a arte e a beleza artística que constituem o assunto
próprio da Estética e só por reflexo destas se poderá ainda falar,
embora impropriamente, de algo como a beleza da natureza. Por
certo, em Kant — e isso é mais um exemplo do equilíbrio do seu
pensamento estético —, embora reconhecida a prevalência da ex‑
periência estética da natureza sobre a experiência estética da arte,

345

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arte e natureza mantêm­‑se em tensão fecunda e mutuamente se
convocam para reciprocamente se explicarem uma pela outra, e se
a mais genuína obra de arte — a bela arte — se deixa pensar como
se fosse natureza (Kunst als Natur), assim também a natureza se
deixa pensar, na experiência estética e teleológica, como sendo arte
ou como sendo gerida intimamente por uma secreta arte (Natur als
Kunst) 55.
Mas de Kant a Hegel não foi só isso que mudou no plano da
concepção dos problemas estéticos. Foram também entretanto des‑
qualificados e abandonados os outros tópicos em torno dos quais
girava a estética kantiana, nomeadamente o «gosto», o «sentimen‑
to», o juízo estético reflexionante como um «sentido comum a to‑
dos». Hegel só registava um facto histórico­‑cultural consumado,
quando escrevia, num dos parágrafos da Introdução às suas Lições
de Estética, que já não se ouvia falar de «gosto», e ele mesmo decla‑
ra que invocar o sentido comum ou o «sentimento» estético é um
modo completamente inadequado de se pretender abordar a arte e
a beleza artística, tarefa que exige antes um conhecimento experi‑
mentado e especializado. Mas, como que por ironia, o próprio He‑
gel, que, desde o primeiro parágrafo das Lições de Estética, parecia
prometer nelas a apoteose da arte, da subjectividade do artista e
da beleza artística, acaba por anunciar já o que se tornará o destino
contemporâneo da arte, antecipando­‑lhe o atestado de óbito, de‑
clarando a «morte da arte» 56. Tendo­‑a criado e tendo­‑se reconheci‑
do nela, o espírito que acede à consciência de si, já não é capaz de
satisfazer­‑se nela. A arte já só pode ser para ele algo passado, que
ele pode por certo ainda pensar, descrever, explicar ou compreen‑
der, mas não já verdadeiramente viver. O domínio do sentimento
cede perante o domínio do saber filosófico e do conceito. Num
mundo dominado pela razão filosófica ou científica não haverá
mais lugar para a arte como algo onde a consciência se reconheça
ainda em sua casa, plenamente realizada e reconciliada consigo
mesma. Cada vez mais arrancada ao seu elemento vital, a arte já
não se dá como ocasião de um sentimento de vida plena ou de
uma vivência do absoluto; ela mesma não é já sequer a manifesta‑
ção suprema da vida do espírito, como o fora para os jovens idea‑

  KU, Ak V, 307, 311.


55

  G. W. F. Hegel, Vorlesungen über die Ästhetik, Suhrkamp, Frankfurt a. M.,


56

1970. Bd. I, 141­‑142.

346

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listas, entre os quais se contava o próprio Hegel na sua juventu‑
de 57. Se o espírito pode ainda pensá­‑la é já só como algo que para
ele é passado e morto 58.

57
  Tenha­‑se presente o já citado manifesto filosófico conhecido por O Mais
Antigo Programa de Sistema do Idealismo Alemão, cuja versão manuscrita que até
nós chegou terá sido redigida por Hegel. (V. nota 7, p. 306.) Na mesma linha
vão as teses de Schelling na sua obra Sistema do Idealismo Transcendental (1800),
onde se podem ler declarações como esta: «O verdadeiro sentido para com‑
preender este modo de filosofia [i. e., a filosofia transcendental] é o estético e,
precisamente por isso, a filosofia da arte é o verdadeiro organon da filosofia.»
Introdução, § 4, Schellings Werke II, ed. de M. Schröter, München, Beck’sche Ver‑
lagsbuchhandlung, 1927, p. 351.
58
  Tal como os mausoléus das pessoas ilustres da história antiga, os Mu‑
seus — esses templos ou santuários da arte que se instituíram sobretudo a par‑
tir do século xix e até à actualidade — cumprem simultaneamente a função de
monumentos de consagração e celebração e de sarcófagos ou túmulos da arte.
E cada vez é mais difícil discriminar o que é digno ou não de ser celebrado ou
consagrado por essa instituição. Sobre o debate actual em torno do tópico da
«morte da arte», v. Berel Lang (ed.), The Death of Art, Haven Publishers, New
York, 1984; Hans Belting, Likeness and Presence: A History of the Image before the
End of Art, University of Chicago Press, Chicago, 1984; Idem, Das Ende der Kunst­
geschichte?, Deutscher Kunstverlag, München,1983; Idem, Das Ende der Kunstge‑
schichte: Eine Revision nach zehn Jahre, Verlag C. H. Beck, München, 1995; Arthur
Danto, After the End of Art, Princeton University Press, Princeton, 1997 (trad.
espanhola Después del fin del Arte, Paidós, Barcelona, 1999); Idem, The State of
Art, Prentice Hall Press, New York, 1987; Idem, Encounters and Reflections: Art
in the Historical Present, Noonday Press, New York, 1991 (contém um capítulo
sobre «Narratives of the End of Art»); Gianni Vattimo, La Fine della Modernità,
Garzanti, 1985 (contém um capítulo sobre «A morte ou declínio da arte»). No
contexto do pensamento português contemporâneo ninguém levou mais fun‑
do a meditação sobre o destino da arte ao longo do século xx do que Vergílio
Ferreira, na sua obra Invocação ao Meu Corpo (1968). V. o meu ensaio «A arte
como obsessão, ou o humanismo estético de Vergílio Ferreira» no meu livro
Melancolia e Apocalipse. Estudos sobre o Pensamento Português e Brasileiro, IN­CM,
Lisboa, 2008, pp. 349-374.

347

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9

Kant e o Regresso à Natureza


como Paradigma Estético

A arte bela tem de parecer como natureza,


embora se tenha consciência de que ela é arte. […]
A natureza já não é apre­ciada enquanto aparece
como arte, mas na medida em que é realmente arte
(embora sobre­‑humana). 1

1. Um dos aspectos significativos que se pode colher das refle‑


xões sobre a Estética das últimas décadas é a importância que nelas
se volta a atribuir ao tópico da natureza como objecto estético, quer
no sentido mais pregnante de uma «estética da natureza» 2, quer no

1
  «Schöne Kunst muss als Natur anzusehen sein, ob man sich ihrer zwar
als Kunst bewusst ist. […] Die Natur wird nicht mehr beurtheilt, wie sie als
Kunst erscheint, sondern sofern sie wirklich (obzwar übermenschliche) Kunst
ist.» I. Kant, Kritik der Urteilskraft, Akademie­‑Ausgabe, Ak V, 307, 311.
2
  Importante ponto da situação pode encontrar­‑se em: Jörg Zimmer‑
mann, Uta Saenger, Götz­‑Lothar Darsow (eds.), Ästhetik und Naturerfahrung,
Stuttgart­‑Bad Cannstatt, 1996. De resto, entre a já muito vasta literatura, v.
Gernot Böhme, Für eine ökologische Naturästhetik, Suhrkamp, Frankfurt a. M.,
1989; Ruth Groh / Dieter Groh, «Von den schrecklichen zu den erhabenen
Bergen. Zur Entstehung ästhetischer Naturerfahrung», in Idem, Weltbild und
Naturaneignung. Zur Kulturgeschichte der Natur, Suhrkamp, Frankfurt a. M.,
1996, pp.  92­‑149; «Natur als Masstab — ein Kopfgeburt», Merkur, n.o 536,
vol. 47 (1993), pp. 965­‑979; Birgit Recki, «Ideal der Schönheit und Primat der
Natur», Proceedings of the Eight International Kant Congress, Menphis, 1995,
Milwaukee, 1995, vol. 2, pp. 473­‑480; Idem, «Das produktive Leben: Über die
ästhetische Faszination der Natur», in J. Zimmermann et alii (eds.), Ästhetik
und Naturerfarung, Stuttgart­‑Bad Cannstatt, 1996, pp. 77­‑86; Martin Seel, Eine
Ästhetik der Natur, Suhrkamp, Frankfürt / M., 1991; Idem, «Kants Ethik der
ästhetischen Natur», in R. Bubner, B. Gladigow, W. Hang (eds.), Die Trennung
von Natur und Geist. Zur Auflösung der Einheit der Wissenschaften in der Neu‑
zeit, Fink, München, 1990, pp. 181­‑208; W. Lech, «Theologisch­‑ethischer Ent‑
wurf einer Ästhetik der Natur», in idem, Theologie und ästhetische Erfahrung,
WGB, Darmstadt, 1993, pp.  125­‑144; J.­‑P.  Wils, «Verletzung und Integrität.

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sentido mais particular de uma «estética da paisa­gem» 3, ou mesmo
de uma «esté­tica do ambiente». 4
Esta reabilitação da natureza para a reflexão estética não é,
evidentemente, um aspecto isolado no panorama actual do pensa‑
mento, mas tem que ver com outras manifestações que são solidá‑
rias neste regresso à natureza: a consciência e o pen­samento
ecológicos, o emer­gente sentido de uma ética da responsabili­dade
que se estende à natureza e ao ambiente, o reconhecimento dos
chamados «direitos da natureza» e até, num sentido mais global, a
tendência de alguns destacados repre­sentantes da físico­‑cosmologia
contemporânea, cada vez menos antropo­cêntri­ca e tecnocêntrica,
que se abre ao mistério e à maravilha da natureza e até mesmo a
uma visão estética do cosmos, a qual, por vezes, assume ressonân‑
cias de um certo novo misticismo e, em todo o caso, permite ­pensar
a relação do homem com a natureza de um modo muito diferente
daquele a que nos habituara a clássica e positivista visão científica,
recorrentemente acusada de ter levado a cabo o «desencanta­mento

Zur Transformation und ­ästhetischen Rehabilitation der Teleologie», in J. H. J.


Schneider, R. P. Sieferle, J.­‑P. Wils (eds.), Natur als Erinnerung? Annäherung an
eine müde Diva, Tübingen, 1992, pp. 111­‑158.
3
  Rosario Assunto, Il paesaggio e l’estetica, Novecento, Palermo, 1994; S. Ke‑
mal, I. Gaskell (eds.), Landscape, Natural Beauty and the Arts, Cambridge Univer‑
sity Press, 1993; J. Appleton, The Experience of Landscape, Wiley, New York, 1975;
idem, The Aesthetics of Landscape, Rural Planing Services, Didcot, 1980; Stephen
Borussa, The Aesthetics of Landscape, Belhaven Press, New York, 1991; M. Smu‑
da, «Natur als ästhetischer Gegenstand und als Gegenstand der Ästhetik. Zur
Konstitution von Landschaft», in idem (ed.), Landschaft, Suhrkamp, Frankfurt a.
M., 1986, pp. 44­‑69.
4
  Arnold Berleant, The Aesthetics of Environment, Temple University
Press, 1992; idem, Living in the Landscape: Towards an Aesthetics of Environment,
University Press of Kansas, 1997; Jack L. Na­sar (ed.), Environmental Aesthet‑
ics. Theory, Research, & Applications, Cambridge University Press, Cambridge,
1988; Yrjo Sepanmaa, The Beauty of Environmental Aesthetics, Academia Sci­
entiarum Fennica, Helsinki, 1986; Algumas revistas dedicaram números espe‑
ciais ao tema: Cri­tique, n.os 577­‑578 (Junho­‑Julho de 1995): Art et Paysage; The
Journal of Aesthetics and Art Criti­cism, vol. 56, n.o 2 (Spring 1998): Environmental
Aesthetics. Esta última apresenta o estado da situação da investigação neste
domínio no âmbito da filosofia de expressão inglesa, onde o acento é posto
na «estética do ambiente» (environmental aesthetics) como mais abrangente
do que a «estética da natureza» (tópico claramente preferido na reflexão de
expressão alemã) ou a «estética da paisagem» (preferida na literatura de ex‑
pressão francesa e italiana).

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do mundo» e de ter retirado à natureza autonomia e significado
próprios. Expres­sões como «criatividade da natureza», «reencan‑
tamento da na­tureza» e outras do género ocorrem com frequência
não, como seria talvez de esperar, nas obras de poetas, de filósofos
ou de artistas, mas em obras e ensaios de cientistas e cosmólo­gos
como Hubert Reeves, David Bohm ou Ilya Prigogine. 5 O plural
reconheci­mento da dimensão estética da natu­reza constitui assim
um ingrediente importante do projecto de uma nova filosofia da
natureza 6.
A actual reorientação da reflexão estética para a natureza e a
própria rea­bili­tação multímoda do significado estético da nature‑
za têm que ver também, segundo creio, com o esgotamento espe‑
culativo de uma visão das questões estéticas cen­trada sobre a
arte e o artista, que dominou os últimos dois séculos do pensa‑
mento estético, visão essa cujos efeitos foram clara e decisiva‑
mente diagnosticados numa obra de importância fundamental
para o pensamento esté­tico contemporâneo, como é a Teoria Esté‑
tica de Theodor Adorno 7. Um dos fios condu­tores desta obra é o

5
  V. Renée Weber, Dialogues avec des Scientifiques et des Sages, Éditions du
Rocher, Mo­naco, 1988. Sobre Bohm, o cap. 56: «La créativité: la signature de la
nature», pp. 155­‑171; Sobre Prigo­gine, o cap. 10: «Le ré­‑enchantement de la na‑
ture», pp. 285­‑310. De Hubert Reeves, v. Mali­corne. Reflexões de Um Observador da
Natureza, Gradiva, Lisboa, 1990. V. ainda Klaus Mainzer, Symmetrien der Natur,
Walter de Gruyter, Berlin, 1988; John D. Barrow, The Artfull Universe, Oxford
University Press, Oxford, 1995.
6
  Aspecto particularmente sublinhado por Gernot Böhme, para quem o
actual interesse pela estética da natureza é de uma ordem muito diferente da‑
quele que foi proposto na estética da natureza sete­centista, refém da visão cien‑
tífica da natureza, que, por isso, privilegiava a dimensão representa­tiva (con‑
templação) e não a vivência sensível da natureza. A nova estética da natureza
faria assim parte de uma nova relação do homem com a natureza em que este
encontra o seu ser antes de mais pela mediação do corpo e da sensibilidade na
e com a natureza.
7
  Ästhetische Theorie, Suhrkamp, Frankfurt a. M., 1970 (trad. portuguesa
Teoria Estética, Edições 70, Lis­boa). Adorno não deixa, porém, de apontar as res‑
ponsabilidades de Kant nessa viragem do belo natural para o belo artístico, que
se consumou nas estéticas do Idealismo. Se isso aconteceu, foi por uma extensão
do domínio do conceito de liberdade e de dignidade humana, conceito introdu‑
zido por Kant no domínio ético e transplantado depois para o domínio estético
por Schiller e Hegel. Segundo um tal conceito, no mundo não se deve ter em
consideração como absolutamente digno senão aquilo que o sujeito autónomo
deve a si próprio.

351

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confronto entre a concepção hegeliana e a con­cepção kantiana do
fenóme­no esté­tico. Nas suas Lições sobre Estética, Hegel assume,
efecti­va­mente, desde o pri­meiro parágrafo, que nelas se trata de
uma filosofia da arte e da beleza artística, o que significa que toda
a teoria se centra na obra de arte como produção e afirmação do
espírito e da autónoma subjec­tividade do artista, desqualifican‑
do como irrele­vante e deixando mesmo fora da consideração
tudo o que se refere ao belo natural como algo por si mesmo des­
tituído de propriedade ou de significado estéticos 8. O belo da na‑
tureza só tem significado como reflexo do belo artístico, pois só o
espí­rito pode criar e apre­ciar a beleza e se acaso reconhece beleza
na natureza é à custa de um favor que lhe faz 9. O confronto entre
a natureza e a arte (o natural que esponta­neamente cresce desde
dentro e por si mesmo e o artificial, pensado e fabri­cado por ou‑
tro) — um dos motivos condutores da história do pensamento
europeu desde os Gre­gos — decide­‑se assim a favor da última e
o idealismo de Pla­tão 10 leva uma vez mais a melhor sobre o natu‑
ralismo de Aristóte­les. Este favoreci­mento do artifi­cial relativa‑
mente ao natural, que represen­ta igualmente um favore­cimento
do espírito e do homem relativamente à natureza, é solidário do
processo histórico da produção industrial em que o mundo físico
recua cada vez mais face ao avanço massivo dos artefactos indus‑
triais. A natureza é apenas um reservatório de matérias primas
para qualquer produção possível que se pretenda. A estética con­
temporânea, nos seus principais movimentos, herdou aquela de‑
cisão espe­culativa de Hegel e, embora possa ser interpretada
como contraponto da visão técnico­‑científica de domínio da na‑
tureza, na verdade e no fundo, ela fala a mesma língua da revo‑
lução científica e industrial e com esta se uniu de facto no efecti‑
vo desprezo pela natu­reza enquanto algo digno de respeito por si

8
  Hegel, Vorlesungen über die Ästhetik, Theorie Werkausgabe, Frankfurt a.
M., 1970, Bd. 13. Cf. Allen Hance, «The Art of Nature: Hegel and the Critique
of Judgment», International Journal of Phi­losophical Studies (Dublin), 6 (1998),
37‑65.
9
  Não assim, porém, em Schelling, para quem há uma conatural relação
entre a arte e a natureza, a filosofia da arte e a filosofia da natureza, como se
lê no seu ensaio Über das Verhältnis der bildenden Künste zu der Natur (Sämtliche
Werke, VII, p. 321, Anm. 1): «Diese ganze Abhandlung weist die Basis der Kunst
und also auch der Schönheit in der Lebendigkeit der Natur nach.»
10
  Sobre Platão, v. Leis, 888 e — 892 b.

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mesmo, considerando­‑a ape­nas enquanto objecto possível de ar‑
bitrárias manipulações 11.
Na estética de Kant, pelo contrário, muito embora se tivesse
consagrado e até radicalizado a subjectivização da vivência e do juí­
zo estéticos, mantém­‑se ainda viva a tensão entre o espírito e a ma‑
téria da sua criação, entre a bela arte e a natu­reza bela ou sublime, e
afirma­‑se mesmo o primado da natureza sobre a arte, da beleza na‑
tural sobre a beleza artística. O próprio génio, expressão máxima da
ener­gia criadora artística, é concebido como uma manifestação da
natureza, como «dom natural de um sujeito no uso livre das suas
faculdades de conhecimento» (Natur­gabe eines Subjekts im freien Ge‑
brauche seiner Erkennt­nisvermö­gen), como um «favorito da natureza»
(Günstling der Natur) 12. Toda­via, estes aspectos da estética kantiana
têm sido objecto de escassa ou muito secundária atenção. De facto,
a maior parte dos estudos sobre a estética de Kant passa quase sem‑
pre ao lado dos parágrafos que falam do belo natural, como passam
também ao lado da analítica do sublime. As excepções a esta ten‑
dência geral só confirmam a regra 13. Há mesmo quem considere que

11
  Sobre o tratamento da natureza na arte contemporânea, v. Hans Robert
Jauss, «Kunst als Anti­‑Natur. Zur ästhetischen Wende nach 1798», in idem, Stu‑
dien zum Epochenwandel der ästhe­tischen Moderne, Suhrkamp, Frankfurt a. M., 1989,
pp. 119­‑156; Ronald Hepburn, «Contempo­rary Aesthetics and the Neglect of Na‑
tural Beauty», in Idem, Wonder and other Essays, Edinburgh University Press, 1984;
Colette Garraud, L’idée de nature dans l’art contemporain, Flammarion, Paris, 1993; O.
Batschann, Entfernung der Natur. Landschaftsmalerei 1750­‑1920, Köln, 1989.
12
  Kritik der Urteilskraft, Ak V, 318.
13
  Para além de Adorno (ob. cit.), v. Salim Kemal, «The significance of na‑
tural beauty», British Journal of Aesthetics, 19 (1979), pp. 147­‑166; Birgit Recki,
«Ideal der Schönheit und Primat der Natur: zur systematischen Interpretation
des ästhetischen Gefühls», in Proceedings of the Eighth International Kant Con‑
gress, Memphis, Milwaukee, 1995, vol. 2, pp. 473­‑480; Rosario Assunto, «Kant,
l’estetica della natura e la difesa dell’ambiente», Il cannocchiale (Roma), 1987,
1­‑2, pp. 73­‑89; Martin Seel, «Kants Ethik der ästhetischen Natur», in R. Bubner,
B. Gladigow, W. Hang (eds.), Die Trennung von Natur und Geist. Zur Auflösung
der Einheit der Wissenschaften in der Neuzeit, Fink, München, 1990, pp. 181­‑208;
Gerahrd Schneider, Naturschönheit und Kritik. Zur Aktualität von Kants Kritik
der Urteilskraft für die Umwelterziehung, Königshausen & Neumann, Würzburg,
1994; Malcolm Budd, «Delight in the Natural World: Kant on the Aesthetic
Appreciation of Nature. Part I: Natural Beauty», British Journal of Aesthetics 38
(1998), 1­‑18; idem, «Delight in the Natural World: Kant on the Aesthetic Appre‑
ciation of Nature. Part II: Natu­ral Beauty and Morality», British Journal of Aes‑
thetics 38 (1998), 117­‑126; idem, «Delight in the Natural World: Kant on the Aes‑

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tanto um como o outro tópicos são vestígios arcaicos dos quais o
velho filósofo não teria conse­guido de todo libertar­‑se: a afirmação
do primado do belo natural sobre o belo artístico acusaria a ancora‑
gem numa concepção mimé­tica (por conseguinte, não autónoma)
da arte e a teoria kantiana do génio represen­taria o tributo pago
ainda a uma concepção teológica da criação 14, aspectos que até po‑
deriam com­pro­me­ter a coerência do projecto kantiano de autonomi‑
zação e de subjectiviza­ção da estética e que, por isso, foram supera‑
dos pelos filósofos do idealismo alemão, que, na apreciação das
questões estéticas, abandonaram o ponto de vista da natureza e se
colocaram no «ponto de vista da arte» (Standpunkt der Kunst) 15.
O meu propósito com as presentes considerações é sugerir o
interesse que pode ter a revisitação de alguns tópicos da estética
kantiana relacionados com a ideia da estética da natureza e da vi‑
vência estética da natureza, não só para melhor apreciar o sentido e
a coerência da proposta kantiana no plano estético como tam­bém
para repensar o actual interesse pela natureza dum ponto de vista
estético. Após o prolongado esgotamento das estéticas da obra de
arte e das mitologias do génio e do artista como absolutos, a actual
viragem da reflexão estética para a natu­reza vem carregada de am‑
biguidades: o que é a natureza ou o que pode ainda ser ela como
objecto ou paradigma estético? Que pode ainda entender­‑se por
uma esté­tica da natureza? O que é e como é ainda possível uma re‑
lação estética com a natu­reza ou uma vivência estética da natureza?

thetic Appreciation of Nature. Part III: The Sublime in Nature», British Journal of
Aesthetics 38 (1998), 233­‑250; Jane Kneller, «Beauty, Autonomy and Respect for
Nature», in H. Parret (ed.), Kants Ästhetik, Kant’s Aesthetics, L’esthétique de Kant,
W. de Gruyter, Berlin / New York, 1998, 403­‑414; Reinhard Brandt, « Die Schön‑
heit der Kristalle und das Spiel der Erkenntniskräfte. Zum gegenstand und
zur Logik des ästhetischen Urteils bei Kant», in Autographen, Dokumente und
Berichte. Zu Edition, Amstgeschäften und Werk Immanuel Kants, Hamburg, 1994,
pp.  19­‑57; G. Felicitas Munzel, «The Privileged Status of Interest in Nature’s
Beautiful Forms: A Response to Jane Kneller», Proceedings of the Eight Interna‑
tional Kant Congress (Memphis, 1995), Margrette Press, Milwaukee, 1995, vol. i,
part 2, pp. 787­‑792; Fiona Hughes, «The Technic of Nature: What is Involved
in Judging?», in H. Parret (ed.), Kants Ästhetik / Kant’s Aesthetics / L’Esthétique de
Kant, W. de Gruyter, Berlin / New York, 1998, pp. 176­‑191.
14
  Cf. Hans­‑Georg Gadamer, Die Aktualität des Schönen, Reclam, Stuttgart,
1977, pp. 39­‑40; idem, Wahrheit und Methode, J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), Tübin‑
gen, 1975, pp. 46 e segs.
15
  Ibidem, p. 54.

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Estas questões — como, aliás, tudo aquilo que diz respeito à esté­
tica — deixaram de ter respostas fáceis e óbvias. E é por isso que,
para lhes dar resposta ou, pelo menos, para as esclarecer nada me‑
lhor do que revisitar aquele momento privi­legiado em que na cul‑
tura ocidental se deu a desco­berta da natureza como objecto estéti‑
co e aconteceu mesmo o que se poderia cha­mar a sagração estética
da natureza. Isso deu­‑se no decurso do século  xviii, época em que
não só se constituíram as categorias da estética da natureza, mas
também se evidenciaram as promessas e os limites de uma concep‑
ção estética da natureza. E a meditação kantiana sobre as questões
estéticas pode considerar­‑se particularmente ade­quada para nos
facultar essa revisitação, pois nela encontramos recolhido e por as‑
sim dizer sistematizado todo o esforço dos pensadores setecentis­
tas que se ocu­pa­­ram de questões estéticas, e em particular da esté‑
tica da natureza. Através desta revisitação poderemos melhor
compreender o que se pode esperar do actual regresso da Estética à
natureza: em primeiro lugar, para uma revitaliza­ção da pró­pria
­Estética; depois, para a possível fundação de uma nova filosofia da
nature­za capaz de integrar a dimensão estética ou de unir superior‑
mente a visão científica com a visão estética da natureza; finalmen‑
te, para uma nova relação do homem com a natureza em que o
­estético não seja considerado como um luxo mas como um ingre‑
diente essencial de uma vida boa, no que a dimen­são estética possa
contri­buir decisivamente não só para criticar a imperante raciona‑
lidade instru­mental e técnica que violenta e destrói a natureza, mas
tam­bém para temperar o fundamen­talismo puritano que se insinua
em certas formas da racionalidade ecológica con­temporânea, nas
quais não só está ausente a dimensão estética como até se pre­tende,
ao limite, fazer economia dos seres humanos 16.

2. Não se tem tido na devida conta o papel sistemático desem‑


penhado pela experiência do belo natural (e até do sublime) na eco‑
nomia da terceira Crítica e, por via desta, na forma final do edifício do
sistema transcendental. Todavia, Kant é bem explícito ao declarar
que o princípio da finalidade, enquanto princípio regula­dor da facul‑
dade de julgar reflexionante, revela­‑se, propriamente e antes de mais,

  V. Raphael Larrère, «L’ écologie, ou le geste d’exclusion de l’homme», in


16

Alain Roger / François Guéry (dir.), Maîtres & Protecteurs de la Nature, Champ
Vallon, Seyssel, 1991, pp. 173­‑196.

355

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a propósito da apreciação da beleza da natureza, e não na apreciação
da beleza artís­tica (onde sempre se intromete também a faculdade de
julgar determinante, mobili­zando conceitos e operando segundo
uma causalida­de intencional). Escreve Kant: «Para apreciar uma be‑
leza natural enquanto tal, não preciso de ter previamente um concei‑
to daquilo que um objecto deva ser; isto é, não tenho necessidade de
conhe­cer a teleoformi­dade material (o fim), mas apenas a mera forma
sem conhecimento do fim agrada por si mesma na apreciação. Se,
porém, o objecto é dado como um produto da arte e se tem de ser
declarado como belo, então, dado que a arte pressu­põe sempre um
fim na causa (e respectiva causalidade), deve ser posto como fun­
damento um conceito daquilo que a coisa deve ser; e visto que a con‑
sonância do múltiplo numa coisa com vista a uma determinação in‑
terna da mesma enquanto fim é a perfeição dessa coisa, então na
apreciação da beleza artística tem que ser tida em conta ao mesmo
tempo a perfeição da coisa, a qual na apre­ciação da beleza natural
(enquanto tal) não entra absolutamente em considera­ção.» 17
Por certo, no juízo estético sobre a natureza esta é apreciada por
analogia com a arte 18. Mas só pode sê­‑lo como se se tratasse de uma
arte ou de uma téc­nica não intencional e sobrehumana. Inversamen‑
te, também a arte só é verda­deiramente bela para um juízo estético
quando se revela como natureza 19, isto é, como espontâ­nea e não
artificiosa. E assim se pode dizer que o juízo aprecia­tivo a respeito
da beleza artística deve ser considerado como uma simples con­
sequência resultante dos mesmos princípios que estão na base do
juízo que se emite acerca da beleza da natureza.
Por outras palavras, é o juízo estético sobre o belo natural que é
efectiva­mente um juízo reflexionante que invoca o princípio subjecti‑
vo da finalidade da natureza e que, por conseguinte, desencadeia todo
o trabalho da terceira Crítica, permitin­do compreender não só os pro‑
dutos da arte humana, mas também aquele tipo de finalidade objecti‑
va que se revela nos produtos orgânicos da natureza, no que o juízo
teleológico se revela como uma espécie de extensão ao todo da natu­
reza daquele juízo estético que vê a natureza como se fosse artista e se

  Kritik der Urteilskraft, Ak V, 311.


17

  Kritik der Urteilskraft, Ak V, 374­‑375.


18

19
  «Es muss Natur sein, oder von uns dafür gehalten werden.» (Kritik der
Urteilskraft, Ak V, 302.) «Die Natur war schön, wenn sie zugleich als Kunst aus‑
sah; und die Kunst kann nur schön genannt werden, wenn wir uns bewusst
sind, sie sei Kunst, und sie uns doch als Natur aussieht.» (Ak V, 306.)

356

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como tal procedesse, seja nas suas formas belas (finalidade formal
subjec­tiva) seja nos seus produtos orgânicos (finalidade objectiva) 20.
Também não se tem tido em conta o quanto uma genuína visão
estética da natureza e do cosmos presidem ao conjunto da obra de
Kant, a qual se insinua por detrás mesmo das suas análises filosófi‑
cas mais técnicas. A natureza e o cosmos desde muito cedo foram
para Kant mais do que o objecto de uma sim­ples curiosi­dade cientí‑
fica ou especulativa. Numa das mais significativas obras do período
pré­‑crítico podemos surpreen­der em germe toda a analítica do su‑
blime desenvolvida na Crítica do Juízo. O jovem autor da História
Geral da Natureza e Teoria do Céu (1755) confessa: «O edifício cósmico
mediante a sua grandeza incomensurável e a sua infinita diversida‑
de e beleza, que brilha de todos os lados, desperta uma admi­ração
silenciosa. Mas se a representação de toda esta perfeição comove
[ruhrt] a imaginação, por outro lado, o entendi­mento é tomado por
uma outra espécie de encantamento [Entzückung] quando ele con‑
templa como tanto esplendor e tanta grande­za decorrem de uma só
regra geral com uma ordem perpétua e uniforme.» 21
Estamos sem dúvida perante um trecho característico do pen‑
samento físi­co­‑teológico e físico­‑teleológico setecentista, mas ao
qual se liga já inequivoca­men­te não apenas o sentido estético do
belo da natureza como também o sen­tido estético do sublime, sen‑
do o jovem filósofo capaz de experimentar um estranho prazer (um
prazer silen­cioso: mit stillen Vergnügen) mesmo na con­templação do
caos e da grande tragédia cósmica, uma tragédia criadora, onde as
perdas ocasiona­das pelas revoluções e cataclismos cósmicos são
contrabalança­das com os ganhos de novos mundos e de novos se‑
res que estão continuamente a ser criados algures: «Não é um pra‑
zer pequeno percorrer com a imaginação, para além das fronteiras
da criação concluída, o espaço do caos e ver a natureza meio tosca
perder­‑se a pouco e pouco através de todos os níveis e matizes da
imperfeição nos espaços não totalmente formados.» 22
É a apoteose não da obra acabada e perfeita, mas do próprio
poder do acto de criação, sempre a braços com o caos, com a infinita
matéria informe de onde saem continuamente novos mundos. Na
conclusão da mesma obra, o autor associa cla­ramente a dimensão

20
  Cf. Kritik der Urteilskraft, Einleitung, VIII, Ak V, 193.
21
  Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels, Ak I, 306.
22
  Ibidem, 315.

357

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ética a esta vivência estética do cosmos (que na Analítica do Sublime
da Crítica do Juízo será dada como exemplo do sublime matemático
ou de grandeza), uma associação que constitui, aliás, uma constante
ao longo das medita­ções kantianas sobre o sentimento estético no
que se refere à natureza. Diz Kant: «Na realidade, quando se tem o
espírito ocupado em tais considerações […] a vista de um céu estre‑
lado numa noite serena suscita uma espécie de prazer que só almas
nobres sentem. No silêncio geral da natureza e na calma dos senti‑
dos fala o oculto poder de conhecimento do espírito imortal uma
linguagem indizível e dá conceitos não desenvol­vidos, que se dei‑
xam por certo sentir, mas não descrever.» 23
Estas palavras contrastam aparentemente com outras da mesma
obra onde o filósofo se apresenta como aquele que se sente capaz de
desvendar os segre­dos da criação cósmica. Mas o tom de ousadia e
de atrevimento do ainda jovem filósofo tem de compreender­‑se no
contexto da vivência e emoção estética que lhe subja­zem e que levam
ao reconhecimento dos limites de toda a teoria, dos conceitos, da
própria linguagem: a incomensurabilidade, a excessiva prodigali­
dade e exuberân­cia, em suma, o infinito poder da natureza que se
revelam no teatro cósmico são fenómenos que deixam impotente
uma razão calculadora e económica, gerida pelo princípio da ordem
e da medida, como era a dos modernos. Há na vivência da natu­reza
e do cosmos algo que os conceitos não captam, que as palavras não
exprimem e que só a contemplação silenciosa deixa sentir. Para além
do que o entendimento possa compreen­der a respeito do sistema do
mundo, mesmo valendo­‑se das mais ousadas analogias da imagina­
ção, sempre o cosmos e a natureza subsistem como objecto de admi‑
ração pela sua grandeza e incomen­surabilidade, proporcionando à
imaginação o esquema para a ideia de infinito 24.
Mas, por outro lado, perante a grandeza, a incomensurabilida‑
de e o poder da natureza cósmica, sente­‑se o homem como que re‑
duzido à insignificância e como que aniquilado enquanto ser mate‑
rial e sensível, ao mesmo tempo que toma cons­ciência da sua
condição e dignidade moral, que o eleva infinitamente acima de
todo o universo físico e graças à qual, somente, o próprio universo
pode receber um sentido final. Esta antinomia, que exibe a peculia‑
ridade do sentimento do sublime, está admiravelmente expressa na

23
  Ibidem, 364.
24
  Kritik der Urteilskraft, Ak V, 265.

358

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conhecidíssima passa­gem da Conclusão da Crí­tica da Razão Prática,
que consagra a inequívoca e íntima relação que existe entre a expe‑
riência cosmológica (não tanto especula­tiva quanto estética ou
estético­‑teleológica) e a experiência da moralidade, enquanto vivên‑
cias originárias ou sen­timentos — respectivamente, de admiração
(Bewunderung), de reverência e de res­peito (Ehrfurcht, Achtung) —
«imediata­mente liga­dos à consciência da própria existência» 25.
Sublinhe­‑se esta íntima e essencial (embora, na verdade, antité‑
tica) soli­darie­dade entre o sentimento da pertença ao cosmos e à
natureza e o sentimento moral, presente ao longo de toda a obra de
Kant e que alcançará a sua legitima­ção siste­mática na terceira Críti‑
ca, nos parágrafos dedicados à análise do belo natural e do sublime.
Na sua Crítica do Juízo, Kant defende, de facto e como ninguém antes
o fizera, a autonomia dessas duas espécies de juízo esté­tico rela­
tivamente ao juízo teórico e ao juízo prático. Todavia, ao abordar o
juízo sobre o belo e o sublime na natureza tem dificuldade em man‑
ter a auto­nomia do esté­tico e vê­‑se na necessidade de conceder que
se o juízo sobre o belo natural não se funda num interesse, produz
ou funda ele mesmo um inte­resse 26. E reconhece que este interesse
suscitado pela contemplação do belo e sublime da natureza, se não
é o sentimento moral, revela pelo menos um grande parentesco com
ele 27. Como se o interesse moral se introdu­zisse assim sub­‑repti­
ciamente na aprecia­ção da beleza e da sublimidade atribuídas à na‑
tureza. Ou como se ao limite fosse impossível decidir, num espírito
que fun­ciona orgâ­nica e harmoniosa­mente, onde passam as frontei‑
ras entre o ético, o esté­tico e o especulativo. De qualquer modo, a
dimensão estética não é uma descoberta tar­dia do velho pro­fessor
de Lógica e Metafísica, mas uma prístina vivência que preside a
todo o seu questionamento filosófico, o anima e o fecunda.

3. Para entendermos o significado e o alcance da concepção


kantiana do belo e do sublime na natureza e, em geral, da concepção
kantiana da contem­plação estética da natureza, temos que considerá­
‑las no contexto criado pela visão cientí­fica da natureza cultivada
pelos pensadores moder­nos. Relativa­mente a esta, a visão estética

  Kritik der praktischen Vernunft, Ak V, 161­‑162.


25

  Kritik der Urteilskraft, §§ 2, 41 e 42, Ak V, 204­‑205, 296­‑303.


26

27
  V. o meu ensaio «Sentimento do sublime e vivência moral em Kant», in
A Razão Sensível. Estudos Kantianos, Colibri, Lisboa, 1994.

359

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da natureza, que se desenvolve sobretudo no século  xviii, pode ser
lida como uma reacção ou mesmo como uma compen­sação. Penso,
todavia, que se trata propria­mente de uma superação. Aspecto que
é particularmente relevante no caso de Kant, em cuja filosofia se
leva a efeito a ultrapassagem da concepção mecanicista da natureza,
proposta pela ciência e filosofia dos modernos, e se alcança uma vi‑
são mais alargada e preg­nante da natureza como organismo e sis­
tema de fins, pensada por analogia com a arte. É óbvia a função
mediadora desem­penhada pela experiência estética da natureza
neste processo, pois é precisamente na experiência do belo natural
que primeiramente se manifesta à consciência trans­cendental como
a natureza nas suas formas belas não pode ser apreciada como mero
resultado de uma causali­dade mecânica, mas requer que a aprecie­
mos como se lhe presidisse uma arte sobre­‑humana a qual só pode
ser pensada por analogia com uma causalidade que agisse segundo
fins. Nas suas formas belas — uma flor, uma ave — a natu­reza exibe
uma arte ou uma técnica não intencional e ela mesma se deixa pen‑
sar como se fosse realmente artista; de muitos dos seus fenómenos
só se pode dar razão suficiente se pelo menos se considerar que lhe
preside uma causa inteli­gente que a dirige segundo fins, os quais
todavia nos são desconhe­ci­dos e só descobrimos com surpresa e ad‑
miração a posteriori. Esta descoberta é inespe­rada e contingente, mas
ao mesmo tempo revela­‑se nela uma grata experiência de acordo
com o desígnio das nossas faculda­des, que assim se sen­tem estimula­
das e amplia­das por este inesperado «favor da natureza» 28.
Como bem o advertiu Goethe, perante a geral insensibilidade
dos kantia­nos do seu tempo 29, é a descoberta da íntima afinidade en‑
tre a finalidade ima­nente que se revela nas harmonias da natureza e a
finalidade imanente da cria­ção artística — ou seja, a íntima solidarie‑
dade entre a experiência estética e a apreciação teleoló­gica da nature‑
za — o que constitui o núcleo aporético essen­cial da reflexão levada a
cabo por Kant na sua terceira Crítica, obra que consa­gra o abandono

  Kritik der Urteilskraft, Ak V, 380.


28

  É bem conhecido o juízo negativo de Schopenhauer a respeito da pro‑


29

posta kantiana de subsumir, na Crítica do Juízo, sob um mesmo princípio trans‑


cendental, a arte e a teleologia, classificando­‑a como uma «associação barroca»
(barocke Vereinigung), e por esta época classificar alguma coisa como «barroco»
não era propriamente um modo de manifestar apreço por ela. V. A. Schope‑
nhauer, Die Welt als Wille und Vorstellung, Anhang: Kritik der kantischen Philoso‑
phie, Diogenes, Zürich, 1977, p. 647.

360

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da visão moderna mecanicista da natureza, a qual, precisamente des‑
qualificara por comple­to a consideração das causas finais na investi‑
gação da natureza, ao mesmo tempo que excluíra como irrelevante da
consideração da mesma natureza qualquer dimensão estética 30.
Para os fundadores da visão científica moderna todo o mistério
e magia da natureza — que tanto maravilhara os pensadores do Re‑
nascimento — se redu­zem a um mecanismo mais ou menos comple‑
xo de relojoaria, regido por leis imutáveis, que é possível conhecer e
reproduzir, e que se deixa ler na lingua­gem unívoca e transparente
da geometria. O próprio Deus, autor do mundo, é pensado não
como um artista, mas como um mecânico ou maquinista, como um
engenheiro, como um relojoeiro, ou quando muito como um geó‑
metra. A natu­reza é res extensa, extensão material, matéria. A Mecâ‑
nica e a Física são con­vertíveis, as coisas artificiais são naturais e
vice­‑versa. Como o escreve o autor dos Princípios de Filosofia: «quan‑
do um relógio marca as horas por meio das rodas de que é feito, isso
não lhe é menos natural do que é a uma árvore… pro­duzir os
frutos». 31 Pense­‑se na célebre declara­ção do mesmo Descartes, no
cap.  vii do seu Le Monde: «Por natureza não entendo de modo ne‑
nhum alguma deusa, ou alguma outra espécie de potência originá‑
ria: mas sirvo­‑me desta palavra para significar a própria matéria
enquanto a considero com todas as qualidades que lhe atribuí.» 32
Quais sejam essas propriedades di­‑lo a proposição 53 dos Princípios
de Filosofia: «A extensão em comprimento, largura e pro­fundidade
constitui a natureza da substância corpórea […], pois tudo o mais
que se pode atribuir ao corpo pressupõe a extensão e é apenas um

  Veja­‑se este testemunho do próprio: «Chegou depois às minhas mãos a


30

Crítica do Juízo, à qual devo um dos períodos mais felizes da minha vida. Aqui vi
as minhas ocupações mais díspares postas uma junto da outra; os produtos da arte
e da natureza considerados do mesmo modo; o juízo estético e o juízo teleológico
iluminando­‑se mutuamente… Alegrava­‑me que a arte poética e a ciência natural
comparada fossem tão afins uma da outra, e que ambas estivessem subordina‑
das à mesma faculdade de julgar… Contudo, entre os kantianos encontrei pouco
acordo tanto relativa­mente ao que eu tinha assimilado como em relação ao modo
como o tinha assimilado… Eles ouviam­‑me, mas nem eram capazes de me fazer
objecções nem de me ajudar.» Einwirkung der neueren Philosophie (1817), publicado
em Zur Morphologie I, 2 (1820) (trad. castelhana de Diego Sánchez Meca, em J. W.
von Goethe, Teoría de la naturaleza, Tecnos, Madrid, 1997, pp. 182­‑184).
31
  Descartes, Principes de la Philosophie IV, §  203, in Œuvres (ed. Adam­
‑Tannery — AT —, reimpr. Vrin, Paris, 1996) IX­‑2, 321­‑322.
32
  Descartes, Le Monde, AT XI, 36­‑37.

361

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certo modo da coisa extensa […] Assim, por exemplo, a figura não
se pode entender a não ser numa coisa extensa, e o movimento a não
ser em algo que seja extenso no espaço.» 33
Nesta perspectiva, as qualidades estéticas da natureza não têm
relevância nem são objecto de consideração. A beleza é, aliás, conce‑
bida como uma reac­ção subjectiva e privada, que não tem funda‑
mento objectivo, ou que nada acrescenta à determinação das pro‑
priedades objectivas dos corpos naturais 34.
Espinosa, como se sabe, identificou a natureza com Deus (ou
pelo menos tal parece ser um dos sentidos possíveis do seu Deus sive
Natura) e poderíamos ser induzidos a pensar que dessa identifica‑
ção resulta uma divinização da natu­reza. Seja como for, a beleza não
constitui nenhum dos atributos dessa natureza e o Deus de Espino‑
sa também não tem emoções estéticas. Ele não diria, no final de cada
dia da criação, como o faz o Criador, segundo o relato de Génesis,
que aquilo que criou é bom (vidit Deus quod esset bonum), e muito
menos traduziria este «bonum», como ousadamente o faz Marsilio
Ficino, no seu Comentário ao Timeu, por um vidit quod esset pulcherri‑
mum 35. Como o declara o autor da Ethica More Geometrico ­Demonstrata,

33
  AT IX­‑2, 48.
34
  Veja­‑se esta passagem de uma carta a Mersenne, de 18 de Março de
1630: «Para saber se se pode estabelecer a razão do belo eu pergunto: porquê
um som é mais agradável à alma do que outro? Efectivamente, nem o belo nem
o agradável significam nada a não ser uma relação do nosso juízo ao objecto (ne
signifient rien qu’un rapport de notre jugement à l’objet); e dado que os ­juízos
dos homens são tão diferentes, não se pode dizer que o belo e o agradável
tenham alguma medida determinada.» (AT I, 19­‑20.) Sobre as ideias estéticas
de Descartes, v. Aires Rodeia Pereira, «Teo­ria musical e ciência no Compendium
Musicae de Descartes», in L. Ribeiro dos Santos, Pedro M. S. Alves, Adelino
Cardoso (orgs.), Descartes, Leibniz e a Modernidade, Edições Colibri, Lisboa, 1998,
pp. 161­‑172.
35
  M. Ficino, In Tymaeum Commentarium, cap. xv: «Mundum ergo fecit vo‑
luntate, id est, bonitate sua, tam voluntarie quam naturaliter ob immensam fa‑
cunditatem exuberante. quae primum quidem seipsa gaudet: ob idque deinde
sua hac delectatur imagine: ita tamen, ut non in hac imagine, sed in ipso exem‑
plari, atque principio delectationis huius constituat finem. Quoniam igitur bo‑
nitate fecit mundum: idcirco boni gratia fecit ipsum. non enim ut esset viveret,
intelligeret simpliciter, procreavit: sed ut & bene esset, viveret, & bonum intel‑
ligeret atque compararet. Id illi Mosaico valde consonat. Vidit Deus hoc & illud
esse bonum: & cuncta valde bona. Et quia pulchritudo splendor est bonitatis,
ideo subdit ab optimo Deo mundum esse pulcherrimum procreatum.» Marsilio
Ficino, Opera Omnia, Basileae, 1561, vol. ii, p. 1444.

362

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numa carta a H. Boxel, «a beleza não é tanto uma qualidade do ob‑
jecto contemplado quanto um efeito no homem que contempla o
objecto. […] As coisas consideradas em si mesmas (in se specta­tae) ou
referidas a Deus (ad Deum relatae), não são nem belas nem feias.» 36
Outro tanto diz na carta a H. Oldenburg, de 20 de Novembro de
1665: «Não posso atribuir à natu­reza nem beleza nem fealdade, nem
ordem nem confusão. Pois só relati­vamente à nossa imaginação (res‑
pective ad nostram imaginationem) se pode dizer das coisas que elas
são belas ou feias, orde­nadas ou confusas.» 37
Assim no pensamento racionalista. 38 Mas não se pense que o
panorama é muito diferente no pensamento de tendência empirista.
Nos seus ensaios, David Hume dizia algo muito parecido com o que
se lê em Espinosa: «A beleza não é uma qualidade inerente às coisas
em si mesmas; ela existe somente no espírito que a contempla, e
cada espírito percebe uma beleza diferente […] Procurar a beleza
real ou a deformidade real é uma investigação vã, da mesma forma
que o é o pre­tender reconhecer o que é realmente doce ou o que é
realmente amargo.» 39 Quando muito, isso depende da capacidade
do objecto produzir pra­zer no sujeito, o que, em todo o caso, está
sempre relacio­nado com a peculiar constituição ou susceptibili­dade
do sujeito. Como escreve o mesmo filósofo, no Tratado da Natureza
Humana: «a beleza não é algo real, diferente do poder de produzir
prazer». 40 E, por isso, o objecto que tende a produzir prazer no seu

36
  B. Espinosa, Carta LVIII, de Setembro de 1674 (Opera, ed. Van Vloten­
‑Land, II, 370).
37
  Ibidem, ii, 308.
38
  Evidentemente, nem todos os filósofos racionalistas pensam como
Descartes ou Espinosa, sendo por certo Leibniz a mais notável excepção, para
quem a ordem é muito mais do que uma mera sucessão geométrica e as noções
de perfeição e de harmonia têm uma pregnância metafísica, na linha do plato‑
nismo e neoplatonismo, e a beleza tem simultaneamente um significado sub‑
jectivo na percepção do sujeito e um significado ontológico, como ingrediente
de uma teoria do ser e da ver­dade. Não é por acaso que é do interior da escola
leibniziano­‑wolffiana, com Alexander Baumgar­ten, que vai nascer a Estética
como uma disciplina autónoma e como legitimação dos direitos e da lógica da
sensibilidade. V. a excelente síntese do pensamento estético leibniziano feita
por Fernando Gil, «Le beau comme excès de l’être: Une note sur Leibniz», in
L. R. dos Santos, Pedro M. S. Alves e A. Cardoso (orgs.), Descartes, Leibniz e a
Modernidade, Lisboa, Edições Colibri, 1998, pp. 253­‑262.
39
  David Hume, Les essais esthétiques, Paris, Vrin, 1974, vol. ii, p. 82.
40
  David Hume, A Treatise of Human Nature, Book II (ed. Fontana / Collins,

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pro­prietário é sempre con­side­rado belo. De modo tão insensível
quanto decisivo, estes pensadores modernos ope­raram uma vira‑
gem carregada de consequên­cias para todo o pensa­men­to estético
posterior, e mesmo verdadeiramente irreversí­vel, ao verterem o juí‑
zo sobre a beleza (referido ao objecto) num juízo de gosto ou no
afecto de prazer (ou desprazer) desencadeado no ou vivido pelo
sujeito.
A recuperação da dimensão estética da natureza vai dar­‑se,
aparente­mente, como uma reacção ao processo de desencantamen‑
to do mundo operado pela visão mecanicista dos modernos, pro‑
cesso esse confirmado pela expansão da racio­nali­dade egoísta e
utilitarista do proprietário burguês (que encontrara a sua legi­
timação racional nas filosofias de Francis Bacon, de Hobbes, de Lo‑
cke e de Hume, para citar apenas os expoentes), e para a qual a
essência das coisas se reduz a serem propriedade de alguém, a te‑
rem alguma utilidade ou, quando muito, a serem causa de prazer
pela respectiva posse ou uso. Ao longo do século  xviii assiste­‑se a
essa recuperação, numa estreita ligação entre as refle­xões éticas,
físico­‑teológicas e estéticas. Tiveram nisso importante papel alguns
pensadores setecentistas ingleses (com destaque para Shaftesbury,
Addison, Hutcheson), conhecidos por «Moralistas», porque as suas
preocupações eram de facto essencialmente de teor moral e religio­
so, mas logo se estenderam com grande fecundidade ao campo das
ideias e senti­mentos estéticos. São estes pen­sadores que vão desen‑
volver, como contraponto a uma concepção baseada exclusivamen‑
te no princípio da posse e do uso, da utili­dade e do proveito, a
ideia de uma atitude desinteressada perante a natureza, que se an‑
tepõe à (ou vai além da) visão utilitária e instrumental, sem toda‑
via a excluir. Assim nasce a ideia do juízo estético como um juízo
liberto de qualquer interesse — como um juízo desinteressado —
ao qual só têm acesso certas almas nobres, libertas dos sentimentos
vulgares ou grosseiros que são proporcionados exclusi­va­mente
pela posse e gozo dos objectos. O sentimento estético supõe um
processo ascé­tico de purificação do espírito graças ao qual se chega
a merecer aquela espécie pecu­liar de prazer ou volúpia espiritual
que se colhe de uma visão desinteres­sada das coisas, na sua pura
contemplação. Ele é de algum modo o substituto, para a cons­

Glasgow, 1972, p.  59): «beauty be not something real, and different from the
power of producing pleasure».

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ciência moderna, da vivência religiosa e mesmo da vivência místi‑
ca, não sendo por isso de estranhar que se use, para falar desse
sentimento, a lin­guagem tradicio­nal­mente ligada àquelas vivên‑
cias. Nesta nova perspectiva, a natureza deixa de ser vista apenas
pela escala humana e em função do homem, e passa a ser aprecia‑
da mesmo naquelas suas manifestações que desafiam todo o senti‑
do de uma ordem, desígnio e beleza segundo uma medida huma‑
na. É antes o homem que reaprende a medir­‑se por uma natureza
que em muitos dos seus aspectos lhe é contrária e excede infinita‑
mente as suas curtas vistas. É o senti­mento estético, sobretudo
quando referido à natureza, que vai tornar possível a superação do
antropocen­trismo dos modernos, cuja racionalidade mensurante e
calculante terá radicalizado, segundo Heidegger, a conhecida tese
de Protágo­ras segundo a qual «o homem é a medida de todas as
coisas». Graças ao senti­mento estético, o homem vê­‑se de novo
confrontado não só com o gratuito, o excessivo e o inútil, mas tam‑
bém com o sem medida, o incomensurável, o sublime.
Já no início do século, Shaftesbury dá o mote para uma nova
relação com a natureza, que ao longo de todo o século se afirmará
cada vez mais e acabará por ser reconhecida como a própria vi‑
vência estética, quando escreve: «A natu­reza selva­gem agrada­
‑nos. Parece que vivemos a sós com a Natureza. Vemo­‑la nos seus
mais recônditos recessos e contemplamo­‑la com mais prazer nes‑
tes lugares selvagens originais do que nos labirintos artificiais e
nos lugares selva­gens fingidos do palá­cio. Os objectos que nela
encontramos […], por terríveis que sejam, ou por contrá­rios que
sejam à natureza humana, são belos em si mesmos e aptos para
levar os nossos pensamentos à admiração da sabedoria divina, tão
distante das nossas curtas vistas.» 41 E o «espectador» Addison,
por sua vez, escreve: «Um homem de imagina­ção esquisita […]
com frequência sente uma satisfação mais intensa na visão dos
campos e dos prados do que outro sente na respectiva posse. […]
Olha o mundo como se estivesse numa outra estrela e descobre
nele uma variedade de encantos que estão ocultos para a generali‑
dade dos homens.» 42 Nesta nova atitude confluem ingredientes de

  Anthony, Earl of Shaftesbury, The Moralists, A Philosophical Rhapsody


41

being a Recital of certain Conversations on Natural and Moral Subjects (1709), in


Characteristics of Men, Manners, Opin­ions, Times, In Three Volumes, vol. ii, 1714,
pp. 388­‑389 (reimpr.: Gregg International, 1968).
42
  Addison, Spectator, I, p. 278.

365

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natu­reza ética, teológica e teleológica, e isso será uma constante
em todos os pensadores e até no próprio Kant, onde justamente é
íntima a soli­da­rie­dade entre a visão estética e a apreciação teleoló‑
gica da natureza.
Kant conhecia bem a literatura estética destes pensadores ingle‑
ses 43. Mas tinha ainda neste domínio uma outra sugestão que lhe
vinha de um pensador que sobre ele exerceu profunda e reconheci‑
da influência. Refiro­‑me a Jean­‑Jacques Rousseau. Já na Nouvelle He‑
loïse o «cidadão de Genebra» relata a experiência da escalada das
montanhas alpinas (note­‑se que estamos no momento em que as
montanhas deixaram de ser lugares horríveis e medonhos, de que
se fugia, para se afirmarem como o lugar de uma experiência nova
e qualificada da natureza) como se se tratasse de uma experiência
mágica e sobrenatural, em que o espírito e os sentidos são arrebata‑
dos e postos fora de si, uma experiência de efeitos tão fortes no
plano físico como no plano psicológico e moral. Escreve Rousseau:
«Foi aí que eu notei sensivelmente na pureza do ar em que me en‑
contrava a verdadeira causa da mudança do meu humor e do re‑
gresso da paz interior que eu tinha perdido há muito tempo. Com
efeito, é uma impressão geral que experimentam todos os homens,
ainda que não todos o advirtam, que nas altas montanhas, onde o
ar é puro e subtil, sente­‑se mais facilidade na respiração, mais leve‑
za no corpo, mais sereni­dade no espírito; os prazeres aí são menos
ardentes, as paixões mais moderadas. As meditações adquirem aí
não sei que carácter grande e sublime, proporcionado aos objectos
que nos tocam, não sei que volúpia tranquila que nada tem de ás‑
pero e ­sensual […] Imaginai a variedade, a grandeza, a beleza de
mil espec­táculos espan­tosos; o prazer de não ver em torno de si
senão objectos absolutamente novos, pás­sa­ros estranhos, vales bi‑
zarros e desconhecidos, de observar de certo modo uma outra na‑
tureza, e de se encontrar num novo mundo. Tudo isso oferece aos
olhos uma mistura inexprimí­vel, cujo encanto aumenta ainda pela
subtileza do ar que torna as cores mais vivas, os traços mais marca‑
dos, aproxima todos os pontos de vista; as distâncias parecem me‑
nores que nas planícies, onde a espessura do ar cobre a terra com

43
  Veja-se J. Stolnitz, «On the Origins of ‘Aesthetic Disinterestedness’», The
Journal of Aesthetics and Art Criticism, 20 (1961), 131­‑143; David A. White, «The
Metaphysics of Disinterestedness: Shaftesbury and Kant», The Journal of Aes‑
thetics and Art Criticism, 32 (1973-1974), 239­‑248.

366

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um véu, o ­horizonte apresenta aos olhos mais objectos do que eles
parecem poder abarcar: enfim o espectá­culo tem um não sei quê de
mágico, de sobrenatural, que arrebata o espírito e os sentidos; es‑
quecemos tudo, esque­cemo­‑nos de nós mesmos, não sabemos mais
onde estamos.» 44
Esta apoteose e sagração estética da natureza é ainda mais ex‑
plícita nas Rêveries, onde a experiência da natureza é descrita como
uma «contempla­ção pura e desinteressada» e assume dimensões
de uma experiên­cia mística de «êxtase» e de «embriaguez». O pró‑
prio género da rêverie se contrapõe à refle­xão e ao pensa­mento, tra‑
duzindo a nova atitude estética onde, à espontaneidade de um
pensamento que mobiliza por igual a reflexão e a imaginação, se
associa a dimensão do prazer que tonifica o espírito, o embriaga e
o arrebata: «Eu pen­sei por vezes bastante pro­fundamente; mas ra‑
ramente com prazer, quase sempre contra minha vontade e como
que forçado: a rêverie descansa­‑me e diverte­‑me, a reflexão fatiga­
‑me e torna­‑me triste; pensar foi sempre para mim uma ocupa­ção
penosa e sem encanto. Por vezes as minhas rêveries terminam na
medita­ção, mas mais frequentemente as minhas meditações termi‑
nam na rêverie, e durante estes devaneios a minha alma erra e plana
no universo sobre as asas da imaginação, em êxtases que excedem
toda a outra fruição […]. Neste estado, um instinto que me é natu‑
ral, fazendo­‑me sem­pre fugir de toda a ideia que entris­tece, impôs
silêncio à minha imaginação, e fixando a minha atenção nos objec­
tos que me envolviam fez­‑me pela primeira vez pormenorizar o
espectá­culo da natureza, que eu até então só havia contemplado na
totalidade e no seu con­junto. — As árvores, os arbustos, as plantas
são o adorno e o vestido da terra. Nada é mais triste que um campo
nu e pelado que só oferece aos olhos pedras, terra e areias. Mas vi‑
vificado pela natureza e revestida com o seu ves­tido de núpcias no
meio do curso das águas e do canto das aves, a terra oferece ao ho‑
mem na harmonia dos três reinos um espectáculo pleno de vida, de
inte­resse e de encanto, o único espectáculo que há no mundo que
nunca cansa os seus olhos e o seu coração. — Quanto mais um con‑
templador tem uma alma sen­sível tanto mais ele se entrega aos êx‑
tases que este acordo nele excita. Uma rêverie doce e profunda toma
então posse dos seus sentidos, e ele perde­‑se com uma deliciosa

44
  Jean­‑Jacques Rousseau, Julie ou la Nouvelle Heloïse, I, Lettre 23, ed.
Garnier­‑Flammarion, Paris.

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embriaguez na imensidade deste belo sistema com o qual se sente
identificado.» 45

4. É na vasta família dos pensadores setecentistas que se deve


buscar a ori­gem da concepção kantiana do juízo de gosto ou estético
como um juízo liberto de qualquer interesse. E não deixa de ser
­significativo o facto de que essa qualidade do juízo estético seja cap‑
tada em primeiro lugar no juízo estético sobre a natureza, um juízo
meramente contemplativo 46. O carácter puro e desinte­ressado do
juízo estético é a condição graças à qual o objecto é instituído na sua
dignidade, autono­mia e transcendência. Mas a posição de Kant a
este respeito revela­‑se no mínimo intrigante. Pois, ao mesmo tempo
que reclama a qualidade desinteressada do juízo estético declara
que a beleza da natureza — diferentemente do que acontece com a
beleza artística — é algo pelo qual somos levados a tomar um inte‑
resse imediato, o que indicia, naquele em que tal inte­resse é habi­
tual, uma disposição do ânimo favo­rável ao sentimento moral. Diz
Kant: «Tomar interesse imediato pela beleza da natureza é sempre
sinal de uma boa alma; e se este interesse é habitual, pelo menos
indica uma disposição do ânimo favorável ao sentimento moral, se
de bom grado se associa à contempla­ção da natureza.» 47
Dá­‑se assim a sub­‑reptícia insinuação do ético no juízo estético.
Não é indi­ferente que a natureza, mesmo se só esteticamente consi‑
derada, nos fale numa espécie de linguagem cifrada que interpreta‑
mos como tendo um signifi­cado moral, que nos indique, nas suas

45
  Jean­‑Jacques Rousseau, Les rêveries du promeneur solitaire, Septième Pro‑
menade (1777; publ. 1782), Garnier­‑Flammarion, Paris, 1964, pp. 125 e segs.
46
  Kritik der Urteilskraft, Ak V, 204: «Nun will man aber, wenn die Frage ist,
ob etwas schön sei, nicht wissen, ob uns oder irgend jemand an der Existenz
der Sache irgend etwas gelegen sei, oder auch nur gelegen sein könne; sondern,
wie wir sie in der blossen Betrachtung (Anschauung oder Reflexion) beurthei‑
len.» Ibidem, 209: «Dagegen ist das Geschmacksurtheil bloss contemplativ, d. i.
ein Urtheil, welches, indifferent in Ansehung des Daseins eines Gegenstandes,
nur seine Beschaffenheit mit dem Gefühl der Lust und Unlust zusammenhält.»
Ibidem 263: «ruhige Contemplation».
47
  «Ein unmittelbares Interesse an der Schönheit der Natur zu nehmen
(nicht bloss Geschmack haben, um sie zu beurtheilen) jederzeit ein Kennzei‑
chen einer guten Seele sei; und dass, wenn dieses Interesse habituell ist, es we‑
nigstens eine dem moralischen Gefühl günstige Gemüthsstimmung anzeige,
wenn es sich mit der Beschauung der Natur gerne verbindet.» Kritik der Urteils‑
kraft, Ak V, 298­‑299.

