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NARRADOR 27

o narrador de romances aparece sem musas. O mundo divino


se distanciou. Auditórios para seduzir já não os há. O narrador não

4 fala, escreve. O texto sai da solidão dele para a solidão dos leitores.
Passando a escrever na língua de toda gente sobre os conflitos de ca-
da um, o autor é agora verdadeiramente um auctor, um fundador.
Narrador Um novo mundo sai de suas mãos, o mundo dos tempos modernos.
Conscientemente ou não, o autor o ajuda a criar. Dele é a epopéia
da modernidade, o romance.
Mesmo sem musas, o narrador pode continuar a narrar à ma-
neira dos cantadores épicos, como se a voz não fosse dele, como se
fosse de um que tivesse o dom da onipresença. Todas as portas lhe
estando abertas, nada obsta que surpreenda os sentimentos íntimos
mais secretos. Comporta-se, por vezes, como um deus sem corpo e
sem culto e autoritariamente exige fé no seu testemunho.
Visto que o romance brasileiro nasceu depois da independência
do Brasil, coube aos romancistas a tarefa de ajudar a construir o país.
José de Alencar teve plena consciência dessa responsabilidade. Criou
personagens: fez do índio herói nacional e começou a esboçar tipos
regionais como o gaúcho e o sertanejo, dando-lhes costumes e língua
peculiares. Substituindo as musas pela pátria, quis que a voz dela,
nas imagens, no vocabulário e na sintaxe soasse através da voz dele,
Voz cultivada na gramática e na retórica portuguesas.
Voz e perspectiva Gênios
Nem todos os teóricos distinguem voz e perspectiva. Há, entre- ' Abandonados pelos deuses, os próprios autores passaram a se
tanto, vantagem em tratá-las separadamente. Quanto ~ voz, o narra- deificar. Os românticos se consideravam gênios e disso persuadiram
dor pode eleger a primeira pessoa ou a terceíra; quanto à perspectiva, os críticos. Estes, na esteira de Sainte-Beuve, acreditavam que o mis-
o narrador pode ver os acontecimentos de perto ou a distância, pode tério da obra de arte poderia ser esclarecido, conhecendo-se a perso-
penetrar na psique das personagens ou restringir-se a observar fisio- nalidade genial do autor. Consideravam a genialidade consistente
nomias, gestos, acompanhar os acontecimentos no seu efeito exterior. como as rochas. Interessava-lhes não só a biografia do autor como
Vozes e perspectivas podem combinar-se das maneiras mais diversas também o momento exato em que a obra genial teria sido escrita.
na mesma narrativa.
Passada a febre romântica, descobriu-se que não há personali-_
dades gepjak. Ao caráter não convém a resistência dos sólioos. Con-
Voz do alto
vertida em m~ara, a personalidade ficou reduzida aos papéis sociais
que representamos e que, espelhados nos outros, construímos.. Pec-
Primeiro foi a voz das musas, o narrador fingia que não tinha
@nalidades são textos cuja cousistência e unidade não excedem a da
voz. A voz era só delas, voz de outros tempos, outra gente, voz com
~ - Se hoje nos preocupamos com a natureza do texto, é porque
palavras e frases estranhas, voz do alto, do distante mundo dos deu-
sabemos que nada nos redime do emaranhado textual em que todos
:es. O narrador falava como inspirado, como possesso. Falando len-
estamos enredados.
0 e sereno, arrebatava a confiança de ouvintes atentos. Assim se
comportava o narrador das epopéias antigas.
NARRADOR 29
TEORIA DO ROMANCE

