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A PERSONALIDADE DO ALCOÓLATRA

VARIÁVEIS SOCIO-CULTURAIS, PSICOPATOLOGICAS Ε PSICODINAMICAS

RICHARD Ε. BUCHER, Ph. D.


EDUARDO ROMANKIEWICZ

Em vista do alcance antropológico do álcool e dos seus modos de utilização,


devem ser considerados, no seu estudo, as características específicas do grupo
étnico investigado, bem como o seu desenvolvimento histórico e as funções
sociais das bebidas alcoólicas. Neste sentido, Jellinek ( 1 9 7 7 ) sublinha o caráter
4

simbólico da bebida alcoólica, atestado pelas múltiplas referências mitológicas


e literárias.

Na América Latina existem alguns trabalhos em perspectiva histórica e


2 6
sócio-cultural (cf. Heath, 1974) ou epidemiológica (Mariátegui, 1974) . Os pri-
meiros estudos etnográficos se situaram num enfoque apenas exploratório e
descritivo; os trabalhos psiquiátricos, do seu lado, se limitaram em geral a
regiões restritas ou então se interessavam pelo problema das drogas em geral.

Apesar de esforços da OPAS, a área continua carente de investigação, apesar


de o alcoolismo representar um problema sócio-econômico, a nível da saúde
pública, de muito mais repercussão do que os outros tóxicos. Uma das razões
desta carência reside, sem dúvida, no fato de o alcoolismo de massa repre-
sentar uma realidade que incomoda, porque diretamente ligada aos problemas
de estratificação social. Recorrer à bebida foi explicado repetidamente como
maneira de querer esquecer os problemas sociais e ambientais, freqüentemente
ligados a uma alta "mobilidade social", em função de movimentos migratórios
5 8
(Jones & al., 1975) . Straus ( 1 9 7 3 ) sublinha a complexidade dos fatores envol-
vidos no triângulo álcool-homem-sociedade, vendo no primeiro um aspecto tanto
funcional (como agente medicinal, analgésico, antiséptico, anestésico e ansiolítico)
quanto disfuncional (agente de desintegração social).
No entanto, a etiologia do alcoolismo não é puramente social. Como o
7
enfatiza Masur (1978) , as diversas abordagens do fenômeno deveriam convergir
numa perspectiva bio-psico-social, ao invés de se basear em estudos isolados
e unilaterais.

A personalidade do etilista já se fez objeto de numerosos estudos. Masur


7
( 1 9 7 8 ) lembra, entretanto, que estes trabalhos, se conseguiram destacar certas
características comuns aos alcoolistas, não chegaram a ressaltar uma persona-
lidade tipicamente alcoólica. Contudo, é muito provável que uma tal "persona-
lidade de base" nem exista. O alcoolismo, em muitos casos, deve ser consi-

Trabalho do Departamento de Psicologia, Universidade de Brasília,


derado como uma manifestação secundária, um epifenômeno de um distúrbio de
1
personalidade preexistente (Fortes, 1975) .

Traços psicopatológicosse encontram na maioria dos alcoólatras, mas não


11
os diferenciam de outros grupos nosográficos. Tarter ( 1 9 7 5 ) examinou alco-
ólatras de dois tipos: os que começam a beber cedo e os que começam mais
tarde na vida. Somente o primeiro grupo manifesta transtornos na organização
da personalidade, o segundo grupo sendo mais afetado por distúrbios atuais
3
agudos (desemprego, conflitos maritais). Hoffman <S al. ( 1 9 7 4 ) encontraram
diferenças significativas quanto ao sexo: na patogênese de alcoólatras masculinos
aparecem maiores desordens de caráter, nas mulheres mais neuroticismo.

Num trabalho realizado na Suíça, Studer (1974)° comparou toxicômanos


com alcoólatras, utilizando o teste de Szondi. Os dois tipos de pacientes
teriam em comum o retorno da agressividade contra si mesmo, elevada necessi-
dade de aceitação "oral" e intolerância marcada à frustração. Uma diferença
essencial residiria na estrutura do Eu, sendo que os primeiros são caracterizados
pela sua expansão (inflação), com idéias de grandiloqüência e de bissexualidade;
os alcoólatras negam os seus conflitos e desejos, negação que pode alcançar
um efeito auto-destruidor.

