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07/09/2019 7 de Setembro: Governos usam símbolos nacionais para reescrever a história conforme seus interesses, diz Laurentino Gomes - …

7 de Setembro: Governos usam símbolos nacionais para


reescrever a história conforme seus interesses, diz Laurentino
Gomes
Vitor Hugo Brandalise
Da BBC News Brasil em São Paulo

Há 22 minutos

CARMEN GOMES/ DIVULGAÇÃO

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07/09/2019 7 de Setembro: Governos usam símbolos nacionais para reescrever a história conforme seus interesses, diz Laurentino Gomes - …

O Brasil é um país que dá importância demais aos seus símbolos, e de menos à sua
gente. A definição é do escritor Laurentino Gomes, autor de uma trilogia premiada
sobre a história do Brasil- os livros 1808, 1822 e 1889- e que acaba de lançar o primeiro
livro de uma nova série, desta vez sobre a escravidão no país.

Segundo Laurentino Gomes, datas como a de hoje, o feriado da Independência, e símbolos


nacionais, como a bandeira do Brasil, têm sido utilizados há anos por governos para
reescrever a história conforme seus interesses.

Segundo ele, no governo Jair Bolsonaro, patriotismo e datas históricas são usados para
negar o legado da escravidão e para manter sistemas de privilégios. Mas o renomado
historiador ressalta que a estratégia de utilizar símbolos patrióticos para vender ideologia e
políticas públicas não é de hoje.

"Como a história é ferramenta de construção da identidade (...) é natural que a história, e


também os seus símbolos, sejam manipulados pelas autoridades, pelos partidos políticos,
pelos diferentes grupos ideológicos", afirma.

Em entrevista à BBC News Brasil, ele exemplifica como a estratégia foi usada nos primeiros
anos da República, no Regime Militar, no governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva
e por Bolsonaro.

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transatlântica com Bolsonaro?

"Se você observar, a frase preferida do presidente Lula, no governo do PT, era 'nunca antes
na história deste país'. É uma maneira de reescrever o passado para justificar conquistas e
desafios do presente", diz.

"E o governo atual faz a mesma coisa, tenta reescrever a história. Inclusive com essa história
da escravidão, de que os brancos não têm nada a ver com a escravidão, Existe um projeto
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político muito bem-definido, cujo objetivo é, ou combater as políticas públicas em vigor, ou


impedir que novas políticas públicas destinadas a enfrentar o legado da escravidão sejam
discutidas e implantadas."

Na entrevista, Laurentino Gomes também explicou os elos entre datas e símbolos que um
país escolhe exaltar - como é o caso do feriado de 7 de Setembro -, e os eventos do passado
que tentamos esconder.

"Preferimos valorizar imagens enganosas com as quais aprendemos a nos identificar, como o
gigante adormecido em berço esplêndido, a bandeira, o hino, e deixamos de lado momentos
incômodos do passado. A violência, a corrupção, os milhões de africanos que foram
escravizados no Brasil", disse o escritor.

O que faz de José Bonifácio patriarca não só da Independência, mas das florestas
do Brasil

O tempo em que o Rio de Janeiro secou após destruir floresta por café

Gomes destaca, sobretudo, o que chama de "negligência histórica" ao legado de escravidão.

"Nossa alma africana nunca foi observada, estudada, valorizada como deveria", disse o
escritor. "E é por descuidar dessa alma que digo que viramos, sem querer fazer um jogo
rasteiro de palavras, um país desalmado. Temos uma visão mercantilista dos símbolos
nacionais, valorizamos o aspecto físico dos recursos naturais, mas não é isso o que reflete e
valoriza a sociedade brasileira."

Entre as consequências que enfrenta um país ao ignorar sua alma, lembrou o escritor, está o
caso do adolescente que levou chibatadas dentro de um supermercado na periferia de
São Paulo, conforme noticiado esta semana.

"Aquilo foi muito forte, porque jogou um holofote sobre um legado da escravidão que a gente
julgava que estava apenas em bibliotecas, em livros de história do Brasil. É uma prática
muito comum no regime escravista, um século e meio atrás, que aparece em 2019 na
periferia da cidade mais rica do país."

Laurentino Gomes lançou nesta sexta (6) o livro "Escravidão", na Bienal do Livro do Rio de
Janeiro.