Eu narrador Romance de memórias


\

•meira pessoa poderia ser decisão orgulhosa· ' Ao enveredar para os romances narrados em primeira pessoa,
Escrever em P~~ nos casos de sucesso, gesto de humildade. Ó Machado deriva força precisamente dos limites que sujeitam o narra-
mostrou-se, endt_retan t'á linu"tado Falta-lhe a mobilidade anônima dor. Em Memórias póstumas de Brás Cubas1 , o eu narrador assume
d que iz eu es · , ·
narra or d teci·par O futuro. Mais seguro lhe e falar de si mes-
- lhe é daó o. anlhe é auxiliar valioso. Mesmo no estreito · espaço de 0 papel de um que não sabe, mas se empenha a fundo em saber. Por
Nao não saber, ousa questionar os que pensam saber. Aparece armado
mo · A memá na R d
. ·t A memória falha. ecor ar a os nao f t ~ significa
· · ·
com o vigor da ironia socrática, alavanca posta no corpo de sistemas
si mesmo, h 1imi es.
compreendê-los. • d , • sólidos para mover as pedras que os sustentam. O narrador se dimi-
, .. • tas e psicanalistas recentes ensmam que no omm10 do nui para poder atacar melhor, minando a empáfia alheia sem poupar
. L mguis · d N-
s sempre em presença de enuncia os. ao se con f un-
d1scurso estamo ficção sujeito da enunciaçãQ.. , (enuncia · d or) e suJe1to· • a si próprio.
da Falar de si mesmo é tendência natural de quem se apresenta co-
da, nem f·ora • al·
d Tomemos um exemplo ban . oao isse. - "J - d' . Q
uero mo sujeito da enunciação. Ninguém nos conhece melhor do que nós
do enuncia o. a" João é o enuncia . dor, "Q uero um copo de água "
um copo de águ · d d . . nos conhecemos a nós mesmos. Assim se pensava antes de Freud. Es-
é o enuno·ado, Do enunciado não podemos e- uzir d'
o que vai na mente
d · ár'
colados pela psicanálise, sabemos que somos mistério até para nós
do enunciador. João pode ter motivos para ~1u ir o estmat 10, Co- mesmos. Procuramos conhecer-nos através do outro , através da lin-
er se realmente está com sede? Se Joao se encontra numa sala guagem de outros, através de textos que pretendem inutilmente de-
mos ab l d 1· volver-nos o que de nós se perdeu. A suspeita de que somos estranhos
de aula, pode propor o enunciado para esc .ª~ecer aspecto_s e 1~gua~
gem. Nesta hipótese, entre enunciador e suJeito d~ enunc~ado na~ ha a nós mesmos insinuou-se em textos de ficcionistas antes da psicaná-
identidadé. Importa o momento em que o enunciado foi proferido. lise. O desencanto de Bentinho origina-se da impossibilidade de ava-
Como saber se João ainda está com sede, se ao falar realmente esteve liar com acerto os seus próprios sentimentos e de conhecer realmente
com sede? as pessoas de sua w ur.na convivência. Envolvido pelo infranqueá-
Voltemos ao romance. Seria incorreto identificar o eu narrador vel tecido de palavras e de gestos, o narrador é corroído pela suspeita
(incorporado ao romance e, como tal, sujeito do enunciado) com o de que o não percebido retém verdades que invalidam o oferecido aos
autor (sujeito da enunciação)&autor de romances pode ser também olhos e aos ouvidos. Os recursos a serviço da comunicação não serão
_autor ges_artas, de enswos,~de_poemas', de crônicãs, de peças de tea- elaboradas artimanhas para esconder o essencial? As palavras, ore-
tro, assuwindo em cada uma dessas modalidades comportamento ade- curso do narrador para expor, mostram-se instrumento falido. A pá-
_qµado . .Ça~ om:.a apareci~ uma dessas modalidades está ao nível gina converte-se em campo de batalha em que narrador e palavras
_çl~_enunciados_o autor, excedendo todas as obras, não se mostra con- se defrontam como adversários. Reescrever a vida não decifra o enig-
cluído em nenhuma delas. O autor também exerce outras funções: ma, substituir umas palavras por outras aprofunda o abismo.
vota, protesta, dirige, recebe ordens, compra, vende, ama, odeia. Os Memorial de Aires2 serena o conflito. Em prosa mansa, o nar-
atos do cidadão não comprometem o autor. Ser autor é um dos mui- rador se rende às insignificâncias do dia-a-dia sem considerá-las pa-
tos papéis representados pelo enunciador, que se esquiva e com o qual redes e~guidas sobre ausências. O Memorial, ocupação de aposentado
só em esquivanças conseguimos conviver. sem feitos luzentes a recordar e sem ambições, também aposenta o
._E.nunciadoi-são.textoul~njre~ yai§ uma categoria é ficcional narrador como decifrador .
e_cuJa~ c~cteústica_tgerais estamos tentando descrever. O narrador José Lins do Rego revigora o romance de memórias em Menino
3
_a9vém no.s romances como sufeito do enunciado de natureza intei- de engenho. O eu narrador, indeciso entre o menino e o engenho,
ramente textual ~ '
1
_A técnica de encarregar personagens de parte da narração foi Op. cit.
antecipada pela epopéia. Na Odisséia, Ulisses narra, em vários can· : MACHADO DE ASSIS, J. M . (1908). Rio de Janeiro, Aguilar, 1962.
tos, aventuras de dez anos no mar ignoto. 0 932). Menino de engenho, Doidinho, Bangüê. Rio de Janeiro, Jo~ Olympio, 1960.
, \RRf\DOR )1
TEORIA DO ROMANCE