Tais resultados demonstram mais uma vez a pluridimensionalidade do alco-


olsmo que deve ser abordado, a nível psicosocial, mais numa linha de patogênese
situacional do que de etiologia estritamente causai.

Outrossim, a maioria destes trabalhos se baseiam em instrumentos objetivos


e cognitivos, sem valorizar devidamente a dinâmica e os conflitos internos do
alcoólatra. Tampouco é analsado o valor simbólico do ato de beber, que pode
ser considerado como o discurso de um sujeito que não tem (mais) acesso a
uma palavra verdadeira e que "se afunda" no seu discurso solilóquio. Não se
trata, portanto, de levantar somente traços que os alcoólatras teriam sempre
a mais ou a menos, comparados com indivíduos "normais" — resultado de
muitas pesquisas baseadas neste enfoque de comparação meramente quantitativa,
7
sobre o qual Keller (citado em Masur, 1978) ironiza irreverentemente.
Pretendemos aqui estudar os fatores sociais e psicopatológicos em geral,
que marcam alcoólatras crônicos, cuja estrutura psicodinâmica será em seguida
analisada mediante o teste de Szondi.

MATERIAL Ε MÉTODOS

U t i l i z a m o s u m q u e s t i o n á r i o c o m 99 v a r i á v e i s , preenchido durante várias entrevistas


semi-estruturadas. Ademais, visando investigar a estrutura psico-pulsional profunda,
a p l i c a m o s c i n c o v e z e s o T e s t e p r o j e t i v o d e S z o n d i , d e fácil u t i l i z a ç ã o p o r q u e nâo-verbal.
Os "perfis pulsionais" obtidos foram analisados estatística e qualitativamente.

Os dados foram recolhidos em três clínicas psiquiátricas situadas em cidades


s a t é l i t e s d e Brasília.*. Trata-se, na maioria d o s 86 pacientes examinados, de pessoas

* Agradecemos aos diretores destas clinicas pela colaboração manifestada durante


a colheita de dados da nossa pesquisa.
d e b a i x a renda, hospitalizados pelo INPS. E s t e s 86 a l c o o l i s t a s , t o d o s d o s e x o m a s c u -
lino, eram divididos em dois grupos: um d e alcoólatras crônicos "sociais", o outro de
alcoólatras crônicos psicóticos. Operamos esta distinção na esperança de obter dados
novos que poderiam contribuir para a compreensão da patogênese do alcoolismo.

Os indivíduos do primeiro grupo foram selecionados segundo o s seguintes critérios:


consumo excessivo e crônico de álcool com reincidência contínua; características de
comprometimento comportamental afetivo, social e orgânico: isolamento e desajuste
com o meio-ambiente; desemprego; família desunida ou abandonada; rehospitalização
periódica.

Para o s pacientes do segundo grupo, foi requerido, além destas características, a


presença de elementos psicóticos (delírio ou alucinações), de modo a corresponder a
uma das categorias de psicose alcoólica da classificação da OMS. P a r a diferenciar os
d o i s g r u p o s f o r a m consideradas as fichas de internação no que diz respeito ao diagnós-
tico psiquiátrico e/ou à menção de elementos psicóticos mesmo intermitentes.

O trabalho pretende investigar os seguintes tópicos: 1) S e r á q u e a l c o ó l a t r a s c r ô n i c o s


sociais e psicóticos demonstram características sócio-econômicas e sócio-culturais dife-
rentes?; 2) S e r á q u e o s i n d i v í d u o s d o s d o i s g r u p o s d e m o n s t r a m estruturas psico-pulsio-
nais diferentes?; 3) S e r á que os dois tipos de alcoólatras são caracterizados pela
mesma estrutura d o Eu, utilizando o s mesmos mecanismos de defesa?

