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4 fala, escreve. O texto sai da solidão dele para a solidão dos leitores.
Passando a escrever na língua de toda gente sobre os conflitos de ca-
da um, o autor é agora verdadeiramente um auctor, um fundador.
Narrador Um novo mundo sai de suas mãos, o mundo dos tempos modernos.
Conscientemente ou não, o autor o ajuda a criar. Dele é a epopéia
da modernidade, o romance.
Mesmo sem musas, o narrador pode continuar a narrar à ma-
neira dos cantadores épicos, como se a voz não fosse dele, como se
fosse de um que tivesse o dom da onipresença. Todas as portas lhe
estando abertas, nada obsta que surpreenda os sentimentos íntimos
mais secretos. Comporta-se, por vezes, como um deus sem corpo e
sem culto e autoritariamente exige fé no seu testemunho.
Visto que o romance brasileiro nasceu depois da independência
do Brasil, coube aos romancistas a tarefa de ajudar a construir o país.
José de Alencar teve plena consciência dessa responsabilidade. Criou
personagens: fez do índio herói nacional e começou a esboçar tipos
regionais como o gaúcho e o sertanejo, dando-lhes costumes e língua
peculiares. Substituindo as musas pela pátria, quis que a voz dela,
nas imagens, no vocabulário e na sintaxe soasse através da voz dele,
Voz cultivada na gramática e na retórica portuguesas.
Voz e perspectiva Gênios
Nem todos os teóricos distinguem voz e perspectiva. Há, entre- ' Abandonados pelos deuses, os próprios autores passaram a se
tanto, vantagem em tratá-las separadamente. Quanto ~ voz, o narra- deificar. Os românticos se consideravam gênios e disso persuadiram
dor pode eleger a primeira pessoa ou a terceíra; quanto à perspectiva, os críticos. Estes, na esteira de Sainte-Beuve, acreditavam que o mis-
o narrador pode ver os acontecimentos de perto ou a distância, pode tério da obra de arte poderia ser esclarecido, conhecendo-se a perso-
penetrar na psique das personagens ou restringir-se a observar fisio- nalidade genial do autor. Consideravam a genialidade consistente
nomias, gestos, acompanhar os acontecimentos no seu efeito exterior. como as rochas. Interessava-lhes não só a biografia do autor como
Vozes e perspectivas podem combinar-se das maneiras mais diversas também o momento exato em que a obra genial teria sido escrita.
na mesma narrativa.
Passada a febre romântica, descobriu-se que não há personali-_
dades gepjak. Ao caráter não convém a resistência dos sólioos. Con-
Voz do alto
vertida em m~ara, a personalidade ficou reduzida aos papéis sociais
que representamos e que, espelhados nos outros, construímos.. Pec-
Primeiro foi a voz das musas, o narrador fingia que não tinha
@nalidades são textos cuja cousistência e unidade não excedem a da
voz. A voz era só delas, voz de outros tempos, outra gente, voz com
~ - Se hoje nos preocupamos com a natureza do texto, é porque
palavras e frases estranhas, voz do alto, do distante mundo dos deu-
sabemos que nada nos redime do emaranhado textual em que todos
:es. O narrador falava como inspirado, como possesso. Falando len-
estamos enredados.
0 e sereno, arrebatava a confiança de ouvintes atentos. Assim se
comportava o narrador das epopéias antigas.
NARRADOR 29
TEORIA DO ROMANCE
•meira pessoa poderia ser decisão orgulhosa· ' Ao enveredar para os romances narrados em primeira pessoa,
Escrever em P~~ nos casos de sucesso, gesto de humildade. Ó Machado deriva força precisamente dos limites que sujeitam o narra-
mostrou-se, endt_retan t'á linu"tado Falta-lhe a mobilidade anônima dor. Em Memórias póstumas de Brás Cubas1 , o eu narrador assume
d que iz eu es · , ·
narra or d teci·par O futuro. Mais seguro lhe e falar de si mes-
- lhe é daó o. anlhe é auxiliar valioso. Mesmo no estreito · espaço de 0 papel de um que não sabe, mas se empenha a fundo em saber. Por
Nao não saber, ousa questionar os que pensam saber. Aparece armado
mo · A memá na R d
. ·t A memória falha. ecor ar a os nao f t ~ significa
· · ·
com o vigor da ironia socrática, alavanca posta no corpo de sistemas
si mesmo, h 1imi es.
compreendê-los. • d , • sólidos para mover as pedras que os sustentam. O narrador se dimi-
, .. • tas e psicanalistas recentes ensmam que no omm10 do nui para poder atacar melhor, minando a empáfia alheia sem poupar
. L mguis · d N-
s sempre em presença de enuncia os. ao se con f un-
d1scurso estamo ficção sujeito da enunciaçãQ.. , (enuncia · d or) e suJe1to· • a si próprio.