Leia os principais trechos da entrevista do autor à BBC News Brasil:

BBC News Brasil - Como o processo de Independência do Brasil, que comemora-se


neste sábado, se relaciona com a escravidão, que só foi terminar quase 70 anos
depois?

Laurentino Gomes - Ao pesquisar a escravidão, concluí que esse é o principal assunto da


História do Brasil, não só pelos números e pela duração do tráfico dos escravos ou pela
persistência do legado da escravidão hoje, mas, porque quando você observa os grandes
fatos históricos brasileiros, a escravidão é o fio condutor. É o que alinhava uma coisa na
outra, e um caso exemplar é a Independência do Brasil.

Em 1821, os escravos e os seus descendentes, a população negra brasileira, já era


amplamente majoritária. Os brancos eram minoria. E havia, segundo o historiador Sérgio
Buarque de Holanda, um sentimento de medo, que funcionou como amálgama do processo
de Independência do Brasil. Medos de duas naturezas. Primeiro, de que o Brasil
mergulhasse numa guerra civil republicana como estava acontecendo na américa espanhola.

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As lideranças políticas locais mergulharam numa guerra para defender seus territórios, seus
interesses e a América espanhola se separou em vários países independentes. Esse era o
primeiro medo, ou seja, a conquista da integridade territorial tinha sido muito árdua durante o
período colonial brasileiro.

ACERVO PESSOAL/LAURENTINO GOMES

Mas aí havia um segundo medo, que se somava ao primeiro: na hipótese de uma guerra civil
republicana no Brasil, os chefes políticos regionais, que eram rivais entre si, teriam que armar
os seus escravos, porque eles não tinham força armada que não fosse a da própria
escravidão. E esses escravos armados e imbuídos das ideias libertárias que sopravam da
Revolução Francesa, da Independência dos Estados Unidos, e assim por diante, poderiam
reivindicar a própria liberdade. Isso poderia resultar num banho de sangue, como aconteceu
no processo de independência do Haiti, entre 1789 e 1794. Esse era o medo, representado
por uma expressão muito corrente na época, que era o "Haitiismo".

Havia, então, a soma desses dois medos: o medo de uma guerra civil republicana e o de
uma guerra étnica. Como ambos ameaçavam os interesses da elite escravista brasileira,
essa elite optou por uma revolução conservadora. Eles se agregaram ao redor do herdeiro da
Coroa de Portugal, o príncipe D. Pedro I, imperador brasileiro, romperam os vínculos com a
metrópole, mas não mexeram em nada. Não acabaram com o tráfico de escravos, não
acabaram com a escravidão, não educaram as pessoas, não fizeram a reforma agrária,
mantiveram a estrutura social vigente. E isso explica o processo de independência totalmente
diferente do Brasil em relação aos seus vizinhos da América.

Então, isso explica um pacto entre essa aristocracia brasileira e o trono brasileiro, que
manteve a monarquia por tanto tempo no Brasil, por 67 anos após a Independência. Um
apoiava o outro, e um não mexia nos interesses do outro.

BBC News Brasil - No seu livro, o senhor aponta que o sistema escravista se
fortaleceu ainda mais depois da Independência. A sociedade brasileira se estruturava
nele?

Laurentino -Sim, se fortaleceu porque era um sistema que, do ponto de vista da elite
brasileira, vinha funcionando muito bem ao longo do Brasil colonial. Os números depois da
independência, de tráfico de escravos, foram uma coisa incrível. E é interessante como a
escravidão volta a ser depois o fio condutor para a proclamação da República. É ela que dá
sentido aos acontecimentos. Porque, no fim do século 19, o Brasil passou a sofrer uma
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pressão colossal abolicionista. Viramos um pária internacional, muito semelhante ao que


aconteceu com a África do Sul durante o regime de segregação racial, no século 20. E é aí
que o trono se torna também abolicionista, acaba fazendo a Lei Áurea, e o pacto se quebra.