368

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belas formas sensíveis, que é percor­rida por um sen­tido ou que pelo
menos nos dê dele o vestígio. Poderá ver­‑se nesta linguagem esté­
tica da natureza a sobrevivência (ou a recuperação estética) da con‑
cepção medieval dos vestígios ou traços de Deus no mundo. Embo‑
ra o Deus de Kant seja um Deus que se revela antes de mais na
consciência moral e seja esta última que fornece o prin­cípio de deci‑
fração da linguagem simbólica da natureza, não é irrelevante se a
natu­reza, mesmo nas suas belas formas sensí­veis, nos diz alguma
coisa, ou se é com­pletamente muda e indiferente. Nada sofre, pois,
a autonomia do estético com esta inflexão ética e, em contrapartida,
ganha­‑se o sentimento da harmonia das faculda­des e das dimensões
do espírito, que por ele são fecundadas e postas em movi­mento.
Mas, ao mesmo tempo, isso indica que a recuperação da atitude
estética em relação à natureza não significa tanto o reinvestimento
de eventuais pro­priedades estéticas na natureza (os tradicionais si‑
nónimos ou ingredientes da ideia de beleza, segundo a tradição pla‑
tónica: ordem, harmonia, proporção, simetria, adequação a um fim)
quanto o reconheci­mento da existência de uma peculiar faculdade
estética mediante a qual o homem contempla e aprecia a natureza e
experimenta em si mesmo — reflectindo sobre si próprio — o
espontâ­neo acordo entre as suas faculda­des, entregues nisso ao seu
jogo livre, e as manifestações espontâneas da na­tu­reza consideradas
na sua simples forma (na teleoformidade da sua forma — Zweck­
mäs­sigkeit der Form), independentemente de considera­ções de natu‑
reza cognitiva, ética ou utilitária.
Mesmo em Kant vale o princípio caracteristicamente moderno
de que a beleza diz respeito apenas aos homens e tem uma relação
directa ao sentimento do sujeito: «a beleza vale apenas para os
homens» 48 e, por conseguinte, também para Kant, Deus ou qualquer
outro ser cuja natureza não seja um misto de sen­sibilidade e de racio‑
nalidade, não podem saber o que é um sentimento estético. De igual
modo, e também nisso em consonância com os modernos, afirma
Kant que «a beleza por si sem relação ao sentimento do sujeito é
nada» 49. À primeira vista, Kant parece mais não fazer do que confir‑
mar a convicção dos seus prede­cessores racio­nalistas e empiristas se‑

48
  «Schönheit [gilt] nur für Menschen d. i. tierische, aber doch vernünftige
Wesen, aber auch nicht bloss als solche (z. B. Geister), sondern zugleich als tie‑
rische.» Kritik der Urteilskraft, Ak V, 210.
49
  «Schönheit ohne Beziehung auf das Gefühl des Subjekts für sich nichts
ist.» Kritik der Urteilskraft, Ak V, 218.

369

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gundo a qual a dimensão estética é, antes de mais, uma dimensão
essencial e originária do espírito humano, um modo de ser ou de pen‑
sar do sujeito que este investe em certos objectos. Essa dimensão ou
atitude pode, porém, não ser ou não chegar a ser desenvolvida. Mas
quando chega a sê­‑lo, ela transforma e transfigura tudo. Não é indife‑
rente que o orga­nismo da subjectividade humana seja dominado ex‑
clusivamente pelo entendi­mento, ou pela vontade, ou que estas facul‑
dades sejam temperadas e por assim dizer geridas pelo sentimen­to
esté­tico, pela imaginação e pela faculdade de jul­gar reflexionante.
Ora, é precisamente a experiência estética do belo natural que,
segundo Kant, permite que o pensamento saia da estreiteza da visão
mecanicista da natu­reza sub­metida à legislação do entendimento e
se abra à consideração teleoló­gica da natu­reza. No § 23 da sua Críti‑
ca do Juízo escreve Kant: «A beleza autónoma [por exemplo uma
flor] da natureza revela­‑nos uma técnica da natureza, que no­‑la re‑
presenta como um sistema segundo leis cujo princípio não encon­
tramos em toda a nossa faculdade de entendimento, ou seja como
uma confor­midade a fins relativamente ao uso do juízo com vista
aos fenómenos, de tal modo que estes têm de ser apre­ciados como
pertencendo à natureza não simples­men­te no seu mecanismo sem
finalidade, mas também como arte [na 2.a edição: por analogia com
a arte]. Por conse­guinte, ela [a beleza da natureza] não amplia real‑
mente o nosso conhecimento dos objectos da natureza, mas sim o
nosso conceito da natureza, enquanto simples mecanismo, até ao
conceito da mesma [natureza] como arte: o que convida a pro­fundas
investigações acerca da possibilidade de uma tal forma.» 50

  «Die selbstständige Naturschönheit entdeckt uns eine Technik der Natur,


50

welche sie als ein System nach Gesetzen, deren Princip wir in unserm ganzen
Verstandesvermögen nicht antreffen, vorstellig macht, nämlich dem einer
Zweckmässigkeit respectiv auf den Gebrauch der Urtheilskraft in Ansehung
der Erscheinungen, so dass diese nicht bloss als zur Natur in ihrem zwecklosen
Mechanism, sondern auch als zur Analogie mit der Kunst gehörig beurtheilt
werden müssen. Sie erweitert also wirklich zwar nicht unsere Erkenntniss der
Naturobjecte, aber doch unsern Begriff von der Natur, nämlich als blossem
Mechanism, zu dem Begriff von eben derselben als Kunst: welches zu tiefen
Untersuchungen über die Möglichkeit einer solchen Form einladet.» Kritik
der Urteilskraft, Ak V, 246. Cf. Fiona Hughes, «The Technic of Nature: What is
Involved in Judg­ing?», in H. Parret (ed.), ob. cit., pp.  176­‑191. Como escreve
Luigi Pareyson (Conversazioni di Estetica, Mursia, Milano, 1966, p. 116), «la realtà
stessa del bello naturale […] ci permette di gettare uno sguardo rivelatore, come
un colpo di sonda, sulla profondità metafisica della natura».

370

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Esta passagem é notável sob vários aspectos, que passo a co‑
mentar bre­ve­mente.
Em primeiro lugar, a proposta de consideração da natureza
como arte ou como artista, ideia que Kant expõe sob o tópico, in‑
sistente sobretudo na 1.a Introdução à Crítica do Juízo, de «técnica
da natureza» 51. A natureza tem a sua poé­tica peculiar, pois as suas
belas formas não são suficientemente explicadas se as apreciarmos
apenas como meros produtos do acaso ou da cega necessidade;
pelo contrário, ao con­tem­plá­‑las, somos levados a supor que são
devidas a uma causa não humana, que, por certo, desconhecemos,
mas a qual só podemos repre­sentar como agindo segundo fins, ou
seja, como uma actividade inteligente. Pelo reconhecimento da be‑
leza da natureza, onde se patenteia uma finalidade formal e sub‑
jectiva, somos levados à visão teleológica da natureza e à conside­
ração dos organismos como sis­temas finalizados mas segundo
uma finalidade objectiva, o que torna possível reconhecer a origi‑
nária afinidade entre a con­templação estética da natureza e a apre‑
ciação teleológica da natureza: há uma dimensão estética na teleo‑
logia, como há uma dimensão teleológica na esté­tica 52. Dá­‑se assim
não propriamente um aumento do nosso conhecimento dos fenó‑
menos da natureza, que deverão conti­nuar a ser explicados por
princípios mecânicos, mas aconte­ce sim uma ampliação da nossa
ideia de natureza (que agora nos surge como um vasto sistema),
ideia que se revela extraordinaria­mente fecunda de um ponto de
vista heurístico, levando­‑nos a descobrir causas e princípios parti‑
culares aos quais nunca chegaríamos a partir dos meros princí­pios
gerais do entendimento.
Em segundo lugar, a apreciação estética da natureza impele­‑nos
para a teolo­gia ou físico­‑teologia, já que, diz Kant, «para o belo da
natu­reza temos de procurar um fundamento fora de nós», isto é,
temos de procurar uma causa objectiva e não apenas contentar­‑nos
com um fundamento subjectivo para a técnica da natureza, a qual
nos resulta incompreensível se não pressupusermos como seu fun‑
damento objectivo um entendimento artista que à natureza presida
e maravilhosamente desde dentro a modele. Já atrás sublinhei a in‑

  Kritik der Urteilskraft, Ak V, 193, 233, 246, 411.


51

  Cf. Introdução à Crítica do Juízo, VI e VII, Ak V, 186­‑192. V. Rachel Jones,


52

«Crystallisa­tion: Artfull Matter and the Productive Imagination in Kant’s


Account of Genius», in Andrea Re­hberg / Rachel Jones (eds.), The Matter of
Critique. Readings in Kants Philosophy, Clinamen, Manchester, 2000, pp. 19­‑36.

371

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timidade entre o sentimento estético da natureza e o sentimento
moral. Numa nota ao §  88 da Crítica do Juízo, Kant parece sugerir
uma génese moral do juízo estético a respeito da natureza: «Segun‑
do toda a verosimilhança, foi este interesse moral [a representação
de Deus como causa moral do mundo] que despertou a atenção
para a beleza e para os fins da natureza, que acabou por servir exce‑
lentemente o reforço daquela ideia, sem que todavia a pudesse fun‑
dar, mas ainda menos prescindir da sua ajuda, pois a própria inves‑
tigação dos fins da natureza só em relação com o desígnio moral
obtém aquele interesse imediato, que se revela assim em tão grande
medida na admiração pela própria natureza, sem olhar a qualquer
vantagem que se possa tirar dela.» 53
Mas Kant vai ainda mais longe, sugerindo que é a experiência
estética e teleológica da natureza que constitui a matriz originária
da autêntica experiên­cia religiosa, pela mediação do sentimento
moral, neste caso, posto em movi­mento pelo sentimento estético.
Numa nota à Nota Final à Crítica do Juízo, lê­‑se: «A admiração da
beleza bem como a emoção suscitada pelos fins tão diver­sos da
natu­reza, que um espírito que reflecte está em condições de sentir
antes mesmo de pos­suir uma clara representação de um autor ra‑
cional do mundo, têm em si algo de semelhante a um sentimento
religioso. Elas parecem agir primei­ramente sobre o sentimento

53
  «Auch wurde aller Wahrscheinlichkeit nach durch dieses moralische
Interesse allererst die Aufmerksamkeit auf die Schönheit und Zwecke der
Natur rege gemacht, die alsdann jene Idee zu bestärken vortrefflich diente,
sie aber doch nicht begründen, noch weniger jenes entbehren konnte, weil
selbst die Nachforschung der Zwecke der Natur nur in Beziehung auf den
Endzweck dasjenige unmittelbare Interesse bekommt, welches sich in der
Bewunderung derselben ohne Rücksicht auf irgend daraus zu ziehenden
Vortheil in so grossem Masse zeigt.» Kritik der Urteilsk­raft, Ak V, 459. A ra‑
dicação dos sentimentos estéticos no originário sentimento moral é confir­
mado por uma carta de Kant a Johann Friedrich Reichardt, de 15 de Outu‑
bro de 1790 (Ak XI, 228), na qual o filósofo declara qual foi a sua intenção
ao escrever a Crítica do Juízo, nestes termos: «Eu contentei­‑me com indicar
que sem sentimento moral não haveria para nós nada belo ou sublime; que
precisamente nisso se funda a como que exigência conforme à lei do acordo
de todos que deve acompanhar estes nomes [belo e sublime]…» («Ich habe
mich damit begnügt, zu zeigen: dass ohne sittliches Gefühl es für uns nichts
Schönes oder Erhabenes geben würde: dass sich eben darauf der gleichsam
gesetzmässige Anspruch auf Beyfall bey allem, was diesen Nahmen führen
soll, gründe…».)

372

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moral (de reconhecimento e de venera­ção para com esta causa que
nos é desconhecida), mediante uma espécie de apreciação desta
beleza e destes fins que seria análoga à apreciação moral, e assim
agir sobre o espírito suscitando ideias morais, quando inspiram
esta admiração, que está ligada a um interesse muito mais vasto
do que aquele que pode produzir uma contemplação simplesmen‑
te teórica.» 54
À primeira vista, parece que no sentimento estético tudo se re‑
duz ao sujeito. Sob este aspecto, Kant não só assume como radicali‑
za a concepção dos modernos, fossem eles racionalistas ou empiris‑
tas, embora o sujeito de que se fala no plano estético não seja um
abstracto sujeito universal nem um privado sujeito psicoló­gico. No
primeiro parágrafo da Crítica do Juízo esclarece o sen­tido desta nova
forma da subjectividade: é a consciência que o sujeito tem do seu
estado anímico, o sentimento (Gefühl) de si vivido no jogo livre e
harmó­nico das próprias faculdades, um sentimento vital (Lebensge‑
fühl) enquanto pra­zer ou desprazer 55. O juízo esté­tico não é um juí‑
zo lógico determinado por um conceito e portanto universalmente
válido, mas Kant reconhece­‑lhe apesar de tudo a justa pretensão a
um assentimento universal, todavia livre. Contudo, é graças a este
sentimento irredutivelmente subjectivo que se recupera o sentido
da dig­nidade e da autonomia do objecto, a transcendência da natu‑
reza em si mesma e por si mesma. A passagem seguinte mostra
como Kant entenderia a fusão da contemplação estética da natureza
(do ponto de vista do sen­timento do sujeito) e do que se poderia
chamar uma perspectiva ecológica que se colocasse no ponto de
vista da natureza. Escreve Kant: «Aquele que solitariamente (e sem
a intenção de querer comunicar as suas observações a outros) con‑
templa a bela forma de uma flor selvagem, duma ave, dum insecto,

  «Die Bewunderung der Schönheit sowohl, als die Rührung durch die
54

so mannigfaltigen Zwecke der Natur, welche ein nachdenkendes Gemüth noch


vor einer klaren Vorstellung eines vernünftigen Urhebers der Welt zu fühlen im
Stande ist, haben etwas einem religiösen Gefühl Ähnliches an sich. Sie scheinen
daher zuerst durch eine der moralischn analoge Beurtheilungsart derselben
auf das moralische Gefühl (der Dankbarkeit und der Verehrung gegen die
uns unbekannte Ursache) und so durch Erregung moralischer Ideen auf das
Gemüth zu wirken, wenn sie diejenige Bewunderung einflössen, die mit weit
mehrerem Interesse verbunden ist, als blosse theoretische Betrachtung wirken
kann.» Kritik der Urteilskraft, Ak V, 482.
55
  Kritik der Urteilskraft, Ak V, 204.

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etc., para os admirar, para os amar, e num espírito tal que ele não
admitiria de bom grado a sua ausência na natureza em geral, mes‑
mo quando, longe de que a existência do objecto lhe faça ver algu‑
ma vantagem, ele disso tirasse antes prejuízo, esse toma um inte­
resse ime­diato e a bem dizer intelectual pela beleza da natureza.
Isso significa que não só o produto da natureza lhe apraz pela sua
forma, mas também que a existência dele lhe apraz, sem que qual‑
quer atractivo sensível tome parte neste prazer ou que a isso se as‑
socie um objectivo qualquer.» 56
O sentimento estético é a manifestação da condição simulta­
neamente animal (sensível) e espiritual do homem, é a incontor‑
nável experiência da fini­tude e da contingência. O limite é aqui
para o homem a própria matéria, não como a matéria abstracta
da ciência e filosofia dos modernos, mas a própria natureza que
se orga­niza e exibe nas suas formas e se lhe oferece. Na vivência
estética, a natureza não surge como simples objecto, como mero
obstáculo, como resistência, mas como dom, como graça, como
favor. O manto de beleza com que a natureza se adorna e se ofe‑
rece em espectáculo ao homem, a exube­rância com que ela monta
o seu tea­tro de maravilhas não traz a marca da neces­sidade, mas
da contingência e da gratuidade. A natureza revela­‑se pródiga de
formas antes que o entendimento sobre ela aplique a sua legisla‑
ção informadora. O sentimento estético não está, pois, só para
além da expli­cação científica, mas está também antes dela e de
um modo muito mais originário. E não é já a linguagem do domí‑
nio, e muito menos a do domínio do homem e da sua razão sobre
a natu­reza, a que pode traduzir esta nova atitude. É a linguagem
da cortesia, duma cortesia recíproca, duma amabilidade retribuí‑
da. Assim o escreve o filósofo: «Podemos considerar como uma
amabilidade que a natureza teve em rela­ção a nós o facto de ela

56
  «Der, welcher einsam (und ohne Absicht, seine Bemerkungen andern
mittheilen zu wollen) die schöne Gestalt einer wilden Blume, eines Vogels,
eines Insekts u.  s.  w. betrachtet, um sie zu bewundern, zu lieben und sie
nicht gerne in der Natur überhaupt vermissen zu wollen, ob ihm gleich
dadurch einiger Schaden geschähe, viel weniger ein Nutzen daraus für ihn
hervorleuchtete, nimmt ein unmittelbares und zwar intellectuelles Interesse
an der Schönheit der Natur. D. i. nicht allein ihr Product der Form nach,
sondern auch das Dasein desselben gefällt ihm, ohne dass ein Sinnenreiz
daran Antheil hätte, oder er auch irgend einen Zweck damit verbände.» Kritik
der Urteilskraft, Ak V, 299.

374

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ter distribuído com tanta abundância, para além do que é útil,
ainda a beleza e o encanto e por isso a amamos, da mesma forma
que a contem­plamos com respeito por causa da sua imensidão e
nos sentimos enobre­ci­dos nesta contemplação. É como se preci‑
samente a natureza tivesse no fundo armado e ornamentado com
esta intenção o seu magnífico teatro.» 57
Já na Introdução à Crítica do Juízo Kant falava da dimensão
estética do juízo teleológico sobre a natureza: que esta se nos reve‑
le como um sistema de fins é algo que vem ao encontro da inten‑
cionalidade mais profunda das nossas faculdades de conhecimen‑
to, mas que estas não estão em condições de garantir por si mesmas
com os princípios de que estão munidas. Por isso, que a natu­reza,
na sua infinita variedade de espécies e de géneros e na multiplici‑
dade das suas leis particulares se manifeste como um sistema só
pode ser visto como algo contingente e não como algo necessário,
por conseguinte, como uma espé­cie de amabilidade da sua parte,
como um favor que ela nos faz. Mas numa nota ao § 67 da mesma
obra Kant explicita ainda melhor esta reciprocidade entre o estéti‑
co e o teleológico 58. No juízo estético sobre a natureza — quando
contemplamos a sua mera forma de um modo desinteressado, seja
nas suas belas formas ou na sua expressão informe enquanto su‑
blime —, o espírito realiza uma espécie de sub­‑repção atri­buindo à
natureza uma qualidade que na realidade é nela ­investida pelo su‑
jeito, podendo pois falar­‑se de um favor ou de uma amabilidade
do sujeito relativamente à natureza (wir sahen die ­schöne Natur mit
Gunst an). Mas no juízo teleológico é como que o inverso que acon­

  «Wir können es als ein Gunst, die die Natur für uns gehabt hat,
57

betrachten, dass sie über das Nützliche noch Schönheit und Reize so reichlich
austheilte, und sie deshalb lieben, so wie ihrer Unermesslichkeit wegen mit
Achtung betrachten und uns selbst in dieser Betrachtung veredelt fühlen:
gerade als ob die Natur ganz eigentlich in dieser Absicht ihre herrliche Bühne
aufgeschlagen und ausgeschmückt habe.» Ak V, 380.
58
  «In dem ästhetischen Theile wurde gesagt: wir sähen die schöne Natur mit
Gunst an, indem wir an ihrer Form ein ganz freies (uninteressirtes) Wohlgefallen
haben. Denn in diesem blossen Geschmacksurtheile wird gar nicht darauf
Rücksicht genommen, zu welchem Zwecke diese Naturschönheiten existiren:
ob um uns eine Lust zu erwecken, oder ohne alle Beziehung auf uns als
Zwecke. In einem teleologischen Urtheile aber geben wir auch auf diese
Beziehung Acht; und da können wir es als Gunst der Natur ansehen, dass sie uns
durch Aufstellung so vieler schönen Gestalten zur Cultur hat beförderlich sein
wollen.» Ak V, 380.

375

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tece, e se o juízo teleológico tem uma dimensão esté­tica, também a
beleza da natureza pode ser subsumida num juízo teleológico da
mesma e ser isto consi­derado como uma amabilidade da natureza
(als Gunst der Natur) em relação a nós. A experiência estética e tele‑
ológica permite assim aceder a uma relação com a natureza que
não é já a da posse, a do domínio instrumental e a da vio­lência,
nem apenas a do respeito e do temor, mas a da mútua amabilida‑
de, a do livre favor, a da espontânea gratuidade e doação. E, nesta
relação, não é só a natureza que reencontra o reconhecimento da
sua dignidade por parte do homem, mas é também o homem que
deste modo — isto é, admirando e respei­tando a natu­reza, sendo
gracioso e amável para com ela — se sente ele próprio enobrecido
e sur­preende em si uma nova dimensão 59.
Há que reconhecer os riscos que representa a autonomização da
visão esté­tica em geral e da visão estética da natureza em particular.
Se, por um lado, se afirma a sua irredutibilidade, por outro lado,
pode absolutizar­‑se ou mesmo con­verter­‑se numa reserva ao lado
das outras dimensões, em todo o caso, como uma alienação, que não
as fecunda nem nelas interfere. Não era esse o entendimento de
Kant, para quem a visão estética é, antes de mais, solidária da genu‑
ína vivência moral ao ponto de quase supor esta como sua condição
(o belo é sím­bolo da mora­lidade, há um interesse moral e intelectual
na apreciação do belo da natureza, o senti­mento do sublime perante
fenómenos da natureza que se impõem pela sua grandeza e poder

  Em curiosa sintonia com o filósofo alemão, Fernando Pessoa, sob a más‑


59

cara desse «poeta da natu­reza» que dá pelo nome de Alberto Caeiro, exprimiu
bem esta condição do juízo estético sobre a natureza, neste belo poema:

Às vezes, em dias de luz perfeita e exacta


Em que as cousas teem toda a realidade que podem ter,
Pergunto a mim próprio devagar
Porque sequer attribuo eu
Belleza às cousas.
Uma flor acaso tem belleza?
Tem belleza acaso um fructo?
Não: tem cor e fórma
E existência apenas.
A belleza é o nome de qualquer cousa que não existe
Que eu dou às cousas em troca do agrado que me dão.

[Poemas Completos de Alberto Caeiro, Presença, Lisboa, p. 76.]

376

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afirma a destinação supra­‑sensível do homem), como da mais au‑
têntica experiência religiosa (recuperando­‑se por ela o sentido de
sentimentos como a admiração (Bewunderung), a gratidão (Dank­
barkeit) e a veneração ou ado­ração (Verehrung) e duma mais ampla
filosofia da natureza, capaz de conciliar a explicação mecanicista se‑
gundo o princípio das causas eficientes com a explicação teleológica
segundo o princípio das causas finais.
Devo ainda referir a vantagem do regresso a uma estética da
natureza para repensar o sentido da arte. Com a natureza e o belo da
natureza, a arte tem um refe­rente fora de si própria, que lhe pode
permitir manter­‑se em tensão cria­dora e evitar o autofagismo que
tem caracteri­zado os movimentos estéticos contem­porâneos 60. A ex‑
periência estética da natureza expõe o homem e o artista na impos‑
sibilidade de uma autocomplacência antropocêntrica, impõe­‑lhe o
des­centramento e liberta­‑o da imanência para a transcendência,
mesmo que esta seja pensada apenas sob o modo estético, expõe­‑no
na sua fragilidade essencial, mas também na disponibilidade para o
dom, tanto da natureza como da arte.
O aspecto mais característico da abordagem kantiana do senti‑
mento esté­tico a respeito da natureza (na respectiva beleza ou subli‑
midade) é, como já foi dito, o considerá­‑lo numa muito estreita afi‑
nidade com o sentimento moral, ao ponto de, por vezes, ser
impossível distingui­‑los. Isso não é, porém, uma limi­tação desse
sentimento, mas antes uma vantagem que lhe permite afirmar o pri‑
mado da beleza da natureza sobre a beleza artística. Terminarei esta
nota citando uma passagem do § 42 da Crítica do Juízo, que em boa
verdade resume praticamente tudo quanto até agora quis dizer:
«O privilégio que possui a beleza natural sobre a beleza artís­tica […]
está de acordo com o modo de pensar depu­rado e profundo de to‑
dos os homens que cultivaram o seu sentimento moral. Se um ho‑
mem, que tem suficiente gosto para apreciar os produtos das belas
artes com a maior exactidão e a maior finura, abandona de bom
grado o salão onde se encontram estas belezas que entre­têm a vai‑
dade ou quando muito as alegrias de ordem social e se volta para o
belo natural para encontrar aqui como que uma volúpia para o seu
espírito sob a forma de uma sequência de pensamentos que ele nun‑

  O diagnóstico deste processo autofágico da arte contemporânea foi feito


60

em traços insuperáveis por Vergílio Ferreira, sobretudo no cap. xiii de Invocação


ao Meu Corpo (Portugália Editora, Lisboa, 1969, pp. 199­‑231).

377

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ca pode desenvolver para si com­pletamente, nós con­sideraremos
esta sua escolha com grande respeito e pressupo­remos nele uma
bela alma, ao que não pode pretender nenhum conhecedor e ama­
dor da arte, pelo interesse que têm nos seus objectos.» 61
Tal como Rousseau, Kant deixaria de bom grado os sociais e
mundanos salões de arte para se entregar à solitária contemplação
do espectáculo da natu­reza. Possa eu ter conseguido expor com su‑
ficiente clareza as boas razões da sua opção.

61
  «Dieser Vorzug der Naturschönheit vor der Kunstschönheit, […] stimmt
mit der geläuterten und gründlichen Denkungsart aller Menschen überein, die
ihr sittliches Gefühl cultivirt haben. Wenn ein Mann, der Geschmack genug hat,
um über Producte der schönen Kunst mit der grössten Richtigkeit und Feinheit
zu urtheilen, das Zimmer gern verlässt, in welchem jene die Eitelkeit und allen‑
falls gesellschaftliche Freuden unterhaltenden Schönheiten anzutreffen sind,
und sich zum Schönen der Natur wendet, um hier gleichsam Wollust für sei‑
nen Geist in einem Gedankengange zu finden, den er sich nie völlig entwickeln
kann: so werden wir diese seine Wahl selber mit Hochachtung betrachten und
in ihm eine schöne Seele voraussetzen, auf die kein Kunstkenner und Liebha‑
ber um des Interesse willen, das er an seinen Gegenständen nimmt, Anspruch
machen kann.» Kritik der Urteilskraft, Ak V, 299­‑300.

378

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10

Da experiência estético­‑teleológica
da natureza à consciência ecológica.
Uma leitura da Crítica do Juízo

Es muss Natur sein, oder von uns dafür


gehalten werden, damit wir an dem Schönen als
einem solchen ein unmittelbares Interesse nehmen
können.
Kant, Kritik der Urteilskraft, § 42, Ak V, 302.

1. No apêndice à sua obra principal, Die Welt als Wille und Vors‑
tellung (1818), Schopenhauer faz uma apreciação crítica das mais
importantes obras filosóficas de Kant e dedica aí também algumas
páginas à Crítica do Juízo, obra onde Kant aborda os problemas esté‑
ticos e os problemas da natureza orgânica, por conseguinte, a estéti‑
ca e a teleologia. Referindo­‑se à ideia que Kant teve de unir na sua
terceira Crítica, sob um mesmo princípio filosófico, essas duas reali‑
dades que sempre haviam sido tratadas separadamente pelos filó‑
sofos, o filósofo de Danzig diz tratar­‑se de uma «união barroca» (ba‑
rocke Vereinigung) de dois domínios heterogéneos, no que vê mais
uma prova da irresistível tendência de Kant para forçar a realidade
a entrar nas suas simetrias arquitectónicas 1. O autor das três Críticas
podia assim ver por fim todos os princípios da sua filosofia recon‑
duzidos às três faculdades fundamentais do espírito — o entendi‑
mento, a razão e o juízo reflexionante ­—, cabendo a esta última dar
conta não só da apreciação estética da arte e da natureza como
­também da consideração teleológica da natureza, mediante o seu
princípio de finalidade ou de conformidade a fins (Zweckmässigkeit).
Pela mesma época, houve um outro contemporâneo de Kant
que terá intuído com agudeza o que teria tido em mente o autor da
Crítica do Juízo ao associar nela a arte e a natureza sob um mesmo
princípio de compreensão, e que terá percebido as fecundas conse‑

1
  A. Schopenhauer, Die Welt als Wille und Vorstellung, Anhang: Kritik der
kantischen Philosophie, Diogenes, Zürich, 1977, p. 647.

379

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quências dessa aparentemente estranha associação. Esse contempo‑
râneo foi Goethe. Num apontamento acerca da influência que sobre
ele exercera a filosofia da sua época e no contexto de uma avaliação
da sua relação com a filosofia de Kant, escreve o autor do Fausto:
«Chegou depois às minhas mãos a Crítica do Juízo, à qual devo um
dos períodos mais felizes da minha vida. Aqui vi as minhas ocupa‑
ções mais díspares postas uma junto da outra; os produtos da arte e
da natureza considerados do mesmo modo; o juízo estético e o juízo
teleológico iluminando­‑se mutuamente... Alegrava­‑me que a arte
poética e a ciência natural comparada fossem tão afins uma da ou‑
tra, e que ambas estivessem subordinadas à mesma faculdade de
julgar... Contudo, entre os kantianos encontrei pouco acordo tanto
relativamente ao que eu tinha assimilado como em relação ao modo
como o tinha assimilado... Eles ouviam­‑me, mas nem eram capazes
de me fazer objecções nem de me ajudar.» 2
Não é aqui o lugar para averiguar quais os tópicos da referida
obra de Kant que poderão ter sido assim tão sugestivos para um tão
distinto leitor como foi Goethe, o qual juntava à profundidade e al‑
cance da intuição estética a intensa curiosidade do investigador da
natureza. Mas alguns saltam à vista, como é o tema da analogia das
formas naturais que irresistivelmente levam o naturalista que sobre
elas reflecte a pressupor uma imagem originária (Urbild) ou esque‑
ma (Schema) comum da sua geração e uma força formadora da ori‑
ginária mãe (Urmutter) comum natureza, tema que Kant aborda ex‑
pressamente no § 80 da sua terceira Crítica, a ideia, por conseguinte,
de uma arte ou «técnica da natureza» pensada por analogia com a
arte humana e mediante a qual a natureza é representada na produ‑
ção espontânea das suas criaturas como se fosse conduzida por uma
força formadora intencional, enquanto, por outro lado, a genuí­na
arte humana, que é obra do génio, é também pensada como sendo
um produto espontâneo da natureza agindo através das faculdades
do espírito.

  J. W. von Goethe, «Einwirkung der neueren Philosophie» (1817), publi‑


2

cado em Zur Morphologie, I, 2, 1820 (existe uma trad. portuguesa em apêndice


a Goethe, A metamorfose das plantas. Tradução, introdução, notas e apêndices
de Maria Filomena Molder, IN­CM, Lisboa, 1993, p. 66). V. também a carta de
Goethe a Zelter, de 29 de Janeiro de 1830: «Es ist ein grenzenloses Verdienst
unseres alten Kant, ... dass er in seiner Kritik der Urteilskraft Kunst und Natur
nebeneinanderstellt und beiden das Recht zugesteht: aus grossen Prinzipien
zwecklos zu handeln.»

380

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Com muito raras excepções, as interpretações da terceira Crítica
de Kant não seguiram a pista sugerida por Goethe, mas antes
­confirmaram o juízo de Schopenhauer. Os intérpretes que dela se
ocuparam ora se fixaram na sua primeira parte (crítica do juízo esté‑
tico), ora na segunda parte (crítica do juízo teleológico), como se se
tratasse de facto de dois domínios realmente distintos e não comu‑
nicáveis entre si, ou cuja comunicabilidade era tão problemática que
tê­‑la em conta só dificultava a abordagem de cada um dos respecti‑
vos problemas. A questão da relação entre as duas partes, que Kant
tenta esforçadamente justificar nas duas longas introduções que es‑
creveu para a obra, quando expressamente abordada, é­‑o com des‑
conforto, como se estivesse envolta numa certa obscuridade, o que,
de resto, também o próprio filósofo parece reconhecer no enigmáti‑
co penúltimo parágrafo do prefácio da sua obra. Os efeitos desta
estratégia hermenêutica têm­‑se feito sentir não só na impossibilida‑
de de aceder verdadeiramente à compreensão da sistematicidade
duma obra que tem justamente a dimensão e a pretensão sistemáti‑
ca (tanto a da própria filosofia como a da natureza e a do espírito
humano) por tema nuclear, como impediu também que se compreen­
desse a peculiar pertinência da visão kantiana da teleologia da natu‑
reza e até a singularidade da doutrina estética de Kant. Nomeada‑
mente, perdeu­‑se quase por completo o sentido da importância dum
tópico que realiza a mediação entre as duas partes da obra, o qual é
o reconhecimento da primazia matricial e do privilégio que, no con‑
texto da sua análise do juízo estético, Kant concede à experiência
estética da natureza como proto­‑experiência humana 3.
No presente ensaio, seguindo a pista indicada por Goethe, eu
gostaria, em primeiro lugar, de tentar perceber o que terá levado
Kant a associar, na sua terceira Crítica, os dois referidos domínios
sob um mesmo princípio e uma mesma faculdade do espírito; se‑
guidamente, de reconhecer as consequências que tem essa associa‑
ção, seja para a sua doutrina estética, seja para a visão da natureza
que assim se torna possível; finalmente, de avaliar o interesse que
pode ter isso para iluminar os actuais debates em torno da consciên‑
cia ecológica, na medida em que eles requerem uma nova filosofia

  Só recentemente este tópico se tornou objecto da atenção de alguns in‑


3

térpretes. Para um estado da questão, v. o nosso ensaio «Kant e o regresso à


natureza como paradigma estético», in Cristina Beckert (coord.), Natureza e
Ambiente. Representações na Cultura Portuguesa, CFUL, Lisboa, 2001, pp. 169­‑193.
Neste volume, pp. 349-378.

381

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da natureza, a qual não só não deve fazer economia da vivência es‑
tética da natureza como pode até ser extraordinariamente potencia‑
da por esta vivência.

2. A tese que me proponho expor é a seguinte: o que permite a


Kant a ligação do domínio da arte com o da natureza — da Estética
com a Teleologia ­— é o peculiar lugar que, na sua doutrina estética,
ocupa a experiência estética da natureza, em particular, a vivência
da beleza da natureza. Este aspecto é importante, antes de mais,
para a compreensão kantiana dos fenómenos estéticos, inclusive os
da arte humana. Mas ele permite pontes para outros domínios da
filosofia kantiana, nomeadamente, para a experiência moral e a
­experiência religiosa, e tem consequências sobretudo no modo de
entender a natureza e a relação do homem com ela. Graças a isso
torna­‑se possível superar a visão mecanicista, estabelecida como pa‑
radigma pela ciência e filosofia modernas, segundo a qual não só a
beleza fora eliminada da natureza, como esta se viu destituída de
qualquer valor autónomo e reduzida a mero objecto para a legisla‑
ção do entendimento, para os desígnios do arbítrio humano e satis‑
fação dos seus interesses.
Se é certo que a filosofia teorética de Kant vem confirmar, e tam‑
bém confinar, a legitimidade desse programa da Modernidade, no
que respeita à natureza formaliter spectata, reduzindo­‑a a um corpo de
leis de objectividade que o entendimento lhe prescreve a priori 4, tam‑
bém é verdade que, por outro lado, em muitos aspectos do pensa‑
mento kantiano, se pode reconhecer o culminar de um amplo movi‑
mento especulativo de reacção ao processo de «desencantamento do
mundo» que fora levado a cabo pelos filósofos e cientistas dos sé­
culos  xvii e xviii, os quais haviam reduzido a natureza a um previsí‑
vel e controlável mecanismo de relojoaria. A leitura extensiva dos es‑
critos de Kant revela que se cruzam neles vários conceitos de natureza
que não são de modo nenhum redutíveis àquele que o § 36 dos Prole‑
gómenos tipifica com toda a clareza. Um desses outros conceitos de
natureza é aquele que se declina em registo estético e que surpreende‑
mos já nas mais antigas reflexões de Kant acerca da génese e estrutura
do cosmos sob os traços de uma visão barroca da natureza, caracteri‑
zada pela exuberância esbanjadora (Verschwendung), pela extraordi‑
nária riqueza e fecundidade (Fruchtbarkeit), pelo poder inesgotável

4
  Prolegomena, § 36, Ak IV, 318­‑320.

382

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de  metamorfose e de criação contínua. Aí se fala já duma «secreta
arte» (geheime Kunst) da natureza e das «obras de arte da natureza»
­(Kunstwerke der Natur) que são os seus produtos, os quais se oferecem
à admiração silenciosa (stilles Erstaunen) e ao prazer (Vergnügen) do
homem que os contempla 5. E tudo isto no contexto de uma visão do
cosmos em grande escala como sendo um vasto sistema de sistemas
em contínuo processo de formação regido por uma economia que in‑
cessantemente faz sair a ordem a partir do próprio caos. Esta intuição
juvenil, exposta numa obra de temática cosmológica onde se fundem
intimamente as preocupações científicas com as teodiceicas, ético­
‑antropológicas e estéticas, tem a sua réplica e a sua tardia legitima‑
ção na Crítica do Juízo, obra onde o filósofo esclarece a pertinência da
visão sistemática não já apenas a do cosmos no seu todo, mas também
a da natureza, tanto no seu todo como nas suas partes e, de modo
particular, na incontável variedade das suas formas e seres organiza‑
dos. É nesta última Crítica que igualmente se dá razão do peculiar
sentimento de prazer que acompanha tal visão sistemática da nature‑
za, em que esta se revela, ao homem que a contempla ou que sobre ela
reflecte, como um vasto e complexo sistema de fins. Entretanto, nos
escritos kantianos da década de 60 haviam encontrado amplo eco as
reflexões de alguns filósofos ingleses (Shaftesbury, Hutcheson, Addi‑
son, Edmund Burke) que apontavam no sentido de resgatar a nature‑
za da mera consideração científica e utilitária tornando­‑a objecto de
um sentimento estético, promovendo o gosto mesmo pela natureza
selvagem e agreste ou pelos jardins em que a natureza era tratada
como se fosse abandonada aos seus próprios ritmos. Pela mesma épo‑
ca, Kant encontrava nos escritos de Rousseau (La Nouvelle Heloïse,
Émile) uma concepção da natureza de matriz estóica, uma natureza
materna, boa e providente, saturada de significação religiosa, moral e
estética. Tenha­‑se presente a sugestiva descrição do espectáculo da
natureza que constitui o cenário em que o vigário de Sabóia dá ao jo‑
vem Emílio a sua lição de teologia natural e de moral 6, ou a da expe‑
riência da escalada das montanhas alpinas como se tratasse de uma
vivência de arrebatamento físico, psicológico e moral 7, ou ainda a que

5
  Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels, Ak I, 315, 318­‑319,
367.
  Jean­‑Jacques Rousseau, Émile ou de l’éducation, texte établi par Charles
6

Wirz, Gallimard, Paris, 1969, p. 401.


7
  Jean­‑Jacques Rousseau, Julie ou la Nouvelle Heloïse, I, Lettre 23, Garnier­
‑Flammarion, Paris.

383

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o promeneur solitaire faz da sua vivência da natureza como uma «con‑
templação pura e desinteressada» com todos os ingredientes de uma
experiência mística de «êxtase» e de embriaguês 8. E a estas reflexões
dos filósofos moralistas e estetas da natureza vêm ainda juntar­‑se as
dos novos naturalistas (Lineu, Buffon, Blumenbach), que já não cons‑
tatavam só, como os físicos matemáticos mecanicistas, a simplicidade
e a regularidade do mecanismo da natureza, mas cada dia descobriam
a mais extrema variedade e a mais surpreendente espontaneidade as‑
sociadas à mais admirável economia, sistematicidade e mútua conve‑
niência.
Para a terceira Crítica de Kant confluem e nela se cruzam todos
estes vários aspectos e tendências do pensamento naturalista do sé‑
culo. E a obra, que começou por pretender ser apenas uma «crítica
do gosto», acabou por assumir uma arquitectura complexa que liga
muitos fios, mobilizando por assim dizer todo o sistema orgânico
das faculdades do espírito. Em primeiro lugar, dando conta da pe‑
culiar estrutura e natureza do juízo estético e da sua irredutibilidade
a um juízo lógico­‑cognitivo ou a um juízo moral, mas, seguidamen‑
te, mediante a aplicação, por analogia, do procedimento técnico da
faculdade de julgar às formas e produtos da natureza, esclarecendo
a peculiar pertinência ou finalidade com que eles se revelam ao es‑
pírito que os contempla ou os investiga; depois, ainda, tentando
mostrar como a visão teleológica da natureza, que assim se oferece
ao espírito, é compatível com a explicação mecânica e científica da
natureza e como, na verdade, deve mesmo ser pressuposta por esta
última, se é que também esta pretende ter um sentido; por fim, fa‑
zendo ver como a visão teleológica da natureza se liga com a visão
teleológica do mundo moral. Obra sistemática por excelência, não
admira que os densos parágrafos das duas Introduções que o seu
autor para ela escreveu tenham a noção de sistema por principal
assunto. O elo que liga todas estas secções é o princípio de teleofor‑
midade ou «conformidade a fins» (Zweckmässigkeit), atribuído à fa‑
culdade de julgar reflexionante. Este princípio ora é pensado como
tendo um sentido meramente subjectivo e formal (no juízo estético
a respeito das formas belas da natureza ou da arte), ora também
como tendo um sentido objectivo e real, como acontece na aprecia‑
ção que fazemos dos produtos organizados da natureza, os quais só

8
  Jean­‑Jacques Rousseau, Les rêveries du promeneur solitaire, Garnier­
‑Flammarion, Paris, 1964, pp. 125 e segs.

384

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são pensáveis, não só na sua aparência exterior como sobretudo na
sua íntima estrutura e possibilidade mesma, como se a natureza, ao
produzi­‑los, o fizesse tendo em vista um fim que ela mesma se pro‑
põe, permanecendo todavia para nós desconhecido se ela age efec‑
tivamente propondo­‑se fins e quais os fins que se propõe. Tanto
num caso como noutro, o que está envolvido é um juízo de reflexão
mediante o qual o sujeito dá um sentido aos objectos da sua contem‑
plação estética ou da sua representação teleológica.
A complexa arquitectónica da terceira Crítica sustenta­‑se graças
a uma intrincada e fina rede de analogias que têm por matriz a es‑
trutura do juízo estético acerca da beleza da natureza. Pode, pois,
dizer­‑se que esta obra de Kant sistematiza o vário reconhecimento
de todo um século de meditação a respeito do valor e significado
estético da natureza e que ela representa de algum modo até o que
se poderia chamar a sagração estética da natureza. Enquanto outros
pensadores setecentistas registaram o seu sentimento da natureza,
declamaram efusões líricas ou confessaram as suas vivências subli‑
mes, o filósofo crítico propôs­‑se fazer a anatomia do juízo estético a
respeito da natureza e tornar patente o que nesse peculiar juízo está
envolvido. O que se passa em nós quando apreciamos esteticamente
a natureza? Porque nos fala a natureza ao nosso sentimento do belo
e do sublime? Que natureza é essa que assim se nos revela? Que
relação de solidariedade tem a experiência estética da natureza com
as outras modalidades da experiência humana, como a experiência
moral, a experiência religiosa, a experiência científica, filosófica e
metafísica?

3. Mais do que qualquer outra obra de Kant, a terceira Crítica


tenta estabelecer pontes e mediações e gerir desequilíbrios e com‑
pensações (entre o belo e o sublime, entre estética e teleologia, entre
arte e natureza, entre teleologia da natureza e teleologia moral), e
está construída como uma complexa rede de raciocínios analógicos,
sob o modo do como se (Als ob). Partindo da evidência do processo
intencional da acção racional, de que se tem experiência na fabrica‑
ção humana de artefactos (arte humana), Kant aplica esse mesmo
procedimento como esquema para poder pensar o modo como a
natureza produz as suas formas a que chamamos belas e sobretudo
os seres organizados, embora esteja consciente de que a natureza
não pode ter uma intenção na sua produção ou que, pelo menos,
não podemos saber se a tem e qual ela seja. Pelo contrário, precisa‑
mente porque é natureza, presumimos que ela age espontaneamen‑
te, ao passo que o homem, enquanto ser racional, realiza as suas

385

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acções propondo­‑se fins. O filósofo dá­‑se conta de que certos produ‑
tos da natureza só podem ser pensados, quanto à sua forma e apa‑
rência, como se a natureza imitasse a arte humana ou antes uma arte
sobre­‑humana, como se ela mesma fosse artista, ou como se um se‑
creto artista através dela produzisse as suas obras que reputamos
como verdadeiras obras de arte da natureza, as quais apreciamos
também pela sua bela forma no juízo estético. Mas Kant dá um pas‑
so mais e estende a analogia à própria produção interna dos seres
naturais, considerando­‑os não já apenas na sua forma e aparência
mas também na sua estrutura e possibilidade interna e, nesse caso,
teríamos de pensar a natureza como se ela tivesse uma intencionali‑
dade ou finalidade objectiva e real como condição da possibilidade
de tais seres.
No centro e na base desta complexa rede de analogias está um
conceito fundamental, desenvolvido por Kant sobretudo na primei‑
ra introdução à sua Crítica do Juízo e também presente nesta obra
— o de «técnica da faculdade de julgar» (Technik der Urteilskraft) — a
ideia de que a faculdade de julgar tem como característica uma mo‑
dalidade de procedimento a que Kant chama «técnico» e que aplica
à natureza sob a designação de «técnica da natureza» (Technik der
Natur). Esta singular expressão, criada por Kant e bem pouco estu‑
dada pelos comentadores do seu pensamento estético 9, evoca hoje
um significado que está nos antípodas daquele que Kant lhe atri‑
buiu. Faz­‑nos pensar num procedimento ou modo de produção me‑
cânicos, ao passo que com ela Kant pretendia precisamente nomear
um modo de produção não mecânico e identificar o tipo de procedi‑
mento que está envolvido na criação poética ou artística 10. Por isso,
Kant aplicava esse conceito à produção artística e à compreensão da
sua lógica específica ou às produções da natureza que são de tal
­ordem que parecem revelar uma intencionalidade (como se visas‑
sem um fim na sua produção, pois o resultado dessa produção se
revela pertinente) e, ao mesmo tempo, manifestam uma total espon‑
taneidade, como se a natureza livremente inventasse os seus produ‑
tos (não seguindo nenhum esquema ou conceito predeterminado).

  Entre as excepções: G. Lehmann, «Die Technik der Natur», in idem, Bei‑


9

träge zur Geschichte und Interpretation der Philosophie Kants, Berlin, 1969, pp. 289­
‑294. Veja-se o meu ensaio «‘Técnica da Natureza’. Reflexões em torno de um
tópico kantiano», Studia Kantiana, 9 (2009), pp. 118-160.
10
  Erste Einleitung in die Kritik der Urteilskraft, VII, Ak XX, 219.

386

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É este peculiar procedimento de uma finalidade espontânea ou não
intencional que Kant designa pelo oxímoro «Zweckmässigkeit ohne
Zweck»: uma conformidade a fins sem um fim, isto é, uma espontâ‑
nea e recíproca conveniência dos elementos de um todo que revela
a forma ou a estrutura deste como pertinente, rica de sentido e viá‑
vel. A ideia de uma «técnica da faculdade de julgar» e de uma «téc‑
nica da natureza» está, pois, associada directamente à experiência
da criação, da invenção ou produção espontâneas, aconteçam elas
na arte humana ou na arte da natureza (no sentido em que só conse‑
guimos pensar os produtos desta como sendo­‑o de um procedimen‑
to análogo ao da arte). A diferença reside em que na arte humana
essa técnica é consciente, pelo menos parcialmente, na medida em
que o artista tem alguma ideia, por vaga que seja, do que pretende
realizar e, por isso, a sua produção é também intencional e finaliza‑
da (isto é, ele dispõe os meios para atingir a realização da sua ideia).
Nas produções da natureza, porém, essa técnica é, pelo menos tanto
quanto podemos presumi­‑lo, inconsciente e não intencional. E, to‑
davia, para o sujeito que as aprecia, ela só pode ser pensada como se
fosse intencional, como se a natureza procedesse superiormente di‑
rigida pelo princípio da «Zweckmässigkeit der Natur» (da teleoformi‑
dade — ou conformidade a fins — da natureza), embora saibamos
que esse princípio é tão somente um princípio da faculdade huma‑
na de julgar, a qual, na sua reflexão, o aplica aos produtos da arte
humana e aos da suposta arte da natureza 11. É em torno deste pres‑
suposto que se move toda a Crítica do Juízo e é daqui que nascem as
analogias entre a arte e a natureza, que nos levam a interpretar a
natureza como arte e a arte como natureza.
Graças ao seu novo conceito de uma «técnica da natureza» (que
preferimos traduzir por poética da natureza), Kant resolve uma antiga
antinomia que percorre toda a história do pensamento, protagoni‑
zada por Platão e Aristóteles, a qual opunha a arte e a natureza,
atribuindo­‑se a primazia ontológica e lógica ora a uma ora a outra.
Resolve­‑a, porém, de uma forma paradoxal, pois os dois termos se
tornam paradigma um do outro e servem, à vez, para reciprocamen‑
te se explicarem: a arte autêntica, para o ser, deve parecer natureza
ou como se fosse natural, mesmo que saibamos que é produto do
artifício intencional de um agente; e a natureza, seja no juízo estético
ou no juízo teleológico, tem de ser apreciada como se fosse artística

11
  Ibidem.

387

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e produto de uma arte (por certo não humana), ou como sendo ela
mesma artista. O que permite esta convertibilidade dos termos arte
e natureza? Na verdade, Kant opera aqui com a ambiguidade do
conceito de natureza: é o modo de produzir que atribuímos à natu‑
reza o que Kant transpõe para o modo de entender a produção da
arte humana, da mesma forma que é o modo segundo o qual pensa‑
mos a produção da arte humana o que atribuímos à natureza. Ora,
natureza e arte trocam entre si modalidades de produção antitéticas:
a natureza dá à arte a espontaneidade da produção, enquanto a arte
empresta à natureza a intencionalidade. Tudo isto, é claro, se passa
no plano de um juízo de analogia e do como se. Escreve Kant: «Num
produto da bela arte temos de estar conscientes de que ela é arte e
não natureza; mas, contudo, deve a conformidade a fins na sua for‑
ma parecer tão livre de toda a coacção de regras voluntárias como se
ela fosse um produto da mera natureza. É sobre este sentimento da
liberdade no jogo dos nossos poderes de conhecimento, que ao mes‑
mo tempo tem de ser conforme a fins, que se funda aquele único
prazer que pode ser universalmente partilhado sem se fundar em
conceitos. A natureza era bela, se ao mesmo tempo ela parecia como
arte; e a arte só pode ser chamada bela, se estamos conscientes de
que ela é arte, e todavia nos parece como natureza.» 12
No sistema das artes do seu tempo, Kant encontra uma forma
de arte que realiza esta simbiose de natureza e arte. Trata­‑se da arte
dos jardins (Gartenkunst, Lustgärtnerei), que ele classifica já entre as
belas artes como uma espécie de pintura, feita não com objectos na‑
turais representados, mas com os objectos mesmos da natureza (ár‑
vores, arbustos, relva e flores da floresta e do campo), com a finalida‑
de de produzir um quadro para a contemplação dos olhos e do
espírito 13. Kant pensa nos jardins «segundo o gosto inglês», onde a

12
  «An einem Producte der schönen Kunst muss man sich bewusst wer‑
den, dass es Kunst sei und nicht Natur; aber doch muss die Zweckmässigkeit in
der Form desselben von allem Zwange willkührlicher Regeln so frei scheinen,
als ob es ein Product der blossen Natur sei. Auf diesem Gefühle der Freiheit
im Spiele unserer Erkenntnissvermögen, welches doch zugleich zweckmässig
sein muss, beruht diejenige Lust, welche allein allgemein mittheilbar ist, ohne
sich doch auf Begriffe zu gründen. Die Natur war schön, wenn sie zugleich als
Kunst aussah; und die Kunst kann nur schön genannt werden, wenn wir uns
bewusst sind, sie sei Kunst, und sie uns doch als Natur aussieht.» KU, § 45,
Ak V, 306.
13
  KU, § 51, Ak V, 323.

388

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natureza, sendo embora obra da arte, não é contudo submetida à
violência de uma estrita regularidade, mas trabalhada como se fosse
deixada à sua própria espontaneidade, e assim oferecida como es‑
pectáculo ao mero livre jogo da imaginação. É graças a isso que ela
proporciona ao espírito de quem a contempla uma constante fonte
de gratas surpresas. Pelo contrário, a rígida regularidade e a unifor‑
me simetria são contrárias ao ponto de vista estético e, em vez de
proporcionarem ao espírito um verdadeiro prazer, provocam­‑lhe an‑
tes cansaço e aborrecimento. A percepção de que no objecto da con‑
templação há vestígios da coacção e da violência das regras segundo
as quais foi produzido inviabiliza mesmo qualquer experiência esté‑
tica 14. Somente na medida em que a natureza nos aparece revelando­
‑se espontânea e pródiga em toda a sua variedade e até na sua opu‑
lência e aspectos selvagens, sem que nisso pareça estar submetida à
regularidade de um mecanismo ou à coacção de regras artificiais,
é que ela pode proporcionar um alimento inesgotável para o gosto e
prazer estéticos de quem a contempla. No jardim, tudo tem de ser
não só natureza como também parecer natural, mesmo que saiba‑
mos que é somente um produto da arte humana em que a matéria é
a própria natureza. A poética kantiana do jardim condensa toda a
estética kantiana e pode dar­‑nos também uma amostra da filosofia
da natureza que a partir da experiência estética se torna possível.
E isto torna­‑se mais claro ainda se confrontarmos a filosofia da natu‑
reza que se depreende desta poética kantiana do jardim com a filo‑
sofia mecânica da natureza e do próprio homem que Descartes ex‑
põe no seu L’Homme, servindo­‑se de exemplos tirados dos artefactos
e respectivos mecanismos que existem «nos jardins dos reis» 15.
Há assim, no pensamento estético de Kant, uma inequívoca pre‑
ponderância da natureza sobre a arte, a qual se revela ou insinua por
muitos modos. Mas esta preponderância ou pura e simplesmente
não tem sido notada pelos comentadores, ou, quando notada por
alguns, tem sido interpretada como algo perturbador e negativo,
como um resíduo duma teologia da criação, que ameaça a autono‑
mia da arte e do juízo estético que o filósofo crítico por outro lado
pretendia legitimar 16. Aqui, em contrapartida, toma­‑la como um ele‑

  Ak V, 242­‑243.
14

  Descartes, L’Homme, Œuvres philosophiques, I (1618­‑1637), ed. de F.


15

Alquié, Éditions Garnier, Paris, 1988, 390 (ed. A­‑T, XI, 130).
16
  Hans­‑Georg Gadamer, Die Aktualität des Schönen, Reclam, Stuttgart,
1977, pp. 39­‑40.

389

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mento perturbador sim, mas igualmente como um antídoto contra a
redução da estética às malhas duma subjectividade fechada sobre si
mesma e sobre as suas vivências ou criações. Mas encaramo­‑la sobre‑
tudo pela fecundidade que revela para iluminar a complexidade dos
problemas. E um deles é a concepção do génio. Para o filósofo, a ge‑
nuína arte humana é a arte do génio e por génio entende ele aquele
que produz graças a um talento inato que atribuímos à natureza.
O  génio é um «favorecido da natureza» (Günstling der Natur), que
possui uma «disposição inata do ânimo (ingenium) mediante a qual a
natureza dá a regra à arte» 17. Mas, se a natureza ilumina a arte, tam‑
bém a arte ilumina a natureza. Porventura, tudo nesta se produz
apenas mediante o mero mecanismo, sem que a essa produção presi‑
da a representação de um fim e, todavia, para podermos pensar cer‑
tos produtos da natureza, seja na sua forma ou na sua estrutura, se‑
gundo o nosso modo de representação, só podemos fazê­‑lo supondo
que a natureza procede artisticamente, ou seja, finalizadamente.
E isso é ainda mais necessário se não falamos apenas das formas be‑
las da natureza que se oferecem à nossa contemplação estética, mas
dos seus produtos orgânicos que se oferecem à nossa apreciação te‑
leológica. Aí, diz Kant, «a natureza não é só apreciada enquanto pa‑
rece como arte, mas na medida em que ela é realmente arte (embora
sobre­‑humana)» 18. A tal ponto que não pode sequer ser imitada pela
arte humana 19. Num outro passo da obra, Kant prolonga esta ideia
da analogia entre a natureza e a arte, precisando­‑a e sublinhando
ainda mais a vantagem da natureza: «Diz­‑se muito pouco da nature‑
za e da faculdade que ela revela nos seus produtos orgânicos, quan‑
do designamos esta como analogon da arte; pois aí se pensa o artífice
(um ser racional) como estando fora dela. […] Talvez alcancemos
uma perspectiva mais correcta desta propriedade impenetrável se a
designarmos como um analogon da vida. […] Para falar com rigor, a
organização da natureza não tem nisso nenhuma analogia com qual‑
quer causalidade que conheçamos. A beleza da natureza pode com
razão ser designada como um analogon da arte, já que ela é atribuída
aos objectos somente em relação à reflexão sobre a intuição externa
dos mesmos, por conseguinte, somente por causa das formas super‑
ficiais. Mas a íntima perfeição natural, tal como a possuem aquelas

17
  KU, Ak V, 307.
18
  KU, Ak V, 311.
19
  KU, § 64, Ak V, 371.

390

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coisas que são possíveis apenas enquanto fins naturais e que, por
isso, se chamam seres organizados, essa não pode ser pensada e ex‑
plicada segundo nenhuma analogia com qualquer propriedade físi‑
ca, isto é, natural, que conheçamos e nem mesmo através de uma
analogia perfeitamente adequada com a arte humana, já que nós
próprios pertencemos à natureza no mais amplo sentido.» 20
Movemo­‑nos, pois, num paradoxo: como pretende aquele, que
é apenas uma parte, aplicar a lógica do seu modo peculiar de produ‑
zir ao todo de que é ele mesmo produto? Em suma, Kant acaba por
reconhecer que a analogia tirada da arte humana, que serviu de base
à construção da terceira Crítica, apesar de todo o seu potencial heu‑
rístico, claudica por fim. E assim se afirma a transcendência da na‑
tureza relativamente às nossas capacidades de a compreender nos
processos internos da sua poética. A natureza permanecerá para os
homens sempre uma Isis velada 21. Ainda assim, Kant não deixa de
realçar o significado que a experiência estética da beleza da nature‑
za tem para nos dar acesso a uma mais vasta compreensão da pró‑
pria natureza, nomeadamente pela extensão que permite à conside‑
ração teleológica da natureza. Escreve o filósofo: «A beleza autónoma
da natureza [selbständige Naturschönheit] descobre­‑nos uma técnica
da natureza, que a torna representável como um sistema segundo
leis cujo princípio não encontramos em todo o nosso poder de en‑
tendimento, a saber o de uma teleoformidade [Zweckmässigkeit] re‑
lativamente ao uso da faculdade de julgar tendo em vista os fenó‑
menos, de tal modo que estes têm de ser apreciados não apenas
como pertencentes à natureza no seu mecanismo destituído de fina‑
lidade, mas também como pertencentes à natureza pensada por
analogia com a arte. Por certo, ela realmente não amplia o nosso
conhecimento dos objectos da natureza, mas sim o nosso conceito
da natureza, nomeadamente o que a representa como mero meca‑
nismo, até precisamente ao conceito da mesma como arte: o que
convida a profundas investigações acerca da possibilidade de uma
tal forma.» 22
Nisso, a experiência do belo natural é muito mais fecunda do
que a experiência do sublime da natureza, pois nesta a natureza
revela­‑se não como um poder de inesgotável produção finalizada

20
  KU, § 65, Ak V, 374­‑375.
21
  KU, Ak V, 316.
22
  KU, § 23, Ak V, 246.

391

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de belas formas e de incontáveis seres vivos, mas como um caótico
e incomensurável poder de destruição, como a negação de toda a
conformidade a fins 23. Se perante o belo da natureza somos estimu‑
lados a admirar e a amar a natureza, perante o sublime da natureza,
esta impõe­‑se ao homem como objecto de «admiração ou respeito»
(Bewunderung oder Achtung), «uma espécie de respeito» (eine Art von
Achtung) 24 e suscita nele um «temor reverencial» (Ehrfurcht) 25, ex‑
pressões que, no contexto da sua filosofia prática, Kant nos ensinara
a reservar apenas para pessoas ou para o próprio objecto da morali‑
dade 26. Embora o filósofo declare que «sublime é a natureza naque‑
les seus fenómenos cuja intuição leva consigo a ideia da sua
infinidade» 27, tenta mostrar, por outro lado, que é impropriamente
que atribuímos a sublimidade à natureza. Na verdade, a sublimida‑
de que experimentamos perante certos fenómenos da natureza a
que chamamos sublimes é uma sublimidade do próprio espírito, ao
qual, precisamente na violência que a natureza lhe impõe, é dado
experimentar sob forma sensível a sua condição supra­‑sensível 28.
E assim, nesta economia de mediações e de compensações que gere
a terceira Crítica, a experiência do sublime revela a sua fecundidade e
pertinência não tanto para ampliarmos o conceito de natureza como
um sistema de fins, quanto para nos permitir, sob o modo estético,
um vislumbre do mundo supra­‑sensível e, graças a ela, também a
própria natureza no seu todo se torna para nós, pela incomensurável
grandeza e poder com que se nos manifesta, a «exposição de algo
supra­‑sensível» (Darstellung von etwas Übersinnlichen) 29, o «esquema»
ou o símbolo estéticos do Infinito que para nós é um «abismo»
(Abgrund) 30, mas por certo apenas «uma mera exposição negativa do
Infinito» (eine blosse negative Darstellung des Unendlichen) 31.

  KU, § 23, Ak V, 246.


23

  KU, Ak V, 245, 249, 257


24

25
  KU, Ak V, 264.
26
  KpV, Ak V, 76.
27
  KU, § 26, Ak V, 255
28
  KU, § 28, Ak V, 262: «Also heisst die Natur hier erhaben, bloss weil sie
die Einbildungskraft zur Darstellung derjenigen Fälle erhebt, in welchen das
Gemüth die eigene Erhabenheit seiner Bestimmung selbst über die Natur sich
fühlbar machen kann.»
29
  KU, § 29, Ak V, 268.
30
  KU, § 29, Ak V, 265.
31
  KU, V, 274.

392

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Apesar de constituírem experiências estéticas subjectivas de si‑
nal contrário, tanto a vivência do belo natural como a do sublime da
natureza representam já em si mesmas a superação do sujeito e dos
seus interesses a favor da natureza. Como escreve Kant, «o belo
predispõe­‑nos para amar algo, mesmo a natureza, sem termos nisso
qualquer interesse; o sublime predispõe­‑nos para estimá­‑la alta‑
mente, mesmo contra o nosso interesse (sensível)» 32.

4. Como Kant expressa e reiteradamente o diz, é a experiência


da beleza da natureza e não a experiência da beleza artística que cons‑
titui a proto­‑experiência estética. É ela que nos faz descobrir em nós
uma nova faculdade — a faculdade de julgar reflexionante — e um
novo princípio transcendental meramente subjectivo — o da confor‑
midade a fins da natureza (teleoformidade da natureza) — Zweckmäs‑
sigkeit der Natur — que constitui o próprio juízo estético ou de gosto
na sua peculiar autonomia 33. E na economia da estética kantiana e da
terceira Crítica é verdadeiramente a experiência do belo natural que
constitui o problema fundamental que desencadeia toda a meditação
kantiana, sendo o problema da arte humana pensado já como uma
extensão da solução encontrada para aquele. É por ocasião da refle‑
xão sobre a beleza da natureza que a faculdade de julgar surpreende
em si um princípio transcendental peculiar, o da teleoformidade da

32
  «Das Schöne bereitet uns vor, etwas, selbst die Natur ohne Interesse
zu lieben; das Erhabene, es selbst wider unser (sinnliches) Interesse hoch‑
zuschätzen.» Ak V, 267.
33
  Erste Einleitung, XII, Ak XX, 251. Este passo contém in nuce toda a
terceira Crítica e deve ser transcrito na íntegra: «Noch ist anzumerken: dass es
die Technik in der Natur und nicht die der Kausalität der Vorstellungskräfte des
Menschen, welche man Kunst (in der eigentlichen Bedeutung des Worts) nennt,
sei, in Ansehung deren hier die Zweckmässigkeit als ein regulativer Begriff
der Urteilskraft nachgeforscht wird und nicht das Prinzip der Kunstschönheit
oder einer Kunsvollkommenheit nachgesucht werde, ob man gleich die Natur,
wenn man sie als technisch (oder plastisch) betrachtet, wegen einer Analogie,
nach welcher ihre Kausalität mit der der Kunst vorgestellt werden muss, in
ihrem Verfahren technisch, d. i. gleichsam künstlich nennen darf. Denn es ist
um das Prinzip der bloss reflektierenden, nicht der bestimmenden Urteilskraft
(dergleichen allen menschlichen Kunstwerken zum Grunde liegt), zu tun, bei der
also die Zweckmässigkeit als unabsichtlich betrachtet werden soll, und die also nur
der Natur zukommen kann. Die Beurteilung der Kunstschönheit wird nachher
als blosse Folgerung aus denselbigen Prinzipien, welche dem Urteile über
Naturschönheit zum Grunde liegen, betrachtet werden müssen.» Cf. ibidem, 244.

