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que é
21 Arte?
Menmam
Sáo Paulo
1994
Tolstói, Leon (1828—1910)
O que é a arte? / Leon Tolstói. trad. Yolanda
Steidl de Toledo e Yun Jung Im. - Sáo Paulo:
Experimento, 1994.
176 p. ; 23 cm
ISBN 85—85597-06-X
CDD 701
Editora Experimento
Avenida lpiranga 84/503
01046—010 sao Paulo SP
Telefonc: (011) 288—0124
INDICE
CAPÍTULO 1
Tempo e trabalho gastos com & ane. Vidas podadas em seu servico. Moralidade
ancriñcnda pela arte. Descdgáo do ensaio de uma ópera. ................................ 21
CAPÍTULO n
A arte compensa tanto mal? 0
que é arte. Confusáo de opinióes. E “aquilo que
produz belen”? A palavra “belen" em msso. Caos na estética. ........................27
CAPÍTULO ¡11
Sumádo de várias teon'as e defmigóes estéticas, de Baumgartenaos dias presentes.
33
..................................................................................................................................
CAPÍTULO ¡v
Deñnigóes de ¡me baseadas na belen. Gosto nio deñnívcl. Uma defmigáo clara
necessárla para que possnmos reconhecer as obras de ¡me. ..............................43
CAPÍTULO v
Definigóes nio baseadas na beleza. A deñnlgáo "de Tolstói. A extensáo e &
necessidade da arte. Como as pessoas no pasando distingulam o bom de mu em
49
arte. ..........................................................................................................................
CAPÍTULOVI
Como a ¡me pelo prazer da arte veio ¡¡ ser estimda. Religióes indimm o que é
considerado bom e mau. 0 cn'stianismo da Igreja. Renasdmento. Cetidsmo das 0
classes superioues. Eles confundem o belo com o bom. ....................................55
CAPÍTULO vu
Uma teon'a estética moldada pam se adequar ¡ visáo da vida das classes governantes.
59
..................................................................................................................................
CAPÍTULO vm
Quem adotou em
teoria estética. Ane real necessária para todos os homens. A
nosa arte, cara dermis, demasiadamente lninteligível, e demasiadamente nociva,
para as
m. A teoria do “eleito' em atte. .......................................................63
CAPÍTULO ¡x
A perversño da nossa arte. Ela perdeu o seu conteúdo. Náo há con—ente de novos
sentimentos. Ela transmite principalmente trés emogóes indignas. ................... 67
CAPÍTULO x
Perda de compreensibllidade.Arte decadente. Arte recente francesa. Temos o direito
de dizer que ¡so é mim? A arte mais elevada sempre foi compreensível as pessoas
normals. 0 que falha em contagiar as pessoas normais nao é arte. ................. 71
CAPÍTULO X!
Contrafacóes da arte produzldas por: empréstimo; imitado; excitado; interesse.
Qualiñmcóes necessádas para a produgáo de obras de arte verdadeiras, e aquelas
suñcientes para a produqño das contrafacóes. .................................................... 89
CAPÍTULO xn
Causas da produdo das contrafag6es. Proñssionalismo.A Crítica. Escolas de arte.
A perfeicáo da forma, necessárla para produzlr o contágio que caracteriza uma
verdadelra obra de arte. ........................................................................................ 97
CAPÍTULO xm
'Nibelungenking' de Wagner: um tipo de arte contrafeita. O seu sucesso e as
razóes para ¡eso. ................................................................................................... 103
CAPÍTULO xw
Verdades fatals para visóes preconcebldasnao prontamentereconhecidas. Proporgio
das obras de arte para as contrafacóes. A perversio do gosto, e a inmpacidade
de reconheoer a arte. Exemplos. ........................................................................ 113
CAPÍTULO xv
A QUALIDADE DA ARTE (QUE DEPENDE DA SUA FORMA) CONSIDERADA-Á
PARTE no
SEU CONTEÚDO. o
sinal da arte: poder de contágio. Arte
lncompreensívelpara aquelas cujo gesto está pervertido. Condi<;ó&s para o contagio:
a individualidade, a dareza e a sincen'dade do sentimento transmitido. ........ 119
CAPÍTULO xv1
Tendo reconheddo certas producóes como sendo obras de arte, uma vez que a
exceléncia de sua forma permite consideré—las como sendo contagiosas, considera
AGORA A QUALIDADE nos SENTIMENTOS QUE FORMAM o CONTEÚDO
DESSAS OBRAS. Melhor o sentimento, melhor a arte. A multidáo aculturada. A
percepcáo religiosa da nossa era. Novos ¡deals colocam novas exigéncias na arte.
A arte une. A arte religiosa, a arte universal. Ambas cooperam para um único
resultado. A nova apreciacáo da arte. .Arte má. Exemplos. Beleza, embora esta
nio possa fornecer qualquer padráo da arte, tem o seu lugar legítimo na arte.
A Nona Sinfonia de Beethoven. ........................................................................123
CAPÍTULO xvn
Resultadosda auséncia da verdadeira arte. Resultados da perversáo da arte: trabalho
e vidas gastos com o que é inútil e nocivo. A vida anormal dos ricos. A perplexidade
das criangns e das pessoas simples. Confusáo do certo e errado. Nietzsche e
Redbeard. Superstigáo, Patriotismo e Sensualidade. .........................................135
CAPÍTULO XVIII
0 objetivo da vida humana é a uniáo fraternal dos homens. A arte deve ser guiada
por esa 143
percepgio. .............................................................................................
CAPÍTULO xxx
A arte dofuturo, mio como a possessáo de uma minoria seleta, mas como um meio
em diregio a perfeigáo e unidade. .....................................................................147
CAPÍTULO xx
A conexáo entre ciéncia e arte. As ciéncias mendazes; as ciéncias triviais. A ciéncia
deveria lidar com os grandes problemas da vida humana e servir de base para a
arte. .......................................................................................................................
153
APENDICE 1 ..........................................................................................................
161
APENDICE ¡1 169
....................................................................................
A Teoria Estética de Tolstói
“… 0 que é a música? Que efeito produz? E por que ama de tal modo?",
interroga—se o personagem principal de Sonata aKreutzer(1889) para añrmar logo
em seguida: “Dizem que a música eleva as almas… que estupidez e que mentira!
A verdade é que ela excita, excita tenivelmente — falo por experiéncia própria —, náo
de maneira a elevar ou rebalxar a alma, mas de maneira a exasperá—la. Como
explicar—[he isto? A música obrlga-me a esquecer, a esquecer a minha verdadeira
condigio, transporta—mea um estado de espirito que nao é o meu. Sob a influéncia
da música tenho a impressáo de sentir o que na realidade nao sinto, de compre—
ender o que náo compreendo, de poder o que náo posso. (...) A música transpor—
ta—me, automaticamente, ao mesmo estado de alma em que se encontrava aquele
que a compós. A minha alma confunde—se com a do compositor e, gragas a ele,
modiñm-se o meu estado de espírito. Mas ignoro a musa dessa minha transforma-
gáo. (…) Se, por exemplo, se toca uma marcha militar e os soldados desñlam ao
seu ritmo, a música atingiu o seu lim. Se tomram uma música de dangn e eu dancei
durante ese tempo, a música atingiu o seu ñm; se comunguei durante uma misa
cantada, a música atingiu ainda o seu ñm; de outro modo nao pasa de uma
superexcitagáo no meio da qual nio sabemos o que fazer..."1
Ao negar, de Pozdnychev, a supremacía do anista sobre o fruidor e ao de—
fender uma visáo funcional da experiéncia estética, Tolstói antedpa, no romance
do ñnal dos anos 80, um dos motivos centrais de 0 que é a arte?, escrito em 1897
ao longo de alguns meses. Adotando uma idéia de arte, que René Wellek consi—
dera derivada de L'Estbétíque (1878), de Eugene Véron, Tolstói define a atividade
artística como a transmissio de um sentimento pessoal, que contagia os outros
homens e os leva a vivenciar o mesmo tipo de experiéncia.
Embora as conclusóes a que Véron chega sejam bastante diferentes daquelas
de Tolstói, é possível perceber pontos de tangéncia entre as duas teorias. Ambos
acreditam que a arte repousa na emogio, que é de primária importáncia a since-
ridade por parte do artista, que a empatía, no caso do teórico francés, e o contágio,
no qaso do romancista russo, sáo a mola propulsora da experiéncia estéticaº. F.
com base nessas idéias que Tolstói formula sua deñnigño de arte, comegnndo pela
negativa para atingir ñnalmente uma visáo sintética. A arte nao e manifestado da
idéia ou da beleza de Deus, como añrmam os partidários da metafísica; nao é um
jogo, no qual o homem dispende um exceso de energía, como querem os segui-
dores da estética ñsiológim; nao é expressáo de emogóes, produqáo de objetos
agradáveis, ou prazer. Longe de tudo ¡so, a arte é uma forma de uniáo entre os
homens, através de sentimentos partilhados, sendo indispensável a vida e ao
progresso em diregáo ao bem do individuo e da humanidade.
A idéia da arte como sentimento nao ¿ exclusiva de Tolstói ou Véron. An-
¡2 leon ToLrtóí
todos, demonstrando ser um crítico feroz daquela linguagem para iniciados, que
mracterizava as expressóes ñnisseculares, sobretudo francesas. Opositor da dou-
trina da arte pela arte e do demdentismo, tem em Baudelaire, Verlaine e Mallarmé
alguns de seus alvos preferenciais. Baudelaire é um exemplo negativo por seus
poemas incompreensíveis, eivados de sentimentos baixos e doentios. A visáo de
mundo de Verlaine é devassa e permeada por uma grosseira idolatría católica, que
náo consegue masmrar sua profunda impoténcia moral. Mallarmé, por sua vez, é
autor de poesias sem significado, obscuras e ininteligíveis.
A mesma visáo negativa é aplicada por Tolstói as demais expressóes artístims
modernas: na pintura fustiga impressionistas, simbolistas e artistas como Bócklin,
Stuck e Klinger; no teatro nao poupa Ibsen, Maeterlinck e Hauptmann; na música
detecta a rendigáo ao mercado em compositorescomo Liszt, Wagner, Berlioz, Brahms
e Strauss; na literatura combate Huysmans, Kipling e Villiers de L'Isle-Adam.
A crítica geral contra a arte moderna tinge-se de sarcasmo quando o alvo é
Wagner, a quem Tolstói dedica um capítulo inteiro e um apéndice, no qual trans-
forma em narrativa absurda a saga dos nibelungos. O furor de Tolstói contra o
músico nao é casual: nao concorda com sua idéia de que, na ópera, letra e música
tém a mesma importáncia, pois acredita no principio da especiñcidade das lingua—
gens e nao admite subordinacóes ou contaminacóes. Tendo em mente o precelto
da singularidade, o escritor náo teme clasificar a ópera de Wagner na categoria
da contrafacáo, detectando nela a preseng de todos os elementos que integram
a falsiñcacáo artística: empréstimo, imitacáo, efeito dramático e interesse. Nada é
poupado na tetralogia do compositor alemáo. Tolstói ataca com pertinácia o en—
redo e seus personagens, a concepgño cenográñm, os ñgurinos, a composicio
musical com suas harmonias inusitadas e suas imitacóes de sons naturais, as re-
lacóes entre música e texto.
Os efeitos maléñcos da ópera de Wagner, comparados a embriaguez e ao
ópio, sio resumidos num parágrafo esclarecedor da diferenca que Tolstói estabe—
lece entre o bom e o mau contágio:
“… Fique, durante quatro dias seguidos, mergulhado na obscuridade, em
companhia de pessoas que se acham num estado mental anormal e, pelo veículo
de seus nervos acústicos, submeta o seu cérebro a potente acáo dos sons produ-
zidos propositalmente para os excitar; deverá, por forea, encontrar—se em condi-
cóes anormais, de tal modo que os piores absurdos lhe dario prazer. (…) Que digo
eu? Uma hora é suficiente para que as pessoas que nao tém nenhuma idéia clara
daquilo que deveria ser a arte, e que antedpadamente decidiram que tudo quanto
veráo será excelente, e que sabem que a exibigño de indiferen9a ou desconten-
tamento diante de tal ópera lhes será assame como prova de inferioridade e
esmssa cultura."
Pelo ataque que Tolstói desfecha contra a arte moderna, é possível vislum-
brar que as qualidades que ele condena sao justamente as que fundamentam a
concepdo moderna de arte. Em sua defesa da interpretacáo literal, do elo comu-
nicativo, do conteúdo edificante, coloca em xeque a sugestáo, o poder evocador
14 Leon Tolstói
escritos estéticos. O esm'tor critica o mau realismo de Balzac, Zola, Flaubert, Bourget,
mas preza o bom realismo de, por exemplo, Une vie, de Maupassant, pensando em
termos estritamente éticos:
“… Aqui o significado da vida nio se apresenta mais ao autor nos termos das
aventuras de vários libertinos, homens e mulheres; aqui o asunto, como o título
india, é a vida — a vida de uma mulher arruinada, inocente, afável, predisposta
ao bem, mas arruinada precisamente por aquela mesma grosseira sensualidade
animal, que, nos contos anteriores, o autor apresentava como a característica central
da vida, dominando todo o resto. E nesse livro a simpatia do autor está do lado
do bem.”
Paradoxalmente, a sinceridade, que é um dos critérios fundamentais para
Tolstói, é negada a seu escrito, quando é publicado na Rússia pela revista Voprosy
fílosojíí ¡' psícbologií (1897-1898). Corrigido e deturpado pela censura czarista, O
que é ¿: arte? é divulgado em sua versáo original na Inglaterra gragas ¿ tradqu
de Aylmer Maude, aprovada pelo própn'o Tolstói. O que é a arte? náo tem melhor
sorte nas edicóes francesa e italiana, publicadas em 1898, a exemplo da traducáo
de Maude. Théodore de Wizewa manipula o texto e o reduz a metade, e o mesmo
acontece com a versáo italiana, que retoma a francesa e vem acompanhada de um
ensaio de Panzacchi, no qual é tragado um paralelo entre Tolstói e Manzoni.
Quer na versáo originária, quer nas versóes “revistas" e expurgadas, o texto
de Tolstói provoca um grande debate entre artistas e intelectuais, náo só por suas
idéias polémicas, que vinham se chocar com as novas propostas estéticas, mas
também por fazer uma pergunta que continua sendo feita a propósito da arte:
determinar sua fungáo, sua relagáo com a sociedade. Tolstói formulou sua resposta
pessoal, diswtível sem dúvida, congenial a seus objetivos e a sua visáo de mundo
mas é inegável que tentou encontrar uma solucio para um problema ainda hoje
insolúvel: a relacio entre a obra e o público para além de injuncóes tao somente
comerciais e da satisfacáo de um gozo distraído e superficial.
Annateresa Fabris
Notas
Esta obra, 0 que é a Arte?, aparece hoje pela primeira vez, na sua forma
verdadeira. Ela teve inúmeras edicóes na Rússia, mas cada vez sob forma táo mutilada
pela censura que eu peco a todos aqueles que se interessam pelas nossas idéias
sobre arte que as julguem unicamente depois de conhecé—las como se apresentam
aqui. Eis por que o livro foi publicado sob uma forma mutilada com minha assi-
natura. Conforme a decisáo que havia tomado, desde há muito tempo, de nio
submeter meus escritos ¿ censura, que eu tenho como uma instituicáo ¡moral e
¡nacional, e de nao os publicar, a nao ser no seu texto original, eu tinha a intengño
de fazer imprimir este livro unicamente no exterior, mas um bom amigo, o profes-
sor Grot, diretor da Revista dePsicologia de Moscou, tendo apreco pelo tema de
meu trabalho, pediu-me para deixar publicar a obra na sua revista. Ele me prome—
teu fazer a censura aceitar o artigo em sua integridade, se eu desse somente minha
permissáo para algumas modiñmgóes de todo insignificantes, adocicando cenas
expressóes. Tive a fraqueza de o consentir e o resultado foi o aparecimento de
uma obra assinada por mim de onde nao somente cenas idéias importantes tinham
sido descartadas, mas onde tinham sido introduzidas idéias de outras pessoas,
estranh'as e mesmo inteiramente contrán'as as minhas conviccóes.
Bis como se passou. Grot comeca por adocicar minhas expressóes, que ele
as vezes atenuou: por exemplo, ele substituiu as palavras “sempre” por “ás vezes",
“todos" por “alguns", “Igreja” por religiáo “católica romana", “Virgem Santa” por
“madona”, “patriotismo" por “pseudopatriotismo”, “palácio” por “habitado” etc.,
e eu nao julgava necessário protestar. Assim que a obra foi inteiramente impressa,
a censura exigiu a substituicño ou a supressáo de proposi<;óes inteiras e, no lugar
em que eu dizia da “nocividade da propriedade fundiária", colocou: “nocividade
do proletariado privado da terra". Eu aceitei, bem como algumas outras modiña-
cóes. Nao valia a pena, pensava, fazer tudo enmlhar por uma expressáo. Mas, uma
vez aceita uma modiñmcáo, náo valla a pena reclamar contra uma segunda, depois
contra uma terceira. Assim, introduziram-se pouco a pouco, na obra, expressóes
que modificaram o sentido e me atribuíram coisas que eu nunca quisera dizer.
Também quando o livro saiu da gráfica, ele tinha perdido uma parte de sua inte-
gridade e de sua sinceridade. Mas eu podia me consolar, dizendo—me que, mesmo
naquele estado, ele continha alguma coisa de bom, o livro seria útil aos leitores
russos, a quem, do contrario, ele permaneceria inacessível. Mas ele o foi de outra
maneira. Nous comptíonssans notre b6te. Após o lapso de quatro dias Frxado pelu
lei, o livro foi apreendido e remetido ao censor eclesiástico, por ordem vinda dv
Sáo Petersburgo. Aqui Grot renunciou a toda participacáo no caso, e a censura
eclesiástica fez com a obra tudo aquilo que queria. A censura da Igreja é uma t|un
instituicóes mais ignorantes, venais, estúpidas e despóticas que há na Rússla. .“w
20 Leon Tolstóí
lhe mem as mios livros em desacordo, sobre um ponto qualquer, com a religiáo
reconhecida na Rússia como religiáo do Estado, año todos, quase sempre, verda-
deiramente interditados e queimados, como foi o caso de todas as minhas obras
religiosas quando tentei imprimi-las na Rússia. Esta obra ten'a tido provavelmente
a mesma sorte se os redatones da revista nio tivessem recorrido a todos os meios
para salvá—la. 0 resultado dessas diligéndas foi que o censor eclesiástico,um padre
que provavelmente entende e se interesan pela arte tanto quanto eu pelos oficios
religiosos, mas que recebia um bom salário para destruir tudo o que pudesse
desagradar seus superiores, riscou do livro tudo o que lhe pareceu perigoso para
sua posiqño e substituiu, onde ele julgou útil, minhas idéias pelas suas. Por exem—
plo, para endireitar onde eu falo de Cristo subindo na cruz pela verdade que ele
professava, o censor riscou o trecho e colocou “pelo género humano”, atribuindo-
me, assim, a añrmagáo do dogma da redengáo, que eu considero como um dos
dogmas mais falsos e mais nocivos da Igreja. Tendo feito cor—recóes de todo gé-
nero, 0 censor eclesiástico autorizou a publicngáo da obra.
Protestar é impossível na Rússia: nenhum jornal publicaría. Retirar meu artigo
da revista e pór, dessa forma, o diretor numa situagáo incómoda frente a frente
com o público náo era mais possível.
As coisas ñmram assim. O livro apareceu; ele estava minado com meu nome
e continha as idéias apresentadas como minhas, mas sem que me pertencessem.
Eu tinha dado meu artigo a uma revista russa, para que os leitores russos,
como haviam-me persuadido, pudessem ter conhecimento de minhas idéias que
lhes poderiam ser úteis e, no lim das contas, coloquei meu nome numa obra de
onde se pode deduzir que eu arbitrariamente añrmo coisas contrán'as a opináo
geral, sem aduzir minhas razóes: para mim, somente o pseudopatriotismo é ruim,
mas o patriotismo em geral é um sentimento excelente; que eu rejeito somente os
absurdos da Igreja Católica Romana, que eu nio creio na madona, mas sim na
ortodoxia oriental e na Virgem Santa, que todos os escritos dos Judeus reunidos
na Bíblia sio para mim livros sagrados, e que eu vejo a significacáo da vida de
Cristo principalmente na redengño do género humano pela sua morte.
Se en trago essa história com tantos detalhes, é porque ela é uma ilustragño
chocante da verdade incontestável de que todo compromisso com uma instituigño
que a sua consciéncia nio aprova, compromisso feito geralmente em vista do bem
geral, anasta-o inevitavelmente, bem ao contrário de concorrer para o bem, náo
somente a reconhecer a legitimidade da instituiqño que vocé reprova, mas também
a participar do mal que ela faz.
Sou feliz de poder corrigir, ao menos por esta declaracáo, o erro ao qual meu
compromisso me conduziu.
Eu tenho que mencionar que, além de reintroduzir partes excluidas pelo
censor nas edi<;óes russas, outras conecóes e adicóes de importancia for—am feitas
nesta edigño.
29 de mamo de 1898
Leon Tolstói
CAPÍTULO |
Lancem mio de um jornal qualquer; acharáo sem falta uma parte dedicada
ao teatro e a música. Na maior parte das vezes encontraráo também resenhas de
uma exposicio de arte ou a descrigáo de um quadro, ou ainda, por acréscimo, a
análise de romances, contos e versos recém-publicados.
0 jornal, com zelo admirável e abundancia de pormenores, explicará aos
leitores de que modo esta ou aquela atriz desempenhara seu papel numa deter—
minada produgáo, podendo, assim, os leitores avaliar instantaneamente o valor do
trabalho, seja drama, comédia ou ópera, bem como a importáncia de sua execu-
(áo. Serio devidamente informados, de igual modo, sobre concertos. Saberáo quais
os trechos tocados ou cantados por certos artistas e de que modo o foram. Por
outro lado, em todas as grandes cidades, terio a certeza de encontrar, senio duas
ou trés, pelo menos uma exposicio de quadros que, pelos seus méritos e pelos
seus defeitos, oferecem aos críticos de arte argumentos para numerosos estudos.
Quanto aos romances e a poesia, nao passa um dia sem que aparecam em volumes
ou revistas, e os jornais acreditam que é seu dever apresentar aos leitores uma
análise minuciosa deles.
Na Rússia, onde, para a educado do povo, para dizer muito, gasta—se a
centésima parte do que se deveria, o govemo ampara a arte despendendo milhóes
de rublos sob a forma de subvencóes aos teatros e academias e aos conservatórios.
Na Frang, a arte custa ao Estado 20 milhóes de liras e outros tantos custará a
Alemanha e a outros lugares.
Em todas as grandes cidades surgem edificios colosmis destinados aos museus,
as academias, aos conservatón'os, as salas de teatro e concerto e escolas dramá-
ticas. Milhares e milhares de operarios — mrpinteiros, pedreiros, pintores, marce-
neiros, tapeceiros, alfaiates, mbeleireiros, joalheiros, impressores — gastam toda
sua vida em trabalhos enfadonhos, a lim de satisfazer um público sedento de arte,
tanto assim que se pode dizer que, exceto o das armas, nenhum outro ramo da
atividade humana absorve um contingente tao grande de energia. Abstraia-se, porém,
o trabalho consumado com o propósito de satisfazer tais exigéncias artísticas. O
pior sáo as vidas humanas a ele diariamente sacrificadas como na guerra. Contam-
se em centenas de milhares as pessoas que, desde a infáncia, só o que fazem é
aprender a espemear com agilidade (dangrinos), a tocar com rapidez as teclas de
um piano ou as cordas de um violino (músicos), a reproduzir com o pincel o
aspecto e as cores do mundo sensível (pintores), ou ainda a estropiar a ordem
22 Leon T0Lstóí
natural das frases, emparelhando palavras em rima. E toda essa gente, embora com
freqúéncia honesta, de bom engenho e naturalmente apta a milhares de ocupa-
cóes úteis, vai embrutecendo na angústia desta sua extravagante e especial ocu-
pacáo. Tomam-se, conforme se costuma dizer, especialistas, ou melhor, criaturas
de mente estreita, cheias de vaidade e ignorantes de toda uma sén'e de manifes-
tacóes da vida e mpazes unicamente de mover as pernas, os dedos e a lingua com
grande rapidez.
Mas a pior conseqtiéncia nao é esse atroñamento da vida humana. Recordo—
me de haver um dia assistido ao ensaio de uma obra musical. Era uma daquelas
óperas novas, e vulgares, preparadas em todos os teatros da América e da Europa.
