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PIRENNE, Henry. As cidades.

In: História Econômica e Social da Idade Média


(Tradução: Lycurgo Gomes da Motta). Editora Mestre Jou, São Paulo, 1968.

Gabrielle Abreu dos Santos

“Enquanto o comércio mediterrâneo continuava atraindo à sua órbita a


Europa Ocidental, a vida urbana não deixara de manifestar-se, tanto na Gália como na
Itália, na Espanha e na África. Mas, quando a invasão islamítica bloqueou os portos do
mar Tirreno, após ter submetido as costas africana e espanhola, a atividade municipal
extinguiu-se rapidamente. Fora da Itália Meridional e de Veneza, onde se manteve, graças
ao comércio bizantino, a referida atividade desapareceu de todas as partes. Materialmente,
subsistiram as cidades, porém, perderam sua população de artesãos e comerciantes e, com
ela, tudo quanto sobrevive da organização municipal do Império Romano.” P. 45

“As “cidades”, em cada uma das quais residia um biso, foram somente, desde
então, centros da administração eclesiástica, que sem dúvida, foi grande do ponto de vista
religioso, porém nula do ponto de vista econômico.” P. 46

“Na realidade, as cidades episcopais substituíam, unicamente, graças ao


campo. As rendas e os tributos dos latifúndios que pertenciam ao bispo ou aos abades que
residiam intramuros, serviam para cobrir-lhes as despesas. Sua existência estava, pois,
baseada essencialmente na administração.” P. 46

“Em tempos de guerra, suas antigas muralhas proporcionavam um refúgio à


população dos arredores. Mas durante o período de insegurança que se inicia com a
dissolução do Império Carolíngio, a necessidade de proteção, que se tornou primordial
para as populações acossadas no Sul pelas incursões sarracenas e no Norte e Oeste pelas
os normandos, às quais vieram a juntar-se, no começo do século X, os terríveis raids da
cavalaria húngara, tornou-se imprescindível em todas as partes a construção de novos
lugares de abrigo.” P. 46/47

“A Europa Ocidental cobre-se, nesta época, de castelos fortificados


edificados pelos príncipes feudais para servir de refúgio aos seus homens. Esses castelos
ou, para empregar o termo com que são designados geralmente, esses “burgos”, possuem,
quase sempre, uma muralha de terra ou de pedra, rodeada por um fosso, em que se abrem
várias portas.” P. 47
“O ressurgimento do comércio não demorou em alterar profundamente o seu
caráter. Observam-se os primeiros sintomas de sua ação durante a segunda metade do
século X. A existência errante dos mercadores e os riscos de toda espécie a que estavam
expostos, em uma época em que o saque constituía um dos meios de existência da
pequena nobreza, impeliam-nos a procurar desde logo proteção no interior das muralhas
que escalonavam ao longo dos rios ou dos caminhos naturais que percorriam.” P. 47

“[...] o espaço que cidades e burgos ofereciam a esses adventícios, cada vez
mais numerosos e estorvantes, enquanto a circulação se tornava mais intensa, já não
bastou para contê-los. Tiveram que se estabelecer nos arredores da cidade ou anexar a um
burgo antigo um novo, ou para usar o termo que se deu com muita exatidão um foris-
burgus, isto é, um burgo dos arredores, um arrabalde (faubourg).” P. 48

“Nasceram assim, ao lado das cidades eclesiásticas ou das fortalezas feudais,


aglomerações mercantis, cujos habitantes se dedicavam a um gênero de vida em perfeito
contraste com a que levavam os homens do interior das muralhas.” P. 48

“A palavra portus, que se aplica nos textos dos séculos X e XI a esses


estabelecimentos, caracteriza com muito acerto, a sua natureza. Significava, com efeito,
não um porto no sentido moderno, mas um ugar por onde se transportam mercadorias,
portanto, um ponto particularmente ativo de trânsito.” P. 48

“Nesse sentido, é rigorosamente exato dizer que a cidade da Idade Média e,


por conseguinte, a cidade moderna, teve seu berço no arrabalde (forisburgus) do castelo
ou do burgo que determinou seu sítio.” P. 49

“A afluência dos mercadores aos lugares favoráveis provocou por sua vez o
afluxo dos artesãos. A concentração industrial é um fenômeno tão antigo como a
concentração comercial, e é possível observa-lo, na região flamenga, com particular
nitidez.” P. 49

“A diferença que coloca os mercadores e os artesãos das nascentes cidades


em oposição à sociedade agrícola em cujo meio aparecem, provém do seu gênero de vida,
que ainda não se acha definido por suas relações com a terra.” P. 50

“A atividade comercial e a industrial, que até então foram unicamente as


ocupações casuais ou intermitentes dos agentes do senhorio, cuja existência era garantida
pelos latifundiários que os empregavam, transformam-se agora em profissões
independentes.” P. 50