indivíduo e a sociedade patriarcal revi. Epistolografia romanesca


d em um e outro O . - '
surpreen e da alma verde desde a visao do corpo ensangüen-
os solavancos . . . .
vendo 'd ela insânia do pai, ate as primeiras turbulências \ Os romances em primeira pessoa podem assumir forma episto-
d mãe abau a P .
tadO a A ' • matura Acompanhamos a aprendizagem doce e lar. Através da carta, o narrador se dirige a um destinatário distante.
d dolescenc1a pre tato direto
ªª . · . d .
com a vida, longe as letras as quais 0 que lhe impõe comportamento peculiar: controle dos sentimentos.
rga fe1ta em coo . .
ama . _ afeiçoa. Anelos de um passado extmto m1sturam- dosagem das informações, declarações sem resposta imediata, obser-
omo cnança nao se . .. vação dos efeitos a provocar - arte que no século XVIrl deu renome
e . d paixões alegrias e temores, presos a h1stonas de
se com O reviver e • h a Samuel Richardson. Em João Miramar, Oswald de Andrade mos-
_ • ·s J·agunços, senhores de engen o, senhoras, mo-
assombraçao, arumai ' d
E no retorno ao passado o narra or vacila na am-
· tra a degenerescência da epistolografia. 6 Insere cartas redigidas por
leques e mo1ecas. . , . membros de uma classe decadente, alheia a exigências básicas do idio-
. ... d d 'd ti'ficar-se com o menino e de manter a d1stanc1a que
b1gwda e e I en . , . ma que os deveria conservar no topo. A carta mais conhecida da lite-
a visão adulta determina. . . . ratura brasileira é a "Carta pras Icamiabas" , do Macunalma. Nela
Como romance de memórias, Memórtas sentimentais de João Mário de Andrade parodia a formação apressada, a ostentação balo-
Miramar4 comportaria aproximação ao Em busca do tempo perdi- fa, a observação incorreta, a sedução do brilho, o engodo , a explora-
do de Proust 5 • As diferenças salientam-se, porém, tanto no tama- ção, a empáfia dos que assimilam canhestramente linguagem erudita
nh~ como na elaboração. Os períodos amplos de Proust contraem-se para se darem ares de importância.
a segmentos incisivos e despojados. Propositada?1ente lacunosos, so- Retomando a tradição séria da epistolografia romanesca, Lú-
licitam a colaboração do leitor a quem fica tambem o encargo de pro- cio Cardoso, em Crônica da casa assassina{ia, através de diários, nar-
duzir a ligação entre um enuQciado e outro. Contra o impressionismo rativas, confissões e cartas, devassa o interior mórbido da chácara
prousúano de fluxo espontâneo age o texto c~lculado e frag~ent~- dos Meneses. Entre as cartas, destacam-se as de Nina, retrato dolo-
do, desencadeador de discursos apenas sugeridos. Frutos da mteh- roso de uma mulher carente de afeto que carrega, atordoada por in-
gência, os fragmentos obedecem a disposição cronológica, elididos •júrias, indiferença, ódio e paixões, o seu destino de erros e de enganos .
os nexos causais entre um, e outro. Uma coisa vem depois da outra,
Monólogo
separadas por cortes temporais de variada duração, não sujeitas ao
movimento associativo do fluir da consciência. Como nada tem rele-
O monólogo, no caminho aberto por Joyce ao registrar o fluir
vo, perdida está a noção de funções nucleares. O sentido, tendo se
da consciência de Molly Bloom em Ulisses7, trouxe a possibilidade
perdido até como negação, deixa esse desfilar neutro de estilhaços vis-
de apanhar fragmentos de idéias na desordem do nascedouro, antes
tos por uma inteligência que constata e deixa de julgar. Recusando de sofrerem a ingerência da razão ordenadora. Michel Butor recusa
a retórica, o discurso oswaldino subtrai técnicas de persuasão, de efei- o fechamento do monólogo interior. Segundo ele, a consciência só
tos sonoros ou espetaculares. O olhar por ele privilegiado é o do la- poderia ser redimida na presença de uma segunda pessoa a quem o
boratório, exigido para montar os elementos das unidades e para discurso se dirigisse. O romancista não consegue, entretanto, fugir
organizar o todo. No romance de Oswald, o mundo das essências não do fechamento antes denunciado em A modificação 8 , romance em
resiste ao trabalho da corrosão. Processo dissolvente agride a tradi- que a ação é sistematicamente atribuída à segunda pessoa.
ção e a familia. Se João evoca o Batista no vestíbulo dos novos tem· Outros meios se oferecem ao romancista para sair das indefini-
pos, Miramar sugere o olhar voltado a~ Oceano, cuja sedução leva ções e da desordem interior . Mediante o discurso semidireto, o nar-
ª outras terras, fatal ao patriotismo exclusivista.
~ cip. ci1.
•5 ANDRADE, Oswald de. Op cit
, (1922). Trad. de Antonio Houaiss. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 1966 .
(1913-1927) T d d ·. . . · La mod/ficarion. Paris. Minuit. 1957.
· ra · e Máno Qumtana et alii. Porto Alegre, Globo, 1953.
~
3?___:!T~EO
~R~IA~ D
~O~R~
O~M~
AN~C~E_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
_
1'ARRADOR 33