393

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natureza (Zweckmässigkeit der Natur), o qual depois se revela fecundo
para compreender também a própria criação artística humana e so‑
bretudo aquela secreta arte que a natureza põe em jogo na produção
dos seus seres orgânicos. Mas se a apreciação estética da natureza
abre caminho à apreciação teleológica da mesma natureza, também
esta, por sua vez, reverte sobre a visão estética. Pois a natureza pode‑
ria ser um sistema de fins e conforme a fins na sua produção e, toda‑
via, não ter em conta o prazer estético. Ora, na sua peculiar poética, é
como se a natureza tivesse tido também em conta esse aspecto a nos‑
so favor. O filósofo não admite por certo um realismo estético da fina‑
lidade da natureza, que nos levasse a considerar esta como tendo na
base das suas produções, para além da ideia de um fim de utilidade e
de compatibilidade de uns seres com os outros, também uma ideia de
beleza à qual aquelas produções se adequassem e tendo ainda em
vista que isso pudesse vir a ser contemplado e apreciado por alguém
e precisamente pelo homem. No § 58 da Crítica do Juízo, Kant conside‑
ra, todavia, que inúmeras belas formações que se encontram em to‑
dos os reinos da natureza (mineral, vegetal e animal) falam muito alto
a favor dessa hipótese, embora por outro lado devamos pensar que
todas essas belas formações são apenas o efeito de fortuitas e caóticas
combinações químicas e de meros processos mecânicos. Mas isso só
torna o fenómeno ainda mais surpreendente e digno de admiração.
A finalidade estética que atribuímos à natureza é meramente ideal e
não real e o juízo estético sobre a beleza da natureza é meramente
subjectivo e não determinante, mas reflexionante.
Poderíamos pensar que a natureza ganharia mais se lhe atri­
buíssemos um realismo estético, se considerássemos que realmente
ela se propõe a produção de formas objectivamente belas e que essas
formas são belas apenas porque são o efeito de uma produção estéti‑
ca intencional da natureza. Mas não é assim. O idealismo estético
kantiano aplicado à natureza não se limita a este ou àquele produto
ou forma naturais que revelassem certas qualidades objectivas de
beleza. Mas precisamente porque não está limitado por isso, pode ele
sublimar esteticamente qualquer aspecto da natureza. Não se trata
de considerar o mundo ou a natureza como sendo realmente belos,
mas de dispor o espírito para embelezar o mundo 34. Como diz Kant,

34
  Como se diz numa Reflexão «Der aesthetische idealism würde der seyn,
der nicht eine schönere Welt als die wirkliche schildert, sondern das Gemüth
disponirt, die Welt verschönen.» Refl. zur Logik, Refl. 230, Ak XV, 88.

394

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na apreciação estética que sobre a natureza fazemos, não está em
causa o que ela é ou o que para nós é um fim, mas o modo como a
acolhemos, pois poderia até dar­‑se o caso de haver uma conformida‑
de a fins objectiva da natureza, segundo a qual ela tivesse produzido
as suas formas belas para o nosso prazer, sem que nós captássemos
essas formas com uma teleoformidade subjectiva que nos desse pra‑
zer e que se fundasse apenas no jogo da nossa imaginação deixada
em plena liberdade. No juízo estético sobre a natureza «somos nós que
acolhemos a natureza com favor, sem que pela sua parte ela nos indique
o menor favor» (wo es Gunst ist, womit wir die Natur aufnehmen, nicht
Gunst, die sie uns erzeigt) 35. E, todavia, noutro passo da obra, Kant
reconhece que esse favor que fazemos à natureza de a considerar
bela, é, por assim dizer, a recíproca resposta ao livre favor que a na‑
tureza prodigamente nos faz de, para além de nos ser realmente útil,
ainda se nos mostrar generosamente bela: «Podemos considerar
como um favor que a natureza teve em relação a nós, o facto de ela
ter distribuído tão ricamente, para além do útil, ainda a beleza e o
encanto [Schönheit und Reize], e por isso amá­‑la, tal como por causa
da sua incomensurabilidade a contemplamos com respeito e nos
sentimos nós próprios enobreci­dos nesta contemplação: precisamen‑
te como se a natureza tivesse montado e adornado o seu majestoso
teatro precisamente com esta intenção.» 36
Graça e amabilidade com amabilidade e graça se pagam! Em
nota a esta passagem, Kant formula ainda mais explicitamente esta
nova relação graciosa entre o homem e a natureza, entre a natureza
e o homem, mostrando como a contemplação estética e a apreciação
teleológica da natureza se completam na sua reciprocidade: «Na
parte estética foi dito: nós olhamos a bela natureza com favor, na medi‑
da em que na sua forma temos um prazer completamente livre (de‑
sinteressado). Pois neste simples juízo de gosto não se tem de modo
nenhum em atenção para que fins estas belezas naturais existem: se
para nos despertarem um prazer, ou se sem qualquer relação a nós
como fins. Num juízo teleológico, porém, temos também em aten‑
ção esta relação e por isso podemos considerar como um favor da natu‑
reza o facto de ela, mediante a exibição de tantas formas belas, ter
querido ser favorável à cultura.» 37

35
  Ak V, 350.
36
  KU, § 67, Ak V, 380.
37
  KU, Ak V, 380.

395

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O privilégio da experiência estética da natureza no pensamento
estético de Kant revela­‑se ainda a outros níveis. Nomeadamente, na
sua originária e essencial solidariedade com o sentimento moral e
até com o sentimento religioso. O § 88 da terceira Crítica sugere uma
génese moral do juízo estético a respeito da natureza. Kant diz aí
que com toda a probabilidade foi o interesse moral que, a princípio,
despertou a atenção para a beleza e os fins da natureza e, depois,
esse interesse moral viria a ser fortalecido por essa consideração es‑
tética 38. E, noutro lugar da mesma obra, aponta a semelhança que a
experiência estética e teleológica da natureza — a admiração da be‑
leza e a emoção despertada pela consideração da grande diversida‑
de de fins da natureza — tem com um sentimento religioso e com
um sentimento moral: «A admiração da beleza bem como a emoção
suscitada pelos fins tão diversos da natureza que um espírito que
reflecte está em condição de experimentar antes mesmo de possuir
uma clara representação de um autor racional do mundo, têm em si
qualquer coisa de semelhante a um sentimento religioso. Elas pare‑
cem agir sobre o sentimento moral (de reconhecimento e de venera‑
ção relativamente àquela causa de nós desconhecida) por uma espé‑
cie de apreciação desta beleza e destes fins que seria análoga à
apreciação moral, e assim agir sobre o espírito suscitando ideias mo‑
rais, quando inspiram esta admiração que está ligada a um interesse
que é de longe muito maior do que aquele que pode produzir uma
contemplação simplesmente teórica.» 39
Kant, que apresentara justamente a experiência da beleza natu‑
ral, por exemplo a beleza de uma flor selvagem ou de uma concha
de molusco, como exemplos de uma beleza livre (frei) e autónoma
(selbständige), parece comprometer assim a autonomia do juízo esté‑
tico associando­‑o assim tão intimamente ao sentimento moral e até
ao sentimento religioso. Na verdade, porém, o que ele assim põe de
manifesto é a organicidade do espírito na espontânea harmonia das
suas faculdades.
O § 42 da Crítica do Juízo é o mais enfático na explícita afirmação
da primazia da vivência estética da natureza sobre a vivência estéti‑
ca da arte. Nos primeiros parágrafos da «Analítica do belo», Kant
tinha caracterizado o sentimento estético da beleza como um senti‑
mento desinteressado, mas defronta­‑se agora com uma particulari‑

38
  KU, Ak V, 459.
39
  KU, Ak V, 482.

396

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dade que a beleza da natureza revela relativamente à beleza da arte,
a saber, que, ao contrário desta, aquela «suscita no homem um inte‑
resse imediato de natureza intelectual e isso, quando é habitual e
quando associado à contemplação da natureza, constitui um sinal
distintivo de uma boa alma ou, no mínimo, indica uma disposição
de espírito favorável ao sentimento moral» 40. Páginas adiante, insis‑
te na mesma ideia: «O espírito não pode meditar sobre a beleza da
natureza sem ao mesmo tempo se achar interessado nisso. Este inte‑
resse, porém, é moral por parentesco [der Verwandtschaft nach], e
aquele que toma interesse no belo da natureza só o toma enquanto
tem já bem fundado o seu interesse no moralmente bom.» 41 Aliás,
esta arqueologia moral do sentimento estético da natureza já havia
sido abundantemente exposta por Kant a respeito do sentimento do
sublime: «O prazer do sublime da natureza […] pressupõe um outro
sentimento — o da própria destinação supra­‑sensível —, o qual, por
obscuro que possa ser, tem um fundamento moral.» 42
A experiência estética da natureza — seja a da sublimidade seja
a da beleza ­— torna­‑se assim revelação, em registo sensível, duma
mensagem que é da ordem do supra­‑sensível. Pela mediação da vi‑
vência estética e da contemplação teleológica, a natureza é como
que sublimada, adquire dimensão de transcendência e torna­‑se epi‑
fania do Absoluto na sua forma moral. E o filósofo crítico não tem
sequer receio de restaurar em pleno século das Luzes uma lingua‑
gem que é muito próxima da que encontramos em certos pensado‑
res medievais, lendo as formas da natureza (e até nas variações da
luz, das cores e dos sons) como se fossem um «vestigium dei», como
«vestígio» (Spur) ou «sinal» (Wink) de algo transcendente, como
uma «escrita cifrada mediante a qual a natureza nos fala figurada‑
mente» (Chiffreschrift... wodurch die Natur ... figürlich zu uns spricht),
«como uma linguagem que a natureza nos dirige e que parece ter
um sentido mais elevado» (gleichsam eine Sprache, die die Natur zu uns
führt, und die einen höhern Sinn zu haben scheint), que interpretamos
como sendo um sentido moral 43.

  KU, Ak V, 298. Kant utiliza aqui, em contexto estético, a mesma lingua‑


40

gem que usara na Fundamentação da Metafísica dos Costumes para designar o


interesse moral ou prático, igualmente caracterizado como um «interesse ime‑
diato» (unmittelbares Interesse). Grundlegung, Ak IV, 459­‑460.
41
  KU, Ak V, 300.
42
  KU, Ak V, 292.
43
  KU, § 42, Ak V, 302.

397

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Neste mesmo parágrafo, o filósofo transgride ainda outros pres‑
supostos da sua doutrina estética. Para Kant, o juízo estético, além
de ser desinteressado, é meramente subjectivo, na medida em que é
uma vivência do sujeito a qual consiste na mera apreensão da forma
do objecto, abstraindo não só do que o objecto é em si mesmo como
até da sua própria existência, que nos é, enquanto tal, indiferente.
Ora, na experiência estética da natureza essa abstracção e indiferen‑
ça são impossíveis. É como se a dimensão meramente subjectiva do
juízo estético ganhasse aqui uma dimensão objectiva, graças à qual
o nosso interesse intelectual pela bela natureza nos leva não só a
admirar, a respeitar e a amar a natureza, que é objecto da nossa con‑
templação, mas também a querer que dela nada se perca, a deixá­‑la
na sua existência e autonomia.
A passagem que a seguir se transcreve é, porventura, em toda a
obra de Kant, aquela onde melhor se mostra o modo como, numa
perspectiva kantiana, se poderia entender a fecundidade da con‑
templação estética da natureza, que se coloca no ponto de vista do
sujeito, para aquilo a que hoje chamamos uma perspectiva ecológi‑
ca, que se colocasse no ponto de vista da natureza. Escreve Kant:
«Aquele que solitariamente (e sem a intenção de querer comunicar
as suas observações a outros) contempla a bela forma de uma flor
selvagem, duma ave, dum insecto, etc., para os admirar, para os
amar, e num espírito tal que ele não admitiria de bom grado a sua
perda na natureza em geral, mesmo quando, longe de que a existên‑
cia do objecto lhe faça ver alguma vantagem, ele disso tirasse antes
prejuízo, esse toma um interesse imediato e a bem dizer intelectual
pela beleza da natureza. Isso significa que não só o produto da na‑
tureza lhe apraz pela sua forma, mas também que a existência dele
lhe apraz, sem que qualquer atractivo sensível tome parte neste pra‑
zer ou que a isso se associe um qualquer fim.» 44
Esta passagem mostra como a perspectiva estética se excede e se
pode transformar em consciência ecológica. Mas deixa ver também o
quanto a perspectiva ecológica pode aprender da fecunda lição do
pensamento estético de Kant. A atitude estética em relação à natureza,
tal como Kant a concebe, parece cuidar melhor da natureza, amando­‑a
e respeitando­‑a, do que qualquer outra. Porque não se funda numa
qualquer teoria acerca da natureza ou no que se sabe ou julga saber a
respeito dela, mas na atitude humana, numa peculiar disposição do

44
  KU, § 42, Ak V, 299.

398

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espírito em relação à natureza. Ora é esta mediação humana e até a
presença humana que em certas formas de pensamento ecológico se
pretende excluir, como se o homem não fosse também ele próprio um
ser da natureza e um elemento dos seus sistemas ecológicos!

5. Gostaria, para concluir, de mostrar com alguns breves apon‑


tamentos como as perspectivas abertas pela terceira Crítica relativas
à vivência estética da natureza podem iluminar aquilo a que actual‑
mente se chama a «ética da natureza» ou «ética ambiental» e o que
nestas se visa, a saber, a responsabilidade ética do homem perante a
natureza. Como veria Kant este problema que actualmente é tão
agudamente sentido? Será que a natureza (seja a natureza animal e
vegetal, ou a natureza material e mineral) pode ser encarada como
sujeito de direitos e está em condições de poder reclamar que o ho‑
mem considere esses direitos como seus deveres próprios?
À primeira vista, a contribuição de Kant para o tema é decep‑
cionante. Nos escassos lugares da sua obra onde aborda expressa‑
mente a questão, o filósofo é peremptório: o homem não tem deve‑
res a não ser relativamente ao homem (a ele mesmo ou aos outros
homens) e todos os deveres que se possam pensar relativamente a
outros seres que não o homem só indirectamente o são, sendo direc‑
tamente apenas deveres do homem em relação a si próprio ou à
própria humanidade. A posição kantiana pode parecer formalista: é
a própria noção de relação ética e de relação jurídica o que impede
que se fale com propriedade de uma «ética da natureza» ou duma
«ética animal», de «direitos da natureza» ou de «direitos dos ani‑
mais». Segundo Kant, tais expressões laboram numa sub­‑repção,
que consiste em fazer valer univocamente para o todo da natureza
um tipo de relações que só tem significado e pertinência no âmbito
propriamente inter­‑humano e interpessoal. Mas se o homem não
tem, propriamente falando, deveres para com a natureza, significa
isso que não tem qualquer responsabilidade pela natureza?
De modo nenhum se pode concluir tal. Embora tenha de
esclarecer­‑se em que consiste a responsabilidade do homem e qual
o seu real alcance. Ela só pode pensar­‑se a uma escala humana e
ainda aí muito limitada. Ainda aqui pode a perspectiva estética e
teleológica iluminar o teor e os limites da peculiar responsabilidade
do homem pela natureza orgânica ou inorgânica. No seu Curso de
Geografia e sobretudo na segunda parte da Crítica do Juízo, Kant mos‑
tra em que sentido o homem ­— que é ele mesmo também um mem‑
bro da cadeia dos fins da natureza que esta usa como um meio para
os seus fins ­— pode contribuir, com aquilo que lhe é próprio ­— a

399

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razão esclarecida e a decisão sensata —, para a gestão sustentável
dos frágeis equilíbrios sistémicos da natureza 45. Pensada no am‑
biente de uma visão estética e teleológica, a responsabilidade do
homem pela natureza entende­‑se menos num sentido moralista ou
jurídico e mais no sentido de uma mudança radical da atitude hu‑
mana frente à natureza, a qual passe do confronto agressivo ao diá‑
logo, da dominação voluntarista à atenção vigilante e respeitadora,
da exploração e usufruto destruidor à disponibilidade para aceitar e
agradecer o dom, a graça e os favores que a natureza espontânea e
prodigamente nos dispensa, da mera contabilização calculista do
lucro para a contemplação desinteressada, ou ainda para tomar in‑
teresse no que nela nos parece inútil, sem interesse, ou mesmo desa‑
gradável, cuidando para que nada se perca de quanto nela existe.
A  consideração teleológica e estética não anula, mas relativiza na
raiz e tempera a atitude científico­‑técnica e até a atitude jurídico­
‑moral do homem para com a natureza. E assim podemos entender
o que escreve Kant num parágrafo da sua Doutrina da Virtude, onde
discute o tópico dos supostos deveres do homem para com a natu‑
reza: «No que respeita ao belo da natureza, ainda que inanimado, a
tendência para o mero destruir (spiritus destructionis) é contrário ao
dever do homem para consigo próprio; porque enfraquece ou exter‑
mina no homem aquele sentimento, que, embora não sendo por si
apenas já [um sentimento] moral, prepara todavia este, na medida
em que promove muito aquela disposição da sensibilidade que nos
leva a amar algo mesmo sem ter em vista a utilidade (por ex., as
belas cristalizações, a indescritível beleza do reino vegetal).» 46
Como facilmente se reconhecerá, esta passagem ganha todo o
seu alcance se colocada no contexto da ampla reflexão kantiana sobre
o juízo estético a respeito da natureza e da íntima solidariedade que
aí se reconhece existir entre a experiência da beleza e sublimidade da
natureza e o sentimento moral, a qual nos leva a tomar interesse pela
natureza — um interesse que é por certo intelectual e moral, mas de
matriz estética — e até nos sentimos legitimados a pressupor que to‑
dos os seres humanos devem tomar o mesmo interesse, ao ponto de
considerarmos como «grosseira e ignóbil a maneira de pensar daque‑
les que não têm qualquer sentimento para a bela natureza» 47.

45
  Physische Geographie, Ak IX, 253.
46
  Metaphysik der Sitten, Tugendlehre, § 17, Ak VI, 443.
47
  KU, § 42, Ak V, 303.

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Num seu Curso de Ética e também no contexto do desenvolvi‑
mento do tópico dos deveres em relação à natureza, Kant cita o
exemplo de Leibniz, o qual, depois de ter observado e estudado a
forma e o comportamento de um pequeno verme, o colocava de
novo na folha da árvore de onde o tirara, evitando causar­‑lhe qual‑
quer dano, pois lamentava destruir sem razão uma criatura que tan‑
tas coisas lhe havia ensinado. E, na continuação, o filósofo condena,
como sendo totalmente imoral, o espírito destrutivo exercido sobre
coisas que, não nos sendo úteis, podem ainda ser utilizadas por ou‑
tros e vai ao ponto de dizer que não temos sequer o direito de des‑
truir aquilo em que não vemos qualquer utilidade possível. Ora,
entre as coisas que muitos consideram inúteis está a beleza da natu‑
reza, acerca da qual o filósofo escreve: «Nenhum ser humano deve
destruir a beleza da natureza, pois mesmo quando ele próprio possa
não apreciá­‑la, outros homens podem ainda vir a fazer uso dela.
E  mesmo que não faça isso em consideração das coisas mesmas,
deve fazê­‑lo em atenção aos outros homens.» 48
Estas indicações mostram a íntima relação que no espírito de
Kant liga a visão estética da natureza com a sua visão da responsa‑
bilidade moral e dos deveres do homem para com os animais e a
natureza em toda a sua diversidade. A moral e o direito, confina‑
dos embora a um espaço de relações entre seres humanos, alargam­
‑se pela mediação humana e inter­‑humana ao mundo natural
numa vasta solidariedade antropocósmica. Kant não seria um de‑
fensor de uma ética da Terra, de uma ética da natureza que nos
impusesse o dever de a respeitar e conservar. Para ele, aquilo a que
impropriamente se chama deveres relativamente aos animais e a
outros seres e coisas da natureza é algo que tem sempre em vista
indirectamente os deveres para com a humanidade. Mas, ao mes‑
mo tempo, Kant indica­‑nos um modo possível segundo o qual a
ordem ética e jurídica, sendo propriamente uma ordem humana e
entre humanos, pode alargar­‑se à natureza, sem incorrer em sub­
‑repções ou em falácias naturalistas ou antropologistas, porque
consciente dos limites dessa extensão. Esse modo é o que se abre
pela apreciação teleológica e pela vivência estética da natureza.

  Eine Vorlesung über Ethik, ed. de G. Gerhardt, Fischer Verlag,


48

Frankfurt/M., 1990, p 257. Para maior desenvolvimento deste tópico, veja-se,


neste volume, o último ponto do ensaio «Kant e os limites do antropocentrismo
étiojurídico», pp. 169 e segs.

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A perspectiva estética e a teleológica em face da natureza, de resto
afins entre si, não só corrigem e educam a visão meramente técnico­
‑científica e económico­‑utilitarista da natureza, como podem tam‑
bém temperar as formas do fundamentalismo ético­‑jurídico, e não
só e antes de mais aquele que por vezes se atribui a Kant, como
também e porventura ainda mais o de alguns proponentes das
chamadas éticas ambientais e éticas da natureza e o de alguns fer‑
vorosos advogados dos direitos da natureza.
Se há na filosofia kantiana um domínio onde a natureza é reco‑
nhecida e, por assim dizer, restabelecida na sua dignidade e autono‑
mia e reconhecida até como objecto de respeito, onde inclusivamen‑
te ela própria é pensada não já apenas como um meio para qualquer
fim, mas também ela mesma como um fim e como um vasto sistema
de fins, esse é o domínio da vivência estética e da visão teleológica.
Onde melhor se revela a dignidade, a sublimidade e até a transcen‑
dência da natureza é na vivência estética do belo e do sublime. Me‑
diante estas duas vivências, redescobre o homem a sua mais ade‑
quada e, por assim dizer, também a mais originária atitude em
relação com a natureza, a qual se traduz ora numa grata «contem‑
plação desinteressada», ora numa «espécie de respeito» por ela.
Para além da relação jurídica e ética, para além da lógica da domi‑
nação ou do confronto, acede o homem, na vivência estética, a uma
nova e qualificada relação com a natureza muito diferente daquela
que se lhe abria pela ciência ou pela moral. A lógica do interesse é
aqui superada pela lógica do jogo livre ou espontâneo, a lógica da
obrigação pelo gracioso favor, pelo amor (ou interesse) desinteres‑
sado. O belo, dizia­‑nos Kant, prepara­‑nos para amar a natureza de
um modo desinteressado e o sublime para a estimar altamente, mes‑
mo contra o nosso interesse. Na vivência do sublime, a natureza,
seja pela sua incomensurável grandeza seja pelo seu ilimitado po‑
der, subjuga­‑nos e domina­‑nos absolutamente, pondo em evidência
a nossa insignificância e nulidade do ponto de vista físico e furtando­
‑se não só às nossas armadilhas de apreensão representacional e
cognoscitiva, mas também a todas as nossas técnicas de manipula‑
ção. Oferecendo­‑se na sua irrecusável presença, que é, ao mesmo
tempo, enquanto tal, irrepresentável, a natureza insinua­‑se mesmo
como esquema do infinito e do absoluto supra­‑sensível, daquele
mesmo absoluto e infinito relativamente ao qual a crítica da razão
especulativa nos impediu o conhecimento. Pela via estética não nos
é dado um conhecimento objectivo e determinado desse absoluto,
mas bem se pode dizer que ele se legitima assim para o sujeito refle‑
xionante por uma outra via que o mantém melhor na sua trans­

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cendência. Por outro lado, na vivência estética do belo natural, a
natureza oferece­‑se espontaneamente como dádiva de sentido na
prodigalidade das suas formas belas, muito antes e mesmo sem que
o entendimento sobre ela aplique a sua legislação informadora que
lhe dê pertinência cognoscitiva. Também aqui não se alcança um
conhecimento metafísico da natureza, nem se acede à revelação da
sua oculta essência que fora inviabilizada pela via teorética, mas,
como o próprio Kant reconhece, desse modo amplia­‑se o conceito
da natureza e bem se pode dizer, com Luigi Pareyson, que não só a
experiência da sublimidade como também a da beleza da natureza
«nos permitem lançar um olhar revelador, como um golpe de son‑
da, sobre a profundidade metafísica da natureza» 49.
Para traduzir esta nova experiência a que o homem acede na
vivência estética da natureza de nada nos serve a linguagem do do‑
mínio do homem e da sua razão sobre a natureza. É a linguagem da
amabilidade, da gentileza e da cortesia, duma amabilidade, gentile‑
za e cortesia recíprocas, pois ao livre favor que o homem faz de con‑
siderar a natureza como bela ou sublime, corresponde ela com o
espontâneo favor de se lhe apresentar pródiga de formas belas,
como se quisesse sempre nova matéria ao poder humano de apre‑
ciação e de prazer estéticos.
Em suma: não só a consideração teleológica da natureza como
um sistema de sistemas finalizados, como sobretudo a experiência
estética do belo natural e a do sublime da natureza permitem que o
homem aceda a uma relação com a natureza que não é já a da posse,
a do uso instrumental e a do domínio mecânico e muito menos a da
agressão e da violência, e nem sequer apenas a do respeito, mas a da
recíproca dependência e solidariedade, e mesmo a da gentileza, a do
livre favor, a da espontânea gratuidade e doação. Todavia, não é só
a natureza que nesta nova relação é reconhecida na sua dignidade e
transcendência por parte do homem, mas é também o homem que,
deste modo — isto é, admirando e respeitando a natureza e os seus
processos finalizados, sendo gentil e amável para com ela ­—, se sen‑
te ele próprio enobrecido e surpreende em si uma nova e mais origi‑
nária dimensão, como se também ele visse desse modo ampliada a
sua própria humanidade.

49
  Luigi Pareyson, Conversazioni di estetica, Milano, 1966, p. 116.

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FILOSOFIA POLÍTICA

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11

Eurocentrismo e Cosmopolitismo
no pensamento antropológico
e político de Kant

1. Numa página do seu Discurso sobre a Origem e os Fundamen‑


tos da Desigualdade entre os Homens, Jean­‑Jacques Rousseau deixou
exarada a denúncia do etno­‑eurocentrismo dos pensadores euro‑
peus em pleno século universalista das Luzes, nestes termos:

Desde há trezentos ou quatrocentos anos que os ha‑


bitantes da Europa inundam as outras partes do mundo e
publicam sem cessar novas colecções de viagens e de re‑
latos, e eu estou persuadido que nós não conhecemos ou‑
tros homens a não ser apenas os Europeus; parece que os
preconceitos ridículos não se extinguiram mesmo entre
os homens de letras e que cada qual sob o nome pomposo
de estudo do homem apenas faz o estudo do homem do
seu país. Os particulares vão e vêm, mas parece que a
­filosofia não viaja... Não se abre um livro de viagens sem
que se ­encontrem descrições de carácteres e de costumes;
mas espantamo­‑nos ao ver que essas pessoas que tantas
coisas descreveram não disseram senão o que já sabíamos
e não foram capazes de perceber no outro extremo do
mundo senão aquilo que podiam ver sem sair da sua
rua 1.

  J.­‑J. Rousseau, Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi


1

les hommes, Garnier­‑Flammarion, Paris, 1971, pp. 180­‑181. Esta página aponta a


incapacidade de ver o outro enquanto outro (diferente); mede­‑se o outro pelo

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Ao ler esta acusação, poderíamos ser levados a pensar que ela
recai perfeitamente também sobre Kant, o qual inicia a sua activida‑
de de professor universitário no mesmo ano de 1755 em que o filó‑
sofo de Genebra publica o citado discurso e, logo no ano seguinte,
institui na sua Universidade um curso de Geografia Física, que re‑
gerá com regularidade ao longo dos 42 anos do seu magistério e que
complementará, alguns anos depois, com um outro curso de Antro‑
pologia, a que mais tarde chamará «pragmática», uma nova disci‑
plina correspondente ao que hoje entendemos por Antropologia Fí‑
sica, Social e Cultural. Na verdade, é quase sem sair da sua rua (isto
é, da sua cidade natal) que Kant se propõe desenhar não só o mapa
do mundo físico como até o «grande mapa do género humano»
(grosse Karte des menschlichen Geschlechts) 2. É o que, de resto, parece
dizer­‑nos uma curiosa nota ao prefácio da última obra que dará ele
mesmo ainda a publicar, precisamente o volume que recolhe a subs‑
tância dos seus cursos universitários de Antropologia numa ­Perspectiva
Pragmática (1798). Diz a nota:

Uma grande cidade, que é o centro de um reino, na


qual estão sediadas as assembleias nacionais do respectivo
governo, que tem uma universidade (para o cultivo das
­ciências) e além disso um porto para o comércio marítimo,
o qual através dos rios favorece o tráfego para o interior do
país e também para países longínquos com diferentes lín‑
guas e costumes, ­— uma tal cidade, como é Königsberg
junto ao rio Pregel, pode certamente considerar­‑se como
um lugar adequado para o alargamento do conhecimento
tanto dos homens como do mundo, onde este conhecimen‑
to, mesmo sem viajar, pode ser alcançado. 3

Esta nota poderia ler­‑se como sendo apenas uma justificação


retrospectiva que o septuagenário filósofo dava para o seu sedenta‑
rismo, o qual, todavia, não o poupara a juízos sobre lugares e povos
de regiões distantes que não conhecia directamente e cujas opiniões

já sabido ou conhecido, o qual assim fica confirmado (passa­‑se no Império da


Lua tal como aqui na Terra); incapacidade de sair do quadro das categorias e
preconceitos tradicionais.
2
  Von der Einrichtung seiner Vorlesungen, 1765­‑1766, Ak II, 321.
3
  Anthropologie, Ak VII, 120­‑121.

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nessas matérias haviam sido já, por isso mesmo, postas em causa
pelo seu contemporâneo Georg Forster, este sim um homem muito
viajado pelo mundo 4. Penso, porém, que, na sua brevidade, a citada
nota sugere aquilo que constitui uma fecunda tensão que atravessa
todo o pensamento kantiano, sobretudo quando este se exerce em
tópicos de natureza antropológica e de filosofia da história e da po‑
lítica: a tensão entre uma perspectiva situada e uma perspectiva
universal, entre um ponto de vista regional e um ponto de vista
mundial, entre eurocentrismo e cosmopolitismo. Era, de facto, a
partir da sua cidade natal que o filósofo contemplava o «teatro do
mundo» geográfico, antropológico e político. Compensava a falta
de conhecimento directo com a leitura da abundante e muito hete‑
rogénea literatura de viagens do seu século, que lhe proporcionava
a informação empírica que depois ele próprio seleccionava e siste‑
matizava nos seus cursos de Geografia e de Antropologia. Mas so‑
bretudo compensava­‑a com uma interessada atenção a tudo o que
de significativo acontecia no mundo, quer se tratasse de aconteci‑
mentos da história física da Terra com consequências catastróficas
na vida dos homens, como o terramoto de Lisboa de 1 de Novembro
de 1755 (sobre o qual escreveu três ensaios nas semanas que se se‑
guiram à catástrofe) 5, ou de acontecimentos decisivos para a histó‑
ria política da Europa e para a História da Humanidade, como foi a
Revolução Francesa de 1789, acontecimento que seguiu à distância
com o vivo «entusiasmo» de um interessado espectador e no qual
lia um «sinal histórico» que mostrava a inequívoca tendência moral
do género humano em acção na história 6.
Como filósofo, Kant tem a particularidade de ter ligado a razão
e a filosofia à Terra e à Humanidade, e isso não apenas numa expres‑
são abstracta e universal, mas também na sua diversidade e parti­

  Georg Forster acompanhou o capitão Cook na viagem à volta do mundo,


4

de que dá conta na sua obra A Voyage round the World, publicada em Londres em
1777. Na revista Teutsche Merkur de Outubro­‑Novembro de 1786, colocou objec‑
ções à tese kantiana acerca do conceito e origem das raças humanas, publicada
na Berlinische Monatschrift de Novembro de 1785. Kant responde­‑lhe no ensaio
de 1788, Sobre o Uso de Princípios Teleológicos em Filosofia (Ak VIII, 160­‑161).
5
  Von den Ursachen der Erderschütterungen bei Gelegenheit des Unglücks, wel‑
ches die westliche Länder von Europa gegen das Ende des vorigen Jahres betroffen hat
(1756), Ak I, 417­‑472.
6
  Der Streit der Fakultäten, Ak VII, 85­‑86. V. Jean­‑François Lyotard,
L’enthousiasme. La critique kantienne de l’histoire, Éditions Galilée, Paris, 1986.

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cularidade concretas. Para este verdadeiro «geógrafo da razão», a
geografia humana e política funda­‑se sobre a geografia física. E a
própria visão da história humana assenta num substrato geográfico,
tendo não só em conta a dispersão do género humano por toda a
Terra, mas também os condicionamentos de natureza geográfica
que explicam em boa parte as características físicas das diferentes
raças, a diversidade das culturas, dos costumes e modos de vida dos
diferentes povos. As doutrinas filosóficas de Kant ganham assim
uma base de realismo geográfico, antropológico e histórico que falta
a muitas outras filosofias mesmo posteriores.
Por se ter envolvido assim na realidade complexa e contingente da
geografia, da antropologia e da história, a filosofia kantiana tornou­‑se
por certo impura e frágil. Mas é à custa desta impureza e fragilidade
que ela revela também a sua eficácia, não só especulativa como tam‑
bém prática, proporcionando ao seu autor a invenção de soluções viá‑
veis para os problemas da Humanidade. Essa impureza ou promiscui‑
dade é causa de algumas incongruências e dissonâncias que costumam
ser apontadas no discurso kantiano. Não para negar ou ocultar tais in‑
congruências, mas para podermos apreciá­‑las adequadamente, impor‑
ta ter em consideração os vários planos em que o discurso kantiano se
enuncia ­— planos comunicantes, por certo, mas não de todo redutíveis
uns aos outros. Em primeiro lugar, o plano do discurso descritivo (re‑
presentado sobretudo pelos cursos de Geografia e de Antropologia,
pelos vários ensaios sobre as diferentes raças e por inúmeras Reflexões
do seu espólio), baseado na informação empírica disponível, a qual
veiculava com os factos e os dados informativos também erros e mui‑
tos preconceitos comuns na época. Em segundo lugar, o discurso racio‑
nal da filosofia moral e da filosofia do direito, no qual inequivocamente
se afirma a unidade da espécie humana e da Humanidade e do seu
comum destino moral com um carácter de validade universal. Em ter‑
ceiro lugar, aquele a que poderíamos chamar o discurso teleológico,
representado pelos escritos sobre filosofia da história e da política, que
liga os dois anteriores, inscrevendo a diversidade empírica e histórica
do humano no que se poderia chamar uma estratégia global de racio‑
nalidade orgânica da natureza onde se resolveriam por fim as anti­
nomias entre a unidade da espécie humana e a diversidade da sua ex‑
pressão biológica e cultural, entre a particularidade dos povos e a
universalidade da Humanidade, entre a visão regional e a perspectiva
cosmopolita; através da qual se reconciliaria, enfim, o desígnio mani‑
festo e universal da razão prática para os seres racionais humanos com
um suposto «desígnio secreto» da natureza em relação a toda a espécie
humana, a realizar na ordem do tempo e no palco esférico da Terra.

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Do entrelaçamento destes três planos discursivos resultam de
facto algumas dissonâncias no pensamento kantiano. Mas, tal como
numa complexa e densa peça musical barroca, as dissonâncias po‑
dem bem acabar por ser resolvidas numa mais densa harmonia pelo
próprio movimento do pensamento, se este for tido em conta na sua
complexa organicidade, e não isolado e absolutizado em algum dos
seus segmentos.
Feitas estas considerações preliminares, a minha exposição
prosseguirá em dois momentos: 1) a Europa, os Europeus e os ou‑
tros continentes e povos no contexto das reflexões kantianas sobre
Geografia e Antropologia, e 2) a Europa e os Estados europeus no
contexto da filosofia kantiana da história universal da humanidade
numa perspectiva cosmopolita e do programa kantiano de instaura‑
ção de uma nova ordem jurídico­‑política de alcance mundial.

2. Se a Europa é tema de meditação nos escritos kantianos


é­‑o, antes de mais e sobretudo, enquanto realidade geográfica e
histórico­‑política, dividida em Estados ou nações, aos quais é pos‑
sível atribuir algumas características dominantes e que ora sobres‑
saem ou se apagam conforme o protagonismo político que assu‑
mem na história moderna. Por vezes, os Europeus são designados
nos textos kantianos como um colectivo por confronto com os ha‑
bitantes de outros continentes 7. São descritos como actores privile‑
giados no palco da história e da geografia mundiais. É­‑lhes reco‑
nhecida a iniciativa no conhecimento, no comércio, na descoberta
e exploração de outros continentes. São caracterizados pela sua
­capacidade de adaptação a todos os climas e modos de vida. Se‑
gundo algumas declarações, eles parecem mesmo levar vantagem
sobre todos os outros povos como expressão da humanidade. Mas
essa vantagem pode também interpretar­‑se como decorrente ape‑
nas da especial localização geográfica e das condições climáticas
onde se desenvolveram.

7
  Terá sido Francis Bacon em 1623 (De augmentis scientiarum, versão latina
ampliada de The Advancement of Learning, 1605) o primeiro a usar a fórmula de
um colectivo ‘Nos Europäi’ (apud H. Gollwitzer, Europabild und Europagedanke,
München, 1964, p. 39). V. John Halle, The civilization of Europe in the Renaissance,
Fontana Press, London, 1993, chapter i: «The Discover of Europe», pp.  3­‑50:
traça­‑se aí a lenta descoberta feita pelos Europeus do Renascimento e da pri‑
meira Modernidade da sua complexa identidade ‘europeia’, descoberta feita no
confronto com os povos de outros continentes entretanto conhecidos.

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Embora defenda inequivocamente o monogenismo nos seus en‑
saios sobre as diferentes raças humanas e considere estas como outras
tantas expressões igualmente representativas das disposições originá‑
rias contidas numa mesma espécie humana, Kant não resiste a estabe‑
lecer uma hierarquização entre elas, em que a raça branca aparece como
referência e medida de todas as outras, seja pela beleza corporal, seja
pela perfeição alcançada no desempenho das faculdades sensíveis, in‑
telectuais e morais. Seja exemplo esta passagem do Curso de Geografia:

A humanidade atinge a sua mais elevada perfeição na


raça dos brancos. Os indianos amarelos têm já menos talen‑
to. Os negros estão situados muito mais abaixo, e no fundo
encontra­‑se uma parte dos povos americanos. 8

Ou ainda esta:

O habitante da zona temperada, sobretudo na sua par‑


te central, tem um corpo mais belo, é mais trabalhador,
mais jovial, mais moderado nas suas paixões, mais com­
preen­sivo do que qualquer outro género de homem no
mundo. É por isso que estes povos desde sempre educaram
os outros e os dominaram pelas armas. Os Romanos, os
Gregos, os antigos povos nórdicos, Gengis Khan, os Turcos,
Tamerlão, os Europeus após as descobertas de Cristóvão
Colombo espantaram todos os países do sul pelas suas ar‑
tes e pelas suas armas. 9

Os Europeus seriam, portanto, herdeiros desses povos (a que


mais tarde se viria a chamar os Indo­‑Europeus) originários das este‑
pes e dos planaltos da Ásia Central, que daí se expandiram para
Ocidente em sucessivas migrações. Passagens como as que acabo de
citar têm dado azo a que alguns intérpretes falem de um «eurocen‑
trismo», da «cor da razão» e até mesmo de um «racismo implícito»
na filosofia kantiana da história 10. E não faltam decerto passagens

  Geog., Ak IX, 316.


8

  Geog., Ak IX, 317­‑318.


9

10
  V., entre outros, Tsenay Serequeberhan, «Eurocentrism in Philosophy:
The Case of Immanuel Kant», Philosophical Phorum, 27 (1996), 333­‑356; Alex
Sutter, «Kant und die ‘Wilden’: Zum impliziten Rassismus in der kantischen
Geschichtsphilosophie», Prima Philosophia, 2 (1989), 244­‑253; Emmanuel Chuk­

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que podem ser aduzidas nesse sentido. Por exemplo, esta do ensaio
kantiano de 1764, intitulado Observações acerca do Sentimento do Belo
e do Sublime, onde se lê:

Os negros de África não têm por natureza qualquer


sentimento que ultrapasse a infantilidade [das Lappische]...
É tão grande a diferença entre estes dois géneros de ho‑
mens — brancos e negros — e parece sê­‑lo ainda maior no
que respeita às faculdades do espírito do que o são as dife‑
renças de cor. 11

Kant segue nisto sem dúvida um preconceito generalizado na


época mesmo entre os maiores pensadores iluministas europeus,
que tinha a creditá­‑lo a autoridade de Hume, um filósofo que via a
superioridade da raça branca sobre todas as outras como algo deter‑
minado pela natureza 12. Mas esta ideia negativa, nomeadamente em
relação aos negros, começará a ser contrariada um pouco mais tarde
por ideias de sentido contrário. O Abbé Raynal, na sua Histoire phi‑
losophique des deux Indes (1772), escreve já que

os negros são limitados porque a escravatura destrói todos


os recursos da alma; eles são maus, mas não o bastante com
os que os escravizam. 13

wudi Eze, «The Color of Reason: The Idea of ‘Race’ in Kant’s Anthropology»,
in Katherine Faull (ed.), Anthropology and the German Enlightenment, Bucknell
University Press, Lewisburg, 1994, pp.  217­‑218; Annette Karkhaus, «Kants
Konstruktion des Begriffs der Rasse und seine Hierarchisierung der Rassen»,
Biologisches Zentralblatt, 113 (1994), 197­‑203, e Ricardo Ribeiro Terra, «Les
observations de Kant sur les races affectent-elles l’universalisme de sa
philosophie?», in: L. Ribeiro dos Santos, U. R. Azevedo Marques, M. Sgarbi,
G. Piaia, R. Pozzo (orgs.), «Was ist der Mensch? Que é o Homem? — Antropologia,
Estética e Teleologia em Kant», Lisboa, 2010, pp. 139-150.
11
  Beobachtungen, Ak II, 253.
12
  David Hume, «Of national Character», 1.a ed., 1748, integrado depois
nos Essays Moral and Political (London, 1753­‑1754). Já em relação aos selvagens
norte­‑americanos, Kant considera­‑os em certos aspectos como superiores nos
costumes aos Europeus, por exemplo, no papel social dado às mulheres.
13
  Livre XI, 24. Pela mesma altura (1771), Sébastien Mercier publica o seu
romance de antecipação filosófica — L’An 2240 — no qual o herói, uma espé‑
cie de Spartacus negro, vinga todos os crimes que os colonizadores europeus
(franceses, ingleses, espanhóis, holandeses, portugueses) haviam infligido aos
africanos e americanos.

413

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Kant nunca chegará a dizer tanto. Mas o seu juízo em rela‑
ção a África e aos seus habitantes encontra­‑se porventura me‑
lhor exposto numa passagem do Curso de Geografia, nestes ter‑
mos:

A razão pela qual não se conhece melhor o interior de


África deve­‑se antes a nós Europeus do que aos Africanos,
pois o tráfico de Negros tornou­‑nos assustadores. A costa
africana é sem dúvida frequentada pelos Europeus, mas
as suas expedições são aí muito violentas, pois eles depor‑
tam cada ano entre sessenta e oitenta mil Negros para a
América. 14

Todavia, em muitos outros textos, o filósofo declara perempto‑


riamente que toda a espécie humana provém de um mesmo tronco
(Stamm) e que, por isso, «a classe [Klasse] dos brancos não se distin‑
gue da dos negros como uma espécie [Art] particular do género hu‑
mano [Menschengattung] e não há espécies diferentes de homens» 15.
E, de resto, a hierarquização kantiana das raças, se a lermos no con‑
texto em que é proposta, decorre de factores contingentes e circuns‑
tanciais e não inteiramente de factores constitutivos. Ela depende
nomeadamente da base geográfica, o que leva o geo­filósofo a afir‑
mar que se uma raça for transplantada do seu lugar de origem para
uma outra região e clima, com o tempo, acabará por ver alteradas as
suas características, não apenas físicas, mas também morais e inte‑
lectuais 16.
Em suma, as opiniões de Kant acerca das raças humanas e da
sua hierarquização parecem ter uma intenção meramente descriti‑
va, distanciando­‑se de qualquer propósito militante ou implicita‑
mente racista que visasse nomeadamente legitimar a escravatura, a
opressão ou a exploração colonial. E apesar da relativa dissonância
que algumas dessas opiniões introduzem no sistema, elas não reve‑
lam um Kant menos universalista. Como recentemente escrevia o

  Ak XI, 229.
14

  Bestimmung des Begriffs einer Menschenrace (1785), Ak VIII, 99­‑100.


15

16
  Geog., Ak IX, 316. Os ensaios kantianos sobre as diversas raças hu­manas
e sobre o conceito de raça foram publicados na Antologia orga­nizada  por
Manuela Ribeiro Sanches e Adriana Veríssimo Serrão, A Invenção do «Homem».
Raça, Cultura e História na Alemanha do Séc. XVIII, Centro de Filosofia da
Universidade de Lisboa, Lisboa, 2002, pp. 103­‑130.

414

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autor de uma obra dedicada ao pensamento kantiano sobre Antro‑
pologia, tais opiniões

mostram apenas a tensão dum pensamento que faz da his‑


tória um processo de civilização universal, mas que se arti‑
cula de facto em torno de um centro de gravidade, que é ao
mesmo tempo geográfico e espiritual. Esse centro é a Euro‑
pa, povoada por homens brancos. 17

Constituía, aliás, um exercício corrente na época, cultivado por


pensadores como Montesquieu, D’Alembert, Voltaire e David
Hume, comparar os Europeus entre si e também com outros povos,
tendo em conta o seu «carácter nacional» (Nationalcharakter). Kant
também pratica esse género de comparações caracteriológicas, no já
citado ensaio de 1764 sobre o sentimento do belo e do sublime, em‑
bora expressamente relativize o valor objectivo de tais observações.
Na melhor das hipóteses, por esse meio capta­‑se um ou outro traço
dominante em certos indivíduos, mas não é legítimo generalizá­‑lo a
todos e ainda menos se pode daí concluir que os habitantes de um
dado país sejam destituídos das qualidades ou traços considerados
típicos de outros. O filósofo reconhece que esses traços «nacionais»
são muito contingentes e variam segundo as épocas, dependentes
que estão das vicissitudes da experiência histórica de cada povo,
das suas tradições, da educação e das formas de governo. E afirma
expressamente que «em cada povo existem características de toda a
espécie dignas de elogio». Como que dizendo que nenhum povo ou
nação esgota as características da humanidade e que esta de algum
modo compensa­‑se de uns pelos outros.
Nas relações históricas dos Europeus com os outros povos,
Kant destaca, por certo, a iniciativa europeia. É aos Europeus que
se deve o espírito inventivo nas ciências e nas artes 18. E é ainda da
acção deles que ele espera que mesmo aqueles povos e civiliza‑
ções que outrora atingiram grande desenvolvimento, mas que pa‑
rece terem parado na história, voltem a entrar na via do progres‑
so. É o caso das grandes nações asiáticas, que reconhece incapazes
de se aperfeiçoarem por si mesmas, necessitando do estímulo e
impulso vindo dos povos europeus. Também a Europa, de resto,

17
  Raphael Lagier, Les races humaines selon Kant, PUF, Paris, 2004, p. 5.
18
  Geog., Ak IX, 230.

415

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terá tido o seu longo período de letargia na época medieval 19. To‑
davia, apesar do juízo geralmente pouco favorável em relação aos
povos asiáticos, encontram­‑se também nos escritos kantianos al‑
gumas reflexões que sugerem como muito verosímil a ideia de
que a Europa é a herdeira histórica de uma antiquíssima sabedo‑
ria e civilização asiática, desenvolvida nas alturas do Tibete e daí
difundida, primeiro para a Índia e depois para o Ocidente pela
«rota da seda». Seja exemplo, entre outros, esta passagem do Cur‑
so de Geografia:

Na Ásia, um conhecimento mais preciso do Tibete se‑


ria dos mais importantes. Dar­‑nos­‑ia a chave de toda a his‑
tória. É o país mais elevado em altitude; sem dúvida foi
habitado antes de todos os outros e poderia ter sido o berço
de todas as culturas e de todas as ciências. A sabedoria dos
indianos provém certamente do Tibete, da mesma maneira
que todas as nossas artes, como a agricultura, os números,
o jogo de dados, etc., parecem provir do Indostão. Pensa­‑se
que Abraão terá vivido nas fronteiras do Indostão. Um tal
lugar, origem das artes e das ciências e, eu diria mesmo, da
humanidade, merece bem o esforço de um estudo cuida­
doso. 20

Tal como o de outros pensadores seus contemporâneos também


o discurso kantiano sobre os Europeus, sobretudo quando se repor‑
ta à relação destes com os povos de outros continentes, é construído
sob o modo das oposições: Europa / resto do mundo; europeu / não
europeu; nosso continente / outros continentes, Ocidente / Oriente.
Oposições estas que se explicitam noutras, como: civilizado / selva‑
gem; branco / negro; nós / outros; cristãos / pagãos; habitantes do
hemisfério norte / habitantes do hemisfério sul. Tais oposições não

  Beobachtungen, Ak II, 109­‑110.


19

  Geog., Ak IX, 228; e também Zum ewigen Frieden, Ak VIII, 359­‑360. Kant
20

tem a este propósito uma opinião que é inversa da de Leibniz, o qual, nos
§§ 140­‑143 da parte ii dos Essais de Théodicée, atribuía antes a uma antiquíssi‑
ma colonização celta ou germânica de todo o Mediterrâneo e de grande parte
da Ásia as flagrantes analogias que, a partir de fontes latinas antigas (Tácito,
Lucano) e também coetâneas (Otto Sperling), advertia, nomeadamente entre
os nomes dos deuses e heróis dos povos celtas, germânicos, latinos, gregos,
egípcios e asiáticos.

416

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indicam necessariamente a preferência por um dos termos. Mas in‑
dicam sem dúvida a maior ou menor determinação da informação 21.
Ao contrário dos outros continentes, na altura ainda muito mal
­conhecidos ­— desde a simples geografia aos povos que os habita‑
vam —, a Europa era já uma terra explorata. E se a proximidade favo‑
rece o conhecimento, a distância dificulta­‑o. A descrição dos outros
continentes e dos seus habitantes e as considerações que sobre estes
se emitem estão assim irremediavelmente comprometidas pelas de‑
ficiências de informações a seu respeito. Kant regista o quase com‑
pleto desconhecimento que se tem, por exemplo, da África interior
e dos costumes dos seus habitantes, devido ao retraimento ­destes
frente aos Europeus que se tornaram temidos e odiados pelo inten‑
sivo tráfico de escravos praticado com os nativos desse continente,
a partir do século xvi 22.
Numa época em que o saber antropológico não só se entregava
afanosamente à procura de novas observações e informações empí‑
ricas, mas se ocupava também da procura dos seus fundamentos
teóricos, em que o seu discurso se encontrava profundamente
­dividido entre dois paradigmas antitéticos — o do primitivismo,
que ­tomava por critério de humanidade o «bom selvagem», e o do
­progressismo, que tomava como medida do humano o homem
­civilizado europeu ­—, a descrição dos povos não europeus era fre‑
quentemente feita de projecção neles de preconceitos, alguns bem
­antigos, mas quase sempre resultantes do desconhecimento, da de‑
ficiente informação, ou da incapacidade de informar por deficiência
do observador. Tanto se peca pela pretensão de forjar uma ideia de
humanidade universal sem se conhecer ainda verdadeiramente
toda a diversidade do humano, como, por outro lado, se cai na ten‑
dência para reconhecer no modelo europeu a forma mais plena de
humanidade e nos outros povos apenas formas de humanidade in‑
ferior. O discurso antropológico das Luzes não era, aliás, meramen‑
te um discurso teórico, mas servia muitas vezes e justificava até in‑
teresses económicos e políticos de exploração, de colonização, de
escravização.

21
  Eugenio Garin, «Le civiltà extraeuropee (in particolare l’Oriente e l’Ame‑
rica) nella cultura dell’Europa moderna: miti, influenze, problemi» (1971), in
idem, Rinascite e rivoluzioni. Movimenti culturali dal XIV al XVIII secolo, Bari, 1975,
pp. 327­‑362 (com o título: «Alla scoperta del ‘diverso’: i selvaggi americani e i
saggi cinesi»).
22
  Geog., Ak IX, 229.

417

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Leitor de Rousseau, de quem confessa ter aprendido o sentido
da humanidade, Kant não segue, porém, o «cidadão de Genebra»
na ideia do «bom selvagem» e na preferência por um suposto esta‑
do de natureza relativamente ao estado de civilização. Não acolhe
a tese da bondade natural do homem, nem vê essa bondade exibi‑
da ­naqueles povos em que alguns dos seus contemporâneos acredi­
tavam encontrar o homem natural ainda não pervertido pela civi‑
lização 23. A verdadeira humanidade não está, segundo ele, na na‑
tureza, mas sim no que o homem faz de si para além da natureza,
mediante a liberdade e a razão. Mas também não canoniza o esta‑
do pretensamente civilizado dos povos europeus, onde os vícios e
a perversidade se servem generosamente sob a aparência de virtu‑
des. Há uma selvajaria europeia, que Kant não deixa de atingir
com as suas críticas e a sua ironia. Refiro­‑me, em especial, àquela
que as nações europeias praticam no modo de se relacionarem com
os povos por eles colonizados, sacrificando o mais elementar direi‑
to das gentes aos interesses do lucro comercial. Em vez de relações
de hospitalidade entre humanos, o que os Europeus estabeleceram
foi a inimizade, baseada na mais violenta opressão, na brutal espo‑
liação e injusta conquista da propriedade alheia. Kant constata que
a chegada dos Europeus ao Novo Mundo representou uma pro‑
gressiva diminuição das populações nativas 24. E perscrutando nos
factos do presente os sinais que indicam o que será a história futu‑
ra — uma faculdade de profetismo laico que reconhece aos filóso‑
fos 25 —, Kant vê já anunciar­‑se a falência e o fim do sistema moder‑
no de exploração colonial: as potências europeias não conseguirão
manter por muito mais tempo o regime de escravidão, de opressão
e exploração, pois que, segundo diz, cresce cada dia a consciência
de que «a violação do direito num lugar da Terra se faz sentir em
todos os outros» 26. Como os factos sobejamente o demonstraram,
esta profecia cumprir­‑se­‑ia ao longo de todo o século  xix e na pri‑
meira metade do século xx.

23
  V. Giuseppe Cocchiara, Il mito del buon selvaggio. Introduzione alla storia
delle teorie etnologiche, Messina, 1948; Sergio Landucci, I filosofi e i selvaggi
(1580­‑1780), Bari, 1972; Giuliano Gliozzi, Adamo e il Nuovo Mondo. La nascita
dell’antropologia come ideologia coloniale: dalle genealogie bibliche alle teorie razziali
(1500­‑1700), La Nuova Italia, Firenze, 1977.
24
  Geog., Ak IX, 434.
25
  O Conflito das Faculdades, trad. portuguesa, Edições 70, Lisboa, pp. 104­‑106.
26
  Zum ewigen Frieden, Ak VIII, 360.

418

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Esta visão crítica dos Europeus na sua relação com os outros
povos encontra­‑se compendiada numa página do ensaio de 1795,
nestes termos:

Se olharmos para a conduta inospitaleira dos Estados


civilizados da nossa região do mundo, sobretudo dos co‑
merciantes, causa espanto a injustiça que eles revelam na
sua relação com os países e povos estrangeiros (o que para
eles se identifica com a conquista dos mesmos). A América,
os países negros, as ilhas das especiarias, o Cabo, etc., eram
para eles, na sua descoberta, países que não pertenciam a
ninguém, pois os habitantes nada contavam para eles. Nas
Índias Orientais (Indostão), introduziram tropas estrangei‑
ras sob o pretexto de visarem apenas estabelecimentos co‑
merciais, mas com as tropas introduziram a opressão dos
nativos, a instigação dos seus diversos Estados para guer‑
ras cada vez mais amplas, a fome, a rebelião, a perfídia e a
ladainha de todos os males que afligem o género humano...
E o pior de tudo (ou antes, do ponto de vista de um juiz
moral, o melhor) é que... todas essas sociedades comerciais
se encontram à beira da eminente ruína, as ilhas do açúcar,
sede da escravidão mais violenta e deliberada, não ofere‑
cem já nenhum autêntico benefício, servindo apenas direc‑
tamente um propósito não muito recomendável, que é o
recrutamento dos marinheiros para as frotas de guerra, por
conseguinte, também para as guerras na Europa; e tudo
isto é feito por potências que querem realizar muitas obras
por religiosidade e que pretendem ser consideradas como
as preferidas do ponto de vista da sua ortodoxia religiosa,
enquanto bebem a injustiça como se fosse água. 27

É com um tom irónico, que faz lembrar o célebre ensaio de


Montaigne sobre os canibais, que Kant remata o seu diagnóstico,
dizendo que

a diferença que existe entre os selvagens europeus e os ame‑


ricanos consiste essencialmente nisto: que muitas tribos
americanas foram totalmente comidas pelos seus inimigos,

27
  Ibidem, 359.

419

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ao passo que os europeus sabem tirar melhor proveito da‑
queles que vencem, do que comendo­‑os; em vez disso, au‑
mentam o número dos seus súbditos, fazendo deles instru‑
mentos para as suas guerras cada vez mais vastas. 28

Ninguém duvida de que é o discurso da validade universal dos


princípios ético­‑jurídicos e da unidade do género humano e do seu
comum destino histórico aquele que melhor traduz o genuíno pen‑
samento de Kant. Mas é como se o filósofo só fosse capaz de pensar
a unidade a partir da diversidade, e isso tanto na sua doutrina das
raças humanas, como na dos caracteres nacionais dos povos. Se em
cada rosto humano há uma certa originalidade que contribui para a
manifestação da espécie, com muito mais razão se pode dizer que a
variedade das raças e da culturas humanas é expressão da originá‑
ria riqueza da humanidade. Daqui se infere que nenhuma raça cum‑
pre por si só a humanidade, ou pode considerar­‑se como sua exclu‑
siva representante, ou mesmo, ao limite, como a sua mais perfeita
representante, uma vez que a natureza ainda está em movimento e
em trabalho no desenvolvimento de cada uma das raças e até dos
indivíduos. E o que se diz das raças deve dizer­‑se também dos po‑
vos e das nações. As propriedades que sobressaem neste ou naquele
povo são disposições originárias da humanidade, que em todos
existem, muito embora, por razões geográficas, históricas ou
político­‑culturais, possam estar subdesenvolvidas ou mesmo não
ainda desenvolvidas em alguns. É isto que faz a diferença entre os
povos, mas esta diferença não é estável e sim dinâmica, e estimula
as relações entre eles. A diferença de raças, de povos e nações, de
línguas, de religiões, de costumes, de características nacionais ou
culturais e até mesmo o antagonismo entre os povos, é um poderoso
estímulo que a natureza usa para promover na humanidade o mais
completo desenvolvimento de todas as suas potencialidades. Como
se lê numa passagem da Antropologia:

A natureza depositou no género humano o gérmen da


discórdia e quis que a sua própria razão produzisse a partir
dele a concórdia ou, pelo menos, a constante aproximação
a ela; a concórdia é, na ideia, o fim, mas aquela (a discórdia)
é, de facto, no plano da natureza, o meio de que se serve

28
  Ibidem, 354­‑355.

420

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uma sabedoria superior, para nós imperscrutável, a qual
leva a cabo o aperfeiçoamento do homem mediante uma
cultura que progride, ainda que à custa de muito sacrifício
das alegrias da vida. 29

3. Kant tem uma ideia muito própria do que deve ser a espécie
humana no seu pleno desenvolvimento, não apenas no que respeita
às suas faculdades físicas e intelectuais, mas também no que se refere
às faculdades morais. E a sua concepção do progresso da espécie
­humana (civilizacional e moral) não lhe permite uma perspectiva
completamente neutra na apreciação do estado em que de facto se
encontram os povos, como se estes fossem incomensuráveis entre si.
Precisamente porque fazem parte de uma mesma humanidade e por‑
que realizam, diferenciadamente embora, as disposições naturais
nela originariamente contidas é que eles se encontram ou podem en‑
contrar de facto em diferentes níveis do respectivo desenvolvimento.
Neste confronto global, e apesar de todos os aspectos negativos já
assinalados, os Europeus pareciam estar um pouco mais avançados
no que respeita a algumas tarefas, embora muito longe ainda de ­terem
dado passos significativos noutras bem mais decisivas. Para Kant,
com efeito, o nível de perfeição da humanidade não se mede pelo
grau de desenvolvimento da sua civilização material e técnica e nem
sequer pelo nível do seu desenvolvimento científico. Mede­‑se pela
perfeição moral e esta objectiva­‑se historicamente nas instituições ju‑
rídicas e nas formas políticas que promovem o direito dos homens e
o reconhecimento da sua dignidade e liberdade. E é a este propósito
que Kant deposita esperanças nos povos europeus, como sendo aque‑
les a partir dos quais o direito dos homens poderá vir a ser por fim
respeitado em toda a Terra. Mas, para desempenharem tão importan‑
te papel histórico e civilizacional, terão eles mesmos que organizar as
suas relações como indivíduos e como Estados segundo os princípios
do direito. É isso o que nos diz esta reflexão do espólio kantiano:

Devemos procurar no Ocidente o contínuo progresso do


género humano para a perfeição e a partir daí a sua extensão
sobre toda a Terra. Mas estamos ainda muito longe da reali‑
zação da nossa destinação. Metade do globo ter­restre foi des‑
coberta apenas há duzentos anos... O género humano há­‑de

29
  Anthropologie, Ak VII, 322.

421

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cumprir finalmente de um modo perfeito a sua destinação.
Mas esta só é possível mediante a perfeição da constituição
civil e, por isso, mediante a constituição estatal, i. e., median‑
te a constituição do direito natural e do direito das gentes. 30

Na mesma linha vai a ideia que é proposta na proposição oitava


do ensaio «Ideia de uma história universal com um propósito cos‑
mopolita» (1784):

Pode considerar­‑se a história humana no seu conjunto


como a execução de um plano secreto da natureza, com o
fim de levar a cabo uma constituição estatal interiormente
perfeita e, com este fim, também perfeita exteriormente,
como a única situação na qual a natureza pode desenvolver
todas as disposições que existem na Humanidade. 31

O § 83 da Crítica do Juízo (1790) confirma esta inscrição da filo‑


sofia kantiana do direito e da política numa visão teleológica da na‑
tureza: no cumprimento do fim a que a natureza destina a espécie
humana na sua existência terrena e histórica. O secreto desígnio da
natureza em relação à espécie humana e o manifesto imperativo da
razão moral em relação à humanidade consumam­‑se assim, segun‑
do o filósofo, na realização da cultura, a qual, na sua forma superior,
se exprime na objectivação de uma ordem jurídica e política de que
constam três momentos organicamente interligados:

1) A instituição da sociedade civil segundo princípios do


direito e da liberdade sob leis comuns, o que segundo
Kant só pode ser garantido por uma constituição e regi‑
me republicanos;
2) A instituição de uma ordem jurídica e política entre os
vários Estados, a qual impeça o risco permanente de mú‑
tua destruição em que se encontram — o que deve condu‑
zir a um novo direito das gentes ou dos povos de ­natureza
federativa, segundo o qual os Estados passam a integrar­
‑se em corpos jurídico­‑políticos mais vastos no âmbito
dos quais exercem a sua soberania ­compartilhada;

30
  Ak XV, 789.
31
  Ak VIII, 27.

422

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3) A instauração de uma ordem jurídica cosmopolita, se‑
gundo a qual todos os homens são considerados como
cidadãos da Terra e do Mundo, independentemente do
Estado a que pertençam.