da Falar de si mesmo é tendência natural de quem se apresenta co-
da, nem f·ora • al·
d Tomemos um exemplo ban . oao isse. - "J - d' . Q
uero mo sujeito da enunciação. Ninguém nos conhece melhor do que nós
do enuncia o. a" João é o enuncia . dor, "Q uero um copo de água "
um copo de águ · d d . . nos conhecemos a nós mesmos. Assim se pensava antes de Freud. Es-
é o enuno·ado, Do enunciado não podemos e- uzir d'
o que vai na mente
d · ár'
colados pela psicanálise, sabemos que somos mistério até para nós
do enunciador. João pode ter motivos para ~1u ir o estmat 10, Co- mesmos. Procuramos conhecer-nos através do outro , através da lin-
er se realmente está com sede? Se Joao se encontra numa sala guagem de outros, através de textos que pretendem inutilmente de-
mos ab l d 1· volver-nos o que de nós se perdeu. A suspeita de que somos estranhos
de aula, pode propor o enunciado para esc .ª~ecer aspecto_s e 1~gua~
gem. Nesta hipótese, entre enunciador e suJeito d~ enunc~ado na~ ha a nós mesmos insinuou-se em textos de ficcionistas antes da psicaná-
identidadé. Importa o momento em que o enunciado foi proferido. lise. O desencanto de Bentinho origina-se da impossibilidade de ava-
Como saber se João ainda está com sede, se ao falar realmente esteve liar com acerto os seus próprios sentimentos e de conhecer realmente
com sede? as pessoas de sua w ur.na convivência. Envolvido pelo infranqueá-
Voltemos ao romance. Seria incorreto identificar o eu narrador vel tecido de palavras e de gestos, o narrador é corroído pela suspeita
(incorporado ao romance e, como tal, sujeito do enunciado) com o de que o não percebido retém verdades que invalidam o oferecido aos
autor (sujeito da enunciação)&autor de romances pode ser também olhos e aos ouvidos. Os recursos a serviço da comunicação não serão
_autor ges_artas, de enswos,~de_poemas', de crônicãs, de peças de tea- elaboradas artimanhas para esconder o essencial? As palavras, ore-
tro, assuwindo em cada uma dessas modalidades comportamento ade- curso do narrador para expor, mostram-se instrumento falido. A pá-
_qµado . .Ça~ om:.a apareci~ uma dessas modalidades está ao nível gina converte-se em campo de batalha em que narrador e palavras
_çl~_enunciados_o autor, excedendo todas as obras, não se mostra con- se defrontam como adversários. Reescrever a vida não decifra o enig-
cluído em nenhuma delas. O autor também exerce outras funções: ma, substituir umas palavras por outras aprofunda o abismo.
vota, protesta, dirige, recebe ordens, compra, vende, ama, odeia. Os Memorial de Aires2 serena o conflito. Em prosa mansa, o nar-
atos do cidadão não comprometem o autor. Ser autor é um dos mui- rador se rende às insignificâncias do dia-a-dia sem considerá-las pa-
tos papéis representados pelo enunciador, que se esquiva e com o qual redes e~guidas sobre ausências. O Memorial, ocupação de aposentado
só em esquivanças conseguimos conviver. sem feitos luzentes a recordar e sem ambições, também aposenta o
._E.nunciadoi-são.textoul~njre~ yai§ uma categoria é ficcional narrador como decifrador .
e_cuJa~ c~cteústica_tgerais estamos tentando descrever. O narrador José Lins do Rego revigora o romance de memórias em Menino
3
_a9vém no.s romances como sufeito do enunciado de natureza intei- de engenho. O eu narrador, indeciso entre o menino e o engenho,
ramente textual ~ '
1
_A técnica de encarregar personagens de parte da narração foi Op. cit.
antecipada pela epopéia. Na Odisséia, Ulisses narra, em vários can· : MACHADO DE ASSIS, J. M . (1908). Rio de Janeiro, Aguilar, 1962.
tos, aventuras de dez anos no mar ignoto. 0 932). Menino de engenho, Doidinho, Bangüê. Rio de Janeiro, Jo~ Olympio, 1960.
, \RRf\DOR )1
TEORIA DO ROMANCE
i: g:~~lj-.
11 Rio
R'.n de Jane!ro. José Olvmoio. 1953.
Rio ~e Jaae,ro, Nova fronteira, 1982.
:: 0?24). Trad. de Herbert Caro. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980.
14
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976.
e Janeiro, Ed. do Autor • 1964. p. 9. RIBEIRO, João Ubaldo (1984). Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1987.
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NARRADOR JS
15 16
0 927l. Belo Horizonte, Itatiaia, 1984. 0 944). Rio de Janeiro, Sabiá, 1969.
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~ R~O~M~
Al'l~C!E _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ ___ NARR ADOR 37
s palavras, instrumentos inadequados para deter periência das invenções literárias. A escrita as sustenta e justifica. Fla-
dora lhes arma. A . derramam-se abundantes, arrastadas pelo rio que gramos a proeminência da escrita em Joyce, no Novo Romance fran-
0 q ue quer que seJa,
• obil:.. ~r No romance de
Cl . .
ance, a reahdade se ore.
não 00nscguem 1m ...... · cês, cm Clarice Lispector, em Osman Lins. Teóricos como Jacques
. tável perspectiva do narrador. Derrida forneceram o apoio teórico ao privilégio da escrita ao reque-
rece na 1ns romissos com as leis · d a o b'Jet1v1
· 'da d e J'á estavam rom.
rerem para o significante a dignidade de produtor do significado.