Cheguei ao teatro quando o primeiro ato tinha apenas se iniciado. Para al-
mngnr meu lugar, precisei passar por trás do palco. Por certos corredores sombríos
introduziram-me, primeiro num vio espacoso, onde se achavam as máquinas
destinadas as mudancas de cenário e ¿ iluminacáo. Mais adiante, no escuro, en-
voltos na poeira, percebi operários a trabalhar sem pausa. Um deles, pálido,
asselvajado, enrolado em sujo gabáo e tendo as mios alejadas e sujas pelo tra-
balho, evidentemente um infeliz alquebrado pela exaustáo, resmungava amargu-
rado e, ao passar por mim, repreendia com raiva um dos companheiros. Dai a
pouco, por uma pequena escada, ñzeram—me subir ao estrito espaco que contor—
nava os bastidores. Através de um emaranhamento de cordas, axgolas e panos de
boca de lona pintada, vi formigarem em volta de mim dezenas, talvez centenas,
de homens pintados e maquiados, trazendo roupagens bizarras, sem contar as
mulheres, naturalmente vestidas o menos possível. Essa multidáo era os cantores,
coristas, bailarinos e bailarinas, a espera da chamada. Finalmente, minha guia fez—
me atravessar o palco e chegar ao lugar que me fora reservado, tendo passado
sobre uma ponte de tábuas atravessada sobre a orquestra, na qual observei uma
ñleira de músicos sentados junto aos seus instrumentos; eram os violonistas, flau—
tistas, harplstas e cravistas e toda so¡te de músicos que se conhece. Sobre um
palanque situado junto a eles entre duas lámpadas com relletores sentava-se o
regente da orquestra, com um atril ¡ frente, de batuta em punho, dirigindo nao
apenas os músicos mas igualmente os cantores que estavam em cena.
Aí, precisamente,vi um cortejo de indianos que vinha acompanhando a noiva.
Ao lado de homens e mulheres vestidos de formas típicas, notei duas pessoas com
roupas comuns que com'am e grimpavam de um extremo a outro do palco. Um
deles era o diretor da pane dramática, vale dizer, o dinetor de cena; e o outro,
aquele que trazia sapatilhas de danca, voando daqui para ali com maravilhosa
presteza, era o diretor de danca. Soube mais tarde que ele ganhava mais em um
més do que os operárlos num ano.
Esses trés dinetores se empenhavam para pór em ordem o coro, a orquestra
e o desfile, o qual, segundo o costume, se realizava de dois em dois. Uma quan-
tidade de pessoas mrregava ás costas alabardas cobertas de lata, dando giros pelo
palco, para depois parar novamente. E era trabalhoso pór ordem na procissáo. Da
primeira vez. indianos alabardeiros moveram—se com at:aso, da segunda, com pressa
OqueéaArte? 23
mais com aquilo, tal como o operário que eu encontrara atrás dos bastidores; mas
em beneficio de quem reduzira-se a tal estado? A ópera que ensaiavam era, con-
forme já disse, das mais vulgares; acrescentarei agora que, quanto a absurdidade,
sobrepujava o que de pior se possa imaginar. Um rei indiano tinha o capricho de
tomar esposa, conduziam—lhe uma noiva, o rei dlsfarqwa-se de menestrel, a noiva
enamorava—se do menestrel e entrava em desespero. Mas, mais tarde, vinha a
descobrir que o menestrel e o rei, seu noivo, eram uma só pessoa; e toda a gente
punha-se a delirar de alegria. Indianos dessa espécie nunca existiram, nem nunca
existiráo. De igual modo, é certo que seus feitos e palavras nao só nada tinham
com os costumes da Índia como menos ainda com os costumes humanos, salvo
os de outras óperas.
De fato, os homens, na realidade, nao falam em recitativo nem, ao desejar
expressar emocio, se colomm a uma distancia regular do interlocutor, agitando
mdenciadamente os bracos; também nao <nminham de dois em dois, micados de
babuchas e trazendo alabardas de latáo. Além disso, ninguém na vida se agasta ou
se desespera, rl ou chora, do modo como faziam naquela representacáo. E que
ninguém nunca tenha conseguido se comover com uma representado de tal género
era igualmente fora de dúvida.
Era natural, portanto, perguntar: a quem poderia servir toda aquela azáfama?
A quem dada prazer? Se naquela obra houvesse, por milagre, uma música graciosa,
nio bastaria talvez executar a música desacompanhada de todas aquelas vestimentas
grotescas, procissóes e remexer de bracos?
Há também o bailado: nio passa de uma exibigño de mulheres seminuas a
executar movimentos voluptuosos, enlacando-se em poses sensuais; um espetácu-
lo que outra coisa nio provoca senáo sensagóes de luxún'a.
Ainda uma vez: a quem podem interesar ¡ais dlvertimentos7 As pessoas cultas
forcosamente provoca náuseas e os operários, é claro, nada entendem disto. Tal-
vez agrade, no máximo, a algum jovem lacaio ou operário pervertido que baja
contraído as necessidades das classes superiores, sem que [he seja possível algar—
se ao seu natural bom gosto.
E toda esa irritante insensatez é preparada, nem de forma simples nem com
uma agradável alegria, mas com raiva e brutal crueldade.
Contudo, añrma-se que todas essas colsas sao feitas em beneficio da arte e
que a arte é de grande importáncia. Será verdade, porém, que seja tao grande a
importáncia da arte que se exijam tamanhos sacrificios? Essa questño torna—se tanto
mais premente quanto mais o conceito desta arte, a qual sao sacn'ñcados, pelo
trabalho, milhares de homens, milhares de existéncias e, acima de tudo, o recípro—
co amor da humanidade, vai se tomando cada vez mais vago e indeterminado para
a percepgáo humana.
De fato, os críticos, os quais se costumava chamar amantes da arte para
encontrar apolo para suas opinióes, nastes últimos tempos, puseram-se a contender
entre si tio fortemente que, se do dominio da arte excluíssemos tudo o que as
diversas escolas excluíram, nao restan'a neste exaltado dominio quase nada. As
OqueéaArte? 25
Nota
1. Os magos, grupo de escritores que se reuniram sob as'idéias de Josephin Péladan (1859-
1918). propunham a volta ¡ magia da belen, ¡s ciénclas ocultas e ao misticismo oriental
como forma de contrapor o espirituale ao mterlalismo. (N. do E.)
CAPÍTULO ¡I
Para produzir o menor balé, circo, ópera séria ou bufa, exposicáo, qua-
dro, concerto ou impressáo de livro, milhares de pessoas efetuam a contragos-
to um trabalho nao raro humilhante e penoso. Nao seria táo grande o mal se
todos os artistas cumprissem, eles próprios, a soma de trabalho requerida por
suas obras; no entanto, sio eles, ao contrario, que recebem a prestacáo de um
sem—número de servicos, náo só para produzir arte mas também para sua
normalmente luxuosa manutencio.
E esta prestagáo, eles a obtém de um modo ou de outro, seja sob a forma
de uma contribuicáo oferecida pelos ricos, seja de subvencóes do Estado (na
Rússia, por exemplo, em doacóes de milhóes de rublos aos teatros, conserva-
tórios e academias). Nesse último caso, o dinheiro provém do povo, em gran-
de parte forcado a privar—se do necessário, para pagar impostos, sem que lhe
seja possível mais tarde participar dos prazeres estéticos proporcionados pela
arte. Este fato pareceria normal, em se tratando de um artista grego ou romano
ou até mesmo de um russo da primeira metade do século XIX, quando ainda
havia escravos, visto que poderiam sentir—se no direito de se fazer servir pelo
povo.
Agora, porém, que todos os homens tém, se nio mais, um vago vislum-
bre de igualdade em relacáo aos seus direitos, nio é mais possível admitir que
o povo trabalhe a contragosto, em proveito da arte, se antes nio se conseguir
uma deñnicáo segura relativa ao sinal indicativo da utilidade e importáncia da
arte e se ela compensa largamente os males que ocasiona.
Senio, temos a terrível probabilidade de pensar que, enquanto sacrifici-
os medonhos de labor e de vidas humanas e a própria moralidade estáo sendo
prestados ¿ arte, a mesma arte pode ser nao somente inútil mas até mesmo
nociva.
Portanto, numa sociedade cultora das artes, faz—se mister investigar se
realmente se pode dar o nome de arte a tudo que se cré ser tal coisa e se,
conforme o pressuposto vigente nessa sociedade, tudo o que é incluído na
arte seja bom, em virtude desse único fato e digno de sacrificios que pela arte
sao exigidos. De resto, esta questáo deve interessar igualmente aos próprios
artistas, tratando—se para eles de saber se o que fazem tem na verdade toda a
importáncia que se acredita — e se náo se trata de uma simples mania do
28 Leon TOLstóí
Nota
1. Veja—se sobre ese asunto o admirável livro de Bernard, L'es:bédque d'Aerda. Também
o Geschichte der Aedbe“h ln Alan de Walter.
CAPÍTULO |||
também Fichte, Schelling e Hegel, com seus discípulos. Fichte (1762-1814) susten—
ta que o mundo para nós tem dois aspectos, constituído que é, de uma parte. pela
36 Leon ToLstóí
soma de nossas limita;óes e, por outra, da soma de nossa livre atividade idealistica.
Sob o primeiro aspecto todas as coisas sao desñguradas, amesquinhadas e muti-
ladas, e assim divisamos o feio. Sob o outro aspecto, percebemos os objetos em
sua completude, vitalidade, regenerado, vale dizer, reconhecemos a beleza. Por
isso, a beleza e a feiúra das coisas dependem do ponto de vista de quem as
observa e a beleza nao tem raízes no mundo, mas na “alma bela”. Assim arte e
manifestacáo da “alma bela" e tem por ñnalidade a educa'gño da mente, do coracao
ou, antes, do homem inteiro. Por esse motivo, os caracteres da beleza nao residem
nas coisas ou sensacóes exteriores, mas na presenga de uma “alma bela” no artista.
Segundo Schlegel (1772—1829), a concepqio de beleza na arte é por demais
incompleta, unilateral e isolada. A beleza nao se encontra somente na arte, mas
também na natureza e no amor, de sonic que o belo auténtico se manifesta na
associagáo da arte, da natureza e do amor. E por isso que Schlegel julga a arte
estética inseparável da arte moral e filosófica. Segundo Adam Muller (1779—1829),
há dois tipos de beleza: a primeira é a beleza social, que atrai os homens como
0 sol atrai os planetas; é principalmente a beleza antiga. Outra é a beleza indivi—
dual, que assim é porque aquele que a contempla torna—se ele próprio 0 sol que
atrai a beleza: é a beleza da arte moderna. 0 mundo no qual entram em acordo
todas as contradicóes é a beleza suprema. Toda obra de arte é a reprodugáo dessa
harmonia universal. A arte suprema é a arte da vida. Tomremos em outra, célebre,
de Schelling (1775—1845). Segundo este filósofo, a arte deflui de uma concepcio
das coisas em que o sujeito toma—se seu próprio objeto e o objeto toma-se seu
próprio sujeito. A beleza é a percepgáo do infinito no finito. A arte é a uniáo do
subjetivo e do objetivo, da natureza e da razáo, do consciente e do inconsciente
e portanto a arte é a forma mais alta de conhedmento. E a beleza igualmente é
a contemplado das coisas em si, tais quais existem em seus protótipos. A beleza
nao é produto do saber ou da habilidade do artista e sim da idéia de beleza que
o governa.
Entre os discípulos de Schelling, o mais destacado foi Solger (1780—1819),
autor do Vodesungen úber Aactbetík. Para ele, a idéia da beleza é a idéia funda—
mental de todas as coisas. Nós vemos no universo apenas uma deformagáo da
idéia fundamental, mas grapas a imaginado a arte pode se elevar até a idéia fun-
damental. Por isso a arte e feita a imagem da criagáo.
Segundo outro discípulo de Schelling, Krause (1871-1832), a beleza concreta
verdadeira é a manifestado de uma idéia sob uma forma individual. Quanto a arte,
ela é a realizado da beleza na esfera do espírito livre do homem. O grau supremo
da arte é a arte da vida que orienta suas atlvidades em direcáo ao embelezamento
da vida, a fm de que ela seja um lugar de moradia perfeita para o homem perfeito.
Vem a seguir a famosa doutrina estética de Hegel, a qual, no fundo, é sempre a
base das opinióes comentes a respeito de arte e beleza. De resto, nem mesmo esta
teoria e mais clara e precisa que as precedentes, as quais antes supera em obscu-
rldade e nebulosidade.
Segundo Hegel (1770—1831), Deus se manifesta na natureza e na arte sob a
OqueéaArte? 37
esteticitas anteriores, para Herban as coisas belas sao freqiientemente aquelas que
nao expn'mem absolutamente nada, como, por exemplo, o arco-iris, que é belo
por suas linhas e suas cores, mas nunca pela signiñmgáo de seu mito, seja o de
Íris ou do arco-iris de Noé.
Segundo Schopenhauer (1788—1860), a vontade objetiva-se no mundo sob
planos diversos, ada um dos quais tendo sua beleza própn'a e o mais elevado é
o mais belo. A renúncia a nossa individualidade, permitindo—nos contemplar estas
manifestacóes da Vontade, dá-nos uma perceon da beleza. Todos os homens
possuem a faculdade de objetivar a idéia em diferentes planos. Mas o génio do
artista a possui em mais alto grau e pode, por isso, produzir beleza superior.
Depois desses famosos escritores, surgiram na Alemanha outros menos ori-
ginais e autorizados, tais sáo: Hartmann, Kirchmann, Schnaase, o físico Helmholtz,
Bergmann, Jungmann etc.
Segundo Hartmann (nascido em 1842), a beleza nao reside no mundo
externo nem “na coisa em si", mas em nossa alma, nem na “aparéncia” (Schein)
produzida pelo artista. A “coisa em si” náo é bela, mas aparenta sé—la quando
transformada pelo artista.
Segundo Schnaase (1798-1875), nio há no mundo beleza perfeita. A
natureza só consegue aproximar-se dela. A arte nos dá aquilo que a natureza
nao pode dar. Na energia do livre “ego”, consciente da harmonia náo encon—
trada na natureza, a beleza (: descoberta.
Segundo Kirchmann (1802-1884), que escreveu sobre estética experimen—
tal, existem seis reinos da História: os reinos da ciéncia, da riqueza, da moral,
da fé, da política e da beleza. A arte é atividade que se exercita neste último
reino.
Segundo Helmholtz (1821-1894), o qual só se ocupou com a estética
musical, a beleza na música é obtida somente com a observacáo de certas leis
invariáveis, leis que o artista ignora, mas ás quais obedece 'inconscientemente.
Segundo Bergmann, em Úber das Scbóne, de 1887, é impossível definir
objetivamente a beleza. Ela só pode ser percebida subjetivamente, portanto o
problema da estética situa—se no determinar o que agrada a cada um.
Segundo Jungmann (morto em 1885): primeiro, a beleza é uma qualidade
supra-sensível das coisas; segundo, o prazer artístico é produzido em nós pela
simples contemplacio da beleza; terceiro, a beleza é o fundamento do amor.
Na Franca, havia Cousin (1792-1867), um eclético que se inspirava nas
doutrinas idealistas alemás. Segundo ele, a beleza repousa sempre sobre um
fundamento moral. Ele contesta a doutrina da arte como imitacáo e do bolo
que proporciona prazer. Dizia além disso que a beleza pode ser definida
objetivamente e que ela é, por esséncia, a variedade na unidade.
Jouffroy, seu discípulo (1796—1842), discernia o invisível na beleza por
meio dos signos sensíveis que a manifestam. 0 mundo visível é uma vestimenta
através da qual nós vemos a beleza. O suíco Pictet, que escreveu sobre arte,
retoma Hegel e Platáo ao colocar a beleza como manifestacño livre e espon-
OqueéaArte? 39
tánea da idéia que se traduz por imagens sensíveis. Para Lévéque, discípulo
de Schelling e de Hegel, a beleza é algo invisível, que se esconde na natureza.
A forca ou espírito é a manifestado de uma energia colocada em ordem.
0 metafísico Ravaisson considerava a beleza como termo e tim supremo do
Universo. “A beleza mais divina e principalmente mais perfeita contém o segredo.”
B continua: “0 mundo inteiro é obra de uma beleza absoluta, que só é a causa das
coisas pelo amor que ela, a beleza, imprime nelas”.
Todos esses pensadores se referiam, com suas doutrinas, a estética alemá.
Outros seus contemporáneos se esforgvam para ser mais on'ginais, como Taine,
Guyau, Cherbuliez, Véron etc.
Segundo Taine (1828—1893), existe beleza quando o mráter essencial de uma
idéia importante se manifesta mais completamente do que se expressa na realida-
de. Segundo Guyau (1854-1888), a beleza nio é uma coisa exterior ao objeto, mas
é a própria flor do objeto. A arte é a expressáo de uma vida racional e consciente,
que evoca em nós, a um só tempo, o mais profundo conhecimento da nossa
existéncia e os nossos sentimentos mais elevados e os pensamentos mais nobres.
A arte, segundo ele, transporta o homem da vida individual a vida universal por
melo da comunháo dos sentimentos e das idéias.
Segundo Cherbuliez, a arte é uma atividade que: primeiro, satisfaz o nosso
amor ¡nato pelas aparéncias; segundo, encarna as idéias nessa aparéncia; terceiro,
busca, ao mesmo tempo, o prazer dos sentidos, do coragño e da razáo. Para Coster,
as idéias do belo, a bem da verdade, sao lnatas. Blas iluminam nosso espírlto e
sao idénticas a Deus, que é o bem, a verdade e o belo. A idéia contém a unidade
da esséncia, a diversidade dos elementos constitutivos e a ordem trazida pela
unidade a diversidade das manifesta96es da vida.
Apresentaremos agora, para completar, o parecer de alguns autores mais
necentes. Psicología del Bello e dell'Arte, escrita por Mario Pilo em 1895, que afirma
ser a beleza um produto de nossas impressóes fisicas. A ñnalidade da arte seria o
prazer, mas o autor acha que este prazer é, por necessidade, eminentemente moral.
0 Essaí surl'Art Contempomín, Fierens Gevae¡t (1897), declara que a arte consiste
no equilibrio das tradi<;6es do pasado e o ideal religioso do presente. Añnal, Sar
Peladan, em L'art íde'aliste et místíque (1894), afirma que a beleza é uma das
manifestacó&s de Deus. “Nao existe realidade senio Deus nem outra Verdade senáo
Deus, nao existe Beleza senao Deus.”
A Estética de Véron (1878) distingue—se das obras añns se náo por outra
coisa, pela maior clareza e fadlidade. Sem dar uma definido exata da arte, o autor
tem o mérito de desembaragar a estética de todas as nocóes vagas do belo abso—
luto. Segundo Véron (1825—1889), a arte é a manifesto de uma emogáo revelada
por meio de qualquer combinado de linhas, de formas, de cores, ou de uma
sucessáo de movimentos, de sons ou palavras sujeitas a certos ritmos.
Quanto aos ingleses, em sua maior parte estáo de acordo nisto: definem a
beleza nao pelas suas próprias qualidades, mas segundo as irñpressóes e gostos
individuals. Assim procederam Reid (1704—1796), Alison em seu Essay on the Nature
40 Leon Tolstói
como Véron e Sully esforgrem-se para eliminar inteiramente a nocáo do belo. Mas
os filósofos desta escola, até agora, tém poucos adeptos e a grande maioria do
público, sem excluir os doutos e os artistas, atém-se as deñnicóes clássims da arte,
que lhes prescrevem como fundamento a beleza, considera como entidade mística
metañsim, ou como forma especial de prazer. Busquemos examinar, portanto, este
conceito de beleza ao qual os homens de nosso melo e de nosso tempo se agar—
ram obstinadamente para definir a arte.
Subjetivamente, o que denominamos beleza é tudo aquilo que nos oferece
um prazer particular. Objetivamente falando, damos o nome de beleza a qualquer
coisa absolutamente perfeita que está fora de nós. Mas está claro que assim faze-
mos porque o contato com essa perfeicáo nos oferece um determinado prazer,
tanto que a deñnigio objetiva se reduz a ser somente uma nova forma de deñnigáo
subjetiva. Realmente, o conceito da beleza vem a ser para nós o resultado do gozo
de um prazer sui generis, isto quer dizer que consideramos como belo aquilo que
nos agrada sem despertar desejo.
Assim sendo, o natural seria que a estética renunciasse a deñnicáo da arte
fundamentada no belo, isto é, no prazer individual, e se pusesse a procura de uma
deñnigño mais geral, aplidvel a todas as obras de arte e que seja tal que nos faca
distinguir aquilo que pertence ou nao ao dominio da arte. Mas, conforme terá visto
o leitor, por meio de nossa retomada das diversas doutn'nas estéticas, nio encon—
tramos nenhuma definigáo dessa espécie. Todas as tentativas de definir o belo
absoluto — seja como uma imitagáo da natureza, ou como a adequagáo ao seu
objeto, ou como uma conespondéncia das partes, ou como a simetría, ou como
a harmonia, ou como a unidade na variedade, e assim por diante — ou nada
deñnem ou deñnem apenas algumas características de algumas obras de arte e nao
abrangem tudo aquilo que todos consideram sempre como penencente ao domi—
nio da arte.
Nao existe uma única definido objetiva da beleza. As deñnicóes existentes,
sejam elas metañsims ou experimentais, chegam todas Aquela única deñnigño
subjetiva: é considerado arte aquilo que manifesta a beleza, ou a beleza é aquilo
que agrada, sem excitar o desejo. Muitos ñlósofos da arte sentiram a insufrciéncia
e a instabilidade de uma deñnicáo e, para dar—[he um fundamento, estudaram as
origens do prazer artístico (aquilo que agrada e por que agrada). Assim transfor—
marama questio da beleza numa questio de gosto, como foi o caso de Hutcheson,
Voltaire, Diderot e outros.
Mas, em última análise, descobriu-se que o gosto nao e mais fácil de definir
do que a beleza, porque nao há nem pode haver explimgáo total e séria do motivo
pelo qual uma coisa agrada a uma pessoa e desagrada a outra e vice-versa. Por—
tanto, a estética, tal como existe, desde sua fundado aos nossos tempos, falha
naquilo que dela poderíamos esperar, em sua qualidade de pretensa ciencia, por
nio ter sabido definir nem a propdedade, nem as leis da arte, nem as do belo (se
isto for o conteúdo da arte), ou a natureza do gosto (se o gosto realmente decide
a questáo da arte e o seu mérito), para que, com base em (ais deñnicóes, pudesse
(lqueéaAñe? 45
rcconhecer como arte aquelas produgóes que conespondam a suas leis e rejeitasse
uquelas que nao se enoaixem nelas. Toda esta famosa ciéncia da estética consiste,
no fundo, em reconhecer como artísticas senao cenas obras, pelo único motivo de
cºlas nos agradarem, e depois em arquitetar uma teon'a da arte adaptável precisa—
mente a essas tais obras. Existe um cánone artístico segundo o qual sáo designa-
das como obra de arte cenas producóes que tém a boa sorte de ser agradáveis a
certas classes sociais (as obras de Fídias, de Rafael, de Shakespeare, de Goethe,
de Homero, de Bach, de Beethoven, de Sófocles, Tiziano, Dante etc.), depois, as
leis da estética sao ajustadas de modo a abranger a totalidade de tais obras. Na
literatura estética vocé irá constantemente encontrar opinióes sobre o mérito e a
importáncia da arte, fundadas nio sobre quaisquer leis por quais esta ou aquela
¿ considerada boa ou mim, mas meramente sobre a consideraan se essa arte
combina com o cánone da arte que tragamos.
Um filósofo alemáo que eu lia há uns dias, Folgeldt, ao discutir os pro—
blemas da arte e da moral, afirma claramente ser um erro buscar a moral da arte.
Para provar isso diz ele que, se arte devesse ser moral, nio seriam obras de arte
nem Romeu e julieta, de Shakespeare, nem Wilhelm Meíster, de Goethe. Mas, ¡a
que esses livros sáo incluídos no nosso cánone da arte, ele conclui que a exigéri—
cia é injusta. E que é, portanto, necessário encontrar uma deñnicáo de arte que
se adequa as obras; e, em vez de uma exigéncia pela moralidade, Folgeldt postula
como base da arte uma exigéncia pela importñncia (Bedeutungsvollx).