A substância da tese kantiana, vista pelo ângulo do problema


da paz na Europa e no mundo, expõe­‑se então deste modo: a paz
duradoura depende da implementação progressiva e orgânica das
três formas do direito público dos homens: do ius civitatis, do ius
gentium e do ius cosmopoliticum.
Uma e outra vez o filósofo insiste no carácter progressivo de
realização do seu projecto de paz: ele constitui, por certo um impe‑
rativo da razão, mas a realizar na paciência mediadora dos proces‑
sos históricos e institucionais; a tomar, pois, não como um princípio
constitutivo, que instituísse a paz de uma vez por todas, mas como
uma ideia reguladora, que, em cada momento, leva os homens a
descobrir as soluções pertinentes para a sua melhor concretização.
E como o que é realizável tem de começar alguma vez e por algum
lado, o filósofo vê a concretização do seu projecto a nascer na Euro‑
pa, a partir de um núcleo central, e a crescer gradualmente median‑
te a adesão dos outros Estados da Europa e do mundo. E lê as pri­
mícias desse processo e a prova da sua viabilidade efectiva na
experiência histórico­‑política da França republicana, saída da Revo‑
lução de 1789, como parece depreender­‑se desta passagem do en‑
saio de 1795, Para a Paz Perpétua:

É possível representar a exequibilidade (realidade ob‑


jectiva) desta ideia de Federação, que se deve estender gra‑
dualmente a todos os Estados, conduzindo assim à paz per‑
pétua. Pois se a sorte dispôs que um poderoso e esclarecido
povo se tenha constituído numa República (a qual pela sua
natureza deve tender para a paz perpétua), então esta Re‑
pública está apta a ser um centro da união federativa de
outros Estados, de modo que estes se lhe juntem, para as‑
sim assegurar o estado de liberdade desses Estados, confor‑
me à ideia do direito das gentes, e para se estender sempre
cada vez mais através de outras associações desse tipo. 32

32
  ZeF, Ak VIII, 356. Esta passagem é normalmente interpretada como visan‑
do a França, mas também poderia ser aplicada aos Estados Unidos da América.

423

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Em suma, se a Europa era para Kant um destino geográfico e
histórico, ela era sobretudo uma tarefa ainda não totalmente cum‑
prida de civilização e de cultura. Não era tanto pela sua relevância
no domínio do desenvolvimento científico ou do progresso técnico
das suas artes que Kant via o seu papel na cena mundial. Ela seria
protagonista, se assim o quisesse, na realização do grande desígnio
que tanto a natureza como a razão pareciam indicar para toda a es‑
pécie humana. A Europa faz parte da grande utopia kantiana 33,
como ideia e instituição mediadora e educadora. Mas, tudo somado,
o que a Europa tem a dar ao mundo é a experiência efectiva de um
paradigma político­‑jurídico, o qual parece ser o único capaz de asse‑
gurar a liberdade sob a lei, de garantir o respeito pelos sagrados
direitos e dignidade dos homens e tornar possível a coexistência pa‑
cífica e empreendedora dos povos. Numa das suas Reflexões o filó‑
sofo deixou lavrada a súmula do que para ele significa ser «euro‑
peu», nestes termos:

Chamo europeia uma nação quando ela se rege apenas


por uma coacção conforme à lei, por conseguinte, onde a
restrição da liberdade se faz mediante uma regra universal‑
mente válida. 34

Ser «europeu» designa, por conseguinte, uma qualidade jurí­


dico­‑política, que exclui as formas do despotismo ou da barbárie
anárquica, mesmo quando elas se verificam em terreno geografica‑
mente europeu. E é a esse atributo ou qualidade que se reduz, pois,
o essencial da tarefa educadora que segundo Kant a Europa pode
ter em relação ao mundo. Este evangelho da razão não se difunde

33
  Há de facto uma dimensão utópica no projecto kantiano, o que não sig‑
nifica que ele seja de todo irrealizável. Numa passagem da Antropologia diz­‑se
que «a ideia (da paz perpétua) é em si mesma inalcançável e não se trata de um
princípio constitutivo (que nos leve a esperar uma paz que perdure no meio do
efeito das mais vigorosas acções e reacções dos homens), mas somente de um
princípio regulador para prosseguir diligentemente essa paz como destinação
da espécie humana, não sem a presunção fundada de uma tendência natural
em direcção a ela». Ele mesmo fala de um «quiliasmo» filosófico e o seu plano
aponta, ao limite, para a realização do «reino de Deus» na Terra, não já apenas
numa dimensão político­‑jurídica (Idee, Ak VIII, 27), mas também numa acepção
ético­‑religiosa (Die Religion, Ak VI, 122­‑124).
34
  Refl. 1947, Ak XV, 773.

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pela imposição, nem pelo proselitismo, mas pela força de atracção
do modelo de coexistência, tendo em vista as vantagens reais que
ele oferece aos que a ele aderem. Pode levar tempo, mas os povos
hão­‑de convencer­‑se por fim eles mesmos, seja pela insustenta­
bilidade da sua situação permanente de guerra potencial ou real,
seja porque verificam as vantagens do modelo republicano e da
federação de povos já ensaiado algures, de que só por esse modo
conseguirão sobreviver e prosseguir os seus interesses de modo
sustentável.
A história dos 200 anos que nos separam da morte do filósofo
tem mostrado quanta dificuldade houve, não só no resto do mun‑
do, mas sobretudo e antes de mais na própria Europa, para apren‑
der e praticar esta cartilha mínima. Ninguém conhecia melhor do
que o próprio Kant as dificuldades efectivas do seu programa e as
resistências de natureza antropológica que se opunham à sua con‑
cretização. Ele sabia bem que a condição da espécie humana na
prossecução da sua tarefa histórica é verdadeiramente uma condi‑
ção de Sísifo. Daí o tom de subtil ironia que perpassa o seu ensaio
de 1795, Para a Paz Perpétua. A tarefa da Europa para mundo é a
paz. Mas que estranho paradoxo! Na zona do mundo onde a histó‑
ria — e não só a moderna e a contemporânea — deu conta das
mais longas e destruidoras guerras, aos herdeiros daquela raça de
homens e daqueles povos que ao longo de milénios se afirmaram
pela mútua destruição em guerras sucessivas, desses povos domi‑
nadores e conquistadores, possuídos pela insaciável vontade de
poder e cujos impérios se implantaram sobre as ruínas de outros
impérios que eles mesmos destruíram pela guerra, a tais herdeiros
e a tais homens se confia a exigente pedagogia da paz mundial!
Isso só pode significar que o que Kant quer dizer sob a sua peda‑
gógica ironia é que a tarefa da Europa é, antes de mais, a de tentar
curar­‑se ela mesma e a de tornar­‑se viável, garantindo a coexistên‑
cia pacífica dos seus povos e nações 35.

4. Com Kant atingiu o pensamento universalista das Luzes o


seu ponto mais alto e o seu máximo de coerência orgânica na ideia
de integrar toda a Humanidade, reconhecida já em toda a sua di‑

  V. Viriato Soromenho­‑Marques, «Kant e a paz como tarefa europeia», in


35

idem, História e Política no Pensamento de Kant, Europa­‑América, Mem­‑Martins,


1995, pp. 91­‑106.

425

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versidade, num vasto projecto comum a realizar no decurso da
história, um programa centrado sobretudo na efectivação de uma
tarefa de ordem jurídica e política, considerada como a condição
imprescindível para a realização de todos os outros fins que a Hu‑
manidade pudesse colocar­‑se a si mesma. Mas, ao atingir o máxi‑
mo da sua época, Kant foi, ao mesmo tempo, o seu mais qualifica‑
do intérprete e o seu último protagonista. Com ele morre a época e
o seu mais racional e generoso projecto 36. Por todo o século  xix e
ainda nas primeiras décadas do século  xx, viria a preferir­‑se, ao
investimento na generosa utopia cosmopolita do filósofo de Kö­
nigsberg, a exacerbada exaltação dos nacionalismos e do direito
absoluto à existência das nações, ou dos Estados que as represen‑
tavam. Apesar de alguma recepção de pouca duração que tiveram
as suas ideias políticas por parte dos seus contemporâneos, pode
dizer­‑se que, em geral, Kant foi um homem solitário e incompreen­
dido no seu projecto. Todavia, quando a dura evidência dos factos
tornou inadiável pensar naquela solução que a razão do filósofo já
há muito propusera como a única via possível para assegurar uma
relação de coexistência sustentável entre as nações, foi aos princí‑
pios formulados pelo velho professor de Königsberg que regressa‑
ram, para neles se inspirarem, os arquitectos de uma nova ordem
europeia e mundial saída das duas grandes guerras do século  xx.
Os «14 pontos» do discurso que o Presidente Woodrow Wilson
proferiu a 8 de Janeiro de 1918, no último dos quais propõe a insti‑
tuição de uma Sociedade das Nações, inspiram­‑se inequivocamen‑
te no pensamento político de Kant e, segundo alguns analistas, são
mesmo um decalque e uma adaptação dos principais tópicos do
ensaio kantiano de 1795 sobre a paz perpétua 37. Da mesma forma,
podem reconhecer­‑se os princípios kantianos na base da «Carta

36
  Por certo houve uma recepção dada ao ensaio kantiano e às ideias nele
expostas, tanto na Alemanha como em França, tanto da parte de filósofos como
de homens políticos. Os jovens filósofos que num primeiro momento se entu‑
siasmaram com o projecto kantiano de paz perpétua viriam a revelar­‑se bem
depressa pouco convictos dele (Friedrich von Schlegel, Fichte, Schelling, Joseph
Görres...). V. Thomas Burns, Kant et l’Europe. Étude critique de l’interpretation et
de l’influence de la pensée internationaliste kantienne, Universität des Saarlandes,
1973, pp. 181­‑303.
37
  Karl Vorländer, Kant und der Gedanke des Völkerbundes. Mit einem An‑
hange: Kant und Wilson, Leipzig, 1919.

426

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das Nações Unidas» (1945) 38 e ver­‑se na «Declaração Universal dos
Direitos do Homem» (10 de Dezembro de 1948) já uma efectiva
objectivação, em forma de instrumento jurídico reconhecido e
aceite pelo «consenso dos povos», daquilo que Kant entendia por
«direito cosmopolita» 39. Aquela ideia que Kant via, por certo como
necessária e urgente, mas ao mesmo tempo reconhecia como de
realização longínqua e sempre aproximativa, tornou­‑se um dado
incontornável nos últimos 60 anos da história do mundo, inspiran‑
do muitos dos instrumentos jurídicos que regulam a ordem políti‑
ca internacional e mundial e, nesse sentido, pode dizer­‑se que so‑
mos hoje muito mais seguidores de Kant, nos princípios da sua
filosofia política e jurídica, do que alguma vez o foram os seus con‑
temporâneos e imediatos sucessores.
A situação actual da Europa e do mundo, neste começo do
­século xxi, é por certo muito diferente da que era no tempo de Kant.
Já não se pode dizer hoje, como ainda se podia dizer no final do sé‑
culo xviii, que há partes do mundo mal conhecidas. E desde há mui‑
to que a Europa deixou de ser o local privilegiado onde aquilo a que
se chamou o «Espírito do Mundo» acedeu historicamente à cons­
ciência de si e a partir do qual geria os destinos de toda a Terra.
Entretanto, novos protagonistas assumiram a evidência e o papel de
condutores do Mundo, enquanto já outros, que apenas acabam de
despertar da sua letargia milenar, se perfilam para substituir tam‑
bém esses, a breve trecho. Mas se a situação geopolítica do Mundo
mudou nestes últimos dois séculos que nos separam de Kant, foi
sobretudo no sentido da definitiva internacionalização e mundiali‑
zação de todos os problemas, o que só torna mais pertinentes, e até
mesmo mais incontornáveis, os princípios federalistas e cosmopoli‑
tas do direito e da política formulados pelo filósofo. Não que este
tivesse a pretensão de dar neles as soluções já acabadas para os pro‑
blemas do futuro. Ele sabia bem que apenas tentava captar em su‑

38
  Carl Joachim Friedrich, «Die Ideen der Charta der Vereinten Nationen
und die Friedensphilosophie von Immanuel Kant», in idem, Zur Theorie und
Praxis der Verfassunsgsordnung. Ausgewählte Aufsätse, Heidelberg, 1963, pp. 69­
‑83; Otfried Höffe, «Ausblick: Die Vereinten Nationen im Lichte Kants», Idem
(Hrsg.), Immanuel Kant. Zum ewigen Frieden, Akademie Verlag, Berlin, 1995,
pp. 245­‑272; Cecilia Lynch, «Kant, the Republican Peace, and Moral Guidance
in International Law», in Ethics and International Affairs, 18, 1994, 39­‑58.
39
  Norberto Bobbio, A Era dos Direitos, Editora Campus, Rio de Janeiro,
1992, p. 139.

427

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cessivos esboços uma ideia fecunda, que, se fosse devidamente
compreendida e formulada em instrumentos jurídicos e políticos,
poderia garantir algum futuro à Humanidade. Na que parece ser a
mais prístina e todavia já muito completa exposição do seu plano de
paz perpétua entre as nações — um arrojado, mas exequível, pro‑
grama de arquitectura da ordem jurídico­‑política mundial ­—, profe‑
rida 20 anos antes da redacção do ensaio de 1795 e onde se encontra
já o essencial do que neste último proporá 40, Kant conclui a apresen‑
tação da sua ideia com estas palavras, registadas por Friedländer,
aluno do seu Curso de Antropologia do semestre de Inverno do ano
de 1775-1776:

O filósofo tem de tornar conhecidas as suas ideias so‑


bre este assunto e propô­‑las a outros para serem objecto de
uma apreciação mais pormenorizada. 41

O Professor Kant fez a sua parte. A tarefa prossegue agora do


nosso lado.

40
  «Para que todas as guerras deixem de ser necessárias, deveria surgir
uma união de povos, onde todos os povos, através dos seus deputados, cons‑
tituiriam um universal senado dos povos, que decidiria todos os conflitos dos
povos, e este juízo deveria ser executado através do poder dos povos, pois as‑
sim estariam também os povos submetidos a um forum e a uma coacção civil.
Este senado dos povos seria o mais esclarecido que alguma vez o mundo viu.
É por isso que se deve começar, pois antes que isso se estabeleça, as guerras não
terão fim, o que não pode acontecer, pois a guerra torna cada Estado insegu‑
ro.» Vorlesungen über Anthropologie (Friedländer, Winter­‑Semester 1775­‑1776),
Ak XXV (1997), p. 696.
41
  Ak XXV.1, 696.

428

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12

A Paz como problema filosófico


e a ideia kantiana de Federalismo

Introdução

Falar da ideia kantiana de Federalismo, perante um auditório


de historiadores do Federalismo Europeu, é algo que pode parecer
simultaneamente natural e estranho.
Natural, porque, sem dúvida, a doutrina de Kant sobre o Federa‑
lismo faz parte da arqueologia dessa ideia e tem estado e continua a
estar presente nos debates teóricos e nos projectos concretos relativos
não só à constituição da União Europeia como à construção de uma
ordem mundial baseada em instituições que sejam capazes de garan‑
tir a liberdade dos povos, a coexistência pacífica entre eles e sobretu‑
do a gestão de um planeta que na sua esfericidade se revelou cada vez
mais limitado e os obriga, quer queiram quer não, a terem de entender­
‑se por fim e colaborar em soluções que impeçam o mútuo extermínio
e lhes proporcionem pelo menos uma sobrevivência sustentada. Nes‑
te ponto, o filósofo Immanuel Kant tem mais a dizer do que qualquer
outro grande clássico da ideia federalista, pois, grande cultivador que
era da Geografia, tinha uma muito aguda percepção de que os proble‑
mas políticos e jurídicos estavam intimamente ligados com a geogra‑
fia física (condições climáticas, recursos naturais disponíveis) e eco‑
nómica (comércio mundial) e deveriam, por isso, ser equacionados
no plano de uma gestão global da Terra. O filósofo de Königsberg,
tantas vezes acusado de formalista, possuí na verdade um apurado
sentido de responsabilidade geo­política e indicava já como de todo
incontornável, a breve prazo, a tarefa de uma verdadeira Weltpolitik
ou Weltethik, sentido esse que aquele que foi porventura o mais se‑
dentário de todos os grandes pensadores deixou expresso nesta notá‑

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vel passagem de um seu ensaio de 1795: «a violação do direito num
lugar da Terra é sentida em todos os outros lugares» 1.
Mas, ainda assim, evocar Kant, num colóquio que tem por âm‑
bito o espaço geo­político europeu, pode parecer estranho, porque a
ideia kantiana de «Federação dos Povos» (Völkerbund) não se limita
à Europa, mas tem um carácter e um alcance mundiais; embora por
certo Kant também fale de uma «federação de todos os Estados eu‑
ropeus» e sem dúvida desejasse ver «toda a Europa como um único
Estado federado» (ganz Europa als einen einzigen föderirten Staat) 2,
concebendo a concretização de uma federação mundial de todos os
Estados como sendo possível e devendo começar pelos países euro‑
peus, alargando­‑se daí paulatinamente a todo o espaço da Terra.
Trazer a debate a noção kantiana de Federalismo — noção que
desde que foi proposta e até ao presente não deixou de suscitar reac­
ções, críticas e interpretações divergentes 3 — poderá ter, no ­mínimo,

1
  Immanuel Kant, Zum ewigen Frieden, Kants Werke, Akademie­‑Ausgabe
(reimpr. Walter de Gruyter, Berlin, 1968), VIII, 360 (esta edição será identificada
por Ak, seguido do número do respectivo volume).
2
  Immanuel Kant, Metaphysik der Sitten, Rechtslehre, Ak VI, 350.
3
  Não me ocuparei da recepção e das críticas da concepção kantiana. Sen‑
do a bibliografia sobre o tópico vastíssima, indico aqui apenas alguns títulos:
Z. Batscha / R. Saager, Friedensutopien. Kant, Fichte, Schlegel, Görres, Suhrkamp,
Frankfurt a. M., 1976; M. Buhr / S. Dietzsch (eds.), Immanuel Kant, Zum ewi‑
gen Frieden. Ein philosophische Entwurf. Texte zur Rezeption 1796­‑1800, Reclam,
Leipzig, 1984; R. R. Aramayo/J. Muguerza / C. Roldán (eds.), La Paz y el ideal
cosmopolita de la Ilustración. A propósito del bicentenario de «Hacia la paz perpetua»
de Kant, Tecnos, Madrid, 1996; Ottfried Höffe, Kant’s Cosmopolitan Theory of Law
and ­Peace, Cambridge University Press, Cambridge, 2006 (Königliche Völker. Zu
Kants Kosmopolitischer Rechts — und Friedenstheorie, Suhrkamp, Frankfurt a. M.,
2001); O. Höffe (ed.), Immanuel Kant: Zum ewigen Frieden, Akademie, Berlin, 1995;
Martha C. Nussbaum, «Kant and the Stoic Cosmopolitanism», Journal of political
Philosophy, 5 (1997), pp. 1­‑25; S. Chauvier, Du droit d’être étranger. Essai sur le droit
cosmopolitique kantien, L’Harmattan, Paris, 1996; Georg Cavallar, Pax Kantiana.
Systematisch­‑historische Untersuchung des Entwurfs «Zum ewigen Frieden» (1795),
Wien/Köln/Weimar, 1992; Domenico Losurdo, Immanuel Kant. Freiheit, Recht und
Revolution, Köln, 1987; Jean Ferrari/S. Goyard­‑Fabre (eds.), L’Année 1796. Sur la
Paix perpétuelle. De Leibniz aux héritiers de Kant, Paris, 1998; Pauline Kleingeld,
«Kant’s Cosmopolitanian Law : World Citizenship for a Global Order», Kantian
Review, 2 (1998), pp.  72­‑90; Mathias Lutz­‑Bachmann/ James Bohmann (eds.),
­Frieden durch Recht: Kants Friedensidee und das Problem einer neuen Weltordnung,
Suhrkamp, Frankfurt a. M., 1996; e Giuliano Marini, La filosofia cosmopolitica di
Kant, Laterza, Bari/Roma, 2007. No âmbito da reflexão filosófica expressa em
­português, destaque para a abordagem do tópico, reiterada mas sempre suges‑

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o interesse de proporcionar a ocasião para reconhecer as dificulda‑
des que o Federalismo tem, mesmo se considerado apenas como
uma ideia. Quantas mais não terá quando se quiser ­concretizá­‑lo!
A minha exposição decorre segundo três momentos e é condu‑
zida pelas três questões seguintes:

1.a Como responde a ideia kantiana de Federalismo ao con‑


texto histórico­‑político e ao contexto de reflexão político­
‑jurídica sobre a situação do mundo, que se exprime em
diferentes registos e direcções a partir do ­Renascimento?

Desta nova situação, agora em vias de tornar­‑se cada vez mais


efectivamente mundial e global, fazem parte pelo menos as seguin‑
tes quatro grandes realidades: 1) a pressão do Império Turco sobre a
Europa cristã, sobretudo após a tomada de Constantinopla pelas
tropas turcas em 1453; 2) o achamento pelos Europeus de novas par‑
tes do mundo e o confronto com povos, culturas e formas de huma‑
nidade até ali desconhecidos, o que os obrigaria a reformular cate‑
gorias antropológicas, teológicas e jurídicas e que introduziu novos
tipos de relação entre os povos (o colonialismo e a escravatura in‑
tensiva moderna); 3) a intensificação das relações comerciais num
espaço cada vez mais aberto da economia­‑mundo, e 4) a progressiva
erosão da ideia e da realidade do Império como ficção de uma uni‑
dade religiosa e política do Ocidente cristão, com a consequente
quebra da tradicional autoridade do Papa e do Imperador, e a afir‑
mação — política e também teórica (de onde as noções de «razão de
Estado» e de «soberania»), ad intra e ad extra, dos Estados europeus
particulares e a respectiva luta pela hegemonia no espaço europeu e
também no espaço mundial, o que fez da Europa moderna um tea‑
tro de guerras permanentes.
Tentarei mostrar, nos pontos i e ii do presente ensaio, que a ideia
de Federalismo não é um elemento avulso e peregrino nos escritos
de Kant, mas representa um dos ingredientes concretos da contri‑
buição do filósofo para a solução efectiva dum problema da história
humana que se fez sentir na Modernidade com acrescida urgência e
intensidade: a insustentabilidade da guerra e o imperativo da paz.

tiva, por parte de Viriato Soromenho­‑Marques, de que destaco: Razão e Progresso


na Filosofia de Kant, Edições Colibri, Lisboa, 1998, pp. 493­‑523; História e Política no
Pensamento de Kant, Europa­‑América, Mem Martins, 1994.

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Refundindo a mais fecunda reflexão renascentista e moderna a res‑
peito do direito das gentes, a ideia kantiana de Federalismo respon‑
de ao novo contexto histórico e teórico do Völkerrecht, sobretudo nos
termos em que este havia sido reelaborado por Francisco Vitoria,
Francisco Suárez e Hugo Grócio; ou seja, num sentido que, frente ao
individualismo e atomismo dos Estados modernos e à exacerbação
do princípio da absoluta soberania de cada Estado, restabelecia o
antigo ideal estóico da civitas gentium e restaurava o sentido da ori‑
ginária unidade, não apenas específica, mas também moral, política
e jurídica das comunidades humanas.

2.a Como se inscreve a ideia de Federalismo no contexto da


filosofia kantiana?

Tentarei mostrar, no ponto iii, que não se trata de um pormenor


de pouca monta, ou de mera cedência a um tópico da época. Trata­
‑se sim de uma questão que o filósofo toma muito a peito, que reela‑
bora de modo insistente, e que se encontra no coração do sistema
kantiano: a ideia kantiana de «federação dos povos» liga­‑se a todos
os domínios essenciais em que se exprime e trabalha a filosofia críti‑
ca (a filosofia prática, a antropologia, a filosofia da história e da cul‑
tura, a teleologia, a filosofia do direito). Ela carrega consigo toda a
densidade da filosofia kantiana.

3.a Qual, enfim, o conteúdo — o sentido, a extensão — da


ideia kantiana de Federalismo? E em que medida ela
pode ainda ser fecunda para o debate actual sobre os mo‑
delos de construção não só de uma nova ordem europeia
como também de uma nova ordem internacional viável e
sustentável, fundada em princípios político­‑jurídicos
condizentes com a dignidade dos homens e dos povos?
Os pontos iv e v do presente ensaio pretendem dar um
contributo para a resposta a estas questões.

I.  Da paz dos humanistas à refundação moderna


do direito das gentes: dessacralização
da guerra e secularização da paz

Por mais que se possa sublinhar a novidade da ideia kantiana de


Federalismo, ela deve ser vista no amplo quadro do esforço de refle‑
xão dos filósofos renascentistas e modernos a respeito do direito das

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gentes e da procura duma solução duradoura para o problema da
paz, não só entre os Estados europeus mas também entre estes e o
Império Turco. Compreendemos melhor a solução kantiana e até as
suas eventuais ambiguidades se tivermos em conta o modo como o
problema fora equacionado e resolvido antes dele. Kant herda o pro‑
blema e as soluções, mas também os transforma, submetendo­‑os a um
novo enquadramento especulativo que lhes confere complexidade e
densidade muito peculiares. E a este propósito, há algumas etapas
que devem ser evocadas para melhor se compreender o alcance da
posição kantiana, já que, de algum modo, esta as compendia a todas.

1. Refira­‑se, em primeiro lugar, o irenismo teológico de Nicolau


de Cusa, expresso no opúsculo De pace fidei (1453) e desenvolvido no
contexto da conquista de Constantinopla pelos Turcos 4. Como, tanto
para os povos de um lado como os do outro, a causa invocada para
justificar a guerra era a religião (as diferenças de religião), o cardeal­
‑filósofo idealiza um concílio onde estão representados todos os povos
e religiões e cujos delegados, após a exposição das respectivas posi‑
ções e razões, são levados a reconhecer que, embora expresso sob dife‑
rentes linguagens e rituais, existe um consenso essencial dos povos a
propósito das verdades fundamentais da religião. Por conseguinte, a
religião não poderá mais ser invocada por qualquer deles como justi‑
ficação da guerra e deve antes ela mesma fomentar as relações de con‑
vivência pacífica entre todos os povos: a concórdia religiosa e a aceita‑
ção por todos de uma só fé essencial levam os representantes dos
povos a assinar, «no céu da razão», um tratado de «paz perpétua» 5.

4
  Nicolai de Cusa, De Pace Fidei cum Epistula ad Ioanem de Segobia, Opera Om‑
nia, vol. vii, Felix Meiner, Hamburg, 1959 (trad. portuguesa de João Maria André:
Nicolau de Cusa, A Paz da Fé seguida de Carta a João de Segóvia, Minerva, Coimbra,
2002). Obviamente o irenismo do Cusano tem antecedentes medievais, sendo de
realçar o papel de Raimundo Lulio. V. R. Klibansky, «Die Wirkungsgeschichte
des Dialogs ‘De pace fidei’», Mitteilungen und Forschungsbeiträge der Cusanus­
‑Gesellschaft, 16 (1984), pp. 113­‑125; Maurice de Gandillac, «Die cusanische Frie‑
densbegriff», Zeitschrift für philosophische Forschung, 9 (1955), pp. 186­‑196; idem,
«Les ‘semi­‑utopies’ de Nicolas de Cues», in idem, Genèses de la Modernité, Du Cerf,
Paris, 1992, pp. 441­‑464.
5
  A Paz da Fé, §§ 1 e 68, pp. 21, 81-82. Terá sido a primeira vez que, num con‑
texto de reflexão filosófica, terá sido usada a expressão «paz perpétua». A sintonia
do filósofo de Königsberg com o filósofo de Cusa revela­‑se neste ponto concreto e é
testemunhada por uma nota do escrito Para a Paz Perpétua, onde se diz, a propósito
da diversidade das religiões, que ela constitui uma das fontes naturais do ódio

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Imediatamente e à primeira vista, o que ressalta do opúsculo de
Nicolau de Cusa é o que se poderia chamar uma teologização da
paz. Mas o que esta teologização da paz efectivamente representa é
uma dessacralização da guerra. E é a dessacralização da guerra que,
por sua vez, constitui a condição para que se chegue a uma efectiva
secularização da paz, isto é, para que se chegue a considerar a paz
como um assunto que deve ser garantido e resolvido pela institui‑
ção jurídica e política, nomeadamente, por um aprofundamento do
conceito de direito das gentes.

2. A ideia cusana da paz teológica, alcançada no «céu da ra‑


zão», não deixa de ter eficácia pelo menos especulativa 6. Ela vai ins‑
pirar as reflexões pacifistas de alguns humanistas nas primeiras dé‑
cadas do século seguinte, os quais associaram à inspiração teológica
e evangélica do cardeal­‑filósofo, uma reflexão própria de cariz an‑
tropológico e moral. De facto, o pacifismo humanista, representado
por Erasmo, por Juan Luis Vives e Thomas More, dá continuidade
às ideias irenistas do cardeal­‑filósofo, denunciando a má­‑fé que se
esconde por detrás das razões invocadas para as guerras contra os
infiéis: o que realmente se deseja são as riquezas dos Turcos, mas
apresenta­‑se como desculpa a defesa da religião; o que move à guer‑
ra é o rancor, mas alega­‑se a defesa dos direitos da Igreja. Em vez
dum proselitismo das armas, o humanista de Roterdão propõe o
proselitismo da vida segundo o Evangelho:

Que os Turcos sintam que são convidados para a salva‑


ção, não guerreados por amor da presa. Mostremos­‑lhes
costumes dignos do Evangelho, se faltar a eloquência àque‑

entre os povos, mas que «através do incremento da cultura e da gradual aproxima‑


ção dos homens de uma maior consonância nos princípios leva à convivência na
paz». Prossegue Kant: «Diversidade de religiões: expressão estranha! […] Pode, sem
dúvida, haver diferentes tipos históricos de crença (Glaubensarten), não na religião
mas na história dos meios utilizados para o seu fomento no campo da erudição, e
pode igualmente haver diferentes livros de religião (Zendavesta, Veda, Corão, etc.);
mas há apenas uma única religião para todos os homens e para todos os tempos.
Aqueles, portanto, nada mais contêm do que o veículo da religião, que é contingen‑
te e pode ser diverso segundo a diversidade dos tempos e lugares.» (Zum ewigen
Frieden, Ak VIII, 367; trad. portuguesa: A Paz Perpétua e Outros Opúsculos, Edições
70, Lisboa, p. 148.)
6
  V. Kurt von Raumer, Ewiger Friede. Friedensrufe und Friedenspläne seit der
Renaissance, Karl Alber, Freiburg/München, 1953.

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les de nós que disputarem com eles: o próprio teor da nossa
vida possuirá uma grande eloquência. Mostremos uma
profissão de fé simples e verdadeiramente apostólica, e não
tão sobrecarregada com invenções humanas que se adita‑
ram… Será mais fácil o acordo acerca de poucas coisas, e a
concórdia firmar­‑se­‑á mais facilmente se, acerca da maior
parte dos pontos, cada um tiver liberdade de interpretação
— contanto que se ache ausente o espírito de contenda. 7

Erasmo considera sobremaneira abomináveis as guerras entre


nações cristãs. A guerra é contrária à natureza do homem, criado
por Deus não para a guerra mas para a amizade, não para a carni‑
ficina, mas para a salvação, não para a injustiça mas para a bene‑
volência. Na Querela Pacis, o humanista glosa o clássico tópico do
«homo homini lupus», pondo em evidência não só a contradição en‑
tre a natureza dos homens e a realidade da guerra, mas ainda o
contraste entre o modo como o homem se relaciona com os da sua
espécie e o modo como o fazem os animais, como se o homem ti‑
vesse uma especial capacidade de auto­‑destruição da sua própria
espécie não conhecida em nenhuma outra espécie de animais. Diz
Erasmo:

A ferocidade dos leões não contende com os da mesma


espécie. O javali não atassalha os outros javalis com as pre‑
sas assassinas, os linces vivem em paz com os linces, a ser‑
pente não se assanha contra a serpente e, quanto aos lobos,
até se tornou proverbial a harmonia que reina entre eles.
[…] De todos os seres, são os homens aqueles a quem mais
se ajustava a concórdia e que de longe mais dela necessi‑
tam, porém, de todos os seres, os homens são os únicos que
nem a natureza — tão poderosa e eficaz sobre tudo o mais
— põe de acordo, nem a instrução une, nem associam as
inúmeras vantagens futuras resultantes de um entendi‑
mento recíproco, nem, enfim, a consciência e a experiência
de tão grande número de males reconduz ao amor de uns
pelos outros. 8

  Erasmo de Roterdão, A Guerra e a Queixa da Paz, introd., trad. e notas de


7

A. Guimarães Pinto, Edições 70, Lisboa, 1999, pp. 71­‑73.


8
  Ibidem, pp. 86 e 107.

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Em suma, a guerra é condenada pela natureza do homem, pela
razão e pelo próprio Evangelho. Vestindo a pele do filósofo moral,
Erasmo escalpeliza as verdadeiras causas da guerra — as paixões
desenfreadas dos homens e dos príncipes — e, como pedagogo, in‑
dica os remédios que a podem prevenir: o cuidado na educação dos
príncipes, visando dar­‑lhes o sentido da prudência e convencê­‑los
de que são apenas homens que governam outros homens, seres li‑
vres que governam seres livres.
Na mesma linha vai o humanista Juan Luis Vives, que ao pro‑
blema da guerra dedica várias obras: De Europae dissidiis et bello tur‑
cico (1526), De pacificatione (1529), De concordia et discórdia in humano
genere (1529). Nesta última, dirige um veemente apelo a Carlos V
— no contexto do saque de Roma do ano de 1527, levado a cabo por
tropas imperiais fora de qualquer controlo — para que impeça a
desintegração da Europa, da Cristandade, da própria sociedade hu‑
mana. Tal como Erasmo, o humanista valenciano reconhece na na‑
tureza do homem uma estranha capacidade de auto­destruição da
própria espécie, que nem entre os mais ferozes animais se verifica.
Mas o homem tem também todas as faculdades que lhe permitem
construir a paz e instituir em sólidos fundamentos a comunidade
humana: em particular, a linguagem e a razão 9.
Também Thomas More propusera na sua Utopia (1516) uma so‑
ciedade organizada pela razão, segundo os princípios da República
de Platão, embora associando­‑lhe ingredientes estóicos, epicuristas
e cristãos. Segundo escreve,

Os utopianos desprezam a guerra como uma activida‑


de própria apenas para bestas, embora ela seja praticada
mais pelo homem do que por qualquer outro animal. Dife‑
rentemente de quase todos os povos do mundo, eles pen‑
sam que nada há mais vergonhoso do que a glória conse‑
guida na guerra. 10

3. Todas estas considerações irenistas e pacifistas, de matriz


teológica, filosófica e humanista, não seriam eficazes se não se tra‑

9
  V. Juan Luis Vives, Obras Completas, trad. de Lorenzo Riber, Aguilar, Ma‑
drid, 1948, vol. ii, pp. 81­‑84.
10
  Thomas More, Utopia, ed. de G. M. Logan e R. M. Adams, Cambridge
University Press, Cambridge, 1989, p. 87.

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duzissem numa nova ordem jurídica de âmbito internacional. Mas
são sobretudo os aspectos da nova situação do mundo, acima referi‑
dos, que vão obrigar a repensar as categorias da política e do direito
e a desencadear um processo que pode designar­‑se como de refun‑
dação do direito das gentes 11. Esta tarefa é levada a cabo sobretudo
por alguns teólogos e filósofos da Escolástica renascentista ibérica,
designadamente por Francisco Vitoria e Francisco Suárez, e prosse‑
guida depois pelo teólogo, jurista e filósofo holandês Hugo Grócio.
As considerações do pacifismo dos humanistas, que fundiam o espí‑
rito evangélico com os princípios do estoicismo — a voz de Deus, a
voz da natureza e a voz da razão —, vão servir de base a essa nova
forma jurídico­‑política, que visa contrabalançar os efeitos de uma
outra criação também renascentista e proto­moderna, organizada em
torno dos conceitos de «Estado», «razão de Estado» e «Sobe­rania».
Indicarei aqui apenas alguns dos aspectos mais significativos
da transformação do conceito de direito das gentes, já que, como
veremos, a proposta kantiana vai consistir em grande medida num
retomar e aprofundar a ideia destes pensadores do tardio Renasci‑
mento e da primeira Modernidade.
No que releva para o tema que nos ocupa, a contribuição de
Francisco Vitoria traduz­‑se na proposição de três teses nucleares da
sua filosofia da política. Em primeiro lugar, o primado do todo so‑
bre as partes, do que decorre que o bem comum universal de todo o
universo tem precedência sobre o bem de cada Estado particular.
No caso de o bem comum de todo o universo não coincidir com o
bem de cada Estado, é aquele e não este que deve ser prosseguido.
Escreve Vitoria:

Sendo uma república parte de todo o orbe, e principal‑


mente uma província cristã parte de toda a república, se a
guerra fosse útil a uma província e mesmo a uma república
com prejuízo do orbe ou da cristandade, penso que por isso
mesmo ela seria injusta. 12

  V. a exposição deste processo em António Truyol y Serra, Genèse et fon‑


11

dements spirituels de l’idée d’une communauté universelle, De la civitas maxima stoï‑


cienne à la civitas gentium moderne (separata da Revista da Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa, vol. xii), Lisboa, 1958, caps. ix­‑xii.
12
  Francisco Vitoria, De potestate civili, in Obras, Relecciones teológicas, ed. de
T. Urdáñoz, BAC, Madrid, 1960, p. 168.

437

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Em segundo lugar, a afirmação da autonomia e prioridade de
uma ordem natural comum a todos os homens, independentemente
da religião, a qual se traduz nomeadamente na legitimidade do poder
político e da ordem jurídica como independentes do poder religioso e
da própria religião. Tal como para o cardeal Nicolau de Cusa, tam‑
bém para o teólogo dominicano da Universidade de Salamanca, a
religião não pode mais ser invocada para subverter a natural e ­legítima
ordem política humana, ou para fundar e legitimar um ­pretenso di‑
reito de domínio, ou para justificar uma guerra de con­quista.
E, em terceiro lugar, a clarificação da noção mesma de «direito
das gentes» e a afirmação inequívoca da sua força jurídica, que se
funda na autoridade da comunidade humana universal, a qual tem
a prevalência sobre os interesses particulares de uma dada nação ou
Estado. Como escreve o teólogo salmanticense:

O direito das gentes não só tem força pelo pacto e con‑


vénio dos homens, mas tem verdadeira força de lei. Pois o
orbe todo, que de certa maneira forma uma república, tem
poder de dar leis justas e a todos convenientes, como são as
do direito das gentes. […] E nenhuma nação pode pensar­‑se
como não estando obrigada perante o direito das gentes,
porque este está dado pela autoridade de todo o orbe. 13

Estes mesmos princípios vão ser retomados e desenvolvidos


por Francisco Suárez, o filósofo jesuíta granadino que em 1597 foi
chamado por Filipe II da Universidade de Salamanca para professor
da Universidade de Coimbra, onde acabaria por escrever uma im‑
portante obra de pensamento político e jurídico, o De Legibus. Tam‑
bém para Suárez, a unidade do género humano não é apenas uma
questão de espécie ou de natureza biológica, mas é além disso uma
questão de natureza moral e política. Assim o escreve:

O género humano, ainda que dividido em povos e em


reinos diversos, não deixa por isso de ter uma unidade não
só de espécie, mas também por assim dizer política e moral.
Esta unidade é indicada pelo preceito natural do amor mú‑
tuo e da misericórdia, preceito que se estende a todos, mes‑
mo aos estrangeiros, qualquer que seja a sua condição. É por

13
  Ibidem, pp. 191­‑192.

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isso que todo o estado [civitas] perfeito, república ou reino,
ainda que completo em si e firmemente fundado, é todavia
ao mesmo tempo duma certa maneira membro deste uni‑
verso, enquanto ele diz respeito ao género humano. Nunca
uma comunidade se deve bastar ao ponto de não ter neces‑
sidade de qualquer apoio, de associação e relações mútuas,
ora para o seu bem­‑estar e para um fim de utilidade, ora por
causa duma necessidade e duma carência moral, como re‑
sulta da própria experiência. Os Estados necessitam, por
conseguinte, de um direito que os dirija e os governe neste
género de comunidade e de sociedade. Sem dúvida, sob
este ponto de vista, a razão natural faz muito, mas ela não
basta em todos os aspectos; e assim os direitos especiais pu‑
deram introduzir­‑se pelo costume das próprias nações. Pois,
tal como num Estado, ou numa província, o costume intro‑
duz o direito, assim o direito das gentes se introduziu pelos
costumes em todo o género humano. 14

O Estado é, pois, integrado no conjunto mais vasto de uma or‑


dem política mundial e o bem comum nacional é visto no contexto
do bem comum internacional. Por outro lado, a guerra deixa de ser
vista como um assunto da competência exclusiva do direito natural
e estatal (se o fosse, nunca poderia ser abolida definitivamente), sen‑
do transferida para a competência do direito das gentes. Ou seja,
para a competência da comunidade internacional, a quem nada im‑
pede que decida renunciar a esse meio de pôr fim às disputas entre
Estados e remeter para um terceiro o cuidado de resolver os diferen‑
dos que os opõem 15. Abre­‑se assim o passo à ideia de uma arbitra‑
gem internacional e a outros processos de resolução pacífica dos
conflitos entre os Estados.
Em Suárez confirma­‑se ainda a passagem, iniciada em Vitoria,
do ius gentium ao ius inter gentes, como pode depreender­‑se desta
passagem:

Pode dizer­‑se de dois modos que uma coisa decorre do


direito das gentes: de um modo, porque é o direito que to‑
dos os povos, todas as nações, devem observar entre si; do

14
  De Legibus, II, 19, 9.
15
  Ibidem, II, 19, 4.

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outro, porque é um direito que todos os Estados, todos os
reinos, observam no seu interior, e que, por analogia ou por
mais comodidade se chama direito das gentes. A primeira
modalidade parece­‑me englobar, para falar com proprie­
dade, o direito das gentes enquanto difere do direito civil. 16

A observação é subtil, mas cheia de consequências. O que era o


sentido próprio da expressão «direito das gentes» passa a ser o sen‑
tido derivado e impróprio. Propriamente falando, tal direito é um
direito para além dos Estados, a saber «o direito que todos os povos
e todas as nações devem observar entre si». Nesta distinção entre o
sentido próprio e o sentido derivado do ius gentium anuncia­‑se a
futura distinção kantiana entre o «direito das gentes» e o «direito
cosmopolita» como verdadeiro Völkerrecht, sendo que é o último
que detém a primazia e que engloba o primeiro.
É com base nesta mesma distinção que Hugo Grócio funda a sua
teoria das relações internacionais. O jurista e teólogo holandês apro‑
veita largamente a riquíssima reflexão jurídica dos pensadores espa‑
nhóis e envolve­‑a em abundantes citações dos representantes do es‑
toicismo romano, sobretudo de Séneca, dando­‑lhe um ar mais erudito
e humanista. Também para ele o direito das gentes é um direito origi‑
nário que une o género humano e os diferentes povos entre si. Embo‑
ra dividido em nações e Estados, o género humano recebe da nature‑
za os princípios fundamentais da sua ordenação. E é deste direito das
gentes natural que decorre o direito das gentes voluntário ou positi‑
vo, resultante do consentimento comum das nações e expresso nos
tratados ou tacitamente aceite pelo costume. E assim, tal como para
Vitoria e para Suárez, também para Grócio, todos os homens consti‑
tuem uma sociedade natural com um mesmo parentesco. Escreve
Grócio, explicitando a tese em que defende a liberdade universal de
circulação nos mares, a favor dos armadores holandeses, que lhe pa‑
gavam o seu parecer, e contra as pretensões dos portugueses, que re‑
clamavam, por razões de prioridade de descobrimento, o direito de
um «mare clausum» para sua circulação exclusiva:

Fundamentarei a minha argumentação no direito das


gentes que chamam primário, como regra certíssima, e
cuja clara e imutável razão é a seguinte: que todas as gen‑

16
  Ibidem.

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tes podem relacionar­‑se e negociar entre si. O próprio
Deus, por meio da natureza, fala, já que não quis dar a
cada região tudo o que necessita… Os que recusam estes
princípios destroem aquela celebrada [pelos sábios anti‑
gos] sociedade entre o género humano, impedem as mú‑
tuas ocasiões de praticar o bem e por fim violam a própria
natureza. Pois o mesmo Deus que rodeou de terras o ocea­
no por todas as partes e para todas as partes, fê­‑lo navegá‑
vel, e os ventos tranquilos ou violentos não sopram ­sempre
da mesma região e não de outra; tudo isto não significará
que pela mesma natureza se concedeu a todas as nações o
acesso a todas elas? Séneca pensa que isto é um benefício
supremo da Natureza, a qual uniu por meio do vento po‑
vos de lugares muito distantes, e distribuiu todas as coi‑
sas em regiões, de tal modo que para os mortais fosse ne‑
cessário o comércio entre eles. Este direito, portanto,
pertence igualmente a todas as nações, pelo qual os mais
ilustres jurisconsultos chegam ao ponto de afirmar que
nenhum estado ou príncipe pode proibi­‑lo em geral, de
modo que outros não possam aproximar­‑se dos seus súb‑
ditos e negociar com eles. Deste direito decorre o sacratís‑
simo direito de hospitalidade. 17

Seria interessante confrontar esta passagem com aquela em que


Kant descreve o conteúdo do «direito cosmopolita», no seu ensaio
de 1795, onde se lê: «o direito cosmopolita deve limitar­‑se às condi‑
ções da hospitalidade universal» 18. O que, em meu entender, deixa
ver com clareza uma relação pelo menos indirecta entre a concepção
kantiana do direito e o pensamento jurídico dos citados pensadores
do Renascimento e da primeira Modernidade.

4. Penso não ser impertinente referir, no presente contexto,


ainda uma outra manifestação de pensamento político, que se de‑
senvolveu como uma vaga por toda a Europa durante os séculos xvi

  Mare Liberum (tard, esp.: De la libertad de los mares, Centro de Estudios


17

Constitucionales, Madrid, 1979, pp. 62­‑64).


18
  V., de António Truyol, «A modo de introducción: La paz perpetua de Kant
en la historia del derecho de gentes», in R. R. Aramayo / J. Muguerza / C. Rol­
dán (eds.), La paz y el ideal cosmopolita de la Ilustración. A propósito del bicentenario
de «Hacia la paz perpetua» de Kant, Tecnos, Madrid, 1996, pp. 17­‑29.

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e xvii, a qual é geralmente tida por marginal e não merece a atenção
dos historiadores do pensamento político: refiro­‑me às formas do
messianismo milenarista 19.
Cada vez mais desmentido pela realidade o sonho medieval de
um Sacro Império e até mesmo o da unidade da Cristandade, a ideia
renasce sob a forma de projectos messiânicos de imperialismo teocrá‑
tico, propugnando a reunião do poder espiritual e do poder tempo‑
ral, projectos estes que se alimentam da exegese dos livros proféticos
e apocalípticos da Bíblia, nomeadamente da visão do profeta Daniel
relativa à sucessão dos quatro grandes impérios historicamente co‑
nhecidos. A estes sucederia um Quinto Império — o império espiri­
tual e temporal de Cristo —, que duraria mil anos e que seria prota‑
gonizado por alguma das nações europeias (Espanha, França,
Portugal, Inglaterra), que teria sido designada pela Providência para
consumar esse programa de cariz simultaneamente teológico e políti‑
co. É de todos bem conhecida a versão que o jesuíta português Padre
António Vieira deu deste projecto, em torno do qual organizou o seu
pensamento político­‑messiânico. Mas a ideia era partilhada por mui‑
tos outros espíritos e pensadores da época barroca e ainda está por
fazer­‑se o estudo amplo e comparado de todo esse movimento 20.
Pode perguntar­‑se que significa tão extraordinário florescimen‑
to serôdio de um género de pensamento político de cariz medieval,
precisamente numa época em que os acontecimentos políticos co‑
meçavam a ser reconhecidos na sua autonomia relativamente a
qualquer ordem de valores religiosos ou mesmo éticos e haviam
perdido qualquer significado de carácter transcendente. Quando a
ordem histórica e política moderna está em vias de se implantar,

  Para uma orientação neste tópico, v. Norman Cohen, The Pursuit of


19

Millenium (1961), trad. espanhola: En pos del Milenio, Barral Editores, Barcelo‑
na, 1971; George Shefferson, The Comparative Study of Millenarian Movements,
Schoken Books, New York, 1970; P. G. Rogers, The Fifth Monarchy Men, ­London,
1966; B. S. Carp, The Fifth Monarchy Men: A Strudy in Seventeenth­‑Century ­English
Millenarianism, Faber & Faber, London, 1972; Silvano Peloso, «Ut libri porphetici
melius intelligantur, omnium temporum historia complectenda est: O Quinto ­Império
de António Vieira e o debate europeu nos séculos xvi e xvii», in Margarida ­Vieira
Mendes /M. L. G. Pires/ J. C. Miranda (org.), Vieira Escritor, Edições Cosmos,
Lisboa, 1977, pp. 177­‑187.
20
  V. o meu estudo «Melancolia e apocalipse. Vivência do tempo e concep‑
ção da história em António Vieira» in idem, Melancolia e Apocalipse. Estudos sobre
o Pensamento Português e Brasileiro, INCM, Lisboa, 2008, pp. 11­‑53.

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esta recaída no milenarismo messiânico representa a resposta a uma
profunda crise da consciência histórica barroca. Desfeita a unidade
política e espiritual do mundo europeu, acossada a Europa cristã
pelo Império turco, cada uma das novas nações europeias pretende
à sua conta justificar­‑se como aquela que é chamada a restabelecer a
unidade perdida e a realizar o sonho bíblico de um reinado dos jus‑
tos e escolhidos. As formas do milenarismo barroco respondem à
necessidade de dar um sentido à história humana no seu conjunto.
Ao atomismo das novas formações estatais fechadas sobre si pró‑
prias, ele opõe a profunda convicção da originária e superior comu‑
nidade dos homens e dos povos, para além das religiões e formas
políticas historicamente dadas, a convicção de que os acontecimen‑
tos da história humana e mundana obedecem a uma economia pro‑
videncial. Mas as manifestações deste imperialismo messiânico as‑
sociam ao ideal medieval de um império teocrático mundial, que
ligasse o poder espiritual e temporal, a componente moderna do
princípio de soberania e da luta pela hegemonia entre os novos
­estados europeus, alguns dos quais viam assim reforçadas e legiti‑
madas as suas pretensões hegemónicas no novo contexto mundial:
caso da Espanha, na primeira versão do milenarismo de Campa‑
nella e no de Juan de Salazar; caso da França, na segunda versão do
milenarismo do mesmo Campanella e no do poeta Desmarets de
Saint­‑Sorlin; caso da Inglaterra anglicana, nos defensores puritanos
da «Quinta Monarquia» (Jones Mede, William Aspinwall); caso de
Portugal, segundo a ideia do Quinto Império de António Vieira.
Aparentemente, esta ideia milenarista e imperialista vai contra o
propósito da paz e reforça mesmo a tónica nacionalista e belicista.
Mas, na realidade, com ela se pretende a instauração da paz messi‑
ânica anunciada pelos profetas bíblicos para o momento da chegada
do reinado do Messias. A envolvente metafórica política (reino, im‑
pério) e a ambiência e decoração apocalípticas em que se expõem
não deixam por vezes reconhecer o genuíno intuito pacifista que
está no âmago destes projectos, muitos dos quais, na verdade, ti‑
nham um conteúdo mais ético­‑religioso do que propriamente
político­‑nacionalista. Note­‑se, de resto, que esta ideia milenarista,
expurgada do seu sentido político imediatista e da denunciada
­feição nacionalista, quanto aos seus ingredientes mais universais
(a união dos povos, o estabelecimento da paz, a realização da ­justiça)
sobreviverá ainda no pensamento iluminista, sob a forma de um
ideal ético­‑político, seja referida ainda expressamente à ideia bíblica
e messiânica de um «Reino de Deus na Terra», seja transfigurada na
ideia racional de um «reino dos fins», interpretados não como cum‑

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primento de profecias, mas como realização progressiva dos impe‑
rativos da razão prática. E, assim, Kant pode dizer, justamente no
contexto das suas reflexões sobre a paz perpétua, que «também a
filosofia pode ter o seu quiliasmo» 21.

II. O projecto federativo de paz para a Europa


do Abade Saint­‑Pierre e as reflexões
de Rousseau

Mais próximo de Kant, há que referir o Projecto de Paz Perpétua


do Abbé de Saint­‑Pierre 22 e os comentários que tal projecto veio a
merecer de Jean­‑Jacques Rousseau 23.

21
  «Man sieht: die Philosophie könne auch ihren Chiliasmus haben…» Idee
zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlichen Absicht, Ak VIII, 27. Embora
quase completamente desatendida pelos intérpretes, esta ideia é todavia recor‑
rente no contexto dos escritos kantianos de filosofia da história e da política e
de filosofia da religião: é mesmo a ideia que liga estas três regiões da reflexão
kantiana, como pode ver­‑se por esta Reflexão: «Avanço da história da espécie
humana. Sobre que assenta a produção de toda esta perfeição, na qual o qui‑
liasta filosófico acredita e que promove com poder? — Assenta na perfeição
da constituição civil (a qual deve manter­‑se eternamente). Só aí serão desen‑
volvidos todos os talentos e haverá a máxima união de todos os fins comuni‑
tários mediante leis exteriores e se garantirá a máxima duração deste estado
mediante o melhor modo de pensar pessoal.» Refl. 1468 (Ak XV, 647: Fortset‑
zung von der Geschichte des Menschengattung. Vorauf berüht die Erzeugung
aller dieser Vollkommenheit, die der philosophische chiliast glaubt und nach
Vermögen befordert? — Auf der Vollkommenheit der bürgerlichen Verfassung
(die würde sich ewig erhalten). Darin werden allein alle Talente entwickelt,
die grösste Vereinigung zu gemeinschaftlichen Zwecken durch äussere Gesetze
und die grösste Dauerhaftigkeit dises Zustandes durch die beste persönliche
Den­kungsart). V. na mesma linha, Die Religon innerhalb der Grenzen der blossen
Vernunft, Ak VI, 122­‑124 (trad. portuguesa: A Religião nos Limites da Simples Ra‑
zão, Edições 70, Lisboa, pp. 40, 128­‑129).
22
  [Charles Irinée Castel de Saint­‑Pierre] Abbé de Saint­‑Pierre, Projet pour
rendre la Paix Perpétuelle entre les souverains chrétiens. Os dois primeiros volumes
foram publicados em Utreque, por Antoine Schouten, em 1713. O terceiro foi
publicado pelo mesmo editor em 1717. Uma edição recente, feita a partir das
edições originais, foi levada a cabo por Simone Goyard­‑Fabre, sob o título Projet
de Paix Perpétuelle, Tours, 1986.
23
  Jean­‑Jacques Rousseau, Extrait du projet de paix perpétuelle de l’ab‑
bé de  Saint­‑Pierre (1761), e Jugement sur le projet de paix perpétuelle de l’abbé de

444

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Kant estava sem dúvida de acordo com Saint­‑Pierre quanto
à  leitura e diagnóstico da situação política da Europa moderna
(«a  constituição presente da Europa — assente no princípio do
equilíbrio entre potências — não fará senão produzir insegurança
e guerras contínuas, tornando impossível o comércio e o desen‑
volvimento»), mas não o segue totalmente quanto aos meios de
resolução do problema. O projecto de Saint­‑Pierre visava a consti‑
tuição, mediante um Tratado de União, de um «Corpo Europeu»
(também designado como «Sociedade Europeia» ou «União Euro‑
peia») —, regido por um Congresso Permanente e um Conselho
Arbitral (ou seja, uma Dieta Europeia dotada de ­poderes legisla­
tivos e judiciais). Não há dúvida de que o projecto aponta para
um tipo de federação dos Estados da Europa, o qual é pensado
por explícita analogia com o modelo de união federada dos Esta­
dos  alemães 24. Na intenção de Saint­‑Pierre, o projecto original
estender­‑se­‑ia mesmo a todos os Estados da Terra, mas o seu au‑
tor desistiu da ideia em face das críticas que lhe foram feitas quan‑
to à sua exequibilidade, mesmo se ele fosse limi­tado às nações

Saint­‑Pierre (1782), Œuvres Complètes, Gallimard, Paris, vol. iii. Para além de
­ ousseau, e mesmo antes dele, houve outro grande pensador que se ocupou
R
do projecto de Saint­‑Pierre, comentando­‑o em algumas das suas cartas. Trata­‑se
de Leibniz, mas não é verosímil que Kant tenha conhecido esses comentários.
Sobre este ponto, v. Concha Roldán, «Los ‘Prolegómenos’ del Proyecto kantia‑
no sobre la Paz Perpetua», in R. R. Aramayo / J. Muguerza / C. Roldán (eds.),
La Paz y el Ideal Cosmopolita de la Ilustración, pp. 137­‑144. V., também da mesma
autora, «Leibniz’ Einstellung zum Projekt des ewigen Friedens als politische
Voraussetzung für eine europaïsche Einheit», in Leibniz und Europa. Akten des
VI. Internationalen Leibniz­‑Kongresses, Hannover, 1994, II Teil, pp. 248­‑253; «Las
raíces del multiculturalismo en la critica leibniziana al proyecto de paz perpe‑
tua», in Saber y conciencia. Homenaje a Otto Saame, Ed. Comares, Granada, 1995,
pp. 369­‑394.
24
  Escreve Saint­‑Pierre: «Examinando o governo dos soberanos da Alema‑
nha, não me pareceu que possa haver nos nossos dias mais dificuldade em for‑
mar o corpo europeu do que houve outrora para formar o corpo germânico, para
executar numa maior dimensão o que antes se executou numa dimensão mais
reduzida; pelo contrário, pareceu­‑me que haveria menos obstáculos e mais fa‑
cilidades para formar o corpo europeu… Os mesmos motivos e os mesmos meios
que foram outrora suficientes para formar uma sociedade permanente de todas
as soberanias da Alemanha… podem bastar para formar uma sociedade per‑
manente de todas as soberanias cristãs da Europa.» Projet de paix perpétuelle, ed.
de 1986, pp. 12­‑13.

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cristãs da Europa. Trata­‑se de um projecto pragmático, cheio das
melhores intenções, mas não escorado em sólidos princípios do
direito e a que falta também uma visão da complexidade antropo‑
lógica e o sentido da processualidade histórica. Para Saint­‑Pierre,
bastaria um acto de vontade dos príncipes para o tornar ­efectivo.
Não há dúvida de que, na elaboração do seu projecto de paz
perpétua e da sua ideia de federação das nações, Kant tem sempre
presente o plano de Saint­‑Pierre, seja que o conhecesse directamente
ou apenas indirectamente através dos resumos e comentários de
Rousseau 25. Reconhece mesmo que a ideia do bom Abade e do seu
comentador Rousseau não é nenhuma quimera ou mera fantasia de
sonhadores exaltados, mas constitui um verdadeiro imperativo da
razão prática­‑moral 26.
Todavia, apesar de algumas semelhanças, há profundas dife‑
renças entre os dois projectos. Em primeiro lugar, o envolvimento
sistemático: é toda a filosofia kantiana que está comprometida na
solução do problema da paz: a antropologia, a filosofia da história
e da cultura, a filosofia prática e do direito, a teleologia. Por outro
lado, a paz entre os Estados é uma questão a resolver pelo estabe‑
lecimento ou criação das suas condições de possibilidade. Não se
trata de uma consagração do status quo do equilíbrio de forças eu‑
ropeias numa dada conjuntura, como era o caso em Saint­‑Pierre,
mas da satisfação de uma exigência ética da razão e da natureza, a

25
  São quase sempre citados juntos, o que parece dar apoio à hipótese de
um conhecimento das teses de Saint­‑Pierre pela intermediação de Rousseau
(no mínimo, Kant conhecia os comentários e reflexões sobre o projecto de Saint­
‑Pierre formuladas na parte v de Emílio). As primeiras referências de Kant ao
projecto de Saint­‑Pierre datam do período entre 1764­‑1766 (v. Refl. 488, Ak XV,
210) e continuam a ocorrer seja nas reflexões do espólio, seja nos Cursos, seja
até nos escritos publicados.
26
  V. esta passagem da conclusão da Doutrina do Direito (1797): «A razão
prática­‑moral pronuncia em nós o seu irresistível veto: não deve haver nenhu‑
ma guerra [Es soll kein Krieg sein], seja entre mim e ti no estado de natureza,
seja entre nós como Estados… pois não é esse o modo de cada qual fazer valer
o seu direito.» Rechtslehre, Ak VI, 354. Ibidem, 350­‑351: «‘Que não haja guerra’ é
um irresistível imperativo da razão prática. Mas a paz perpétua enquanto fim
último de todo o direito das gentes é certamente uma ideia irrealizável, embora
não o sejam os meios (políticos e jurídicos) que nos permitem aproximar­‑nos
cada vez mais dela.»

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ser realizada na história mediante instituições político­‑jurídicas
adequadas, que não sejam elas próprias contrárias ao fim que pre‑
tendem. De resto, a paz não é, para Kant, um assunto a decidir
entre príncipes, mas sim entre os povos organizados em Estados e
estes devem ter a sua constituição civil assente em princípios repu‑
blicanos (os únicos que, segundo Kant, podem garantir a liberda‑
de, a igualdade, o direito e a dignidade dos homens, a separação
de poderes, o governo representativo, a efectiva liberdade dos ci‑
dadãos sob leis comuns). O projecto kantiano, por outro lado, não
se limita ao espaço da Europa, mas visa um âmbito mundial. Não
se alcança de uma vez por todas, mas é progressivo, e deve ser
continuamente retomado, com novos actores e em fórmulas cada
vez mais aperfeiçoadas. Em suma: para Kant, a paz é, sem dúvida,
mais do que um justo desejo e aspiração dos homens, uma verda‑
deira exigência da razão. Mas não se trata de qualquer paz e a
qualquer preço. A paz kantiana vale pelas condições que a garan‑
tem: a ordem jurídica civil e internacional que promova a realiza‑
ção da destinação da humanidade para a liberdade e a dignidade.
Uma paz sem liberdade dos povos e dos ­indivíduos seria pior do
que a guerra e, na economia da Natureza, por escandaloso que isso
pareça, a guerra pode mesmo desempenhar historicamente uma
função educativa: é um modo de a Natureza obrigar os indivíduos
e também os Estados a seguir os ditames que a razão lhes indica,
mas que eles não querem ouvir. A Natureza leva assim os homens
e os Estados a uma ordem da razão, mesmo contra as suas vonta‑
des. Isto não quer dizer que Kant alguma vez defenda a guerra por
si mesma, nem como fim nem sequer como um meio que intencio‑
nalmente alguém se deva propor para supostos nobres fins 27. Pelo
contrário, é a paz — o não haver guerra — que constitui um impe‑
rativo incondicional da razão prática e a condição para que a hu‑
manidade realize a sua superior destinação moral. Daí a importân‑
cia de encontrar as soluções políticas e jurídicas que a assegurem,
seja no interior de cada Estado, seja no plano das relações interna‑
cionais entre Estados.

  V. sobre este delicado ponto do pensamento político de Kant: Félix


27

­ uque, «Natura daedala rerum. De la inquietante defensa kantiana de la ­máquina


D
de guerra», in R. R. Aramayo / J. Muguerza / C. Roldán (eds.), La paz y el ideal
cosmopolita de la Ilustración, pp. 191­‑215.

447

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Mais do que Saint­‑Pierre é Rousseau quem formula com preci‑
são o problema ao qual Kant pretende dar solução. Escreve ­Rousseau,
comentando os escritos do Abade:

Vamos ver os homens unidos por uma concórdia artifi‑


cial reunirem­‑se para se degolarem mutuamente e todos os
horrores da guerra nascerem dos cuidados que se haviam
tomado para a prevenir… A independência que se tira aos
homens refugia­‑se nas sociedades, e estes grandes corpos,
deixados aos seus próprios impulsos, produzem choques
tanto mais terríveis quanto as suas massas são superiores
às dos indivíduos. 28

Rousseau mostra que «o estado de guerra nasce do estado de


sociedade», pondo em evidência o estranho paradoxo segundo o
qual aquela instituição que era destinada a pacificar os homens se
torna ela própria princípio de guerras muito mais graves e mortífe‑
ras do que as que os indivíduos levariam a efeito entre si se tivessem
permane­cido no estado de natureza. No Contrato Social a questão é
enunciada, mas não equacionada. No Emílio, porém, a questão é for‑
mulada e é sugerido um princípio de solução, que vai na linha da
associação federativa proposta por Saint­‑Pierre. Escreve Rousseau:

Depois de termos considerado cada espécie de socieda‑


de civil em si mesma, compará­‑las­‑emos para observar as
suas diversas relações… Examinaremos… se os indivíduos
submetidos às leis e aos homens, enquanto as sociedades
mantêm entre si a independência da natureza, não ficam ex‑
postos aos males dos dois estados, sem terem as respectivas
vantagens, e se não seria preferível não haver nenhuma so‑
ciedade civil no mundo a haver muitas… Não é esta asso‑
ciação parcial e imperfeita que produz a tirania e a guerra?
E a tirania e a guerra não são os maiores flagelos da huma‑
nidade? Examinaremos enfim o tipo de remédios que se
procuraram para estes inconvenientes mediante ligas e con‑
federações, as quais, deixando cada Estado senhor de si no
interior, o armam para fora contra todo o agressor injusto.