•nterior das criações romanescas, assumindo-lhes 0


dor penetra no 1 . s Narrador ausente
ra d . t e O pitoresco da linguagem como ocorre em Vidas se-
pontos. e vis a b. d
cas ev1tando a atmosfera doente e som na• e outro • , romance. de Gra-
. .' A , 11·09 em que o mon61 ogo mtenor e praticado. Já não estamos habituados a ser conduzidos. Assim nos senti-
c11iano, ngus ' - d G mos quando lemos Manuel Antônio de Almeida. Era o hábito do sé-
Por acertadas que sejam as comparaçoes
. . . e ronde senão: ve-
·sses a presença do s1 1encioso mter1ocutor confere ao culo passado. Machado ironiza o processo. Não fala sério quando
redas com o U,ll ' . f · manda saltar capítulos. As ninharias que fala com os leitores imagi-
monólogo de Riobaldo um arranJo que se a asta muito da composi-
ção do monólogo interior• ,. , nários levam a refletir sobre o que elas ocultam. Os narradores do
0 monólogo se revigora com o Sargento Getuho, de João Ubal- século XX costumam retirar-se. Fingem-se ausentes. É como se oro-
do Ribeiro. 1° Agora o ~arrad~! é um homem rude.' escra~iza~o por mance se narrasse a si mesmo. Isso não quer dizer que o narrador
não possa retornar como ocorre em A montanha mágica, de Thomas
crendices e por ideologias poht1cas mal . compreendidas.
T Nao. dialoga 1
m quando se dirige ao companheiro. em as suas convicções e as Mann. ~ _Pretendendo dar à narrativa um caráter lendário, algo que
ne
afirma sem admitir que sejam questiona · das. A sua fa1a mmterrupta,
· · ju.e-PassQU há muito tempo, recorre ao narrador como um mago
por ignorar quem o ouve, envereda para o monólogo interior. Tem .9!:l~v.oca_o pretérito. O monólogo interior, distribuído entre diver-
uma missão a cumprir e, sem refletir sobre o acerto dos seus atos, sas personagens ou a cargo de uma só, não o conduziria ao objetivo
leva-a obstinadamente até ao fim. Nos seus piedosos desacertos, lan- que tinha em mira. O monólogo interior ressuscita o que já se per-
ça, sem o saber, um vigoroso libelo contra a sociedade que o defor- deu, e Mann necessitava de uma ação completamente passada. A pri-
mou. Denunciados ficam os crimes que se cometem no cego meira Grande Guerra abriu um sulco profundo na consciência euro-
cumprimento do dever. Missão e destino sobrevivem como hedionda péia, de tamanhas proporções que o que acontecera antes dela per-
caricatura. tencia a uma época transata, aos velhos tempos. A intervenção do
Na solidão de um apartamento sem a presença de interlocutor, narrador deveria garantir a distância.
Clarice Lispector em A paixão segundo G. H. cria um monólogo lu-
cidamente racional. Já o título indica a perplexidade da narradora. Vozes múltiplas
Em vez do nome, que identificaria a personagem, temos iniciais que
suscitam dúvida confirmada pela fala: Há momentos em que a voz bem informada do narrador soa
falsa. Pode-se admiti-la quando a censura controla todas as informa-
-- estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Ten-
tando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar
ções como ocorre freqüentemente na América Latina? Se a voz de
com o que vlvl.11 uma ~nica ~ersonagem não dá conta da complexidade, o autor pode
amphar o numero de narradores. Assim procede Antônio Callado em
O interlocutor, embora ausente, é ao menos suposto como pos- Reflexos do baile13 • Os fatos se revelam num diário em cartas em
sível, e é ele o pólo precariamente organizador do discurso. A procu- bilhetes. Por faltar o narrador como centro unificador, a narr~tiva
ra não dá em nada e não pode dar porque as visões da narradora são desdobra-se em mosaico. Cabe ao leitor fazer dos fragmentos um to-
fragmentárias. Perdeu algo de essencial, isto é, a essência se perdeu. do inteligível. .
O que resta de si é a sensação de fluxo sem possibilidade de organiza- 14
Em Viva o povo brasileiro , a multiplicidade de vozes (narra-
ção e sem destino. A lei imanente, o destino, ainda invocado por Ma- çã~ em ~rimeira pessoa, narração em terceira pessoa, monólogo in-
chado para explicar a coerência hipotética da existência cedeu lugar tenor, discurso solene, diálogo, linguagem culta e popular, arcaica
ªº provável. Resta ~ momento que passa sem de onde ne:n para onde. e moderna) distribuem-se em duas vozes gerais: a voz dos domina-

