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Questão social e políticas públicas:
revendo o compromisso da Psicologia*
Oswaldo H. Yamamoto**
eriêndas, de tal forma que somente podemos sentir ou fazer coisas que
o in tento é debater o compromisso social da Psicologia, é
' ltH..lavia, se
estão prescritas científica ou tecnicamente.
li l'ilo indagar: temos, realmente, o que comemorar nesses quarenta anos de A tese é certamente polêmica, mas muito instigante: traduzida para os
l'l'gu lamen tação da profissão? • c<'OSSOS termos, uma profissão (no sentido modemo do termo) teria por pres-
' suposto a apropriação (privada) de conhecimentos por parte de um grupo
que estabelece critérios de crede~ciamento e uso desses conhecimentos tem
Profissão: o que é, para que regulamentar?
a exclusão como sua contrapartida.
Para construir uma resposta para esta questão, convém precisar o sig- Mas, para além do aspecto meramente corporativo, existem justificati-
nificado de profissão. Partimos da compreensão de que uma profissão é vas alegadas para a manutenção da díade expertise-credencialismo. Uma
uma prática institucionalizada, socialmente legitimada e legalmente san- das principais razões diz respeito à complexidade da expertise que exigiria
cionada (Netto, 1992). • jntermediação de um profissional competente e credenciado e seria a úni-
Algumas das vertentes teóricas às quais se afiliam os estudiosos das ca forma de garantir uma prestação qualificada desse serviço. Dessa forma,
profissões costumam identificar, dentre os traços distintivos de uma profis- na raiz dessa justificativa, estaria a necessidade de proteção do público com
são "autônoma", a existência de duas condições: a expertise e o credencialis- relação a uma possível incompetência na utilização de tais recursos, ao
mo. Em poucas palavras, a expertise significaria o domínio, por parte dos mesmo tempo que o credencialismo estimularia os profissionais a um de-
profissionais, de um conjunto específico e relativamente esotérico de co- sempenho comprometido (Freidson, 1998).
nhecimentos e habilidades que estariam fora do alcance da maioria das Isto posto, a indagação que se impõe é se, com efeito, ao longo desses
pessoas exteriores à ocupação. O credencialismo significaria a instituciona- quarenta anos, a regulamentação tem protegido o público, ao mesmo tem-
lização da expertise, que pressuporia uma organização da profissão para o po em que tem estimulado um desempenho comprometido por parte do
treinamento e p ara a certificação da competência profissional, restringindo
o acesso aos recursos daquela profissão somente àquele grupo selecionado psicólogo?
de p<:t-.soas (Freidson, 1998).
O que está subjacente a esta forma de organização profissional? Sem Profissão de psicólogo no Brasil: tradição e mudança
prdcndcr abordar a questão em maiores detalhes, o que exorbitaria o âm-
Nos primeiros anos da década de 60 do século passado, o Brasil atra-
bilo deste capítulo, é necessário estabelecer alguns pontos para a nossa dis-
cussão. vessava um momento de intensa mobilização popular e crise política, cujo
desenlace é bastante conhecido: dentre as possibilidades postas, o país ini-
Um pressuposto que está na base do sistema de profissionalização
cia um período de vinte anos de regime autocrático-burguês, com desenho
baseado na relação expertise-credencialismo é a questão da propriedade do
conhecimento. Marilena Chaui (1980) discutiu essa questão, tempos atrás. semelhante aos demais nações do cone suP.
O país contava com um sistema universitário já bem estruturado: con-
A tese central de Chaui era de que a nossa sociedade era regulada pelo que
ela chamava de "regra da competência", ou seja, "não é qualquer um que quanto recente', já padecia dos problemas de anacronía do sistema e alvo de
pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qual-
quer circunstância" (p. 27). A regra definia, assim, quem seria competente
para falar sobre os diversos temas (em particular, Chauí focalizava a edu- 1. Para análises sobre a questão, ver, dentre outros, Alves (1989) e Netto (1990).
2. A primeira instituição universitária no Brasil, a Universidade de São Paulo, é criada no
cação). Dessa forma, o discurso de era silenciado e substituído pelo discur-
ano de 1934. No ano seguinte, é fundada no Rio de Janeiro, a Universidade do Brasil, atual Uni-
so sobre. Exemplifico com um tema familiar: o discurso do louco era substi- versidade Federal do Rio de Janeiro. Para análises acerca da constituição e características da uni-
tuído pelo discurso da Psiquiatria sobre a l~mcura. E assim por diante. En- versidade no Brasil, ver, em especial, Cunha (1980; 1983; 1988) e Fernandes (1977).
fim, a responsabilidade do especialista passa a ser intermediar as nossas ex-
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IAECOMPROMISSO SOCIAL
40 ANAM. B. BOCK rs1cOLOG -
eríodo de crise (planetária) da acumulação capitalista - é que esse
ontestação estudantil. Quanto à Psicologia, havia já uma tradição de produ- urr.i P
quadro começa a se redesenhar.