E sobre este modelo que 550 fabricadas todas as estéticas. Em vez de come-
gnr por uma verdadei:a definido da arte e decidir depois o que pertence ou náo
pertence a arte, admite—se um ceño número de trabalhos, que por certas razóes
agradam a certa espécie de público, e, posteriormente, inventa-se uma deñnigáo
da arte que posa englobar todos esses trabalhos. Por exemplo, o filósofo alemáo
Muther, na sua História da Arte do Século XIX, enquanto toma cuidado para nio
desaprovar as tendéncias dos pré-rafaelistas, dos demdentistas e dos simbolistas,
esforga-se, ajuizadamente, para alargar sua definido da arte de modo a poder
incluir estas novas tendéncias que lhe parecem como uma legítima reacáo ao
exceso de naturalismo. Qualquer nova extravagáncia que abra caminho na arte,
desde que acolhida pelas classes mais elevadas da sociedade, vé logo inventada
uma teoria que a explique e sancione como se a história nao mostrasse períodos
durante os quais certos grupos sociais criavam exceg6es para admitir e aprovar
uma arte falsa, deformada e insensata, que logo se afundan'a no esquecimento
sem deixar tragos. E a que extensáo a insanidade e a deformidade da arte podem
chegar, especialmente quando como em nosso dias ela sabe que é considerada
infalível, pode ser visto pelo que está sendo produzido em arte no nosso círculo
de hoje.
Portanto, a teoria da arte fundada na beleza, tal qual a apresenta a es-
tética, reduz—se ¿ admissio entre as coisas boas de qualquer coisa que nos
tenha agradado ou que ainda nos agrade.
Para definir uma forma particular da atividade humana, é preciso antes
46 Leon T0Lstóí
compreender todo o seu significado e todo o seu valor. E, para alcan9ar esta
nocio, faz—se mister examinar esta atividade em si mesma e em seus relacio-
namentos com suas causas e efeitos, e nao apenas com respeito ao prazer
pessoal que dela se posa extrair.
Se admitimos que o único Bm de uma certa forma de atividade é o nosso
prazer e a definimos segundo o prazer que ela musa, nossa defrnigño certamente
estará errada. Mas é precisamente ¡sto que acontece nas costumeiras deñnigóes a
respeito da arte. Quando se estuda o problema da nutrigño, náo passaria pela
cabeqa de ninguém afirmar que a importánda do alimento mede-se pela soma de
prazer que se obtém. Todos admitem e compreendem que sobre a satisfagáo do
paladar nao se pode fundar uma definido relativa ao valor de um dado alimento
e que, por isso, nio temos o direito de argumentar que a pimenta de Caiena, o
queijo de Limbourg, o álcool etc., aos quais estamos habituados e que nos agra-
dam, sejam os melhores entre os alimentos.
A beleza, ou seja, aquilo que nos é agradável, nao pode, de nenhum modo,
servir de fundamento para definir a arte, nem a diversidade de coisas que nos
oferecem prazer pode ser considerada como o modelo de arte. Buscar 0 objeto e
a ñnalidade da arte no prazer que dele se ext.rai é imaginar como fazem os selva-
gens, que o objetivo e o lim da alimentado situam-se no prazer que dela provém.
Em ambos os casos, o prazer nio pasa de elemento necessário, e assim as pessoas
que consideram o objetivo da arte ser o prazer nao podem perceber o seu verda-
deiro significado e propósito, porque elas atribuem a uma atividade o significado
do que reside na sua conexio com o outro fenómeno da vida, o objetivo falso e
anómalo do prazer. B como nao se chega a conhecer a verdadeira frnalidade da
alimentacio, que é a manutengño do corpo, se deixarmos de busca-lá no prazer
de comer, assim também nao se compreende o verdadeiro significado da arte,
enquanto nao se desiste de situar a finalidade da arte na beleza, ¡sto é, no prazer.
O reconhecimento da beleza (¡sto é, de um certo tipo de prazer recebido da arte)
como sendo o objetivo da arte nao somente falha em nos auxiliar em encontrar
uma definido do que é arte, mas, pelo contrán'o, por transferir a questio a uma
regiáo bastante estranha a arte (em discussóes metafísicas, psicológicas, fisiológi—
ms, e até mesmo históricas, sobre por que uma tal produgáo agrada a uma outra
pessoa), faz com que tal deñnigáo seja impossível. De igual modo, as discussóes
sobre o motivo pelo qual a uns agradam as fmtas e outros tém preferéncia por
carne em nada ajudam a descobrir o que é útil e essencial a nutn'gño. Assim o
estudo das questóes do gosto na arte, além de nao ajudar a compreender essa
forma particular da atividade humana a qual chamamos arte, provoca confusáo
sobre toda a matén'a.
Para a pergunta “O que é essa arte a qual sao oferecidos o trabalho de
milhóes, a própria vida de muitos homens e até mesmo a própria moralidade?"
temos extraído respostas das estéticas existentes e, no final, todas se resumem a
isto: que o objetivo da arte é beleza, que a beleza é reconhecida pelo deleite que
ela dá e que o deleite artístico é uma coisa boa e importante, porque ele e' o
()queéaArte? 47
deleite. Assim, o que é considerado deñnigáo da arte nio é definido coisa nenhu-
ma, mas apenas um ardil para justiñmr a arte existente. Desse modo, nessas várias
definiqóes da arte, por mais estranho que possa parecer, nio obstante a quantida-
de de livros escn'tos a respeito dela, nio foi ainda dada nenhuma deñnigio exata
de ane, por um único motivo: o de sempre se querer fundamentar o conceito de
arte através do conceito da beleza.
'
CAPÍTULO v
Que coisa é, pois, a arte, uma vez excluida a idéia de beleza, que serve
para atrapalhar, inutilmente, o problema? As últimas reais e compreensíveis
deñnicóes de arte que atestam uma certa lntencáo de deixar de lado o con—
ceito de belo sao: a) Segundo Schiller, Darwin e Spencer, a arte é 'uma ativi—
dade que se encontra também nos animais e nasce do instinto sexual e do
instinto lúdico; e Grant Allen acrescenta que tal atividade se acopla a uma
gradual excitacáo do sistema nervoso, fisiológico—evolucionista; b) Segundo
Véron, a arte é a manifestacáo exterior de uma comocáo interior, obtida por
meio de linhas, cores, movimentos e sons ou palavras, é a definicáo experi-
mental; c) Segundo Sully, “arte é ¡¡ producáo de um objeto durável ou de uma
acáo passageira tal que suscite na pessoa que produz um prazer auvo e de—
termine, num dado número de espectadores, ou de ouvintes, uma impressio
agradável, a qual exclua toda consideracáo de utilidade prática”.+
Estas trés deñnicóes, embora muito superiores as definicóes metafísicas
que fundamean a arte na beleza, permanecem, ainda assim, longe de serem
exatas.
A primeira definicáo fisiológica-evolucionista é inexata porque, em vez
de considerar unicamente a atividade artistica, em si mesma, que constitui a
esséncia da arte, contempla apenas a origem da arte.
De igual modo é inexata, também, a proposta adicional de Grant Allen,
entendendo-se que a excita;áo nervosa por ele mencionada pode ser acom—
panhada nio só do ato artístico, mas de multas outras formas de atividade
humana. 13 disso originou—se o erro das novas teorias estéticas, pelas quais é
elevada a dignidade de arte a preparacio de belasroupas, de agradáveis
perfumes e até de especialidades culinárias.
A deñnigáo experimental de Véron, que coloca a arte como expressáo de
cortas emocóes, é inexata, visto podermos expressar as próprias emocóes por
melo de linhas, cores e palavras ou sons, sem que semelhante expressáo possa
agir sobre o próximo, e, nesse caso, esta expressio náo pode ser considerada
arte.
Quanto ¿ última deñnigño, a de Sully, porque na produgño de objetos que
proporcionam o prazer Aqueles que os produzem e uma impressáo agradável aos
espectadores, pode—se arranjar uma atividade lúdim, exercícios de ginástica e outras
atividades que nio sao arte. Inversamente, sáo encontrados produtos pertencentes
50 Leon Tolstóí
melos de comunimgáo mais indispensáveis entre os homens. Mas esse erro era
menor do que aquele que cometem as nacóes européias civilizadas, ao favorecer
todas as artes, mediante 0 pacto de produzirem o belo, ou antes coisas que déem
prazer. Antigamente, por temor de que entre várias obras de arte houvcsse algu—
mas aptas a corromper as pessoas, condenavam—se todas elas pelo temor. Hoje em
dia, ao contrário, o medo € de privar alguém de qualquer prazer insigniñmnte e
¡sto basta para tomarem aceitáveis todas as artes, com o risco de admitir algumas
até perigosas. Erro este, bem mais grosseiro que o outro, que pode produzir con—
seqñéncias mais desastrosas.
Nota
1. “A criang enieltada de Nuremberg", encontrada no mercado daquela cidade em 23 de
unio de 1828, aparentando cera de 16 anos. Falava pouco e lgnorava totalmente mesmo
os objetos mais comuns. Ele posteriormente explican que fora criado num oonflnamento
subterráneo e visitado por somente um homem, que ele só via raramente.
CAPÍTULO VI
Como a arte pelo prazer da arte velo a ser estimada. Rellglóes lndlcam o
que e considerado bom e mau. O cristianismo da lgre]a. 0 Renasdmento.
Cetidsmo das classes superiores. £les confundem o belo com o bom.
Mas como velo a acontecer de 3 arte nio religiosa, antigamente apenas to—
lerada, ser considerada, em nossos dias, a favorita, com a condigio de que ofere-
cesse prazer?
Els brevemente como se pode explicaro fato. A estima da arte, ¡sto é, quanto
valem os sentimentos que ela propaga, depende do conceito que formamos da
vida e de seu significado e daquilo que nessa vida nos parece bom ou mau. E o
que distingue o bom do mau traz o nome de religiáo.
0 género humano avangn no processo, elevando—se de um conceito inferior,
parcial e obscuro da vida a um outro, mais elevado, mais compreensi»o e mais
claro. Nesse movimento do progresso, como em todos os movimentos, os homens
sio dirigidos por certos líderes, que entendem melhor que os outros o significado
da vida. E entre esses precursores há sempre algum que terá expresso mais cla-
ramente, ou de modo mais forte que os outros, seu conceito pessoal, ou que o fez
tanto por melo de palavras como por seu exemplo. E a maneira como ese homem
expressa o signiñcndo da vida, acompanhada das tradicóes, das supersticóes e das
cerimónias que circundam sempre a memória da figura dos grandes, que constitui
essendalmente as religióes. sao elas o espelho do conceito que formam da vida
os melhores e mais inteligentes homens de uma dada época e de uma dada so—
ciedade, o qual acaba por ser, irresistivelmente, adotado pela sociedade inteira.
Por isso, em todos os tempos, as religióes tém servido para indicar a medida dos
sentimentos humanos. Aqueles pelos quais o homem se aproxima do ideal pro—
posto pela religiáo e com este se harmoniza sao considerados bons, e aqueles que
distanciam o homem do ideal de sua religiáo sao considerados maus.
Portanto, se como entre os antigos hebreus, segundo a religiáo, o significado
da vida consiste na adoragáo de um Deus único e na submissáo a sua vontade,
os sentimentos de obediéncia a lei divina sao considerados bons e dio lugar a arte
boa, representada pelas poesias sacras dos profetas, pelos salmos da época do
Génesis. E considera—se mi arte tudo aquilo que se opóe a esse ideal, tal como as
expressóes de um culto a divindades estranhas e outros sentimentos incompatíveis
com a lei de Deus. No uso dos gregos, ao contrán'o, quando a religiáo explica o
signiñmdo da vida, recolomndo-o na feliddade terrena, na forgn e na belen,
considera—se uma boa arte aquela que expresa a alegria e a operosidade da vida,
má aquela que expressa sentimentos de languidez e melancolia. Recolomdo o
56 Leon Tolstóí
significado da vida, como entre os romanos, para colaborar pela grandeza da na<;áo
ou, como entre os chineses, para prestar honrarias aos antepassados e perpetuar—
lhes 0 género de vida, seria, naturalmente, considerada boa ane aquela que ex-
pressa a alegria do sacn'fício pessoal pelo bem da nacio, ou respeito pelos ante-
passados e o desejo de os imitar. E má seria toda arte que apregoa sentimentos
opostos.
Quando, pois, o sentimento da vida, como entre os budistas, está na liber-
tado do homem dos entraves da animalidade, será boa toda arte que exalta a alma
em detrimento da carne e má toda aquela que preconim sentimentos próprios que
favorecem a cobiga material.
Em todas as épocas, em todas as sociedades, há uma consciéncia religiosa,
comum a todos, do bom e do mau, que serve para o confronto e julgamento dos
valores expressos pela ade. Desta forma, entre todas as nagóes, a arte que trans—
mitia sentimentos considerados bons pelo senso religioso geral era reconhecida
como sendo boa e era encorajada, mas a arte que transmitisse sentimentos con-
siderados maus por este senso religioso geral era reconhecida como sendo má e
era rejeitada. [sto acontecia entre os hebreus, os gregos, os romanos, os chineses
e os egipcios e assim era, igualmente, entre os primeiros cristios.
O cristianismo dos primeiros séculos nao reconhecia como boa ane senao
lendas, vidas de santos, sermóes, oracóes, hinos e tudo o que expressava o amor
por Cristo, admiragño pela sua vida, desejo de imita—lo, renúncia aos prazeres do
mundo, humildade, caridade, e todas as obras anísticas inspiradas em sentimentos
de prazer pessoal eram tidas como coisa ruim e, por isso, condenadas; por exem—
plo, as artes plásticas nio eram admitidas senao como representa;óes plásticas
simbólicas, e toda a ane paga era condenada.
Assim faziam os primeiros cn'stáos, que concebiam a doutrina de Cristo, se
nao totalmente em seu sentido verdadeiro, pelo menos sob uma maneira diversa
da forma perve¡tida e paganimda que mais tarde revestiu essa mesma doutrina.
Mas, ao lado desse cristianismo, desde o tempo da conversio em massa das
nagós pela ordem das autoridades, assim como aconteceu nos dias de Constantine,
Carlos Magno e Vladimir, aparecen um outro, o cristianismo da Igreja, que estava
mais próximo do paganismo do que dos ensinamentos de Cn'sto. Este “cristianis—
mo de Igreja”, nas suas doutrinas, comecou a avaliar de um modo muito diverso
as obras de arte. Nao apenas este “cristianismo de Igreja" nao reconhecia os pre—
ceitos fundamentais do cristianismo auténtico (o estreito relacionamento de todos
os homens com Deus, a perfeita igualdade e fraternidade de todos os homens, a
humildade e o amor em lugar da violéncia), mas, ao contrário, tendo havido a
substituido por uma hierarquia celeste análoga ¿ mitologia paga, tendo havido a
introdugño, na religiáo, do culto de Cristo, da Virgem, dos Anjos, dos Apóstolos,
dos Santos e mesmo da imagem deles, isso fez da fé cega na Igreja e nos seus
costumes os pontos essenciais dos seus ensinamentos.
Nao imponta o quáo estranhos esses ensinamentos possam ter sido ¿ verda-
deira Cristandade. nem auáo demadados em comoarado náo somente com a
OqueéaArte? 57
verdadeira Cristandade mas também com a concepgño de vida dos romanos como
Juliano e outros, por tudo que eles foram para os bárbaros que os aceitaram —
uma doutrina mais alta que sua antiga adorado de deuses, heróis, bons e maus
espíritos. Mesmo assim, esses ensinamentos foram uma religiáo para eles e na base
dessa religiáo a arte daquele tempo se ñxou. A arte germinada por esa religiáo
expressava o amor a Virgem, a Jesus, aos Santos e Anjos, a cega obediéncia aos
dogmas, o medo das penas do inferno e a esperanga das alegrias da vida futura.
E toda arte que se opunha a lso acreditava-se ser má.
Esta arte, ainda que fundada sobre uma bastardia do cristianismo, era arte
verdadeira, uma vez que correspondia ao conceito religioso dos homens entre os
quais ela florescia. Os artistas da Idade Média, ao atingirem os sentimentos deste
manancial popular e interpretando—os na arquitetura, na pintura e na música, na
poesia e no drama, eram verdadeiros artistas, e suas obras, segundo o oficio das
obras de arte, eram os seus sentimentos para toda a comunidade que os circun—
dava.
Assim prosseguiram as coisas até que as classes nobres, ricas e cultas da
sociedade européia comegnssem a duvidar da veracidade da concepcáo de vida
expressa no cristianismo oficial. Quando, após as Cruzadas e o apogeu do poderío
dos Papas, aquelas classes conseguiram atingir o raciocinio dos autores clásicos.
reconhecendo, de uma parte, o bom senso e a clareza dos ensinamentos gregos
e, de outra, a incompatibilidade da doutrina eclesiástica com as núximas de Cristo,
veriñcnram que era impossível continuar a crer na doutrina da Igreja. Todavia,
permaneceram submissas, na aparéncia, ás formas eclesiásticas, mas apenas por
inércia e para conservar a própria influéncia sobre o povo, o qual nada perdera
da fé e da obediéncia. Na realidade, o cristianismo eclesiástico cessara de ser a
doutrina religiosa comum a todos os cristios. E as classes mais cultas, que deti-
nham o poder, a riqueza e também o lazer e os meios de produzir e encorajar a
arte, encontravam—se nas condicóes dos romanos cultos de antes do cristianismo;
nao admitiam mais a religiáo das turbas, mas sem estar de pose de outra fé que
lhes pudesse substituir a doutrina da Igreja que haviam abandonado.
A única variado era que os romanos, perdida toda a sua fé em seus impe-
radores divinizados, nao podiam se voltar as confusas mitologias que haviam
precedido as deles e foram forgdos a criar um novo conceito de vida, enquanto
os homens da Idade Média, ao duvidarem do cristianismo eclesiástico, nao preci—
savam ir longe para encontrar melhor doutrina. Bastava que eles repudiassem na
doutrina de Cristo as alteracóes que a Igreja nela havia produzido. E foi precisa-
mente o que ñzeram alguns, nio só os reforrmdores Wyclif, Huss, Lutero e Calvino,
como também, os seguidores do cristianismo náo-oñcial, os paulinianos, os
bogomilos, os waldeses e os heréticos. Mas esse retomo ao cristianismo primitivo
aconteceu apenas da parte de gente humilde, desprovida de quaisquer leis. Hou-
ve, na verdade, ricos que, como Francisco de Asis, admitiram a doutrina de Cristo
em seu pleno signiñmdo e com todas as suas conseqúéncias, a ela sacrificando
seus privilégios sociais. Mas a maior parte das pessoas pertencentes as classes mais
58 Leon Tolstóí
Uma teoria estética moldada para se adequar ¿ visáo de vida das classes
governantes.
nova cléncia, a teoria da arte dos antigos foi interpretada de maneira a dar a
impressio de que esta ciéncia ficticia — a estética — teria existido, igualmen—
te, nos gregos. Na realidade, as consideracóes dos antigos sobre arte 550 muito
diferentes das nossas.
“Reparando bem" — diz Benard no seu livro sobre a estética de Aristóteles
— “acha-se que em Aristóteles, como também em Platao e em seus sucessores,
a doutrina do belo e da arte sao, na verdade, separadas”. E de fato o raciocinio
dos antigos sobre a arte nao somente nao confirma a nossa ciéncia da estética,
mas antes contradiz a sua doutrina da beleza. Contudo, todas as direcóes da
estética, de Schasler a Knight, declaram que a ciéncia do belo — a ciéncia
estética — foi iniciada pelos antigos, por Sócrates, Platio, Aristóteles, e limi-
tou—se, dizem eles, até um certo ponto, aos epicuristas e aos estóicos, por
Séneca e Plutarco, até chegar a Plotino. Mas é suposto que essa ciéncia, por
algum acidente infeliz, desapareceu de repente no século IV e permaneceu
assim por mais ou menos mil e quinhentos anos, e somente depois desses mil
e quinhentos anos passou a ser revista na Alemanha, em 1750 d.C., na dou-
trina de Baumgarten.
Depois de Plotino, diz Schasler, quinze séculos se passaram durante os
quais nao se mostrou o mínimo interesse científico pelo mundo da beleza e
arte. Estes mil e quinhentos anos, diz ele, foram anos perdidos para a estética
e em nada contribuíram pela construcio de um edificio erudito desta ciéncia.1
Na realidade nada disso aconteceu. A ciéncia da estética, a ciéncia do
belo, nao desapareceu nem podia desaparecer, pois jamais existiu. Os gregos,
de modo igual a outros povos, consideravam boa a arte quando esta servia a
bondade, vale dizer aquilo que consideravam bom. Mas o sentido moral es-
tava neles táo pouco desenvolvido que a bondade e a beleza pareciam-lhe
coincidentes. Além disso, jamais tiveram nem a sombra de uma doutrina es—
tética acerca do que lhes é atribuido. A estética é uma inven9áo dos tempos
modernos e só tomou forma científica a partir de Baumgarten. Os gregos (como
pode observar qualquer um que leia o admirável livro de Benard sobre
Aristóteles e seus sucessores, e a obra de Walter sobre Platao) nunca tiveram
uma ciéncia da estética.
As teorias estéticas despontaram por volta de cento e cinqúenta anos
atrás entre as classes abastadas do mundo cristio europeu e despontaram
simultaneamente em diferentes países — Alemanha, Italia, Holanda, Franca e
Inglaterra. O seu fundador e organizador, quem lhes deu uma forma científica
e teórica, foi Baumgarten. Como bom alemáo, Baumgarten, com um desvelo
assaz pedantesco pela simetría e exatidáo exteriores, e com um desprezo
absoluto por toda observacáo de fato, fabricou e expós sua singular doutrina.
Esta, a despeito de sua absurdidade, divulgou-se nos círculos de gente culta
e é hoje respeitada pelos doutos e os ignorantes como se fosse uma verdade
indestrutível e uma evidéncia absoluta.
Pro capta lectorts haben: sua fata líbellí: “Os livros tém seus destinos
OqueéaArte? 61
segundo o entendimento dos leitores” e ainda com maior justica pode-se dizer
que tém sua fata as teorias segundo o grau de erro no qual se acha imersa a
sociedade na qual tais teorias sao inventadas. Se alguma teoria serve para
ju$tificar a falsa posicáo em que vive uma classe da sociedade, por muito que
se revele infundada e abertamente falsa, é acolhida por aquela classe social
como artigo de fé. Esta sorte teve, por exemplo, a célebre e absurda doutrlna
de Malthus, com a qual se sustentava que a populacáo da Terra aumenta em
progressáo geométrica, ao paso que os meios de subsisténcia crescem apenas
em progressio aritmética. Seria inevitável, portanto, uma excessiva aglomera—
cio de gente na Terra. A mesma coisa aconteceu com a teoria (derivada da
malthusiana), que situa a base do progresso da humanidade na selecáo e na
luta pela vida. E lsto acontece, ainda, com referéncia a doutrina de Marx, a
qual nos apresenta como lei fatal e inevitável a destruigáo gradual da pequena
indústria privada por obra da grande indústria capitalista.
Tais doutrinas bem podem carecer de qualquer fundamento, opor-se a
todas as certezas e todas as esperancas do género humano, podem ser total—
mente e torpemente imorais; e, todavia, essas teorias sáo aceitas sem críticas
e pregadas com paixáo, instruem sem dlscussáo, ás vezes por vários séculos,
até que nao desaparecam as condicóes as quals elas servem para justificar ou
até que seu absurdo se torne evidente. A essa classe pertence 3 teoria assom-
brosa da trindade baumgarteana: Bondade, Beleza e Verdade, segundo a qual
fica parecendo que o melhor que pode ser feito pelas artes nacionais depois
dos mil e novecentos anos de ensinamento do cristianismo é escolher como
o ideal de vida aquele que era sustentado por pessoas pequenas, semi-selva-
gens, detentores de escravos que viveram dois mil anos atrás, imitaram extre—
mamente bem o nu humano e erigiram construgóes agradáveis de se ver. Todas
esas incompatibilidades passam sem serem notadas por completo. Eruditos
escrevem tratados longos, nebulosos sobre a beleza como um membro da
trindade estética da Beleza, Verdade e Bondade; das Scbóne, das Wabre, das
Cute; le Beau, le Vraí, le Bon, sao repetidos com letras maiúsculas por filóso-
fos, esteticlstas, artistas, por individuos, por romancistas e por feuilletonístes.
Pronunciando essas palavras, pensam que dizem algo de concreto e determi-
nado, sobre o que possam repousar suas opinióes. Palavras nao só nao pos-
suem nenhum sentido determinado, mas impedem até a compreensáo de uma
arte qualquer, em qualquer sentido plausível, como aquelas que foram forma-
das somente para justificar a falsa importáncia atribuida a forma mais baixa da
arte, aquela que nio possul outro fim sendo o de proporcionar prazer.'