i: g:~~lj-.
11 Rio
R'.n de Jane!ro. José Olvmoio. 1953.
Rio ~e Jaae,ro, Nova fronteira, 1982.
:: 0?24). Trad. de Herbert Caro. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980.
14
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976.
e Janeiro, Ed. do Autor • 1964. p. 9. RIBEIRO, João Ubaldo (1984). Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1987.
}!J4_.2TE
~O~R~IA~DO
~R~O~M~
ANC:_!:
E_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ ___

NARRADOR JS

ominados. As vozes se conjugam como máscar


d0res e a voz dos d h ·1· as
d nte encobrem o narrador, ost1 1zam-se sem que um dela a paisagem vista da janela. A riqueza da casa e do bairro afeta
que al_terna ame romance de João Ubaldo Ribeiro representa be ª as plantas do jardim e os veículos da rua. A casa é o centro. o narra-
silencie a outra. O 'kh ·1B kh . O m dor abandona a personagem e circula pelo corredor , pela sala para
. valesco descrito por M1 a1 a tm. discurso mo.
o discurso carna . , . , 1 d 1 . b' . apresentar as crianças que serão confiadas aos cuidados de Elza.
. lógico autontano e so apa o pe a msta 1hdade pelo
nolft1co, mono ' . - 1 . , Mário de Andrade, que adotou no romance técnicas de narrati-
. to pela liberdade, pela mvençao, pe a novidade, pelo im-
mov1men , d . va cinematográfica, move o foco narrativo como se fosse uma câma-
. 0 narrador • sendo uma peça o romance, se mventa e rein ·
previsto. ra. Nos objetos enfocados e nos cortes feitos, o romance incorpora
venta como tudo no universo romanesco. Procurar. o narrador antes técnica narrativa própria do cinema.
do romance não conduziria a resultado promissor. Clarice Lispector escapa por outra via da tradição realista. Por
variadas que sejam as manifestações do realismo, têm isto em comum:
a certeza da realidade objetiva e material. Balzac acreditava poder
descrever os objetos sem desvios determinados pela perspectiva. Cla-
rice Lispector recusa o mundo balzaquiano, anterior e independente
Perspectiva Mediante a perspectiva, o narrador escolhe o ân. da percepção sensorial. Isso já se percebe em Perto do coração selva-
g]lli)_de ob..seLv.ação,_dis.tancia-se e aproxima-se do gem, seu romance de estréia. O romance começa assim:
.obJet&:- JmpossívéÍ revelou-se a pretensão realist~ ~e rep~oduzir no
A máquina do papai batia tac-tac ... tac-tac-tac ... O relógio acor•
texto a realidade objetiva, não deformada pela v1sao. VeJa-se como
d?~ em tin•dlen sem poeira. O relógio arrastou-se llZZll.. O guarda-roupa
Mário de Andrade enfoca personagem e ambiente no final do primeiro d1Z1a o quê? roupa-roupa-roupa. Não não. Entre o relógio, a máquina
