O movimento se caracteriza por um deslocamento em relação à imobilidade. Não pode haver movimento
sem ponto fixo. Tudo que se move é reconhecido em função de um elemento escolhido como referência
imóvel.
Assim, vejo o vôo de um ganso em relação à imobilidade da lagoa. Vejo o bater de suas asas em relação a
seu corpo. Observo o deslocamento de seu corpo de cima para baixo em função de sua cabeça imóvel.
Desloco-me sobre uma Terra imóvel que entretanto gira ao redor de seu eixo e que evolui em torno do Sol
fixo, que, por seu turno, desloca-se junto com sua galáxia em um universo que se move ao infinito.
Compreende-se facilmente que o homem tenha tido necessidade de buscar um ponto fixo no céu para
reconhecer-se, e que tenha tido necessidade de impedir a grande vertigem mesmo quando esses diferentes
pontos fixos, nos quais acreditava sinceramente, revelaram-se falsos, à medida que seu conhecimento do
universo aumentou! Os deuses são assim os pontos fixos dos homens; e os pontos fixos fazem as leis,
mesmo se os homens participam nisso. Deus tem tanto trabalho que precisa de ajuda... Mas tudo se
move, e o ponto fixo move-se junto, se permitirmos; eis aí o humor do movimento.
O ponto fixo
Se o ponto fixo situa o deslocamento de um movimento, o movimento põe em evidência o ponto fixo. No
que se move vemos apenas o que é imóvel. Esta observação é de grande interesse para a expressão
dramática.
Na entrada em cena da Magnani em sua revista Chi e di scena, joguei com esse princípio. A cena se
passa em uma praça de Roma cheia de personagens de carnaval, dançando com figurinos multicores.
Subitamente ouve-se o ruído longo e estridente de uma sirene anunciando um ataque aéreo, como no
filme Roma cidade aberta, de Rossellini; pânico, confusão na multidão que desaparece, deixando a cena
vazia, revelando no centro da praça, atrás, sozinha, imóvel em um pequeno vestido negro colado a seu
corpo, Anna Magnani, que docemente canta uma canção de Trastevere sobre Roma. Era preciso que
fosse a Magnani para conseguir, sozinha, equilibrar assim o espaço do palco deixado livre pela multidão.
Se tivéssemos um gato em seu lugar, o riso viria preencher o vazio existente entre a presença do gato e a
da multidão; desequilíbrio de peso.
Constatamos que o movimento se dá nas relações de equilíbrio e desequilíbrio, em ligação com as leis da
gravidade.
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Equilíbrio e desequilíbrio
O corpo humano está ligado às leis da gravidade, que o atraem para baixo, dando-lhe um peso; a vida o
impele para o alto, lutando contra essas mesmas leis. Para deslocar-se, ereto, a partir desse equilíbrio, o
corpo arrisca a queda, ocasionando ele mesmo sucessivos desequilíbrios que são compensados a cada
passo; assim ele caminha. Ele age e reage, recebe e dá.
Se alguém, de pé sobre uma só perna, recebe uma "bola medicinal" de cinco quilos em um de seus lados,
deverá, para manter o equilíbrio, responder imediatamente com o outro lado.
Se duas forças opostas lutam uma contra a outra, a ruptura do equilíbrio das forças gera um movimento
de deslocamento. A alternância permite o repouso de uma parte do corpo em relação a outra: o que é
feito para a esquerda é feito para a direita.
Para lançar um seixo no mar, faço um movimento de impulso oposto à direção do objetivo visado. Em
um movimento, há dois movimentos de sentido inverso. Assim, o amor ombreia com a ódio.
Leonardo da Vinci, em seu Tratado de pintura, faz observações pertinentes sobre o movimento: "Um
homem que carrega um fardo com um braço estende naturalmente o outro braço, e se isto não basta para
fazer o contrapeso, ele curva o corpo quanto for necessário. Quem vai cair para um lado sempre estende
um braço e o coloca em sentido oposto."
A arte do movimento deve sempre ter presentes as noções de compensação, de alternância, de impulso, de
ritmo e de espaço.