28
  Rousseau, Ecrits sur l’Abbé de Saint­‑Pierre, Œuvres Complètes, III, pp. 603­
‑604.

448

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Indagaremos como se pode estabelecer uma boa associação
federativa, o que pode torná­‑la duradoura e até que ponto
se pode estender o direito da confederação sem prejudicar
o  da soberania. O Abade de Saint­‑Pierre tinha proposto
uma associação de todos os estados da Europa para manter
entre eles uma paz perpétua. Esta associação era praticá‑
vel? E, supondo que ela tivesse sido ­estabelecida, era de pre‑
sumir que ela tivesse durado? Estas ­investigações conduzem­
‑nos directamente a todas as questões do direito público que
podem acabar por esclarecer as do direito político. 29

Rousseau identifica e formula com uma acuidade insuperável o


verdadeiro problema político moderno. Mas não lhe dá solução,
embora indique por onde ela deve ir: completar a doutrina do «con‑
trato social», estabelecendo um «contrato internacional» entre os
povos e Estados, à semelhança daquele que liga os cidadãos dentro
de cada Estado 30. A última frase do texto citado é sem dúvida a mais
importante: a questão da paz obriga a repensar todo o sistema do
direito e a reequacionar as relações entre o direito estatal e o direito
das gentes.
Kant aceita o diagnóstico de Rousseau quanto à situação entre
os Estados, aceita mesmo os termos da equação do problema e vai
propor uma solução que passa efectivamente pela restauração orgâ‑
nica de todo o sistema do direito. A solução kantiana segue até ao
fim aquilo que em Rousseau ficara apenas como uma indicação e
um desiderato. Por isso se pode dizer que Kant traz a solução ao
problema formulado por Rousseau. Mas antes de mais o filósofo
crítico traduz para a sua linguagem o que entende ser «o mais difícil
problema» (das schwerere Problem) que Rousseau tentou resolver nos
seus escritos, a saber:

Como deve progredir a cultura para desenvolver as


disposições da humanidade como uma espécie moral de
acordo com a sua destinação, de tal modo que esta cultura
não esteja mais em contradição com aquela destinação. 31

  Émile ou de l’Éducation. Texte établi par Charles Wirz, présenté et annoté


29

par Pierre Burgelin, Gallimard, Paris, pp. 684­‑685.


30
  É isso que Kant reconhece na Reflexão 1354 (Ak XV, 591): «Um contrato
dos povos pode tornar­‑se universal: Rousseau.»
31
  Kant, Muthmasslicher Anfang der Menschengeschichte, Ak VIII, 116.

449

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III. A solução kantiana como reestruturação
orgânica de todo o sistema do direito
público

O ensaio kantiano intitulado Ideia de Uma História Universal numa


Perspectiva Cosmopolita (1784) é a primeira resposta explícita e publi‑
cada ao problema formulado 32. Nele, pela primeira vez, assoma tam‑
bém publicada a ideia kantiana de Federalismo, com a constelação de
tópicos que a acompanha. Essa ideia será sucessivamente reformula‑
da, sobretudo nos escritos da década de 90 — na Crítica do Juízo (§ 83),
no ensaio Sobre o Dito Comum «Isso Pode Ser Correcto na Teoria, mas Não
Vale na Prática» (1793), e sobretudo em Para a Paz Perpétua (1795), na
Doutrina do Direito (1797) e ainda nas últimas páginas da Antropologia
(1798) — mantendo­‑se, porém, o núcleo essencial do pensamento
kantiano neste domínio. Mas a ideia já vinha sendo trabalhada pelo
menos desde meados da década anterior. A publicação do espólio de
Kant já havia revelado que o tema marca presença — com todos os
seus ingredientes essenciais — em várias Reflexões de meados da dé‑
cada de 70, mas a recente publicação dos Cursos de Antropologia, a
partir das versões colhidas e registadas pelos alunos de Kant, veio
corroborar essa evidência. Pelo menos a partir do semestre de Inver‑
no de 1775-1776, esse tópico era já claramente exposto por Kant na
secção final do seu Curso. Na versão registada por Friedländer, lê­‑se
a mais prístina e porventura também a mais clara exposição da ideia:

Para que todas as guerras se tornassem desnecessárias,


teria de surgir uma Federação de Povos [Völckerbund], onde
todos os Povos, através dos seus deputados, constituíssem
um universal Senado dos Povos [allgemeinen Völcker Senat],
o qual deveria decidir todos os conflitos dos Povos, e este
seu juízo [Urtheil] deveria ser executado mediante o poder
dos Povos [Macht der Völcker], pois também os Povos esta‑
riam submetidos a um foro e a uma coacção civil [denn stün‑
den auch die Völcker unter einem foro und einen bürgerlichen
Zwange]. Este Senado dos Povos seria o mais esclarecido
que alguma vez o mundo viu. […] Mas como poderemos

32
  Embora publicado em 1784, Kant anunciara já a ideia central do ensaio
no final do seu Curso de Antropologia do semestre de Inverno de 1781-1782: Vor‑
lesungen zur Anthropologie (Winter­‑Semester: Petersburg), Ak XXV, 1203.

450

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nós contribuir para isso, e acelerar a sua realização? O filó‑
sofo tem de tornar conhecidas as suas ideias a esse respeito
e propô­‑las para uma apreciação mais pormenorizada. 33

Note­‑se que a ideia de «Federação de Povos» é aqui expressa‑


mente enquadrada por três instituições, por analogia com os três po‑
deres de um regime republicano: o legislativo (um Senado dos Po‑
vos), o judicial (um fórum para decidir os conflitos) e o executivo
(um Poder dos povos) para fazer cumprir as decisões. Nas sucessi‑
vas formulações desta ideia haverá por certo modalizações, mas ape‑
nas no sentido de um aprofundamento, de uma maior explicitação e
de um cada vez mais visível enquadramento sistemático. Não há re‑
cuo, e — embora contra a interpretação de alguns comentadores —
também não há hesitações ou ambiguidades da parte de Kant.
As aparentes ambiguidades resultam, a meu ver, do facto de os intér‑
pretes considerarem a ideia kantiana de Federalismo descontextuali‑
zada da constelação de tópicos em que ela ocorre e da sua inserção
sistemática no organismo que é a filosofia kantiana. Ora, são estes
aspectos que tornam aquela ideia original e mesmo peculiar, que lhe
dão densidade e lhe conferem um poder de sugestão que a tem tor‑
nado fonte de inspiração para muitos arquitectos da ordem jurídica
e política internacional. Entre esses ingredientes que tornam comple‑
xa e densa a noção kantiana de Federalismo são de referir: uma
­antropologia filosófica e «pragmática», uma filosofia da história, da
política e do direito, uma concepção teleológica da natureza e da fi‑
nal conciliação entre o fim prático da razão moral e a finalidade da
natureza em relação à espécie humana (ou seja, a postulação de um
possível acordo final entre a teleologia moral e a teleologia física).
Em primeiro lugar, a ideia surge no contexto de uma reflexão an‑
tropológica sobre a destinação da espécie humana. Como pode a hu‑
manidade desenvolver todos os germes que a Natureza nela origina‑
riamente depositou? Eis a resposta de Kant: o fim da Natureza em
relação à humanidade é que ela realize no curso da sua história a sua
destinação moral. Mas isso só é possível mediante a criação de deter‑
minadas condições institucionais jurídico­‑políticas. Como veremos, o
Federalismo é uma dessas condições a serem desenvolvidas, dando
uma nova forma ao direito das gentes. Por conseguinte, é a antropolo‑

33
  Vorlesungen zur Anthropologie (Winter­‑Semester 1775-1776: Friedländer),
Ak XXV, 696.

451

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gia kantiana, a filosofia kantiana da história, a filosofia kantiana do
direito (que, todavia, só virá a ser publicada na sua forma sistemática
no ano de 1797) e a própria teleologia kantiana (isto é, a concepção
teleológica da Natureza, efectiva no pensamento kantiano muito an‑
tes de vir a ser legitimada numa perspectiva transcendental, o que só
acontecerá num ensaio de 88 e depois formalmente na Crítica do Juízo),
são todos estes domínios que se cruzam e estão condensados na ideia
kantiana de Federalismo. Todos estes tópicos concorrem no citado en‑
saio de 1784, onde o tema do Federalismo aflora pela primeira vez e
que constitui também a mais luminosa exposição do que se poderá
chamar a filosofia kantiana da história. Considerando o curso da his‑
tória humana, e apesar do carácter absurdo que a sua visão imediata‑
mente manifesta, é possível ver nele sinais de um progresso que não
desminta de todo aquilo que a razão revela como sendo a incontorná‑
vel natureza moral do homem? A resposta do filósofo é positiva, mas
o progresso histórico é aferido pela capacidade que as instituições
jurídico­‑políticas revelem para realizar a destinação moral da huma‑
nidade, para promover a realização efectiva da liberdade. Deste modo,
a filosofia da história enquadra a filosofia do direito e esta, entendida
em toda a sua plenitude, é a consumação da destinação histórica da
humanidade. O direito não é para Kant um corpo abstracto de princí‑
pios racionais, mas, promanando da razão como instância legisladora
suprema, é uma tarefa a realizar paulatinamente no curso longo da
história humana. A instauração da ordem jurídica cumpre um plano
teleológico da razão, que, ao mesmo tempo, é descrito como um «pla‑
no secreto» da Natureza em relação à espécie humana, o qual só pode
realizar­‑se na ordem do tempo, mediante o esforço sempre de novo
retomado. Sem este horizonte teleológico, não só a noção kantiana de
Federalismo e de Cosmopolitismo, mas também a concepção kantia‑
na do sistema do direito perdem o seu elemento.
Para a sua visão da humanidade — relativamente à qual não
tem grandes ilusões de optimismo —, Kant conta com o seu amplo
conhecimento da antropologia descritiva, sabe da diversidade dos
povos e dos indivíduos, sabe que essa diversidade é fonte de confli‑
tos e de antagonismos, mas é também a fonte da riqueza natural que
a espécie humana revela nas suas relações culturais e que mesmo o
antagonismo e a «insociável socialidade», que caracterizam os ho‑
mens nas suas relações recíprocas, podem contribuir, segundo uma
sábia economia peculiar da Natureza, para atingir formas superio‑
res de realização moral da humanidade.
Por outro lado, a razão como que desiste da sua pretensão de
impor a sua ordem à história e confia essa tarefa à sabedoria da na‑

452

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tureza, que não deixará de realizar a sua intenção no que respeita à
humanidade, apesar da história desta revelar mais o absurdo do
que qualquer plano com sentido. A Natureza saberá usar mesmo as
forças de antagonismo e de mútua destruição dos homens para os
levar à razão, e assim cumprirem por fim o seu «plano secreto» ­—
a história humana poderá então ser lida como uma fisiodiceia. Mes‑
mo que o não queiram, e depois de terem extenuado estupidamente
as suas forças e os seus recursos em guerras insensatas, os homens
hão­‑de ser levados, primeiro, a associar­‑se em sociedades civis ou
Estados e, depois, hão­‑de esses Estados associar­‑se eles próprios
numa Federação de Estados, se é que pretendem evitar a mútua
destruição. Como se lê na Proposição VIII do ensaio de 84:

Pode considerar­‑se a história humana no seu conjunto


como a execução de um plano oculto da Natureza, a fim de
levar a cabo uma constituição estatal interiormente perfeita
e, com este fim, também perfeita externamente, como a úni‑
ca situação em que aquela pode desenvolver integralmente
todas as suas disposições na humanidade. 34

A filosofia kantiana da história e a da política inscrevem­‑se as‑


sim numa visão teleológica da Natureza, e é bem significativo que
todo o acervo de ideias do ensaio de 84 seja retomado no § 83 da
Crítica do Juízo (onde se fala do fim último da Natureza como um
sistema teleológico): este fim último da Natureza consuma­‑se no fim
último da razão moral e juridicamente legisladora, realiza­‑se na for‑
ma de instituições político­‑jurídicas capazes de dar corpo à ideia
completa do sistema do direito público. Por conseguinte, a destina‑
ção da espécie humana, o desígnio da Natureza e o imperativo da
razão consumam­‑se, segundo Kant, na realização de uma ordem ju‑
rídica e política de que constam três momentos organicamente inter‑
ligados: a instituição de uma sociedade civil segundo princípios do
direito e da liberdade sob leis comuns (o direito civil como base de
cada Estado individualmente considerado), o que segundo Kant só
pode ser realizado no contexto de uma constituição e regime republi‑
canos; a constituição de uma ordem jurídica e política entre os vários
Estados que impeça o risco permanente de mútua destruição em que
se encontram — a refundação do direito das gentes ­(Völkerrecht) — e

34
  Idee, Ak VIII, 27.

453

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é neste ponto concreto que se inscreve a ideia kantiana de «Federa‑
ção de Povos» ou de Federalismo; e a instituição de uma ordem jurí‑
dica cosmopolita, segundo a qual todos os homens são considerados
não apenas como cidadãos deste ou daquele Estado, mas formal‑
mente reconhecidos como verdadeiros cidadãos da Terra e do Mun‑
do, independentemente dos Estados a que pertençam. Estes três mo‑
mentos, sendo diferentes pelo âmbito e pelo conteúdo, são todavia
interdependentes. A recíproca interdependência dos três momentos
do direito é mesmo um dos aspectos peculiares da concepção kantia‑
na, que se revela também na sua concepção de Federalismo ou do
direito internacional público (entre Estados), dando­‑lhe uma com‑
plexidade característica que tem dado ocasião aos intérpretes para
divergirem na interpretação da posição kantiana ou pelo menos para
acusarem as suas ambiguidades. Pela minha parte, creio que não se
trata de ambiguidades ou de hesitações, mas da complexidade e
pregnância de uma solução que não é apenas tópica, para a questão
das relações recíprocas entre Estados soberanos, mas é uma questão
que toca domínios essenciais da filosofia kantiana.
A mais explícita apresentação deste projecto ocorre no bem co‑
nhecido ensaio de 95, intitulado Para a Paz Pepétua (Zum ewigen Frie‑
den). Evocando o Project de Paix Perpétuelle, do Abbé de Saint­‑Pierre,
Kant propõe um tratado imaginário de paz entre os povos, expondo
as condições que a tornem efectiva e duradoura. Os três artigos de‑
finitivos desse tratado constituem a súmula da arquitectónica da fi‑
losofia kantiana do direito: o Zivilrecht, o Völkerrecht e o Weltbürger‑
recht. A substância da tese kantiana, vista agora pelo ângulo do
problema da paz, expõe­‑se deste modo: a paz duradoura entre os
povos depende da implementação progressiva e orgânica das três
formas do direito público dos homens: do ius civitatis, do ius gentium
e do ius cosmopoliticum 35. Por aqui se pode avaliar, por um lado,
como estamos longe do projecto de Saint­‑Pierre e, por outro, com
que radicalidade Kant assumiu o desafio de Rousseau.
O primeiro artigo diz: «A constituição civil em cada Estado deve ser
republicana.» 36

  Zum ewigen Frieden, Ak VIII, 349.


35

  Ibidem. Já Montesquieu, que também havia celebrado as virtudes da


36

«repú­blica federativa» ­— («forma de governo ou convenção mediante a qual


vários corpos políticos consentem em tornar­‑se cidadãos de um Estado maior
que eles pretendem formar; uma sociedade de sociedades, que assim fazem uma
nova, a qual pode crescer mediante novos associados que a ela se unem») —,

454

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O segundo: «O direito das gentes deve fundar­‑se num Federalismo
de Estados livres.» 37
E o terceiro: «O direito cosmopolita deve limitar­‑se às condições de
hospitalidade universal.» 38
Três programas, portanto, estão implicados neste projecto kantia‑
no: o programa republicano, no interior de cada Estado; o programa
federalista, na relação entre Estados; e o programa cosmopolita, na
relação de todos os Estados com os cidadãos de qualquer Estado. Re‑
publicanismo, Federalismo e Cosmopolitismo são os três momentos
da solução kantiana para o problema da paz duradoura. Podem os
intérpretes pretender desligá­‑los. Para Kant, porém, eles não só são
aspectos de um mesmo projecto, como a realização de cada um deles
depende da realização de todos os outros 39. Isto não quer dizer, obvia‑
mente, que se tenha de consumar um para se começar o outro, mas,
precisamente, que os três devem ser postos em andamento ao mesmo
tempo, num esforço de contínuo aperfeiçoamento. A recíproca de‑
pendência dos três momentos é orgânica e estrutural, e não mecânica
e temporal. Já no ensaio de 84 Kant dizia expressamente que «o pro‑
blema da instituição de uma constituição civil perfeita depende, por
sua vez, do problema de uma relação externa legal entre os Estados e
não pode resolver­‑se sem esta última» 40. E no ensaio de 95 dirá que o
direito cosmopolita (Weltbürgerrecht) completa toda a arquitectónica
do sistema do direito humano público, dando sentido ao direito civil
e ao direito das gentes: ele é «o necessário completamento do código
não escrito tanto do direito civil como do direito das gentes» 41.
Desta forma, se o direito civil, que rege as relações entre cidadãos
no interior de cada Estado, está organicamente enquadrado pelo di‑
reito das gentes, que rege as relações dos Estados entre si, assim tam‑
bém o direito das gentes está organicamente enquadrado pelo direito
cosmopolita: os cidadãos dos Estados devem ser considerados, do
ponto de vista jurídico, como fazendo parte, desde já, de uma efecti‑
va civitas gentium, de uma cosmopolis. Cada indivíduo se desdobra

fazia notar «que a constituição federativa deve ser composta de Estados da


mesma natureza, sobretudo de Estados republicanos». Montesquieu, De L’Es‑
prit des Lois, Livre IX, chaps. i e ii, ed. Garnier­‑Flammarion, Paris, pp. 265­‑267.
37
  Zum ewigen Frieden, Ak VIII, 354.
38
  Ibidem, 357.
39
  Ibidem, 349, nota.
40
  Idee, Ak VIII, 24.
41
  Zum ewigen Frieden, Ak VIII, 360.

455

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assim numa dupla relação jurídica: é cidadão de um Estado e ao mes‑
mo tempo é cidadão do Mundo. Como se lê numa reflexão do espólio
kantiano: «O homem pode pensar­‑se ao mesmo tempo como cidadão
de uma nação e como membro de parte inteira da sociedade dos ci‑
dadãos do mundo» 42. Esta é, segundo o filósofo, a mais sublime ideia
que o homem pode conceber acerca do seu destino e é também esse o
desígnio supremo da natureza em relação à espécie humana enquan‑
to ela deve poder desenvolver todas as disposições naturais nela con‑
tidas — o que só é possível de uma forma plena «num Estado cosmo‑
polita universal», o único que pode garantir a paz duradoura.
Antes de me debruçar mais demoradamente sobre o segundo
momento — o programa do Federalismo —, direi alguma coisa so‑
bre o primeiro e o terceiro, o Republicanismo e o Cosmopolitismo
kantianos.
No ensaio de 84 fala­‑se da consecução de uma sociedade civil
que administre o direito em geral, onde a liberdade sob leis exterio‑
res se encontra unida com o poder, uma constituição civil perfeita‑
mente justa. Esta solução é, segundo Kant, realizada pelo modelo
republicano. Evidentemente, há que ter também aqui presente que o
filósofo distingue a respublica noumenon (pura ideia de República) e a
respublica phaenomenon (experiências históricas de republicanismo),
mas segundo ele nenhuma forma concreta e historicamente conheci‑
da cumpriu plenamente a pura ideia de República. Desta ideia ­fazem
parte os seguintes ingredientes: separação dos poderes executivo, le‑
gislativo e judicial, o sistema representativo, a liberdade submetida a
leis comuns reguladas pelo poder, o reconhecimento efectivo da
igualdade de todos os cidadãos. Esta é a forma de regime que corres‑
ponde à pura ideia do direito, a que pode garantir a paz civil, asse‑
gurando ao mesmo tempo a liberdade dos cidadãos sob leis comuns
que eles a si mesmos dão, as quais impedem que o antagonismo dos
seus interesses degenere em guerra. Pelo contrário, proporcio­nando­
‑lhes uma solução jurídica ou civil, pode contribuir positivamente
para manifestar toda a riqueza contida na natureza humana. Tais as
boas razões de Kant a favor do Republicanismo 43.
O cosmopolitismo kantiano representa a retomação de uma
ideia do estoicismo antigo, formulada por Crisipo, herdada pelos

  Refl. 8077, Ak XIX, 609.


42

  V. neste volume o ensaio «Kant e o republicanismo moderno», pp. 469


43

e segs.

456

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filósofos e juristas romanos, acolhida e transformada no ­pensamento
cristão primitivo sobretudo nas cartas do Apóstolo Paulo 44 e reela‑
borada pelos filósofos­‑teólogos da Escolástica ibérica e pelos repre‑
sentantes do Neo­‑Estoicismo renascentista e proto­moderno, que
fundiram a originária ideia estóica com os ingredientes da visão
cristã do mundo e do homem, ao ponto de se poder dizer com pro‑
priedade que são estes verdadeiramente os fundadores do direito
das gentes na sua acepção moderna. Para Kant, o Cosmopolitismo
não é um vago sentimento de comum pertença à humanidade, mas
é uma ideia que deve ter uma adequada tradução política e jurídi‑
ca 45. E é neste ponto que reside o alcance da proposta kantiana, que
reclama o efectivo reconhecimento desse direito como fazendo
parte do sistema do direito público e como constituindo o telos de
toda a ordem jurídica, ao mesmo tempo que aponta para a sua
efectiva ­institucionalização em instrumentos e organismos ade‑
quados. Não é sem razão que Norberto Bobbio vê na Declaração
Universal dos ­Direitos do Homem, de 10 de Dezembro de 1948,
uma efectiva concretização institucional da noção kantiana do ius
cosmopoliticum 46.
Na formulação do 3.o artigo definitivo do ensaio de 95, Kant diz
que o direito cosmopolita se limita a garantir as condições de hospi‑
talidade universal, enquanto direito que assiste a qualquer homem
estrangeiro de visitar qualquer território e de ser tratado sem hosti‑
lidade pelos que aí moram, por conseguinte, também o direito de
estabelecer relações comerciais pacíficas com eles. Mas na continua‑
ção da sua exposição desse direito, Kant, para além de condenar as
modalidades da colonização europeia — que constituíram na sua
origem e continuavam a constituir na época uma flagrante e insti­

  Efésios 2, 19­‑20.
44

  Kant dirá que não se trata de uma ideia filantrópica, ou mesmo mera‑
45

mente ética, mas de um princípio jurídico ­— «ist nicht etwa philanthro­pisch


(ethisch), sondern ein rechtliches Prinzip». Rechtslehre, Ak VI, 352. Embora,
apontando os limites da proposta kantiana de um direito cosmopolita, tam‑
bém Jacques Derrida sublinhou a fecunda promessa que ele encerra enquanto
constitui uma tarefa a ser desenvolvida, e isso muito mais ainda numa época
marcada pela irreversível mundialização e globalização. V., nomeadamente, o
seu ensaio Cosmopolitas de Todos os Países Mais Um Esforço!, trad. de Fernanda
Bernardo, Minerva, Coimbra, 2001.
46
  Norberto Bobbio, A Era dos Direitos, Editora Campus, Rio de Janeiro,
1992, p. 139.

457

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tuída violação daquele direito —, declara que o ius cosmopoliticum se
baseia no direito de propriedade da superfície da Terra comum a
todos os homens, à qual ninguém tem, originariamente, mais direi‑
to do que o outro, e afirma que os povos devem caminhar para a
elaboração de uma «constituição cosmopolita» e mesmo para a cria‑
ção de um Estado cosmopolita, o que parece indicar que o conteúdo
e o alcance da noção kantiana de cosmopolitismo e de direito cos‑
mopolita representam uma tarefa histórica, de implicações enormes
no que respeita a uma futura gestão mundial e solidária da Terra e
dos seus recursos, muito diferente das modalidades da exploração
ou extorsão colonial ou neo­‑colonial ou da arbitrariedade autono‑
mista dos Estados no uso ou abuso dos seus recursos territoriais,
sob invocação do princípio absoluto da respectiva soberania. A in‑
tensificação das relações comerciais e a crescente interdependência
dos Estados, mas sobretudo os limites insuperáveis da Terra (como
lembra o filósofo, ela não é um plano de extensão ilimitada, mas é
uma esfera finita — antes de mais, no plano geográfico­‑territorial,
mas, sabemo­‑lo bem hoje, também nos seus recursos —, sobre a qual
os homens, por muito que se dispersem, terão por fim de se encon‑
trar e concordar, no mínimo, em encontrar formas de se suportarem
sustentadamente uns aos outros... se não quiserem fazer um esforço
mais para encontrar aquelas que lhes poderão garantir a comum
fruição da sua condição de seres humanos verdadeiramente tais),
são indicações que levam Kant a pensar que a ideia de um direito
cosmopolita não é uma quimera, e nem é apenas uma ideia da razão,
mas é algo cuja concretização as novas condições do mundo acaba‑
rão por impor aos Estados e a toda a humanidade cada vez com
maior urgência: enquanto direito reconhecido, enquanto ­constituição
ou legislação mundialmente válida e mesmo enquanto instauração
de formas de poder mundial que possam torná­‑lo efectivo e eficaz.

Iv. O Federalismo kantiano: Estado de Povos,


ou Federação de Povos? Estado Mundial,
ou República Mundial?

Diga­‑se, antes de mais, que a ideia de Federalismo é um modo


de Kant institucionalizar — isto é, de garantir efectivas condições
insti­tucionais — para o direito das gentes considerado no sentido da
transformação desse conceito operada por Francisco Vitoria e Fran‑
cisco Suárez e adoptada por Hugo Grócio no dealbar da Moder­
nidade.

458

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Três aspectos há que ter em conta a propósito da noção kantia‑
na de Federalismo: a própria designação, a sua génese e a sua for‑
ma e conteúdo. Kant usa uma notável variedade de expressões para
designar a sua ideia de Federalismo, no que poderá ver­‑se uma
­certa hesitação ou indeterminação, pelo menos ao nível da termi­
nologia, que alguns estendem também ao nível da própria propos‑
ta. Ocorrem de facto, para exprimir a mesma ideia, expressões
como «Federalidade» (Föderalität), «Federalismo de Estados livres»
(Föderalism freier Staaten), «Liga de Povos» (Völckerbund), «União de
Estados» (Staatenverbindung), e ainda a expressão latina Foedus
Anphictyonum.
Como vê Kant a génese da Federação? É este um dos pontos de
originalidade da noção kantiana, na medida em que ela é pensada
por analogia com o processo da própria formação dos Estados e, por
conseguinte, como extensão da mesma necessidade natural e da
mesma racionalidade que levou à génese daqueles. Para Kant, o es‑
tado de natureza dos homens não é, como o pensava Rousseau, um
estado de original harmonia, mas antes, como o descrevera Hobbes,
um estado de violência e de guerra permanente, real ou potencial,
entre os homens, do qual estes têm de sair para o estrado de socie‑
dade, aceitando, por um contrato, subordinar­‑se a um supremo po‑
der que os contenha 47. Só que este poder, para Kant, não é o do prín‑
cipe, como era em Hobbes, mas, como em Rousseau, o da lei comum
que eles a si próprios se dão. Ora, assim como os indivíduos tiveram

47
  A discordância de Kant relativamente a Rousseau e a concordância com
Hobbes neste ponto é uma constante. V. Die Religion innerhalb der Grenzen der
blossen Vernunft, Ak VI, 97 (trad. portuguesa: A Religião nos Limites da Simples
Razão, Edições 70, Lisboa, p. 103): «A proposição de Hobbes: status hominum
naturalis est bellum omnium in omnes não tem nenhum outro defeito a não ser o
de que deveria dizer: est satus belli, etc., mas embora não se admita que entre
os homens que não se encontram sob leis externas e públicas dominem sempre
efectivas hostilidades, contudo, o seu estado (status iuridicus), i. e., a relação
em e pela qual eles são susceptíveis de direitos (da sua aquisição ou conser‑
vação), é um estado em que cada qual quer ele próprio ser juiz sobre o que é
o seu direito frente a outros, a não ceder cada um a sua própria força; é um
estado de guerra em que todos devem estar armados contra todos. A segunda
proposição de Hobbes — exeundum esse e statu naturali, é uma consequência da
primeira; pois este estado é uma lesão contínua dos direitos de todos os outros
por meio da pretensão de ser juiz nos seus próprios negócios, e não deixar a
outros homens nenhuma segurança acerca do que é seu, mas apenas o seu
próprio arbítrio.»

459

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de desistir da sua liberdade natural selvagem (sem lei) e decidir
submeter­‑se a uma lei comum sob um poder que os contém, no uso
da liberdade dentro dos limites da lei, assim os Estados, que, uma
vez constituídos, estão numa situação em tudo análoga à dos ho‑
mens no estado de natureza, ver­‑se­‑ão obrigados, se não querem
viver em situação de permanente insegurança e guerra, «a sair da
situa­ção sem leis dos selvagens e ingressar numa Liga de Povos
[Völkerbund], onde cada Estado, inclusive o mais pequeno, poderia
esperar a sua segurança e o seu direito, não do seu próprio poder ou
da própria decisão jurídica, mas apenas desse grande Foedus Am‑
phictyonum, de um poder unificado e da decisão segundo leis da
vontade unida» 48.
Também na descrição do processo de génese da Federação Kant
dá provas de grande liberdade expressiva, mas a ideia central é
sempre a mesma. Há, porém, pelo menos uma versão que enuncia a
alternativa por uma solução que chamaríamos maximalista ou por
uma outra que chamaríamos minimalista. Assim, segundo Kant, os
Estados, se não quiserem admitir a própria dissolução, seriam for‑
çados a sair da situação selvagem em que se encontram e a entrar ou
numa constituição cosmopolita (solução maximalista), ou numa si‑
tuação legal de federação segundo um direito dos povos comum‑
mente acordado (solução minimalista).
As diferentes formulações da proposta kantiana da ideia de Fe‑
deração dos Povos têm dado azo a divergentes interpretações quan‑
to ao seu conteúdo, extensão e alcance. Os intérpretes alinham­‑se
em dois campos: de um lado, os federalistas, que optam pela leitura
minimalista e fraca das passagens onde Kant expõe o seu projecto
para a paz perpétua entre as nações; do outro, os cosmopolitas (ou
mesmo estatistas), que tendem para uma interpretação maximalista
e forte do programa kantiano. Segundo os primeiros, a Federação
de Povos ou de Estados, proposta pelo filósofo, tem por objectivo
apenas a instituição de um Foedus pacificum de conteúdo meramente
defensivo, onde a presença dos Estados se traduz num Congresso
permanente de carácter consultivo e arbitral, mas sem poder efecti‑
vo para fazer executar as suas decisões e sempre em risco de disso‑
lução. O tardio § 54 da Doutrina do Direito confirmaria esta interpre‑
tação: a ideia de Federação dos Povos (Völkerbund), que constitui o

48
  Idee, Ak VIII, 24.

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cerne da ideia kantiana do direito das gentes (Völkerrecht), tem ca‑
rácter meramente defensivo, visando evitar a guerra e a agressão
mútuas, não consentindo porém a intromissão nos assuntos inter‑
nos de cada Estado. Essa Federação de Povos, diz­‑se aí, não implica
nenhum poder soberano (souveräne Gewalt) sobre todos eles, como
numa constituição civil, mas é apenas uma associação (Genossenheit)
que pode ser revogada em qualquer altura e por isso necessita de
ser renovada de tempos a tempos 49.
Para os segundos, a tese kantiana deve entender­‑se num sen‑
tido forte e como apontando claramente, pelo menos a título de
princípio regulativo, para a formação de um «futuro grande corpo
político». A Federação de Povos seria apenas um primeiro passo
num longo processo em vista da efectiva instauração de um «siste‑
ma de todos os Estados» (System aller Staaten), ou mesmo de um
verdadeiro «Estado mundial» (Weltstaat) ou «Estado dos Povos»
­(Völkerstaat). O projecto kantiano visaria assim ao limite não ape‑
nas uma Liga ou Federação de Povos, mas uma verdadeira «Repú‑
blica mundial» (Weltrepublik), onde os Estados estariam represen‑
tados pelos seus deputados, e que teria competência legislativa,
judicial e executiva própria, acima de cada Estado particularmente
considerado, como o sugeria já o texto acima citado do Curso de
Antropologia do semestre de Inverno de 1775-1776. É um longo ca‑
minho de institucionalização jurídica e política que há que percor‑
rer, mas, como se lê também no ensaio de 84, «por muito que lhes
custe, os Estados são forçados à decisão… de renunciar à sua liber‑
dade brutal e buscar a tranquilidade e segurança numa consti­
tuição legal… até que por fim… por um acordo e legislação co‑
muns no campo exterior, se crie uma situação que, semelhante a
uma comunidade civil, se possa manter por si mesma como um
autómato» 50.
Os textos dão obviamente matéria para as duas interpretações,
sobretudo se não forem lidos integralmente e se a questão do Fede‑
ralismo se isolar do sistema arquitectónico do direito público (öffen‑
tliche Recht) tal como Kant o entende, se não se atender à conexão
que organicamente o filósofo estabelece entre o Zivilrecht (ou Staats‑
recht), o Völkerrecht e o ius cosmopoliticum, ou Weltbürgerrecht. Cone‑

49
  Metaphysische Anfangsgründe der Rechtsklehre (1797), Ak VI, 344.
50
  Idee, Ak VIII, 25.

461

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xão esta que, em última instância, se funda não apenas numa exi‑
gência de orgânica racionalidade, mas também na incontornável
realidade da finitude da Terra, que impede os homens de se isola‑
rem sobre si mesmos e os obriga a relacionarem­‑se entre si e a
entender­‑se por fim, quer queiram quer não. Como se lê no § 43 da
tardia Doutrina do Direito: «porque a Terra não é uma superfície ili‑
mitada, mas uma superfície fechada sobre si mesma, tanto o direito
estatal como o direito das gentes [Völkerrecht] inevitavelmente nos
conduzem à ideia do direito de um Estado dos Povos [Völkerstaats‑
recht] ou do direito dos cidadãos do mundo [Weltbürgerrecht] (ius
cosmopoliticum)» 51.
Vejamos um dos textos mais explícitos que é costume invocar
para sustentar a interpretação federalista: o do ensaio de 1795, Para
a Paz Perpétua. Nos termos do 2.o artigo definitivo para a paz perpé‑
tua, o direito das gentes (Völkerrecht) deve fundar­‑se numa Federa‑
ção de Estados livres, ou numa «federação de povos que, no entan‑
to, não deveria ser um Estado de Povos, pois haveria aí uma
contradição, pois todo o Estado implica a relação de um superior
(legislador) com um inferior (o que obedece, o povo) e muitos povos
num Estado viriam a constituir um só povo, o que contradiz o pres‑
suposto». Portanto, conclui Kant, «temos de considerar aqui o direi‑
to das gentes nas suas relações recíprocas enquanto formam Estados
diferentes, que não devem fundir­‑se num só» 52.
Na mesma linha, na Doutrina do Direito, expressamente se diz
que a Federação visada não será como a dos Estados Americanos
recentemente constituída, pois, ao contrário desta, aquela não tem
qualquer Constituição que se imponha como lei a todos os Estados
federados 53.
Estes são porventura os textos mais explícitos para sustentar a
tese federalista. Mas, se bem e integralmente se ler o fim da explici‑
tação do citado artigo para a paz perpétua, Kant mesmo aí pende
claramente para a tese cosmopolita, quando diz: «Os Estados com
relações recíprocas entre si não têm, segundo a razão, outro remédio
para sair da situação sem leis, que encerra simplesmente a guerra,
se não o de consentir em leis públicas coactivas, do mesmo modo
que os homens singulares entregam a sua liberdade selvagem (sem

51
  Rechtslehre, § 43, Ak VI, 311.
52
  Zum ewigen Frieden, Ak VIII, 354.
53
  Rechtslehre, Ak VI, 351.

462

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leis), e formar um Estado dos Povos (civitas gentium), que sempre
em aumento englobaria por fim todos os povos da Terra.» 54
Penso que a hesitação na formulação ou mesmo a aparente con‑
tradição dos textos se resolvem se tivermos em atenção a afirmação
que segue, do mesmo ensaio de 95: «Mas se eles [os Estados], de
acordo com a sua ideia do direito das gentes, não quiserem isto —
< i. e., ‘formar um Estado dos Povos’ (civitas gentium), submetendo­
‑se a ‘leis públicas de coação’, a uma constituição comum análoga à
constituição civil >, por conseguinte, se rejeitarem in hypothesi o que
é correcto in thesi, então a torrente da propensão para a injustiça e a
inimizade só poderá ser detida, não pela ideia positiva de uma re‑
pública mundial [Weltrepublik], mas, se é que não se quer perder
tudo, pelo sucedâneo [Surrogat] negativo de uma Federação perma‑
nente e em expansão, que evite a guerra, embora subsista o perigo
constante da sua irrupção.» 55
Muitos outros textos corroboram esta ideia. Kant aponta o
­máximo desejável e o mínimo imprescindível. O Federalismo me‑
ramente defensivo é a etapa mínima exigível — o sucedâneo
­(Surrogat) — para alcançar a paz, mas não é a solução completa, tal
como Kant efectivamente a entende in thesi e a vê como possível
mesmo in praxi, embora reconheça que os Estados ainda não estão
maduros para níveis mais elevados de realização da cidadania
mundial. Bem consciente das dificuldades de efectivação imediata
do projecto, Kant condescende no que seria um programa mínimo
possível, mas já decisivo, do acordo dos Estados num Foedus Am‑
phictyonum, que tivesse objectivo e conteúdo meramente defensi‑
vos. Mas, no seu entender, o Federalismo realizado conduz pro‑
gressivamente ao Cosmopolitismo.
Assim sendo, a ideia kantiana de Federalidade ou de Federalis‑
mo teria em vista a «criação de um Estado universal» pela progres‑
siva extensão à humanidade inteira de um direito próprio, por ana‑
logia com o direito interno dos Estados. A humanidade estaria
destinada a formar um Estado cosmopolita, um Estado das Nações,
uma verdadeira civitas gentium, se quer satisfazer plenamente as
exigências do direito. Deste modo ganha sentido a noção proposta
no § 62 da Doutrina do Direito de um ius cosmopoliticum, como parte
integrante do sistema do direito público e como «seu completamen‑

54
  Zum ewigen Frieden, Ak VIII, 357.
55
  Ibidem.

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to necessário», que deve ser reconhecido a todos os homens enquan‑
to cidadãos do mundo ou habitantes da Terra, pelo simples facto
de  o serem. Se ele deve ser reconhecido e tornado público como
um direito efectivo — isto é, se deve ser instituído e constitucionali‑
zado —, necessita de uma instância que o enquadre, o que só pode
ser algo análogo a um Estado mundial. Neste caso, o direito cosmo‑
polita seria o direito constitucional desse Estado mundial — o «fu‑
turo grande corpo político» de que falava o ensaio de 84. Mas ele é
desde já o horizonte para onde deverá tender um mundo no qual os
outros momentos do direito público — o civil republicano e o das
gentes federativo — fossem também progressivamente realizados.
A criação de uma Sociedade das Nações — ou seja, a solução para o
problema do direito das gentes — seria apenas uma primeira etapa
em direcção ao futuro Estado c­ osmopolita.
Parece não haver dúvida quanto ao sentido da posição kantia‑
na. Ela supõe que os Estados, por fim, têm de submeter­‑se a leis de
coacção e formar um «Estado dos Povos» (Völkerstaat) ou uma «Re‑
pública Mundial» (Weltrepublik). Não só a razão mas também a pró‑
pria Natureza os impele a isso. Nada se diz, porém, acerca da forma
deste Estado das Nações ou desta República Mundial, significativa‑
mente traduzidos na linguagem estóica da civitas gentium. Por certo,
não terá a forma de uma «Monarquia universal», forma que Kant
considera monstruosa e que expressamente rejeita, apontando­‑lhe
os inconvenientes: o de não garantir a segurança dos cidadãos, de‑
vido à sua extensão territorial, o de promover o despotismo substi‑
tuindo o poder da Lei pela lei do Poder, o de fundir tudo num só,
anulando as diferenças e até os antagonismos que têm uma função
positiva, estimulando a emulação entre os povos e com isso o desen‑
volvimento das disposições originárias inscritas na natureza huma‑
na. Não estão, porém, excluídas dessa figura da civitas gentium ou
da Weltrepublik outras formas políticas ainda não ensaiadas histori‑
camente, mas que podem vir a ser encontradas no futuro e que se
tornarão viáveis precisamente com o desenvolvimento do direito
dentro de cada Estado e das relações destes uns com os outros. Se‑
rão por certo formas orgânicas, em que seja possível compatibilizar
a própria subordinação dos Estados à lei comum com o sentido da
sua soberania respectiva, a qual, sem dúvida, se verá assim parcial‑
mente limitada, mas é esse o preço que têm de pagar pela sua sobre‑
vivência, tal como o indivíduo, no interior de cada Estado, vê a sua
liberdade natural limitada pela lei comum, mas só nessa condição a
vê também reconhecida, respeitada e efectiva sob a forma de liber‑
dade civil.

464

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V. A analogia cosmológica: o sistema dos
Estados tal como o sistema das estrelas

Toda a filosofia kantiana está construída sobre uma intrincada


rede de analogias 56 e a sua filosofia da política e do direito não é a
isso uma excepção. Já vimos como Kant transpõe para a relação en‑
tre os Estados e para o processo que os conduz à criação da Federa‑
ção o modelo hobbesiano da génese do Estado individual — ou seja,
a passagem do estado de natureza de liberdade sem lei ao estado
civil de liberdade sob leis comuns. Essa analogia é usada quase sem‑
pre numa acepção mitigada (no sentido da solução federalista), mas
algumas vezes ocorre numa acepção plena (dando razão à opção
cosmopolita).
O que leva Kant a aplicar de um modo restrito essa analogia
ao direito das gentes é a necessidade de manter a autonomia e so‑
berania dos Estados sem os dissolver completamente num Super­
‑Estado mundial. Mas por certo Kant pensa que mesmo na solução
minimalista do federalismo defensivo tem que haver alguma limi‑
tação da soberania dos Estados. De resto, sendo livre de entrar na
Federação ou num Estado dos Povos, cada Estado passa a estar aí
numa situação que é simultaneamente de soberano e de súbdito,
na medida em que se faz representar nesse novo corpo em condi‑
ções de igualdade com todos os outros, participando na tomada de
decisões. Mas o teor desta nova relação dos Estados no interior de
uma possível República universal compreende­‑se ainda melhor se
tivermos em conta uma outra analogia que conduz o pensamento
kantiano, em particular neste ponto. Refiro­‑me à analogia cosmo‑
lógica, a qual tem escapado à generalidade dos intérpretes da ideia
kantiana de Federalismo e da filosofia política kantiana. Correcta‑
mente entendida, no sentido kantiano, aquela analogia ajuda a
­esclarecer o entendimento que o filósofo fazia das relações entre
os Estados e da Liga ou Federação de Estados, mas também entre os
Estados e um possível Estado dos Povos, sem ferir o princípio de
autonomia daqueles e sem cair nos riscos de uma Monarquia uni‑
versal, na qual se dissolvessem todas as diferenças e se anulasse a
liberdade.

  Como penso ter mostrado amplamente em Metáforas da Razão ou Econo‑


56

mia Poética do Pensar Kantiano (FLUL, Lisboa, 1989), JNICT/F. C. Gulbenkian,


Lisboa, 1994.

465

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Desde a sua juventude 57, ampliando a visão newtoniana do cos‑
mos e os respectivos pressupostos e refundindo toda a especulação
cosmológica dos filósofos renascentistas e modernos, Kant cons‑
truiu uma representação própria do cosmos como um vasto sistema
de sistemas, em que cada sol, sendo o centro de um sistema regio‑
nal, forma, por sua vez, com outros sóis, um sistema mais vasto que
tem também ele o seu centro e em torno do qual todos por sua vez
giram. A Via Láctea, para cuja formação Kant propôs a primeira teo­
ria historicamente conhecida, é um desses mega­ssistemas de siste‑
mas de estrelas. Mesmo no nosso sistema solar, a relação dos corpos
que o constituem é de tal ordem que, embora todos os corpos girem
em torno de um centro comum, não deixam, porém, de girar tam‑
bém em torno de si próprios, operando, por conseguinte, um duplo
movimento, sustentado pelas leis físicas da atracção e repulsão, se‑
gundo a teoria newtoniana da gravitação universal. A correspon‑
dente desta relação antinómica de forças físicas cosmológicas é, no
plano político, o «insuperável antagonismo» dos Estados entre si e,
no plano antropológico, a «insociável socialidade» que Kant lê ins‑
crita na própria natureza dos homens. A vantagem desta analogia
cosmológica está em que ela permite a compreensão de como é pos‑
sível conciliar a autonomia de cada corpo e a dependência mútua
relativamente a um centro comum. Ela mostra de um modo intuiti‑
vo como cada parte depende do todo e o todo depende das partes,
sem contudo alguma vez as absorver ou anular. O sistema subsiste
precisamente enquanto se mantiverem as diferenças, se guardarem
as distâncias, se observar o justo equilíbrio entre as forças atractivas
e as forças repulsivas.
Kant resiste a um modelo que implicasse a negação da liberda‑
de ou resultasse na anulação absoluta das diferenças, e é por isso
que recusa o modelo da Monarquia universal (Universalmonarchie,
allgemeine Alleinherrschaft), que seria um «monstro no interior do
qual as leis perderiam a sua força» (dieses Ungeheuer in welchem di
Gesetze allmählich ihre Kraft verlieren) e se tornaria uma «sepultura»
(Grab) da liberdade, ainda mais prejudicial do que o próprio estado
de guerra entre os povos 58. A pax kantiana não é a paz dos cemitérios,

57
  Tenha­‑se presente a obra Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des
­ immels (1755), na qual o filósofo expõe a sua primeira síntese filosófica sob a
H
forma de uma cosmogonia.
58
  Die Religion, Ak VI, 34.

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mas a paz civil, isto é, aquela em que os diferendos entre os Estados
— tal como entre os cidadãos de uma república — são resolvidos
pela lei que todos reconhecem e pelas instituições que eles mesmos
tenham criado e a que se submetem para tornar efectiva essa lei.
Como se lê num dos parágrafos da Crítica do Juízo: «Posso pensar,
segundo a analogia com a lei da igualdade da acção e reacção na re‑
cíproca atracção e repulsão dos corpos entre si, também a comunida‑
de dos membros de uma república segundo as regras do direito.» 59
Mas esta analogia tirada da relação de forças cosmológicas pode
ser transposta para um plano ainda mais vasto, abrangendo as rela‑
ções entre os Estados num universal «Sistema de todos os Estados». 60
É assim que o lemos também numa reflexão do espólio kantiano,
nestes termos: «O Estado é um corpo de sociedades livres, o qual
por sua vez constitui com outros ainda maiores um corpo, tal como
os sistemas das estrelas.» 61
Cada Estado é em si mesmo um sistema de relações entre con‑
cidadãos, o qual, por sua vez, se integra num sistema de sistemas,
numa Federação de Nações ou num Estado dos Povos, segundo
uma relação dinâmica e cada vez mais complexa de forças de atrac‑
ção e repulsão, de acção e reacção, de autonomia e de mútua depen‑
dência. Kant pode ver assim já em curso a preparação da formação
de «um futuro grande corpo político» (künftigen grossen Staatskörper) 62,
sem exemplo histórico precedente, de que ainda só se pode captar o
«projecto grosseiro», o qual, porém, suscita já um sentimento favo‑
rável em todos os membros interessados na manutenção do todo e
que alimenta a esperança de que, após muitas revoluções e transfor‑
mações, se realizará por fim aquilo que a razão recomenda e pres‑
creve como propósito supremo para a humanidade sobre a terra: a
instauração de um Estado de soberania mundial como o ambiente
propício para que se desenvolvam todas as disposições que a Natu‑
reza originariamente atribuiu à espécie humana.
Ao filósofo, como se lia no citado Curso de Antropologia do ano
de 1775-1776, cabe delinear e dar a conhecer a sua ideia, mesmo se
ainda tosca, na esperança de que ela venha a merecer a apreciação,
a explicitação e a concretização por parte dos vindouros. A concreti‑

59
  Kritik der Urteilskraft, Ak V, 464­‑465.
60
  Kritik der Urteilskraft, § 83, Ak V, 432.
61
  Reflexion 1349, Ak XV, 607.
62
  Idee, Ak VIII, 28.

467

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zação dessa ideia, que faz parte da utopia kantiana, só é possível na
longa paciência da história e o filósofo, para além da confiança que
tem na Natureza e no seu «plano secreto», deposita a sua esperança
no carácter pedagógico das instituições políticas e no poder de um
sistema de educação que abra progressivamente os homens para o
sentido dos objectivos universais e essenciais da humanidade. Como
se lê na parte final de um Curso de Ética do ano de 1785: «Se olhar‑
mos para a parte mais ilustrada do mundo, comprovaremos que
­todos os Estados estão de armas levantadas uns contra os outros.
O que constitui um obstáculo a que o homem se aproxime do fim
universal da sua perfeição. Se se levasse a cabo a proposta do Abade
de Saint­‑Pierre sobre um universal Senado dos Povos, isso constitui‑
ria um notável avanço do género humano, um verdadeiro ponto
alto no seu caminho para a perfeição. Pois tal evento poderia inau‑
gurar a época em que se propiciaria aquela meta. Mas não há que
esperar algo nesse sentido da parte dos príncipes, os quais gover‑
nam segundo o seu capricho, sem que sobre eles tenha qualquer
ascendente a ideia do Direito. Como se há­‑de então tornar possível
essa perfeição e de onde poderemos esperá­‑la? Não existe outro ca‑
minho a não ser o da educação. […] Uma educação apropriada aca‑
baria com as vistas curtas e sensibilizaria os homens para uma fór‑
mula contratual de carácter global. Uma vez assentes as bases, a
ideia propagar­‑se­‑ia até ganhar raízes no juízo de todos e de cada
um dos homens. Não é o monarca o único que tem de ser formado
nesta ideia, a qual deve estender­‑se a todos os membros do Estado,
como modo de este ganhar solidez. Tem sentido esperar tal coisa?
As instituições educativas de Basedow representam uma pequena e
cálida esperança nesse sentido. Quando a natureza humana tiver
alcançado o seu pleno destino e a sua máxima perfeição possível,
instaurar­‑se­‑á o Reino de Deus na Terra, dominarão então a justiça e
a equidade em virtude de uma consciência interna e não por causa
de uma qualquer autoridade pública. Esta é a suprema perfeição
moral que pode alcançar o género humano, o fim último a que foi
destinado, embora só possamos esperar alcançá­‑lo no decurso de
muitos séculos.» 63

63
  Eine Vorlesung über Ethik, ed. P. Menzer, Berlin, 1924, p. 318 (ed. de G.
Gerhardt, Fischer, 1990, pp.  269­‑270).

468

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13

Kant e o republicanismo moderno

Ao propor­‑me abordar neste ensaio o contributo de Kant para a


ideia moderna de república e de republicanismo, gostaria de mos‑
trar que esse contributo se revela decisivo sobretudo pela inscrição
orgânica do tema numa visão geral da história humana e da desti‑
nação moral da humanidade ritmada pela criação de instituições
políticas fundadas nos princípios do direito e exigidas pela razão,
podendo, por isso, dizer­‑se que se deve ao filósofo crítico a reinven‑
ção da ideia de república e de republicanismo, uma reinvenção de
cuja reavaliação crítica ainda muito se pode aprender.
Devo, porém, começar por reconhecer que associar Kant ao re‑
publicanismo pode, à primeira vista, não parecer assim tão óbvio e
pertinente. De facto, na história de dois séculos de hermenêutica do
Kantismo, mesmo quando se deu alguma atenção ao pensamento
político de Kant, não foi esse o tópico destacado. Kant viu­‑se inscri‑
to por vezes na linhagem do liberalismo político, ou, mais recente‑
mente, na família dos filósofos contratualistas modernos. De resto,
só há cerca de quatro décadas se voltou a dar significativa atenção
ao tópico do republicanismo em obras de teoria e filosofia política 1.
Ora, precisamente na obra que por muitos é considerada como a
mais representativa do actual renascimento do interesse por esse

  V. Knud Haakonssen, «Republicanism», in R. E. Goodin, Philip Pettit


1

(eds.), A Companion to Contemporary Political Philosophy, Blackwell, London,


1995, pp. 568­‑574: «In the 1960s republic and republicanism hardly figured in
political theory. Today they are prominent […] topics in political thought in the
English­‑speaking world.»

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tópico, como é a de Philip Pettit 2, na qual se procede a uma reavalia‑
ção da tradição do pensamento republicano e se faz uma reinterpre‑
tação do programa e pressupostos do republicanismo, não se encon‑
tra qualquer relevante referência a Kant ou à ideia kantiana de
república. E mesmo alguns intérpretes recentes de Kant que tocam
o tema chegam por vezes à constatação da dificuldade de conciliar
na filosofia de Kant o elemento liberal­‑contratualista e o elemento
republicano nela presentes, como se Kant hesitasse ou «balançasse»
entre uma concepção liberal, tendencialmente individualista, e uma
concepção republicana, tendencialmente comunitarista, sendo o seu
republicanismo classificado por alguns como um «republicanismo
liberal» 3, ou o seu pensamento político visto como a tentativa de
fundar uma nova ordem social de inspiração republicana sobre os

2
  Republicanism. A Theory of Freedom and Government, Oxford University
Press, Oxford, 1997. Pode também acompanhar­‑se o recente renascimento do
interesse pelo tema da República e do Republicanismo em geral através das
seguintes obras: B. Fontana (ed.), The Invention of the Modern Republic, Cam‑
bridge University Press, Cambridge, 1994; Maurizio Viroli, Republicanism, Hill
and Wang, New York, 2002; Newton Bignotto (org.), Pensar a República, Edi‑
torial da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2002; Cass
Sunstein, After the Rights Revolution. Reconceiving the Regulatory State, Harvard
University Press, Cambridge (Mass.) & London, 1990; Martin van Gelderen
and Quentin Skinner (eds.), Republicanism. A Shared European Heritage (vol. 1:
Republicanism and Constitutionalism in Early Modern Europe; vol 2: The Values
of Republicanism in Early Modern Europe), Cambridge University Press, Cam‑
bridge, 2005.
3
  André Berten, «A compatibilidade do republicanismo kantiano com o
modelo do contrato social», in Leonel Ribeiro dos Santos e José Gomes André
(coord.), Filosofia Kantiana do Direito e da Política, CFUL, Lisboa, 2007, pp. 13­
‑41, sobretudo p. 16: «As formas contemporâneas de republicanismo compar‑
tilham várias características com o liberalismo, o que facilitará, sem dúvida,
o julgamento sobre o ‘republicanismo liberal’ de Kant. Pois o liberalismo e o
republicanismo ‘compartilham uma mesma fé na autoridade da lei e do Esta‑
do de direito’». Berten cita, a propósito, o artigo de Philip Pettit, «Libéralisme.
Libéralisme et Républicanisme», in Monique Canto­‑Sperber (dir.), Dictionnai‑
re d’éthique et de philosophie politique, PUF, Paris, 2004, II, p. 1082. A respeito
desta oposição, cite­‑se a conclusão de K. Haakonssen (art. cit., p. 571): «The
opposition between liberalism and republicanism, while a source of inspira‑
tion for the recent revival of the latter, is more an invention of this revival
than ascertainable historical fact. The same may be said of another, closed
associated phenomenon, the warm embrace of republican ideas by commu‑
nitarianism.»

470

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pressupostos jusnaturalistas do liberalismo burguês, numa aliança
de Rousseau com Locke 4.
Acresce ainda uma outra dificuldade, essa de cariz linguísti‑
co. Embora, sobretudo nos seus escritos da década de 90, Kant use
com frequência os termos «República» (Republik), «Republicanis‑
mo» (Republikanismus), «republicano» (republikanisch), «constitui‑
ção republicana» (republikanische Verfassung), são muitas mais as
vezes em que usa, não só nos escritos políticos como até mesmo
nos escritos de filosofia teorética, a expressão alemã — das gemeine
Wesen ­— que na época traduzia directamente a expressão latina
respublica. Ora, os tradutores de Kant, nomeadamente os portu‑
gueses mas também outros, costumam verter aquela expressão
alemã, mesmo quando ela ocorre nos escritos políticos, não por
república, mas por termos mais vagos, como comunidade ou Estado,
impedindo assim não só o acesso à compreensão do verdadeiro
pensamento político do autor, como também à compreensão da
peculiar ambiência semântica política que envolve a obra filosófi‑
ca kantiana 5.
Neste ensaio proponho­‑me, pois: 1) mostrar quão conatural e
íntima é à filosofia kantiana a concepção republicana; 2) explicitar os
aspectos essenciais da noção kantiana de república e de republicanis‑
mo; 3) situar estas noções no contexto da ideia kantiana de constru‑
ção progressiva de uma paz duradoura entre todos os povos da ter‑
ra, mediante a criação de instituições políticas fundadas nos princípios
do direito e no respeito pela dignidade dos seres humanos (ou seja,
inscrever o republicanismo kantiano no contexto da filosofia kantia‑
na da história e da política) e mostrar como pensa o fi­ lósofo a neces‑

  Maximiliano Hernández Marcos, «Kant entre tradición y modernidad.


4

Hacia una nueva visión republicana de la sociedad civil», in António Manuel


Martins (coord.), Sociedade Civil. Entre Miragem e Oportunidade, FLUC, Coimbra,
2003, pp. 117­‑144.
5
  Na maior parte das vezes, o termo «República» (do latim Respublica)
era usado pelos filósofos políticos modernos num sentido vago, como sinóni‑
mo de «Estado» ou de sociedade politicamente organizada, podendo desig‑
nar também as formas de monarquia. É assim que, por exemplo, Jean Bodin
publica em 1576 La République, um tratado sobre os atributos do Estado mo‑
nárquico. Essa ambígua latitude do termo persiste até à época de Kant. Por
outro lado, nem todas as (ou mesmo nenhuma das) assim chamadas repúbli‑
cas que a História regista eram republicanas, no sentido qualificado que Kant
dá a este termo.

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sária transição da república estatal ou das repúblicas estatais singu‑
lares à «república mundial» federalista e cosmopolita, e 4) explicitar
os principais ingredientes da noção kantiana de republicanismo.

I.  A razão da República e a república da Razão

Nos últimos 40 anos, tem­‑se assistido a um crescente interesse


pela filosofia política de Kant, ao ponto de se poder falar de um
novo «regresso a Kant» no último quarto do século  xx, mas desta
feita um regresso não ao Kant da teoria do conhecimento, como no
último quarto do século xix, e sim ao Kant da filosofia prática, enten‑
dida esta em toda a sua extensão como filosofia moral, filosofia po‑
lítica e filosofia do direito. Este novo interesse é tanto mais surpre‑
endente quanto contrasta com o quase total desinteresse de quase
dois séculos de hermenêutica do Kantismo pela filosofia política e
jurídica kantiana. Longe de serem considerados como uma secção
secundária e menor da vasta produção do autor das três Críticas,
estes domínios revelam­‑se agora como centrais e essenciais, deven‑
do ser tidos em conta por quem queira aceder a uma pertinente
compreensão do significado filosófico e histórico da filosofia kantia‑
na. Mais ainda: vários intérpretes recentes foram levados a reconhe‑
cer que mesmo a grande obra de filosofia teorética do filósofo — a
Crítica da Razão Pura ­— está estruturada e escrita num ambiente se‑
mântico configurado por uma pregnante linguagem política e por
um explícito paradigma político­‑jurídico, graças aos quais a própria
Razão pensa e se faz pensar como se fosse ela mesma uma institui‑
ção republicana. Isso diz­‑se na linguagem e metafórica envolvente,
nos processos argumentativos utilizados, nos pressupostos da liber‑
dade e da igualdade requeridos para o exercício mesmo da razão,
na recusa do despotismo filosófico — representado pelo dogmatis‑
mo especulativo que despreza o povo da experiência sensível —, na
própria noção de crítica como exercício responsável da maturidade
civil de quem sabe ser intérprete dos seus próprios interesses e não
precisa de tutores que lhe indiquem em que sentido deve pensar ou
pronunciar o seu voto ou o seu veto, enfim, na razão concebida
como um espaço livre, aberto e público de partilha efectiva de pen‑
samentos sem constrangimentos e onde as decisões são obtidas por
consenso ou assentimento livre de cidadãos, ou, em caso de conflito
entre estes, decididas, não arbitrariamente por quem tem ou se arro‑
ga ter o poder, mas mediante um processo análogo ao proce­dimento
forense, onde é dada a cada parte ­— aos representantes das antino‑

472

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mias da razão — a possibilidade de exporem a sua causa e os seus
argumentos perante um juiz, que decidirá da legitimidade das suas
pretensões.
Cito, a título de amostra, apenas um passo entre muitos, onde
essa concepção republicana da razão inequivocamente se expõe nas
páginas da Crítica da Razão Pura:

Em todos os seus empreendimentos deve a razão


submeter­‑se à crítica e não pode fazer qualquer ataque à
liberdade desta, sem se prejudicar a si mesma e atrair so‑
bre si uma suspeita desfavorável. Nada há de tão impor‑
tante, com respeito à utilidade, nem nada de tão sagrado
que possa furtar­‑se a esta investigação aprofundada que
não faz excepção para ninguém. É mesmo sobre esta liberda‑
de que assenta a existência da razão; esta não tem autoridade
ditatorial alguma, mas a sua decisão outra coisa não é senão o
acordo de cidadãos livres, cada um dos quais deve poder expri‑
mir as suas reservas e mesmo exercer o seu veto sem impedi‑
mentos. 6

Quando, há 20 anos atrás, arrisquei apresentar esta linha de lei‑


tura da obra kantiana, mostrando que a própria filosofia transcen‑
dental estava escrita no ambiente semântico de uma grande alegoria
da razão concebida como instituição republicana, estava bem longe
de poder imaginar que uma tal interpretação viesse a ser confirma‑
da, ao longo das duas décadas seguintes, por vários outros intérpre‑
tes estrangeiros, trabalhando de resto por vias completamente autó‑
nomas. Esta constatação, agora sustentada por diferentes intérpretes,
permite perceber melhor a co­‑naturalidade e até mesmo a intimida‑
de que existe entre a filosofia crítico­‑transcendental kantiana e a fi‑
losofia político­‑jurídica kantiana 7. Ao mesmo tempo, ela já deixa

  Kritik der reinen Vernunft, B 766­‑767; Ak III, 484 (itálico meu).


6

  V. a minha dissertação Metáforas da Razão ou Economia Poética do Pensar


7

Kantiano, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 1989 (reed.:


JNICT/F. C. Gulbenkian, Lisboa, 1994), parte ii, cap. vii: «A instauração republi‑
cana da razão. Paradigmas político­‑jurídicos do pensar kantiano», pp. 561­‑631,
e ainda o meu ensaio: «A ‘Revolução da Razão’ ou o paradigma político do pen‑
samento kantiano» [1989], Análise, 16 (1992), pp.  21­‑33 (retomado em Leonel
Ribeiro dos Santos, A Razão Sensível. Estudos Kantianos, Edições Colibri, Lisboa,
1994, pp.  69­‑84). Mais recentemente, inscreve­‑se na mesma linha hermenêu‑

473

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suspeitar que a descoberta kantiana da filosofia política não foi,
como por vezes se tem escrito, um acontecimento tardio, uma «vira‑
gem» resultante do impacte que sobre o velho filósofo viriam a ter
os acontecimentos da Revolução Francesa de 1789, mas que, bem
pelo contrário, ela terá tido origem na mesma época em que Kant
elaborava e redigia a sua Crítica da Razão Pura 8.
Ora, tal suspeição viu­‑se sustentada pela recente publicação dos
registos dos cursos universitários de Kant sobre Antropologia, toma‑
dos por alguns dos seus alunos, através dos quais se tornou patente
que o núcleo do pensamento político de Kant, que só ­se  tornaria
­conhecido do público mais vasto através dos ensaios ­publicados a
partir de meados da década de 80 e sobretudo na década de 90,
anunciava­‑se já com todos os seus tópicos essenciais num Curso de
Antropologia leccionado no semestre de Inverno de 1775-1776. Nesse
Curso, datado do Outono de 75, não aparece nem a expressão «repú‑
blica» nem a correspondente expressão alemã «das gemeine Wesen».
Aponta­‑se aí como uma tarefa que a Humanidade deve rea­lizar por
fim na sua história, «mediante muitas revo­luções» (durch viele Revo‑
lutionen), a erecção de um «estado civil» ­(bürgerliche ­Zustand), que

tica a dissertação de Maximiliano Hernández Marcos ­— La Crítica de la razón


pura como proceso civil. Sobre la interpretación jurídica de la filosofía trascendental
de I. Kant, Universidad de Salamanca, Salamanca, 1993 ­— e também a ideia
central que preside à obra de Otfried Höffe, Kant’s Cosmopolitan Theory of Law
and Peace (ed. original: Königliche Völker. Zu Kants Kosmopolitischer Rechts­— und
Friedenstheorie, Suhrkamp, Frankfurt a. M., 2001), Cambridge University Press,
Cambridge, 2006, sobretudo o cap. 12: «The Critique of Pure Reason: A Cosmo­
‑Political Reading». Cito do prefácio a esta última a seguinte passagem, que
confirma a minha própria leitura da filosofia de Kant, proposta na dissertação
e ensaio acima mencionados: «A novel political reading of the Critique of Pure
Reason shows that the cosmopolitan concept of peace, relevant to Kant’s entire
philosophy, has implications even for what continues to be his most renowned
work, the first Critique. Contrary to the popular contention that Kant’s theoreti‑
cal philosophy resembles a monologue, it in fact has both a republican and a
world citizen character.» (p. xviii.)
8
  Não posso, por conseguinte, subscrever a tese de Volker Gerahrdt (Im‑
manuel Kants Entwurf >Zum ewigen Frieden<. Eine Theorie der Politik, Wissens‑
chaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt, 1995, pp.  15­‑19) segundo a qual teria
sido o acontecimento histórico da Revolução Francesa (1789), e as guerras que
esta desencadeou no início dos anos 90 o que teria provocado no pensamento
de Kant uma «viragem» (Wende) para a política e uma sensibilização para o
problema da guerra e da paz.