62 Leon TOLrtóí
Nota
1. “A lacuna de quinhentos anos qe ocorre entre as observacóes artístico—filosóficas de
Platio e Aristóteles e as de Plotino pode parecer realmente surpreendente, mas nao
se pode dizer com exatidáo que nesse intervalo de tempo nio tivesse havido abso-
lutamente nenhuma referéncia ¡¡ questio de Estética; ou ainda que exista uma com—
pieta falta de correspondéncia entre as visóes da arte deste último filósofo e as dos
anteriores. E verdade que a ciéncia fundada por Aristóteles nao era, de nenhum modo,
tao avancada assim; mas, apesar de tudo Isso, durante esse intervalo, nota—se um certo
interesse nas questbes estéticas. Mas, depois de Plotino (os poucos filósofos próximos
a ele em tempo, como Longino, Augustino e assim por diante, dificilmente entram em
questio como vimos, além do mais cies aderem a ele em suas visóes), passou—se nio
apenas cinco, mas quinze séculos dos quals nao ha nenhuma indicacao de qualquer
tipo de interesse científico em relacio ao mundo do belo e da arte.
Esses mil e quinhentos anos durante os quals o espírito do mundo elaborou um fundamento
de vida completamente novo sio anos perdidos para estética no tocante a qualquer formu-
lacio posterior dessa ciéncia." - Max Scbasler em Kritiscbe Gescbícbte der Aestbetík.
CAPÍTULO V…
Quem adotou essa teoria estética. Arte real necessárla para todos os
homens. A nossa arte, cara demais, demasiadamente lnlntellgível, e
demasiadamente nociva para es massas. A teoria do “elelto” em arte.
Mas, se arte é uma atividade que tem por objetivo propagar entre os homens
melhores e mais elevados sentimentos de nossa alma, como se explica que 0
género humano, por um período considerável de sua existéncia (do tempo em
que as pessoas pararam de crer na doutrlna de Igreja até os dias atuais), haja
renunciado a esta atividade, substituindo por ela uma fundo artística inferior,
enderegnda unicamente ao prazer?
Para responder a tal questáo, faz—se necessán'o primeiro desfazer o erro sin—
gular pelo qual nossa arte atribui a si mesma valores universais. Tao habituados
estamos náo somente a considerar ingenuamente uma família cirmssiana o melhor
tipo de gente, mas também a raca angIo-saxónim a melhor raca se somos ingleses
ou americanos, ou a teutónim se somos alemáes, ou a galego—latina se somos
franceses, ou a eslava se somos russos, que ao falarmos da nossa própria arte
sentimo—nos completamente convencidos de que nao somente a nossa arte é a
verdadeira arte, mas até mesmo que ela é a melhor e a únim verdadeira arte. Em
vez diste, a realidade nos mostra que a nossa arte, além de nao ser a única, nao
é acessível senao a uma mínima parte das ¡agas civilizadas.
Só há o direito de falar de uma arte nacional hebréia, grega, egipcia e, se
assim quiserem, também chinesa, japonesa e indiana. Uma arte deste género, comum
a todo um povo, existiu também na Rússia até Pedro, 0 Grande, e no resto da
Europa até o século )GII e XIV. Mas, desde que as classes mais elevadas da soci-
edade perderam a fé na Igreja e ñcaram desprovidas de crengns religiosas, nao
existe mais nenhuma arte que meregn o nome de arte das nacóes cristás. A partir
daquele ceticismo religioso a arte das classes cultas separou—se da arte do resto do
povo, surgir—am duas artes, uma do povo e outra, para os bem instruidos. Portanto,
a quem pergunte como 0 género humano pode, por um certo período, passar sem
a arte verdadeira, responde—se que tal privado nio tocou nem a todo 0 género
humano, nem a uma parte considerável dele, mas, sim, apenas a clase mais ele—
vada de nossa sociedade européia e cn'stá. E mesmo a elas por um período com—
parativamente pequeno — do come<;o do Renascimento aos nossos dias... Os
efeitos desta falta de arte manifestam—se suficientemente na conupcáo das classes
que dela se alimentaram. Todas as teon'as nebulosas e incompreensíveis referentes
a arte, todos os ju¡zos falsos e contraditórios em tomo de seus produtos, em particular
a persisténcia de nossa arte em atolar—se em sua mim estrada, tudo isto derivou
64 Leon Tolstóí
ticos de nossos poetas sao impenetráveisao comum dos homens, como se fossem
escritos em sánscrito. Haverá quem diga que tal fato pode ser atribuido a carencia
de cultura do povo e que, quando todos forem suficientemente instruidos, pode-
rio compreender nossa arte. Seria outra resposta insossa, pois bem sabemos que
a arte das classes elevadas, como as varias odes, poemas, dramas, mntatas, pas—
torais, pinturas etc., sempre foi para esa clase mero passatempo, do qual as
pessoas restantes nada compreendiam. E também freqúentemente sustentado, como
prova da añrmagño de que o povo um dia compreenderá a nossa arte, que algu—
mas producóes da chamada poesia, música ou pintura clásica, que anteriormente
nao agradavam as massas, comegm — agora que a eles sáo oferecidas por todos
os lados — a agradar a essas mesmas massas. Mas isso somente mostra que a
multidio, especialmente a multidio urbana semiconompida, pode facilmente (seus
gostos tendo sido pervertidos) se acostumar a qualquer tipo de arte. Além do mais
esta arte nao é produzida por esas massas, nem mesmo escolhida por elas, mas
é energetimmente empurrada para elas em lugares públicos nos quais a arte se
torna acessivel as pessoas. Para a grande maioria da massa trabalhadora, a nossa
arte, além de ser inacessível devido ao seu alto custo, é estranha pela sua própria
natureza, transmitindo, como ela faz, sentimentos humanos muito distantes da-
queles oriundos das condicóes de vida trabalhadora que é natural ao corpo geral
da humanidade. Aquilo que é deleite a um homem das classes superiores é incom-
preensível como um prazer a um trabalhador, e nao evoca neste qualquer senti-
mento ou ainda um sentimento bastante contrán'o ao que evom num homem
ocioso e saciado.
Assim é, por exemplo, o caso daqueles sentimentos que formam o argumen-
to fundamentalda arte contemporánea,o ponto de honra. O patriotismo, a galanteria
e a sensualidade nao podem suscitar nos homens do povo senáo pasmo ou des—
prezo e indignado. Se igualmente as classes operárias for concedida a possibili-
dade de ver, de ler, de ouvir, em suas horas de liberdade, aquilo que forma a flor
da arte contemporánea (e até certo ponto ¡sto lhes é possibilitado, nas cidades,
devido aos museus, aos concertos populares, ás bibliotecas), o homem dessas
classes, sendo um trabalhador e náo tendo comegado a se perverter pelo ócio e
conservando os sentimentos próprios ao seu estado, nao poderá obter proveito
nenhum de nossa arte refinada, e realmente nao a compreenderá, e aquilo que lhe
for inteligível náo será tal que exalte seu ánimo, mas pode, ¡sto sim, perverté—lo.
Para um homem que pense e queira ser sincero, náo resta dúvida que a arte das
classes mais elevadas nunca pode tornar—se arte de toda a nagño. Ora, se a arte tem
a importáncia que se lhe atribui e, como se comprazem a dizer seus devotos,
iguala—se em importñncia a religiáo, deveria ser acessível a todos. E, visto hoje nao
ser assim, é forcoso dizer que ou a arte nio tem a importáncia que se pretende
ou a nossa assim chamada arte nao é a verdadeira.
Esse dilema é inevitávél, mas existe gente a um tempo astuta e ¡moral que
busca evita—lo, negando formalmente que o povo tenha direito a desfrutar a arte.
Sáo estes que, com perfeita impudéncia, proclamam que, para saborear as alegrias
66 Leon Tolstóí
0 primeiro efeito da ausénda de fé nas classes mais elevadas foi para a arte
o empobrecimento do conteúdo. A segunda desgra9a adveio de que esta arte,
tornando—se cada vez mais exclusiva, vinha se tornando ao mesmo tempo mais
artificiosa e difícil, e mais obscura. Nas épocas de arte universal um artista, por
exemplo, um artista grego ou um profeta hebreu, esforqava—se, naturalmente, para
dizer em suas criaqóes aquilo que desejava e de tal modo que todos pudessem
compreender sua obra. Ao paso que nessa ocasiáo os artistas nao trabalhavam
senáo para um grupo restrito de pessoas favorecidas por condi96es excepcionais,
vale dizer, para os papas, os mrdeais, reis, duques, rainhas ou, faltando estes, para
as amantes dos reis, naturalmente, esforgavam—se somente para produzir efeito
s'obre as pessoas de quem conheciam bem os costumes e o gosto. E, por ser mais
fácil este tipo de trabalho, o artista achava-se, sem o saber, disposto a expressar—
se por meio de alusóes, claras para os iniciados, mas obscuras para todos os outros.
Desse modo, era fácil falar mais. Além disso, mesmo aos iniciados, o vago e o
indefinido apresentavam um certo atrativo.
Essa tendéncia, que se revela em alusóes mitológicas e históricas, e nos
eufemismos, prosseguiu e acentuou-se até a época presente, chegando ao limite
extremo na arte dos modernos decadentistas.
Nesses últimos tempos, as condigóes exigidas para que uma obra de arte seja
válida e mesmo poética sao, nao somente a vagueza, o misterio, a obscuridade e
a inacessibilidadeás masas, mas também a impredsáo, a indeterminado e a rearsa
da eloqiiénda. Diz 'ihéophile Gautier, em seu prefácio ao célebre [Mb de Baudelaire,
Fleurs du Mal, que o autor afastava—se o mais que podia da poesia “a eloqiiénda,
a paixáo e a verdade, reproduzida com exceso de exatidio'. B Baudelaire nao se
contentou em dizer, ele o fez nos seus poemas e mais ainda na sua prosa, em seus
Petíts Poémes en Prose, onde se devem adivinhar os sentidos como num rebus, e
cuja maior parte resta indecifrável. O poeta Verlaine, vindo após Baudelaire e
também ele considerado um dos grandes, deixou uma ArtPoétíque, na qual reco—
menda que se escreva do seguinte modo:
De la musique avant toute cbose
Et, pour cela prefere l']mpar;
Plus vague e: plus soluble dans l'aír;
72 Leon ToLstói
E mais abaixo:
0 poeta Mallarmé, que veio após os dois, e que é tido como o mais
importante dos jovens poetas, declarava abertamente que o atrativo da poesia
reside na necessidade de adivinhar seu significado e que toda composicáo
poética deve sempre conter algum enigma:
“Penso que deveria haver nada mais que ilusáo. A contemplacáo dos
objetos, as imagens a libertarem-se das fantasias por elas suscitadas, eis o
canto. Os pamasianos, esses tomam a coisa por inteiro e a exibem; com isso,
dispensam o mistério; roubam ao espírito a deliciosa alegria conveniente da
crenca de criar. Dar nome a um objeto ¿ suprimir tré's quartos do prazer da__
poesia, feita da felicidade de adivinbar pouco a pouco; sugerir, eis o sonbo. 0
uso perfeito desse mistério é que constitui o símbolo; evocar aos poucos um
objeto a fim de revelar um estado d'alma ou, inversamente, escolher um objeto
e a partir dele exalar um estado de alma, por meio de uma série de interpre-
tacóes... Se um ser de médla intellgéncia e insuficiente preparacáo literária
abrir casualmente um livro assim feito e pretender disso extrair prazer, com—
preendeu mal, é necessárlo colocar as coisas nos seus lugares. Deve sempre
haver enigma na poesia; e a ñnalidade da literatura, a únim, é evocar os objetos.”
1.Música antes de tudo/ B para ¡sto pneñras o lmpar,/ Mais vago : mais solúvel no ar,/ sem nada em
sique pese ou pouse. E mister também que nio vás/ ¡ escolha de palavras sem algum equívoco/ Nada
mais caro que a emocio cinza/ Em que o lndeciso ¡unta—se ao Preciso.//
B ainda e sempre ¡ música/ Seia teu verso uma coisa volante/ Quem sabe se fugida de uma alma em
alameda/ Para outros céus : outros amores.//
Se¡a teu verso a boa aventura/ Esparsa ao crispado vento matinal/ Que pasa perfumado de men.a e
ao tomilho.../ £ todo o resto 6 literatura.//
OqueéaArte? 73
Charles Morice, Henry de Régnier, Charles Vignier, Adrien Remacle, René Ghil,
Maurice Maeterlinck, Rémy de Gourment, Saint—Pol—Roux—Le—Magnifique,Georges
Rodenbach e o conde Robert de Montesquieu-Fczensac. Sáo estes os simbolistas
e os demdentistas. Mas existem igualmenteos magi; Joséphin Péladan, Paul Adam,
Jules Bois, Papus e outros. E poderiam ler outros cento e quarenta e um names,
mencionados por Doumic em seu livro Les]eunx. Bis, portanto, alguns excertos
daqueles considerados entre os melhores, come9ando pelo célebre Baudelaire, o
qual foi julgado digno da honra de uma estátua. Bis esta poesia, pertencente ao
seu F!eurs du Mal:
DUELLW
II. Adoro—te tanto quanto ¡ abóbada noturna/ Oh! vaso de tristeza, oh, grande tacituma/ E amo—te ainda
mais, bela, que me foges/ B que me pareces, omamento das minhas noites,/ Mais ironicamente acumular
léguas/ Que separam meus bragos das imensidades azuis.//
Avango ao ataque, grimpo ao assalto,/ Como após um cadáver um cono de pequenos vermes,/ E eu
acarinho oh, fera implacável e cruel, até essa frieza que para mim te faz mais bela!/
III. DUELLUM
Dois guerreiros coneram um para o outro; suas armas/ Enlamearam 0 ar e de ques de sangue./ Esses
jogos, esses tinidos de ferro sio os ruidos/ de uma juventude presa do amor aos vagidos.//
Quebraram-se os gládios, como nossa juventude/ Querida! Mas os de testemunhas aceradas/ nio
tardam a vingar a espada e a traidora adaga;/ oh, furor dos coragóes maduros por amores ulcerados!//
Na ravina assombrada por gatos—pardos e oncas/ Nossos heróis, num abraco maligno rolaram/ B sua
pele florescerá na aridez dos espinhos.//
Esse abismo ¿ o inferno, povoado pelos nossos amigos!/ Nele rolaremos sem remorsos. amazona
inumana,/ A fm de etemizar o ardor de nosso ódio.//
OqueéaArtef 75
0 Estrangeiro
Quem mais amas, diz—me homem enigmático, teu pai, tua má'e, tua irmá ou
teu irmáo?
Náo tenho pai nem má'e, nem irmá nem irmáo.
E teus amigos?
Vocé' servia—se de uma palavra cujo sentido permanecen ignorado até hoje,
pam mim.
Atua pa'tria?
Náo sei sob que latitude ela está.
A heleza?
De boa vontade a amarla, deusa e imortal.
0 ouro?
Detesto—o, como vocé' a Deus.
Que amas, singulan'ssimo atranho?
Amo as nuvens... as nuwnsquepassam... a distáncia... maravilhosas nuvens.
Por muito rebuscado que seja o estilo deste fragmento, com um pouco de
boa vontade, pode-se ainda adivinhar o que deseja expressar o autor; mas existem
igualmente outros, que sao absolutamente incompreensíveis, pelo menos para
mim. Apresento, por exemplo, o Galant Tireur, do qual, de fato, me escapa o
sentido:
Os trechos poéticos de outro grande poeta (Verlaine) náo 550 menos afeta-
dos e incompreensíveis. Vejam a primeira poesia da coletánea intitulada An'ettes
Oubliées.
¡V. E o éxtasc Iangoroso/ E ¡ fadiga amorosa/ 550 todos os arrepios do bosque/ Entre os abra;os das
brisas./ E para o lado das inquietas ramagens/ Há um coro de pequenas vozes./
Oh fresco : frágil murmúrio/ Tudo chilreia e sussura/ Assemelha—se ao doce grito/ : expirar da agitacio
da erva.../ Dirias, sob um redemoinho d'água, um surdo rolar de seixos.//
A alma : Iamentar—se/ Ness: queixa dormente/ E : nossa, nio é?/ B : minha, dize, ¿ : tua,/ d'onde
se exala : humilde antífona,/ Tio baixinho, nesta noite moma?//
Oqueéa.4ñe? 77
Dans l'ínterminable
Ennuí de la plaine,
La neíge incertaíne
Luit comme du sable.
Comeíllepausst
Et vous, ¡es loups maígres,
Par ces bísas aígms
Quai done vous arrive?
Dans l'íntermínable
Ennui de la plaíne,
La neige íncertaíne
Lui: comme du sable. "
Como é que algum dia póde parecer que a lua viva e morra num céu de
cobre?B como algum dia póde a neve luzir como areia? Tudo ¡sto nao é apenas
incompreensível, mas, com a desculpa da sugestio de impressóes, é um teddo de
metáforas lncorretas e de palavras sem sentido. Além disse, em Verlaine, como em
je ne veuxpluspenserqu'a ma méreMañe,
Síége de la Sagxse el source das pardons,
Mére de France aussi, DE gw ¡vous mmons
ÍN£BRANMBLMNTL 'H0NNBUR DE un mama.“
VI. Nio deseio mais pensar senio na minha mie Maria/ Trono de sabedoria e fonte de perdio/ Mie
também da Franca, de quem esperamos/ lnapelavelmente a honra da Pátria.
Oqueéazirte? 79
VII. Á nuvem acabrunhadoratu,/ Baixa de basalto : lavas,/ No caso de ecos escravos/ por uma trompa
sem virtude//
Que sepulch naufrágio (tu/ o sabes, espuma, mas babas),/ suprema entre restos de naufrágio,/ Abolido
o mastro despido//
Onde isso que, furibundo, ¡ falta/ de uma perdicio alta/ Todo o abismo em vio estende asas//
No cabelo tio branco que se anasta/ avaramente terá afogado/ o flanco infantil de uma sereia.//
OqueéaArte? 81
Etj'aí vu la mort
(I'entendis son áme)
Etj'aí vu la mort
Qui l'attend encore...
Ma lampe allumée
(Mon enfant, j'aípeur)
Ma lampe allume'e
Me suis appmcbée...
A la premiére porte,
(Mon enfant, j'ai peur)
A la premíére parte
la j1amme ¿: tremble'...
A la secondeporte,
(Mon enfante, j'ai peur)
A la secondeporte
La jlamme a parlé…
A la tmisiémeporte,
(Mon enfante, j'aípeur)
A la trotsíémeporte
la Iumíére ect morte…
VIII. Quando ele saiu/ (ºuvi a porta)/ Quando ele saiu/ ela sorriu...//
Mas quando ele entrou/ (Eu ouvi a limpada)/ Mas quando ele entrou/ Outra estava lá...//
B eu vi a morte/ (ºuvi sua alma)/ !! eu vi a morte/ Que ainda espera...//
Vieram dizer/ (Filho, eu tenho medo)/ Vieram dizer/ que ele iria partir...//
'Minha limpada acesa/ (Filho, tenho medo)/ Minha Iimpada acesa/ Bu me aproximei…//
A primeira pona/ (Filho, tenho medo)/ A primeira porta/ a chama tmmeu...//
A segunda porta/ (Filho, tenho medo)/ A segunda penal a chama falou...//
A tenceira portal (Filho, tenho medo)/ A tenceira porta/ A luz extinguiu-se...//
!! se ele tornar um dia/ Que Ihe devemos dizer?/ — Diga-Ihe que o e5peraram/ até momer…//
!! se ele me interrogar ainda/ Sem me :eeonheoeu?/ Fale com ele como irmio/ Ele sofre, quem sabe?…//
]! se ele perguntar onde está vocé/ Que devemos nesponder?/ Déem—Ihe meu anel de ouro/ Sem nada
responder..l/
!!se ele quiser saber por que// a sala ¿ deserta?/ Mostra—Ihe a lñmpada extinta/ E a porta aberta...//
!!se ele entio me internogar/ Sobre a última hora?/ — Diga—lhe que eu son-¡¡ de medo que ele
chorasse...//
84 Leon Tolstóí
Isso era o que se fazia em 1894. Essa tendéncia acentuou—se depois, sempre
com maior forgn. Agora, na pintura, distinguem—seBócklin, Stuck, Klinger, Sasha
Schneider e outros.
0 mesmo sucede quanto ao drama. Os que escrevem para 0 teatro agora
nos apresentam um arquiteto, que, por qualquer motivo misterioso, nao efetuou
seus desenhos primitivos e sublimes e, por isso, subiu no teto de uma casa por
ele construída, dai precipitando—se de cabeg para baixo; ou nos apresentam uma
velha enigmática, dedicada a tarefa de exterminar os ratos e que, sem nenhum
motivo concebível, conduz um rapazinho ao mar e la o afoga; ou talvez sejam uns
cegos que, sentados a beira d'água, repetem ao infinito as mesmas palavras; ou
será talvez um sino que se atira num lago e lá embaixo comegn a repicar.'
Igual fenómeno encontramos na música, uma arte que parecia destinada
a permanecer constantemente acessívei a todos. Qualquer músico reputado
senta—se ao piano em presenca dos senhores e executa algo que dirá ser
composicáo nova, dele ou de qualquer outro músico moderno. Vocés ouvem-
no produzir sons estranhos e barulhentos, admiram as ginásticas dos seus
dedos e depois compreendem que ele deseja fazé—los crer que os sons assim
obtidos exprimem vários sentimentos poéticos de sua alma. A intengáo dele
é clara, mas em nós nao consegue transfundir outro sentimento que nao o de
um tédio mortal. A execucao dura longo tempo, ou pelo menos assim nos
parece, porque nao conseguimos receber impressóes com qualquer nitidez.
Imagina-se que talvez toda essa armagáo nao passa de mistificacáo, que pode
ser que o artista nos queira pór a prova e ande a passar os dedos pelas teclas
ao acaso, a espera de nos apanhar e zombar de nós. Ao terminar, porém, o
trecho musical, levanta—se do piano o músico, esbaforido e suado, mas mani—
festamente a espera de louvores, e forca todos a reconhecer que ele está em
seu juízo. Bis 0 que acontece em todos os concertos em que se tocam [rechos
de Liszt, Wagner, Berlioz, Brahms, Richard Strauss ou dos inumeráveis com—
positores pertencentes a nova escola. Igual tendéncia invadiu o dominio dos
romances e contos onde pareceria impossível que se quisesse fazer algo in—
compreensível. Leiam Lá-bas de Huysmans, ou qualquer das novelas de Kipling,
ou L'Annoncíateur, de Villiers de l'isle-Adam. Tais obras lhes pareceráo nao
somente abscons para servir-me de um termo da nova escola — mas quase
incompreensíveis, seja pela forma ou pela substáncia.
No mesmo caso está um romance de E Morel, Teme Promise, que há pouco
apareceu na Revue Blanche, como a maior parte dos novos romances. Seu estilo
e sumamente enfático, os sentimentos parecem arquielevados. Mas nao é possível
decifrar o que se pasa, onde se pasa, nem quem ou o que aparece. E tal é toda
a arte da juventude dos nossos tempos.
Os homens da primeira metade de nosso século, admiradores de Goethe,
Schiller,Musset, Hugo, Dickens, Beethoven, Chopin, Rafael, da Vinci e Michelangelo,
Delaroche, nada entendem desta arte nova, mas adaptam—se de bom grado a
consideré-la mera insensatez ou brinmdeira de mau gosto e afastam-se dela sacu-
Oqueéa Arte? 85
dindo os ombres. Todavia, com respeito a essa arte, essa atitude náo é justa, pois,
em primeiro lugar, ela está preparada para estender—se cada vez mais e já conquis—
tou no mundo um posto igual ao que ocupava o romantismo em 1830. Além disse,
se condenamos as obras de arte decadentistas só porque nao as entendemos,
devemos pensar que existe um grande número de pessoas, todos os trabalhadores
e até uma grande parte das classes mais elevadas, que nao compreendem melhor
as obras de arte que nós consideramos como as mais belas, ¡sto é, a poesia de
Goethe, de Schiller, de Hugo, os romances de Dickens, a música de Beethoven ou
Chopin, os quadros de Rafael e Leonardo da Vinci, as estátuas de Michelangelo
etc.