RESULTADOS

Resultodos do questionário — Apresentamos alguns resultados das 99 variáveis


investigadas, divididas em sete categorias: d a d o s d e identificação, dados sócio-culturais,
variáveis comportamentais e hábitos, corpo e sexo, antecedentes familiares, antecedentes
pessoais, sintomas atuais. Enfatizando mais as influências sócio-econômicas e sócio-
culturais que podem ter contribuído na patogênese, limitar-nos-emos, na parte da
sintomatologia, a aventar p o u c a s variáveis, sendo, de resto, a sintomatologia do alco-
olista bem conhecida.

No que diz respeito à idade, os dados da Tabela 1 indicam uma idade média
mais baixa para os alcoólatras psicóticos. Esta diferença, embora não significativa
ao nível e s t a t í s t i c o *, c h a m a a atenção e deveria ser comparada c o m outras variáveis
(hereditariedade, idade na época da primeira hospitalização e suas freqüências). Pode-
mos já aqui supor que a "carreira psiquiátrica" de psicótico se inicia mais cedo do
que d o alcoólatra social. D e qualquer maneira, os achados indicam que a "psicotizaçâo"
não é mera função da idade, o u seja, não corresponde simplesmente a uma evolução
cumulativa.

A maior parte da nossa população é oriunda d o s estados do nordeste do Brasil,


seguidos de Minas, Goiás e d o s estados do Norte. A s condições sócio-econômicas que
provocam as migrações para os centros urbanos são bem conhecidas, pelo que não
precisamos entrar em detalhes.

* resultados do teste estatístico X2, calculados diretamente pelo computador, devem


ser apreciados com discernimento, uma vez que em vários itens as freqüências são
baixas ou mesmo nulas.
N a s distribuições s e g u n d o o estado civil, c h a m a a a t e n ç ã o o m a i o r número de solteiros
no meio dos psicóticos. Já vimos que eles são na média mais novos que os pacientes
do lo grupo, mas não sabemos se tem entre eles m a i s solteiros p o r q u e eles são mais
novos, ou porque eles eram já precocemente atingidos pela "doença alcoolismo*.

S o b r e a c o n s t e l a ç ã o f a m í l i a , 11 p s i c ó t i c o s f i c a r a m s e m r e s p o n d e r . Talvez a questão
não tenha (mais) sentido para eles. Aliás, o número de pacientes que vive só, é
demasiadamente grande, o que caracteriza bem o alcoólatra: ele vive marginalizado,
s ó c o m sua doença, refúgio n o abandono.

Sobre o número d e irmãos e de filhos, uma constatação se i m p õ e : m u i t o s irmãos


e p o u c o s filhos, sendo a ausência d e descendência muito mais característica d o s psicóticos.
O s d a d o s s o b r e e s c o l a r i d a d e e p r o f i s s ã o ( T a b e l a 2) n â o r e v e l a m n a d a d e s o b r e s -
salentes. C o n t u d o , o n í v e l e s c o l a r e -profissional d o s p s i c ó t i c o s p a r e c e , n o c o n j u n t o ,
ligeiramente m a i s elevado, e m b o r a sem significação estatística.
N o s diferentes tipos de moradia, o s apartamentos são subrepresentados, o que
sublinha b e m a marginalização d o alcoólatra. A s indicações salariais finalmente não
e x i g e m n e n h u m c o m e n t á r i o : os rendimentos se situam e m volta d o salário mínimo.

Mais ainda q u e em outras variáveis, as indicações sobre o s antecedentes familiares