A compensação
Para carregar um balde d'água, compenso inclinando o corpo para o lado oposto, a fim de manter o
equilíbrio. Essa atitude compensadora sugere o peso do objeto. Freqüentemente vi no cinema malas,
ditas cheias, serem carregadas como se estivessem vazias, como de fato estavam...
Os sentimentos opõem-se em nós criando conflitos entre o amor e a razão, a paixão e o destino, que
puxam cada um para o seu lado. Na tragédia, sendo a escolha impossível, somente a morte pode ser o
fim.
A alternância
A alternância favorece a duração e põe em relevo uma e outra parte, assegurando-lhes, por contraste, um
novo interesse. Não se pode conceber uma pessoa que está sempre rindo, o que seria inquietante. Como
a noite é o repouso do dia. No teatro, alternamos cenas diferentes para que o espetáculo seja mais
interessante, mais equilibrado.
O impulso
No maior deslocamento de um objeto ou de si mesmo (lançar, saltar) criamos, antes do gesto da ação
propriamente dita, um gesto em sentido contrário, que serve para definir a sua direção, como que para
buscar apoio, para concentrar a força de propulsão. É o impulso do esforço, seu ímpeto.
O saltador em altura afunda no solo antes de se projetar no ar (flexão, extensão). Inclinamo-nos para trás
na cadeira antes de levantar para a frente (contração, avanço). O lançador de disco prepara sua torção
com uma torção inversa.
Na expressão, o impulso é de tal maneira sugestivo que define o movimento da ação que se segue.
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Assim, uma criança compreende que vai receber um tapa logo que vê uma mão ameaçadora levantar-se
acima dela.
A supressão do impulso criará uma surpresa, e o disfarce será fazer uma ação com um falso impulso. Um
impulso desmedido para uma ação mínima criará uma ruptura que o riso equilibrará. Esta última é usada
no cinema burlesco.
Nos desenhos animados, quando o cachorro Pluto prepara-se para correr, recua três metros antes de
investir para o seu objetivo.
O Senhor Hulot, para pôr-se em marcha, dá um pequeno salto para trás. Na linguagem corrente equivale
a dizer: recuar para melhor saltar.
Em Shakespeare, cenas cômicas antecedem as cenas trágicas a fim de melhor preparar os espectadores
para recebê-las, aplicando as leis da alternância e do impulso.
O acento do movimento
Destacar o começo de um movimento daquilo que o precede e apontar sua finalidade põe em relevo esse
movimento. Todos os teatros de alto nível de representação, estilizando o gesto, encontraram o acento.
Estando o movimento compreendido entre duas atitudes, estas, por sua imobilidade, marcam seu início e
seu final. O acento situa-se no começo do movimento a partir da imobilidade, num rápido instante,
encontrando sua velocidade regular muito perto da partida, dando a impressão de uma parada. O mesmo
vale para o término do movimento, a imobilidade será precedida de uma aceleração, que dá relevo à
atitude final. Esse acento termina com uma leve batida do movimento sobre seu ponto de chegada,
podendo também se exprimir por uma pequena explosão.
O teatro clássico japonês, o jogo mascarado da commedia dell'arte, utilizam o acento do movimento;
também a Ópera de Pequim, onde os movimentos dos atores literalmente explodem em poses
monumentais.
O acento que finaliza é muito importante, é ele que dá qualidade ao movimento. O ponto que termina a
frase justifica o fato de ela ter começado. Vale o mesmo para a palavra no teatro, onde o ator tem
tendência a deixar cair os finais das frases.
O grande ator italiano Memo Benassi, habituado a representar ao ar livre, acrescentava, no final de suas
frases que terminavam com um e, um t que acentuava a palavra para que fosse ouvida (ele tinha atuado
com Sarah Bernhardt e a Itália não tinha tido um Jacques Copeau).
No teatro é o último ato que conta, e sempre se recorda mais o final que o início - é ele que revela a
qualidade do conjunto.