Se tenho o direito de crer que a grande maioria dos homens, por causa de
seu esmsso desenvolvimento intelectual, nio entende nem gosta de tais obras
para mim táo perfeitas, náo tenho, também, o direito de negar que eu possa nao
entender e nao gestar dos produtos da arte nova unicamente por causa da minha
insuficiente cultura. Se tenho o direito de dizer que minha impossibilidade de
compreender as obras de arte da nova escola provém de nelas nada haver de
compreensível, outros poderío dizer, com igual direito, que tudo ¿ que eu con-
sidero obras—primas de arte nio passa de arte mim e incompreensível, visto que
a enorme massa do povo náo tem condicóes de compreendé—las, de nenhum
modo.
Convenci-me um dia de quanto é injusto, neste mundo, condenarmos a arte
da nova escola. E foi num dia que ouvi um poeta, autor de incompreensíveis
versos, clamar sarcastimmente contra a música incompreensível; e depois, repen—
tinamente, encontrei um músico, autor de uma sinfonía incompreensível, que nao
cessava de escamecer dos poetas incompreensíveis. Nao é justo condenarmos a
arte nova, fundamentados no fato de nós, homens da primeira metade do século,
nio a entendermos. Temos apenas 0 direito de dizer que esa arte é incompreen—
sível para nós. A única superioridade da arte que admiro, sobre a dos demdentistas,
está nisto: em ser a arte de minha predilegño acessível a maior número de pessoas
do que a arte de hoje em dia.
0 fato de encontrar—me na imposslbilidade de compreender um género de
arte por haver—me habituado a outro género náo me dá nenhum direito de concluir
que 0 género admirado por mim seja o único verdadeiro e que aquilo que náo
entendo seja falso e ruim.
De um fato semelhante, só posso argumentar o seguinte: que a arte, toman-
do—se sempre mais exclusiva, veio a ser sempre menos acessível e, em seu cami—
nho em diregño ao ininteligivel, ultrapassou o ponto que eu próprio me encon—
trava.
Desde que 3 arte das classes superiores destacou-se da arte popular, surgiu
a convicdo de que a arte pudesse permanecer sempre arte, sem ser mais compre-
endida pelas multidóes. Uma vez admitido ese principio, era previsível que a arte,
pouco a pouco, deixasse de ser acessível senio a um pequeno círculo de iniciados
e, finalmente, apenas a duas ou trés pessoas ou até a uma só, o artista criador. E
86 Leon Tolstóí
precisamente assim que falam os artistas modernos: “Eu crio e entendo a mim
mesmo; se alguém náo me entende, pior para ele”.
Mas essa añrmagáo de que a arte pode ser verdadeira e permanecer inaces-
sível a grande número de pessoas é perfeitamente absurda e suas conseqiiéncias
sáo desastrosas para a própria arte. Todavia, ela é tao comum e predominante
entre nós que jamais insistiremos demasiado em sua incongméncia.
Afirmar que uma obra de arte é boa e nem por isso menos incompreensível
a maior parte dos homens equivale a afirmar que um alimento qualquer é bom,
embora a maioria nio o possa comer. A maior parte das pessoas pode náo tolerar
queijo podre ou caga verminosa, que 550 guloseimas para gente de gesto perver—
tido, mas o pio e a fmta náo sao bons senáo quando agradam a maioria. Em arte
acontece a mesma coisa. A arte pervertida pode nao agradar a maioria, mas a arte
boa deve agradar necessariamente a todos.
Dizem que, para compreendermos as melhores obras de arte, é preciso pre-
paragáo especial. Se nao podem ser naturalmente compreendidas, haver—á conhe—
cimentos que sejam suscetíveisde senem ensinados e explicados, próprios a tomar
o homem capaz de entender as obras de arte. Mas na realidade nao existe conhe-
cimento nenhum dessa espécie e toda gente sabe que o valor das obras de arte
nio pode ser explicado. Diz—se também que para entender essas obras-primas é
preciso reler, rever, tornar a ouvir sem cansar. Mas ¡sto náo é explicar, é apenas
habituar! E os homens habituam-se a tudo, mesmo as piores coisas. Se podem
habituar—se a carne podre, a aguardente, ao tabaco, ao ópio, podem igualmente
habituar—se a arte estragada; e é precisamente ¡sto que ora sucede.
De outra parte, nao se pode afirmar que a maioria dos homens careca de
gasto necessário para compreender as manifestacóes mais elevadas da arte. A
multidáo entendeu sempre e continua a entender aquiio que reconhecemos por
ótimo, por exemplo: a epopéia do Génesis, as parábolas dos Evangelhos, os contos
de fadas, as lendas e cancóes populares. Por que entáo teria a multidio perdido
de golpe esta mpacidade e nao saberia mais entender a arte de nosso tempo?
Tratando—se de um discurso, ainda que estupendo, pode—se admitir que seja
incompreensível para os que ignoram a lingua na qual é pronunciado. Um discur—
so em chinés pode ser espléndido, mas, se nao sei chinés, certamente nao entan—
derei. Em contrapartida, uma obra de arte distingue—se de todas as outras manifes-
tacóes do espírito quando sua linguagem é compreendida por todos e a todos tom
indistintamente. As lágrimas e o riso de um chinés nao me comovem nem mais
nem menos que o pranto e o n'so de um msso. O mesmo vale para a pintura, para
a música e para a poesia, desde que esta última seja traduzida para uma lingua para
mim compreensível. Os cantos de um kirguis ou de um japonés produziráo em
mim uma impressáo menor do que sobre um kirguis ou japonés, mas, de todo
modo, me comovem. Sinto—me tomdo igualmente pela pintura japonesa, pela
arquitetura indiana, pelas novelas árabes. E, se me acho menos sensivel que um
japonés ou um chinés a seus romances e cnn;óes, isto acontece nao por me faltar
a compreensáo de sua arte como muito excelsa, mas porque conheco outras for—
() queéaArte? 87
mas de arte mais elevada. As obras-primas artísticas nao o 5510 senáo por serem
lnteligíveis a toda a gente. A história de José, traduzida para o chinés, comove os
chineses. Assim nós nos sentimos tocados pela narraqáo da vida de Sakya Muni,
o Buda. Disso se conclui que, se uma forma de arte nao consegue comover, ¡sto
deve ser atribuido nao a falta de gosto de intelecto das pessoas, mas sim ao fato
de aquela náo ser arte verdadeira, arte boa.
A arte difere de outras formas de atividade mental no seguinte: ela pode agir
sobre as pessoas independentemente de seu estado de desenvolvimento e de
cultura, seduzindo—as com o encanto de suas cores, sons e imagens. Ou antes o
oficio essencial da arte é fazer sentir e compreender aquilo que, sob a forma de
raciocinio, permanecería inacessível a maioria. Quem recebe uma verdadeira im-
pressáo artística imagina já ter conhecimento de quanto a arte lhe revela, mesmo
sendo incapaz de o expressar. E tal foi sempre a índole da arte boa e verdadeira.
A Ilíada, a Odísséia, as histórias de Isaac, de Jacó e de José, os cantares dos
profetas hebraicos, os salmos, as parábolas dos Evangelhos, a vida de Sakya Muni,
os hinos védicos, tudo ¡sto exprime sentimentos elevados e todavia sao realmente
lnteligíveis, como o foram, muitos séculos atrás, a homens ainda menos civiliza-
dos, entre os nossos mmponeses. As pessoas falam sobre a incompreensibilidade.
Mas, se a arte é a transmissáo de sentimentos vindos da percepcáo religiosa do
homem, como um sentimento pode ser incompreensível quando está fundado
sobre a religiáo, ¡sto é, sobre a relacio do homem com Deus? Tal arte deveria ser,
e de fato sempre foi, compreensívela todos, pois todas as relacóes do homem com
Deus sao uma e a mesma. E por isso que as igrejas e imagens nelas contidas
sempre foram compreensíveis a qualquer um. O obstáculo a percepcáo de senti-
mentos mais elevados nao reside na deliciéncia de desenvolvimento ou saber,
mas, principalmente, num falso desenvolvimento e falsa ciéncia. Uma obra de arte
elevada e boa pode, até ela, revelar—se incompreensível, mas nao para o &mponés
simples e ainda nao pervertido. Essa espécie de pessoa entende tudo o que existe
de mais elevado; correrá antes o risco de nao ser compreendida por mentes que
se pretendem eruditas mas 550 pervertidas, ¡sto é, desprovidas de qualquer reli-
giáo. Conheco pessoas que se pretendem muito cultas e añrmam nao entender a
poesia da mridade, ou da abnegacáo ou da mstidade. Assim a arte religiosa,
universal, grande, boa, pode ser incompreensível para um pequeno círon de
pessoas deterioradas, mas certamente nio para um grande número de pessoas
simples.
Portanto, se a arte de nosso tempo nao é compreendida pela multidio, nao
é decerto por ser demasiado elevada, segundo a añrmacño predileta dos artistas
atuais. Com mais razáo, diríamos que nao é compreendida por ser arte mim ou,
de fato, por náo ser arte. Admitindo-se que a ñnalidade de uma obra de arte é a
expressáo dos sentimentos, quem poderla falar em tal caso, de incompreensibilidade?
Digamos que um popular leia um livro, olhe um quadro, dé atencáo e ougn
um drama ou sinfonía, sem sentir nenhuma comocáo. Dizem a ele que nao pode
compreender. Prometem-lhe um espetáculo. Ele entra e náo vé nada de valor. E
88 Leon ToLstóí
entio explica—se-lhe que nao tem ainda a vista educada para aquele género de
espetáculo. Mas o nosso popular bem sabe que vé perfeitamente e, se náo vé
aquilo que Ihe prometer-am mostrar, argumenta com razao que a promessa que lhe
ñzeram náo foi cumpdda.
Dizer que uma determinada ane nao produz nenhum efeito sobre as pesso—
as, por serem elas muitos obtusas, além de ser um grave exceso de vaidade, é
uma inversáo de papéis, como se um doente convidasse um sao a meter—se na
cama.
DiziaVoltaire: “Sáo bons todos os géneros, exceto 0 género tedioso." Com
mais razáo, poderíamos dizer: “Sáo bons todos os géneros, exceto aqueles que
nio se compreendem ou que nio produzem efelto'. Que pode valer uma coisa
que falha no produzir o efeito para o qual foi projetada? Veja bem: se vocés ad—
mitirem que a arte possa ser arte e revelar—se lncompreensível a homens de mente
sá, devem admitir igualmente que nada impede um gmpo de pessoas pervertidas
de compor obras que expressam seu sentir depravado, inteligível somente a elas,
e de dar—lhes o nome de arte, como agora fazem os artistas deadentistas.
A diredo da arte nos tempos modernos pode ser comparada ao que acon—
tece quando, sobre um primeiro círculo, colomm-se outros círculos, cada vez
menores, até que o todo venha a ser um cone, cujo cimo nio é mais um círculo.
Essa comparagáo ajusta—se perfeitamente a arte de nosso tempo.
Nota
1.0 autor se refere aqui, por ordcm, ¡¡ Solne&s, o construtor, : Peer Gynt, de Ibsen, Os
Cegos, de Macterllnck : 0 Sino Submemo, de Hauptmann. (N. do E.)
CAPÍTULO X]
a dos vendedores de uma grande loja. Pode—se suscitar curiosidade, ainda que só
com a escolha de expressóes. E um meio que está adquirindo cada vez maior
estima. Verso e prosa, dramas e música e mais tudo o que for disposto de modo
que lhe deva adivinhar o sentido, como nas charadas; o público se agita, busca
adivinhar, distrai-se e experimentaa ilusao de haver recebido uma impressio artística.
E vocés ouviráo repetir com freqiiéncia que uma obra de arte e excelente por
ser poética, ou bela, ou surpreendente, ou interessante, mas na realidade nenhum
desses quatro atributos serve para mensurar a exceléncia de uma obra de arte, e
nem mesmo algo a ver com a arte verdadeira.
Dizer que uma obra é poética equivale a dizer que foi tomada de emprés-
timos. Todos os empréstimos despertam no público reminiscéncias vagas de
impressóes artísticas produzidas por obras anteriores. Sáo incapazes, porém, de
transmitir os sentimentos do próprio artista. Uma obra baseada nesses emprésti-
mos, por exemplo, o Fausto, de Goethe, pode ser bem realizada, cheia de brío e
mesmo verdadelramente bela, mas nio pode produzir uma sincera impressio
artística, uma vez que lhe falta a principal característica de uma obra de arte, ¡sto
é, a unidade, a íntima harmonia entre forma e substáncia, que serve para transmitir
os sentimentos experimentados pelo artista. A obra de segunda-mao só pode des—
pertar o sentimento nela infuso pela obra inicial. Bis por que todo empréstimo de
asuntos, de cenas, de situacóes e descrigóes nao passa de um reflexo da arte, da
sua contrafagño, mas nao é arte. Pretender que uma obra deste género seja boa
por ser poética, ¡sto é, assemelhe—se a uma obra de arte, é o mesmo que pretender
que uma moeda de chumbo seja boa só por assemelhar-se a urna de prata.
Igualmente, pouco pode a imitacáo, o realismo, servir, como muitas pessoas
supóem, de uma medida da qualidade da arte. A imitacio nao pode servir de tal
medida, pois a característica essencial da arte é o contágio dos outros com os
sentimentos que o artista experimentou, e o contagio de um sentimento nao é
somente náo idéntico a descricño dos acessórlos do que é transmitido, mas está
normalmente banado por detalhes supérfluos. A atencio do receptor da impres—
sáo artística é distraída por todos esses detalhes bem observados, e estes banam
a transmissio do sentimento mesmo quando o sentimento existe.
Avaliar uma obra de arte pelo grau do seu realismo, pela acuidade dos detalhes
reproduzidos, é tao estranho quanto julgar a qualidade nutritiva de alimentos pelas
suas aparéncias externas. Quando prezamos uma obra de acordo com o seu re—
alismo, mostramos somente que estamos falando uña de uma obra de arte, mas
da sua contrafacáo. _
produzirá uma impressáo estonteante, muitas vezes causará até mesmo lágrimas,
mas nao há nenhuma música nisso, porque sentimento nenhum está sendo trans—
mitido. Ainda assim, tais efeitos psicológicos sao constantemente tomados por atte
pelas pessoas do nosso círculo, e isso nao somente em música mas também em
poesia, pintura e drama. E dito que a arte se tomou refinada. Pelo contrário, devido
a busca pelos efeitos, ela se tomou demasiadamente grosseira. Toda hora uma
nova pega é trazida e aceita por toda a Europa, tal como, por exemplo, o Hannelas
Hímmelfabrt de G. Hauptmann, no qual o autor deseja transmitir aos espectadores
a compaixño por uma garota atormentada. Para evocar esse sentimento no públi—
co, 0 autor deveria fazer com que um dos personagens expressasse essa compañ—
xáo de uma forma que afetasse a todos, ou ainda descrevesse corretamente o
sentimentos da garota. Mas ele nao pode ou nio quer fazé—lo, e opta por um outro
mminho, mais complicado na montagem de palco, mas fácil para o autor. Ele faz
a garota morrer no palco; e além disso, para aumentar o efeito psicológico sobre
“05 espectadores, ele extingue as luzes do teatro, deixando o público no escuro,
e ao som de uma música sombría mostra como a garota é atormentada e espanmda
pelo seu pal bébado. A garota se encolhe — grlta — grunhe — e mi. Anjos apa—
recem e levam—na embora. E o público, experimentando uma certa exdtacño
enquanto isso acontece, tim totalmente convencido de que se trata de um verda-
delro sentimento estético. Mas nao há nada de estético em tal excitamento, pois
nao há nenhum contágio de um ser humano pelo outro, mas somente um senti—
mento misto de compaixño por um outro ser humano e autocongratulagáo por nao
ser eu quem está sofrendo: é como o que sentimos quando vemos uma execucáo,
ou como o que os romanos sentiam nos seus circos.
A substituicáo do sentimento estético por um efeito ¿ particularmente evi-
dente na arte musical — a arte que pela sua natureza exerce uma agio fisiológica
imediata sobre os nervos. Em vez de transmitir por meio de uma melodia os sen-
timentos que experimentou, um compositor da nova escola acumula e complica
sons e, ora reforcando—os ora enfraquecendo—os, produz no público um tipo de
efeito fisiológico, que pode ser medido por um aparelho inventado para ese
propósito.1 E o público toma esse efeito Bsioiógico por efeito artístico.
Quanto ao quarto método — 0 do interesse —, este é também freqñentemente
confundido com a arte. Ouve-se dizer muito, nao somente de um poema, de uma
novela ou de uma pintura, mas até mesmo de uma música, que a obra é interes—
sante. O que isso significa? Falar de uma obra de arte interessante significa que
recebemos de uma ob¡a lnformacóes novas pam nós, ou que a obra nao é total-
mente inteligível, e que pouco a pouco, e com esforco, chegamos ao seu signi—
ñcndo e experimentamos entio um ceño piazer no processo da adivinhagio. Em
nenhum dos dois casos o interesse tem algo em comum com a impressio artística.
A arte objetiva contagia as pessoas com o sentimento experimentado pelo artista.
Mas o esforco mental requerido pata capacitar o espectador, o ouvinte ou leitor
a assimilar a nova informado comida na obra, ou a adivlnhar os quebra-mbecas
propostos, acaba bloqueando esse contágio por distraí—lo. E portanto o interesse
94 Leon TOLrtóí
de uma obra nao somente nao tem nada a ver com a sua exceléncia enquanto obra
de arte, como bloqueia mais do que auxilia a impressio artística.
Podemos, numa obra de arte, deparar—nos com o que é poético, realistico,
surpneendente e interesante, mas essas coisas nio podem substituir o essencial
da arte — o sentimento experimentado pelo artista. Ultimamente, na arte das clas—
ses superiores, a maioria dos objetos dados como obras de arte é do tipo que
apenas se assemelha a arte e é desprovida de sua qualidade essencial — 0 sen-
timento experimentado pelo artista. E, em prol da diversio dos ricos, tais objetos
sáo continuamente produzidos em quantidades enormes pelos artesáos da arte.
Diversas condicóes devem convergír para que um homem possa produzir
uma verdadeira obra de arte.
Este homem deve, em primeiro lugar, embasar seu trabalho nos mais altos
conceitos religiosos de seu tempo. Além disso, deve experimentar sentimentos e
ter o desejo e a mpacidade de transmiti-los a outros. B deve, finalmente, ter talento
para uma das diversas formas de arte. Ora, é muito raro que um homem reúna em
si todas essas condicóes. Mas, para produzir sem descanso aquela contrafagño de
arte que passa no presente por arte verdadeira e cuja produg:áo é táo bem paga,
é preciso simplesmente ter talento, coisa corrente e sem qualquer valor. Entendo
por “talento" a habilidade: em literatura, a habilidade de expressar com facilidade
os próprios pensamentos e as próprias sensacóes, anotar e recordar pormenores
típicos. Em artes gráficas, de discernir e recordar Iinhas, formas e cores; em música,
de distinguir intervalos, compreender e recordar uma sucessáo de sons. E, hoje em
dia, basta que um homem possua ese género de talento e saiba escolher uma
especialidade, para que, com auxilio dos métodos de contrafacáo que descrevi,
possa indefinidamente fabricar obras que passam por arte na nossa sociedade. Em
todos os ramos da arte existem regras ou receitas definidas que permitem a pro—
dugáo de obras deste género, sem a intromissáo de nenhum sentimento. E, assim,
o homem de talento, uma vez assimiladas as regras do oficio, pode, a todo ins—
tante, produzir fn'amente, sem sentimentos, obras que mais tarde passaráo por
arte.
Para escrever poemas, um homem de talento literário precisa apenas dessas
qualificacóes: adquirir a habilidade, conforme os requisitos da rima e ritmo, de
usar em vez de uma palavra realmente adequada dez outras significando aproxi—
madamente o mesmo; aprender como tomar qualquer frase que para ser clara tem
apenas uma ordem natural das palavras, e apesar de todos os possíveis deslom—
mentos ainda manter nela algum sentido; e, por último, ser capaz de maquinar,
guiado pelas palavras necessárias para as rimas, alguma semelhanca de pensamen-
tos, sentímentos ou descricóes, para adequar essas palavras. Tendo adquirido essas
qualifieagóes, ele pode incessantemente produzir poemas — curto ou longo, re-
ligioso, amoroso ou patriótico, de acordo com a demanda.
Se um homem de talento literário desejar escreveruma história ou romance,
ele precisa apenas formar o seu estilo — ¡sto é, aprender como descrever tudo que
vé — e se acostumar a se lembrar ou anotar detalhes. Quando tiver se acosturnado
OqueéaArte? 95
a isso, ele pode, de acordo com a sua inclinado ou com a demanda, incessante-
mente produzir romances ou histórias — históricos, naturalistas, sociais, eróticos,
psicológicos, ou até mesmo religiosos, para os quais este último tipo, a moda e a
demanda, estáo comegnndo a se mostrar. Ele pode tomar asuntos de livros ou de
eventos da vida, e pode Copiar as mracten'sticas das pessoas no seu livro a partir
de seus conhecidos.
E tais romances e histórias, basta que eles sejam embelezados com detalhes
bem observados e cuidadosamente anotados, preferencialmente os eróticos, que
serio considerados obras de arte mesmo que possam nao conter qualquer faíscn
de sentimento experienciado.
Para produzir arte em forma dramática, um homem talentoso, além de tudo
o que é exigido para romances e histórias, precisa também aprender a guamecer
os seus personagens com quantas sentengs sagazes e espirituosas forem possi—
veis. Predsa saber como utilizar os efeitos teatrais e como entrelag:ar as acóes dos
seus personagens de modo a nao haver conversas longas, mas tanto mais alvoroco
e movimento quanto for possível sobre o palco. Se o escritor for capaz dessas
coisas, ele produzirá obras dramáticas uma atrás da outra, sem parar, escolhendo
seus assuntos dos relatórios da corte judicial, ou de temas mais recentes da soci-
edade, como o hipnotismo, hereditariedade etc., ou da remota antigúidade, ou
mesmo dos dominios da fantasia.
Na esfera da pintura e escultura é ainda mais fácil para um homem talentoso
produzir imitacóes de arte. Ele precisa apenas aprender a desenhar, pintar e modelar
— especialmente corpos nus. Assim equipado, ele pode continuar a pintar retratos
ou modelar estátuas, uma atrás da outra, selecionando temas de acordo com a sua
tendéncia: mitológica, religiosa, Fantástica ou simbólica. Ou ele pode representar
o que está escrito em palavras: uma coroagáo, uma greve, a Guena Turco—Grega,
cenas de inanigño. Ou, mais comum de todos, ele pode simplesmente copiar
qualquer coisa que achar bonito — de mulher nua a uma bacia de cobre.
Para produzir a arte musical o homem talentoso precisa ainda menos daquilo
que constitui a esséncia da arte, ¡sto é, o sentimento com o qual contagiar os
outros, mas por outro lado ele requer mais labor fisico e ginástica do que qualquer
outra arte, a nao ser que esta seja a danga. Para produzir obras de arte musical ele
precisa pn'meiro aprender a movimentar seus dedos sobre algum instrumento táo
rapidamente quanto aqueles que ¡a alcangnram a mais alta perfeicáo. Depois ele
precisa saber como, em tempos anteriores, a músim polifónim foi escn'ta, precisa
estudar o que sao chamados contraponto e fuga. E, além do mais, precisa aprender
orquestrado, ¡Sto é, como utilizar os efeitos dos instrumentos. Mas, uma vez que
aprendeu tudo isso, o compositor produzirá incessantemente uma obra atrás da
outra: seja música programática, ópera ou mncáo (arquitetando sons correspon—
dendo mais ou menos as palavras), ou músim de cámara, ¡sto é, ele tomará temas
de outros e trabalhará sobre eles de formas deñnidas por meio do contraponto e
da fuga; ou, o que é mais comum de todos, comporá músicas fantásticas, isto é,
tomará a conjuneio de sons que vem a máo e empilhará toda sorte de complimgño
96 Leon Tolslóí
Nota
1. Existe um aparelho por rneio do qual uma Hecha muito sensível, dependendo da tensño
do músculo do braco, India a acño fisiolºgia da música sobre os nervos e os músculos.
CAPÍTULO xn
crítica de arte; 3 O ensino artístico. Quando a arte era ainda universal e somente
—
que os músicos podem imaginar sons, sendo—[he quase possível ouvir aquilo que
léem. Mas os nossos sons imaginán'os nio podem jamais tomar lugar dos sons
reais e um músico precisa ouvir a sua obra para dar a esta uma forma perfeita. Cra,
Beethoven nao ouvia mais nada e, portante, estava impossibilitado de conduzir
suas obras ¿ perfeigño. A cn'tim, porém, tendo reconhecido um grande composi-
tor, apossou-se precisamente de suas obras anormais, a tim de buscar, a todo
custo, belezas extraordinárias. E para ¡ustiñmr tais elogios, pervertendo o verda—
deiro sentido da arte musical, atribuiu a música propriedade de pintar aquilo que
ela nao pode pintar. E subitamente compareceram os imitadores, uma inumerável
falange delas, que se puseram a copiar aquelas obras anormais, obras que Beethoven
escreveu quando estava surdo.