quadro em Amar, verbo intransitivo: e o SIiêncio havia uma orelha à escuta, grande, cor-de-rosa e morta. os
três sons estavam ligados pela luz do dia e pelo ranger das folh inhas
Elza viu ele abrir a porta da pensão. Páam ... Entrou de novo no quarto da árvore que se esfregavam umas nas outras radiantes.16
ainda agitado pela presença do estranho. Lhe deu um olhar de confian-
ça. Tudo foi sossegando pouco a pouco. Penca de livros sobre a escri• :.. As coisas não comp~ ~m c2.._m o objetivamente são. Existem
vaninha, um piano. O retrato de Wagner. O retrato de Bismarck. 15 como som porque há uma orelha à escuta. Os son sadquTrem a mes-
ma densidade da luz do dia que os liga. Não importa o que som e
Tem-se no princípio a visão ampla da pensão. Sousa Costa abre luz objetivamente sejam, na experiência da personagem eles se con-
a porta e sai. O narrador acompanha o olhar de Elza, que volta a fundem. Os sentidos recriam o que percebem. Viver é um contínuo
familiarizar-se com o seu quarto, há pouco perturbado com a pre• criar e destruir não travado por nenhum princípio objetivo. Com-
sença do estranho. A atenção fixa-se em detalhes sem registrar minú· preende-se que a realidade sensorialmente reconstruída se mova flui-
cias desnecessárias. Os livros e o piano indicam uma das ocupações da, inconsistente. A técnica realista do inventário fixava os objetos,
de Elza, ela é professora e acaba de ser contratada como tal. O quar· pro~urava aprisioná-los nas palavras de modo que o leitor pudesse
to de pensão sugere a outra profissão de Elza: a profissional do amor. abngar-se num mundo cotidiano, sólido. Joana, a personagem, faz
o contrário:
Os dois retratos falam de suas inclinações: a arte e a política. Se Wag·
ner e Bismarck estão separados por um ponto, é porque a passagem Afastava-se aos poucos daquela zona onde as coisas têm forma fixa
de um a outro está bloqueada na psique da personagem. Elza há de e arestas, onde tudo tem um nome sólido e imutável. Cada vez mais
~ 0st_rar-se_prática e sonhadora sem conseguir conciliar as duas ten· afundava na região liquida, quieta e insondável, onde pairavam névoas
vagas e f rescas como as da madrugada.
denc1as. Viverá interiormente rompida até o fim.
Quando, mais tarde, Elza chega ao casarão de Sousa Costa, 0 . Percebe-se a busca ansiosa de segurar os objetos, e estes, em
narrador ª acompanha até os seus aposentos e contempla com os olhos virtude de sua natureza líquida, escapam das armadilhas que a narra-

15 16
0 927l. Belo Horizonte, Itatiaia, 1984. 0 944). Rio de Janeiro, Sabiá, 1969.
.1