E não é por acaso que, no ano seguinte, 1889, o edifício todo implode, acaba a monarquia e
vem a República. Isso mostra que realmente não dá para entender os grandes
acontecimentos da história do Brasil, incluindo a Independência e a República, sem entender
que o mecanismo que conduz os acontecimentos é justamente a escravidão. E, antes disso,
há mostra de como o regime estava estruturado na escravidão: não só a Independência, o
rompimento formal no dia 7 de setembro de 1822, mas os seus desdobramentos, o próprio
destino do Primeiro Reinado (1822-1831), do brevíssimo Primeiro Reinado, de apenas nove
anos, é permeado pela escravidão. Lembra? D. Pedro se tornou imperador do Brasil em
1822, logo após o grito do Ipiranga, e as diversas províncias, as diversas correntes políticas
existentes no Brasil - republicanos, constitucionalistas, maçons, liberais, e assim por diante -,
aceitaram em troca da promessa de que Dom Pedro convocaria uma Constituinte. Que faria
uma lei a qual o próprio imperador estaria sujeito, né, teria que respeitar. Esse era o plano.

CARMEN GOMES/ DIVULGAÇÃO

Mas, aí, essa constituinte convocada em 1822 foi extinta, dissolvida em novembro de 1823. E
qual foi a razão? A escravidão. Porque começaram a ser muito fortes os debates no
Parlamento, especialmente uma proposta do José Bonifácio de Andrade e Silva, para acabar
com o tráfico negreiro e acabar com a escravidão. O José Bonifácio, às vésperas da
disssolução da Constituinte, ia apresentar um projeto para acabar com o tráfico de escravos.
E aí, pronto: todo o processo constituinte desandou. A Constituinte - que foi um pacto
estabelecido entre D. Pedro e os diversos grupos rivais, adversários na época - se dissolveu.
O motivo foi principalmente a ameaça que os fazendeiros, os cafeicultores, os senhores de
engenho, os mineradores de ouro e diamante sentiram, diante da possibilidade de que essa
Constituinte acabasse com o tráfico de escravos. E aí o primeiro reinado mergulha numa
crise e não sai mais.

Ninguém mexia com a escravidão.

Quis mexer, acabou com o Primeiro Reinado. A dissolução da Constituinte é um primeiro


golpe de morte na popularidade de D. Pedro I. Ele tinha saído como herói da Independência
e rapidamente vira vilão. Claro, houve outras causas, os escândalos da vida pessoal, o
envolvimento dele com a Marquesa de Santos, mas a principal razão foi essa. O fato de ele
ter dissolvido a Constituinte, pressionado pelos interesses escravistas, e aí o primeiro reinado
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entra numa crise que vai terminar no dia 7 de abril de 1831, quando o imperador abdica e vai
embora, né.

BBC News Brasil - O seu livro 1822, da trilogia anterior, trata justamente do processo
de independência do Brasil. O que mudou para os escravos, viver em um país livre da
colôina portuguesa?

Laurentino - No livro 1822 eu escrevi um capítulo chamado "Os Órfãos", mostrando que há
uma sensação de orfandade no processo da Independência do Brasil, por parte das camadas
mais pobres da população, que incluía os ribeirinhos, os sertanejos do Nordeste, mas
principalmente os escravos. É muito interessante que, em 1821, quando chegou ao Brasil a
notícia da Revolução Liberal do Porto, muito influenciada pela Revolução Francesa, e a
principal causa da volta de D. João para Lisboa, um escravo em Minas Gerais chamado
Argoin, um dos poucos escravos que sabia escrever, escreveu uma carta aos seus vizinhos,
negros cativos, que dizia o seguinte: observe o cativeiro de vocês, porque os nossos irmãos
em Portugal fizeram uma revolução que nos iguala aos brancos.

Então é hora de lutar por essa liberdade. Ou seja, o Argoin, e também os escravos, achavam
que essas ideias libertárias que vinham da Europa eram para eles também, e não eram. Era
só para os brancos. Que é exatamente o que aconteceu no Haiti, uma colônia francesa,
houve uma revolução escrava e um banho de sangue exatamente quando os cativos
perceberam que as ideias que sopravam de Paris não eram para eles, eram só para os
brancos. E aí houve uma revolução e um massacre dos brancos no Haiti.