ção de conhecimento e mesmo de aplicação em alguns de seus campos3 . É Ta l mudança do perfil da profissão associa-se, ao menos, a três vetores:
nesse cenário que a profissão é regulamentada, pela Lei Federal nº 4.119 / 62. (a) contingências específicas do mercado de trabalho - a falência do mo-
Desde os primeiros estudos sobre a profissão, um determinado perfil delo de profissional autônomo associada ao estreitamento da demanda dessa
se desenha: três grandes áreas sendo consagradas, Clínica, Escolar e Indus- modalidade de serviços psicológicos como conseqüência da crise econô-
trial/ Organizacional, com amplo predomínio da primeira. De fato, de acordo mica que o país atravessava; (b) a abertura (extemporânea) de campo de
com dados do único levantamento exaustivo conduzido nacionalmente, aw ação p rofissional pela redefinição do setor bem-estar no primeiro mo-
55,3% dos psicólogos tinham na área Clínica sua atividade principal, con- mento da transição democrática - processo para o qual concorrem a fragi-
tra 19,2% na área Organizacional e 11,7% na área Escolar (CFP, 1988). lização dos segmentos conservadores nos estertores do período autocráti-
Mais do que a marcada preferência pela atividade clínica, porém, o co-burguês e a organização dos setores oposicionistas, aí incluídos os inte-
modelo de profissional liberal moldado à luz das profissões médicas se faz lectuais/ profissionais de natureza vária, que conduz a importantes con-
amplamente hegemónico - o que leva Mello (1975), já no início da década quistas no plano social que têm seu momento emblemático na (progressis-
de 1970, a clamar pelo compromisso social do psicólogo - que deveria ser, ta) Constituição de 19885; e (c) evidentemente, não se podem menosprezar
os embates no plano teórico-ideológico que nutrem uma redefinição dos
pela própria natureza do conhecimento com o qual trabalha, mais do que .
"uma atividade de luxo" (p. 109). Como uma autêntica ciência, e não "uma rumos da Psicologia6 •
técnica p ara solucionar problemas íntimos dos privilegiados" (p. 113), a Os diversos estudos conduzidos, tanto no plano nacional como nos
Psicologia deveria buscar uma inserção social mais significativa para um regionais, envolvendo avaliações da situação profissional (e. g., CFP, 1992;
contingente maior da população. Numa direção próxima, Sílvio Botomé 1994; 2002; CRP /6ª Região, 1995; Yamamoto, Siqueira & Oliveira, 1997;
(J 979), cruzando dados dos honorários de psicólogos que atuavam na área Yamamoto et al., 2001), têm mostrado uma mudança que começa a se pro-
predominante, a clínica, com a distribuição de renda no Brasil, concluía que cessar, gradual e tendencialmente, na configuração da Psicologia no Brasil.
apenas 15% d a população brasileira tinha acesso aos serviços profissionais Tomemos, para ilustrar, os dados de um levantamento conduzido em
do psicólogo. E indagava: os demais 85% não necessitam desse serviço? 2001 pelo Conselho Federal de Psicologia.
A busca por uma resposta, naquele momento, à questão que formula- O quadro resultante evidencia duas tendências: de uma p arte, a ma-
mos - a quem a regulamentação protege e com quem a Psicologia se com- nutenção da hegemonia da atividade clínica com relação às demais, confir-
promete - m ostraria um quadro bastante melancólico, a julgar pelas inú- mando o perfil anteriormente mencionado; de outra, uma ampliação das
meras análises e denúncias sobre os rumos da profissão não faltaram4 (as- oportunidades profissionais, propiciada pela abertura de novos espaços de
sim como ten tativas de proposição de construção de alternativas, é impor- inserção profissional. É nesse particular que se obser va a presença do psicó-
tante assinalar). logo nos campos do bem-estar social de cunho preventivo e compensatório.
A questão é que, a despeito das denúncias e avaliações acerca dos ru- Não é nossa intenção discutir em detalhes os dados sobre a configura-
mos da Psicologia, somente na confluência de determinadas condições his- li'l ção profissional da Psicologia; os elementos até aqui levantados são sufi-
tóricas - nomeadamente, o período final do regime autocrático-burguês, ,,..t cientes para estabelecer os pontos para a discussão.
no qual h á uma rearticulação maciça do movimento popular, e o início de
5. Para análises sobre esse momento, ver, novamente, Alves (1989). Para uma d iscussão do
j;
3. Para aná lises históricas sobre a Psicologia no Brasil, com angulações diversas de análise,
ver Antunes (1999), Massimi (1990), Pessotti (1988) e Mello (1975).