( T a b e l a 3) d e i x a m d ú v i d a s s o b r e a s u a f i d e d i g n i d a d e : a i g n o r â n c i a o u a f a l t a d e
m e m ó r i a sobre a m o r b i d e z encontrada na família deve b a i x a r estes dados, sem dúvida
incompletos. Os "distúrbios mentais" são nitidamente mais acentuados n o s psicóticos.
A presença de alcoólatras na família revela diferenças significativas, sendo que os
p s i c ó t i c o s a r r o l a d o s c o n t a m mais antecedentes nas suas famílias q u e o s nâo-psicóticos.
Os antecedentes d e sifilis não demonstram diferenças.
P o d e m o s interpretar estes resultados c o m o indícios de u m a m o r b i d e z (sobretudo
alcoólica) m a i s acentuada nas famílias d o s psicóticos — sem que isso n o s autorize,
é ó b v i o , a falar de u m a "tara hereditária": antecedentes p o d e m influenciar o c o m p o r -
tamento de u m indivíduo d e múltiplas maneiras, sendo a transmissão genética só uma
delas.
N o s a n t e c e d e n t e s p e s s o a i s , o s d o i s g r u p o s d e m o n s t r a r a m .parcas d i f e r e n ç a s s i g n i f i -
cativas. N o s itens astenia, n e r v o s i s m o , p e r t u r b a ç õ e s d o sono, a s freqüências arroladas
e r a m altas, m a s s e m s i g n i f i c ã n c i a e s t a t í s t i c a . Diferenças foram evidenciadas nas afec-
ções psicossomáticas e cerebrais. O s alcoólatras sociais apresentam relativamente poucos
problemas psicossomáticos. N a s afecções cerebrais, a distribuição é invertida. O
primeiro grupo indica mais antecedentes, notadamente traumatismos.
Apresentamos em seguida alguns dos sintomas psicopatológicos arrolados, selecio-
nando as variáveis mais características. Sintomas tais como ansiedade, tremores,
depressão ou idéias de suicídio, encontraram freqüências elevadas mas sem discri-
minação.
Na tabela 4 p o d e m o s constatar que as freqüências de vários sintomas possuem
diferenças significativas. Na última variável, a d o s sintomas psicóticos, esta diferença
é bastante significativa, o que corresponde ao critério diferencial da amostragem.
Chama a atenção, porém, o fato que a metade dos pacientes do primeiro grupo,
rotulados como não-psicóticos, indicam a presença de elementos psicóticos. Devemos
aceitar, destarte, q u e a diferenciação em dois g r u p o s de alcoólatras, embora pertinente
ao nível teórico, foi efetuada de maneira não totalmente satisfatória.

N o que diz respeito aos sintomas de obsessões/compulsões (altamente significativos),


é possível que fobias e compulsões de tipo psicótico (freqüentes na psicose de K o r s a k o f f
ou nas alucinações alcoólicas) influenciaram a freqüência elevada das respostas, sendo
estas c o m p u l s õ e s , assim entendidas, um outro índice da psicotização destes pacientes.
Tentativas de suicídio caracterizam mais o segundo grupo, onde, aliás, as cefaléias e
enxaquecas são muito mais freqüentes. Dos meios utilizados para atentar contra a
vida, se destacam no segundo grupo, veneno, armas e atropelamento, meios com um
grau de letalidade elevado, mas as freqüências são pequenas demais para permitirem
conclusões mais amplas.

Podemos concluir do conjunto destes resultados que o nosso segundo grupo é


psicopatologicamente mais marcado e portanto mais atingido pela doença, o que se
manifesta t a m b é m através das elevadas freqüências das "sem respostas". Estes pacien-
tes muitas vezes não parecem estar capacitados ou interessados em responder, o que
pode significar que a sua capacidade comunicativa é seriamente alterada. A distinção
de dois grupos parece, pois, justificada, com a restrição de que o segundo grupo
não se destaca unicamente por traços psicóticos, mas por um conjunto mais amplo
de características psicopatológicas.

Examinaremos em seguida a pertinência da nossa diferenciação nos resultados do


teste projetivo aplicado, mais a p t o talvez q u e n o s s o questionário para revelar diferenças,
desta vez ao nível d a estrutura d a personalidade.
Resultados do teste projetivo de Szondi — O teste de Szondi é pouco conhecido e
utilizado n o Brasil, mas é um instrumento clínico de alto valor quando se trata de
investigar a estrutura profunda da personalidade. Nao dispomos de normas brasileiras
para adultos, mas segundo nossa experiência, é possível, sem inconvenientes, comparar
com dados europeus.

Aplicamos o teste cinco vezes; como vários pacientes receberam alta, c o n s e g u i m o s


t e r m i n a r a s a p l i c a ç õ e s s o m e n t e c o m 77 pacientes, 30 alcoólatras "sociais" e 41 twicóticos.

Conforme as tabelas 5 e 6, d i f e r e n ç a s altamente significativas existem n o s fatores


h e k, seguidos pelos fatores e e p. Os quatro fatores r e s t a n t e s n&o s e diferenciam
no que diz respeito à distribuição das reações fatoriais.