E, no Brasil, também. Claro que aqui era uma massa enorme de analfabetos, não havia
informação, a imprensa era muito recente, a comunicação no interior do Brasil era muito
precária. Mas essas ideias chegavam. Isso explica, por exemplo, a quantidade de rebeliões
de natureza popular envolvendo segmentos muito pobres da população nos anos seguintes à
abdicação de D. Pedro, em 1831. Você tem a Cabanagem no Pará, a Revolta dos Cabanos,
em Pernambuco, a Balaiada no Maranhão, depois a Sabinada na Bahia, e assim por diante.
E é justamente isso. Envolvendo gente muito simples, gente muito pobre que julgou que tinha
ficado à margem do processo de Independência. Por isso eu digo que há essa orfandade na
Independência do Brasil. E essas rebeliões foram sufocadas à ferro e fogo para que o
sistema se mantivesse.

BBC News Brasil - Como os governos fazem uso político de uma data como a da
Independência? Datas simbólicas como essa são usadas para encobrir problemas, por
exemplo?

Laurentino -Sim. Existe uma construção oficial da história do Brasil tentando fazer uma
narrativa, que eu diria que é uma narrativa basicamente masculina, branca e europeia. São
os grandes personagens, os grandes acontecimentos, a vinda da corte portuguesa. Podemos
enumerar: a chegada de Pedro Álvares Cabral, os governadores gerais, a chegada da corte,
depois a Independência, a República, D. Pedro I, D. Pedro II, Princesa Isabel. Há uma
celebração em torno desses personagens, primeiro com viés monárquico e depois com uma
narrativa republicana.

Mas, por outro lado, existe uma história que fica escondida e diz muito sobre quem somos.
Por exemplo, a história da escravidão, eu diria que comparada com a história de ascendência
europeia, digamos assim, o que poderíamos chamar de história branca, ela é muito menos
valorizada do que esses personagens e acontecimentos emblemáticos. O Brasil nunca teve
até hoje um único grande museu nacional da escravidão, ao contrário do que há em
Liverpool, na Inglaterra, em Angola, em Washington, nos Estados Unidos. É uma maneira,
inclusive, de esconder uma parte da história que incomoda. Porque os museus não são
apenas lugares de entretenimento, de levar criança e passar uma tarde. Eles são locais de
reflexão. E, quando você reflete sobre determinados assuntos, isso tem consequência
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política. As pessoas vão tomar decisões, vão chegar a determinadas conclusões, e isso
resulta em decisões que são tomadas na urna, na adoção de políticas públicas e assim por
diante.

Também pode ser uma estratégia esconder uma parte da história, ou maquiá-la com mitos.
Por exemplo, há toda uma historiografia construída no Brasil de que tivemos uma escravidão
mais benévola, mais patriarcal, e que isso resultou numa grande democracia racial. Esses
são mitos que a gente construiu a respeito de nós mesmos, para encobrir o legado da
escravidão, e encobrir não só as estatísticas absurdas com as quais convivemos hoje, um
abismo de oportunidades entre brancos e afrodescendentes, mas também o preconceito
racial, que é muito visível no Brasil. E a gente finge que é uma grande democracia racial.

BBC News Brasil - Por que há muita dificuldade em acertar as contas com esse
passado?

Laurentino -Porque a escravidão não é só um comércio de gente. Ela é uma estruturação da


sociedade, de poder, distribuição de recursos, de terras, riquezas, de benefícios e de
privilégios. Um grupo tem acesso a riqueza, a privilégios, a confortos, à repartição dos
recursos públicos, e outro não. E isso acontece hoje também. Então quando você vê, por
exemplo, esse mar de desigualdade no Brasil, nós estamos falando da mesma coisa. Um
grupo muito pequeno, privilegiado, que tem acesso aos recursos públicos, tem acesso às
melhores áreas de moradia, por exemplo, no Rio de Janeiro. Existe uma segregação real
hoje no Rio de Janeiro, como existe em Salvador e São Paulo. Os morros são habitados por
afrodescendentes. Os bairros chiques e nobres da Zona Sul são habitados por brancos. Isso
acontece também nos Jardins, em São Paulo, nos bairros da periferia, nos morros de
Salvador e assim por diante. Mas também como os recursos do estado são destinados, né.