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ainda não existe perfeito em lado nenhum (Nun ist aber der Mensch
noch nicht in der Vollkommenheit des bürgerlichen ­Zustandes) e no qual
apenas se poderão desenvolver todos os talentos humanos (in bür‑
gerlichen Zustande allein entwickelt der Mensch ­seine Talente), e esse es‑
tado civil deve ser uma «sociedade de seres iguais» (Gesellschaft glei‑
cher Wesen), na qual «tudo esteja construído segundo as regras do
direito e da moralidade» (in welchem alles nach vollständigen Regeln
des Rechts und der Moralität errichtet seyn wird) 9.
É nesse mesmo contexto que surge já a proposta kantiana para
criar as condições jurídico­‑políticas que possam conduzir à progres‑
siva eliminação das guerras que impedem o desenvolvimento do
destino da Humanidade e mesmo à paz duradoura, mediante a
ideia de uma «união de povos» (Völckerbund). Aí se lê o que pode
considerar­‑se o tema que encontrará a sua cabal explicitação 20 anos
depois, no ensaio de 95, Zum ewigen Frieden, e que nessa sua mais
prístina formulação reza assim:

Para que todas as guerras deixem de ser necessárias,


deveria surgir uma união de povos, onde todos os povos,
através dos seus deputados, constituiriam um universal se‑
nado dos povos, que decidiria todos os conflitos dos povos,
e este juízo deveria ser executado através do poder dos po‑
vos, pois assim estariam também os povos submetidos a
um forum e a uma coacção civil. Este senado dos povos se‑
ria o mais esclarecido que alguma vez o mundo viu. É por
isso que se deve começar, pois antes que isso se estabeleça,
as guerras não terão fim, o que não pode acontecer, pois a
guerra torna cada Estado inseguro. 10

  Vorlesungen über Anthropologie (Friedländer: Winter­‑Semester 1775-1776),


9

Kant’s gesammelte Schriften, vierte Abteilung: Kants Vorlesungen, herausgegeben


von der Akademie der Wissenschaften zu Göttingen, Band II: Vorlesungen über
Anthropologie, bearbeitet von Reinhardt Brandt und Werner Stark, Akademie­
‑Ausgabe, Walter de Gruyter, Berlin, 1997, Ak XXV, pp. 690 e segs.
10
  «Damit aber alle Kriege nicht nöthig wären, so müste ein Völckerbund
entspringen, wo alle Völcker durch ihre Deputirte einen allegemeinen Völcker
Senat constituirten, der alle Streitigkeiten der Völcker entscheiden müsste, und
dieses Urtheil müste durch die Macht der Völcker executirt werden, denn stün‑
den auch die Völcker unter einem foro und einem bürgerlichen Zwange. Dieser
Völcker Senat wäre der erlauchteste, den jemals die Welt gesehen hat. Darinn
scheint der Anfang zu suchen zu seyn, denn ehe die Kriege kein Ende nehmen,

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Tal como nos outros domínios do seu pensamento, assim tam‑
bém a filosofia política de Kant se vai explicitando paulatinamente,
como um germe ou embrião que desde dentro se desenvolve e vai
encontrando de cada vez novos aspectos e também a linguagem
mais apurada para se expor. Se nesse Curso de 1775 não aparece ain‑
da nem o termo «república» nem a correspondente expressão alemã
das gemeine Wesen, a realidade que por esses nomes se virá a exprimir
posteriormente insinua­‑se já quando se aponta como horizonte que
dá sentido aos esforços humanos para sair do rude e selvagem esta‑
do de natureza e atingir o mais perfeito estado civil, ao fim de muitas
revoluções, a instauração de «uma sociedade de iguais... na qual
tudo está fundado nas regras do direito e da moralidade». Assim, a
verdadeira ideia kantiana de república e de republicanismo não deve
procurar­‑se andando para trás — nas experiências históricas que le‑
vam esse nome ou na história das ideias políticas — mas para a fren‑
te, como realização de uma exigência da razão, e ela recomenda­‑se
pela sua qualificação jurídica e moral e é por isso que é também a
mais capaz de resolver tecnicamente a pacificação não só no interior
de cada Estado como até nas relações entre os Estados.
Também num curso de Antropologia, mas agora do semestre de
Inverno de 1781 (datado de Outubro desse ano), os mesmos temas
são retomados, mas aparece pela primeira vez uma trilogia de con‑
ceitos que passarão a constituir os termos segundo os quais Kant
formula a equação do problema político, a saber: a liberdade, a lei, e
o poder. Segundo o modo como estes três elementos estejam dados
conjuntamente (ou não) e se relacionem entre si, assim teremos a
boa ou má solução política. Nesse mesmo contexto, é já frequente o
recurso à expressão «gemeines Wesen» para designar a constituição
civil mais qualificada 11. Cito um excerto:

As exigências principais para uma sociedade civil [bür‑


gerlichen Gesellschaft] são a liberdade, a lei e o poder. A liber‑

kann solches nicht zu Stande kommen, denn der Krieg macht jeden Staat un‑
sicher...» Ibidem, p. 696.
11
  Ibidem, p. 1200: «... ein gemeines Wesen regiert sich schon selbst, und
besteht in einer systematischen Verfassung des Volks... Ein Volk, vereinigt in
einem gemeinen Wesen, insofern es Macht hat, nennt man einen Staat.» (... uma
república governa­‑se já a si mesma e consiste numa constituição sistemática
do povo... Um povo, unido numa república, na medida em que tem poder,
chamamos­‑lhe um Estado.)

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dade e o poder sem a lei constituem o estado de natureza,
do qual os homens devem sair, pois possuem razão. À li‑
berdade e lei sem o poder podíamos chamar o governo po‑
laco, um admirável capricho, no qual a nobreza deste país
caiu e que encerra algo completamente insensato e contra‑
ditório. Este é o primeiro esboço rude para uma constitui‑
ção civil. A lei e o poder sem a liberdade são o despotismo.
Este é propriamente poder bárbaro <quando> sem lei; por
certo, este é melhor do que a liberdade bárbara, pois, no
primeiro caso, ainda é possível educação [Bildung]. A au‑
têntica constituição civil é muito trabalhosa [künstlich] e
consiste nisto, que o homem tenha tanta liberdade quanta
possa encontrar e que seja compatível com a limitação da
liberdade de todos de acordo com leis (justas). Aqui tem de
haver uma lei e tanto poder quanto necessário para execu‑
tar a lei. […] A liberdade sob uma lei e conectada com o
poder, consiste nisso, que as leis são dadas de tal modo
como se tivessem origem mediante a voz universal do
povo. Estas leis têm de visar todos, valer para todos e po‑
der ser dadas por todos; só então merecem o nome de leis
justas. Se, por conseguinte, a liberdade, a lei e o poder se
encontram juntamente, então a constituição civil é a mais
conforme à regra e a melhor. 12

12
  «Die Haupterfordernisse zu einer bürgerlichen Gesellschaft sind die
Freiheit, das Gesetz, und die Gewalt. Die Freiheit und die Gewalt ohne das
Gesetz machen den Naturzustand aus, aus welchem die Menschen heraus‑
gehen sollen, weil sie Vernunft haben. Die Freiheit und das Gesetz ohne die
Gewalt könnte man die polnische Regierung nennen; eine wunderbare Grille,
worauf der Adel in diesem Lande gefallen ist, und die ganz etwas Widersin‑
niges und Widersprechendes enthält. Dies ist der erste rohe Entwurf zu einer
bürgerlichen Verfassung. Das Gesetz und die Gewalt ohne die Freiheit sind
der Despotismus. Dieser ist eigentlich barbarische Gewalt ohne Gesetz; doch
ist dies noch besser als barbarisches Freiheit, weil im ersten Falle doch noch
Bildung möglich ist. Die ächte bürgerliche Verfassung ist sehr künstlich, und
besteht darin, dass der Mensch so viel Freiheit hat, als statt finden kann, und
als sich mit der Beschränkung der Freiheit Aller nach dem (gerechten) Gesetze
verträgt. Hier muss ein Gesetz seyn, und so viel Gewalt, als nöthig, das Gesetz
zu vollziehen. […] Die Freiheit unter einem Gesetz und mit der Gewalt verbun‑
den, besteht darin, dass die Gesetze so gegeben werden, als ob sie durch die
allgemeine Stimme des Volks entstanden seyn. Diese Gesetze müssen auf Alle
gehen, für Alle gelten und von Allen gegeben werden können; dann verdienne

477

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É a esta última solução que mais tarde o filósofo vai chamar
propriamente a República, apresentando­‑a como sendo a única que
merece ser tida por verdadeira constituição civil, em oposição ao
despotismo, à barbárie e à anarquia, aos quais falta algum dos três
referidos elementos. Isso acontece precisamente na penúltima pági‑
na da versão tardiamente publicada da Antropologia de um Ponto de
Vista Pragmático, nestes termos:

Liberdade e lei (pela qual a liberdade é limitada) são os


dois eixos em torno dos quais gira a legislação civil. Mas
para que a lei seja eficaz, e não uma simples recomendação,
deve acrescentar­‑se um termo médio, o poder, que, ligado
aos princípios da liberdade, assegura o sucesso dos da lei.
Só é possível conceber quatro formas de combinação deste
último elemento com os dois primeiros:

A. Lei e liberdade sem poder (Anarquia):


B. Lei e poder sem liberdade (Despotismo);
C. Poder sem liberdade nem lei (Barbárie);
D. Poder com liberdade e lei (República). 13

Na verdade, para Kant, só há duas formas de governo que me‑


recem esse nome, embora o sejam de qualidade muito diferente — o
despotismo e o republicanismo —, pois nem a anarquia nem a bar‑
bárie são realmente formas de governo, mas antes a sua negação.
Constitui um tópico recorrente da antropologia política kantiana,
presente já neste seu primeiro esboço, o paradoxo exposto na tese
segundo a qual «o homem precisa de um senhor que o governe e
eduque, o qual, porém, deve ser tirado da própria espécie humana,
sendo, por conseguinte, também esse um homem, que igualmente

sie erst den Namen gerechter Gesetze. Wenn also Freiheit, Gesetz, und Gewalt
zusammen statt finden, so ist die bürgerliche Verfassung die regelmässigste
und beste.» Ibidem, pp.  1200­‑1201. A apreciação negativa da forma polaca de
governo é recorrente em Kant (Reflexionen zur Anthropologie, Refl. 1947, Ak XV,
p. 773; Anthropologie, Ak VII, p. 319) e encontrava­‑se já em Montesquieu, que
dizia «l’indépendance de chaque particulier est l’objet des lois de Pologne; et
ce qui en résulte, l’oppression de tous». De l’Esprit des Lois, XI, chap. v, Garnier­
‑Flammarion, Paris, 1979, vol. i, p. 293.
13
  Anthropologie, Ak VII, 330­‑331.

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precisa de um senhor» 14. Daí que o filósofo, apesar de tudo, ainda
considere preferíveis as formas de despotismo (nomeadamente as
modernas formas de monarquia absoluta esclarecida) às formas de
libertarismo anárquico, pois acredita que aquelas podem vir a ser
educadas e assim progressivamente reformadas «segundo o espíri‑
to do republicanismo» ou de modo republicano, e que os monarcas,
embora reinem autocraticamente, possam contudo governar republica‑
namente 15. É isso precisamente o que o filósofo, apesar de tudo, apre‑
cia e louva no seu rei Frederico II 16.

II. Kant e a tradição do republicanismo

O termo República, mesmo nos escritos de alguns pensadores


políticos da Modernidade, é frequentemente usado numa acepção
muito ampla e vaga. Ele fala a língua do Lácio — res publica ­— e foi
entre os Romanos, e graças sobretudo a Cícero, que adquiriu aquela
peculiar significação que se pretendeu restaurar em vários momen‑
tos da posterior história das ideias e instituições políticas 17. É assim
que o republicanismo ciceroniano e romano inspirará o «humanis‑
mo cívico» e o pensamento político de alguns pensadores do Renas‑
cimento, nomeadamente dos florentinos Coluccio Salutati, ­Leonardo
Bruni e Nicolau Maquiavel 18, e também o de alguns pensadores mo‑

14
  «Der Mensch ist ein Geschöpf, welches einen Herrn nöthig hat... Diesen
Herrn kann nun der Mensch aus keinem andern Geschlechte als aus seiner
Menschengattung hernehmen, welches aber ein wahres Unglück für das men‑
schliche Geschlecht ist, da eben dieser Herr, den der Mensch über sich wählt,
auch ein Mensch ist, der ebenfalls einen Herrn nöthig hat.» Kants Vorlesungen
(Menschenkunde, Winter­‑Semester 1781-1782), Ak XXV, pp.  1199­‑1200; Idee,
Ak VIII, 23.
15
  Streit der Fakultäten, Ak VII, 87: «Autokratisch herrschen, und dabei doch
republikanisch, d. h., im Geiste des Republikanism und nach einer Analogie mit
demselben, regieren, ist das, was ein Volk mit seiner Verfassung zufrieden macht.»
16
  Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?, Ak VIII, 40­‑41.
17
  V. M. Viroli (ed.), Libertà politica e virtù civile. Significati e percorsi del re‑
pubblicanesimo classico, Fondazione Giovanni Agnelli, Torino, 2004.
18
  V. Hans Baron, Humanistic and Political Literature in Florence and Veni‑
ce at the Beginning of the Quattrocento, Cambridge, Mass., 1955; idem, In Search
of Florentine Civic Humanism. Essays on the Transition from Medieval to Modern
Thought, 2 vols., Princeton University Press, Princeton, N. J., 1988, em espe‑
cial, o cap. v do 1.o vol. («The Memory of Cicero’s Roman Civic Spirit in the

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dernos, entre os quais se destacam Montesquieu e Rousseau, cujas
ideias irão desempenhar importante papel na construção do regime
político instaurado após a Revolução Francesa de 1789 19.
Entende­‑se, em geral, por República uma concepção e ordenação
da vida política baseada no cultivo das virtudes cívicas e na liberda‑
de dos cidadãos e da pátria, onde se atribui a soberania ao povo e a
capacidade deliberativa a todos os cidadãos, onde reina a lei e o di‑
reito e não a arbitrariedade dos governantes, onde existe a separa‑
ção dos poderes que garante o equilíbrio entre eles e a independên‑
cia do exercício da justiça. A república opõe­‑se ao despotismo e, na
medida em que pressupõe o sistema representativo, ela distingue­‑se
da democracia directa. Confluem nesta noção moderna de república
não só elementos colhidos do republicanismo clássico como tam‑
bém alguns ingredientes apurados pelo pensamento político mo‑
derno de matriz liberal.
A concepção kantiana de república encontra­‑se com a maioria
dos tópicos desta caracterização geral. Mas Kant vai dar a estes in‑
gredientes uma nova densidade e sobretudo vai colocá­‑los numa
nova estruturação orgânica. E é por isso que podemos realmente
falar de uma reinvenção da república e do republicanismo por parte
do filósofo crítico. Por certo, ao sugerir que Kant, por assim dizer,
reinventa a república e o republicanismo, não pretendemos negar as
suas dívidas relativamente à história das ideias e das instituições
políticas, tanto antigas como modernas 20, ou assumidas mesmo dos

Medieval Centuries and in the Florentine Renaissance», pp. 94­‑133) e o cap.  vi


do mesmo volume («The Florentine Revival of the Philosophy of the Active
­Political Life», pp. 134­‑157); J. G. A. Pocock, The Machiavellian Moment. Floren‑
tine ­Political Thought and the Atlantic Republican Tradition, Princeton University
Press, Princeton, 1975; G. Bock, Q. Skinner e M. Viroli (eds.), Machiavelli and
­Republicanism, Cambridge University Press,. Cambridge, 1990; Martin van Gel‑
deren and Quentin ­Skinner (eds.), Republicanism. A Shared European Heritage,
2 vols., Cambridge U. P., Cambridge, 2005.
19
  V. E. Gojosso, Le concept de République en France (XVI­‑XVIII siècles), Pres‑
ses Universitaires d’Aix­‑Marseille, Aix, 1998; R. Whatmore, Republicanism and
the French Revolution. An Intellectual History of Jean­‑Baptiste Say’s Political Econo‑
my, Oxford University Press, Oxford, 2000.
20
  Numa nota ao Streit der Fakultäten (Ak VII, 92), Kant evoca algumas das
conhecidas propostas de repúblicas utópicas apresentadas ao longo da História
(Atlântida de Platão, Utopia de Morus, Oceana de Harrington , Severâmbia de
Allais) e também, no plano da experiência histórica, o que chama «o aborto
infeliz da república despótica de Cromwell».

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coetâneos, já na fase da instauração da República em França, após a
Revolução de 1789 21.
No que concerne aos modernos, Kant é devedor sobretudo a
três filósofos políticos: Locke, Montesquieu e Rousseau. John Locke
dificilmente poderá ser considerado como um pensador do republi‑
canismo 22. Mas da sua filosofia política colhe Kant, para a sua ideia
de constituição republicana, não só o princípio da igualdade e liber‑
dade naturais dos cidadãos, mas também as duas condições que
permitem conter os abusos do poder, a saber, a divisão dos poderes
(legislativo e executivo) e o sistema representativo 23. Montesquieu
ocupou­‑se nos seus escritos amiúde do «governo republicano» como
uma das três formas de governo definidas pelo número dos deten‑
tores do poder (ao lado do «governo monárquico» e do «governo

21
  Sobre as relações entre Kant e os revolucionários republicanos franceses
(Abade Sieyès) e a própria República francesa, v. Viriato Soromenho­‑Marques,
Razão e Progresso na Filosofia de Kant, [dissertação de doutoramento, FLUL, Lis‑
boa, 1990], Edições Colibri, Lisboa, 1998, pp. 473 e segs. À extraordinariamente
bem informada análise, corresponde a judiciosa e compreensiva síntese, que se
diz nestas palavras: «A Revolução Francesa.... funcionou... como um factor de
clarificação do conceito central da teoria política kantiana: o ideal de República
e de republicanismo. — Não pretendo com isto dizer que a ruptura política de
1789 veio colher de surpresa a reflexão social do filósofo alemão, forçando­‑o a
metamorfoses inesperadas, ditadas por interferências externas. Não é disso que
se trata. Contudo, o desenrolar dos acontecimentos franceses iluminou inelu‑
divelmente o sentido da história, indicando, para além da necessidade prática
da razão, a convergência das forças materiais que transformam o possível em
realidade efectiva. A França catalisou e amadureceu a postura política de Kant.
E esse duplo movimento espiritual configurou­‑se na meditação sobre a essência
do regime republicano.» (Ibidem, p. 478.)
22
  Apesar da explícita clarificação linguística, contida no último parágrafo
do cap. x do Second Treatise, intitulado «Of the forms of a Commonwealth», onde
o termo inglês que traduz a Civitas dos Latinos é «Common­‑wealth», mas enten‑
dido num sentido lato, como «any Independent Community», e não no sentido
propriamente democrático ou republicano, que chegou a assumir no regime
instituído por Cromwell. (Significativamente, Locke evita o termo respublica,
que, todavia, estaria mais próximo do sentido originário de Common­‑wealth ­—
«riqueza comum»!) O tradutor português verte Common­‑wealth por comunidade
política (John Locke, Segundo Tratado do Governo, F. C. Gulbenkian, Lisboa, 2007,
p. 150). Já o tradutor francês Bernard Gilson traduz Common­‑wealth por républi‑
que (John Locke, Deuxième Traité du Gouvernement Civil, Vrin, Paris, 1967, p. 150).
Como se vê, a ambiguidade do termo persiste no seu uso actual.
23
  John Locke, The Second Treatise of Government, chap. xi­‑xiii.

481

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despótico»), definindo o «governo republicano como aquele onde o
povo como um todo (en corps) ou somente uma parte do povo tem o
poder soberano»: no primeiro caso, será uma democracia, no segun‑
do, uma aristocracia 24. O pensador francês analisa as várias formas
históricas de república e destaca como características do êthos repu‑
blicano a virtude cívica ou política, entendida como o amor da pá‑
tria e o sentimento da igualdade dos cidadãos, ao mesmo tempo
que aponta as vantagens do modelo romano de separação dos po‑
deres 25, tópico que desenvolve demoradamente na sua obra maior a
propósito da Constituição Inglesa, como exemplo de uma constitui‑
ção que tem como seu objecto directo a «liberdade política», assina‑
lando igualmente as vantagens do sistema representativo 26, aspec‑
tos estes que também Kant vai considerar como fazendo parte da
noção de república e de republicanismo. Por seu turno, Rousseau
destaca como essência da república o império da lei, que exprime a
vontade geral dos cidadãos ­— «Chamo ‘república’ todo o Estado regido
por leis […] todo o governo guiado pela vontade geral, que é a lei» 27 ­—,
admitindo que a constituição republicana possa subsistir sob várias
formas de governo, nomeadamente sob a monarquia.
Do filósofo genebrino recebe Kant sobretudo a ideia de uma
«vontade universalmente unificada ou vontade geral» como base da

24
  Montesquieu, De l’Esprit des Lois, Livre II, chap. i­‑ii, ed. de V. Goldsch‑
midt, Garnier­‑Flammarion, Paris, 1979, pp. 131 e segs.
25
  Montesquieu, Considérations sur les causes de la grandeur des Romains et de
leur décadence, cap. xi (Oeuvres complètes, vol. 2, ed. de R. Caillois, Bibliothèque
de la Pléiade, Paris, 1951). Idem, Éclaircissement sur l’«Esprit des Lois» (Oeuvres
complètes, ed. cit., vol. 2, p. 1169): «Ce que j’appelle vertu dans la république ...
ce n’est point une vertu morale, ni une vertu chrétienne; c’est la vertu politique;
et celle­‑ci est le ressort qui fait mouvoir le gouvernement républicain. ... J’ai
donc appelé vertu politique l’amour de la patrie et de l’égalité.». V. Marco Pla‑
tania, Montesquieu e la virtù. Rappresentazioni della Francia di Ancien Régime e dei
governi repubblicani, UTET, Torino, 2007; T. Casadei, «Modelli repubblicani nell’
«‘Esprit des Lois’». Un ‘ponte’ tra passato e futuro», in D. Felice (ed.), Libertà,
necessità e storia. Percorsi dell’«Esprit des Lois» di Montesquieu, Bibliopolis, Napoli,
2003, pp. 13­‑74.
26
  De l’Esprit des Lois, livre xi, chap. vi, ed. de V. Goldschmidt, Garnier­
‑Flammarion, Paris, 1979, vol. i, pp. 294­‑304.
27
  Rousseau, Du Contrat Social, II, 6. Rousseau distingue entre vontade de
todos e vontade geral: só esta última é qualificada, pois cuida do interesse comum;
a outra cuida do interesse privado e é apenas uma soma de vontades particulares
(ibidem, II, cap. 3).

482

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instituição constitucional republicana e, por conseguinte, o princípio
de que os que devem obedecer à lei devem ser eles mesmos legislado‑
res, nisso consistindo a liberdade civil dos cidadãos, a saber, em obe‑
decerem à lei que a si próprios dão. Aceita também a ideia de que
pode existir uma monarquia que funcione ao modo republicano, o
que implica uma secundarização do debate tradicional da teoria polí‑
tica acerca das formas de governo (monárquico, aristocrático, demo‑
crático), deslocando o interesse da discussão acerca da forma imperii
(sobre o número dos que detêm ou exercem o poder) para a discussão
acerca da forma regiminis, isto é, acerca dos princípios constitucionais
em que se funda e segundo os quais se exerce a governação 28.
Na verdade, a restauração da ideia de República vinha aconte‑
cendo também entre os filósofos germânicos anteriores a Kant. Sa‑
muel Puffendorf definia a respublica como uma «união de vontades,
um corpo moral que se entende como tendo uma vontade» 29.
E  Christian Wolff estabelece a distinção entre Estado e República
­— termos frequentemente dados por equivalentes nos pensadores
modernos, sobretudo quando se exprimiam em Latim —, propondo
que, na tradução para o alemão, se verta o termo latino civitas por
Staat e o termo latino respublica por das gemeine Wesen 30. Kant conhe‑
cia e seguia esta proposta wolffiana, como se pode ver por esta pas‑
sagem da sua Doutrina do Direito:

A situação dos indivíduos no seio de um povo na sua


relação recíproca é chamada estado civil (status civilis), e o

  Kant, Zum ewigen Frieden, Ak VIII, 352.


28

  Samuel Puffendorf, De iure naturae et gentium, viii, cap. 4, § 2: «unio vo‑


29

luntatum ... corpus morale quod unam voluntatem habere intelligitur.»


30
  Christian Wolff, Ius naturae methodo scientifica pertractatum, Pars Octava:
De Imperio Publico, §§ 4, 16, Halle/Magdburg, 1748 (reimpr.: Olms, Hildesheim,
1968), pp. 5, 11­‑12. Para Wolff, a respublica representava uma forma qualificada
da civitas: é uma civitas ordinata ou uma ordinatio civitatis. § 4: «Societas inter
plures domus contracta eo fine, ut conjunctim sibi parent ad vitae necessitatem,
commoditatem ac jucunditatem, immo felicitatem requisita, et curent, ut unus‑
quisque jure suo quiete fruatur et tuto ab alio id consequatur, atque se suaque
adversus vim quamlibet externam defendant, Civitas dicitur, idiomate patrio
ein Staat.» § 16: «Civitatis ordinatio dicitur Respublica, idiomate patrio das ge‑
meine Wesen. …Quamvis adeo coaluerint in societatem civilem, nondum tamen
determinata sunt ea, quae ad Rempublicam faciunt, et per consequens peculiari
pacto opus est ad civitatem ordinandam. Et revera civitas ordinata Reipublicae
nomine demum appellari suevit.»

483

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conjunto destes em relação aos seus próprios membros, é
chamado Estado (civitas), o qual, devido à sua forma, en‑
quanto está ligado pelo interesse comum de todos de per‑
manecerem no estado jurídico, é chamado a república [das
gemeine Wesen] (res publica latius sic dicta). 31

Por certo, o processo da instauração da República em ­França,


após a Revolução de 1789, teve sobre Kant um poderoso impacte, o
que, de resto, viria a ser reconhecido pelo próprio ­filósofo 32. Duas
das palavras de ordem da República Francesa — liberdade e igual‑
dade — que faziam parte do credo liberal burguês, são igualmente
princípios assumidos por Kant como fundamentos da constituição
republicana. Mas, por grande que tenha sido o impacte que a Revo‑
lução exerceu sobre o filósofo, não se tra­duziu  ele certamente na
descoberta da ideia de república ou de republicanismo, embora o
tenha sim confirmado numa descoberta já anteriormente alcançada
pela reflexão filosófica própria, como se pode reconhecer no próprio
texto da Crítica da Razão Pura, cuja primeira edição (1781) precede
em oito anos aquele aconteci­mento político. Num passo desta obra,
referindo­‑se à ­República de Platão, encontramos de facto in nuce o
que constitui a essência da ideia kantiana de república, ideia que
depois se ­explicitará, sobretudo nos ensaios e obras da década de 90.
Cito a passagem:

A República de Platão tornou­‑se proverbial como exem‑


plo flagrante de uma perfeição sonhada, que enquanto tal
só pode residir no cérebro de um pensador ocioso. E Bru‑

  Immanuel Kant, Metaphysik der Sitten, Rechtslehre, Ak VI, 311.


31

  O testemunho mais eloquente — e ainda mais significativo por ser


32

tardio ­— é o que se encontra na segunda secção de Streit der Fakultäten, obra


publicada em 1798 (Ak VII, 85). E o que qualifica moralmente a Revolução é
precisamente a sua originária inspiração republicana. Como escreve o velho
filósofo: «A causa moral aqui interveniente é dupla: primeiro, é a do direito de
que um povo não deve ser impedido por outros poderes de a si proporcionar
uma constituição civil, como ela se lhe afigurar boa; em segundo lugar, a do
fim (que é ao mesmo tempo dever), de que só é em si legítima e moralmente
boa a constituição de um povo que, por sua natureza, é capaz de evitar, quanto
a princípios, a guerra ofensiva, e tal não pode ser nenhuma outra a não ser
a constituição republicana, pelo menos segundo a ideia.» (Trad. portuguesa,
O Conflito das Faculdades, Edições 70, Lisboa, p. 102.)

484

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cker considera ridícula a opinião do filósofo segundo a qual
nunca um príncipe seria bom governante se não participas‑
se nas ideias. Mas seria preferível investigarmos mais este
pensamento e colocá­‑lo sob nova luz, graças a um novo es‑
forço […], em vez de rejeitá­‑lo por inútil com o mísero e
pernicioso pretexto da inviabilidade. Uma constituição,
que tenha por finalidade a máxima liberdade humana, segun‑
do leis que permitam que a liberdade de cada um possa coexis‑
tir com a de todos os outros […], é pelo menos uma ideia ne‑
cessária, que deverá servir de fundamento não só a todo o
primeiro projecto de constituição política, mas também a
todas as leis, e na qual, inicialmente, se deverá abstrair dos
obstáculos presentes, que talvez provenham menos da ine‑
lutável natureza humana do que de terem sido descuradas
as ideias autênticas em matéria de legislação. […] Embora
tal não possa nunca realizar­‑se, é todavia perfeitamente
justa a ideia que apresenta este maximum como um arquéti‑
po para, em vista dele, a constituição legal dos homens se
aproximar cada vez mais da maior perfeição possível. 33

Temos aqui uma primeira aproximação decisiva da ideia kan‑


tiana de república, a qual será explicitada em sucessivas aborda‑
gens. Como tópicos maiores: liberdade, lei, coexistência das liber‑
dades. A finalidade da constituição política é garantir a máxima
liberdade de todos, não a felicidade de todos (esta, sendo dada a
liberdade, cada um a buscará por si e à sua medida). A república é
uma ideia necessária da razão que deve constituir o fundamento e
a regra de aferição de todas as constituições políticas e de todas as
leis. Não falando já da explícita ancoragem na doutrina platónica
das ideias ­— também recuperada e, por assim dizer, reinventada
neste mesmo contexto —, esta passagem dá­‑nos algumas indica‑
ções importantes e definitivas quanto à noção kantiana de repúbli‑
ca. ­Assim, em primeiro lugar, a de que a tarefa essencial que a ideia
de república se propõe realizar é a de garantir «a máxima liberdade
humana segundo leis que permitam que a liberdade de cada um
possa coexistir com a de todos os outros». Para garantir a produtiva
tensão entre a liberdade de todos e a lei é que vai ser necessário in‑
troduzir o terceiro termo ­— o poder, que aparece no já evocado

33
  Kritik der reinen Vernunft, Ak III, 247­‑248.

485

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Curso de Antropologia leccionado em Outubro do mesmo ano em
que saiu a Crítica da Razão Pura. Mas, em segundo lugar, o citado
texto da Crítica revela que, segundo o filósofo, a noção de república
não é algo tirado nem das experiências históricas nem das doutri‑
nas políticas dos filósofos do passado ou mesmo dos mais próxi‑
mos, mas é sim uma ideia, e uma ideia necessária, tirada da razão
ou posta pela razão, um arquétipo ou uma ideia reguladora que
serve precisamente para aferir e corrigir por ela todas as constitui‑
ções políticas e formas de governo que possam ocorrer na história e
na experiência, passada, presente ou futura. Ela indica não um mo‑
delo que esteja já dado (como realizado ou mesmo simplesmente
como pensado) algures no passado, mas aponta para um maximum
de perfeição cuja plena realização só pode alcançar­‑se no futuro,
para o que, no entanto, há que contar com a liberdade humana.
Mais tarde, Kant vai explicitar isto propondo a distinção entre res‑
publica noumenon — o ideal racional ­— e respublica phaenomenon —
as eventuais concretizações históricas desse ideal. Isso dá­‑se num
dos textos mais tardios, onde o tópico já se encontra adensado com
todos os outros ingredientes, no parágrafo da secção ii de O Conflito
das Faculdades, nestes termos:

A ideia de uma constituição em consonância com o


direito natural dos homens, a saber, que os que obedecem
à lei devem ao mesmo tempo, na sua união, ser legislado‑
res, está na base de todas as formas de Estado [Staatsfor‑
men], e a república [das gemeine Wesen] que, concebida em
conformidade com ela, graças a puros conceitos racionais,
se chama um ideal platónico (respublica noumenon), não é
uma quimera vazia [leeres Hirnsgespinnst], mas a norma
eterna para toda a constituição civil em geral, e afasta toda
a guerra. Uma sociedade civil organizada em conformida‑
de com ela é a sua representação, segundo leis da liberda‑
de, mediante um exemplo na experiência (respublica phae‑
nomenon) e só pode conseguir­‑se penosamente após
múltiplas hostilidades e guerras; mas a sua constituição,
uma vez alcançada em grandes traços [im Grossen],
qualifica­‑se como a melhor entre todas para manter afasta‑
da a guerra, destruidora de todo o bem; por conseguinte,
é dever nela ingressar; mas provisoriamente (porque isso
não ocorrerá tão cedo) é dever dos monarcas, embora rei‑
nem autocraticamente [autokratisch herrschen], governar, no
entanto de modo republicano (não democrático) [republika‑

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nisch (nicht demokratisch) zu regieren], i. e., tratar o povo se‑
gundo princípios conformes ao espírito das leis de liber‑
dade (como um povo de madura razão a si mesmo as
prescreveria), se bem que quanto à letra não seja consulta‑
do acerca da sua aquiescência. 34

Nesta passagem se condensa tudo quanto de essencial o filóso‑


fo crítico tem a dizer sobre a constituição republicana e o republica‑
nismo. Kant reinventa a ideia de república colhendo­‑a nas fontes da
razão, na ideia pura do direito. Isso o distingue formalmente de to‑
dos os pensadores republicanos acima referidos, que a tiram prefe‑
rentemente do inventário das experiências históricas de governação
ou do catálogo das doutrinas políticas. Kant insiste uma e outra vez
neste ponto: «a constituição republicana [die republikanische Verfas‑
sung] é a única que está plenamente conforme aos direitos do
homem» 35. Destaca a «pureza da origem, saída que é da fonte pura
da noção de direito» 36. Ela funda­‑se em leis jurídicas que são «leis a
priori segundo puros princípios de direito». 37 No § 52 da Doutrina do
Direito, Kant elenca os aspectos que qualificam a constituição repu‑
blicana: é a única conforme ao direito que exprime o espírito do
contrato originário e que só tem como princípio a liberdade; é a úni‑
ca estável, em que a lei ordena por si própria e não está na depen‑
dência de nenhuma pessoa particular; ela é, enfim, o fundamento e
o fim último de todo o direito público 38.

III. Inscrição do republicanismo na filosofia


kantiana da história, da política e do
direito

Para se compreender toda a novidade e todo o alcance da noção


kantiana de republicanismo não basta explicitar os seus pressupos‑
tos e ingredientes. É necessário também perceber como o tema se
inscreve na visão kantiana da história humana e como ele se articula
organicamente com o programa político­‑jurídico de Kant.

34
  Streit der Fakultäten, Ak VII, 90­‑91.
35
  Zum ewigen Frieden, Ak VIII, 366.
36
  Ibidem, 351.
37
  Rechtslehre, § 45, Ak VI, 313.
38
  Ibidem, Ak VI, 341.

487

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Fixemo­‑nos no ensaio de 95, Para a Paz Duradoura (Zum ewigen
Frieden). Pode dizer­‑se que neste ensaio confluem todos os ingre‑
dientes da noção e ao mesmo tempo se indica a sua inscrição siste‑
mática no todo da proposta kantiana para a solução do problema da
paz considerado como o problema fundamental que toda a consti‑
tuição política deve tentar resolver da forma mais duradoura possí‑
vel e de cuja solução depende em última instância a realização da
própria destinação da espécie humana. O ensaio kantiano foi escrito
nos meses subsequentes à assinatura em Basileia, a 5 de Abril de
1795, do Tratado de Paz entre a França e a Prússia. Dado o seu tom
irónico (pois imita na estrutura e estilo os tratados de paz firmados
entre Estados), ele nem sempre foi levado a sério. Nos últimos anos,
porém, tem crescido o interesse por esse opúsculo kantiano, o qual
está no centro dos debates de filosofia política a respeito da arqui‑
tectura de uma nova ordem político­‑jurídica mundial 39.
O primeiro artigo definitivo desse tratado filosófico que visa a
paz perpétua reza assim: «A constituição civil em cada Estado deve
ser republicana.» 40 Mas este artigo não deve ser desligado dos ou‑
tros dois que o seguem. O que se refere ao direito das gentes, que
deve ser fundado num Federalismo de Estados livres; e o que se
refere ao direito cosmopolita. Por conseguinte: Republicanismo —
Federalismo — Cosmopolitismo. Trata­‑se de um mesmo programa
em três momentos, que reciprocamente se implicam, e nenhum dos
quais se poderá realizar se os outros dois não se cumprirem. Mas a
realização dos três não deve entender­‑se como devendo ser apenas
sucessiva, de um depois de realizado o outro ou os outros. Ela deve
ser por assim dizer accionada concomitantemente. Isto é: o princí‑
pio cosmopolita deve desde já inspirar o princípio federalista, e am‑
bos devem inspirar o princípio republicano, e vice­‑versa. É assim
que o princípio republicano não se esgota na inspiração da consti‑
tuição civil de cada Estado, mas constitui o módulo básico que serve

39
  Para uma história da recepção do opúsculo e para a interpretação do
seu conteúdo, v. Volker Gerhardt, Immanuel Kants Entwurf >Zum ewigen Frie‑
den<. Eine Theorie der Politik, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt,
1995; Otfried Höffe (Hrsg.), Immanuel Kant. Zum ewigen Frieden, Akademie Ver‑
lag, Berlin, 1995.
40
  «Die bürgerliche Verfassung in jedem Staate soll republikanisch sein.»
Zum ewigen Frieden, Ak VIII, 349. V. Wolfgang Kersting, «Die bürgerliche Ver‑
fassung in jedem Staate soll republikanisch sein», in Otfried Höffe (Hrsg.), Im‑
manuel Kant. Zum ewigen Frieden, pp. 87­‑108.

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de regra também para a lógica da Federação de Estados e da Socie‑
dade Cosmopolita, as quais devem sempre respeitar o direito dos
homens: a liberdade, a igualdade, a não dependência.
Kant já defendia essa recíproca implicação dos vários momen‑
tos (não ainda mencionados expressamente enquanto tais) no seu
ensaio de 84, Ideia de Uma História Universal Num Propósito Cosmopo‑
lita, quando escrevia que de nada vale um Estado organizar­‑se pa‑
cificamente no seu interior se ele, feito isso, se vê confrontado com
outros Estados numa condição de potencial guerra permanente, e é
por isso que «o problema da instituição de uma constituição civil
perfeita — e essa é a constituição republicana — depende, por sua
vez, do problema de uma relação externa legal entre os Estados e
não pode realizar­‑se sem esta última» 41. E da mesma forma o diz,
no ensaio de 95, quando, falando a respeito do direito cosmopolita,
escreve que ele, longe de ser uma representação fantasiosa e exage‑
rada do direito, é antes «um necessário complemento do código
não escrito tanto do direito civil como do direito das gentes em vis‑
ta do direito público dos homens em geral e também em vista da
paz dura­doura» 42.
A fecundidade da ideia kantiana de republicanismo não se es‑
gota no âmbito de cada Estado isoladamente, ou mesmo no âmbito
da relação de um Estado com os seus vizinhos, relação que será
tanto mais segura e estável, quanto mais esses Estados se organi‑
zem e governem igualmente de forma republicana. Kant aponta
para mais longe, tendo em vista que dos Estados republicanamente
constituídos deve avançar­‑se paulatinamente para a edificação de
uma efectiva República mundial. O republicanismo não é apenas
um sistema de governo entre outros possíveis. Mas trata­‑se de um
sistema qualificado pelos princípios racionais que o fundam e pela
sua capacidade para criar as condições para que haja paz, ou pelo
menos para neutralizar definitivamente as guerras ofensivas entre
os Estados. De facto, a ideia de república ou o princípio do republi‑
canismo é o esquema de solução ou o módulo inspirador que se

  Idee, Ak VIII, 24. V. o meu ensaio «Republicanismo e Cosmopolitismo:


41

A contribuição de Kant para a formação da ideia moderna de Federalismo», in


Ernesto Castro Leal (ed.), O Federalismo Europeu: História, Política e Utopia, Edi‑
ções Colibri, Lisboa, 2001, pp. 35­‑69. Neste volume, pp. 450 e segs.
42
  «...eine nothwendige Ergänzung des ungeschriebenen Codex sowohl
des Staats­— als Völkerrechts zum öffentlichen Menschenrechte überhaupt und
so zum ewigen Frieden.» Zum ewigen Frieden, Ak VIII, 360.

489

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deve replicar extensivamente em todos os Estados singulares na
organização do respectivo direito civil interno, mas que deve igual‑
mente aplicar­‑se nas formas de reorganização da ordem política
inter­‑estatal e internacional. O programa kantiano visa, pois, um
republicanismo generalizado. Assim, a criação da federação de Es‑
tados livres, de que se fala no segundo artigo definitivo para a paz
perpétua, é ela própria pensada por analogia com a saída do estado
de natureza que levou à fundação do estado civil, sendo agora os
diferentes Estados considerados como se fossem indivíduos. É isso
que diz o filósofo:

Para os Estados em relação recíproca de acordo com a


razão não há outra maneira de sair da situação privada de
lei, que é somente ocasião de guerra, se não renunciar, tal
como o fizeram os indivíduos singulares, à sua liberdade
selvagem (privada de lei) e submeter­‑se a leis públicas
­coactivas e formar assim um Estado de Povos [Völkerstaat]
(civitas gentium), certamente em contínuo crescimento, que
abraçaria por fim todos os povos da terra. 43

Não se trata, porém, de fundar uma «Monarquia universal»


(Universalmonarchie) ou um grande «Estado mundial» (Weltstaat),
com os riscos de despotismo que tais noções ameaçam trazer consi‑
go. Trata­‑se, sim, de erigir uma «República mundial» (Weltrepublik) 44,
construída livremente por associação dos povos já organizados como
Estados republicanos e por isso chamada uma «República de povos
livres unidos» (Republik freier verbündeter Völcker) ou uma «federação
de povos como República mundial» (Völckerbund als Weltrepublik), na
qual a igualdade e a liberdade dos membros estariam sempre salva‑
guardadas e onde todos os membros integrantes fossem co­‑autores
das leis a que eles mesmos depois se viessem a submeter com vista a
garantir a paz duradoura entre eles.
Friedrich Schlegel, um dos mais lúcidos entre os poucos leitores
que na época teve o ensaio de Kant, compreendeu todo o alcance da
proposta do republicanismo nele apresentada e de como o segundo
artigo definitivo para a paz perpétua — o do federalismo ­— tem de
ser conjugado com o primeiro artigo, devendo passar­‑se necessaria‑

43
  Zum ewigen Frieden, Ak VIII, 357.
44
  Ibidem.

490

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mente dos Estados­‑repúblicas à República mundial, a um republica‑
nismo universal. Dou a palavra a Schlegel:

Até agora falou­‑se apenas do republicanismo parcial de


um único Estado e povo. Mas só mediante um republicanis‑
mo universal pode o imperativo categórico ser satisfeito.
Este conceito não é porém uma quimera de visionários so‑
nhadores, mas é praticamente necessário, como o próprio
imperativo categórico. […] Só o republicanismo universal e
perfeito seria o válido e também o único suficiente artigo
definitivo para a paz perpétua. Enquanto a constituição e o
governo não forem completamente perfeitos, mesmo nos
Estados republicanos, cuja tendência pacífica Kant tão per‑
tinentemente apontou, restará ao menos como possível a
guerra injusta e escusada. O primeiro artigo definitivo kan‑
tiano para a paz perpétua exige sem dúvida o republicanis‑
mo de todos os Estados: só que o federalismo, cuja possibi‑
lidade de realização se mostra tão reduzida, não pode já
segundo o seu conceito abranger todos os Estados; o que
iria contra a opinião de Kant a respeito de um universal Es‑
tado dos povos. O propósito da união pacífica de assegurar
a liberdade dos Estados republicanos, pressupõe o perigo
em que se encontram, por conseguinte, a existência de Esta‑
dos com tendência guerreira, isto é, Estados despóticos. […]
O republicanismo universal e completo e a paz perpétua
são conceitos inseparáveis e intercam­biáveis. 45

Como acima se disse, a constituição republicana qualifica­‑se, an‑


tes de mais, por ser aquela que se funda na razão e no conceito puro
do direito e que está em consonância com os direitos naturais dos
homens. Mas, para além disso, ela revela­‑se mais capaz do que qual‑
quer outra para instituir a paz civil dentro de cada Estado, fazendo

45
  Friedrich Schlegel, «Der universelle Republikanismus. Veranlasst durch
die Kantische Schrift zum ewigen Frieden» (1796), in F. Schlegel, Schriften und
Fragmente, ed. von Ernst Behler, Körner Verlag, Stuttgart, 1956, 299. Sobre a
primeira recepção do ensaio kantiano, v. Faustino Oncina, «De la candidez de
la paloma a la astucia de la serpiente. La recepción de La Paz Perpétua entre sus
coetáneos», in Roberto R. Aramayo, J. Muguerza, Concha Roldán (eds.), La Paz
y el ideal cosmopolita de la Ilustración. A propósito del bicentenario de «Hacia la paz
perpetua» de Kant, Tecnos, Madrid, 1996, pp. 155­‑190.

491

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passar os homens do estado de natureza ao estado civil, ao mesmo
tempo que garante os direitos inatos do homem de liberdade e de
igualdade. É isso que o despotismo não faz. Este pode pacificar os
súbditos, mas à custa de sacrificar a sua liberdade e a igualdade ao
poder. Mas, segundo Kant, a constituição republicana tem ainda a
virtude de instituir uma nova relação qualificada dos cidadãos entre
si e destes com o todo e com os detentores ou executores do poder:
trata­‑se de uma relação orgânica como a de um corpo vivo cujos
membros se ligam entre si e ao todo segundo uma lógica de recipro‑
cidade, em que cada cidadão é ao mesmo tempo considerado como
fim e meio, como soberano co­‑legislador e como súbdito da lei; em
que cada membro contribui para a possibilidade do todo e ao mesmo
tempo, mediante a ideia que possui do todo, é capaz de compreender
e determinar a sua posição e função nesse todo 46. Ao contrário, num
Estado despótico, tudo funciona segundo uma lógica mecânica e os
súbditos — que não são por isso verdadeiramente cidadãos ­— não têm
verdadeira autonomia, mas são meras partes instrumentais de uma
máquina que só é accionada pela vontade do déspota 47.

IV.  Os ingredientes do republicanismo

Vejamos agora de forma mais directa os principais ingredientes


da noção kantiana de república e de republicanismo.

4.1. Os princípios em que assenta: liberdade, igualdade, auto­‑suficiência.


No ensaio de 1795, Kant menciona apenas dois: a liberdade e a igual‑
dade. Mas no ensaio de 1793 tinha­‑lhes acrescentado um terceiro: a
auto­‑suficiência ou independência (isto é, o não depender de outrém
para a própria subsistência, pois tal dependência colocaria o que a so‑
fre em situação de efectiva menoridade jurídica e política), o que ex‑
cluiria da efectiva e plena cidadania republicana não só as crianças
(enquanto dependentes dos pais), como também as mulheres (enquan‑
to dependentes dos maridos, na época) e os servos (enquanto depen‑
dentes dos seus senhores) 48. Os comentadores dividem­‑se quanto à

46
  Kritik der Urteilskraft, § 65.
47
  Kritik der Urteilskraft, § 59.
48
  Über den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht
für die Praxis (1793) , Ak VIII, 290.

492

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interpretação desta divergência entre as duas versões: há os que consi‑
deram que a auto­‑suficiência é essencial e está ao mesmo nível das
outras duas; e os que consideram que ela não é essencial, mas contin‑
gente, sendo por isso muito significativo que Kant a não mencione no
ensaio de 1795 49. Todavia, na mais tardia Doutrina do Direito, Kant volta
a mencionar as três condições. Transcrevo esta última versão do tópico:

Os membros de uma tal sociedade (societas civilis), quer


dizer, de um Estado, reunidos para legislar chamam­‑se cida‑
dãos (cives) e os seus atributos jurídicos incindíveis da sua na‑
tureza como cidadãos são: a liberdade legal de não obedecer
a nenhuma outra lei senão àquela a que deram o seu consen‑
timento; a igualdade civil, quer dizer, não reconhecer no povo
nenhum superior senão aquele em relação ao qual ele tenha a
mesma faculdade moral, que ele em relação a si tem, de obri‑
gar juridicamente; em terceiro lugar, o atributo da indepen‑
dência civil, que consiste em dever a sua própria existência e
conservação não ao arbítrio [Willkür] de um outro no povo,
mas aos seus próprios direitos e capacidades como membro
da república [gemeinen Wesen], por conseguinte, a personali‑
dade civil [bürgerliche Persönlichkeit], que consiste em não ser
representado por nenhum outro nos assuntos jurídicos. 50

Penso que só aparentemente há divergência entre as duas ver‑


sões. Mais económica, a versão de 95 é porventura a que melhor ex‑
prime o pensamento kantiano, pois, se bem atentarmos, a liberdade e
a igualdade são os únicos princípios que se colocam formalmente no
plano da universalidade dos direitos inalienáveis de todos os seres
humanos enquanto capazes de se tornar cidadãos, ao passo que a
auto­‑suficiência (Selbständigkeit) ou independência económica (sibi
suf­ficientia) é de facto uma condição para o exercício efectivo da liber‑
dade, mas depende de determinadas circunstâncias históricas, variá‑
veis e mutáveis, de organização da propriedade ou de acesso a ela, ou
das modalidades de organização do trabalho e da distribuição de ren‑
dimentos. E aquelas duas primeiras condições, se efectiva e univer‑
salmente garantidas, acabarão por ter efeito precisamente sobre a
­terceira: isto é, elas obrigam a que sejam paulatinamente criadas con‑

49
  Zum ewigen Frieden, Ak VIII, 349­‑350.
50
  Metaphysik der Sitten, Rechtslehre, §46, Ak VI, 314.

493

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dições para que todos os seres, que originariamente e por natureza
são livres e iguais, possam também ser efectivamente autónomos e
independentes, seja económica, jurídica ou politicamente 51.

4.2. Republicanismo, sistema representativo e separação dos poderes.


Seguindo Locke e Montesquieu, Kant incorpora como ingrediente
da sua ideia de republicanismo o princípio do sistema representati‑
vo do exercício dos poderes públicos, uma condição de acordo com
a qual os cidadãos e mesmo os governantes cuidam dos seus direi‑
tos, não directa e pessoalmente, mas através dos seus delegados ou
deputados, que o fazem em nome do povo e não em nome pessoal
ou em nome deste ou daquele cidadão isoladamente. Escreve Kant:

Toda a verdadeira república é e não pode ser senão um


sistema representativo do povo, que pretende em nome do
povo e mediante a união de todos os cidadãos, cuidar dos seus
direitos, por intermédio dos seus delegados (depu­tados). 52

Num outro passo, o filósofo é ainda mais explícito, seja ao vin‑


cular essa condição à ideia de direito, seja ao considerá­‑la como es‑
sencial para que um governo possa ser considerado realmente repu‑
blicano, afirmando que

toda a forma de governo que não é representativa é pro‑


priamente informe [Unform] porque o legislador pode ser
numa só e mesma pessoa o executor igualmente da sua
vontade. […] Para que o modo de governo seja conforme à
noção de direito é preciso que o sistema seja representativo;
só este sistema torna possível um governo republicano;
sem esta condição ele é despótico e arbitrário (qualquer que
seja de resto a constituição). Nenhum dos governos antigos
chamados repúblicas conheceu este sistema e foi por isso
que acabaram por cair necessariamente num despotismo. 53

  V. W. Bartuschat, «Zur kantischen Begründung der Trias ‘Freiheit,


51

Gleichheit, Selbständigkeit’ innerhalb der Rechtslehre», in Götz Landwehr


(Hrsg.), Freiheit, Gleichheit, Selbständigkeit. Zur Aktualität der Rechtsphilosophie
Kants für die Gerechtigkeit in der modernen Gesellschaft, Vandenhoeck & Ruprecht,
Göttingen, 1999, pp. 11­‑25.
52
  Kant, Metaphysik der Sitten, Rechtslehre, § 52, Ak VI, 341.
53
  Zum ewigen Frieden, Ak VIII, 352­‑353.

494

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Daí retira Kant a não identificação entre regime republicano e
regime democrático e a sua apreciação negativa deste último. De
facto, apesar da recorrência da ideia de que o povo é o soberano e
que a vontade unidade do povo é o verdadeiro legislador, que,
por conseguinte, a lei e a constituição são expressão da vontade
comum e unida do povo, a qual só se submete às leis que ela mes‑
ma cria ou a que dá o seu consentimento, Kant não é um defensor
da democracia, que considera como uma forma de governo que
tende para o despotismo, um despotismo da maioria, e a demo‑
cracia directa como um sistema politicamente inviável, no qual a
lei estaria sempre ameaçada na sua consistência e eficácia, pois
a  invocação do poder popular como reiteradamente instituinte
­significaria a anulação efectiva de todo o poder e a sua auto­
‑dissolução. De resto, segundo Kant, a democracia apresenta um
vício formal, colocando a vontade geral em contradição consigo
mesma, pois ela estabelece um poder executivo onde todos se
pronunciam sobre um só e contra um só (o qual não é da mesma
opinião); onde todos decidem, por conseguinte, sem serem todos.
Mas o que entende Kant por «vontade unida do povo»? Será o
mesmo que Rousseau dizia com a expressão «vontade geral»? —
isto é, aquela que atende ao interesse comum e legisla para todos
universalmente, e não a «vontade de todos», que seria apenas a
soma aritmética das vontades individuais exprimindo interesses
também individuais?
Vale citar a este propósito uma qualificada crítica que logo re‑
cebeu esta tese kantiana da incompatibilidade entre a democracia
e o republicanismo, vinda daquele mesmo Friedrich Schlegel que
vira como implícita na ideia kantiana de republicanismo a neces‑
sária universalização deste como condição para garantir a paz du‑
radoura entre todos os Estados, e que recusava a identificação feita
por Kant de democracia com despotismo, afirmando em contra‑
partida que o republicanismo é necessariamente democrático.
Dou­‑lhe a palavra:

Como é possível o republicanismo, se a vontade uni‑


versal é sua condição necessária, e todavia a vontade abso‑
lutamente universal nunca ocorre no domínio da experiên‑
cia e só existe no mundo do puro pensamento? Entre o
indivíduo e o universal há um infinito abismo, que só se
pode superar com um salto mortal. Não resta senão fazer
valer aqui a ficção de uma vontade empírica como substi­
tuto de uma vontade universal absoluta pensada a priori e,

495

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porque a resolução pura do problema político é impossível,
contentar­‑se com a aproximação a este x prático. […] Mas a
única ficção política válida é a fundada sobre a lei da igual‑
dade: a vontade da maioria deve valer como o substituto
da vontade universal. O republicanismo é, por conseguin‑
te, necessariamente democrático; e o não provado [unerwie‑
sene] paradoxo segundo o qual o democratismo é necessa‑
riamente despótico, não pode estar certo. […] O poder da
maioria do povo, como próximo da totalidade e substituto
da vontade universal, é o poder político. 54

Note­‑se, porém, que apesar das reservas e críticas kantianas em


relação à democracia, o republicanismo kantiano inscreve­‑se de fac‑
to naquilo que actualmente se entende por um regime de estado de
direito e de democracia constitucional representativa.
Intimamente associado com o princípio do sistema represen‑
tativo e, visando, tal como ele, evitar o uso arbitrário e absoluto do
poder, está o princípio da divisão dos poderes, que encontrara
também a sua aceitação em vários pensadores políticos modernos
que haviam mostrado a conveniência da separação sobretudo do
poder legislativo e do poder executivo, como forma de limitação
deste último e visando evitar a tentação de um poder despótico ou
tirânico. Mas foi porventura Montesquieu quem, reflectindo sobre
a história da república romana, melhor percebera o alcance dessa
sábia medida moderadora e de controlo recíproco dos poderes do
Estado: «As leis de Roma tinham dividido sabiamente o poder pú‑
blico num grande número de magistrados, que se sustinham, se
refreavam e se temperavam reciprocamente.» 55 No capítulo vi do
livro xi de Do Espírito das Leis, ao falar da liberdade política, o mes‑
mo pensador — comentando a constituição inglesa e talvez
inspirando­‑se em Locke — faz notar que, para não haver abuso do
poder, é necessário que o próprio poder constitua um freio para o
poder. E a forma constitucional para conseguir isso é atribuindo as
três funções do Estado — o poder legislativo, o poder executivo e

  Art. cit., pp. 296­‑297. Schlegel segue neste ponto manifestamente os ar‑


54

gumentos desenvolvidos por Locke, no Second Treatise, §§ 96­‑98, in John Locke,


Two Treatises of Government, ed. P. Laslett, Cambridge University Press, Cam‑
bridge, 1988, pp. 331­‑333.
55
  Montesquieu, Considérations sur les causes de la grandeur et de leur déca‑
dence, chap. xi.

496

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o poder judicial ­— a órgãos ou a pessoas diferentes. Assim o escre‑
ve o filósofo político francês:

Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de ma‑


gistratura, o poder legislativo se junta ao poder executivo,
desaparece a liberdade; porque pode­‑se temer que o mes‑
mo monarca ou o mesmo senado promulguem leis tirâni‑
cas, para as executar tiranicamente. Não há liberdade se o
poder de julgar não está separado do poder legislativo e do
executivo. Se houvesse tal união com o legislativo, o poder
sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois
o juiz seria legislador. Se o poder de julgar se unisse ao po‑
der executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor.
Tudo estaria perdido, se o mesmo homem, ou o mesmo cor‑
po de notáveis ou nobres, ou do povo, exercessem os três
poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públi‑
cas e o de julgar os crimes e os diferendos dos cidadãos. 56

É na mesma linha que Kant pensa neutralizar o despotismo, vin­


culando intimamente o princípio da separação dos poderes —  que
em Locke e Montesquieu caracterizava ora os governos liberais ora
os governos moderados ­— à essência da genuína constituição repu‑
blicana. Por vezes, Kant menciona apenas a separação do poder le‑
gislativo e do poder executivo, como neste caso:

O republicanismo é o princípio político que admite a


separação do poder executivo (governo) e do poder legisla‑
tivo: o despotismo executa pela sua própria autoridade as
leis que ele próprio criou, é pois a vontade geral enquanto
exercida pelo soberano como sua vontade privada. 57

Mas no § 45 da Doutrina do Direito menciona já expressamente


os três poderes do Estado:

Todo o Estado contém em si três poderes [Gewalten], a


saber, a vontade universalmente unificada em uma tripla
pessoa (trias politica): o poder soberano [die Herrschergewalt]

56
  Montesquieu, De l’Esprit des Lois, livre xi, chap. vi, ed. cit., pp. 294­‑295.
57
  Zum ewigen Frieden, Ak VIII, 352.

497

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(soberania) [Souveränität] na pessoa do legislador, o poder
executivo na pessoa do governo [Regierer] (em conformida‑
de com a lei) e o poder judiciário (como capacidade de atri‑
buir a cada um aquilo que é o seu segundo a lei) na pessoa
do juiz (potestas legislatoria, rectoria et judi­ciaria). 58

A insistência de alguns filósofos políticos modernos e também


de Kant na vantagem do sistema representativo e do sistema de di‑
visão dos poderes visava introduzir mecanismos de limitação, mas
também de mediação e de filtragem que prevenissem as possíveis
perversões funcionais do exercício da soberania e do poder, impe‑
dindo, no primeiro caso, que se legislasse em benefício directo pró‑
prio ou directamente contra o direito de alguém em particular, ou,
no segundo caso, que se governasse interpretando ou aplicando a
lei comum em benefício próprio ou ao sabor de interesses particula‑
res. Assim se garantia a boa saúde das funções essenciais da comu‑
nidade política ou da república.

4.3. Republicanismo e pacifismo. No ensaio de 95, lê­‑se esta de­


claração: «Pela sua natureza, a república deve tender para a paz
perpétua.» 59 Será, então, que as repúblicas, pelo facto de o serem,
estão imunizadas quanto ao risco de fazerem guerra umas às
­outras?
A tendência pacificista — melhor dito, a tendência para a reso‑
lução pacífica dos conflitos — constitui um dos traços do republica‑
nismo kantiano, mas é também um dos seus pontos mais criticado,
porque, antes de mais, parece ser amplamente desmentido pela ex‑
periência histórica. De facto, segundo o filósofo, a constituição repu‑
blicana, para além da limpidez da sua origem nas fontes puras da
ideia do direito, recomenda­‑se pela vantajosa perspectiva de garan‑
tir melhor do que qualquer outra a paz perpétua. 60 Em primeiro lu‑
gar, porque a constituição republicana é a melhor garantia da paci‑
ficação no interior de cada Estado e, depois, porque é também a
melhor garantia da pacificação das relações exteriores entre os vá‑
rios Estados, pois os Estados que sejam republicanamente constituí­
dos e governados, de acordo com o princípio que os inspira, apren‑

58
  Rechtslehre, Ak VI, 313.
59
  Zum ewigen Frieden, Ak VIII, 356.
60
  Ibidem, 351.

498

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deram a resolver os conflitos internos e externos segundo regras do
direito, e não pela agressão e pelo poder. É por isso também que um
povo com constituição republicana estará tanto mais seguro inte‑
riormente e exteriormente quanto mais os Estados que o rodeiam
igualmente se republicanizem.
Também esta não era uma ideia completamente nova. Ela en­
con­tra­‑se já em Montesquieu, o qual fazia notar que as monarquias
têm um carácter guerreiro e expansionista, enquanto as repúblicas
revelam uma propensão pacífica e moderada 61. Desde a primeira
hora, os críticos não têm tido grande dificuldade em apontar exem‑
plos históricos que desmentem a tese kantiana. Os críticos conserva‑
dores da Revolução Francesa, na linha de Edmund Burke (Reflec‑
tions on the Revolution in France, 1790), em face do jacobinismo
agressivo e totalitário e do nacionalismo militante e expansionista
que a viria a caracterizar, fazem notar que não foi a paz, mas sim a
guerra que ela espalhou por toda a Europa, numa escala nunca an‑
tes vista. Esta crítica até daria razão a Kant, mas a propósito da sua
tese segundo a qual a republicanização dos Estados deve acontecer,
não por revolução, e sim por reformas graduais e contínuas, pois
uma revolução, uma vez desencadeada, torna­‑se um acontecimento
da história natural dos homens, incontrolável nos seus efeitos, tra‑
zendo ao de cima todas as forças caóticas e de desintegração que
estão acumuladas, contidas e profundamente recalcadas na socieda‑
de, as quais não haviam sido ainda trabalhadas pelo lento processo
da educação, tanto do povo como dos próprios protagonistas do
movimento revolucionário, os quais, por isso, são eles mesmos en‑
golidos e triturados pelo processo que desencadearam. Hegel, por
seu turno, numa nota ao § 329 da Filosofia do Direito, contra a tese de
Kant de que só os príncipes autocráticos estão dispostos para decla‑
rar a guerra a outros porque ela nada lhes custa, fazia notar, citando
exemplos históricos, que, frequentemente, há nações inteiras que se
entusiasmam e são movidas pela paixão guerreira muito mais do
que os seus príncipes, os quais acabam por ser arrastados para a
guerra pela paixão popular 62.