Como interpretar estes achados? Os pacientes dos dois grupos são marcados por
uma estrutura de tipo pregenital que, no entanto, é m u i t o mais acentuada nos alcoólatras
psicóticos. D e s e j o s infantis de ternura, a m o r e afeição não p o d e m ser nem satisfeitos

•Terminamos uma pesquisa s o b r e as normas brasileiras para crianças, a ser publi-


c a d a d e n t r o e m b r e v e s o b o t í t u l o : A estruturla psico-pulsional de crianças brasileiras.
N u m o u t r o t r a b a l h o , Considerações sobre a atualidade do teste do Szondi (em: Arquivos
B r a s i l e i r o s d e P s i c o l o g i a A p l i c a d a , v o l . 2 9 / 3 , 1977), a p r e s e n t a m o s a l g u m a s i d é i a s s o b r e
a riqueza e a utilidade antropológico-clínica deste instrumento. A comparação c o m
u m grupo-controle, prevista para u m outro trabalho, p o d e r á fornecer indicações interes-
santes.
nem expressos diretamente, estando o s caminhos de realização obstruídos. Estes desejos
são, por conseguinte, vividos sob forma de exigências veementes e intempestivas em
que se expressam tanto o desamparo e a solidão destes indivíduos quanto a sua
imaturidade e regressividade.

Tais estruturas de personalidade são caracterizadas por uma fragilidade extrema,


p o r uma sensibilidade elevada à frustração e por uma "impotência" a elaborar e con-
temporizar as falhas existenciais. B e m se p o d e dizer q u e esta incapacidade deve esten-
der-se às perdas e à problemática d a separação, cuja aceitação é indispensável para a
maturação e a individualização. A s exigências maciças d e ser atendido e ser satisfeito
pelo outro, combinada com a prostração passiva inerente a este tipo de expectativa,
testemunham q u e esta individualização n ã o foi atingida. A solução é esperada d o outro
e nada de concreto é empreendido, p o r falta d e consistência interna, p a r a se criar uma
solução pelos próprios meios.

Esta constelação, pois, marca as duas populações, mas torna-se verdadeiramente


patognóstica nos psicóticos, tanto pela preponderância da reação h + (71,7%, sobretudo
na combinação vetorial S + O : 25,8%*), quanto pelas cargas quantitativas. Comparando
as reações do contato (C), constatamos que a problemática da separação se reflete
aí d e m a n e i r a diferente. Se a distribuição fatorial é quase uniforme (e portanto sem
significação estatística), a distribuição vetorial mostra diferenças interessantes: a
r e a ç ã o C Of-, r e a ç ã o d e a p e g o o r a l , de afeição ao nível d e uma necessidade primária
d e aceitação englobante, alcança 30% n o primeiro g r u p o , m a s s o m e n t e 20% n o segundo.
Isto em oposição à reação C ± , reação da separação assumida, e à reação C O—,
separação que deixa o indivíduo solto e isolado. N o primeiro grupo, estas duas reações
atingem 19,2%, n o s e g u n d o g r u p o 30,2%, o que demonstra que o isolamento e a falta
de contato caracterizam mais os psicóticos.

Vejamos agora o s fatores do Eu (vetor S c h ) , que apresentam em suas distribuições


diferenças m u i t o significativas. D e fato a reação vetorial Sch é a mais freqüente
somente no segundo grupo ( 2 1 % , c o n t r a 10,8% n o p r i m e i r o g r u p o ) , o n d e e l a é seguida
reação Sch O— (15,6%, contra 8,9% no lo grupo). Nos alcoólatras sociais, pois,
predomina a reação Sch ± ( c o m 13,6% c o n t r a 4 , 9 % n o s p s i c ó t i c o s ) . Estas diferenças
exigem uma interpretação. Como as psicoses alcoólicas correspondem a psicoses
exógenas, é normal q u e as reações negativas prevaleçam n o vetor d o Eu, representando
as funções de negação, de auto-desvalorização e auto-destruição. Através delas o
alcoólatra psicótico — bem como o demente crônico, o catatônico, o maníaco ou o
epilético psicótico — tentam reestruturar-se, sendo contudo o fracasso desta tentativa
já implícita no recurso a estas funções.