Quem é que vai ter acesso às oportunidades, à escola, à saúde, à educação. E a história
fundamenta isso, a história é que justifica a organização de uma sociedade, a identidade de
um país, de uma nação. Então a maneira como você narra, ou deixa de narrar, esconde a
história, resulta em como a sociedade vai distribuir os benefícios entre seus diversos grupos.
Eu acho que hoje nós temos no Brasil um sistema de fato de castas muito bem definido,
embora a gente finja que nós somos um país igualitário, democrático, e de oportunidades
iguais. As estatísticas e a realidade visível na paisagem urbana geográfica do Brasil mostra
que não.

BBC News Brasil - Como os símbolos nacionais ajudam a consolidar esse sistema? A
bandeira, os desfiles, por exemplo.

Laurentino - Isso é interessante. Na abertura do meu livro sobre a Escravidão, eu cito como
epígrafe uma frase do padre Antônio Vieira, do finalzinho do século 17, que ele dizia o
seguinte: "O Brasil tem o seu corpo na América, e a sua alma na África". O que ele está
dizendo? O Brasil tem a sua geografia na América, a sua presença física, mas a essência, o
povo, o elemento mais importante de constituição da sociedade brasileira era de matriz
africana. Aí, quando você olha, por exemplo, a bandeira nacional, o que aparece lá?
Aparecem os aspectos do corpo físico. As florestas, o ouro, o céu azul, o Cruzeiro do Sul.
Você não tem povo brasileiro na bandeira do Brasil. Então eu diria que é interessante você
observar isso, que a gente sempre valorizou muito as riquezas nacionais, né. Como se isso
fosse a grande virtude, o gigante adormecido "em berço esplêndido", como o Hino Nacional
diz. Que berço esplêndido é esse?

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Com grandes potenciais, recursos naturais, solo e sol e um clima adequado que para o
agronegócio prosperar, as jazidas, mas a gente não cuida da nossa alma. A nossa alma
africana nunca foi observada, estudada, valorizada da forma como deveria. E sem querer
fazer um jogo rasteiro de palavras, com isso nós viramos um país desalmado, né. Um país
que pensa nos seus símbolos nacionais e patrióticos e tenta esconder o legado da
escravidão, isso é um retrato de um país que descuida da alma. Cuidamos muito da
geografia. Temos uma visão mercantilista dos símbolos nacionais, valorizamos o aspecto
físico dos recursos naturais, mas isso não reflete e nem valoriza a sociedade brasileira.

Fica mais contraditório por estarmos na era da informação, da tecnologia, da possibilidade de


as pessoas realizarem seus talentos, potenciais, vocações. Um país é constituído
principalmente pelos seus habitantes. E não pelos seus recursos naturais. E é preciso notar,
é interessante que nossos símbolos nacionais, nosso hino, nossa bandeira valoriza o corpo e
não a alma do Brasil.

BBC News Brasil - Por que o interesse em valorizar os símbolos?

Laurentino -Para defender a forma como a sociedade se estruturou, de cima para baixo, e
que permita a um pequeno grupo explorar o trabalho e o potencial de, no limite, como mostra
o período da escravidão, explorar o outro ser humano. É o que eu chamo de, no livro 1889,
de uma miragem, no século 19. Os símbolos nacionais, a narrativa, os mitos nacionais foram
implantados no século 19, incluindo o hino nacional e a bandeira.

Então você tem o Império brasileiro constituído por uma pequena elite bem educada, em
Coimbra, no centro de formação europeus, e aí tinha todo um ritual de corte europeia, tinha
uma arquitetura imperial em Petrópolis, no Rio de Janeiro, tinha barão, visconde, conde,
duque, príncipe, imperador. E, nas ruas, pobreza, analfabetismo e escravidão. Essa era a
realidade brasileira até o final do século 19. E eu diria que é até agora. Quando eu nasci, em
1956, metade dos brasileiros era de analfabetos, o índice de analfabetismo era de 50%.
Então você vê que tem um descompasso entre o Brasil sonhado, o Brasil vendido nos seus
símbolos e nos seus mitos, e o Brasil real.