Atrás destes, surgiu Wagner. Em seus escritos de crítica, deu inicio & conexáo
entre as últimas obras de Beethoven e a teoria mística de Shopenhauer, que via
na música a esséncia da própria expresado da Vontade. Depois disto, entregou-se
a composido de uma música ainda mais estranha, fundamentada nesta teoria e
apoiada num sistema de unifion de todas as artes. E de Wagner brotou nova
ñleira de imitadores, ainda mais afastadosda arte: Brahms, Richard Strauss e outros.
Tais sao os resultados da cn'tica. Nao é menos desastrosa que a terceira causa
que contribuiu para perverter a arte do nosso tempo, reñro—me ao ensino artístico.
Desde 0 dia em que a arte, cessando de girar em tomo de um povo, passou
a girar em torno de uma classe rica, tornou-se uma proñssáo. B, desde que se
tornou uma prolissáo, foram inventados métodos para ensiná—la. As pessoas que
escolhiam esta proñssáo, a arte, comegnram a aprender estes métodos e, assim,
formaram-se as escolas proñssionais; cursos de retórica ou de letras, nas escolas
públicas, academias de pintura, conservatórios de música e arte dramática Tais
escolas tém por objetivo o ensinamento da arte! Mas a arte é uma transmissáo a
outros, de um sentimento pessoal e experimentado por um artista. Como ensinar
em escolas uma coisa destas?
Nao há escola que possa provomr num homem um sentimento e muito
menos ensinar a ele como expressar sentimentos de modo particular, que lhe é
natural. E, todavia, é nessas duas coiaas que reside a esséncia da arte.
Tudo o que as escolas podem ensinar ¿ o modo de expressar sentimentos
experimentado por outros artistas, do jeito que os outros artistas os expressaram.
E ¡sto é predsamente o que ensinam as aoolas proñsionais. E esse seu ensinamento,
longe de contribuir para a difusio da verdadeira arte, contribui, ao contrário, para
multiplicar as contrafacóes da arte, cola'* ado mais que todo o resto para des—
truir no homem o intelecto artístico.
Na literatura, ensina-se aos jovens como, sem nada terem para dizer, podem
escrever uma composigño de mais ou menos uma página a respeito de um argu-
mento no qual jamais pensaram e escrevé—la de tal modo que se assemelhe aos
escritos de autores de fama reconhecida.
Em pintura, ensina-se principalmentea desenhar e pintar, segundo cópias ou
modelos. A desenhar e pintar como desenhavam e pintavam os mestres preceden-
OqueéaArte? 101
tes. A representar o nu, ou antes aquilo que menos se vé, ou seja, na realidade
é que o homem preocupado com a realidade tem menos omsiáo de pintar.
Quanto a composicáo, ela é ensinada aos jovens mediante a proposta de
asuntos iguais aos já tratados por mestres célebres.
Igualmente nas escolas de arte dramática, ensina—se aos alunos monólogos
a recitarf exatamente como antes recitavam atores famosos.
A mesma coisa é feita na música. Toda a teoria da música nao é senáo uma
simples repetigáo dos métodos de que já se valeram músicos célebres. Um dia, o
pintor msso Bryulóv, corrigindo o estudo de um aluno seu, fez um par de reto-
ques, de repente, o estudo mediocre assumiu o sentido da vida. “Como é isso?
Apenas um toque e ai está o estudo inteiramente mudadol”, disse o aluno. “E que
a arte comeca onde comeca este toque", responde Bryulóv.
Nenhuma arte dá tanto relevo a justeza dessa idéia' quanto a execugáo musical.
Para que tal execucáo seja artística, vale dizer, para que nos transmita a emocio
do autor, 550 requeridas trés condicóes, para nio mencionar outras. A execucáo
musical nao é artístim senáo quando a nota é justa, e dura exatamente o tempo
prescrito, e produz exatamente a intensidade de som que se requer. A mais insig—
niñmnte alteracáo da nota, a menor mudanga de ritmo, o mais insignificante re—
forco ou enfraquecimento do som destroem a perfeicáo da obra e igualmente sua
faculdade de nos comover. A transmissáo da emocño musical, que parece coisa
simples e fácil de obter, é, na realidade,algo que só se obtém quando o executante
encontra o imperceptível sombreado necessádo ¿ perfeigño. O mesmo acontece
em todas as artes: um pouquinho mais claro, um pouquinho mais escuro, mais
baixo, para a direita ou para a esquerda — na pintura; um pouquinho mais fraco
ou mais forte na entonacáo, um pouquinho mais cedo ou mais tarde — na arte
dramática; um pouquinho omitido, sobre—enfático, ou exagerado — na poesia, e
nao haverá nenhum contágio. 0 contágio é obtido somente quando um artista
encontra aqueles graus infinitamente minúsculos dos quais consiste uma obra de
arte, e somente na exata medida em que ele os encontra. E é quase impossível
ensinar as pessoas por meios externos a acharem esses graus mínimos: eles só
podem ser encontrados quando um homem se entrega aos seus sentimentos.
lnstrugño nenhuma pode fazer o dangrino calcular o tempo exato da música, ou
um cantor ou um violinista acertar exatamente o centro infinitamente minúsculo
da sua nota, ou um desenhista tragar de todas as linhas possíveis somente a única
cometa, ou um poeta achar o único ananjo correto das únicas palavras adequadas.
As escolas, portante, bem podem ensinar o que é preciso para produzir algo de
análogo a arte, porém náo ensinaráo jamais o que é necessário para produzir a
própria arte.
0 ensino das escolas detém—se onde comegn o toque, ou melhor, onde comega
a arte.
Habituar os homens a algo de análogo ¿¡ ane equivale a desabituá-los de
compreender a verdadeira arte. Assim se explica como inexistem artistas piores do
que os que passaram pela escola e que aí obtiveram éxitos. As escolas proñssio-
102 [con Tolstóí
nais produzem uma hipocdsia da arte exatamente análoga ¿ hipocrisia das religi-
óes, que produzem os seminários, as escolas de teología etc. Assim como é im-
possivel uma escola fazer de um homem um educador religioso, de igual modo
é impossível ensiná—lo a tornar—se um artista. As escolas de arte exercem influéncia
duplamente funesta. Em primeiro lugar, destroem a capacidade de produzir arte
verdadeira naqueles que tiveram a desgraga de lá entrar e perder sete, oito anos
de vida. Em segundo lugar, produz uma quantidade enorme daquelas contrafa—
qóes de arte que pervertem o gosto das massas e sio preparadas para invadir o
mundo inteiro.
Nao pretendo que os jovens engenhosos nao devam conhecer os métodos
das várias artes, os quais foram elaborados por grandes artistas que os precederam.
Para ensiná—los, porém, bastaría que em toda escola elementar fossem criados
cursos de desenho e música e os jovens de boa vomgáo, ao sair deles, pudessem
aperfeigoar-se em plena independéncia na prátim de sua arte.
Fimm pois consolidadas trés coisas: a proñssionalizagñodos artistas, a critica
de arte e o ensino das artes, que tiveram como conseqiiéncia, desde logo, tornar
a maior parte dos homens incapaz até de compreender o que é a arte e de prepará-
los para aceitar como arte as mais grosseiras contrafagóes.
CAPÍTULO x…
coloca—o sobre a coisa que deve representar a bigoma, bate nela e canta: “Heiho!
heiho! heiho! Ho! ho! Aha! oho! aha! Heiaho! heiaho! heiaho! Ho! ho! Hahei! hoho!
hahei!" E termina assim o primeiro ato.
Toda essa coisa era de tal modo initante para mim que eu tentava manter—
me quieto e, assim que terminou o ato, quis ir embora. Mas os amigos que me
acompanhavam suplioaram que eu ñmsse, dlsseram-me que nao era possível jul—
gar uma ópera pelo primeiro ato e que o segundo, sem dúvida nenhuma, me
agradaria mais.
Todavia, nada mais tinha eu que aprender, no tocante a questáo pela qual
viera ao teatro. Quanto ao valor artístico do drama de Wagner, estava eu, nesse
momento, tio seguro quanto ao meu parecer, quanto estivera no tocante a ava-
liacáo do romance daquela senhora, quando ela lem para mim a cena entre a
donzela de mbelos longos e o cnvalheiro de chapéu emplumado a Guilherme Tell.
De um autor capaz de compor cenas daquele género, que ofendiam todos os
sentimentos estéticos, nada havia que esperar. Podía—se estar certo, sem ouvir mais
nada, que qualquer coisa escrita por tal autor seria arte ruim, uma vez que ele,
evidentemente, náo sabia o que fosse uma verdadeira obra de arte. Contudo, eu
notava, em volta de mim, uma admiracáo, um éxtase geral, e, para descobri_r a
causa desse éxtase, resolvi ouvir ainda o segundo ato.
No segundo ato, noite. Depois alba. De resto, de um modo geral, toda a
producáo é decorada de lámpadas, nuvens, luar, trevas, fogos mágicos, estrondos
de trováo etc. A cena representa um bosque e ao fundo divisa-se uma caverna. Á
entrada da mvema senta-se outro ator, de malha, que representa outro gnomo.
Entra o deus Wotan, sempre com sua lang:a e roupa de viajante. Novamente, a
orquestra faz ouvir o seu motivo desta vez junto a outro, do tom mais baixo
possível. Esse motivo de sons graves profundos designa o dragño. Wotan desperta
o dragáo e os mesmos sons graves repetem—se ainda com maior profundidade. O
dragáo comegn dizendo que quer ir dormir, mas decide-se mais tarde mostrar-se,
na soleira da caverna. Este dragáo é representado por dois homens. Veste-o uma
pele verde, esmmosa. Uma de suas extremidades meneia longa muda de serpente,
na outra escanmra uma boca de crocodilo que chispa fogo. E esse dragáo — que,
sem dúvida, se pretende tenivel e, na verdade, até seria capaz de apavorar criancas
de 5 anos — fala com uma voz de terrivel profundidade. Tudo isso é tño estúpido
e de tal modo semelhante ao que é exibido em barraquinhas de feira que seria
oportuno indagar como é que pessoas com mais de sete anos podem assistir a isso
com tanta seriedade bem como milhares de pessoas semicultas podem tirar a olhar
e a ouvir toda esa bobagem com piedosa atencáo, enlouquecendo de prazer.
Toma a comparecer Siegfried, com o corno, e seguido de Mime. A orquestra,
naturalmente, acena com o respectivo Leítmotiv e, entre tempos, póe—se a discutir
o tal ponto, se Siegfried sabe ou nao sabe o que vem a ser o medo. Depois disso
vai-se Mime e tem início uma cena, segundo as intencóes, eminentemente, poé—
ticas. Siegfried, sempre com a malha, estende-se numa pose destinada a parecer
bela e, alternativamente, aula—se ou fala consigo mesmo. Devaneia, ouve o canto
108 Leon Tolstóí
dos pássaros e deseja imitá-los. Para ese lim, corta um canico com sua espada e
dele faz uma flauta. A madrugada vai clareando, cantam os passarinhos. Siegfried
tenta imitar os pássaros. E a música da orquestra imita o canto dos pássaros, mas
sem esquecer de fazer ouvir o leitmotív das pessoas e objetos de que se fala. E
Siegfried, náo conseguindo tomr direito a flauta, decide—se a tocar de preferéncia
o como.
Essa cena é insuportável. De música, ¡sto é, de uma arte que nos transmite
um sentimento experimentado pelo autor, em tudo isso nao existe dela o mínimo
trago. E acrescento que jamais se imaginou nada de mais antimusical. Parece-nos
ouvir, indefinidamente, uma esperanca de música, seguida sempre por uma desi-
lusáo.
Inicia—se, centenas de vezes, algo de musical, mas sáo inicios táo breves, táo
atravancados de complicado de harmonia e metais, tao carregada de efeitos
contrastantes, tao obscuros e tao bruscamente tranmdas, sendo o que sucede em
cena de uma falsidade, de tal modo abominável, que se custa a perceber tais
embrióes musicais e mais ainda a sentir emocáo. E acima de tudo, do principio ao
fim, em todas as notas, é, digamos, palpável a inteng:áo do autor de que nao
vejamos nem oucamos Siegfried nem os pássaros, mas somente um alemáo de
idéias restritas, um alemáo desprovido de gosto e de estilo, o qual, havendo for-
mado um grosseiro conceito da poesia, aplica-se a transmiti-lo pelos meios mais
primitivos e rústicos.
Sabe—se qual o sentimento de desconñang e que resisténcia costuma pro-
vocar a presenca de um trabalho que revele com demasiada evidéncia o partido
tomado pelo autor. Basta que um novelista diga logo de inicio “preparem-se para
chorar ou para rir”, para que estejamos certos de que nao choraremos nem rire-
mos. Mas ao ver que um autor nos impóe que nos comovamos por uma coisa que
nada tem de comovente, que é antes ridícula ou repugnante, e quando vemos,
além disso, que este autor está plenamente convencido de nos haver conquistado,
experimentamos uma sensacáo penosa, análoga aquela que suscitaria em nós uma
velha em traje de baile, que se comportasse conosco como uma namoradeira.
Tal foi a impressáo que experimentei, durante a tal cena, enquanto via ao
meu redor uma multidio de tres mil pessoas, que nao apenas assistiam aquela
absurdidade sem lamentar—se, mas acreditavam no dever de ser entusiastas.
De todo modo, resignei-me ainda a cena seguinte, ¿ qual comparece o monstro
com seu acompanhamento de notas profundas mescladas ao Leitmotív de Siegfried.
Porém, após o combate com o monstro, os mugidos, 05 golpes de espada e as
labaredas etc., nao pude mais resistir e esmpel do teatro, com um sentimento de
repugnáncia de que ainda neste momento nao consigo esquecer.
lnvoluntariamente, pensei num camponés, homem sábio, instruido, respei-
tável, um daqueles homens realmente religiosos que cónheco, entre nossos cam-
poneses; imaginava a tenível perplexidade que sentiría um tal homem se precisas—
se assistir ao espetáculo que eu vira. Que diria ele, se viese a saber quanto di-
nheiro se dispendera para aquela representado e vendo aquele auditório, vendo
OqueéaArte? ¡09
Sei que a maion'a das pessoas — náo somente aquelas consideradas inteli-
gentes, mas mesmo aquelas que sao muito inteligentes e capazes de compreender
os problemas mais difíceis da ciencia, matemática ou ñlosoña — raramente con-
segue discernir até mesmo a mais simples e óbvia verdade se houver algo que as
obrigue a admitir a falsidade das conclusóes que tenham formado, talvez com
multa diñculdade — conclusóes das quais elas se orgulham, as quais ensinaram
a outras, e sobre as quais construíram suas vidas. E portanto tenho poums espe-
rangs de que o que menciono como sendo a perversáo da arte e do gosto na
nossa sociedade será aceito ou mesmo considerado seriamente. No entanto, devo
relatar por completo a conclusáo inevitável a que a minha investigaci—o sobre a
questño da arte me levou. Essa investigacáo me Ievou ¿ conviccáo de que quase
tudo que a nossa sociedade considera ser arte, boa arte, longe de ser arte real, boa
e única arte, náo é sequer arte de nenhum modo, mas somente uma contrafaqño
dela. Essa posicáo, eu sei, parecerá muito estranha e pamdoxal, mas, uma vez que
concebemos a arte como sendo uma atividade humana por meio da qual algumas
pessoas transmitem seus sentimentos a outras (e nao um servico da Beleza, ou
uma manifestacáo da Idéia, e assim por diante), devemos inevitavelmente admitir
essa conclusáo posterior também. Se é verdade que arte é uma atividade por meio
da qual um homem, tendo experimentado um sentimento, transmite intencional-
mente a outros, entáo temos inevitavelmente que admitir também que de tudo que
entre nós é rotulado de arte (a arte das classes superiores) — de todos aqueles
romances, histórias, dramas, comédias, quadros, esculturas, sinfonías, óperas,
operetas, balés etc., que professam ser obras de arte —, dificilmente um em cem
mil procede de uma emocio sentida pelo seu autor, todo o resto sendo nada mais
que contrafacóes manufaturadas da arte, nas quais o empréstimo, a imitacáo, os
efeitos e o interesse substituem o contágio do sentimento.
Que a proporcáo da producáo da arte verdadeim para as contrafacóes é de
um para algumas centenas de milhares ou até mais, pode ser visto pelo seguinte
cálculo: li em algum lugar que artistas pintores, só em Paris, somam 30.000; haverá
provavelmente um mesmo tanto na lngratena, na Alemanha, e um mesmo tanto
na Rússia, ltália, e nos países menores juntos. De modo que no total haverá na
Europa, digamos, 120.000 pintores; e há provavelmente o mesmo tanto de músicos
e o mesmo tanto de artistas literários. Se esses 360.000 individuos produzem trés
I ¡4 Leon Tolstóí
obras por ano cada um (e muitos deles produzem dez ou mais), entáo cada
ano resulta mais de um milháo das chamadas obras de arte. Quantas entáo
teriam sido produzidas nos últimos dez anos, e quantas em todo este tempo,
desde que a arte das classes superiores rompeu com a arte do povo? Eviden—
temente milhóes. Ainda assim, quem, de todos os conhecedores da arte, re—
cebeu impressóes de todas essas pseudo-obras de arte? Sem mencionar as
classes trabalhadoras que nao tém nenhuma concepcáo dessas producóes,
nem mesmo as pessoas das classes superiores podem conhecer uma em mil
de todas elas, e nao podem se lembrar nem daquelas que tenham conhecido.
Esses trabalhos todos aparecem a guisa da arte, nao produzem impressóes em
ninguém (exceto quando eles servem de passatempo para uma multidáo oci—
osa de pessoas ricas) e se desvanecem por fim.
Em resposta a isso é usualmente dito que sem este número enorme de
tentativas malsucedidas nao teríamos as verdadeiras obras de arte. Mas tal
raciocinio é como se um padeiro, em resposta a uma repreensáo de que o seu
pao estava ruim, dissesse que se nio fossem pelas centenas de páes malfeitos
nao haveria nenhum bem-feito. E verdade que onde há ouro há também muita
areia, mas isso nao pode servir de razáo para falar um bocado de nonsense
para dizer algo sábio.
Estamos rodeados por produgóes consideradas artísticas. Milhares de
versos, milhares de poemas, milhares de romances, milhares de pegas teatrais,
milhares de pinturas, milhares de pecas musicais se seguem um atrás do outro.
Todos os versos descrevem amor, ou natureza, ou o estado de alma do autor,
e em todos eles sáo observados rimas e ritmos. Em teatro, os dramas e as
comédias sio todos esplendidamente encenados e representados por atores
admiravelmente treinados. Todos os romances sáo divididos em capítulos; todos
eles descrevem amor, contém situacóes efetivas e descrevem corretamente os
detalhes da vida. Todas as sinfonías contém allegro, andante, scberzo e finale,
todas consistem em modulacóes e acordes e sio executadas por músicos al—
tamente treinados. Todos os quadros, em molduras de ouro, representam
notavelmente rostos e diversos acessórios. Mas, entre essas producóes nas
várias ramificag6es da arte, há em cada um dos ramos uma, entre centenas de
milhares, que náo é somente algo melhor que o resto, mas que difere das
outras como um diamante difere da imitacio. Esta é sem preco, as outras nio
somente nao tém nenhum valor, como sao piores do que nao ter valor, pois
decepcionam e pervertem o gosto. E ainda externamente elas sáo, para um
homem de percepcio artística pervertida ou atrofiada, precisamente iguais.
Na nossa sociedade, a dificuldade de reconhecer verdadeiras obras de
arte e intensificada ainda mais, pelo fato de que a qualidade externa da obra
em producóes falsas nao é somente nada pior, mas freqiientemente melhor,
do que em producóes verdadeiras; as contrafaqóes sáo freqtientemente mais
efetivas do que as verdadeiras, e os seus assuntos, mais interessantes. Como
alguém discriminará? Como alguém distinguirá uma producáo, de nenhum
OqueéaAñe? 115
;uém fimria provocado com um homem que o considerasse tao naíve que nem
nesmo escondía o truque pelo qual ele pretendia envolvé—lo. Desde as primeiras
liflh3$ pode—se ver a intencio com a qual o livro foi escrito, os detalhes todos
entáo se tomam supérfluos, e o leitor se sente entediado. Sobretudo, nota—se que
todo o tempo o autor nio teve Outro sentimento senáo um desejo de escrever uma
história ou um romance, e por isso nio se rºecebe nenhuma impressao artística. Por
outro lado nio pude me esquecer do como de criancas e de pintinhos do autor
desconhecido, porque eu fora contagiado de imediato pelo sentimento que o
autor evidentemente experienciou, reevocou nele e o transmitiu.
Vasnetsóv é um dos nossos pintores russos. Ele pintou quadros eclesiásticos
na Catedral de Kiev e todos o elogiam como o fundador de algum novo e elevado
tipo de arte cristá. Ele trabalhou naqueles quadros por dez anos, foi pago com
dezenas de milhares de rublos por eles, e eles sáo todos simplesmente más imi-
tacóes de imitacóes, destituidos de qualquer faísm de sentimento. E este mesmo
Vasnetsóv uma vez fez um quadro para A Codema (no qual é contado como um
filho se compadeceu da codoma que viu o seu pai matar) de Turgueniev mostran—
do 0 menino adormecido com o lábio superior fazendo beico, e sobre ele, como
um sonho, a codoma. E esse quadro é uma verdadeira obra de arte.
Na Academia Inglesa de 1897, dois quadros foram exibidos juntamente; um
deles, de _].C. Dollman, era a tentacio de Santo António. 0 Santo está de joelhos
remndo. Atrás dele se póem uma mulher nua e uns animais. E aparente que a
mulher nua tenha agradado muito o artista, mas que António náo era, defini-
tivamente, a sua preocupacáo, e que longe da tentacáo ser terrível para ele (o
artista), é altamente agradável. Portanto, se é para haver qualquer arte nesse quadro,
é muito obscena e falsa. Depois, no mesmo livro de quadros académicos, aparece
um quadro de Langley, mostrando um menino pedinte perdido, que fora eviden-
temente chamado a entrar por uma mulher que se compadeceu dele. O menino,
arrastando pobremente os seus pés nus por baixo do banco, está comendo; a
mulher está olhando, provavelmentepensando se ele náo querer—á um pouco mais;
e uma menina de mais ou menos 7 anos, inclinada sobre o braco, está olhando
séria e cuidadosamente, nao tirando os olhos do menino faminto e evidentemente
compreendendo, pela primeira vez, oque é a pobreza e que desigualdade há entre
as pessoas, e perguntando a si mesma por que a ela tudo é fornecido, enquanto
este menino anda desmlco e faminto? Ela sente pena e ao mesmo tempo conten-
tamento, e ela ama tanto o menino quanto a bondade... Sente—se que o artista
amou esta menina e que ela também ama. E esse quadro, de um artista que, acho,
nao é muito conhecido, é uma admirável e verdadeira obra de arte.
Lembro—me de ter visto uma apresentacáo de Hamlet de Rossi. Tanto a pró-
pria tragédia quanto o ator que fez o papel principal sao considerados por nossos
críticos representantes máximos da suprema arte dramática. E ainda assim, tanto
do tema do drama quanto da performance, eu experimentei todo o tempo aquele
tormento peculiar que é causado por falsas imitacóes das obras de arte. Mas eu li
recentemente sobre uma performance teatral em uma tribo selvagem — os voguls.
1 ¡8 Leon TOLstóí
Tendo reconheddo certas producóe5 como sendo obras de arte, uma vez
que ¿¡ exceléncla de sua forma permite cons|dera-Iás como sendo
contagiosas, consldera agora A QUALIDADE DOS SENHMENTOS QUE
FORMAM 0 TEMA DESSAS OBRAS. Melhor o sentimento, melhor ¿¡ arte.
A multldáo aculturada. A percepcáo religiosa da nossa era. Novos ¡deals
colocam novas exlgénclas na arte. A arte une. A arte religiosa. A arte
universal. Ambas cooperam para um único resultado. A nova apredacáo
da arte. Arte mi Exemplos. Belem, embora esta nao possa fornecer
qualquer paero da arte, tem o seu lugar legítimo na arte. A Nona Sin/bnia
de Beethoven.
ela acusa a vida dos homens que a agride, que ela contradiz.