~J6_2Tle
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~ R~O~M~
Al'l~C!E _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ ___ NARR ADOR 37

s palavras, instrumentos inadequados para deter periência das invenções literárias. A escrita as sustenta e justifica. Fla-
dora lhes arma. A . derramam-se abundantes, arrastadas pelo rio que gramos a proeminência da escrita em Joyce, no Novo Romance fran-
0 q ue quer que seJa,
• obil:.. ~r No romance de
Cl . .
ance, a reahdade se ore.
não 00nscguem 1m ...... · cês, cm Clarice Lispector, em Osman Lins. Teóricos como Jacques
. tável perspectiva do narrador. Derrida forneceram o apoio teórico ao privilégio da escrita ao reque-
rece na 1ns romissos com as leis · d a o b'Jet1v1
· 'da d e J'á estavam rom.
rerem para o significante a dignidade de produtor do significado.
Os comp adiana Em Mem r,as p óst umas d e B ras
ó . , Cubas
E os narradores se tornaram leitores. Antes de narrar, o narra-
pidos na prosa mach · . . •
narrador se põe a escrever, desfe1tos todos os vmculo~ com a vida. dor leu outros textos. Foram estes que o levaram a escrever, e é com
0
'tó · que se desdobra além da sepultura, perspectiva do narra- estes que continuamente dialoga. A antiga preocupação pelas influên-
O tern n 0 . •A• A .
um ponto de vista externo a ex1stenc1a. ruptura com a vida cias literárias reduz-se a isso. Na verdade, ninguém copia de ninguém.
dor, é á1 d' • 1 ·
e com O modo estabelecido de narr. - a o_torna. 1spomve para . a in- Por mais literal que a cópia pretenda ser, nunca~ reproduzir
nção. A invenção leva ao que amda nao existe, ao que amda não 0 original. O original, por ser original, não se deixa reproduzir, e a
ve A d . -
está escrito em livro. A morte está na genese a mvençao. cópia será sempre cópia. É o que ensina, em conto exemplar, Jorge
Jogo notável de perspectivas nos oferece José Lins do Rego, em Luís Borges.
Fogo morto. 11 A visão externa nos vem através do olhar do narrador
onisciente. Conflitos interiores exprimem-se nas múltiplas incidên-
cias do monólogo interior e nos diálogos. A imagem de cada per-
sonagem se refrata na visão das demais. As perspectivas se alter- O trabalho do narrador Autor e narrador não se confun-
nam e se repelem, coincidentes apenas na dissolução inexorável da dem . .Q_autor é o fundador da_
sociedade patriarcal e escravocrata, metaforicamente traduzida pelo ~ o w.wWJesc9 ao qual o narrador pertence.
título. São pertinentes as distinções que Pierre Macherey faz entre cria-
ção e produção. Concepções anteriores, derivadas do criacionismo,
colocavam o artista na dependência do Criador, elevando-o, de certa
forma, acima do trabalho operário. Ao colocar o fazer artístico no
O narrador como leitor o narrador dirige-se ao leitor, e o domínio da produção, Macherey acentua o trabalho modestamente
primeiro leitor é o próprio narra· operário do autor, inserido no processo geral de transformação.
~ r •~ o~ nar~ador o ~ u..P_!imeiro leitor._ t também o seu primei· · As obras não surgem, como vimos, em momentos geniais_]:jas_
r~ c_rí.!!5.0 . O leitor gue cada narr ador tem em si mesmo manda subs- são resultad.o_de lenta elabof ação ~e epd~IQlongar-sc;.J2or ™ s
tituir palavras, eliminar capít ulos, introduzir outros, caracterizar ..e angs. A produção se estende num afanoso fazer, desfazer e refazer.
melhor certas personagens, reescrever tudo ou parte do todo. .Qp_rodutoiinal_per~. por vezes, toda semelhança com o projeto ini-
. Os primeiros narradores épicos foram ouvintes. O assunto, 0 _cial. Flaubert está entre os artesãos meticulosos da palavra. CÓstu-
"~º: ? 5 sons entravam-lhes pelos ouvidos, e os novos narradores mava submeter cada página, cada linha a cuidadosa revisão.
Se estamos inclinados a admitir o..fflliOr como riperár-io, a leitu-
se dirigiam I outros ouvidos. A narrativa era canto, o canto das mu-
sas. Com O a~vento do romance, a narrativa se faz escrita derivada ra de A condição humana 18 oferece elucidativas contribuições.
de outras escntas. A escrita, que no princípio da arte narrativa tinha Distanciando-se de Karl Marx, Hannah Arendt divide a atividade hu-
mana em três categorias:......, te ::b :d:hú e ~ . Entende por labor
~ e r , u e caráter acessório, projetou-se a ponto de elidir
ª.or~dade. arrar tornou-se exercício de escrita Um grupo expres- !S ativ~es:g~<!_as à_p~ser:Y~o-®..rlda. O labor, determinado pela
sivo e romancistas já não está interessado na c~nfirmação pela ex- ê sobreviver, não deixa nada atrás de si. Com rapidez
11
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RiodeJaneiro,
· Jo~ OIYfflpío, 1943. A,n,t.JOT, Hannah (1958). Rio ·de Janeiro, Forense, 1981.
~Ja_:!TE~O~R~IA~D~O~R~O~M~AN~cE~- - - - - - - - - - - - - - - - - -