61
  De l’Esprit des Lois, IX, chap. ii: «L’esprit de la monarchie est la guerre
et l’agrandissement: l’esprit de la république est la paix et la modération.» (Ed.
cit., p. 267.)
62
  Um ponto da situação a respeito deste tópico encontra­‑se em Otfried
Höffe, Kant’s Cosmopolitan Theory of Law and Peace, cap. 10: «Are Republics Pea‑
ceable?», pp. 177­‑188.

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Quem tem razão? Pode sempre dizer­‑se que, ao sustentar o ca‑
rácter pacifista das repúblicas, Kant tem em vista não uma situação
de facto já definitivamente adquirida, mas uma tendência das repú‑
blicas — que o sejam «segundo a ideia» autenticamente (e nenhuma
das suas formas históricas conhecidas o foi ou é ainda verdadeira‑
mente) ­— para a resolução pacífica dos conflitos, a qual precisa de
ser cultivada pela educação e pelas próprias instituições republica‑
nas. De resto, Kant está convicto de que se um povo republicano for
efectivamente consultado para declarar a guerra a um outro povo
(em vez de esta ser decidida pela arbitrariedade do monarca), os
que assim são chamados a livremente decidir, dificilmente o farão
indo contra os seus próprios interesses, pois farão as suas contas e
cálculos e concluirão que a guerra não trará vantagem aos seus ne‑
gócios e não lhes garantirá a prosperidade 63. Em contrapartida, num
país onde os súbditos não são verdadeiramente reconhecidos e tra‑
tados como cidadãos e onde não existe uma constituição republica‑
na, a guerra é coisa que não exige muita reflexão, porque o soberano
não se vê verdadeiramente como um membro mas como o dono do
Estado e a guerra que decidir declarar não o impedirá de continuar
a ter a sua boa mesa, a sua caça, os seus castelos de prazer, os seus
divertimentos e as suas festas da corte, etc., podendo, por conse‑
guinte, decidir­‑se por ela até pelas mais fúteis razões.
Na verdade, não podemos desligar a tese kantiana acerca da
tendência pacifista das repúblicas do modo como Kant pensa o fun‑
cionamento dum genuíno espaço público onde se dá a livre circula‑
ção de opiniões, onde os cidadãos não são impedidos de se instruir
e de expor as suas ideias, onde se cultiva a diversidade de perspec‑
tivas e não existe uma ditadura de opinião, que impeça o debate.
Numa tal sociedade de cidadãos livres e esclarecidos, seria difícil
que estes viessem a desenvolver sentimentos de hostilidade de for‑
ma generalizada e continuada e a aprovar com facilidade o envol­
vimento em empreendimentos de guerra de agressão. E, exemplo
histórico por exemplo histórico, sempre se poderá dizer que a expe‑
riência histórica europeia e, apesar de tudo, também a experiência

  Era neste sentido que também Locke lia na História a tendência pací‑
63

fica dos governos que têm a sua origem no consentimento do povo (as far as
we have any light from History, we have reason to conclude, that all peaceful
beginnings of Government have been laid in the Consent of the People). John
Locke, Two Treatises of Goverment, ed. cit. (The Second Treatise, § 112), p. 344.

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histórica mundial das últimas seis décadas poderia testemunhar a
favor da tese de Kant 64. Mas, acima de tudo, há que não esquecer
que, segundo Kant, na ideia originária da genuína constituição re‑
publicana faz­‑se ouvir o incondicional imperativo da razão moral
prática, que diz: «Não deve haver nenhuma guerra!» (Es soll kein
Krieg sein!) 65

64
  V. Cecilia Lynch, «Kant, the Republican Peace, and Moral Guidance
in International Law», in Ethics and International Affairs, 18, 1994, pp.  39­‑58;
Thomas Burns, Kant et l’Europe. Étude critique de l’interprétation et de l’influence
de la pensée internationaliste kantienne, Universität des Saarlandes, 1973; Ernst­
‑Joachim Mestmäcker, «Kants Rechtsprinzip als Grundlage der europaïschen
Einigung», in Götz Landwehr (Hrsg.), Freiheit, Gleichheit, Selbständigkeit. Zur
Aktualität der Rechtsphilosophie Kants für die Gerechtigkeit in der modernen Ges‑
ellschaft, Vandenhoeck & Ruprecht, Göttingen, 1999, pp.  61­‑72; Manuel J. do
Carmo Ferreira, «Kant e a constituição europeia», Revista Portuguesa de Filosofia,
61, 2005, 441­‑451; Otfried Höffe, «Ausblick: Die Vereinten Nationen im Lichte
Kants», idem (Hrsg.), Immanuel Kant. Zum ewigen Frieden, Akademie Verlag, Ber‑
lin, 1995, pp. 245­‑272.
65
  Metaphysik der Sitten, Rechtslehre, Ak VI, 354; Zum ewigen Frieden, Ak
VIII, 356; Streit der Fakultäten, Ak VII, 90. Sobre o tema da guerra em Kant (e a
aparente contradição entre a defesa incondicional do princípio ético­‑político­
‑jurídico da paz e a compreensão do fenómeno da guerra como inscrito na te­
leologia da natureza em relação à espécie humana), v. Teresa Santiago, Función
y crítica de la guerra en la filosofia de I. Kant, Anthropos, Barcelona, 2004; Félix
Duque, «Natura daedala rerum. De la inquietante defensa kantiana de la máqui‑
na de guerra», in Roberto R. Aramayo, Javier Muguerza, Concha Roldán (eds.),
La Paz y el Ideal Cosmopolita de la Ilustración. A Proposito del Bicentenario de Hacia
la Paz Perpetua de Kant, Tecnos, Madrid, 1996, pp. 191­‑216; José Luis Villacañas,
«La guerra en el pensamiento kantiano antes de la Revolución Francesa: La
prognosis de los procesos modernos», ibidem, pp. 217­‑238.

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14

Da estética como filosofia política:


Hannah Arendt e a sua interpretação
da Crítica do Juízo

Quando, no início de Outubro de 2006, me foi dirigido o convite


para parti­cipar no Colóquio do Centenário do Nascimento de Hannah
Arendt — «Hannah Arendt — Luz e sombra» —, organizado pelo
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, ocorreu­‑me a ideia de
um tema cujo desenvolvimento se explicitaria em três momentos. Co‑
meçaria por reconstruir a proposta de Hannah Arendt de inter­pretação
da analítica do juízo estético, desenvolvida por Kant na primeira parte
da Crítica do Juízo, como constituindo não só o cerne da filosofia políti‑
ca kantiana mas como sendo também a mais fecunda via que algum
filósofo alguma vez fizera para fundar o juízo político e, com isso, a
racionalidade do político e das relações políticas e sociais entre os seres
humanos; confrontaria, na continuação, a proposta arendtiana com
outras que, com diferentes inspirações, apontaram no mesmo sen­tido,
desenvolvendo ou explicitando as perspectivas que a estética kantiana
e seus tópicos abrem para o plano político, abordando pensadores
como Friedrich Schiller, Herbert Marcuse, Jean­‑François Lyotard, en‑
tre outros; por fim, faria um juízo sobre a pertinência dessas propostas,
a sua legitimi­dade enquanto interpretações não só do espírito como da
letra da filosofia kantiana e apontaria também as respectivas dificul‑
dades e os riscos que nelas se podem esconder, seja de uma esteticiza‑
ção da política, seja de uma politização da estética.
Reflectindo sobre o tema, nas semanas que se seguiram, verifi‑
quei que ele era demasiado ambicioso e complexo para o tempo de
que eu dispunha para o pre­parar e abordar com a dignidade que
merece. Foi assim que considerei ser mais sensato limitar­‑me a ten‑
tar reconstruir a interpretação arendtiana da filosofia de Kant, em
particular da Crítica do Juízo, como obra na qual, segundo a filósofa

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germano­‑americana, se deve procurar a genuína filosofia política
kantiana disfar­çada sob a análise do juízo estético da beleza, a dis‑
cutir os pressupostos dessa interpretação e a confrontá­‑la com os
próprios textos kantianos, com o objectivo de fazer ver em que sen‑
tido pode essa interpretação reivindicar uma fidelidade, se não à
letra, pelo menos ao espírito da filosofia kantiana 1.

I. Hannah Arendt e Kant: da reserva crítica


à descoberta admirativa

Não só nos seus pequenos ensaios como sobretudo nas suas


obras de maior dimensão e mormente naquelas em que se propôs
desenvolver um projecto filosó­fico próprio (The Human Condition

1
  A literatura sobre o tema deste ensaio é abundante. Aqui se dá uma selecção
dos estudos mais importantes, por ordem de publicação: Ronald Beiner, «Hannah
Arendt on Judging», in H. Arendt, Lectures on Kant’s Political Philosophy, The Uni‑
versity of Chicago Press, Chicago, 1982, pp. 89­‑156; P. Riley, «Hannah Arendt on
Kant, Truth and Politics», Political Studies, XXXV, 1987, pp. 379­‑392; E. Tassin, «Sens
commun et communauté: la lecture arendtienne de Kant», Cahiers de Philosophie,
n. 4, 1987, pp. 81­‑13; B. Flynn, «Arendt’s Appropriation of Kant’s Theory of Judge­
ment», Journal of the British Society for Phenomenology, XIX, n. 2, 1988, pp. 128­‑140; R,
Schürrmann, «On Judging ant Its Issue», in R. Schürrmann (ed.), The Public Realm.
Essays on Discursive Types in Political Philosophy, State University of New York Press,
Albany, 1989, pp. 1­‑21; D. Lories, «Nous avons l’art pour vivre. Hannah Arendt,
lectrice de Kant: indications pour une meditation de l’art», Man and World, XXII,
n.o 1, 1989, pp.  113­‑132; C. Buci­‑Glucksmann, «La troisième critique d’Arendt»,
in AA. VV., Ontologie et politique, Éditions Tierce, Paris, 1989, pp. 187­‑2000; T. Bar‑
tolome Vasconcelos, «Spettatori alla ribalta della storia. Il ruolo della Critica del Giu‑
dizio nel pensiero di Hannah Arendt», Prospettive Settanta, n. 4, 1991, pp. 653­‑669; V.
Gerhardt, «Vernunft und Urteilskraft. Politische Philosophie und Anthropologie
im Anschluss an Immanuel Kant», in M­‑P. Thompson (ed.), John Locke und/and Im‑
manuel Kant, Duncker und Humblot, Berlin, 1991, pp.  316­‑333; Myriam Revault
d’Allones, «Le courage de juger», in H. Ar­endt, Juger. Sur la philosophie politique de
Kant, Éditions du Seuil, Paris, 1991, pp. 222­‑244; B. Henry, Il problema del giudizio
politico tra criticismo ed ermeneutica, Morano Editore, Napoli­‑Milano, 1992; Julio de
Zan, «Amplitud de pensamiento y capacidad de juzgar. La lectura de H. Ar­endt
de la Crítica del Juicio», Revista Portuguesa de Filosofia, 61 (2005), 863­‑882; Elve Mi‑
guel Cenci, «A interpretação política de Hannah Arendt dos juízos estéticos kan‑
tianos», Crítica (Lon­drina), vol. xi, n.o 33, 2006, pp. 101­‑130. Simona Forti, na sua
obra ­Hannah Arendt tra filosofia e politica (Bruno Mondadori, Milano, 2006, parte iv,
pp. 325­‑362) apresenta um esclarecido e com­preensivo estado da questão.

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e a projectada trilogia de The Life of the Mind, concebida em torno
das  três funções essenciais da vida espiritual — Pensar, Querer,
Julgar —, cuja terceira parte não chegou a concluir), Hannah Arendt
manteve um recorrente e por vezes intenso diálogo com a filosofia
de Kant, que foi, juntamente com Platão e Aristóteles, o filósofo que
mais citou ou evocou nos seus escritos. Mas este diálogo é muito
selectivo nos tópicos que privilegia da obra kantiana, não é homo‑
géneo na apreciação que deles faz e sofre uma visível e significativa
evolu­ção, das primeiras para as últimas obras, indo de uma visão
basicamente crítica e negativa para uma aproximação e uma apre‑
ciação cada vez mais positiva, o que manifestamente resulta de uma
descoberta pessoalmente feita do significado a muitos títulos origi‑
nal e do mérito especulativo de alguns tópicos da filosofia de Kant.
Esta pessoal descoberta do significado da filosofia kantiana revela
uma notá­vel singularidade, não só pela atitude hermenêutica que
lhe preside como sobretudo pelos tópicos que põe em evidência,
que ignora ou que despreza.
Não é meu propósito fazer aqui uma apresentação do projecto
filosófico pes­soal de Hannah Arendt. Mas creio poder dizer que o
diálogo da filósofa com Kant e a sua interpretação da filosofia kan‑
tiana têm a ver muito directamente não apenas com aspectos mais
ou menos secundários das suas preocupações filosóficas, mas com
aquilo que constitui o seu centro de gravidade: o reconhecimento e
o repen­samento da íntima relação entre filosofia e política e, nisso, a
pessoal descoberta da importância e do carácter fundamental da ac‑
ção do espírito que se exerce no julgar ou no juízo, entendido, obvia‑
mente, não tanto na sua função lógico­‑cognoscitiva, a que Kant cha‑
mava o juízo determinante, mas naquelas outras funções que
envol­vem a compreensão e doação de sentido ou o reconhecimento
de pertinência e que Kant endossou à faculdade do juízo reflexio‑
nante (reflektierende Urteilskraft). Pode, pois, dizer­‑se que a intensifi‑
cação do diálogo com a filosofia de Kant vai a par do desenvolvi‑
mento do programa filosófico pessoal da autora de The Life of the
Mind. Vejamos, a título de amostra, alguns passos relevantes desse
diálogo, seguindo as obras da autora.

1. Seja, em primeiro lugar, The Human Condition (1958). Encon‑


tramos aí uma meia dúzia de referências, que revelam uma leitura
prevalentemente negativa da filosofia kantiana, nomeadamente, da
filosofia ou antropologia moral kantianas. No contexto da aborda‑
gem que a autora faz do tópico do homo faber, Kant apa­rece­‑lhe como
a expressão máxima do antropocentrismo em filosofia, o que ela vê

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inequivocamente expresso na tese da filosofia moral kantiana, se‑
gundo a qual o homem deve ser considerado como fim em si mes‑
mo e, enquanto tal, como oposto à natureza e aos outros seres consi‑
derados como simples meios 2. No antropocen­trismo vê a autora
implicada também uma concepção utilitarista, e a filosofia de Kant
revela­‑se­‑lhe igualmente como sendo o utilitarismo na sua máxima
expressão filosófica. Em suma, a filosofia de Kant representa a con‑
sumação duma antropolo­gia do homo faber e do «homem medida de
todas as coisas», segundo a conhecida sentença de Protágoras. As
obras de Kant a que faz vaga referência são a Funda­mentação ou a
Crítica da Razão Prática. Da Crítica do Juízo são citadas duas bre­ves
passagens, uma da primeira parte e outra da segunda parte, mas
para apoiar a orienta­ção antropocêntrica e utilitarista do pensamen‑
to kantiano. Assim, nas pala­vras de Hannah Arendt: «O utilitarismo
antropocêntrico do homo faber encontrou a sua máxima expressão na
fórmula kantiana de que nenhum homem pode alguma vez tornar­
‑se meio para um fim e que cada ser humano é um fim em si mesmo.
[…] Kant não tem em mente formular ou conceptualizar as posições
do utilitarismo do seu tempo, mas pelo contrário procura antes de
tudo relegar a rela­ção meios­‑fim para o seu lugar próprio e prevenir
o seu uso no campo da acção política. A sua fórmula, contudo, não
consegue negar a sua origem no pensamento utilitário mais do que
o faz a sua outra famosa e também inerentemente paradoxal inter‑
pretação da atitude do homem em relação aos únicos objectos
que não são destinados ao uso, nomeadamente as obras de arte, nos
quais ele diz que temos um ‘prazer sem qualquer interesse’ [ein
Wohl­gefallen ohne alles Interesse]. A mesma operação que estabelece o
homem como o ‘fim supremo’ permite­‑lhe ‘subordinar a si toda a
natureza na medida em que o possa’, isto é, permite­‑lhe degradar a
natu­reza e o mundo como simples meios, privando ambos da sua
independência e dig­nidade. […] O homem, na medida em que é
homo faber, instrumentaliza, e a sua instru­mentalização implica uma
degradação de todas as coisas como meios, a sua perda do valor
intrínseco e independente […]. A instrumentalização de todo o
mundo e da terra, esta desvalorização sem limites de tudo o que é
dado, este cres­cente pro­cesso de destituição de significado onde

2
  Hannah Arendt antecipa assim aquela que será também a principal críti‑
ca feita à moral kantiana pelo seu antigo condiscípulo e amigo Hans Jonas, em
Das Prinzip Verantwortung, Suhrkamp, Frankfurt a. M., 1979.

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cada fim é transformado em meio e que só pode ser parado tornan‑
do o próprio homem o senhor e dono de todas as coisas, não pode
ocorrer directamente fora do processo de fabricação; pois do ponto
de vista da fabricação o produto acabado é tanto um fim em si mes‑
mo, uma entidade durável independente com uma existência por si
mesma, como o homem é um fim em si mesmo na filosofia política
de Kant. […] Protágoras, de facto, parece ser o mais antigo prede‑
cessor de Kant, pois se o homem é a medida de todas as coisas, en‑
tão o homem é a única coisa que está fora da relação meios­‑fim, o
único fim em si mesmo que pode usar tudo o mais como um
meio.» 3
Porque já o fiz extensamente num ensaio anterior 4, dispenso­
‑me de comentar e refutar aqui este juízo acerca do carácter antropo‑
cêntrico da ética kantiana e tam­bém a interpretação que é proposta
da concepção que Kant fazia da humanidade como um fim em si
mesma, bem como a conclusão de que na filosofia kantiana a natu‑
reza fica reduzida a um simples meio para o homem como seu fim
absoluto, uma conclusão que por certo a segunda parte da terceira
Crítica de modo nenhum sanciona ou só sancionaria com muito ma‑
tizadas distinções.

2. Um segundo inciso kantiano importante na obra de Hannah


Arendt ocorre em dois ensaios publicados no início da década de 60,
os quais representam já ver­dadeiramente uma decisiva viragem na
apreciação da filosofia kantiana. A autora começa aí a entrever a
possibilidade de ler a Crítica do Juízo em clave política e é em torno
de alguns tópicos colhidos na primeira parte desta obra de Kant que
ela começa a estruturar o seu próprio programa filosófico. A vira‑
gem hermenêutica diz­‑se já com toda a clareza nesta passagem do
ensaio intitulado «Freedom and Politics», onde a autora escreve:
«Kant expõe duas filosofias políticas que diferem completamente
uma da outra — a primeira é aquela que é geralmente aceite como
tal, exposta na sua Crítica da Razão Prática, e a segunda é a que está
contida na sua Crítica do Juízo. Que a primeira parte desta última é
na realidade uma filosofia política é um facto raramente menciona‑

3
  The Human Condition, Chicago University Press, Chicago, 1958, pp. 155­
‑158.
  «Kant e os limites do antropocentrismo ético­‑jurídico», in Cristina Be‑
4

ckert (coord.), Ética Ambien­tal, Uma Ética para o Futuro, CFUL, Lisboa, 2003,
pp. 167­‑212. Neste volume, pp. 123-174.

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do nas obras sobre Kant. Por outro lado, pode ver­‑se a partir de to‑
dos os outros seus escritos políticos que para o próprio Kant o tema
do ‘julgar’ tem muito mais peso do que o tem a ‘razão prática’.
Na  Crítica do Juízo a liberdade é apresentada como um predicado
do poder da imagi­nação e não da vontade, e o poder da imaginação
é associado muito intimamente com aquela maneira ampla de pen‑
sar que é o pensamento político por excelência, porque nos torna
capazes de ‘colocarmo­‑nos a nós mesmos na mente dos outros
homens’.» 5
A mesma ideia é um pouco mais explicitada num outro ensaio
publicado no mesmo ano, «The Crisis in Culture: Its Social and Its
Political Significance» 6, cujos tópicos maiores são os seguintes: 1) a
política e a arte como fenómenos do espaço público; 2) a cultura (a
arte) enquanto partilha e gozo da humanidade e como aquilo que
dá sentido à política; 3) a ideia de uma comunidade de humanidade
fundada não na lógica ou nas prescrições morais, mas no sentido de
gosto ou juízo estético; 4) o reconhecimento de que terá sido Kant o
primeiro filósofo a ver esses aspectos, na análise que fez do juízo de
gosto, ao propor a noção de «modo de pen­sar alargado», de aprecia‑

5
  Hannah Arendt, «Freedom and Politics», in Freedom and Serfdom: An An‑
thology of Western Thought, ed. Hunold, Dordrecht, 1961, p. 207. O ensaio, que
começou por ser uma conferência — «Freedom and Politics: A Lecture» — teve
a sua primeira publicação na Chicago Review, XIV, n.o 1 (1960), pp. 28­‑46. A des‑
coberta da Crítica do Juízo por parte de Arendt deve ter começado no ano de
1957, segundo se depreende de uma carta sua a Karl Jaspers, datada de 29 de
Agosto desse ano, na qual se lê: «De momento estou a ler a Kritik der Urteilskraft
com interesse crescente. É ali, e não na Kritik der praktischen Vernunft, que a real
filosofia política de Kant está escondida. O seu elogio do ‘sentido comum’, tão
frequentemente desprezado; o fenómeno do gosto levado a sério como fenó‑
meno básico do juízo…; o ‘modo alargado de pensar’ que faz parte do juízo de
tal modo que podemos pensar a partir do ponto de vista de um outro. A exi‑
gência da comunicabilidade. Tudo isto incorpora experiências que o jovem
Kant teve em sociedade, às quais o homem velho trouxe de novo vitalidade.»
H. Arendt/Karl Jaspers, Briefwechsel 1926­‑1969, Piper, München/Zürich, 1985,
p. 209 (v. p. 355).
6
  Hannah Arendt, «The Crisis in Culture: Its Social and Its Political Signifi‑
cance», in Between Past and Future, The Viking Press, New York, 1968, pp. 197­
‑226 (1.a ed. 1961). Numa sua primeira e mais reduzida versão, sob o título
«Society and Culture», este ensaio foi publicado na revista Dae­dalus, LXXXII,
n.o 2 (1960), pp. 278­‑287. Cito o ensaio pela respectiva tradução francesa: in H.
Arendt, La crise de la culture. Huit exercices de pensée politique, Gallimard, Paris,
1972, pp. 253­‑288.

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ção e prazer desinteressados, do juízo reflexionante mediante o qual
o indivíduo é capaz de colocar­‑se no lugar do outro e no espaço da
comum razão humana para formular e apreciar os seus próprios
juízos, e 5) por con­seguinte, a tese, depois insistentemente repetida,
de que é na primeira parte da Crí­tica do Juízo, e não na Crítica da Ra‑
zão Prática (nem nas outras obras e escritos onde Kant expressamen‑
te expõe a sua filosofia moral e política) que se deve procu­rar a ver‑
dadeira filosofia política de Kant. Explicitarei um pouco cada um
destes tópicos.
No seu ensaio, Arendt desenvolve o tópico das tensões e confli‑
tos entre arte e sociedade, entre o artista e o homem de Estado, mas
descobre algo comum entre a arte e a política enquanto produtos,
que consiste em serem ambas fenómenos do mundo público: «o
conflito que divide o homem de Estado e o artista nas suas acti­
vidades respectivas não se aplica — se desviarmos a nossa atenção
da arte em vias de se fazer para os seus produtos — às coisas mes‑
mas que devem encontrar lugar no mundo. Estas coisas, com toda a
evidência, partilham com os ‘produtos’ políticos, palavras e actos, a
qualidade de terem necessidade de algum espaço público onde apa‑
recerem e serem vistas. Elas não chegam à plenitude do seu ser pró‑
prio, que é o aparecer, senão num mundo comum a todos.» Ora esse
espaço comum a todos é a cultura como ambiente onde os seres
humanos desenvolvem e saboreiam a sua comum condição de hu‑
manidade: «a cultura indica que o domínio público, tornado politi‑
camente seguro pelos homens de acção, oferece o seu espaço para o
desen­volvimento de coisas cuja essência é aparecerem e serem be‑
las. Por outras pala­vras, a cultura indica que a arte e a política, não
obstante os seus conflitos e ten­sões, estão ligadas e mesmo em mú‑
tua dependência.» A política é condição da cultura e está­‑lhe subor‑
dinada: «Destacando­‑se sobre o plano de fundo das expe­riências
políticas e das actividades que, deixadas a si mesmas, vêm e vão
sem dei­xar rasto no mundo, a beleza é a manifestação mesma da
permanência. A grandeza passageira da palavra e do acto pode du‑
rar neste mundo na medida em que a beleza lhe é concedida. Sem a
beleza, isto é, sem a glória radiosa mediante a qual uma imortalida‑
de potencial é tornada manifesta no mundo humano, toda a vida do
homem seria fútil e nenhuma grandeza seria durável.» 7 Segundo
Arendt, o ele­mento comum à arte e à política é que ambas são fenó‑

7
  La crise de la culture, ed. cit., p. 279.

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menos do mundo público e o que mediatiza o conflito entre o artista
e o homem de acção é a cultura animi, ou seja a posse de um espírito
tão formado e tão cultivado que podemos confiar nos que o pos‑
suem para vigiarem e cuidarem de um mundo de aparições cujo
critério é a beleza. Cícero atribuía essa cultura a uma educação filo‑
sófica e os que recebem essa educação estão em condições de abor‑
dar as coisas como simples «espectado­res», sem desejo de se apro‑
priarem delas para si mesmos. Explicitando uma tipolo­gia de
atitudes humanas que a tradição atribui a Pitágoras 8, o pensador
romano compara os filósofos àqueles que, durante os grandes jogos,
não procuravam nem «ganhar a gloriosa distinção duma coroa»,
como os atletas concorrentes, nem fazer «dinheiro mediante a com‑
pra e venda», como os negociantes, mas, atraídos pelo mero espec‑
táculo, «contemplavam tudo o que aí ocorria e tal como ocorria».
Estes últimos estavam nos jogos, como se diria hoje, numa atitude
desinteressada e, por essa razão, não são só os mais qualificados
para julgar, mas são também os mais fascinados pelo espectáculo
em si mesmo e os mais capazes de o apreciar. Tais homens são,
­segundo o filósofo romano, os mais nobres de entre os homens li‑
vres (maxime ingenuum), e o seu trabalho, que consiste em olhar ape‑
nas para ver, é o mais liberal (liberalissimum) de todos os assuntos
humanos 9.
A atenção ao espaço público — como espaço de partilha e usu‑
fruto da comum humanidade, realizada sobretudo na forma da
existência republicana — e isso em relação com a cultura entendi‑
da no seu mais originário sentido humanista e o reco­nhecimento
da essencial conexão de ambos — isto é, da política e da cultura
— é um tópico que se torna insistente e que determina o sentido da
evolução do pensamento da filósofa. A referência a Cícero, à sua
noção de cultura animi e, em geral, ao humanismo romano e ao
conceito romano de humanitas parecem­‑me muito signifi­cativos.
Escreve Arendt: «O humanismo como a cultura é por certo de ori‑
gem romana. Não há palavra grega que corresponda ao latim hu‑
manitas.» E é no espaço da romanidade republicana que a filósofa

  A tradição remonta a Heraclides do Ponto, de onde a colhe Cícero (Tus‑


8

culanae, V, 3). V. Diógenes Laércio, Vitae Philosophorum, VIII, 8 (Diogène Laërce,


Vies et Doctrines des Philoso­phes Illustres, Lib. Générale Française, Paris, 1999,
p. 947).
9
  Ibidem, pp. 279­‑280.

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escolhe os exemplos do «modo como o gosto e a faculdade política
humanizam realmente o belo e criam uma cultura». 10 O ensaio ter‑
mina com esta observação: «Devemos lembrar­‑nos de que, para
os Romanos — o primeiro povo a tomar a cultura a sério tal como
nós —, uma pessoa cultivada devia ser alguém que sabe escolher
os seus companheiros entre os homens, as coisas, os pensamentos,
tanto no presente como no passado.» 11 Neste reiterado apreço pela
romanidade e pelo humanismo, a filósofa não seguia a lição do seu
antigo mestre em Marburgo, o autor da Carta sobre o «Humanismo»
(1947) 12. Já em The Human Condition, logo no início do primeiro
capítulo, se lia que «os Romanos foram talvez o povo mais político
que se conhece» (Romans, perhaps the most political people we
have known), para quem «viver» era «ser entre homens» (inter ho‑
mines esse). E essa obra, que embora analisando as formas da vita
activa humana (desde as mais elementares e animais às mais hu‑
manas: labor, work, action: animal laborans, homo faber, homo civilis),
se propunha já restabelecer o pensamento — a vita contemplativa
— como a actividade suprema do ser humano, termina com a evo‑
cação da célebre frase que Cícero atribuía a Catão, o qual dizia que
«nunca estava mais activo do que quando nada fazia, e nunca es‑
tava menos só do que quando estava sozinho» (Nunquam se plus
agere quam nihil cum ageret, nunquam minus solum esse quam cum so‑
lus esset) 13.
Ora, é a este propósito e neste contexto — da relação entre polí‑
tica e cultura — que Hannah Arendt avança a sua hipótese de leitu‑
ra da primeira parte da Crítica do Juízo de Kant, que passará a ser um
leit­‑motiv não só da sua interpretação do signi­ficado global da filoso‑
fia kantiana, como também do seu próprio pensamento. Lê­‑se no
citado ensaio: «Para justificar esta utilização e ao mesmo tempo fa‑
zer ressal­tar a actividade na qual, a meu ver, a cultura como tal en‑
contra a sua própria expressão, eu quereria fazer apelo à primeira

  Ibidem, p. 286.
10

  Ibidem, p. 288.
11

12
  Sobre a atitude negativa de Heidegger em relação ao humanismo ro‑
mano e à romanidade filosó­fica, v. Franco Volpi, «Heidegger, el problema de la
intraducibilidad y la romanidad filosó­fica», in Irene Borges­‑Duarte, Fernanda
Henriques, Isabel Matos Dias (org.), Heidegger, Lingua­gem e Tradução, CFUL, Lis‑
boa, 2004, pp. 525­‑543.
13
  The Human Condition, ed. cit., p. 325; introd. a A Vida do Espírito, vol. i,
trad. portuguesa, pp. 17­‑18.

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parte da Crítica do Juízo de Kant, que, enquanto ‘crítica do juízo esté‑
tico’ contém talvez o aspecto mais notável e mais original da filoso‑
fia política de Kant. Em todo o caso, ela contém uma analí­tica do
belo, do ponto de vista do espectador que julga, como já o título o
indica, e toma por ponto de partida o fenómeno do gosto, compreen­
dido como uma relação activa ao belo.» 14
Reivindicar para a faculdade de julgar, como sendo­‑lhe própria,
uma activi­dade política implica recusar a interpretação canónica se‑
gundo a qual a filosofia política de Kant decorre sobretudo das pers‑
pectivas enunciadas na Crítica da Razão Prática e do princípio da le‑
gislação moral da razão, que é o imperativo categórico: «age sempre
de tal maneira que o princípio da tua acção possa ser eri­gido em lei
universal.» Segundo Hannah Arendt, este é o princípio em que se
funda toda a moral e toda a lógica ocidental, um princípio de coe‑
rência racional, que pretende evitar a auto­contradição do pensa‑
mento ou da acção, mas que o próprio Kant acaba por reconhecer
que é insuficiente. E, por isso, ainda segundo Arendt, na Crítica do
Juízo ele propõe um outro modo de pensar, a que chama «um modo
de pensar alargado» (eine erweiterte Denkungsart), uma função do
­juízo reflexionante estético, que é capaz de se «colocar no ponto
de vista do outro», para daí apreciar o seu próprio juízo ou ponto de
vista pessoal. Em que se traduz esta dimensão polí­tica do juízo esté‑
tico? Nisto, a saber, que: «A faculdade de julgar assenta sobre o acor‑
do potencial com o outro e o processo de pensamento em acto no
juízo não é, como no processo mental do puro raciocínio, um diálo‑
go de mim para comigo, mas encontra­‑se sempre e primitivamente,
mesmo que eu esteja sozinho a fazer a minha escolha, numa comu‑
nicação antecipada com outrém com o qual eu sei que por fim devo
encontrar um acordo. É deste acordo potencial que o juízo tira a sua
validade específica. O que significa, por um lado, que o juízo deve
libertar­‑se ele mesmo das ‘condições subjectivas privadas’, isto é
das idiossincrasias que determinam natu­ralmente a perspectiva de
cada indivíduo em privado e que são legítimas enquanto permane‑
cem opiniões defendidas em privado, mas perdem todo o sentido e
valor no espaço público. E este pensamento alargado, que, enquan‑
to juízo, é capaz de transcender os seus próprios limites individuais,
não pode, por outro lado, funcio­nar no isolamento. Necessita da
presença dos outros ‘no lugar dos quais’ deve pensar, cujos pontos

14
  La crise de la culture, ed. cit., p. 280.

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de vista deve tomar em consideração e sem os quais nunca tem oca‑
sião de operar. Tal como a lógica, para ser sã, reclama a presença de
si mesmo, o juízo, para ser válido, reclama a presença do outro. Por
certo, o juízo é dotado duma certa validade específica, mas nunca é
universalmente válido. Os seus direitos à validade têm sempre
como limites esses outros no lugar dos quais a pes­soa que julga se
coloca para fazer as suas apreciações. O juízo — diz Kant — é váli­
do ‘para toda a pessoa singular que julga’, mas o acento da frase é
sobre o ‘que julga’: não é válido para os que não julgam, nem para
aqueles que não são mem­bros do domínio público em que os objec‑
tos do juízo aparecem.»
Na continuação, a autora desenvolve uma nova aproximação,
desta vez entre a faculdade julgar, tal como pensa que Kant a con‑
cebe — isto é, como faculdade especificamente política e mesmo
como a faculdade fundamental do homem enquanto ser político,
capaz de o orientar no domínio público e no mundo comum — e
aquilo a que Aristóteles, na sua Ética a Nicómaco, chamava a phró‑
nesis e que considerava ser a virtude do homem político, por opo‑
sição à sabedoria do filósofo. Ao contrário desta, aquela é uma sa‑
bedoria prática que exige a perspicácia de juízo e radica no senso
comum, revelando­‑nos o mundo enquanto mundo que partilha­
mos com os outros. Mediante essa evocação da phrónesis aristotéli‑
ca, a autora quer sugerir que a percepção da importância deste
tópico é muito antiga, mas só Kant chegou ao reconhecimento de
que o julgar é uma actividade importante e mesmo a mais impor‑
tante na qual se produz o partilhar o mundo com outrém. Neste
seu ensaio, a autora sublinha pela primeira vez esta «novidade»
— esta «espantosa novidade» de Kant, o que claramente denuncia
que também se trata de uma novi­dade na sua própria descoberta e
leitura. Escreve ela: «O que é bastante novo e mesmo surpreenden‑
temente novo nas proposições de Kant na Crítica do Juízo é que ele
descobriu este fenómeno em toda a sua amplitude precisamente
ao exami­nar o fenómeno do gosto, que é a única espécie de juízos
que sempre se pensou estar fora do domínio político e fora da es‑
fera da razão.» 15 Kant ousara enfrentar o princípio correntemente
invocado em questões de gosto estético, o de gustibus non disputan‑
dum, pondo em causa o estatuto de arbitrariedade que se dava
como seu fundamento. Mas, ao fazer isso, não cai numa solução

15
  Ibidem, p. 283.

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intelectualista, subordinando o juízo de gosto a regras universais.
Pelo contrário, invoca uma racionalidade argumentativa, não uma
racionalidade demonstrativa: dado que temos a expectativa de
que o mesmo prazer que experimentamos pode ser partilhado com
outros, então o gosto é um assunto de debate, pois apela ao acordo
e consentimento de cada qual, por certo um acordo e consentimen‑
to livres, que temos, porém, o direito de esperar deles, sem contu‑
do lho podermos exigir. Também por este lado se aproxima a esté‑
tica e a política. Tal como esta, aquela vale­‑se apenas de razões de
persuasão — do discurso convincente e persuasivo, e não do dis‑
curso demonstrativo; uma como a outra vivem no elemento de
uma racionalidade retórica. A filósofa fecha a sua reflexão em que
inscreveu esta referência a Kant com estas palavras: «A cultura e a
política pertencem­‑se mutuamente porque não é o saber ou a ver‑
dade que está em jogo, mas antes o juízo e a decisão, a troca judi‑
ciosa de opiniões referentes à esfera da vida pública e ao mundo
comum, e a decisão sobre a espécie de acção a levar a cabo aí, bem
como o modo de ver o mundo no futuro, e as coisas que nele de‑
vem aparecer.» 16
Demorei­‑me um pouco neste ensaio de 1960 porque ele contém
já perfeita­mente delineados todos os tópicos e até o ambiente em
que se desenvolverá poste­riormente a interpretação arendtiana de
Kant, aqui avançada como uma hipótese fecunda em aberto. Esse
ambiente é o de um repensamento das condições de possi­bilidade
do espaço público — do político — a refundação da política como
expressão e gozo da humanidade, da condição do ser humano como
ser num mundo comum habitado por outros seres humanos e com
eles partilhado. Interessante é também a relação triangular estabele‑
cida entre Kant (e a sua doutrina do juízo reflexionante), Aristóteles
(e a sua doutrina do juízo prático e da phrónesis) e Cícero (a sua dou­
trina da cultura e da humanitas num contexto de vivência republica‑
na). E temos, em suma, sugerida a tese segundo a qual a verdadeira
filosofia política de Kant se encontra na Crítica do Juízo, e não, como
o pensara o próprio Kant e o tem ensi­nado a maioria dos seus intér‑
pretes, nos escritos kantianos expressamente dedica­dos às questões
de filosofia moral e política. Estas ideias não mais deixarão de traba‑
lhar interiormente o pensamento arendtiano e vão ser explicitadas
em sucessi­vos seminários e cursos sobre a Filosofia Política de Kant

16
  Ibidem, p. 285.

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ou sobre a Crítica do Juízo, dados nos anos 1964 e 1965, na Universi‑
dade de Chicago e, em 1966 e 1970, na New School for Social Re­
search de Nova Iorque. Do conteúdo desses cursos, cujas notas e
apontamentos foram objecto de publicação póstuma, me ocu­parei
mais directamente na segunda parte deste ensaio.

3. Entretanto, o diálogo de Arendt com a filosofia de Kant


prossegue. Num seminário leccionado na Cornell University no
­Outono de 1965, intitulado From Machiavelli to Marx, a terceira sec‑
ção é dedicada a Kant e nela se analisa a relação do filósofo de Kö­
nigsberg com Rousseau, sob o ponto de vista da filosofia política,
dando destaque ao propósito de Kant de estabelecer a dignidade
humana na capaci­dade que o indivíduo tem de dar leis universais a
si mesmo. Aqui, no que parece ser um recuo relativamente aos en‑
saios do ano 1960, Arendt vê o cerne da concep­ção política kantiana
no imperativo categórico: «somente se seguir o imperativo categóri‑
co o homem se transforma num cidadão responsável do corpo polí‑
tico e do bem comum.» 17
Convidada em Junho de 1972 a proferir duas séries de Confe‑
rências (as Gif­ford Lectures) na Universidade de Aberdeen, Han‑
nah Arendt aproveita a opor­tuni­dade para completar e aprofun‑
dar o seu projecto filosófico iniciado com The Human Condition.
Depois de haver tratado da condição activa do homem, ocupar­
‑se­‑ia agora do que se prometia nas últimas páginas daquela obra:
uma meditação sobre a dimensão pensante e contemplativa do
homem, por conseguinte, sobre as superiores expressões da «vida
do espírito», dedicando a primeira série ao «Pen­sar» (Thinking) e
a segunda ao «Querer» (Willing). Proferiu a primeira série na Pri‑
mavera de 1973, mas no início da segunda série, na Primavera do
ano seguinte, sofreu um ataque cardíaco. Os textos desses cursos
foram publicados postuma­mente em 2 volumes (1978). Se, no pri‑
meiro, a presença de Kant é constante, já no segundo o que sur‑
preende é a ausência, não por esquecimento mas por banimento
ou explícita exclusão. No primeiro dos volumes sublinha a filóso‑
fa repetidamente a singularidade de Kant a propósito de vários

  H. Arendt, From Machiavelli to Marx (texto ainda inédito), Washington,


17

Library of Congress, Manuscripts Division, «The Papers of Hannah Arendt»,


Box 39, pp. 023491­‑023492; cit. apud Si­mona Forti, Hannah Arendt tra filosofia e
politica, Mondadori, Milano, 2006, p. 326.

515

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tópicos, quase todos eles marginais em relação àqueles que a her‑
menêutica kantiana (sobretudo da primeira Crítica) cos­tumava
pôr em realce. Mencionarei os que mais directamente se relacio‑
nam com o tema deste ensaio. Assim, a doutrina kantiana do es‑
quematismo. A autora não é alheia ao debate que esse tópico e
outros com ele conexos suscitaram na sequência da interpretação
heideggeriana de Kant, onde ganha particular evidência a imagi­
nação — cujo fundamental e multímodo papel entre as faculdades
de conhecer esta leitora de Heidegger considera talvez a maior
descoberta de Kant na Crítica da Razão Pura (segundo se lê nos
apontamentos de um seminário dado na New School for Social
Research, no Outono de 1970). Mas, indo além da interpretação
da filo­sofia kantiana proposta pelo autor de Kant und das Problem
der Metaphysik, Han­nah Arendt não vê a imaginação confinada ao
contexto da primeira Crítica enquanto faculdade cognitiva, desta‑
cando também o papel que lhe é atribuído na Crítica do Juízo a
propósito de temas aí abordados como o símbolo e a metáfora
(pp. 115­‑116), o problema da linguagem da filosofia e a função da
analogia no dis­curso filosófico, destacando a autora a preocupa‑
ção que Kant manifesta em relação a este tópico desde os primei‑
ros aos últimos escritos (exigindo de si pró­prio a claridade dos
conceitos como modo de evitar a vacuidade e irrealidade dos
mesmos (pp. 141, notas 73 e 74). Mas ainda mais relevante para o
tema que aqui nos ocupa é o facto de ela atribuir à imaginação um
importantíssimo papel como faculdade política, asso­ciando­‑a ao
juízo e concebendo­‑a precisamente como aquela faculdade que
torna possível o «alargamento do espírito» de que fala Kant no
§  40 da Crítica do Juízo, o que ela faz colocando­‑se em todos os
pontos de vista possíveis ou relevantes e comparando os nossos
próprios juízos com os de todos os outros, criando desse modo a
condição para a emergência do espaço público. Segundo escreve
Arendt, «a força da imaginação torna presentes os outros e assim
move­‑se potencialmente num espaço que é público, aberto de to‑
dos os lados; por outras palavras, adopta a posição do cidadão do
mundo kantiano. Pensar com espí­rito alargado significa que se
treina a imaginação para partir em visita.» 18 Um outro tópico des‑
tacado pela autora é a distinção kantiana entre Verstand e Vernunft

18
  «Julgar. Extractos de lições sobre a filosofia política de Kant», apêndice
a A Vida do Espírito, vol. ii, trad. portuguesa, p. 255.

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(pp. 23­‑24); da mesma forma, a noção kantiana de aparência, tópi‑
co a propósito do qual declara: «não existe nenhum outro filósofo
em cuja obra o conceito de aparên­cia e consequentemente de ilu‑
são (de Erscheinung e Schein) tenha desempenhado um papel tão
decisivo e central como em Kant» (pp. 50 e segs.); e, enfim, a dis‑
tinção entre conhecer (o pensar entendido como meio para um fim)
e o pensar propria­mente tal, como aquilo que emerge da própria
natureza da nossa razão e que tem o seu fim em si mesmo —, dis‑
tinção que diz ser a maior das descobertas de Kant, mas da qual
ele não tirou as consequências, temendo talvez que a razão pu‑
desse perder­‑se num mundo próprio de ideias como coisas de
pensamento vazias (leere Gedan­kendinge) e assim, apesar da sua
descoberta, acabou por render­‑se à tendência de medir o pensar
pelo conhecer (pp. 73­‑76), como se aquele fosse uma forma mais
fraca deste.
Nessas páginas, Hannah Arendt revela ter clara consciência
dos pressupos­tos da sua interpretação de Kant e da sua quase soli‑
tária singularidade. Trata­‑se de descobertas pessoais, não induzi‑
das directamente por interpretações da «Kantlite­ratur» da época,
na qual, salvo raríssimas excepções, pouca atenção era dada aos
mencionados tópicos. De resto, é a própria filósofa que reconhece
alguma proximi­dade entre a sua leitura de Kant e a de Eric Weil
(Problèmes Kantiens, 2.a ed., Paris, 1970) e diz mesmo que os quatro
ensaios reunidos nesta obra do pensador francês que conhecera em
Paris entre 1933­‑1936 (e que era casado com Anne Mendels­sohn,
sua amiga dos anos de juventude em Königsberg) são de longe as
peças mais impor­tantes na literatura kantiana dos anos recentes e
todos eles se baseiam na simples mas crucial perspectiva de que a
oposição entre conhecer e pensar é fundamental para a compreensão
do pensamento kantiano (p.  112, nota). Mas, por outro lado,
demarca­‑se dele, quando diz: «As conclusões de Weil man­têm­‑se
perto da com­preensão que Kant tem de si próprio. Weil está prin‑
cipalmente interessado na inter­‑conexão entre a razão pura e a prá‑
tica e daí afirmar que “le fondement dernier de la ­philosophie
­kantienne doit être cherché dans sa théorie de l’anthropologie
philoso­phique, non dans une ‘théorie de la connaissance’”, ao pas‑
so que as minhas princi­pais reservas acerca da filosofia de Kant
dizem respeito precisamente à sua filoso­fia moral, isto é, à Crítica
da Razão Prática, apesar de eu concordar, eviden­te­mente, que aque‑
les que lêem a Crítica da Razão Pura como uma espécie de epis­
temologia parecem ignorar completamente os capítulos finais do
livro.» (p. 34.)

517

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Para além do reconhecimento da sua relativa afinidade com
Weil, esta pas­sagem revela­‑nos duas coisas interessantes 19. A pri‑
meira é que Arendt, tal como Heidegger, seu professor na universi‑
dade de Marburgo nos anos 1924­‑1925, não sanciona a interpretação
neokantiana da filosofia de Kant e da Crítica da Razão Pura como
uma «Erkenntnistheorie» e que, por outro lado, também como o au‑
tor de Was heisst Denken?, está convencida de que o pensado dos
pensadores só se deixa realmente apreender quando se alcança o
que há de impensado no seu pen­samento, impensado esse que, no
entanto, é o que torna possível o que eles chega­ram a pensar, mas
que, por vezes, só se deixa ver mediante uma hermenêutica algo
violenta, isto é, estranha ao sentido óbvio dos textos e das declara‑
ções do autor e estranha às interpretações canónicas ou dominantes
dos mesmos 20. A segunda é que ficamos desde já a saber que a filo‑
sofia moral e os escritos onde Kant expressa­mente a expõe consti‑
tuem um domínio que a autora encara com sérias reservas, que não
aprecia como filosoficamente relevante e que, como adiante vere‑
mos, até reprime ou pretende esquecer como irrelevantes.
Um pormenor desta abordagem de grande simpatia para com a
filosofia de Kant, tal como exposta sobretudo no contexto da Crítica
da Razão Pura, pode ver­‑se mesmo a propósito de pequenos deta‑
lhes, como é o caso duma reflexão sobre a condição dos filósofos,
notoriamente inábeis para viverem no mundo sensível por suposta‑
mente viverem no claro mundo das suas ideias e especulações. É o

19
  Não deixa de ser curioso o facto de Hannah Arendt não mencionar da
obra de Weil aquilo que nela mais próximo está da sua própria ideia, a saber
a interpretação da terceira Crítica de Kant em clave de filosofia política. Weil
apresentara­‑a como Critique de la Judiciaire. Da mesma forma, no terceiro en‑
saio do seu Problèmes Kantiens, sobre «Histoire et Politique», insiste em mostrar
como a política está no cerne do sistema de Kant. A 1.a edição da obra é de 1963.
Embora seja a 2.a edição de 1970 a citada por Arendt, a filósofa devia por certo
conhecer a primeira edição. Aí, numa nota, Weil diz expressamente, referindo­
‑se ao § 83 da obra de Kant, que «La Critique de la Judiciaire … contient le plus
succint et le plus riche résumé de la pensée politico­‑historique de Kant, qu’elle
place de manière significative dans l’Appendice de l’ouvrage consacrée à la
téléologie naturelle de la preuve morale; l’histoire est sensée parce que la nature
l’est.» (Problèmes Kantiens, Vrin, Paris, 1970, p. 139.)
20
  Sobre as relações pessoais e intelectuais entre Hannah Arendt e Martin
Heidegger, v. Jacques Taminiaux, The Thracian Maid and the Professional Thinker:
Arendt and Heidegger, transl. by Michel Gendre, State University of New York
Press, Albany, N. Y., 1996.

518

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conhe­cido tema do «riso da jovem da Trácia» a respeito de Tales,
comentado já por Pla­tão e que ainda recentemente deu tema para
uma sugestiva obra de Hans Blumen­berg 21. O tema aparece em Kant
numa variação que tem por protagonista não o antigo filósofo Tales
de Mileto, que também se ocupava a observar os astros e, por isso,
caía nos buracos da rua por onde passava, mas sim o astrónomo
protomoderno dinamarquês Tycho Brahe. Escreve Hannah Arendt:
«É estranho que na longa história da filosofia só tenha ocorrido a
Kant — que estava tão singularmente livre de todos os vícios espe‑
cificamente filosóficos — que o dom do pensamento especulativo
podia ser como o dom ‘com que Juno honrou Tirésias, a quem cegou
de modo a poder dar­‑lhe o dom da profecia’. Ele suspeitou que a
relação íntima com o outro mundo podia ‘ser atingida somente com
a perda de algum dos sentidos necessários no mundo presente’.
Kant de qualquer modo parece ter sido o único entre os filósofos a
ser suficientemente soberano para se juntar ao riso comum. Prova‑
velmente ignorando por completo a história da rapariga trácia de
Platão, conta com perfeito bom humor uma história virtualmente
idêntica sobre Tycho Brahe e o seu cocheiro: o astrónomo tinha pro‑
posto que se orientassem pelas estrelas para encontrar o caminho
mais curto durante uma viagem nocturna, ao que o cocheiro teria
respondido: ‘meu caro senhor, podeis saber imenso acerca dos céus,
mas aqui na terra sois um tolo’.» 22
O que, porém, mais releva nesta obra da filósofa germano­‑ame­
ricana é o explícito e reiterado reconhecimento — que já fora sugeri‑
do no ensaio de 1960 acima comentado — de que se deve a Kant a
descoberta da importância fundamental da faculdade do juízo, do
julgar como faculdade distinta do pensar, e do que isso implica, no‑
meadamente, para repensar toda a vida do espírito nas suas funções
mais essenciais, para a requalificação da contemplação como supe‑
rior à acção ou, melhor, como sendo a forma mais qualificada da
acção humana, para compreender que a condição do espectador é
humanamente superior à do actor, não podendo este dispensar
aquela; enfim, a ideia, segundo Arendt, pela primeira vez desenvol‑
vida por Kant, de que essa faculdade se caracteriza pela capacidade

21
  Hans Blumenberg, Das Lachen der Thrakerin. Eine Urgeschichte der Theo‑
rie, Suhrkamp, Frank­furt a. M., 1987.
22
  A Vida do Espírito, ibidem, p. 95. Abordámos este tópico na nossa disserta‑
ção Metáforas da Razão ou Economia Poética do Pensar Kantiano, JNICT/F. C. Gul‑
benkian, Lisboa, 1994, pp. 515­‑521.

519

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de alcançar uma «mentalidade alargada» (erweiterte Denkungsart),
um modo de pensar que é capaz de tomar em consideração os pon‑
tos de vista dos outros. Escreve a filósofa: «Esta distinção entre pen‑
sar e julgar só se tornou evidente com a filosofia política de Kant
— não surpreendentemente, dado que Kant foi o primeiro, e perma‑
neceu o último, dos grandes filósofos que tratou o juízo como uma
das actividades basilares do espírito.» 23 Essa faculdade é autónoma
não só relativamente ao pensar como sobretudo relativamente ao
agir, e só reconhecendo essa autonomia e até primazia se pode resol‑
ver uma contradição frequentemente apontada na filosofia prática
de Kant: segundo a filosofia kantiana do direito, nunca o súbdito
pode rebelar­‑se con­tra o soberano e ser um revolucionário; todavia,
num dos seus últimos escritos (Streit der Fakultäten, 1797), Kant fala
do verdadeiro «entusiasmo» que um acon­tecimento da história po‑
lítica como foi a Revolução Francesa é capaz de suscitar não já nos
actores envolvidos no processo, mas nos espectadores colocados à
dis­tância e por assim dizer desinteressados. Arendt aponta a esse
propósito uma mudança de perspectiva que se terá dado no pensa‑
mento tardio de Kant, a qual se pode perceber nos ensaios e obras
dos anos 90, nos quais o filósofo se coloca no ponto de vista não do
agente ou do actor moral ou político, mas no do espectador. Este,
segundo a filósofa, «não é determinado pelos imperativos categóri‑
cos da razão prática, isto é, pela resposta da razão à pergunta ‘O que
devo fazer?’ — uma resposta que é moral e que diz respeito ao indi‑
víduo enquanto indivíduo, em toda a autónoma independência da
razão. Como tal, de uma maneira prático­‑moral, o indivíduo nunca
pode reclamar o direito a rebelar­‑se. E, todavia, o mesmo indiví­duo,
não enquanto age mas enquanto é simples espectador, tem o direito
de julgar e pronunciar o veredicto final sobre a Revolução Francesa,
sem outro fundamento a não ser a sua ‘ânsia de participação que
raia o entusiasmo’, a sua comparticipação na ‘exaltação do público
não envolvido’ directamente nos actos revolucionários, o seu apoiar­
‑se, por outras palavras, no juízo dos outros espectadores, que tam‑
bém não tinham ‘a menor intenção de se envolver’ nos aconteci‑
mentos. E foi o vere­dicto deles, em última análise, e não os feitos
dos actores dela, que persuadiu Kant a chamar à Revolução France‑
sa ‘um fenómeno na história humana que não é para ser esquecido’.
Nesta colisão entre acção conjunta participante — sem a qual, ­afinal,

23
  Ibidem, p. 107.

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os acontecimentos a julgar nunca teriam surgido — e o juízo refle‑
xivo do observa­dor, Kant não tem dúvidas a respeito de qual deve
ter a última palavra. Assumindo que a História não é mais do que
uma narrativa miserável dos altos e baixos da humanidade e que
o espectáculo de som e fúria ‘pode talvez ser comovente por al‑
gum tempo, mas que a longo prazo ele se converte numa farsa e o
pano tem de acabar por cair, e mesmo que os actores não se can‑
sem da farsa — porque são lou­cos — o espectador esse depressa se
cansa, porque qualquer acto singular será sufi­ciente para ele poder
concluir com razão que a peça que é interminável será eter­namente
semelhante’. Esta é na verdade uma passagem notável.» 24 Em
qual­quer dos casos, não é através da acção mas através da contem‑
plação que o sentido da peça — no caso, do todo da História — é
revelado. «É o espectador e não o actor que detém a pista para
decifrar o sentido dos assuntos humanos — só que, e isto é deci­
sivo, os espectadores de Kant existem no plural, e é por esta razão
que o filó­sofo pôde chegar a uma filosofia política.» 25
Mas o que é mais decisivo — e que agora se expõe como uma
certeza definiti­vamente adquirida — é o reconhecimento de que foi
Kant o primeiro e o último filósofo a conceber o juízo e a condição
do espectador como a mais alta realiza­ção do espírito. E, assim,
Hannah Arendt, ao trazer à luz esse aspecto essen­cial que se oculta‑
va na filosofia de Kant, pode considerar­‑se, na relativa singulari­
dade da sua interpretação, como mais kantiana do que o próprio
Kant, pois explicita a fecundidade de uma ideia que o filósofo,
tendo­‑a embora descoberto, não viu em toda a sua extensão e, no‑
meadamente, não chegou a perceber o alcance da sua des­coberta
para uma refundação da filosofia política.

4. O tópico maior no diálogo de Arendt com a filosofia de Kant


é, pois, o julgar, o juízo. Como escreve a filósofa, «o juízo, enquanto
faculdade separada, foi descoberto quando, já avançada a idade
moderna, Kant, seguindo o interesse do século  xviii pelo fenómeno
do gosto e do seu papel na estética bem como nas relações sociais,
escreveu a sua Crítica do Juízo» 26. O juízo, por conseguinte, não, po‑
rém, naquela específica função que Kant lhe atribui na sua terceira

24
  Ibidem, p. 108.
25
  Ibidem.
26
  Ibidem, p. 148.

521

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Crítica, a saber, como a faculdade propriamente estética responsável
pelos juízos de gosto, mas como faculdade política e mesmo como a
mais política e aquela que torna todo o verdadeiro pensar como sen‑
do político por inerência. O juízo como a faculdade que há que res‑
taurar e exercer para recuperar o sentido de humanidade, como a
faculdade que torna humano o pensar e que revela a humanidade
do pensar.
A última página de Pensar anuncia o que deveria ser a terceira
parte da tri­logia de A Vida do Espírito dedicada ao «Julgar» e deixa
ver como o que está real­mente em causa não é uma questão mera‑
mente teórica, mas fala aí sobremaneira a experiência histórica da
humanidade contemporânea, caracterizada sobretudo pela carência
de juízo. Por outro lado, a interpretação de Kant proposta não segue
os requisitos da rigorosa exegese textual e da adequada contextuali‑
zação histórico­‑filosófica, mas trata de compreender o filósofo me‑
lhor do que ele se compreendeu a si próprio, explicitando o que nele
está implícito, revelando­‑o a si mesmo e até contra ele mesmo, assim
manifestando as verdadeiras potencialidades do seu pen­samento,
as quais nem o próprio teria advertido completamente. Arendt evo‑
ca expressamente, em abono da legitimidade da sua pouco canónica
atitude herme­nêutica em relação à filosofia de Kant, aquela passa‑
gem da Crítica da Razão Pura em que o filósofo, referindo­‑se à dou‑
trina platónica das ideias, justifica a sua pró­pria interpretação desse
núcleo do programa filosófico platónico, dizendo: «Não pretendo
aqui empreender uma investigação literária para apurar o sentido
que o sublime filósofo atribuía à sua expressão. Observo apenas que
não raro acontece… compreender­‑se um autor, pelo confronto dos
pensamentos que expressou sobre o seu objecto, melhor do que ele
mesmo se entendeu, isto porque ele não determinou suficientemen‑
te o seu conceito e, assim, por vezes, falou ou até pensou contra a
sua própria intenção.» 27 Hannah Arendt aplica assim na sua leitura
de Kant a mesma atitude hermenêutica que Kant praticara lendo
Platão.
Mas, se passarmos ao segundo volume de A Vida do Espírito, a
desilusão só não é total porque já estamos avisados das reservas da
autora relativamente ao valor e significado da filosofia moral kan‑
tiana. O volume trata do Querer e, por estranho que isso possa pare‑
cer, para Hannah Arendt, Kant não merece fazer parte de uma his‑

27
  Crítica da Razão Pura, trad. portuguesa, p. 309.

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tória da vontade ou do querer e é mesmo expressamente eliminado
dessa história. Nas pp. 165­‑166 da tradução portuguesa consuma­‑se
o banimento numa declaração que não sabemos se agride mais pelo
seu carácter contundente e sumário ou pela absoluta incompreen‑
são que parece revelar. Diz o seguinte: «O único grande pensador
desses séculos [xvii e xviii] que seria verdadeiramente irrelevante
considerar no nosso contexto é Kant. A sua Vontade não é uma
capaci­dade especial do espírito distinta do pensar, mas razão práti‑
ca, uma Vernunftwille não dissemelhante do nous praktikos de Aristó‑
teles; a afirmação que ‘a razão pura pode ser prática é a tese princi‑
pal da filosofia moral kantiana’ (L. W. Beck) 28, está perfeitamente
correcta. Em Kant, a Vontade nem é liberdade de escolha ­(liberum
arbitrium) nem a sua própria causa; para Kant, a pura espontaneida‑
de, que ele fre­quentemente chama ‘espontaneidade absoluta’, existe
apenas no pensar. Em Kant, a Vontade tem uma delegação da razão
para ser o órgão executivo em todos os assuntos respeitantes à con‑
duta.»
Estas declarações sumárias e agressivas e a total incapacida‑
de revelada pela intérprete para vislumbrar algum interesse na
ética kantiana, mesmo para além das fórmulas em que ela foi tra‑
dicionalmente exposta, não só deixam qualquer leitor perplexo,
como contrastam com a finura de interpretação dos vários tópi‑
cos isola­dos da primeira e terceira Críticas que encontrámos no
primeiro volume de A Vida do Espírito. Choca sobremaneira a to‑
tal incapacidade de ao menos se tentar com­preender o que pode‑
rá Kant ter querido dizer ao afirmar o primado do uso prático da
razão e ao insistir na liberdade e na autonomia como condições
da moralidade e da política. Que razões podem explicar esta re‑
serva, este desapreço e mesmo des­prezo da autora relativamente
à filosofia moral de Kant? Se, como temos visto, o que propria‑
mente lhe interessa na filosofia de Kant é a filosofia política, por
que razão, então, foge a autora dos textos onde Kant expressa‑
mente expõe as suas con­cepções explícitas sobre filosofia política
e pretende, em contrapartida, encontrar a genuína filosofia polí‑
tica kantiana em forma cifrada sob a abordagem que o filó­sofo
faz do juízo estético?

  A autora cita, isolando­‑a do seu contexto de significação, uma frase do


28

célebre kantiano americano e exegeta da Crítica da Razão Prática, o qual certa‑


mente não sancionaria tal desprezo e desqualifi­cação da ética kantiana!

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A resposta a estas perguntas não é fácil nem simples. Mas uma
coisa é certa: ela não decorre de uma exegese ou mesmo de uma críti‑
ca formal dos pressupostos ou da coerência da ética kantiana, como
tantas houve desde os dias de Kant, vindas até e sobretudo de gran‑
des filósofos: Schiller, Schopenhauer, Hegel, Nietzsche, Scheler. Já vi‑
mos, no texto acima citado de The Human Condition, como a moral
kantiana era condenada pelo antropocentrismo e utilitarismo que
medularmente a caracterizava. Para além disso, como se depreen­de
do texto antes citado, Hannah Arendt considera que a razão prática é
na verdade apenas um disfarce da razão teórica e que, por isso, a filo‑
sofia moral kantiana fornece por certo uma regra uni­versal, mas não
dá o critério para decidir o que deve ser feito em concreto e para jul‑
gar o particular enquanto tal; e é isso o que o agente tem de fazer
agindo no con­tingente das situações. Essa atenção ao particular en‑
quanto tal, essa capacidade de, na situação concreta, encontrar a regra
que lhe dá sentido e pertinência, é algo a que não responde a moral
kantiana, mas sim a analítica kantiana do juízo estético. Como escre‑
ve: «O juízo do particular — isto é belo, isto é feio, isto é mau — não
tem lugar na filosofia moral de Kant. O juízo não é a razão prática; a
razão prática ‘raciocina’ e diz­‑me o que fazer e o que não fazer; ela
estabelece a lei e identifica­‑se com a vontade, e a vontade dá ordens;
ela fala em imperativos. O juízo, pelo contrário, surge do ‘simples
prazer contemplativo ou do deleite inactivo’.» 29 Tudo indica, pois,
que o que Arendt reconhece como falha original da ética kantiana é a
incapacidade de ela servir para apreciar o concreto e relativo de que
se tecem as relações humanas, consistindo antes em fórmulas abstrac‑
tas com carácter absoluto. Encontramos esse reparo numa página de
Men in Dark Times. Referindo­‑se ao princípio kantiano da moralidade
— o imperativo categórico —, a autora, fazendo­‑se eco de uma crítica
que havia sido já formulada pelo jovem Hegel, considera­‑o como algo
que, dado o seu pretenso carácter incondicional e absoluto, se revela
contrário à natureza específica das relações inter­‑humanas, as quais
precisamente se caracterizam pela fundamental relatividade 30.