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Isso tem consequência na forma como a sociedade distribui os seus privilégios, os seus
recursos. E, pelo que notamos, quem está no governo representa grupos que se interessam
por manter as coisas como estão. É muito interessante, por exemplo, que nesta época exista
uma narrativa que tenta perpetuar esses mitos. Então, por exemplo, um candidato no ano
passado, que por acaso virou presidente da República, dizia que os portugueses nunca
tinham entrado na África, e que a culpa pela escravidão era dos próprios africanos. Culpava
os escravos pela sua própria escravidão. Por que isso? É um projeto político que se opõe a
políticas públicas destinadas a enfrentar o legado da escravidão.

Um projeto que questiona as cotas para afrodescendentes em escolas, impostos da


administração pública, que não quer dar qualquer tipo de apoio mínimo às comunidades
quilombolas no Brasil. Visitei muitas delas, são lugares muito pobres, de uma população
carente. Então, quando você quer se opor a políticas públicas de compensação, você tenta
reescrever a história. E diz que os quilombolas são todos gordos, pesam sete arrobas,
preguiçosos, que vivem dos recursos do Estado. Não é um discurso bobo apenas para
alimentar brigas nas redes sociais. Existe um projeto político muito bem-definido e de
implantação acelerada, cujo objetivo é, ou combater as políticas públicas em vigor, ou
impedir que novas políticas públicas destinadas a enfrentar o legado da escravidão sejam
discutidas e implantadas. O uso de símbolos patrióticos é só uma faceta pequena disso.

BBC News Brasil - Qual a relação do brasileiro com os seus símbolos?

Laurentino - É muito contraditória. Por exemplo, em véspera de Copa do Mundo todo mundo
põe a bandeira nas costas, ou no carro e canta o hino nacional, e isso é muito brasileiro e é
muito ufanista. E aí quando a seleção perde, vira uma sensação de grande desânimo, um
vácuo. No fundo, isso não é coisa só do futebol. No fundo, como é que eu me identifico com
o Brasil? Que país é esse? O que esses símbolos representam? Porque o Brasil é criado por
uma série de mitos, né. De que uma hora acordaríamos e surpreenderíamos o mundo. Mas
por que demora tanto? Por que o Brasil perde oportunidades uma atrás da outra? Ou o mito
de sermos um povo pacífico, ordeiro, honesto, trabalhador. Mas por que 19 das 50 cidades
mais violentas do mundo estão no Brasil? Por que tanta corrupção? Por que existe uma
guerra civil de fato em andamento nas periferias das cidades brasileiras? E também aí
chegamos na escravidão, na tal democracia racial. Como esses símbolos, o hino, a bandeira,
elas representam a identidade nacional, acho que o brasileiro, quando finalmente vê sua
realidade no espelho, vê que o país é muito menos poderoso, igualitário e heróico do que os
símbolos projetam, ele reluta a se identificar com o país que está descrito nos símbolos.
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BBC News Brasil - E qual a consequência desse descompasso?

Laurentino - A consequência nós estamos vendo agora. E eu vejo isso de forma positiva. O
Brasil hoje vive um período muito novo, inédito na sua história, que são mais de 30 anos de
democracia sem ruptura. Claro que é uma democracia com muitos sobressaltos, muitos
sustos no meio do caminho, mas pela primeira vez estamos aprendendo a exercitar a
democracia. E neste ambiente nós estamos confrontando os nossos mitos. Então eu diria
que nunca se discutiu tanto o Brasil quanto agora. Pode ser até de uma forma ainda bastante
inadequada, com muita polarização, muita intolerância, muita agressão nas redes sociais, e
até nas declarações das autoridades, mas o fato é que a gente está discutindo o Brasil. Se
você entrar lá, tudo isso que a gente falou aqui está sendo discutido. Por que o Brasil não dá
certo, nada funciona, a questão da escravidão, a herança africana, a violência, a corrupção.
Então acho que isso é um bom sinal. No passado, sequer a possibilidade de gritar e brigar
existia.

Vivíamos sob uma monarquia, em meio a um mar de analfabetos e pobres, e só uma


pequena elite falava e discutia, produzia ensaios, discursos no parlamento a respeito do
Brasil. Depois, várias ditaduras militares, regimes autoritários que impunham a censura e
impediam que as pessoas falassem, se manifestassem ou participassem de reuniões política.