Os comp adiana Em Mem r,as p óst umas d e B ras
ó . , Cubas
E os narradores se tornaram leitores. Antes de narrar, o narra-
pidos na prosa mach · . . •
narrador se põe a escrever, desfe1tos todos os vmculo~ com a vida. dor leu outros textos. Foram estes que o levaram a escrever, e é com
0
'tó · que se desdobra além da sepultura, perspectiva do narra- estes que continuamente dialoga. A antiga preocupação pelas influên-
O tern n 0 . •A• A .
um ponto de vista externo a ex1stenc1a. ruptura com a vida cias literárias reduz-se a isso. Na verdade, ninguém copia de ninguém.
dor, é á1 d' • 1 ·
e com O modo estabelecido de narr. - a o_torna. 1spomve para . a in- Por mais literal que a cópia pretenda ser, nunca~ reproduzir
nção. A invenção leva ao que amda nao existe, ao que amda não 0 original. O original, por ser original, não se deixa reproduzir, e a
ve A d . -
está escrito em livro. A morte está na genese a mvençao. cópia será sempre cópia. É o que ensina, em conto exemplar, Jorge
Jogo notável de perspectivas nos oferece José Lins do Rego, em Luís Borges.
Fogo morto. 11 A visão externa nos vem através do olhar do narrador
onisciente. Conflitos interiores exprimem-se nas múltiplas incidên-
cias do monólogo interior e nos diálogos. A imagem de cada per-
sonagem se refrata na visão das demais. As perspectivas se alter- O trabalho do narrador Autor e narrador não se confun-
nam e se repelem, coincidentes apenas na dissolução inexorável da dem . .Q_autor é o fundador da_
sociedade patriarcal e escravocrata, metaforicamente traduzida pelo ~ o w.wWJesc9 ao qual o narrador pertence.
título. São pertinentes as distinções que Pierre Macherey faz entre cria-
ção e produção. Concepções anteriores, derivadas do criacionismo,
colocavam o artista na dependência do Criador, elevando-o, de certa
forma, acima do trabalho operário. Ao colocar o fazer artístico no
O narrador como leitor o narrador dirige-se ao leitor, e o domínio da produção, Macherey acentua o trabalho modestamente
primeiro leitor é o próprio narra· operário do autor, inserido no processo geral de transformação.
~ r •~ o~ nar~ador o ~ u..P_!imeiro leitor._ t também o seu primei· · As obras não surgem, como vimos, em momentos geniais_]:jas_
r~ c_rí.!!5.0 . O leitor gue cada narr ador tem em si mesmo manda subs- são resultad.o_de lenta elabof ação ~e epd~IQlongar-sc;.J2or ™ s
tituir palavras, eliminar capít ulos, introduzir outros, caracterizar ..e angs. A produção se estende num afanoso fazer, desfazer e refazer.
melhor certas personagens, reescrever tudo ou parte do todo. .Qp_rodutoiinal_per~. por vezes, toda semelhança com o projeto ini-
. Os primeiros narradores épicos foram ouvintes. O assunto, 0 _cial. Flaubert está entre os artesãos meticulosos da palavra. CÓstu-
"~º: ? 5 sons entravam-lhes pelos ouvidos, e os novos narradores mava submeter cada página, cada linha a cuidadosa revisão.
Se estamos inclinados a admitir o..fflliOr como riperár-io, a leitu-
se dirigiam I outros ouvidos. A narrativa era canto, o canto das mu-
sas. Com O a~vento do romance, a narrativa se faz escrita derivada ra de A condição humana 18 oferece elucidativas contribuições.
de outras escntas. A escrita, que no princípio da arte narrativa tinha Distanciando-se de Karl Marx, Hannah Arendt divide a atividade hu-
mana em três categorias:......, te ::b :d:hú e ~ . Entende por labor
~ e r , u e caráter acessório, projetou-se a ponto de elidir
ª.or~dade. arrar tornou-se exercício de escrita Um grupo expres- !S ativ~es:g~<!_as à_p~ser:Y~o-®..rlda. O labor, determinado pela
sivo e romancistas já não está interessado na c~nfirmação pela ex- ê sobreviver, não deixa nada atrás de si. Com rapidez
11
18
RiodeJaneiro,
· Jo~ OIYfflpío, 1943. A,n,t.JOT, Hannah (1958). Rio ·de Janeiro, Forense, 1981.
~Ja_:!TE~O~R~IA~D~O~R~O~M~AN~cE~- - - - - - - - - - - - - - - - - -
1 (1928). Morfologia do conto. Trad. de Jaime Ferreira e Vitor Oliveira. Lisboa, Ve-
ga, 1978.