O ritmo
Um movimento não tem nenhuma forma nem vida se não tiver ritmo, e aqui tocamos no aspecto maior do
movimento. Podemos decompor um ritmo, medi-lo, aumentar ou diminuir sua velocidade. Sabemos que
ele é de essência orgânica, que é feito de impulsos e de quedas, de relações de tempos fortes e de tempos
fracos, mas ele nos escapa em sua essência quando queremos penetrá-lo, como nos escapa o mistério da
vida. Ele é a vida. Traz consigo um vocabulário que confunde e as palavras deslizam na linguagem
corrente, umas dentro das outras.
Vale o mesmo para a medida, a velocidade, a cadência, o tempo, a freqüência, etc. Os soldados marcham
em um passo cadenciado, a ginástica de aparelhos é feita de "tempo", a música de jazz tem ritmo (por que
ela o tem mais do que a música clássica?). Uma canção tem ritmo porque a medida é bem cadenciada e a
freqüência é rápida. Assim, cercamos o ritmo através de óticas diferentes, sem jamais abarcá-lo; ele é
apreendido na armadilha da medida. O ritmo transporta consigo um fator emotivo, a simpatia, o amor...
A comunhão teatral entre o público e o autor, por intermédio dos atores, é um acordo rítmico. Conheci
uma grande atriz que representava Electra de Sófocles sem saber o que dizia, e espectadores que
choravam sem compreender as palavras do texto, estando ela e eles ligados por um ritmo emotivo
violento: intuição dos grandes artistas que ultrapassa o poder da razão.
Um casal pode estar unido no fundo por um ritmo comum e dicordar em ritmos secundários; como o
tronco de uma árvore com seus galhos que disputam entre si.
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O espaço
O movimento não é somente um deslocamento de linhas, ele propõe ao espaço pressões e tensões. As
forças jogam assim uma contra a outra, uma com a outra, dando uma consistência viva e vibrante ao
espaço. Definir seu percurso é superficial. Uma escultura de Rodin, imóvel em sua própria matéria,
move-se em si mesma e faz com que se mova o espaço que a rodeia: organizam-se em sua forma as
contradições motoras da dinâmica...
O "empurrar/puxar" é o motor direcional que se desenvolve como: empurrar-se/puxar-se e ser-
empurrado/ser-puxado. É nesse nível que o movimento toma sua verdadeira dimensão, organizando-se,
no tempo-espaço, pelo ritmo.
O teatro de alto nível de representação coloca o corpo em um espaço de tensão mais alto do que o que é
usado habitualmente na vida. Cheguei assim a estabelecer uma escala de tensões do corpo em sete
níveis. Cada um desses níveis acolhe um estilo diferente de teatro, cada vez mais forte, a partir de
deslocamentos variados, tais como caminhar, sentar; também com o uso da palavra.
Eis o exercício que proponho a meus alunos e as observações que pude fazer.
A subdescontração: expressão de vida que se esvai, como antes da morte; a imagem dos pássaros
marítimos arrastando-se pela praia, enviscados de alcatrão; fala-se com dificuldade, como que por si
mesmo, com palavras incoerentes, também com blasfêmias.
A descontração: expressão sorridente das "férias do corpo", deixando os braços livres para balançar em
um pêndulo de gravidade, o corpo que salta sobre si mesmo; fala-se com o outro, busca-se a turma de
companheiros.
O corpo econômico: neutro, como que programado para um mínimo de esforços com o máximo de
rendimento. Tudo é dito com polidez, sem paixão.
O corpo sustentado: assume-se o peso do próprio corpo. Primeira sensação do espaço em tensão.
Descoberta, interesse, suspensão, chamamento, definição, estado de alerta, busca do face a face; não há
descontração. Tema do nível do teatro realista, sensível à situação.
Primeira tensão muscular: a decisão. Eu vou, é a ação que começa, a fala se faz precisa, clara. No
teatro: nível do jogo realista, em ação.
Segunda tensão muscular: a paixão intervém; a cólera é o estado natural nesse nível. Coloquem em cena
um homem em cólera, e ele estará em um nível de jogo teatral. O ator também deve estar nesse nível,
mas sem ficar colérico ou gritar. Ele tem que jogar. Teatro próximo da máscara, esse nível não pode ser
jogado como na vida, já é um teatro estilizado.