Embora o ambiente hoje seja de muita raiva, briga, agressão, intolerância, o fato de a gente
poder gritar é uma coisa boa. No futuro, esses mitos todos que foram construídos de forma
silenciosa e impostos de cima pra baixo vão ser redesenhados, e a gente vai chegar e ter
uma visão mais concreta do país que realmente temos. E eu acho que pode até melhorar em
função dessa discussão. Nada vai se resolver muito rapidamente, porque os passivos
históricos são imensos e muito antigos, mas acho que hoje existe uma construção nova, uma
visão nova, ao ponto de um livro sobre escravidão virar um best-seller, em duas semanas, o
que para mim é uma tremenda surpresa.

BBC News Brasil - O que o fato de omitirmos o que o senho chama de alma pode
causar? O caso dos seguranças de supermercado que espancaram um adolescente
infrator esta semana, por exemplo, pode ser um reflexo disso?

REPRODUÇÃO

Laurentino - Aquilo foi muito forte, porque jogou um holofote sobre um legado da escravidão
que a gente julgava que estava apenas em bibliotecas, em livros de história do Brasil. E aí
uma prática que era muito comum no regime escravista, eu cheguei a fazer uns posts em
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rede social, dizendo que no começo do século 19 havia manuais sobre como surrar
adequadamente um negro no Brasil. Tinha um padre jesuíta, o Jorge Benci, que chegava a
ter instruções, dizendo que os senhores deveriam, sim, surrar os seus escravos, mas que o
número de chibatadas não ultrapassasse 40 por dia. Para não comprometer a capacidade de
trabalho dos cativos.

E aí, de repente, no começo do século 21, quando a gente julga que a escravidão é coisa
acabada, congelada no passado, você tem uma manifestação visível, gravada em vídeo, de
uma prática característica do Brasil escravista colonial. Eu acho que isso serviu como um
despertar de consciência. Isso é um país desalmado. Porque um país que pega um garoto
que rouba uma barra de chocolate e surra ele, é um absurdo, sem nem chamar a polícia,
sem passar pelas instituições, é um país sem alma. Desalmado.

BBC News Brasil - Mais governantes tentaram fazer uso dos símbolos nacionais?

Laurentino - Como a história é uma ferramenta de construção de identidade, é olhando para


o passado que a gente constrói um presente e projeta uma identidade para o futuro, né, que
país nós gostaríamos de ser daqui pra frente? Então a história ajuda a organizar essa
construção de identidade aí. É natural que a história, e também os seus símbolos sejam
manipulados pelas autoridades, pelos partidos políticos, pelos diferentes grupos ideológicos.
Então, você observa, por exemplo, que o filme mais famoso produzido durante a ditadura
militar foi o Independência ou Morte, com o Tarcísio Meira e a Glória Menezes, no
sesquicentenário da Independência, em 1972, em que o imperador D. Pedro I aparecia
quase como se fosse um general do regime de 1964, um herói marcial, imponente, aí na
redemocratização, o mesmo D. Pedro I já aparece como um boêmio, mulherengo, na séria
Quintos dos Infernos, com Marcos Pasquim. E depois, se você observar a frase preferida do
presidente Lula, no governo do PT, era "nunca antes na história deste país". Que é uma
maneira de reescrever o passado para justificar conquistas e desafios do presente. E o
governo atual faz a mesma coisa, tenta reescrever a história. Inclusive com essa história da
escravidão, de que os brancos não têm nada a ver com a escravidão, porque quem se
escravizava eram os próprios negros.

BBC News Brasil - Todos os governantes tentam fazer uso dessas datas?

Laurentino - O caso típico é o da proclamação da República. Logo depois da proclamação, o


novo regime começou a rebatizar ruas, praças, monumentos, mudou a bandeira, mudou o
hino nacional, criou mitos novos. Por exemplo, Tiradentes. Joaquim José da Silva Xavier era
uma vítima da Monarquia e passou 100 anos incógnito na história do Brasil. E aí na
República, ele é reconstruído, ele emerge das cinzas como herói republicano, defensor das
ideias do novo regime. Então, na construção do Tiradentes é um caso típico: na época,
depois de 1889, houve uma desconstrução da história e dos símbolos nacionais,
monárquicos, para a construção de um novo imaginário republicano. Isso vem acontecendo,
Getúlio fez isso, o regime militar fez isso, o governo do PT também, e isso está novamente
sendo feito agora.

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