·~
"1
papel dos intelectuais na transição democrática, ver Pécaut (1990).
6. Nesse particular, tem grande peso a ação do Conselho Federal de Psicologia, responsável
4. Para alguns ou tros exemplos, ver Bock (1999), Figueiredo (1989), Lane (1981) e Yamamoto
(1 986).
1
:i a
pela condução d e diversos estudos sobre a p rofissão (CFP, 1988; 1992; 1994).
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Organizacional/Trabalho 19,2 12,4 ção entre a socialização da prod~ção e ª. apr~priação privada através do
'~ontrole dos mercados, o Estado e refunc1onahzado e red1mens10nado, as-
Docência 6,6 2,2
e sumindo a responsabilidade por um conjunto de mecanismos extra-econô-
Pesquisa 1,3 0,6
n:ücos que se articulam com o processo produtivo. Dentre tais funções, uma
Social/Comunitária 2,8 1,7 que adquire primordial importância diz respeito à "preservação e ao con-
Saúde** - 12,6 Úole da força de trabalho, ocupada e excedente" (Netto, 1992: 22).
Trânsito** - 3,9 A articulação das funções econômicas e extra-econômicas (ou especi-
Jurídica** - 2,5 ficamente políticas) assumidas pelo Estado demanda, por um lado, a legiti-
mação política pelo alargamento da sua base de sustentação, através da
Esporte** - 0,1
institucionalização de direitos e garantias sociais. Tal legitimação, p ela u ti-
Outros 3,0 - ' lização dos instrumentos da democracia política, mobiliza uma dinâmica
prego prmc1pal c:ontraditória, tornando o Estado permeável a demandas das classes subal-
A pesquisa de 1988 não trabalhou com essas áreas, por não aparecerem ou por estarem agrupadas na catego-
11
ria Üutros".
ternas.
Nessas condições, as conseqüências da questão social tornam-se obje-
to de intervenção sistemática e contínua por parte do Estado, mas através
Portanto, se de uma parte a inserção do psicólogo no campo das polí-
de um processo peculiar: sem a possibilidade da remissão à totalidade pro-
ti cas sociais se desenha de forma nítida, garantindo à Psicologia uma con-
cessual específica (conforme nossa definição), ela é tratada de forma frag-
siderável extensão da cobertura da atenção psicológica a camadas amplas
da população, de outra, uma questão permanece: essa extensão do campo mentária e parcializada.
de atuação, para além do elastecimento do mercado de trabalho, represen- Política social transmuta-se em políticas sociais (no plural): as expressões
ta um maior comprometimento com camadas mais amplas da população? da questão social são tratadas de forma particular - e assim, enfrentadas.
É, portanto, na forma de políticas setorizadas que as p rioridades no
campo social são definidas. E política, é sempre conveniente lembrar, é
Questão social e políticas públicas conflito, que nas formações sociais capitalistas traduz-se na oposição en-
tre os interesses da acumulação e as necessidades dos cidadãos. As políti-
Antes de discutir a articulação dos temas centrais desta minha inter- cas sociais, como parte do processo estatal da alocação e distribuição de
venção - o compromisso do psicólogo remetido à inserção do psicólogo valores, encontram-se no centro desse confronto de interesses de classes
no campo das políticas sociais - , necessito qualificar o debate partindo da
(Abranches, 1985).
consideração de um elemento pouco usual no tratamento das políticas so- O suposto de que as políticas sociais nos remetem sempre e no limite
ciais, ou seja, a sua remissão à chamada questão social, como parâmetro e ao antagonismo irreconciliável de classes não nos impede, todavia, d e
limite para a ação e o compromisso do psicólogo. pensar em diferentes pontos de equilíbrio entre a acumulação e a privação
De uma maneira muito ampla, questão social significaria o conjunto de social (Abranches, 1985). Tais pontos são dependentes de particulares cor-
problemas p olíticos, sociais e econômicos postos pela emergência da classe
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ANA M. B. BOCI( 46
l!OGIÁ ECOMPROMISSO SOCIAL
mente, regiões mais pobres como o Nordeste brasileiro contavam com mais ·:,, '· nta uma elevação nos gastos do setor, é também aquele que tem os
1 rese . .