Terceira tensão muscular: o máximo. O gesto desenvolve-se com resistência, lentamente, sem impulso,
como no nô; só se pode simular a tensão nesse nível próximo à asfixia. A palavra não é mais falada, mas
entrecortada em sons que se alongam.
Pode-se ver que essa experiência mimodinâmica propõe uma escala de teatros diferentes. A fala e a
própria natureza do texto mudam de acordo com a tensão corporal. Inversamente, cada texto de teatro
contém em potência uma tensão de corpo para jogá-lo. Mas divertir-se em variar as relações, jogar em
"relax" um texto de alto nível, para ser moderno, é um jogo de virtuosismo sem interesse; uma
complacência de intelectual, que ignora a própria dinâmica do texto e do corpo do ator. As
representações da tragédia grega têm sofrido uma diminuição de nível de jogo (inclusive as traduções).
Tudo pode ser matizado, situado em um crescendo dramático que se organiza ritmicamente. Os níveis
não se encontram a igual distância uns dos outros, mas em uma relação rítmica viva. Assim, o medo
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começa com a inquietude, depois vem o receio, e desenvolve-se até chegar ao terror. O ator-mimo deve
sentir em si mesmo as diferentes nuances das paixões, o que dá riqueza a seu jogo, e isto só pode ser
desenvolvido através do exercício. Seu conhecimento deve ser antes de tudo mimodinâmico.
O jogo da commedia dell'arte é um exemplo disso: tomar uma situação, levá-la até sua expressão
extrema, lá onde surge a acrobacia, com a morte. Morre-se de tudo nesse jogo teatral: de inveja, de
ciúmes, de rir. Pantalone realiza um salto perigoso em sua cólera. Ela é jogada em um alto nível de
representação, que "essencializa" o psicológico na ação.
A situação crescente, ao chegar ao seu limite extremo, salta para o seu oposto, sempre visando o
equilíbrio. Ela encontra-se então bipolarizada, e toma títulos como A Megera domada, O Caçador
caçado ou O Confessor confessado. A estrutura dinâmica organiza o jogo das situações e das paixões, e
organiza também o jogo do corpo em movimento.
A fala é um gesto que se modula no interior de sons organizados, em palavras impulsionadas pelos
verbos:
A ação está inscrita nas palavras, a linguagem articulada utiliza-se de imagens analógicas. De um
movimento, cada língua focaliza uma parte, privilegia um momento.
Tomemos o exemplo de lançar uma bola: a língua portuguesa privilegia o ponto de partida e deixa a bola
seguir adiante: eu lanço; a língua italiana privilegia a chegada da bola a seu objetivo: io lancio; na língua
japonesa, não é nem a saída nem a chegada, mas a trajetória que é posta em relevo.
As palavras contêm (espaço interno) em sua sonoridade a dinâmica das matérias, das imagens e das
ações, que elas recordam mais ou menos. Outras palavras circulam ao redor (espaço externo), em preto e
branco mais que em cores, observam, explicam, definem. No centro desses espaços os verbos animam; as
palavras nascidas da terra permanecem fiéis a ela nos dialetos. Cada país conserva em suas palavras suas
aderências físicas, e as vê de maneira diferente. Por exemplo, para um francês, a palavra "beurre"
(manteiga) participa da sensualidade que se derrete da matéria nomeada; para um inglês, a palavra
"butter" é seca, mais dura, "gelada". Há palavras, como "confiture" (compota) em francês e "marmelade"
em inglês que chegam a se encontrar em uma dinâmica vizinha; mais líquida no francês, mais densa,
gelatinosa e trêmula para o inglês.
Os textos das tragédias gregas, apesar da tradução, carregam a aderência ao corpo e à vida da natureza.
Assim, este texto, dito pelo coro em Antígona, de Sófocles, traduzido por Paul Mazon, onde as palavras
mimam dentro de nós:
In "Le Théâtre du geste", org. de Jacques Lecoq, Ed. Bordas, Paris, 1987, pág. 100-105. Tradução de
Roberto Mallet.
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