“Mas antes de tudo, uma questão se coloca: Como se pode explicar que,
dentro de uma sociedade exclusivamente rural, em que a servidão é a condição normal do
povo, se tenha podido formar uma classe de mercadores e de artesão livres?” P. 51

“É certo, em primeiro lugar, que o comércio e a indústria tiveram de recrutar-


se, em sua origem, entre homens desprovidos de terras e que viviam, por assim dizer, à
margem de uma sociedade em que somente a terra garantia a existência.” P. 51

“Não deixaram de aproveitar os novos meios de vida que lhes oferecia, ao


longo das costas e dos estuários dos rios, a chegada de navios e mercadores.
Impulsionador pelo espirito da aventura, não há dúvida que muitos se engajaram nos
navios venezianos ou escandinavos que precisavam de marinheiros [...]” P. 52

“Em uma época que as penúrias locais eram muito frequentes, bastava
encontrar-se uma pequena quantidade de cereais por um bom preço, nas regiões onde
abundavam, para obter lucros fabulosos, que se multiplicavam depois, com facilidade,
seguindo o mesmo método. A especulação que é o ponto de partida dessa espécie de
negócio, contribuiu, pois, grandemente, para a formação das primeiras fortunas
comerciais.” P. 53

“É provável, também, que alguns proprietários de terras tenham investido


parte de suas rendas no comércio marítimo.” P. 53

“O primeiro impulso veio do estrangeiro: ao Sul, proveio da navegação


veneziana; ao Norte, da escandinava.” P. 54

“O novo gênero de vida que se oferecia à massa errante de pessoa sem terra,
exerceu sobre elas uma atração irresistível, uma vez que prometia satisfazer-lhes a cobiça.
Dele resulta um movimento de emigração dos campos para as nascentes cidades.” P. 54

“Ao concentrar-se nas cidades, a indústria abasteceu a exportação de maneira


cada vez mais ampla. Os seus progressos multiplicaram, por outro lado, o numero de
mercadores e desenvolveram a importância e os lucros dos próprios negócios.” P. 54/55

“Certamente, a constituição de grandes fortunas foi, nesta época, um


fenômeno comum e corrente em todos os centros onde se desenvolveu um comércio de
exportação. Assim como os detentores de solo haviam cumulado os mosteiros com
doações de terras, assim os mercadores empregaram os seus capitais em função das
igrejas paroquiais, hospitais, asilos, em uma palavra, em multiplicar, para sua salvação,
as obras religiosas e caritativas em favor dos seus concidadãos.” P. 55

“Outros mercadores enriquecidos, mais preocupados com a sua ambição


terrestre, tratavam de elevar-se na hierarquia social, casando suas filhas com cavaleiros.
E a sua fortuna deveria ser muito grande para abolir nestes os preconceitos do espírito
nobiliário.” P. 55

“Esses grandes mercadores ou melhor, esses novos ricos, foram naturalmente


os chefes da burguesia, posto que esta, por sua vez, era tão somente uma criação do
renascimento comercial e que, a princípio, as palavras mercator e burguensis são usadas
como sinônimos. Mas, ao mesmo tempo que se desenvolve como classe social, a referida
burguesia se constitui também como classe jurídica, cuja natureza, eminentemente
original, convém agora examinar.” P. 56

“As necessidades e as tendências da burguesia eram tão incompatíveis com a


organização tradicional da Europa Ocidental, que encontraram, desde o princípio, feroz
resistência. Estavam em luta com o conjunto de interesses e de ideias de uma sociedade
dominada, do ponto de vista material, pelos possuidores dos latifúndios e, do ponto de
vista espiritual, pela Igreja, cuja aversão pelo comércio era invencível.” P. 56

“Perante esta sociedade, a burguesia está longe de assumir uma atitude


revolucionária. Não protesta nem contra a autoridade dos príncipes territoriais, nem
contra os privilégios da nobreza, nem, principalmente, contra a Igreja.” P. 56

“Entre essas reinvindicações, a mais presente é a liberdade, que é a faculdade


de transladar-se de um lugar para outro, de fazer contratos, de dispor de seus bens,
faculdade cujo exercício exclui a servidão.” P. 57

“A liberdade transforma-se em condição jurídica da burguesia, em tal grau


que não é somente um privilégio pessoal, mas um privilégio territorial inerente ao solo
urbano, da mesma forma que a servidão é inerente ao solo senhorial.” P. 57

“O direito tradicional, com seu processo estritamente formalista, com seus


ordálios, os seus duelos judiciais, seus juízes recrutados na população rural e que
conheciam unicamente o direito consuetudinário que se elabora, pouco a pouco, para
regulamentar as relações dos homens que viviam do trabalho ou da propriedade da terra,
não basta a uma população, cuja existência depende do comércio e do exercício de alguma
profissão.” P. 58