de 40% da populaç~o em situação de indigência (Soares, 2001) 11 • . · :.-.di'ces
iores ..... , tanto em termos absolutos (medidos em US$ per capita), quan-
,,. ·:-relativos (percentual do PIB).
t@
Nesse quadro é que se faz sentir o impacto dos cortes dos gastos pú-
blicos no setor social (Tabela 2). · · Analisando os gastos setoriais, o Brasil investe cinco vezes menos que
":géntina e três v~zes menos que o ~éxico no setor educacional. ~uanto
'êtor saúde, considerando-se o Brasil como uma das poucas naçoes que
Tabela 2 - Quadro comparativo do gasto público ·eu impor, mesmo com todas as dificuldades já amplamente analisadas,
social total e setorial de três países lat'-- - -·- sistema único e descentralizado nos moldes preconizados pela Organi-
.Ía'ÇãO Mundial de Saúde/Organização Pan-americana de Saúde (OMS/
Total Educação Saúde fÕpAS), investe quatro vezes menos que a Argentina e metade do que gasta
Argentina
Total % PIB (1980 / 1)
; 'México.
"-'!';;
16,2
Total % PIB (1990 /3)
3,3 4,0 Para além do aspecto regressivo do gasto público no setor social, a
15,5 3,4
US$ per capita (1980/1) 4,4 aesestruturação neoliberal dos serviços sociais se processa através de três
569,9
US$ per capita (1990/3)
113,5 154,0 '~ecanismos: a descentralização dos serviços (que implica transferência de
516,5 104,1 133,8 iesponsabilidade aos níveis locais do governo a oferta de serviços deterio-
Brasil
. rados e sem financiamento); a privatização total ou parcial dos serviços (pro-
Total % PIB (1980/1) movendo uma dualidade, com oferta de serviços de qualidade diferencia-
9,3 0,9
Total % PIB (1990/3) 1,8
11,8 1,9 da conforme a capacidade de pagamento do usuário) e a focalização (intro-
US$ per capita (1980/ 1) 2,4
159,6 16,7 duzindo um corte de natureza discriminatória para o acesso aos serviços
US$ per capita (1990/ 3) 29,9 II
177,3 20,l sociais básicos pela necessidade de comprovação da condição de pobre-
38,0
México ·~a11) (Soares, 2001).
Total% PIB (1980/1) Portanto, a análise da condição social no Brasil - de resto, equivalen-
8,0 3,1
Total% PIB (1990/3) 3,5
6,5 . te aos demais países latino-americanos - requer a consideração de dois
2,7 3,2
US$ per capita (1980 / 1) .vetores: de uma parte, a situação de miséria social que tipifica uma imensa
224,8 87,6
US$ per capita (1990/3) 94,0
167,4 parcela da população; de outra, o progressivo descompromisso do Estado
67,2 80,1
235).
com o financiamento da proteção social, associada à refuncionalização dos
mecanismos de atendimento no setor.
Considerado esse quadro - e tendo por suposto que políticas sociais
são expressões da questão social cujo equacionamento nos remeteria à con-
Os dados mostram que o financiamento do gasto social no conjunto II
tradição principal do modo de produção capitalista, ou seja, que a maxi-
das nações latino-americanas não se altera de forma significativa, mas a
mização da eqüidade é incompatível com a maximização do processo
tendência é regressiva. O Brasil, que dos países apresentados é o único que
acumulativo" (Santos, 1989: 40) - é que se pode aquilatar o significado
preciso da afirmação de que as definições desse setor seriam metapolíticas,
entendendo políticas sociais como ordenamento de escolhas trágicas 12 •
11. Os dados originais provêm de fontes oficiais: da Pesquisa Nacional por Amostra de Domi-
cílios (PNDA), da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). "Pobreza" equi-
valia, em 1990, a uma renda familiar per capita de US$ 34,4 mensais; "Indigência" aqui é tomada
como a condição de uma pessoa cuja renda familiar corresponde, no máximo, ao valor que permite 12. Segundo o autor, tomando como base o pensamento de Douglas Rae, "qualquer princí-
a aquisição de uma cesta básica, conforme os padrões nutricionais da FAO/ OMS/ ONU. pio de justiça, simples ou complexo, produz resultados contrários ao que se deseja quando apli-
cado da mesma forma em qualquer circunstância" (Santos, 1989: 39).
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17. Tarefa que vem sendo realizada de forma bastante competente e responsável pelas últi-
16. Sem entrar no mérito das proposições, uma das tentativas nessa direção é explorada por
mas gestões do Conselho Federal de Psicologia e pelo Sistema Conselhos.
Bock, Gonçalves e Furtado (2001).