Se na humanidade existe progresso, ou antes um caminho pelo qual se
avanga, deve haver necessariamente qualquer coisa que designe aos homens
a direcáo a seguir nesse caminho. Ora, sempre tem sido essa a tarefa das
religióes. Toda a história demonstra que o progresso da humanidade sobre-
veio sempre sob a direcáo de uma religiáo. Mas, se a raca nao pode progredir
sem a direcáo da religiáo — e o progresso sempre acontece, existindo também
no nosso tempo —, entáo deve haver uma religiáo do nosso tempo. E, se
nossa época, como todas as outras, tem sua própria religiáo, é sob o funda-
mento dessa religiáo que a nossa arte deve ser avaliada e devem ser estimadas
e encorajadas as obras de arte brotadas da religiáo de nosso tempo, enquanto
todas as obras contrárias a essa religiáo devem ser condenadas e todo resto
da arte deve ser tratado com indiferenca.
E a consciéncia religiosa de nosso tempo, em termos gerais, consiste em
reconhecer que nossa felicidade material e espiritual, individual e coletiva,
momentánea ou permanente, reside na fraternidade de todos os homens, na
nossa uniáo por uma vida em comum. Essa consciéncia náo só se afirma sob
as formas mais diversas, pelos homens de nosso tempo, como constitui o lio
condutor a todo trabalho da humanidade, trabalho este que tem por objeto,
de uma parte, a supressáo de todas as barreiras físicas e morais, que se opóem
¿ uniáo dos homens, de outra, o fortalecimento dos principios comuns a todos
os homens, que os possam unir a todos, numa mesma fraternidade universal.
8, portanto, sobre o fundamento dessa consciéncia religiosa que devemos
avaliar todas as manifestacóes de nossa vida e, entre essas, a nossa arte, dis—
tinguindo entre todos os demais produtos desta arte aqueles que expressam
sentimentos concordantes com nossa consciéncia religiosa e rejeitando e
condenando todos os que sio contrários a essa consciéncia.
O erro principal cometido pelas classes superiores da sociedade ao tem-
po da assim chamada Renascenga, e que continuamos a cometer até hoje, nao
reside tanto em haver o homem cessado de prezar o sentido da arte religiosa,
mas antes em haver ele estabelecido, no lugar da arte religiosa desaparecida,
uma arte indiferente, que tem a ñnalidade do simples divertimento e nio merece
ser tao estimada e encorajada.
Um dos padres da Igreja dizia que a pior desgraca para os homens nio
é a de nao conhecer Deus, mas a de haver colocado no lugar de Deus algo
que nao é Deus. Em arte, estamos no mesmo caso. A pior desgraca das clases
de nosso tempo nio é o faltar-lhe uma arte religiosa, mas o fato de, ao posto
elevado onde nio merecia estar, se nao só esta arte, a única importante digna
de ser encorajada, exaltar-se uma arte indiferente, ou, mais freqñentemente,
funesta, que obedece ¿ ñnalidade de divertir alguns homens e, por isso mesmo,
é absolutamente contrária ao principio cristáo universal, o qual forma o fundo
da consciéncia religiosa de nosso tempo.
Sem dúvida, a arte que satisfarla as aspiracóes religiosas de nosso tempo
OqueéaArte? 127
este conceito crítico, náo derivando mais de nossa consciéncia religiosa, perdeu
para nós todo signiñmdo, tanto assim que, por amor ou por foros, somos cons—
trangidos a nos separar dele. A esséncia da consciéncia cn'stá está em reconhecer
em cada homem sua procedéncia divina e, como corolário desta procedéncia, a
uníá'o de todos os homens com Deus e entre si, segundo está escrito no Evangelho
(S. Joáo XVII, 21), disso resultando que a única matéria verdadeira da arte cristá
devem ser todos os sentimentos mpazes de efetuar a uniáo dos homens com Deus
e entre si. Essas palavras, a uniáo de todos os homens com Deus e entre si, por
muito obscuras que possam parecer a mentes ofuscndas pelos preconceitos, tém
um sentido perfeitamente claro. Signiñmm que a uniáo cristá, contrariamente a
uniáo parcial exclusiva de alguns homens, une entre si todos os homens, sem
excedo. Ora, é propriedade essencial de toda arte unir os homens entre si. Toda
arte tem como efeito que os homens que recebem o sentimento transmitido pelo
artista encontram—se, em virtude deste fato, unidos primeiro ao próprio artista e
depois a todos os outros homens que recebem a mesma impressáo. A arte nio-
cristá, no entanto, unindo entre si alguns homens, precisamente por isso ¡sola
esses homens do resto da humanidade, de tal modo que esta uniáo parcial é musa
do afastamento destes outros homens. A arte crista, ao contrário, une todos os
homens, sem excecáo.
A arte, toda arte, tem essa característica que une as pessoas. Toda arte musa
naqueles aos quais o sentimento do artista é transmitido a uniáo em alma com o
artista e também com todos os que recebem a mesma impressáo. Mas a arte nao-
cn'stá, enquanto une algumas pessoas, faz dessa mesma uniáo uma causa da se—
parado entre esas pessoas unidas e os outros, de modo que a uniáo desse tipo
é freqiientemente uma fonte nao simplesmente da divisáo mas até mesmo da
inimizade frente a outros. Assim é toda arte patriótica, com os seus hinos, poemas
e monumentos; assim é toda arte da Igreja, ¡sto é, a arte de certas seitas, com as
suas imagens, estátuas, procissóes, e outras cerimónias lomis. Tal arte é atrasada
e náo-cristá, unindo as pessoas de uma seita somente para separá-las ainda mais
nítidamente dos membros de outras seitas, e até mesmo para colocá-los em rela—
cóes de hostilidade uns com os outros. A arte cristá tio—somente tende a unir
todos, sem excedo, tanto por evocar neles a percepgáo de que cada homem e
todo homem se póe numa relacáo semelhante frente a Deus e frente a seu vizinho,
ou por evocar neles sentimentos idénticos,os quais podem mesmo ser exatamente
os mais simples, desde que nao sejam repugnantes ao cristianismo e sejam naturais
a todos, sem excegáo.
A boa arte cristá de nosso tempo pode ser ininteligível as pessoas devido as
imperfeicóes na sua forma ou porque os homens nao estáo atentos a isso, mas ela
deve ser tal que todos os homens possam experienciar os sentimentos que trans—
mite. Deve ser arte nao de algum único grupo de pessoas, ou de uma classe, ou
de uma nacionalidade, ou de uma seita religiosa, ¡sto é, nao deve transmitir sen-
timentos acessíveis somente ao homem edumdo de uma certa maneira, ou somen-
te a um aristocrata, ou a um mermdor, ou somente a um russo, ou a um nativo
OqueéaArte? 129
Notas
]. Neste quadro os espectadores no anfiteatro romano estío mostrando seus polegares para
baixo para mostrar que eles gostariam que o gladiador denotado fosse morto. (Aylmer
Maude)
2. Ao oferecer como exemplos de arte aquelas obras que parecem a mim as melhores, nao
atribuo nenhuma importancia especial a minha selecño, pois, além de ser insuficientemente
informado em todos os ramos da arte, pertenco a clase de pessoas cujo gosto já foi pervertido
pelo falso treinamento. E, portanto, os meus hábitos amigos, solidificados, podem fazer
com que eu erre, e eu passo tomar por mérito absoluto a impressño em mim produzida
por uma obra produzlda na minha juventude. O meu único objetivo em mencionar exemplos
de obras desta ou daquela classe ¿ tornar mais claro o que quero dizer e mostrar como,
com a minha visño presente, entendo a exceléncla em arte com relacao ao seu tema. Devo,
além disso, mencionar que eu atribuo as minhas próprias producóes artísticas a categoria
de má arte, exceto pelo Deus vé a Verdade mas£.pem, que procura um lugar na primeira
clase, e Um Prísioneím do Cáucaso, que pertence a segunda.
CAPÍTULO xvu
¡menso dano. Após haver, nas academias, nos colégios e nos conservatón'os,
aprendido os meios de contrafazer a arte, pervertem—se de tal modo que se tomam
inmpazes de conceber a arte verdadeira, e isso para sempre. Sáo eles que contri—
buem para a difusáo da arte contrafeita, trivial ou depravada da qual está cheio
este mundo.
A segunda conseqiiéncia, nao menos funesta, do mau funcionamento da arte
é que, ao produzi-la em condigóes assim terríveis, o exército dos artistas de pro—
ñssáo proporciona aos ricos a possibilidade de levar a vida que levam, outrossim,
contrária aos principios que professam. Viver como vive a gente rim e ociosa de
nosso tempo, especialmente as mulheres afastadas da natureza e dos animais, em
condigóes artificiais, corri os músculos atroñados ou deformados pela ginástica,
Oquee'azirte? ¡37
com a energia vital incuravelmente debilitada; eis o que nao sen'a possível sem
aquilo a que chamamos arte. Somente essa pretensa arte oferece o divertimento
e a distragño que desviam nossos olhos dos absurdos de nossa vida e nos salvam
do tédio que dela provém. Retirem dos ricos ociosos 0 teatro, os concertos, as
exposicoes, o piano, os romances, de que se ocupam na certeza de se dedicarem
a ocupacóes requintadas e estéticas; retirem os mecenas, que compram quadros,
que encorajam músicos, que compram pao para os literatos; retirem-lhes a possi—
bilidade de proteger esta arte que créem tao importante e nao terio mais condi-
cóes de continuar vivendo, morreráo de tristeza e tédio e reconheceráo todos a
absurdidade e a imoralidade de seu modo de viver. Somente a ocupacáo com o
que entre eles é considerado arte possibilita-lhesde continuar vivendo, infringin-
do todas as condicóes naturais, sem se aperceber do vazio e da crueldade de suas
vidas. E esse fmanciamento pago a maneira falsa de viver que busmm os ricos é
a segunda conseqiiéncia, e séria, da perversáo da arte.
Uma terceira conseqiíéncia da perversáo da arte é a confusáo e a perturbacáo
que ese mau funcionamento suscita na mente dos jovens e da gente do povo, nas
pessoas que nao foram pervertidas por teorias mentirosas, em nossa sociedade. Os
mmponeses e os jovens tém um conceito bem definido do que merece ser cen-
surado ou elogiado. Segundo 0 instinto popular e o dos jovens, o elogio nao
compete de direito senáo & forgn física (Hércules, os heróis e os conquistadores)
ou a forca moral (Sakya Muni, que renuncia a beleza e ao poder para salvar os
homens; Cristo, que mon-e na cruz pela verdade que professa; os santos e mártires
etc.). Sáo nocóes de uma clareza perfeita. As almas simples e retas compreendem
que é impossivel nao respeitar a forca fisica, pois ela impóe respeito, por si. E
tampouco pode—se deixar de respeitar a forga moral do homem que trabalha para
o bem e sente—se por ela atraído com todo o seu ser interior. Mas que essas almas
simples percebem que, além desses homens respeitados pela sua forca física e
moral, existem outros, mais respeitados, mais admirados, mais recompensados do
que todos os heróis da forgn e do bem, e isso simplesmente porque sabem cantar,
dancar e escrever versos. Eles véem que os cantores, bailarinos, pintores e literatos
ganham milhóes, que sao reverenciados mais do que os santos. Estas almas sim-
ples — os jovens e os camponeses — sentem crescer nelas a confusio das idéias.
Quando, cinqtientaanos após a morte de Púshkin, suas obras foram divulgadas
entre o povo e erigiram-lhe uma estátua em Moscou, recebi mais de dez cartas de
mmponeses que perguntavam por que ele era exaltado. Há poucos dias um ho—
mem instruido de Saratov veio a Moscou a lim de repreender o clero por haver
aprovado o levantamento da estátua do senhor Púshkin.
De falo, imaginemos apenas 0 estado mental de um homem do povo que
leia em seu jornal e saiba, por ouvir dizer, que o clero, o governo e todos os
melhores homens da Rússia ergueram, entusiasmados, um monumento a um gran-
de homem, a um benfeitor, a uma glória nacional, Púshkin — de quem ele jamais
ouviu falar até o momento. Apressa—se, pois, a ler ou a fazer com que alguém lhe
leia suas obras. Imagine—se agora sua perplexidade ao descobrir que Púshkin foi
138 Leon Tolstóí
homem de hábitos mais que levianos, que morreu num duelo, ou antes, enquahto
tentava matar outro homem e que todo seu mérito consiste em ter escrito versos
falando de amor, que eram freqiientemente muito indecentes.
0 homem do povo entende que os heróis como Alexandre, 0 Grande, Gengis
Khan ou Napoleáo tenham sido grandes homens, porque sente que todos eles
teriam podido aniquilá-lo, a ele e a milhares de outros semelhantes a ele. Entende
até que Buda, Sócrates e Cristo tenham sido grandes, pois sente e sabe que ele
próprio e todos os homens deveriam assemelhar-sea eles! Mas de que modo pode
um homem ser grande por haver escrito versos que falam de amor as mulheres,
eis uma coisa que, absolutamente, nio pode entender.
E a mesma perplexidade deve produzir—se no cérebro de um camponés bretáo
ou provencal, ao ouvir que se quer erigir um monumento, uma estátua, como as
que se erguem ¿ Virgem, e se quer erguer a Baudelaire, o autor de Les Fleurs du
Mal e a Verlaine, um devasso que escrevia versos incompreensiveis. E que descon—
certo surgirá no cérebro da gente do povo ao ouvir que a Patti1 ou a Taglione2
recebem 10 mil [iras por temporada e que existem autores de romances que ga-
nham igual soma por saberem como se descrevem cenas de amor.
Igual fenómeno se manifesta no cérebro dos jovens. Recordo-me de, em
outros tempos, haver experimentado, eu mesmo, essa perplexidade e essa penur—
bagño. E só me resignei a essa exaltacáo dos artistas ao nivel de heróis e santos,
abáixando nos meus próprios valores a importáncia da exceléncia moral, e atribu-
indo um significado falso, nao-natural, a obras de arte. E uma confusáo semelhan—
te deve ocorrer na mente de cada cn'anca e de cada homem do povo quando fica
sabendo das estranhas honrarias e prémios que sao generosamente oferecidos aos
artistas. Essa é a terceira conseqiiéncia da falsa relagáo que a nossa sociedade
mantém frente a arte.
Uma quarta conseqiiéncia disto está em que os homens das classes superi-
ores, ao verem reproduzir—se com freqiiéncia cada vez maior o contraste entre a
beleza e o bem, ambam por considerar o ideal da beleza como o mais elevado
entre os dois e desvinculam-se, assim, dos deveres da moral. lnvenendo os papéis,
ao invés de reconhecer que a arte por eles admirada é coisa inferior, eles preten—
dem que, ao contrário, a moral, precisamente, seja coisa inferior e despojada de
significado para seres que almncaram o grau de desenvolvimento em que acredi-
tam estar eles próprios.
Essa conseqiiéncia da perversáo da arte já se ñzera sentir há algum tempo
em nossa sociedade, mas, no presente, tomou um desenvolvimento extraordiná-
rio, gracas aos escritos do profeta Nietzsche, aos paradoxos dos demdentistas e
dos estetas ingleses os quais, a exemplo de Oscar Wilde, tomam de boa vontade
como argumentos de seus escritos a subversio da moral e a apoteose da perver—
sidade.
Esse ensinamento da arte encontrou seu contrapeso no ensino filosófico.
Ultimamente, recebi da América um Iivro intitulado The Survival of the Fittest (A
Sohrevívéncia do MelhorAdaptado), ou a Philosophy ofPower (Filosofía do Poder),
O que é a Arte? 139
por Ragner Redbeard (Chicago, 1896). A idéia fundamental desse livro, expressa
no tim do prefácio do editor, é que seria um absurdo avaliar mais além do bom,
segundo a falsa filosofia dos profetas hebreus dos “messias lacrimosos”. O direito,
para ese autor, funda—se unicamente na foros. Todas as leis e preceitos que en-
sinam a nao fazer aos outros o que nao queremos que nos facam, tudo isso, por
si só, nao tem sentido e nem serve para dirigir os homens, senáo mediante um
acompanhamento de pauladas, espadeiradas e prisóes. O homem verdadeiramen—
te livre nao deve obedecer a lei nenhuma, humana ou divina. Toda obrigacáo é
um indicio de degenerescéncia. A auséncia de obrigagóes é o distintivo dos heróis.
Os homens precisam deixar de crer que estao vinculados a erros, imaginados para
os prejudimr. O universo inteiro é um campo de batalha. A justica ideal está no
seguinte: os vencidos devem ser explorados, torturados e desprezados. O homem
livre e audaz pode conquistar o mundo. B, como conseqiiéncia, os homens devem
estar eternamente em guerra, pela vida, pelo solo, pelo amor, pelas mulheres,
pelo poder e pelo ouro. A Terra toda com seus frutos é “a presa do mais atrevido”.
0 autor chegou evidentemente sozinho, independentemente de Nietzsche,
as mesmas conclusóes que sao professadas por novos artistas.
Essas idéias, assim expostas sob forma científica, nao podem senáo causar
escándalo. Na realidade, porém, acham-se fatal e implícitamente contidas nos
conceitos que apontam a arte, a beleza como objetivo. Foi a arte de nossas classes
superiores que produziu e desenvolveu em certos homens este ideal do super—
homem, embora este mesmo ideal tenha sido o de Nero, 0 de Stenka Razine3, na
Rússia, o de Gengis Khan, Robert Mamire', o de Napoleáo e o de todos os seus
pares, aventureiros saídos do nada. Fimmos aterrorizados ao pensar no que
aconteceria se um semelhante ideal e a arte por ele sugerida se difundissem nas
massas populares. E, precisamente, comecamos nós a difundí—la também lá.
Finalmente, o mau funcionamento da arte apresenta uma quinta conse-
qiiéncia: a arte ruim, que floresce entre as nossas classes superiores, as perverte
diretamente, pelo seu poder de contagio artístico, reforqando nelas os mais de-
testáveissentimentos, no que toca a felicidade dos homens, quais sejam, a su-
persticáo, o patriotismo, a sensualidade.
Observe cuidadosamente as causas da ignorñncia das massas, e vocé poderá
ver que a causa principal nao reside de nenhum modo na falta de escolas e
bibliotecas, como estamos acostumados a supor, mas naquelas supersticóes, tan-
to as eclesiásticas quanto as patriótims, das quais as pessoas estao saturadas e
que sao incessantemente geradas por todos os métodos da arte. As supersticóes
da Igreja sao sustentadas e produzidas pela poesia dos oradores, hinos, quadros,
pela escultura de imagens e de estátuas, pelo canto, pelos órgáos, pela música,
pela arquitetura, e mesmo pela arte dramática nas cen'mónias religiosas. Supers—
ticóes patriótims sao sustentadas e produzidas por versos e histórias (que sao
oferecidos até mesmo nas escolas), pela música, pelas &ngóes, pelas procissóés
triunfais, pelas conferéncias reais, pelos quadros marciais e pelos monumentos.
Nao fosse por essa atividade contínua em todos os departamentos de arte,
140 Leon Tolstóí
conhecer o erro em que estamos envolvidos, sem nos submeter e ele, buscando
um melo de, através dele, nos libertarmos.
Notas
1. Adelina Paul (1843—1919), fam soprano lmllam. (N. do E.)
2. Marla Tagllone (1804-1884), famosa dangrlna de Ópera de Parts e do Scala de Mllño. (N.
do E.)
3. Stenka Razlne, chefe cossaco na revolta de 1667—1671, tratado nas lendas populares como
um Robin Hood. (N. do E.)
4. Robert Macalre ¿ um tipo moderno de astuto e malandro audacloso. Fol o heról de uma
pega popular produzlda em Paris, 1834, e outra escrita por R.L. Stevenson e W. E. Henley,
1987. (Aymer Maude)
CAPÍTULO xv…
A arte do futuro, nao como possessáo de uma minoria seleta, mas como
um melo em dlregºáo ¿ perfelcáo e unidade.
da arte uma técnica complicada e artiñciosa, que requer uma infinita perda de
tempo para o seu aprendizado. Nao será exigido do artista mais que clareza, sim-
plicidade e sobriedade, que sáo coisas que nio se adquirem com preparacáo
mecánica e sim com educacáo do gosto. Em segundo lugar, todos poderáo tomar—
se artistas porque, ao invés de nossas escolas proñssionais, acessíveis somente a
uns poucos, todos poderáo aprender música e desenho desde a escola primán'a,
juntamente com outras nocóes elementares, de tal modo que toda pessoa que
sentir inclina<;áo por uma arte possa exercitá-la e expressar por meio dela seus
sentimentos pessoais.
Podem dizer que, com a supressáo das escolas artísticas especiais, a técnica
da arte será debilitada. Certamente será debilitada, se se entender por técnica o
conjunto de váos artificios que hoje trazem este nome. Mas, se, por técnica, se
entender somente a clareza, a simplicidade e a sobriedade, esta nao só deixará de
ser atingida, conforme suficientemente o prova toda arte popular, como será ele—
vada a um grau superior, dado que todos os artistas de génio até agora ocultos
entre o povo poderío participar da arte e oferecer modelos de perfeiqáo, que serio
a melhor escola de técnica, para os artistas de seu tempo e dos tempos a Vir.
Mesmo em nossos dias nao sáo os verdadeiros artistas instruidos na escola e, sim,
na vida, estudando o exemplo dos grandes mestres. Mas no futuro, quando par—
ticiparem da arte os homens de maior engenho, do povo inteiro, o número dos
modelos a estudar será mais elevado e estes modelos, mais acessíveis. E a falta de
um ensino proñsslonal será cem vezes compensada, para o artista verdadeiro, pelo
justo conceito que ele terá dos fins e métodos da arte. Essa será uma das diferencas
da arte futura em relacio a arte do presente. Outra diferenca será que a arte do
futuro nao será mais executada por artistas proñsslonais, pagos por sua arte e só
com esta ocupados. A arte do futuro será exercida por todos os homens que a
deseiarem exercer, e mesmo estes dela se ocuparáo apenas no momento em que
a desejarem.
Acredita—se, facilmente, em nossa sociedade, que o artista trabalhará tanto
melhor e com maior eñcácia quanto mis segura for a sua condigño material. Bastaria
esta opiniáo para provar mais uma vez, se isso fosse necessário, que aqui|o que,
hoje em dia, é tomado por arte nio pasa de uma contrafado. De fato, é verdade
que, para produzir sapatos ou páes, a divisño do trabalho oferece grandes vanta-
gens. O sapateiro e o padeiro, se náo sao constrangldos a preparar o própn'o
alimento ou a cortar a própria lenha, podem produzir maior quantidade de sapatos
ou de páezinhos. Mas a arte nio é um oficio, é a transmissáo feita aos outros de
um sentimento experimentado pelo artista. 13 este sentimento nao pode brotar no
homem senio quando ele vive inteiramente a vida natural e verdadeira dos ho-
mens. Portanto, assegurar ao artista a satisfagio de todas as suas necessidades
matedais é prejudimr—lhe a capacidade de produzir arte, visto que ao libertar o
artista das condicóes comuns a todos os homens — da luta contra a natureza, pela
preservado da própria vida e da vida dos demais —, retim—lhe a omsiáo e a
possibilidade de aprender a tomar conhecimento dos sentimentos mais importan-
OqueéaArte? 149
tes e naturais do homem. Náo existe condigáo mais detestável para a faculdade
criadora de um artista do que aquela segurangn absoluta e aquele quo que 850
hoje considerados condigño indispensável para que a arte funcione bem. O artista
do futuro levará a vida comum a todos, a ganhar seu páo num oficio qualquer.
Assim, educado para conhecer o lado sério da vida, ele se esforgnrá para transmitir
ao maior número possível de pessoas o dom superior que a natureza lhe terá
concedido. E esta transmissáo será sua alegn'a e sua recompensa. O artista do
futuro será incapaz de compreender como um artista, cujo deleite máximo está na
ampla difusáo de suas obras, poderia cedé-las, trocar um certo pagamento.
Enquanto nao expulsarmos os mermdores do templo, o templo da arte nao
há de ser um templo. Mas o primeiro cuidado da arte do futuro será o de os
expulsar.
Finalmente o conteúdo da arte futura, tal qual o imagino, será totalmente
diverso do da arte do presente. Consistiria na expressio de sentimentos, náo porém
exclusivos como a ambicáo, o pessimismo, o desprazer e a sensualidade, mas, sim,
de sentimentos experimentados por homens que vivem a vida do comum da
humanidade, fundamentados na consciéncia religiosa de nosso tempo, de senti-
mentos acessíveis a todos os homens, sem excecño.