  Lectures on Kant’s Political Philosophy, p. 15.


29

  Men in Dark Times, Brace & World, New York, 1968, p. 27. Sobre as crí‑
30

ticas do Jovem Hegel à moral kantiana, que encontram eco também noutros
pensadores contemporâneos, nomeadamente em J. Habermas e Hans Jonas,
v. o meu ensaio: «O jovem Hegel: Subsídios para a leitura de ‘O Espírito do
Cristianismo e seu Destino’», in Leonel Ribeiro dos Santos, O Espírito da Letra.
Ensaios de Hermenêutica da Modernidade, INCM, Lisboa, 2007, pp. 349­‑357.

524

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Terá o caso Adolph Eichmann tido alguma influência nesta re‑
serva de Arendt para com a moral kantiana? Como repórter, ela
acompanhou e fez o mais circunspecto relato do julgamento, em
1961, desse chefe da logística de transporte dos judeus para os cam‑
pos de extermínio. Ora, no interrogatório policial a que foi submeti‑
do antes do julgamento, quando interpelado acerca da sua respon‑
sabilidade no extermínio em massa de seres humanos, Eichmann
«declarou subitamente com grande ênfase que vivera toda a sua
vida de acordo com os preceitos morais de Kant e especialmente de
acordo com a definição kantiana do dever»; e, já no jul­gamento, in‑
terrogado por um magistrado sobre o que quisera dizer com essa
decla­ração, respondeu: «Com a minha observação acerca de Kant,
pretendi dizer que o princípio da minha vontade tem sempre de ser
de modo a poder tornar­‑se o princí­pio das leis gerais.» E citou mes‑
mo, como reforço da sua pretensa atitude kantiana para com o de‑
ver, o facto de, em muitos casos que passaram pelas suas mãos, ter
consentido que a compaixão o desviasse do dever apenas em duas
ocasiões, mas, porque acreditava que se deve fazer o dever sem a
interferência da compaixão, se esforçara por cumprir escrupulosa‑
mente o seu dever, em vez de ser tentado a que­brar as regras aju‑
dando os judeus, mesmo que tivesse compaixão deles 31.
A repórter deste processo só podia ter ficado arrepiada e pro‑
fundamente perturbada com o uso perverso e retorcido que assim
era possível fazer do princípio da ética kantiana, por certo, grossei‑
ramente entendido e esquecendo aquela formu­lação do princípio
categórico segundo a qual como máxima da sua acção o indiví­duo
deve tomar o princípio de tratar sempre a humanidade em si mes‑
mo e nos outros como um fim e nunca apenas como um meio. Mas
também sabemos que para Arendt, e isso ainda antes do caso Eich‑
mann, até mesmo essa formulação kantiana do princípio de huma‑
nidade estava sob suspeita de antropocentrismo. Não é impossível
que o caso Eichmann tenha tido alguma influência na desafeição de
Arendt pela ética kantiana, interpretada por certo segundo os clichés
e estereótipos dominantes, por aparentemente exibir ele, Eichmann,
as consequências éticas e políticas inu­manas de uma ética abstracta
e formal do dever e da lei, que parece dispensar o juízo pessoal pró‑
prio nas situações concretas em que estão envolvidos seres huma­
nos e as ­realidades de que se faz e que tornam possível e viável a

31
  Eichmann in Jerusalem, Faber & Faber, London, 1963, pp. 120­‑123.

525

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vida dos seres humanos. A ética kantiana, segundo a autora, decorre
apenas no foro da consciên­cia do indivíduo, não tem em conta as
consequências das acções e abstrai do facto de que o agente age e
existe num contexto onde há outros seres humanos e outros seres
mundanos que são afectados pela sua acção. É uma moral para seres
exclusi­vamente racionais, consiste em normas abstractas e formais e
faz economia do pensamento e do juízo; e é esta ausência de pensa‑
mento e de juízo que a autora considera a maior desgraça que pode
atingir a humanidade e abrir caminho ao que designa por a «bana‑
lidade do mal».
Um passo da introdução ao primeiro volume de A Vida do Es‑
pírito pode dar­‑nos alguma luz sobre o quanto o caso Eichmann
poderá ter determinado o pensa­mento da filósofa a este respeito.
Lê­‑se aí: «A minha preocupação com as activida­des do espírito tem
duas origens muito diferentes. O impulso imediato veio de ter as‑
sistido ao julgamento de Eichmann em Jerusalém. No meu relató‑
rio sobre ele falei da ‘banalidade do mal’. Por detrás dessa frase, eu
não sustentava nenhuma tese ou doutrina, apesar de estar vaga‑
mente consciente do facto que ela ia contra a nossa tradição de
pensamento — literária, teológica ou filosófica — acerca do fenó­
meno do mal. O mal, aprendemos nós, é algo de demoníaco… No
entanto, aquilo com que eu estava confrontada era completamente
diferente e não obstante inega­velmente factual. Estava espantada
com uma manifesta superficialidade do agente que tornava impos‑
sível seguir o mal ­incontestável dos seus actos até qualquer nível
mais profundo de raízes e motivos. Os actos eram monstruosos,
mas o agente — pelo menos aquele mesmo que agora estava a ser
julgado — era absolutamente vul­gar; nem demoníaco nem mons‑
truoso. Não havia nele nenhum sinal de convicções ideológicas fir‑
mes ou de motivos maldosos específicos, e a única característica
notável que se podia detectar no seu comportamento durante o
julgamento e durante todo o período de investigação policial ante‑
rior ao julgamento era algo de inteiramente negativo: não era estu‑
pidez mas irreflexão. No cenário do tribunal e da prisão israelitas,
ele funcionava tão bem como tinha funcionado no regime nazi,
mas, quando confrontado com situações para as quais não exis‑
tiam procedimentos rotineiros, ficava sem saber o que fazer; e a
sua linguagem cheia de clichés ence­nava na barra do tribunal, como
evidentemente o tinha feito na sua vida oficial, uma espécie de co‑
média macabra. Clichés, frases estafadas, adesão a códigos de ex‑
pressão e de conduta convencionais e padronizados têm todos a
função social­mente reconhecida de nos proteger da realidade, isto

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é, da interpelação apresentada à nossa atenção pensante por todos
os acontecimentos e factos em virtude da nossa existência. Se esti‑
véssemos sempre a responder a esta interpelação, depressa ficaría‑
mos exaustos; Eichmann diferia do resto de nós apenas em que era
claro que não conhecia de todo nenhuma interpelação desse tipo.
Foi esta ausência de pensamento […] que despertou o meu interes‑
se. […] Pode o problema do bem e do mal, a nossa faculdade de
distinguir o certo do errado, estar em conexão com a nossa facul‑
dade de pensar? […] A questão que se me impunha era: pode a
actividade do pensamento enquanto tal, o hábito de examinar tudo
o que calha acontecer ou despertar atenção, independentemente
dos resultados e do conteúdo específico, pode essa actividade estar
entre as condições que fazem com que os homens se abstenham de
praticar o mal, ou mesmo que os ‘condicione’ efecti­va­mente contra
ele?» 32
O mal de que sofre Eichmann não é, pois, de ordem moral, mas
da ordem do pensamento; não resulta de uma decisão, mas de uma
carência, da incapacidade de pensar colocando­‑se no lugar de ou‑
trém. Ele seguia a sua consciência, obedecia à lei, cumpria o que
julgava ser o seu dever; e tudo isso se traduzia simplesmente em
administrar, sem que qualquer sombra de dúvida o assaltasse, o
processo sistemá­tico de genocídio de milhões de seres humanos. Na
sua consciência não intervinha em nenhum momento a capacidade
de reflectir, de pensar, de medir o alcance dos seus actos, para além
da estrita obediência formal e material a regras que lhe haviam sido
dadas e cuja razão de ser não lhe suscitava a menor dúvida.
Também Ronald Beiner, no ensaio interpretativo das Lições sobre
a Filosofia Política de Kant, sublinha a importância que o caso Eich‑
mann terá tido na forma­ção do pensamento de Arendt, em parti­
cular, na descoberta do juízo como uma faculdade humana autóno‑
ma que não se baseia numa lei dada nem na opinião pública, mas
que é capaz de julgar de novo em cada situação concreta e com total
espontaneidade cada acção e cada intenção. Saber se existe tal facul‑
dade é «uma questão moral crucial e de todos os tempos» 33. O deci‑
sivo problema que o caso Eichmann coloca é o de saber «se um ser
humano é ou não capaz de distinguir o bem do mal mesmo quando
não tem para o guiar senão o seu próprio juízo; e quando este juízo

32
  Trad. portuguesa, pp. 13­‑15.
33
  Eichmann in Jerusalem, p. 294.

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se encontra em contradição com o que ele crê ser a opinião do seu
círculo… Os raros homens que [na época] eram ainda capazes de
distinguir o bem do mal não o faziam senão por própria iniciativa, e
livremente. Eles não podiam respeitar as regras que lhes teriam per‑
mitido arrumar em tal ou qual cate­goria os casos particulares com
que se defrontavam. Eles tinham de julgar por si mesmos cada caso
à medida que ele se lhes apresentava; pois não há regras para o que
é sem precedente.» 34
Para Arendt, a verdadeira moral e política não consiste, pois,
em que o indi­víduo obedeça a normas ou leis dadas por uma razão
legisladora e prescritiva (razão que pode sempre apresentar­‑se sob
a forma de um regime estabelecido ou de um chefe autoritário), mas
sim em que ele seja capaz de descobrir por si próprio com pertinên‑
cia o que fazer em situações concretas para as quais não há leis da‑
das ou condutas estandardizadas. Ora, uma tal concepção implica a
subalternização da moral à política e da política ao pensamento, da
acção à reflexão e ao juízo, do actor ao espectador. Na verdade, a fi‑
lósofa propõe uma deslocação do problema ético do domínio da ra‑
zão prática e da vontade — das normas ou regras e até da acção,
domínio onde ele tradicionalmente é colocado —, para o domínio
do pensa­mento, da reflexão, do juízo; por certo dum pensamento e
dum juízo redescobertos numa dimensão mais originária da vida
do espírito, bem pouco atendida mesmo pelos filósofos, os quais
quase sempre entenderam o pensamento e o juízo como estando
reduzidos à mera função cognitiva. Ora, Kant, ao contrapor ao co‑
nhecer o pensar e, sobretudo, ao pôr pela primeira vez em toda a
evidência o juízo na sua dimensão reflexionante, oferecia surpreen‑
dentemente uma hipótese de resposta ao problema acima enuncia‑
do, mesmo que isso implicasse a subalternização, o apagamento e o
sacrifício da sua própria filosofia moral, tal como canonicamente ele
a expôs e esta tem sido entendida seja pelos filo­kantianos seja pelos
críticos de Kant.
Hannah Arendt já não pôde assistir aos resultados do renasci‑
mento do inte­resse pela filosofia prática (moral e política) de Kant,
que se deu a partir da década de 70 e muito significativamente nos
países anglófonos e até mesmo nos Estados Unidos, um movimento
de que é referência maior John Rawls, o qual expressa­mente se ins‑
pirou no contratualismo kantiano e no construtivismo que preside à

34
  Ibidem, pp. 294­‑295.

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moral kantiana para a fundamentação da sua Teoria da Justiça (1971),
sendo depois seguido por uma galeria de intérpretes, alguns deles
seus declarados discípulos, os quais, ousando ir além dos ­clichés e
lugares comuns, e libertos dos constrangimentos das tradições
empi­rista, pragmatista e analítica, dominantes nesses ambientes, re‑
lêem os textos e pro­curam reconstituir a coerência do programa
kantiano de filosofia prática (moral e política), no qual acabam por
descobrir uma gratificante proposta cheia de fecundas sugestões
para equacionar os problemas éticos, políticos e jurídicos. Esta nova
e vasta geração de intérpretes é representada por alguns nomes já
bem conhecidos, que têm levado a cabo uma leitura ampla, sem pre‑
conceitos e contextualizada da ética kantiana em resultado da qual
chegam à surpreendente conclusão de que ela sai ilibada de quase
todos os aspectos negativos que lhe foram apontados e, por outro
lado, reaparece como sendo um dos mais fecundos paradigmas do
pensamento ético capaz de iluminar ainda os problemas e os dile‑
mas éticos da actualidade 35.

II. A Crítica do Juízo como a filosofia política


de Kant

No «Post­‑scriptum» ao primeiro volume de A Vida do Espírito, lê­


‑se esta declaração programática da autora da obra: «Concluirei o se‑
gundo volume [de A Vida do Espírito] com uma análise da faculdade
do juízo, e aqui a principal difi­culdade será a impressionante escassez
de fontes que possam oferecer um testemu­nho autorizado. Só com a
Crítica do Juízo de Kant é que esta faculdade se tornou um tópico de
primeira importância para um pensador de primeiro plano.» 36
O declarado propósito da filósofa não viria a ser totalmente
cumprido porque a morte entretanto a atingiu. Mas os tópicos cen‑
trais desse seu programa deveriam ser sem dúvida aqueles mesmos

35
  Uma apreciação desta nova linha hermenêutica da filosofia prática e
política kantiana, curiosa­mente representada maioritariamente por autores do
espaço anglófono (Christine M. Korsgaard, Onora O’Neill, Marcia W. Baron,
Barbara Herman, Thomas E. Hill Jr., Stephen Engstrom, Nancy Sherman, Al‑
len Wood, Mark Timmons, J. B. Schneewind, Robert B. Louden e outros), pode
ver­‑se no meu ensaio: «Actualidade e inactualidade da ética Kantiana». Neste
volume, pp. 67-104.
36
  Trad. portuguesa, p. 237.

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que ela já havia abordado e desenvolvido em sucessivos cursos so‑
bre a Crítica do Juízo ou sobre a filosofia política de Kant, entre os
anos de 1964 e 1970, mas agora com mais explícito apoio textual.
Quando a morte a surpreendeu, foi encontrada na sua máquina de
escrever uma folha ape­nas com o título do que seria essa terceira
parte de A Vida do Espírito dedicada ao «Julgar» (Judging) e duas
epígrafes. Dada a insistência de Arendt na afirmação da originalida‑
de e singularidade de Kant em relação à descoberta desse tópico, é
de supor que o filósofo viesse a ser o principal convidado como in‑
terlocutor para essa terceira parte do programa filosófico arendtia‑
no. Em todo o caso, se a filósofa pôde escrever que Kant descobriu a
faculdade do juízo na sua importância e especifici­dade própria, nós
podemos dizer que Hannah Arendt o redescobriu. Se Kant pôs em
realce o papel específico dessa faculdade na vida do espírito e sobre‑
tudo no domínio da apreciação estética, a autora de A Vida do Espíri‑
to, por seu turno, pôs em destaque a essencial e fecunda função po‑
lítica dessa mesma faculdade. Ao fazê­‑lo, estará a violentar a letra e
o espírito da filosofia kantiana, em particular, da ter­ceira Crítica? Ou
estará, antes, a pôr em evidência o fundo de onde emerge e onde se
implanta todo o programa filosófico kantiano?

1. O juízo e o julgar são reconhecidos como acções autónomas


e fundamen­tais do espírito, irredutíveis ao pensar e ao querer.
­Arendt insiste na sua tese de que foi Kant o primeiro e o único
grande filósofo que pôs isso em devido destaque, mas que o fez a
propósito de uma questão particular, na qual ela mesma não está
particularmente interessada enquanto tal, a saber: a analítica do ju‑
ízo estético ou de gosto.
É bem sabido que, na Crítica do Juízo, Kant identifica, ou antes,
realmente «descobre», com grata surpresa uma nova faculdade 37,
ou uma nova função de uma faculdade que já abordara na primeira
Crítica, mas a propósito de uma outra fun­ção. Essa faculdade é o

  É a experiência dessa inesperada mas grata «descoberta» que se declara


37

na Carta a Reinhold de 28 de Dezembro de 1787 (Ak X, 514): «So beschäfti‑


ge ich mich jetzt mit der Critik des Geschmacks bey welcher Gelegenheit eine
neue Art von Principien a priori entdeckt wird als die bisherigen… Ich suchte
sie… und ob ich es zwar sonst für unmöglich hielt, dergleichen zu finden, so
­brachte das Systema­tische …mir im menschlichen Gemüthe hatten entdecken
lassen und welches zu bewundern und wo möglich zu ergründen mir noch
Stoff gnug für den Überrest meines Lebens an die Hand geben wird…»

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juízo, a que agora chama reflexionante (reflektierende Urteilskraft, por
oposição ao juízo determinante — a bestimmende Urteilskraft — da
primeira Crítica). O que distingue essas duas funções é que, enquan‑
to a faculdade de julgar determinante trata de aplicar aos casos par‑
ticulares uma lei universal pre­viamente dada pelo entendimento,
a faculdade de julgar reflexionante lida directa­mente com o parti­
cular, para o qual não dispõe de uma regra geral dada e é ela mesma
que tem de encontrar (ou mesmo inventar) a regra que se aplica ao
caso singular dado. Kant identifica esse tipo de juízos não apenas no
domínio estético, mas também no domínio da apreciação da legali‑
dade característica dos produtos organizados da natureza, nos quais
o juízo descobre uma finalidade imanente que se exprime como a
mútua adequação das partes ao todo e que torna um ser viável e lhe
dá sentido ou pertinência. A autonomia dessa faculdade está garan‑
tida pelo facto de que ela não precisa de tirar os princípios do seu
juízo de outra faculdade — do entendimento (no caso dos juízos
teorético­‑cognoscitivos) ou da razão (no caso dos juízos morais),
mas tem ela própria um princípio transcendental, a que Kant chama
o princípio de Zweckmässigkeit, termo difícil de traduzir, mas que se
pode descrever como a conformidade a um fim, finalidade, teleofor‑
midade. Isto é, graças a esse seu princípio, a faculdade de julgar tem
a capacidade de perceber, de ver, de captar, de compreender o que é
conveniente num dado contexto particular: a Zwekmässigkeit desig‑
na a conveniência, a pertinência, o que fica bem ou cai bem, o que
faz sentido, sobretudo onde essa conveniência, essa pertinência,
esse sentido não estão garantidos por nenhuma regra previamente
dada, mas se evidenciam ou nascem na própria reflexão do sujeito
sobre os dados ou elementos do contexto ou situação particulares
de percepção.
A novidade de Arendt, na sua interpretação da teoria kantiana
do juízo refle­xionante, está, pois, em ter ela percebido que aquilo
que Kant dizia do juízo de gosto vale também e com muito mais
pertinência para o juízo político. Daí chega ela à ousada conclusão
de que é na primeira parte da Crítica do Juízo que se encontra a ver‑
dadeira filosofia política kantiana, e não, como se costuma pensar e
o próprio Kant o pensava, nos escritos de filosofia moral (como
funda­mentação) e nos escritos de filosofia política e do direito (como
aplicação). Estes últimos escritos são por ela quase completamente
desqualificados, da mesma forma que o foram os escritos kantianos
de filosofia moral propriamente dita.
Mas o que é ainda mais estranho é que a interpretação arendtia‑
na da Crítica do Juízo tem por objecto directo apenas alguns parágra‑

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fos da primeira parte da obra, especialmente os §§ 9, 20, 21, 22, 40 e
41, que tratam do gosto como uma espécie de sensus communis e do
interesse social que se associa ao belo. É certo que há referências a
outros tópicos da obra — o desinteresse ou contemplação desinteres‑
sada, o papel da imaginação… —, mas em vão procuraremos nas li‑
ções da filósofa sobre a Crítica do Juízo uma pertinente e sustentável
interpretação desta complexa obra de Kant, ou mesmo das concep‑
ções de Kant sobre o juízo estético e os problemas estéticos em geral.
A leitura arendtiana da terceira Crítica de Kant é feita à margem da
hermenêutica dessa obra e a percepção que ela tem dos proble­mas
específicos que a hermenêutica dessa obra levanta é muito elementar
ou mesmo inexistente. Tais problemas são os respeitantes à composi‑
ção e redacção, à ligação orgânica (ou falta dela) entre as suas duas
partes, à coerência da primeira parte, às sucessivas alterações do pro‑
jecto de Kant no que se refere ao tratamento das questões do gosto e
à tardia mudança do título da obra de «Crítica do Gosto» (Kritik des
Geschmacks) para «Crítica do Juízo» (Kritik der Urteilskraft); os pro­
blemas, enfim, da articulação sistemática (ou não) dessa obra (e da
Urteilskraft) com as outras duas Críticas, que visavam, a primeira, o
entendimento (Verstand) ou razão teórica e, a segunda, a razão práti‑
ca (Vernunft). Kant propunha a nova faculdade do juízo reflexionan‑
te com o seu princípio transcendental da Zweckmäs­sigkeit como a
ponte que permitia a «passagem» (Übergang) entre o domínio prá­tico
(liberdade) e o domínio teórico (natureza), uma ponte lançada sobre
o «abismo» (Kluft) cavado entre a legislação moral para o reino da
liberdade e a legislação teórica para o reino da natureza.
A ausência de consciência de tais problemas limita por certo o
alcance da interpretação arendtiana da terceira Crítica. Não lhe reti‑
ra, porém, completamente a pertinência filosófica. Mas não será que
a intérprete faz violência sobre aquela obra de Kant e sobre o pensa‑
mento estético kantiano nela exposto, ao propor deles uma leitura
em clave política? De modo nenhum, e até se pode dizer que ela não
chega a explorar todos os lugares expressamente políticos da obra e
não chega a dar­‑se conta de quão politicamente configurado está o
programa filosófico kan­tiano levado a cabo já na Crítica da Razão
Pura. A sua leitura da terceira Crítica é tópica e selectiva, não siste‑
mática nem contextualizada. Pode, todavia, considerar­‑se como
uma leitura feita dentro do espírito dessa obra que está ela própria
construída sobre pontes analógicas e sob o modo do como se: Han‑
nah Arendt lê a primeira parte da Crítica do Juízo «como se» o que
Kant aí diz do juízo estético valesse, com muito mais pertinência
ainda, se fosse dito a respeito do juízo político.

532

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2. A feição e função políticas do juízo — Urteilskraft — estavam
bem presen­tes a Kant, o qual desenvolve, em vários momentos da sua
obra, uma explícita representação política das faculdades do espírito,
por analogia com as três funções ou poderes do Estado, cabendo o
poder legislativo à Razão, o poder executivo ao Entendimento e o
poder judicial ao Juízo. Numa das muitas formulações dessa ideia,
lê­‑se: «O servidor da casa ou do Estado, que está submetido a ordens
for­mais, apenas precisa de ter entendimento [Verstand]; o oficial, a
quem, em relação à função que lhe foi confiada, só foram prescritas as
regras gerais, e a quem se deixou o cuidado de determinar ele próprio
o que há a fazer nos casos que ocorrem, necessita de juízo [Urteils­
kraft]; o general, que deve pensar ele próprio os casos possíveis e a
regra para estes, tem de possuir razão [Vernunft].» 38
Com frequência Kant diz que «a filosofia é a legislação da razão
humana», a qual se aplica a dois domínios — a liberdade e a natu­
reza —, e o filósofo tem da Razão uma representação política con­
cebendo­‑a como uma comunidade republi­cana, na qual cabe ao filó‑
sofo e à filosofia a função crítica, judicativa, judicial (eri­gir o tribunal
e citar a razão a julgamento — isto é, citar os que falam em nome
dela, mas que não se entendem entre si, defendendo a seu respeito
causas antinómicas — levando­‑os ou a justificar as suas pretensões
ou a calar as suas acusações mediante um processo judicial) 39.
A reiterada afirmação da filósofa de que foi Kant o primeiro e
único grande filósofo que atribuiu ao juízo a importante função que
ele desempenha na vida do espírito é simpática para o velho filósofo
e, sendo substancialmente verdadeira, não o é, porém, totalmente.
Na verdade, essa faculdade — ou pelo menos algumas das suas fun‑
ções — de há muito que haviam sido identificadas, mas eram atribuí­
das a outras indistintamente. Arendt com toda a pertinência aproxi‑
ma a noção kantiana de juízo da noção aristotélica de phrónesis
exposta na Ética a Nicómaco 40. Foi pena que nesta sua aproximação

  Anthropologie, Ak VII, 198.


38

  V. o desenvolvimento que demos a este tema em Metáforas da Razão ou


39

Economia Poética do Pensar Kantiano, pp.  622­‑631, e também no nosso ensaio


«A ‘Revolução da razão’ ou o paradigma político do pensamento kantiano», in
A Razão Sensível. Estudos Kantianos, Colibri, Lisboa, 1994, pp. 69­‑84 [1.a ed. em
Análise, 16 (1992), pp. 21­‑33].
40
  A aproximação entre Kant e Aristóteles, apenas sugerida por Arendt,
constitui uma das mais interes­santes e fecundas aquisições da recente herme‑
nêutica anglófona da filosofia moral kantiana. V. Nancy Sherman, Making a Ne‑

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não tivesse dado um pouco mais de atenção à fina aná­lise que o fi‑
lósofo grego faz das virtudes intelectuais envolvidas na deliberação
prática (proairesis) sobre o concreto e o contingente apoiada pela
sabedoria pru­dencial (phrónesis), entre as quais se contam a euboulia
(bom conselho ou bom senso), a eustochia (a perspicácia ou agude‑
za), a anchinoia (a vivacidade de espí­rito), a gnome (capacidade
de captar o espírito de uma coisa ou situação, indo além da letra
ou  da  aparência) e sobretudo a synesis (o pensamento ou juízo
compreen­sivo, o entendimento de vistas largas, a consciência re‑
flectida e ­ampla duma dada situação, que parece corresponder
muito proximamente àquilo que Kant designa pela expressão
«erweiterte Denkung­sart»). A deliberação sapiencial é para Aristó­
teles o verdadeiro domínio da synesis, a qualidade do intelecto prá‑
tico que permite a quem a possui compreender outrém, dando pro‑
va de compreensão e de benevo­lência a seu respeito, salvaguardado
embora o respeito pelos valores morais e sociais. Phrónesis, euboulia,
synesis e gnome encontram­‑se pressupostas e unidas na acção moral
e política concretas. São, por isso, consideradas como as qualidades
do homem político por excelência 41.
No âmbito da sua Philosophia moralis sive Ethica, Christian Wolff
desen­volve ainda ampla e prolixamente essas virtudes, a que chama
«virtudes intelec­tuais formais» (que, traduzidas ao latim, se dão pe‑
los nomes de ingenium, acumen, sagacitas, perspicacitas). Mas é no con‑
texto do discurso estético da Modernidade seiscentista e setecentista
que essas faculdades ou qualidades vão ver reconhecida toda a sua
pregnância 42. No início da época moderna, elas haviam já sido apro­

cessity of Virtue. Aristotle and Kant on Virtue, Cambridge University Press, Cam‑
bridge, 1997; Stephen Engstrom / Jennifer Whiting (ed.), Aristotle, Kant and the
Stoics. Rethinking Happiness and Duty, Cambridge University Press, Cambridge,
1996 (desta­que aqui para os ensaios de Christine M. Korsgaard, «From Duty
and for the Sake of the Noble: Kant and Aristotle on Morally Good Action»,
203­‑236; Julia Annas, «Aristotle and Kant on Mo­rality and Practical Reason‑
ing», 237­‑258; Stephen Engstrom, «Happiness and the Highest God in Aristotle
and Kant», 102, 138, e Jennifer Whiting, «Self­‑Love and Authoritative Virtue:
Prolegome­non to a Kantian Reading of Eudemian Ethics VIII 3», 162­‑199).
41
  Aristóteles, Ethica Nichomacheia, VI. V. o «Comentário» de René Antoine
Gauthier et Jean Yves Jolif: L’Éthique a Nicomaque, Introduction, Traduction et
Commentaire, Publications Uni­versitaires, Louvain / Béatrice­‑Nauwelaerts,
Paris, 1970, Tome II, Deuxième Partie, Livres VI­‑X, pp. 435 e segs.
42
  Christian Wolff, Philosophia moralis sive Ethica, Halle, 1750, Pars Prima,
cap. iii, pp. 279­‑604.

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priadas pelo discurso da Retórica e da Poética, surgindo em grande
evidência em obras e tratados do período barroco seiscentista acerca
do ingenio e da agudeza, numa estreita associação ao gosto (gusto) e à
capacidade de apreciar (giudizio) com pertinência e distinção o que é
requintado e socialmente pertinente. O gosto adquire um relevante
significado social e a capacidade para o gosto torna­‑se factor de dis‑
tinção e de promoção da individualidade no espaço social, libertan‑
do aquele que o possui dos constrangimentos do absolutismo e da
antiga ordem onde a hie­rarquia social era determinada pela origem
de sangue. A ascensão do gosto e da crítica do gosto na cultura euro‑
peia dos séculos xvii e xviii vai, de resto, a par com o desenvolvimen‑
to da consciência da importância social e política do indiví­duo, com
a expansão da mentalidade liberal e contratualista e do sentido
democrá­tico: cada indivíduo tem o direito a julgar livremente em
matérias de gosto, e nada pode diminuir essa exigência 43. Por certo,
num primeiro momento, isso vale sobre­tudo para as questões de
gosto e para os assuntos estéticos propriamente ditos. Mas depressa
se passa também a reclamar a mesma liberdade dos indivíduos nas
ques­tões políticas. De resto, originariamente, o gosto não estava con‑
finado à estética, mas era, como o sublinhou Gadamer, um conceito
moral ou até social e político, e o rasto dessa sua condição pode
seguir­‑se até à Antiguidade, no humanismo grego e romano, depois
assimilado pela filosofia moral do Cristianismo 44. Por outro lado,
como documentadamente o mostrou Alfred Baeum­ler, todo o inten‑
so debate esté­tico do Barroco em torno das noções acima referidas e
de outras com elas correla­tas conflui na densidade das análises da
Crítica do Juízo de Kant, obra que desde a sua génese foi projectada e
pensada como uma «crítica do gosto» 45. E, embora as noções envol‑
vidas nesse debate tenham tomado uma feição predominantemente
estética, não perderam ainda assim de todo aquele originário sentido
político­‑moral que claramente tinham na análise aristotélica das «vir‑
tudes intelectuais» e que con­servam ainda na abordagem de Wolff,
visível pelo menos na noção wolffiana de sensus communis e na tese

43
  Alexander von Bormann, Vom Laienurteil zum Kunstgefühl. Texte zur
deutschen Geschmacksde­batte im 18. Jahrhundert, Niemeyer, Tübingen, 1974,
pp. 2­‑4.
44
  Hans Georg Gadamer, Wahrheit und Methode, Mohr­‑Siebeck, Tübingen,
1960, pp. 32 e segs.
45
  Alfred Baeumler, Das Irrationalitätsproblem in der Ästhetik und Logik des 18.
Jahrhunderts bis zur Kritik der Urteilskraft, reimpressão: WBG, Darmstadt, 1975.

535

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segundo a qual «as verdades morais devem ser reduzidas ao senso
comum» (veritates morales ad sensum commu­nem reducendae sunt) 46.
Ao desqualificar — ou ao não tomar a sério — os escritos kan‑
tianos de filoso­fia prática (filosofia moral, filosofia política e filosofia
do direito) e ao sustentar que é na primeira parte da terceira Crítica
que se encontra a verdadeira filosofia política de Kant, Arendt está
a fazer uma transformação do que se deve entender por substância
da política: a essência desta não está nas formas do poder e da sua
organização, na arquitectura do Estado ou das relações entre Esta‑
dos. Isso é secun­dário relativamente ao que é fundamental: recupe‑
rar aquilo que pode dar sentido à existência social dos homens e
garantir que possam habitar um mundo comum: o político só se
pode construir sobre a socialidade humana recuperada, isto é, sobre
a capacidade que os homens têm de partilhar e gozar a sua humani‑
dade na liberdade, na diferença, na mútua confiança. É sobre este
fundo recuperado — aquilo a que Kant chama a Geselligkeit ­— que
podem depois nascer as instituições políticas condizentes com a hu‑
manidade. E é esse fundo que Hannah Arendt descobre nos citados
parágrafos da terceira Crítica. Nos aponta­mentos de um curso dado
na Universidade de Chicago no Outono de 1964 sobre a filosofia
política de Kant («Kant’s Political Philosophy»), lê­‑se: «A Crítica do
Juízo é o único dos grandes escritos de Kant cujo ponto de partida é
o Mundo e o sentido e as aptidões que tornam os homens (no plu‑
ral) capazes de o habitar. Talvez isso não seja ainda a filosofia políti‑
ca, mas é certamente a sua condição sine qua non. Se fosse possível
descobrir que nas capacidades e nas transacções e comércio entre
homens estreitamente ligados uns aos outros pela comum posse de
um mundo (a terra) existe um princípio a priori, então teríamos a
prova de que o homem é essencialmente um ser político.» 47

3. Ora, esse princípio a priori existe. É precisamente o do «gos‑


to», que Kant apresenta «como sendo uma espécie de sensus commu‑
nis», um «sentido comunitá­rio» (gemeinschaftliche Sinn), um senti‑
mento da pertença à comum razão humana, o qual nos leva a tomar
em consideração no nosso juízo, como que a priori, o ponto de vista
de todos os outros, para assim alcançarmos um «modo de pensar

  Philosophia moralis sive Ethica, § 246, pp. 368­‑370.


46

  Hannah Arendt Papers, Library of Congress, Container 41, p.  032259;


47

apud R. Beiner, ob. cit., nota 113.

536

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amplo» e avaliar a posição relativa do nosso ponto de vista privado.
Tal é o núcleo central do § 40 da Crítica do Juízo, a que Hannah Aren‑
dt recorren­temente regressa. A que se associa o conteúdo do § 41 da
mesma obra, onde Kant fala do livre consenso dos indivíduos torna‑
do possível por uma espécie de «con­trato originário ditado pela
própria humanidade», o qual funda a pretensão e garante a possibi‑
lidade da comunicabilidade entre os homens, sobretudo daquela
que não é feita por conceitos, mas cuja substância são os sentimen‑
tos. O conteúdo social e político desses parágrafos é óbvio, mas ele
passou despercebido aos leito­res da obra. Nesses parágrafos, Kant
propõe o que se pode chamar o princípio transcendental da comu‑
nidade e sociabilidade humanas, o pressuposto de toda a comunica‑
ção, cultura e civilização, o pressuposto enfim da existência social e
polí­tica e do próprio sentimento de humanidade. E coloca esse prin‑
cípio não no plano da razão teórica ou prática (como um conceito ou
representação ou como um impe­rativo), mas no plano mais originá‑
rio do sentimento, não de um sentimento cego, mas dum sentimen‑
to que é capaz de reflexão e de juízo. Assim se lê no § 40 da terceira
Crítica, aquele que mais inspira as reflexões arendtianas sobre o
tema que nos ocupa: «Por sensus communis deve entender­‑se a ideia
de um sentido comuni­tário [gemeinschaftlichen Sinnes], isto é, de um
poder de apreciação que na sua reflexão toma (a priori) em atenção a
representação de cada qual em pensamento [eines Beurtheilungsver‑
mögens… welches in seiner Reflexion auf die Vorstellung­sart jedes andern
in Gedanken (a priori) Rücksicht nimmt], como que para manter o seu
juízo na comum razão humana [um gleichsam an die gesammte
Menschenver­nunft sein Urtheil zu halten] e ­mediante isso evitar a ilu‑
são resultante das condi­ções privadas subjectivas que facilmente
poderiam ser tomadas por objectivas e teriam uma influência preju‑
dicial sobre o juízo.» Isso acontece quando, mediante a reflexão, se
confronta o próprio juízo com o de  outros e alguém se coloca no
lugar de todos os outros (in die Stelle jedes andern versetzt). Assim se
alcança um modo de pensar alar­gado (erweiterte Denkungsart) que se
situa num ponto de vista uni­versal para apreciar o seu próprio pon‑
to de vista [aus einem ­allgemeinen Stand­punkte (den er dadurch nur bes‑
timmen kann, dass er sich in den Standpunkt ande­rer versetzt) über sein
eigene Urtheil reflectirt] 48. Essa operação é de natureza esté­tica e de

48
  Esta ideia era na verdade já proposta por Leibniz como uma «fiction»
como «le vrai point de perspective en politique aussi bien qu’en morale… la

537

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gosto, é um sentimento de comum pertença à humanidade que nos
leva a comunicar aos outros espontaneamente — a priori — os nos‑
sos sentimentos, sem ser pela mediação de um conceito.
Na continuação, o § 41 explicita esse originário sentimento que
se dá como um «impulso de socialidade» e que só em sociedade se
revela e expande: «Empiri­camente o gosto só desperta interesse em
sociedade. E se admitirmos o impulso para a sociedade [Trieb zur
Gesellschaft] como natural ao homem e a aptidão e propensão para
ela — isto é, a socialidade [Geselligkeit] — como requisito do homem
enquanto criatura destinada à sociedade e, por conseguinte, como
proprie­dade pertencente à humanidade [Humanität], então não se
pode deixar de conside­rar o gosto como uma faculdade de julgar
acerca de tudo aquilo pelo qual se pode comunicar até o seu senti‑
mento a todos os outros, por conseguinte, como meio de promoção
daquilo que a inclinação natural de cada um reivindica.» 49
E o filósofo continua a sua reflexão propondo o gosto como sen‑
do o funda­mento e a origem de toda a cultura e civilização humanas,
como o que tira o homem do seu isolamento natural e cria o espaço
social e público. «Para si só — observa Kant — um homem abando‑
nado numa ilha deserta não adornaria nem a sua choupana, nem a si
próprio, nem procuraria flores, e muito menos as plantaria para se
enfeitar com elas; mas só em sociedade lhe ocorre ser não simples‑
mente homem, mas também um homem fino à sua maneira (o come‑
ço da civilização); pois é como tal que se ajuíza aquele que é inclina‑
do e apto a comunicar o seu prazer a outros e a quem um objecto não
satisfaz se ele não puder sentir o comprazimento no mesmo em co‑
munidade com outros. E também cada qual espera e exige de qual‑
quer outro a consideração pela comunicação universal, como que a
partir de um contrato ori­ginário que é ditado pela própria humani‑
dade [Auch erwartet und fordert ein jeder die Rücksicht auf allgemeine
Mittheilung von jedermann, gleichsam als aus einem ursprünglichen Ver‑
trage, der durch die Menschheit selbst dictirt ist].» 50 Assim nasce e se
desenvolve a civilização — desde os enfeites rudimentares dos po‑
vos mais pri­mitivos (caribenhos, iroqueses) às belas formas do gosto

place d’autrui… est une place propre à nous faire découvrir des considérations
qui sans cela ne nous seraient point venues.» Gaston Grua, Textes inédits de Lei‑
bniz, Paris, 1948, pp. 501­‑502.
49
  KU, Ak V, 296­‑297.
50
  KU, Ak V, 297.

538

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mais refinado que não visam já o prazer privado mas que encontram
todo o seu significado na vivência social que promovem, e por fim,
no ponto mais alto da civilização, em que as sen­sações e os sentimen‑
tos se consideram tanto mais valiosos quanto mais se deixam comu‑
nicar universalmente, como é o caso dos sentimentos estéticos pro‑
priamente ditos do belo e do sublime. Nessa propensão do gosto
estético para a comunicação universal reconhece Kant também uma
afinidade do mesmo com o sentimento moral (Sittengefühl) ou pelo
menos uma natural transição (Übergang) de um para o outro 51.
A íntima relação entre a Estética e o sentido de humanidade es‑
tava bem patente já no fundador da Estética como disciplina filosó‑
fica. Num dos parágrafos da sua Aesthetica, Alexander Baumgarten
glosa o conhecido lema de Terêncio — «humanus sum nihil humani a
me alienum puto» — nesta forma: «philosophus homo inter homines, ne‑
que bene tantam humanae cognitionis partem alienam a se putat» — o fi‑
lósofo é um homem entre os homens e não considera que lhe seja
estra­nha uma parte tão importante do conhecimento humano, como
é o conhecimento sensível, de que a Estética é uma espécie de lógica
ou gnoseologia 52. E esta feição humanista da experiência estética al‑
cança o seu máximo reconhecimento nas cartas de Schiller Sobre a
Educação Estética do Ser Humano e na ideia aí desenvolvida da «plena
humanidade» (der ganze Mensch, die ganze Menschheit) realizada pela
mediação estética. Mas também em Kant isso está dito já de muitos
modos. Por exemplo, ali onde se escreve que «a beleza vale apenas
para os homens enquanto seres que sendo racionais são igualmente
sensíveis»; ou sob a ideia de uma espontânea harmonia das faculda‑
des do espírito (entendimento e sensibilidade, razão e imagi­nação)
agenciada pela imaginação no seu jogo livre e pela harmonia social
agen­ciada também pela imaginação na sua função de encontrar as
formas pertinentes graças às quais os homens comunicam uns aos
outros até os seus sentimentos mais íntimos e singulares, como são
precisamente os do gosto 53. A estética é, por isso, como o explicita o
§ 60 da mesma obra, o domínio das humaniora, isto é, dos assuntos
mais humanos de todos e que são capazes de interessar a todos os
homens ou ao maior número possível de homens. O  conjunto de

51
  KU, Ak V, 297­‑298.
52
  A. Baumgarten, Aesthetica, § 6 in A. Baumgarten, Theoretische Ästhe‑
tik, Die grundlegenden Abschnitte aus der «Aesthetica» (1750/58), Lateinisch­
‑Deutsch, Felix Meiner, Hamburg, 1988, p. 4.
53
  KU, Ak V, 295.

539

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competências que sob esse termo se designa não resulta de regras e
preceitos, mas supõe o cultivo individual e ­livre das faculdades hu‑
manas estéticas (nomeadamente, da imaginação e do juízo) e Kant
relaciona­‑o expressamente com o universal sentimento de participação,
que é expresso pela palavra ­Humanität e com o poder que os seres
humanos têm de comunicarem entre si e universalmente os seus
sentimentos íntimos e de se associa­rem e organizarem em formas de
existência social e ­política, mormente naquela forma qualificada que
compatibiliza a liberdade, a igualdade e a coerção legal, como é a
forma da república. Na sua expressiva ambiguidade, o texto em aná‑
lise merece ser citado por extenso. O que no mínimo ele revela é que
no espírito de Kant a abordagem do sentimento do gosto evocava
espontaneamente analogias com aquela forma de experiência políti‑
ca que o filósofo considerava ser a que mais se adequa ao sentido de
humanidade: a experiência republicana. Escreve Kant: «… chama‑
mos a isso humaniora, presumivelmente porque Humanidade [Huma‑
nität] significa por um lado o universal sentimento de participação [all‑
gemeine Theil­nehmungsgefühl] e, por outro, a faculdade de poder
comunicar­‑se íntima e univer­salmente [das Vermögen sich innigst und
allgemein mittheilen zu können]; estas propriedades ligadas entre si
constituem a socialidade conveniente à humanidade [die der Mensch‑
heit angemessene Geselligkeit] pela qual ela se distin­gue da limita­ção
animal. A época e os povos, nos quais o activo impulso para a socia‑
lidade legal [Trieb zur gezetlichen Geselligkeit], mediante o qual um
povo constitui uma repú­blica duradoura [dauerndes gemeines Wesen
ausmacht], lutou com as grandes difi­culdades que envolvem a difícil
tarefa de unir a liberdade (e portanto também a igualdade) com a
coerção (mais do respeito e da submissão por dever do que por
medo): uma tal época e um tal povo tiveram que inventar pri­meiro
a arte da comu­nicação recíproca das ideias [Kunst der wechselseitigen
Mit­theilung der Ideen] da parte mais culta com a mais rude, a sintoni‑
zação [Abstimmung] do alargamento e do refinamento das primeiras
com a natural sim­plicidade e originalidade da última e deste modo
inventar primeiramente aquele meio [Mittel] entre a cultura superior
e a despretensiosa natureza, o qual constitui também para o gosto,
enquanto sentido humano universal [als allgemeinen Mens­chensinn],
o padrão de medida correcto, que não pode ser indicado por nenhu‑
ma regra univer­sal.» 54

54
  KU, Ak V, 355­‑356.

540

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Ora este é um outro tópico a respeito do qual a sensibilidade
de Hannah Arendt se encontra com a do filósofo crítico: a simpa‑
tia pelo paradigma do republi­canismo. E o passo citado não é o
único em que Kant deixa aflorar o político na sua abordagem do
estético. A redacção final da terceira Crítica foi feita ao longo do
ano 1789, e nela são bem audíveis os ecos dos acontecimentos po‑
líticos que instau­raram a República numa das mais antigas nações
monárquicas da Europa. Nos §§ 59 e 65, a forma republicana do
Estado é dada como exemplo de uma concepção orgânica em que
o Estado é «governado por leis internas do povo», uma forma «em
que cada membro é não apenas um meio no todo mas ao mesmo
tempo um fim» 55. Mais ainda: no § 83, a forma política republica‑
na reconhece­‑se como estando teleologicamente inscrita na reali‑
zação do secreto plano da natureza em relação à humanidade,
como cultura, ou seja como o fim que o homem pode dar­‑se en‑
quanto ser da natureza e, por conseguinte, também como o fim da
natureza realizado pelo homem, como realização da humanidade
e da sua felicidade possível no plano da natureza e da história.
A cultura, como fim natural e histórico da humanidade, tem para
o filósofo a estrutura arquitectónica formal da organicidade repu‑
blicana, a qual se expande a formas cada vez mais vastas de feição
federalista e cosmopolita. Dando a palavra ao filósofo: «A condi‑
ção formal, sob a qual somente a natureza pode alcançar esta sua
intenção última, é aquela constituição na relação dos homens en‑
tre si, onde ao prejuízo recíproco da liberdade em conflito se opõe
um poder conforme à lei num todo que se chama sociedade civil,
pois somente nela pode ter lugar o maior desenvolvimento das
disposições naturais. Se os homens fossem suficientemente inteli‑
gentes para a encontrar e bastante sábios para se sub­meter volun‑
tariamente à sua coerção seria ainda necessário um todo cosmo‑
polita [weltbürgerliches Ganze], isto é um sistema de todos os
Estados [ein System aller Staaten], que estão em risco de actuarem
entre si de forma prejudicial.» 56

4. Na concepção kantiana da apreciação estética do belo como


mera contem­plação, da qual brota um prazer desinteressado, reco‑
nhece Arendt uma variação estética da sua ideia favorita da condi‑

55
  Ibidem, 352, 375.
56
  Ibidem, 432.

541

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ção privilegiada do espectador e do primado da contemplação so‑
bre a acção na orgânica da vida do espírito. Ela mesma associa a
doutrina kantiana do desinteresse estético com aquele estranho
sentimento que «raia o entusiasmo» que o filósofo crítico atribui
àqueles que à distância apreciam certos acontecimentos decisivos
da história humana (no caso, a Revolução Fran­cesa), nos quais to‑
davia na verdade não participaram e talvez nem quisessem de
modo nenhum participar directamente enquanto agentes. Ao acen‑
tuar este aspecto, Hannah Arendt tende a reduzir a política ao juí‑
zo, à contemplação do espectador, o qual estaria em vantagem so‑
bre o agente ou actor político. Mas para haver espectá­culo a
contemplar e a apreciar é necessário que haja actores e acções. E de
duas uma: ou os actores são uns e os espectadores são outros; ou
uma e a mesma pessoa é, ao mesmo tempo ou à vez, actor e espec‑
tador, chamado também a deliberar e a agir, e não apenas a con‑
templar à distância as deliberações e acções alheias. Acção sem
juízo, não; mas juízo e sensatez descomprometida sem acção tam‑
bém não resolve nada, e uma filosofia política considerada apenas
do ponto de vista do espectador desinteressado correria o risco de
ser uma política de «belas almas» que nunca sujariam as mãos na
efectiva realidade e que ao limite nada teriam para contemplar se
não houvesse quem arriscasse agir.
Por certo, a filósofa não defende um espectador que não seja
actor; mas pre­fere sem dúvida a condição daquele à deste. Num dos
seus apontamentos escreve: «O reino público é constituído pelos crí‑
ticos e pelos espectadores e não pelos acto­res ou pelos fabricadores.
Este crítico e espectador existe em cada actor e fabrica­dor; sem esta
faculdade crítica e de julgar o fazedor ou o fabricador estaria tão
iso­lado no espectador que nem sequer seria percebido. Ou para di‑
zer as coisas de outra maneira, ainda em termos kantianos: a verda‑
deira originalidade do artista (ou a verdadeira novidade do actor)
depende de ele se fazer compreender por aqueles que não são artis‑
tas (ou actores)… O espectador não está envolvido no acto, mas está
sempre envolvido com os outros espectadores como ele. Não parti‑
lha a facul­dade do génio, a originalidade, com o fazedor, ou a facul‑
dade da novidade com o actor; a faculdade que eles têm em comum
é a faculdade de jul­gar.» 57

57
  A Vida do Espírito, vol. ii, p.  261. Kant poderá ter colhido o tema do
«espectador imparcial» da obra The Theory of Moral Sentiments de Adam Smith,

542

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Hannah Arendt sabe por certo muito bem que a política não é
só o que se oferece no campo da aparência e se dá em espectáculo
no espaço público, mas que é também o campo das instituições,
das acções e das decisões. E porque estas acções e decisões ocor‑
rem no concreto, no particular, no contingente e mutável de situa‑
ções que nem são escolhidas nem absolutamente controláveis pe‑
los humanos, também não podem garantir a satisfação universal,
como acontece (se é que tal acontece mesmo) eventualmente num
juízo estético. Por outro lado, a mera apre­ciação do contexto não
garante a boa decisão e nem sequer a pertinente decisão e estas
não podem dispensar o fio condutor das normas, dos valores de
referência, dos princípios ou critérios, os quais, por sua vez, não
são naturalmente consensuais, mas são antes objecto de debate ou
mesmo de conflito, entre culturas e «tribos» com linguagens e sig‑
nos de identificação diferentes, e até numa mesma cultura ou «tri‑
bo» é mutável o grau de adesão a esses identificadores, conforme
as épocas e até as modas. A acção comporta um risco e tem uma
dimensão de gravidade trágica e de responsabilidade que a mera
contemplação do espectador desinteressado do espectáculo histó‑
rico não só não comporta como nem está talvez em condições de
compreender.
Requerer o primado do pensar e do julgar para a acção política
— propor mesmo a condição do espectador como sendo mais im‑
portante e humanamente mais valiosa do que a do actor ou a do
agente político — deve ver­‑se como uma compreensível reacção
contra o pragmatismo e realismo dos políticos e dos cha­mados ho‑
mens de acção de horizontes curtos e desprovidos daquele «modo
de pensar alargado» que precisamente o exercício da faculdade de
julgar reflexionante lhes poderia proporcionar. Evidentemente, não
faltava à filósofa consciência dos problemas envolvidos na acção e
decisão políticas e mesmo nas instituições políti­cas. Basta ter em
conta as suas obras sobre a Revolução, o Totalitarismo, as Crises da
República, a Violência, o Poder.

1759. Já o haviam sugerido Christian Garve e A. Schopenhauer e recentemente


também H. F. Klemme na sua «Introdução» para a reimpressão da edição de
A. Smith, Theorie der moralischen Empfindungen, Braunschweig, 1770 (reprint.
Bristol, 2000, pp. viii­‑x).

543

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III. Balanço e conclusão

Embora por certo de forma muito oblíqua, Hannah Arendt teve


o mérito de chamar a atenção para a dimensão originariamente
­política do programa filosófico de Kant, numa altura em que essa
dimensão do pensamento kantiano e os escritos kantianos de
­filo­sofia política não eram ainda objecto de especial atenção na
«Kantliteratur» 58, ou eram considerados apenas como uma área se‑
cundária do pensa­mento kantiano. Nos últimos decénios, não só a
importância do pensamento político de Kant como até a feição ori‑
ginariamente política do pensamento kan­tiano têm vindo a ser
confirmadas por vários outros intérpretes que levaram a cabo as
suas investigações com total autonomia em relação ao programa
arend­tiano. É hoje possível dizer que toda a filosofia kantiana se
desenvolve no ambiente de uma grande alegoria em que a razão se
concebe a si mesma como um Estado republi­cano, no qual cabe à
filosofia a função judicial que exerce sobretudo enquanto crí­tica da
razão 59. Assim se compreende a razão da abundância de linguagem
político­‑jurídica mesmo na Crítica da Razão Pura e a adopção, mes‑
mo na abordagem de questões da filosofia teorética e da metafísica,
de procedimentos e estratégias tomados por analogia dos procedi‑
mentos de condução de uma causa em tribunal, o que leva Kant a
dizer com frequência, quando inicia a abordagem de uma questão
filosófica, que isso deve ser feito «como se fosse mediante um pro‑
cesso judicial e não de modo bárbaro pela guerra» [gleichsam durch
einen Process, nicht auf bar­barische (nach Art der Wilden), nämlich dur‑
ch Krieg], «pois se trata da condução de um processo judicial peran‑
te o tribunal» [der Handel ist hier die Führung einer Rechtssache (causa)
vor Gericht] 60.
Ao ler a primeira parte da Crítica do Juízo, o que interessa a
Arendt não é propriamente a explicitação dos pressupostos da esté‑
tica kantiana, mas aquilo que desta releva para uma refundação da

58
  Ela própria cita apenas uma obra digna de registo: Hans Saner, Kants
Weg vom Krieg zum Frieden, vol. 1: Widerstreit und Einheit: Wege zu Kants politis‑
chen Denken, München, R. Piper Verlag, 1967.
59
  Tive oportunidade de desenvolver este tópico, nomeadamente em Me‑
táforas da Razão ou Econo­mia Poética do Pensar Kantiano, JNICT/F. C. Gulbenkian,
Lisboa, 1994, pp.  561­‑631: «A instaura­ção republicana da Razão. Paradigmas
político­‑jurídicos do pensar kantiano.»
60
  Tugendlehre, Ak VI, 438.

544

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genuína atitude política. A filósofa tem por certo razão em destacar
o alcance para uma filosofia política dos tópicos identifica­dos na
primeira parte da terceira Crítica de Kant. Mas não a tem na medida
em que desconsidera tudo o que o filósofo disse sobre filosofia polí‑
tica noutros seus escri­tos em que expressamente tratou desse assun‑
to. Mas, apesar da distorção política a que submete alguns dos tópi‑
cos da estética kantiana, a interpretação da Crítica do Juízo proposta
pela filósofa deu ocasião a uma vasta genealogia de esforços que
passaram a ler aquela obra de Kant como matriz de refundação do
político e de reconstrução do juízo político e que, por sua vez, leva‑
ram a uma reapreciação orgânica de toda a filosofia kantiana em
que o problema político deixou de ser visto como um apêndice ou
domínio secundário para ser reconhecido como o seu cerne 61. E, da
mesma forma, apesar do desapreço da filósofa pela filoso­fia moral
de Kant, a sua interpretação aduna­‑se com outros esforços contem­
porâneos, que ela já não teve oportunidade de acompanhar, de rea‑
bilitação da filosofia prática kantiana, incluindo nesta a filosofia po‑
lítica e a filosofia do direito, e a sua sugestão de ligar a doutrina
kantiana do juízo reflexionante à noção aristo­télica de phrónesis tem
vindo a ser seguida com gratificantes resultados a propósito de
­outros tópicos da filosofia moral de ambos os pensadores, que tradi‑
cionalmente eram tidos por defensores de programas irreconciliá‑
veis.
O acento que Hannah Arendt pôs numa leitura da terceira
­Crítica de Kant em registo político e a descoberta que nessa obra fez
do que se poderia chamar o princípio transcendental da comunica‑
bilidade humana num espaço plural, público e livre, permitiu que
por essa via se viesse a libertar a filosofia teórica e prática de Kant
da ideia que lhe andava associada de consistir num programa mo‑
nológico e solipsista da razão. Habermas, que muito insistira numa
tal interpretação da filosofia prática de Kant, acabou por corrigi­‑la
parcialmente, e penso dever­‑se isso à sua leitura das obras de
­Hannah Arendt, sendo por elas levado a reconhecer que Kant ante‑
cipa no juízo estético aquele pressuposto pragmático da comunica‑
bilidade que foi posto em destaque por Karl­‑Otto Apel, na sua ideia

  V. como expressão maximalista desta vertente hermenêutica a obra de


61

Henri d’Aviau de Ternay, Un impératif de communication. Une relecture de la phi‑


losophie du droit de Kant à partir de la troisième «Critique», Les Éditions du Cerf,
Paris, 2005.

545

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de uma «sociedade de comunicação» (Kommunikationsgemeinschaft)
e por ele próprio no seu programa filosófico da «ética do discurso»
(Diskursethik).
Assim, muito embora a interpretação arendtiana da filosofia de
Kant, enquanto exegese da obra e pensamento do filósofo, não pos‑
sa ser seguida incondi­cionalmente e revele muitas lacunas e desfo‑
cagens, deve todavia reconhecer­‑se que ela põe em relevo um ponto
essencial do projecto kantiano de filosofia, o qual se pode mesmo
considerar como sendo o seu núcleo mais íntimo. De facto, muito
antes de escrever e publicar a sua filosofia política — o que só veio a
fazer na última fase da sua vida — e antes mesmo de escrever a sua
filosofia prática e estética, a filosofia de Kant já estava impregnada
de uma ambiência política e jurídica, como penso ter mostrado ex‑
tensamente em ensaios anteriores e como vários outros intérpretes o
têm vindo cada vez mais a confirmar 62. A própria noção de «crítica»
— termo que aparece no título das obras maiores do filósofo e que
foi tirado do vocabulário da estética setecentista que se concebia
preferentemente como «crítica do gosto» — e bem assim o «ponto
de vista crítico» sugerem já um exercício do juízo, da facul­dade de
julgar reflexionante, a qual é capaz de se distanciar da arena da ra‑
zão para debater e apreciar, como um juiz imparcial e por assim di‑
zer desinteressado, os assuntos da razão aí trazidos a debate pelos
que aparentemente defendem a causa da razão (dogmáticos) e pelos
que aparentemente lhe recusam os seus direitos (cépticos), sendo
capaz de situar­‑se, por conseguinte, como espectadora, em pontos
de vista não só diferentes como até antinómicos e de os avaliar na
respectiva e relativa pertinência, tendo por superior critério a satis‑
fação dos essenciais interesses e fins da comum razão humana.

  Entre os mais recentes, v. Ottfried Höffe, Königliche Völker. Kants Kosmo‑


62

politischer Rechts­‑und Friedenstheorie, Suhrkamp, Frankfurt a.M., 2001 (trad. in‑


glesa: Kant’s Cosmopolitan Theory of Law and Peace, Cambridge University Press,
2006, chap.  12, pp.  203­‑228: «The Critique of Pure Reason: A Cosmo­‑Political
Reading»).

546

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Proveniência dos Ensaios

Os ensaios reunidos neste volume foram primeiramente apresen‑


tados como conferências ou comunicações em seminários, colóquios e
congressos, e depois publicados nas actas desses eventos, em revistas
ou em volumes colectivos. Deixamos aqui expresso o nosso agradeci‑
mento aos organizadores e coordenadores ou editores dessas publica‑
ções pela graciosa autorização concedida para a respectiva integração
neste livro.

«Regresso a Kant. Evolução e situação dos estudos kantianos», in Philo‑


sophica, 24 (2004), pp. 119-182.
«Actualidade e inactualidade da ética kantiana», in Philosophica, 31
(2008), pp. 127-160.
«A antropocosmologia do jovem Kant», in L. Ribeiro dos Santos, Ubira‑
jara R. Azevedo Marques, M. Sgarbi, G. Piaia, R. Pozzo (orgs.), Was
ist der Mensch?/Que é o Homem? – Antropologia, Estética e Teleologia
em Kant, CFUL, Lisboa, 2010, pp. 219-230.
«Kant e os limites do antropocentrismo ético-jurídico», in Cristina
­Beckert (coord.), Ética Ambiental: Uma Ética para o Futuro, CFUL,
Lisboa, 2003, pp. 167-212.
«Kant e a ética da linguagem», in M. J. do Carmo Ferreira (coord.),
A Génese do Idealismo Alemão, CFUL, Lisboa, 2000, pp. 61-81.
«Da linguagem jurídica da filosofia crítica à arqueologia da razão práti‑
ca», in L. Ribeiro dos Santos e José Gomes André (coord.), Filosofia
Kantiana do Direito e da Política, CFUL, Lisboa, 2007, pp. 205-224.
«Hércules e as Graças, ou da ‘condição estética da virtude’: Kant, leitor
de Schiller», in Teresa Cadete e L. Ribeiro dos Santos (coord.), Schil‑
ler, Cidadão do Mundo, CEEA e CFUL, Lisboa, 2007, pp. 57-84.

547

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«A teologia de Job, segundo Kant: ou a vivência ético-religiosa entre o
discurso teodiceico e a estética do sublime», in Convergências & Afi‑
nidades. Homenagem a António Braz Teixeira, CEFi e CFUL, Lisboa,
2007, pp. 919-945.
«A concepção kantiana da experiência estética: novidade, tensões e
equilíbrios», in Trans/Form/Ação, 33 (2010), pp. 35-77.
«Kant e o regresso à Natureza como paradigma estético», in Cristina
Beckert (coord.), Natureza e Ambiente. Representações na Cultura Por‑
tuguesa, CFUL, Lisboa, 2001, pp. 169-194; retomado in L. Ribeiro
dos Santos (org.), Kant em Portugal: 1974-2004, CFUL, Lisboa, 2007,
pp. 387-411.
«Da experiência estético-teleológica da Natureza à consciência ecológi‑
ca. Uma leitura da Crítica do Juízo», in Trans/Form/Ação, 29 (2006),
pp. 7-29.
«Eurocentrismo e Cosmopolitismo no pensamento antropológico e po‑
lítico de Kant». Resulta da fusão de dois ensaios: «O eurocentrismo
crítico de Kant» e «A ideia de Europa no pensamento de Kant»,
publicados, respectivamente, in F. G. Costa e H. G. Silva (org.),
A  Ideia Romântica de Europa, Colibri, Lisboa, 2001, pp. 153-178; e
V.  Soromenho-Marques (coord.), Cidadania e Construção Europeia,
Ideias e Rumos, Lisboa, 2005, pp. 137-162.
«A paz como problema filosófico e a concepção kantiana de Federalis‑
mo», in Ernesto Castro Leal (org.), O Federalismo Europeu – História,
Política e Utopia, CHUL/Edições Colibri, Lisboa, 2001, pp. 35-69
(sob o título «Republicanismo e Cosmopolitismo: a contribuição de
Kant para a formação da ideia moderna de Federalismo»).
«Kant e o republicanismo moderno», in Ernesto Castro Leal (org.), Re‑
pública, Socialismo, Democracia, CHUL, Lisboa, 2010, pp. 11-38.
«Da estética como filosofia política: Hannah Arendt e a sua interpreta‑
ção da Crítica do Juízo», in M. Luísa Ribeiro Ferreira, C. Beckert e
Margarida Amaral (coord.), Hannah Arendt: Luz e Sombra, CFUL,
Lisboa, 2007, pp. 157-192.

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ÍNDICE

Prefácio................................................................................................... 7

Introdução — Regresso a Kant. Evolução e situação dos estudos


kantianos............................................................................................. 9

ÉTICA E ANTROPOLOGIA

1. Actualidade e inactualidade da ética kantiana............................. 67


2. A antropocosmologia do jovem Kant............................................. 105
3. Kant e os limites do antropocentrismo ético-jurídico................ 123
4. Kant e a ética da linguagem......................................................... 175
5. Da linguagem jurídica da filosofia crítica à arqueologia da
razão prática....................................................................................... 205
6. Hércules e as Graças, ou da «condição estética da virtude»:
Kant, leitor de Schiller....................................................................... 229

ESTÉTICA E FILOSOFIA DA RELIGIÃO

7. A teologia de Job, segundo Kant: ou a experiência ético-religiosa


entre o discurso teodiceico e a estética do sublime.................... 267
8. A concepção kantiana da experiência estética: novidade, tensões
e equilíbrios..................................................................................... 301
9. Kant e o regresso à Natureza como paradigma estético.................. 349
10. Da experiência estético-teleológica da Natureza à consciência
ecológica. Uma leitura da Crítica do Juízo............................................ 379

FILOSOFIA POLÍTICA

11. Eurocentrismo e Cosmopolitismo no pensamento antro-


pológico e político de Kant.............................................................. 407
12. A paz como problema filosófico e a ideia kantiana de Federa-
lismo........................................................................................................... 429
13. Kant e o republicanismo moderno............................................... 469
14. Da estética como filosofia política: Hannah Arendt e a sua inter-
pretação da Crítica do Juízo............................................................... 503

Proveniência dos ensaios..................................................................... 547

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