Em oposição ao grupo psicótico, os alcoólatras "sociais" demonstram menos pro-


pensão a regredir a esta função d e represamento total. Através da função d e k* +,
eles g u a r d a m mais referências e vínculos para com o mundo perceptivo, o que lhes
permite uma certa integração, bem relativa é verdade, no mundo comum. Todavia,
eles também recorrem à função projetiva mas c o m m e n o s intensidade e, s o b r e t u d o , em
conexão k + . A reação vetorial dal resultante chama-se "reação autistico-indisciplinada".

* P a r a não sobrecarregar o artigo, renunciamos em apresentar o s resultados das


d i s t r i b u i ç õ e s v e t o r i a i s ( * = r e a ç õ e s f a t o r i a i s c o m b i n a d a s 2 χ 2, o q u e n o s d á 16 p o s s i -
bilidades). Contentamo-nos c o m referências ocasionais a estes resultados.
Parece-nns q u e esta denominação caracteriza b e m a personalidade d o alcoólatra social:
instabilidade, vadiagem, ausência d e vínculo empregatício e marginalizarão pela socie-
dade a qual ele ainda pertence, mais do que o psicótico.

No vetor d o s afetos ( P ) finalmente, chama a atenção a freqüência elevada da


reação hy+, relativamente rara numa população "normal" (onde predomina a reação
hy—, d o c o n f o r m i s m o s o c i a l e d a t e n d ê n c i a a e s c o n d e r - s e ) . E s t a r e a ç ã o d e hy+ repre-
senta, s e m dúvida, a tendência oposicionista d o alcoólatra, q u e se torna assim direta-
m e n t e 0xibicioni8ta. A ausência o u fraqueza d a censura moral leva a pessoa a exibir
seu sintoma, tendo este último surgido j á c o m o conseqüência de u m a integração defi-
ciente d a consciência moral. P o d e m o s v e r neste processo talvez u m efeito d a estrutura
familiar e d e seus antecedentes, no sentido d e o futuro alcoólatra n ã o ter disposto
de m o d e l o s d e identificação válidos para a formação d a consciência moral.

Correlativamente, o fator e é marcado por uma proporção elevada de reações


negativas no segundo grupo, mais que no primeiro. A presença maciça de afetos
hostis e raivosos deixa pouco espaço para afetos social e eticamente mais integrantes.
Porém, podemos supor q u e al se trata mais de u m a conseqüência da marginalização
do alcoolista, ao qual a convivência e m geral é negada. Neste sentido, a hostilidade
expressa neste fator seria mais u m a reação (inconsciente) a esta marginalização. Aliás,
esta hostilidade não s e transforma em agressividade aberta: a reação s+ é pouco
e l e v a d a , s e n d o a a g r e s s i v i d a d e m a i s v o l t a d a c o n t r a si m e s m o ( s — ) e v i v i d a d e m a n e i r a
auto-destruidora, associada a o s mecanismos d e represamentos do E u j á discutidos. N o
entanto, o s afetos hostis e brutais não se manifestam diretamente, mas são resolvidos
(ou melhor: afogados) através d a bebida, solução milagrosa, sempre pronta a oferecer
seus serviços e p r o m e t e n d o o esquecimento d e u m a realidade intolerável q u e , fatalmente,
volta a impor-se na degradação física e mental.