dOS A ele dedicavam-se na antigüidade


se os seus resulta · .
consomem- 05
.Q_trahalho, mais do que o labor, afasta
as mulheres e:; ~s escra:el~ trabalho, •produzimos o mundo artificial
o homemdanatureza,L!
O
dutos do---
que• nos cerca.d 1sbpro o homem expnme
trabalho sao- duráveis,
· o deseJo
· ao contrário
· de sobrev1vencia
do resultado b~ha ~ ·ação O reino das palavras, nos insere no mundo
· - 5
através do tra ~ano. jã que ela não é imposta pela necessidade Personagem
~ ntc p
- e, la' utilidade como o trabalho.
orno o labor, nem . - - . _
e - · .- ,-d d artísti·ca reúne qualidades do trabalho e da açao,
A auvi a e , ei·s e eleva o homem acima · da necessidade
· e da
roduz
P.. o bras d urav . 1·
e quando bem-sucedido, age ivremente sobre 0
utilidade. 0 romanc ' l , .•
-lo e o apresenta duráve e novo a expenen-
mundo para trans formá
· . o autor de romances sustenta o mundo romanesco.so-
. do 1e1tor·
cia
·va do narrador que, ao narrar, congrega livre
bre a palavra persuasi
·e· criativamente os homens. .. .
o narrador perdeu a segurança do aedo. C! ~edo di~1g~a-se_a um
auditório atento e passivo, legitimado pela tradiçao. e a sabia one~ta-
ção das musas. o aedo não escolhia, as escolhas Já ~stavam feitas.
Áo cantar rearranjava sintagmas consagrados num sistema de com-
binações ~revistas. Não titubeava. O domínio da arte sustentava-lhe
o improviso. . . . Actantes e atores Lembremos alguns títulos de romances do
..O..nai:radar..éJn.v.entor. Apagados os cammhos, vagueia perdi- século passado: Iracema, Inocência, A es-
do no deserto. O aedo cedeu lugar ao escritor, o homem que faz a crava Isaura. O homem, embora abalado, ainda se mantinha no cen-
angustiosà experiência da página em branco. Escrever tornou-s,e ~ven- tro das atenções; em torno dele continuavam a girar os acontecimen-
tura. O escritor está longe dos heróis que se distinguiam no habil do- tos, mesmo que o darwinismo lhe tivesse tirado o trono em que se
mínio da palavra e se mostravam destros no manejo das armas .. O • assentava como rei.
escritor perdeu todas as habilidades. Mostra-se ironicamente aquem No século XX, os títulos soam diferentes: Vidas secas, Usina,
das solicitações. Q..nfilr_alioL.toJllQ.U;Se.escritor. Como escritor, escre- O tempo e o vento, Grande sertão: veredas_. Onde está o homem? Sub-
ve no abandono de opções previamente tomadas. Ao narrar, compete- misso a poderes que o excedem, sejam eles naturais, econômicos ou
históricos, perdeu a posição eminente qµe orgulhosamente ocupava.
-lhe inventar a linguagem. . A própria técnica, produto de sua inventividade, lhe fugiu das mãos,
passando a determinar-lhe os atos.
I
As reflexões teóricas àcompanharam o que se observa na socie-
dade e na produção ficcional. Vladimir Propp1 , ao examinar o conto
popular russo, atribui às personagens, soberánas outrora, papel in-
significante. No centro estão as trinta e uma funções (ações), presas
a "esferas de ação" (papéis predeterminados), em número de se-

1 (1928). Morfologia do conto. Trad. de Jaime Ferreira e Vitor Oliveira. Lisboa, Ve-

ga, 1978.

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