Para as pessoas do nosso círculo que nao sabem, e nio podem ou náo váo
compreender, os sentimentos que formaráo o tema da arte do futuro, tais temas
pareceráo muito pobres em comparacáo com aquelas sutilezas da arte exclusivista
com as quais eles estáo agora ocupados. “O que há de novo para ser dito sobre
o sentimento cristio do amor para com um semelhante?” “Os sentimentos comuns
a todos 850 tao insignificantes e monótonos', pensam eles. Nao obstante, o certo
é que os únicos sentimentos novos que hoje em dia podem ser experimentados
sáo os religiosos, cristáos e os acessíveis a toda gente. Os sentimentos provenien-
tes da consciéncia religiosa de nosso tempo sio infinitamente novos e vários. Mas
náo consistem apenas, como ora se cré, em representar 0 Cristo nos diversos
episódios do evangelho ou em repetir, sob nova forma, as verdades cn'stás da
uniáo, da fraternidade, da igualdade e do amor. Os sentimentos sao novos e vários
ao infinito, pois o homem, ao considerar as coisas sob o pomo de vista cristio,
percebe que os mais velhos assuntos, os mais comuns e considerados os mais
surrados nele despertam os sentimentos mais novos, mais imprevistos, mais paté-
ticos. Que pode haver de mais antigo do que o relacionamento entre marido e
mulher, entre pais e ñlhos e entre homens de um mesmo país ou de países dife-
rentes com relagáo a uma invasáo, a uma defesa, ¿ propriedade, a terra e aos
animais? Ora, é suficiente alguém considerar tais relacionamentos do ponto de
vista cristáo, para que nio tandem a surgir nele sentimentos, os mais novos, pro-
fundos e patéticos.
Verdade é que o conteúdo da arte futura nao será amesquinhado, e, sim,
ampliado, quando esta arte tomar como objeto a transmissáode sentimentos vitais,
que 550 entre todos os mais gerais, simplese universais. Em nossa arte de hoje nao
sáo considerados dignos de ser expressos em arte senao sentimentos particulares,
150 Leon Tolstóí
entre 3 arte do futuro e aquilo que hoje em dia consideramos arte. A base da arte
do futuro será constituida de sentimentos própn'os & encorajaros homens no sentido
da uniáo ou próprios a uni-los efetivamente. A forma dessa arte será tal que ela
será acessível & maion'a dos homens. Ponznto, o ideal da perfeicáo no futuro nio
será mis 0 grau de particularidade dos sentimentos, mas, ao contrário. seu grau
de universalidade. O artista nio mais buscará, como hoje, a obscuridade, a com-
plimgáo e a énfase. Ao contrário, será breve, claro e simples. E, somente quando
3 arte tiver assumido tal mráter, ela deixará de servir unicamente para distrair e
divertir as clases de ociosos, como hoje acontece, para comegnr a cumprir seu
verdadeiro oficio, vale dizer, transportar um conceito religioso do dominio da
razáo e do intelecto ao dominio do sentimento, & guiar a humanidade em direcáo
%
felicidade, de encontrar a vida e de encontrar aquela uniáo e aquela perfeicáo
que [he recomenda a percepqño religiosa.
CAPÍTULO xx
CONCLUSÁO
explodimos montanhas para perfurar túneis, nós a usamos para guerras, sendo
que destas nós nao somente nao pretendemos nos abster, mas as consideramos
inevitáveis e que estamos crescentemente preparados para seu uso.
Se somos agora mpazes de inocular preventivamente micróbios diftéricos,
de encontrar uma agulha num corpo por meio de raios—x, de endireitar um cor-
cunda, curar sífilis e realizar operagóes fantásticas, nio ñmn'amos orgulhosos deseas
conquistas (mesmo se estas fossem todas confirmadas indiscutivelmente) se com-
preendéssemos totalmente o verdadeiro propósito da verdadeira ciéncia. Se nada
além de um décimo dos esforcos agora gastos com objetos de pura curiosidade
ou de aplimcáo meramente prática fosse dispensado com a verdadeira ciéncia,
organizando a vida do homem, mais da metade das pessoas agora doentes nao
teria a doenca da qual uma pequena minoria consegue se curar em hospitais. Náo
haveria nenhuma crianca anémim e deformada crescendo em fábricas, nenhum
índice de morte, como agora, de cinqiienta por cento entre as criangas, nenhuma
deterioracáo de geracóes inteiras, nenhuma prostituicáo, nenhuma sífilis e ne-
nhum assassinato de centenas de milhares em guerras, nenhum daqueles horrores
de insensatez e miséria que a nossa ciéncia do presente considera uma condicáo
necessária & vida humana.
Pervertemos a concepgáo da ciéncia de tal modo que parece estranho aos
homens dos nossos dias aludir a ciéncia como algo que deveria prevenir a mor—
talidade das cn'angas, a prostituigño, a sífilis, a deterioracáo de geracóes inteiras e
o assassinato dos homens em grande escala. Parece-nos que a ciéncia somente é
entáo uma real ciéncia quando um homem, num laboratório, despeja líquidos de
um recipiente noutro, ou analisa o espectro, ou corta sapos e golñnhos, ou tece
num jargáo científico especializado uma rede obscura de frases convencionais —
teológica, ñlosóñm, histórica, jurídica ou político—económica —, semi—inteligível
para si próprio e intencionada em demonstrar que o que é agora é o que deveria
ser.
Mas a ciéncia, a verdadeira ciéncia — uma ciéncia que realmente merecería
o respeito que é clamado hoje pelos seguidores de uma (a menos importante)
parte da ciéncia —, nio é absolutamente deste tipo: a verdadeira ciéncia consiste
em saber no que devemos e no que nio devemos acreditar, em saber como a vida
associada do homem deve, ou nio deve, ser constituida: como tratar as relacóes
sexuais, como educar as criangas, como utilizar a terra, como cultivá-la sem oprimir
o outro, como tratar os estrangeiros, como tratar os animais, e muito mais do que
é importante para a vida do homem.
Tal é como a verdadeira ciéncia sempre foi e deven'a ser. E uma tal ciéncia
está despontando nos nossos tempos; mas, por um lado, essa ciéncia verdadeira
é negada e refutada por todas aquelas pessoas de ciéncia que defendem a ordem
vigente da sociedade, e, por outro lado, é considerada uma ciéncia vazia, desne—
cessária, e nio—científica por aqueles engajados na ciéncia experimental.
Por exemplo, livros e sermóes aparecem demonstrando a obsolescéncia e a
absurdidade dos dogmas da Igreja, bem como a necessidade de aclarar a percep—
OqueéaAñe? 157
gio religiosa razoável e apropriada aos nossos tempos, e toda a teología que é tida
como sendo a real ciéncia está engajada somente em refutar esses trabalhos e em
exercitar a inteligéncia humana dia após dia na sua busca de apoio e justificativa
para supersticóes desde há muito superadas e que perderam agora todo o sentido.
Ou um sermáo aparece mostrando que a ten-a nao deveria ser um objeto de
possessáo privada e que a instituicáo da propriedade privada de terra é a causa
principal da pobreza das massas. Aparentemente a ciéncia, a verdadeira ciéncia,
deveria dar boas-vindas para tal sermáo e tirar deducóes posteriores a partir dessa
posicáo. Mas a ciéncia dos nossos tempos nao faz nada disso; ao contrário, a
economia política demonstra a posicáo oposta, ¡sto é, que a propriedade territorial,
como toda outra forma de propriedade, deve ser mais e mais concentrada nas
mios de um pequeno número de doncs. Novamente, do mesmo modo, dever-s ¿—
ia supor que o trabalho da real ciéncia seja o de demonstrar a irracionalidade, a
náo-lucratividade e a imoralidade da guerra e das execucóes; ou as qualidades
desumanas e danosas da prostituiqño; ou a absurdidade, a nocividade e a ¡mora-
lidade em usar narcóticos ou comer animais; ou a irracionalidade, a nocividade e
a obsolescéncia do patriotismo. E tais trabalhos existem, mas 550 todos conside-
rados nio—científicos,enquanto trabalhos que provem que todas essas coisrts devem
continuar e trabalhos intencionados a satisfazer uma sede ociosa pelo conheci—
mento sem qualquer relagño com a vida humana sáo considerados científicos.
Nos nossos tempos, o desvio da ciéncia dos seus verdadeiros propósitos é
cabalmente ilustrado pelos ideais que 550 postos ¿ frente por alguns cientistas e
náo sáo negados, mas admitidos pela maioria dos homens da ciéncia.
Esses ideais sao expressos nao somente em livros estúpidos, elegantes,
descrevendo o mundo como será daqui a mil ou trés mil anos, mas também por
sociólogos que se consideram homens sérlos da ciéncia. Esses ideais sio de que
o alimento, em vez de ser obtido da terra pela agricultura, seja preparado em
laboratórios por meios químicos, e que o labor humano seja quase totalmente
suplantado pela utilizagño de forcas naturais.
O homem nao irá, como agora, comer um ovo de uma galinha que ele criou,
ou pao crescido no seu campo, ou uma macá de uma árvore que ele cultivou e
que floresceu e amadureceu sob os seus olhos, mas irá comer alimentos saboro-
sos, nutritivos, preparados em laboratórlos pelo trabalho conjunto de várias pes-
soas do qual ele compartilhará em pequena escala. 0 homem mal precisará traba-
lhar, de modo que todos os homens serio mpazes de se entregar a ociosidade,
assim como as classes superiores, govemantes, agora se entregam.
Nada mostra mais claramente a que grau a ciéncia de nosso tempo se des-
viou do seu verdadeiro caminho do que esses ideais.
A grande maioria dos homens de nosso tempo náo dispóe de alimento bom
e suficiente (bem como de moradia e roupas e de todas as primeiras necessidades
da vida). E essa grande maioria de homens é compelida, pelo dano de seu
bem-estar, a trabalhar continuamente além das suas forcas. Ambos os males
podem facilmente ser removidos abolindo as disputas, a luxúria e a distribui—
158 Leon ToLrtóí
mais elevados que esta pode realizar, mas no nosso tempo o destino da arte é claro
e definido. A tarefa da arte cristá é estabelecer a uniño fraternal entre os homens.
APENDICE |
L
'ach
Si tu veux que ce soír; ¿: l'a“tre, je t'accueílle—
¡ette d'abord la jleur; qui de la main s'e_[feuílle;
San cberparfumferait ma tn'stecse trop sombre;
3 ne regardepas derriére toi vers l'omb7e,
Carje te veux, ayant oublíé la foré't
Et le vent, et l'écbo e: ce qui parleraít
Voíx ¿: ta solitude ou pleur ¿ ton silence!
Et debout, avec ton ombre qui te devance,
Et bautaíne sur mon seuíl, e: pále, et venue
j
Comme si 'étaís mon ou que tufusses nue."
1.
Sais—tu I'oubli
D'un vain doux re“ve,
¡. As Boas Vindas
Se quisems que nesta noite, junto ¡ Iareira, eu te acolha — / Deixe cair primeiro a Hor. que de tua
mio desabrocha; / O seu cano perfume faria a minha tristeza sombría demais; / E nio olhe para trás,
para a tua sombra, / Pois eu te quero, tendo esquecido da floresta / 8 do vento, do eco e o que daría
Voz ¡ tua solitude ou lágrimas ao teu siléncio! / B de pé, com a tua sombra que te antecede, / E altiva
sobre a minha soleira, e pálida, e vinda / Como se eu estivesse morto, ou que estivesses nua!
162 Leon Tolstóí
Oisaau moqueur
De la foré't?
Le jour pálít,
la nuit se léue,
B dans mon coeur
L'ombm a pleuré;
2.
0 cbante—moi
Ta folle gamme,
Carj 'a“ dormí
Ce jour durant;
te [debe émoí
Oúfut mon áme
Sanglote ennuí
Le jour mourant….
3.
Sais—tu le cbant
De sa parole
E? de sa voíx,
Toi qui redis
Dans le coucbant
Ton airfn'vole
Comme autrefoís
Saus les midis?
4.
O, cbante alors
La métodíe
De son amour;
Mon fo! acpoir;
Parmí les 075
E? l'íncendie
Du win doux jour
Qui mem: ce soir. "
Auirancec
Loirztainement, et si étmngementpareils,
Degmnds masques d'argent que la brume recule,
Vaguent, au jour tombant, autour de: vieux soleiLs.
l.
Sabes tudo esquecimento/ De um vio doce sonho. / Pás&m zombador/ Da floresta? / 0 dia cmpaiideoe,
/
/ A noite se levanta, / B no meu comcño A sombra chonou;
2.
Oh, unta-mc / Com o teu louco tom / Pois eu adormeci / Por este dia inteiro; / A 12353 emocio / em
mim agora soluca, / Elcs tém minha alma: / 0 dia fcneoe...
3.
Sabes tudo canto / Da sua fala / E de sua voz, / Tu que ncpete / Ao crepúscqu / 0 teu ar frívolo
/ Como antigamentc / Sob ¡ luz do meio dia?
4.
/
Ó, cante pomnto / A melodia / De seu amor, / Meu louco esposo, / Entre os ouros E o incendiar
/ Do vio doce dia / Que morrc nesta noite.
164 leon TOLstói
lll. Atratividades
Longínquas, e tio estranhamente semelhantes, / Grandes máscaras de prata que a bruma canega, /
Vagam, ao cair do dia, ao ¡edor dos velhos sóis. //
Doces distancias! — e como, no fundo do crepúsculo, / Blas paralisam nossos coragóes, imensamente
os coracóes, / Com seus olhos defuntos de seus rostos d'alma. //
/
E sempre do silencio, ¡ volta, na palidez / Da tarde, um ¡ato de fogo repentino, um grito de ardor,
Um anemesso de luz inesperado em direcio a Deus. //
Problemase charmes misteriosos nos envolvem, / Pode-se pensarque o mono deu um adeus silencioso,
/ Mistico demais, para ser ouvido na terra! //
S¡o eles as memórias, materiais e brilhantes, / Dos jovens cristios que em catacumbasdormem / Entre
os lirios? S¡o eles as suas carnes ou suas vistas? //
Ou a maravilha solitária que sobrevive, na profundeza, / Aqueles que, uma noite, voltam aos seus
sonhos / De conquistar loucura assaltando os céus? //
Longinquas, quantas nós as ouvimos querer / Um pouco de amor para suas obras destituidas, / Para
sua errincia e sua tristeza, nos horizontes //
Sempre! nos horizontesdo coraqio e do pensamento, / Enquanto velhas tardes na chama incandescente
empalidecem, / De repente, por glórias negras e angústias.//
OqueéaArie? 165
Bnone, ao amar a tua beleza eu pensei / (Onde a alma e o corpo ¡ uniio sio uazidos) / Que devo
me elevar, fortalecendo meu coracio e meu espirito, / Alé encontrar aquele que nada sabe da Morte:
/ Que nio fora criado. que nio ¿ feio aqui, bonito acolá, / Nem frio em uma parte e queme em outra.
/ Eu me encoraio que o melhor e o pior / Com uma hannonia perfeita devem se mover nos meus
versos; / Como 0 poeta que serve ¡ Polimnia pode fazer / 0 grave e o agudo se combinarem, e soar
/ Notas ainda mais sublimes sobre os nervos de sua lira. / Mas a minha coragem. ai! se desfalece como
um mono, / Me ensina que a flecha que me fez amante / Nao partiu deste arco que se curva sem /
esfomo, / A Venus que bnotou de um pai só, / Mas foi aquela de coragio covande, nascia de mie fraca.
/ Ainda assim, este malicioso jovem, este cacador tio atrevido / Que canega sua aljava de flechas sutis,
/ Que, rindo e sacudindo a sua tocha (por um dia!), / Jamais descansa se nio for sobre temas flores,
/ B em pe|e doce vem secar suas lágrimas. / B ainda um Deus, Enone, este Amor. / Mas deixa passar,
pois os pasaros da primavera se foram, / E vejo os últimos raios de um sol que está perto da morte.
/ Enone, meu lamento, a face harmoniosa. / Nobne humildade. palavras de virtude e graca. / Ontem
me olhei no Iago firmemente congelado. / Coberto de folhas no fundo do jardim, / E vi no meu rosto
que aqueles dias se passaram.
166 Leon TOL9£óí
Berceuse d 'ombre
V. A Cancio da Sombra
Formas, formas, formas / Brancas, azuis, e rosas, : douradas / Descendo do alto dos elmos / Sobre
o bebé que dorme. / Formas! //
Plumas, plumas, plumas / Para fazer um doce ninho. / Soa meio dia: as bigomas / Cessam; 0 rumor
se aquieta... / Plumas! //
Rosas, rosas, ¡osas / Para perfumar o seu sono, / Suas pétalas sio pálidas / Perto deste son—iso
vermelho. / Oh rosas! //
Asas, asas, asas / Para ¡unir a sua fronte, / Abelhas : libélulas, / Dos ritmos que embalam. / Asas! //
Brancos, brancos, brancos / Para entretecer um abrigo / Por onde as claridadesténues / Descem sobre
os passarinhos. / Brancos! //
Sonhos, sonhos, sonhos / Nos seus pensamentos entreabertos / Desliza um pouco de mentiras / A ver
a vida de través. / Sonhos! //
Fadas, fadas, fadas / Para uanqar seus ños / De miragens, de sopros / Para dentro dessas pequenas
cabegas. / Padas! //
Anlos, anios, anios / Para levar ao éter / Esses pequenos estranhos bebés / Que nio querem ñcar.…
/ Nossos anios! //
APENDICE ||
vé que Siegmund pertence a uma raca inimiga, e quer lutar com ele no dia seguin-
te. Mas Sieglinda droga o seu marido e vem para o Siegmund. Siegmund descobre
que Sieglinda é sua irmá e que o seu pai enterrou uma espada na árvore, de modo
que ninguém possa tirá-la. Siegmundarranca a espada e comete incesto com a sua
irmá.
Ato II. Siegmund está para Iutar com Hunding. Os deuses discutem para
quem eles devem conceder a vitória. Wotan, aprovando 0 incesto de Siegmund
com a sua irmá, quer poupá-lo, mas sob pressño de sua esposa, Fricka, ele ordena
que a valquirla Briinnhilda mate Siegmund. Siegmund vai para a luta. Sieglinda
desmaia. Briinnhilda aparece e quer matar Siegmund. Siegmund quer matar Sieglinda
também, mas Briinnhilda nao deixa, e ele Iuta com Hunding. Briinnhilda defende
Siegmund, mas Wotan defende Hunding. A espada de Siegmund quebra e ele é
morto. Sieglinda foge.
Ato III. As valquírias (amazonas divinas) estao em cena. A valquíria Bn'.innhilda
chega a mvalo, trazendo o corpo de Siegmund. Ela está fugindo de Wotan que a
está mgndo por sua desobediéncia. Wotan pega—a, e como punigño a destitui do
seu posto de valquíria. Ele também joga uma maldigio sobre ela, de modo que ela
tem de dormir até que um homem a acorde. Ela se apaixonará por quem a acordar.
Wotan a beija; ela adormece. Ele langa fogo em volta dela.
Agora chegamos ao Segundo Dia. 0 anio Mime forja uma espada na floresta.
Siegfried aparece. Ele é o ñlho nasddo do incesto do irmáo com a irmñ (Siegmund
com Sieglinda), e foi criado nessa floresta pelo anio. No geral os motivos das
acóes de todos, nessa produdo sio bem ininteligíveis. Siegfried frm sabendo de
sua origem, e que a espada quebrada era de seu pai. Ele ordena Mime a forjá—la
novamente, e depois vai embora. Wotan vem na pele de um errante e relata o que
irá acontecer: que aquele que nio aprendeu a ter medo forjará a espada e derro—
tará a todos. 0 anio supóe que este é Siegfried e quer envenená-Io. Siegfried
retorna, forja a espada de seu pai, e vai embora, gritando: "Heiaho! heiahoi heiahoi
Ho ho! Aha! oho! aha! Heiaho! heiaho! heiaho! Ho! ho! Haheii hoho! hahei!"
E chegamos ao Ato II. Alberich está sentado guardando um gigante, que, na
forma de um dragáo, guarda o ouro que recebera. Wotan aparece, e por alguma
rado desconhecida prediz que Siegfried virá e matará o dragáo. Alberich acorda
o dragáo e pede o anel, prometendo defendé-lo de Siegfried. O dragáo nao quer
abrir mao do anel. Sai Alberich. Mime e Siegfried aparecem. Mime espera que o
dragñoº ensine Siegfried a ter medo. Mas Siegfried nio teme. Ele manda Mime
embora e mata o dragáo, depois do que leva o seu dedo, manchado de sangue
do dragáo, aos lábios. Isso faz com que ele saiba os pensamentos secretos dos
humanos, bem como a linguagem dos pássaros. Os pássaros dizem onde estilo o
tesouro e o anel, e também que Mime quer envenená—lo. Mime retoma e diz em
voz alta que ele quer envenenar Siegfried. Isso é posto assim para significar que
Siegfried, tendo provado o sangue do dragáo, compreende os pensamentos secre-
tos das pessoas. Siegfried, tendo conhecido as intencóes de Mime, mata-o. Os
passaros dizem a Siegfried onde está Briinnhilda e ele vai procurá-la.
OqueéaArte? ¡7!
Ato Ill. Wotan chama Erda. Erda faz profecías a Wotan e dá a ele conselhos.
Siegfried aparece, discute com Wotan, e eles lutam. De repente a espada de Siegfried
quebra o escudo de Wotan, o qual tem sido mais poderoso do que qualquer coisa.
Siegfried corre para dentro do fogo em diregño a Briinhilda e a beija; ela acorda,
abandona a sua divindade, e se joga nos bracos de Siegfried.
Terceiro Dia. Prelúdio. Trés Nomas traan uma corda de ouro e fa!am sobre
0 futuro. Blas vio embora. Siegfried e Briinnhilda aparecem. Siegfried se despede
dela, ¡he dá o anel, e vai embora.
Alo [. Á beira do Reno. Um rei quer se casar e também dar a mio de sua irmá
em casamento. Hagen, o irmáo malvado do rei, aconselha-o a se casar com
Brúnnhilda e dar a máo de sua irmá a Siegfried. Siegfried aparece; eles dio a ele
uma bebida narcotizada que o faz esquecer o pasado e se apaixonar pela irmá
do rei, Gutrune. En!áo ele sai mvalgandocom Gunther, o rei, para trazer Briinnhilda
para ser a noiva do rei. A cena muda. Briinnhilda senta—se, com o anel. Uma
valquíria vem a ela e diz que o escudo de Wotan está quebrado, e a aconselha a
dar o anel ás ninfas do Reno. Siegfried vem e por meio do mpacete mágico se
transforma em Gunther, exige o anel de Bn'innhilda, pega—o e arrasta—a para dormir
com ele.
Ato II. A beira do Reno. Alberich e Hagen discutem como pegar o anel.
Siegfried vem, conta como ele conseguiu uma noiva para Gunther e como este
passou a noite com ela. Mas diz que colocara uma espada entre si e ela. Briinnhilda
vem mvalgando, reconhece o anel na mio de Siegfried, e declara que era ele, e
nao Gunther, quem esteve com ela. Hagen incita todos contra Siegfried e decide
matá—lo no dia seguinte quando estiver meando.
Ato III. Novamente as ninfas do Reno relatam o que aconteceu. Siegfried,
que se perdera, aparece. As ninfas pedem a ele o anel, mas ele náo quer entregar.
Os mcadores aparecem. Siegfried conta a estória de sua vida. Hagen entio, dá a
ele uma bebida que faz com que a memória ¡he volte. Siegfried relata como ele
acordou e obteve Briinnhilda, e todos frcam assombrados. Hagen apunhala-o de
costas, e a cena é mudada. Gutrune encontra o cadáver de Siegfried. Gunther e
Hagen discutem sobre o anel, e Hagen mata Gunther. Brúnnhilda chora. Hagen
quer tirar o anel da mio de Siegfried, mas a máo do cadáver levanta sozinho
amea<;adoramente. Briinnhilda tira o anel da mio de Siegfried, e quando o corpo
deste é levado para a pira ela monta num mvalo e pula para dentro do fogo. O
Reno se levanta, e as ondas alcancam o fogo. No rio estáo trés ninfas. Hagen mira-
se no fogo para pegar o anel, mas as ninfas o agarram e o levam embora. Uma
delas leva o anel; e esse é o frm da estória.
A impressáo que se pode obter da minha rempitulagáo é evidentemente
incompleta. Mas nao importa 0 quáo incompleta ela seja, é certamente infinita—
mente mais favorável do que a impressáo que resulta da leitura dos quatro livretos
nos quais a obra está impressa. _
… 'L
rº _