CONCLUSÕES

Nossos achados demonstram a pertinência da diferenciação dos alcoolistas


em dois grupos. Contudo, esta divisão não corresponde totalmente ao diagnóstico
psiquiátrico, que parece baseado mais numa apreensão intuitiva de uma diferença
qualitativa do que na presença de sintomas psicóticos propriamente ditos. Neste
11
sentido, podemos invocar a diferença encontrada por Tarter (1975) entre
alcoolistas que começam beber mais cedo ou mais tarde na vida: somente os
primeiros demonstram transtornos da personalidade. Utilizando nossos termos,
podemos dizer que o grupo "psicótico" se caracteriza por uma morbidez mais
elevada, tanto no que tange aos antecedentes familiares e pessoais como à preco-
cidade da afecção e aos sintomas atuais. Porém, o conjunto destes aspectos
constitui uma morbidez qualitativamente diferente, evoluída em estruturas psí-
quicas diferentes. O teste de Szondi confirmou os dados obtidos mediante o
questionário, sendo estas diferenças estruturais baseadas em funções defensivas
específicas do Eu. Podemos dizer que o alcoolista de tipo psicótico é mais
regressvo e mais fixado pregenitalmente, utilizando mecanismos defensivos pri-
mitivos e arcaicos com um alcance nitidamente auto-destruidor (não no sentido
de masoquismo, mas de afrouxamento do Eu).
Estes resultados indicam ainda que a patogênese do alcoolismo não é mera-
mente social (pelo menos no segundo grupo). Ela é devida a um conjunto
de fatores no qual a evolução da personalidade, das suas estruturas profundas
e dos seus tipos de funcionamento defensivo, assumem um papel importante.
No grupo de alcoolistas "sociais", a influência de fatores ambientais parece
maior.

Os dados sócio-culturais, sócio-econômicos e psicopatológicos arrolados


representam pouca novidade, a não ser a de existir doravante. É mérito do
teste projetivo utilizado ter conferido uma significação mais precisa aos dados
recolhidos, o que nos permite responder afirmativamente aos tópicos mencionados.
Os resultados convergem finalmente com os achados encontrados por Studer
(1974) na Suíça, sendo a tendência masoquista menos acentuada em nossos
dois grupos.
Podemos concluir que o funcionamento psicodinâmico dos nossos alcoólatras
se baseia na recuada defensiva e auto-mutilante operada ao nível das funções
do Eu. Trata-se de uma tentativa de re-estruturação que visa garantir um
funcionamento existencial mínimo, mas é o próprio sujeito quem paga como
vítima para esta sua tentativa. Ele se torna bebedor, solto na sua solidão,
reduzido ao monólogo do ato de beber, expressando, assim, sua incapacidade
de comunicar-se ao nível de um discurso pleno — discurso este que pressupõe
o reconhecimento do outro e a auto-posição como sujeito. É desta sua subje-
tividade que o alcoolista abdicou, desistindo de prosseguir no caminho da indi-
vidualização, sob a influência conjunta de fatores ambientais pouco propícios e
da inconsistência interna, tal como a revela o teste projetivo.

RESUMO

Oitenta e seis alcoólatras crônicos, hospitalizados em três clínicas psiquiá-


tricas, foram examinados mediante um questionário e o teste projetivo de Szondi.
A divsão em dois grupos, alcoolistas "sociais e psicóticos, permitiu evidenciar
diferenças significativas. Os pacientes psicóticos têm uma idade média inferior
aos "sociais", o que indica que neles o processo mórbido se inicia mais cedo.
Ademais, o teste projetivo revela que este processo é também qualitativamente
diferente, na medida em que o psicótico utiliza mecanismos defensivos de negação
e de auto-bloqueio com um alcance auto-destruidor. Isto impede a individualiza-
ção e fixa o paciente, sem consistência interna, a um nível de regressão prege-
nital, o que se manifesta exteriormente pela sua marginalização.

SUMMARY

The personality of alcoholics: socio-cultural, psycho pathological and psycho-


dynamical variables.

86 cronic alcoholics, hospitalized in three psychiatric clinics, were studied


through a questionnaire and the Szondi Projective Test. Dividing the sample
into two groups, "social" and psychotic alcoholics brought several significant
differences to light. The mean age of the psychotic patients was lower than
of the "social" alcoholics, suggesting that the pathology of the former had begun
sooner. Furthermore, the projective test revealed that the pathology of the
psychotic patients was qualitatively different in that they use negation and
selfblocking defense mechanisms at a self-destructive level. This hinders indivi­
dualization and fixates the patient, without internal consistency, at a level of
pre-genital regression which is manifested in their social marginality.
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Departamento de Psicologia — Universidade de Brasilia — Campus Universitário,


Asa Norte — 70960 Brasilia, D. F. — Brasil.

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