“Desde muito cedo, o mais tardar desde princípios do século XI, criou-se, sob
a pressão das circunstâncias, um jus mercatorum, isto é, um direito comercial
embrionário. Consistia em um conjunto de usos surgidos da prática, uma espécie de
direito consuetudinário internacional que os mercadores aplicavam entre si, em suas
transações.” P. 58

“Logo, essa jurisdição ocasional se converte em jurisdição permanente


reconhecida pelo poder público.” P. 58/59

“A sua autonomia judicial corresponde a sua autonomia administrativa, pois


a formação das aglomerações urbanas envolve numerosos trabalhos de instalação e de
defesa a que elas mesmas devem prover, uma vez que as autoridades tradicionais não
tinham meios nem desejo de prestar-lhes auxilio.” P. 59

“A mais urgente destas era a necessidade de se defender. Os mercadores e as


suas mercadorias eram, com efeito, uma presa demasiado cobiçada para que não se
tratasse de protege-los com uma sólida muralha. A sua construção foi a primeira obra
publica que empreenderam as cidades e a que, até fins da Idade Média, gravou com
maiores despesas as suas finanças.” P. 59

“O fato de figurar, ainda hoje, no escudo dos municípios, uma coroa mural,
mostra a importância que se dava à muralha. Não existe cidade alguma, na Idade Média,
que não tenha sido fortificada.” P. 59/60

“Para cobrir os gastos exigidos pela necessidade permanente de fortificar-se,


tornou-se, indispensável a instituição de recursos. E onde se poderiam obter estes, senão
no próprio seio da burguesia? Como estavam interessados, na defesa comum, todos seus
membros tiveram, também igualmente, de contribuir com as despesas.” P. 60

“Para estabelecer e receber o imposto, a fim de satisfazer as necessidades,


cujo numero ia crescendo, ao passo que aumentava a população urbana – construção de
cais, mercados, pontes e igrejas paroquiais, regulamentação do exercício dos ofícios,
vigilância dos alimentos etc. – foi preciso, desde logo, eleger ou fazer instalar-se um
conselho de magistrados, que se chamaram, na Itália e na Provença, cônsules, jurados na
França e alderman na Inglaterra.” P. 60

“No século seguinte, transformaram-se, em todas as partes, em uma


instituição ratificada pelos poderes publico e inerente a qualquer constituição municipal.”
P. 60

“Os príncipes leigos logo compreenderam as vantagens que lhes trazia o


crescimento das cidades, pois à medida que a circulação se tornava mais ativa nas estradas
e nos rios, e que a multiplicação das suas transações exigia o aumento correspondente do
numerário, as rendas das alcavalas e de toda espécie de portagens, do mesmo modo que
as da moeda, alimentavam, com maior abundancia, o tesouro dos senhores feudais.” P.
60/61

“Assim, de bom grado ou à força, as cidades adquiriram ou conquistaram,


uma, desde o princípio, outras no decorrer do século XII, as constituições municipais que
o gênero de vida de seus habitantes impunha. Nascidas nos “novos burgos”, nos portus,
onde se aglomeravam os mercadores e os artesãos, desenvolveram-se com tal rapidez que
logo se impuseram à população dos “burgos velhos” e das “cidadelas”, cujas antigas
muralhas, que cercadas por todos os lados de bairros novos, desmoronaram como o
primitivo direito.” P. 61/62

“O que caracteriza essencialmente a burguesia, é que formou, no seio do resto


da população, uma classe privilegiada. Deste ponto de vista, a cidade da Idade Média,
oferece um manifesto contraste com a cidade antiga ou com as do nosso tempo, pois estas
se distinguem unicamente pela densidade dos seus habitantes e a complexidade da sua
administração.” P. 62

“O burguês medieval, ao contrário, é um homem que difere qualitativamente


de todos os que vivem foram da muralha municipal.” P. 62

“A aquisição da burguesia produz efeitos que equivalem ao fato de ser armado


cavaleiro ou para um clérigo, ao ser tonsurado, pois confere um estado jurídico especial.
O burguês escapa, como o clérigo e o nobre, ao direito comum; como eles, pertence a um
estado (status) particular, que mais tarde se designará pelo nome de terceiro estado.” P.
62
“[...] a burguesia é uma classe de exceção, se bem se deixa observar que é
uma classe sem espírito geral de classe. Cada cidade forma, por assim dizer, uma pequena
pátria por si só, ansiosa por conservar suas prerrogativas e em oposição a todas as suas
vizinhas.” P. 62

“Quanto às populações do campo, a burguesia as considera, unicamente,


como um objeto de exploração. Não somente não tratou de que participassem em suas
franquias, mas sempre lhes negou, obstinadamente, o gozo destas. Sob esse ponto de
vista, nada há mais contrário ao espírito das democracias modernas do que o exclusivismo
com que as cidades medievais defenderam os seus privilégios, mesmo, e principalmente,
nas épocas em que artesãos as governaram.” P. 62/63

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