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Questão social e políticas públicas:
revendo o compromisso da Psicologia*
Oswaldo H. Yamamoto**

Em agosto de 2002, comemoramos os primeiros quarenta anos da Psi-


cologia como profissão regulamentada no Brasil. Não restam dúvidas de
que muito se fez ao longo destas primeiras quatro décadas: a quantidade
de profissionais e de agências formadoras; o desenvolvimento da pesquisa
· e da pós-graduação; a diversidade de áreas e setores de atividades abrangi-
dos pelos psicólogos; a organização da profissão são mostras evidentes do
vigor da Psicologia no Brasil.

• Versão adaptada e revista da intervenção na mesa-redonda "40 anos da profissão: revendo


o compromisso da Psicologia para projetar o futuro", realizada no I Congresso Brasileiro Psicolo-
gia: Ciência e Profissão, setembro de 2002, em São Paulo (SP).
•• Doutor em Educação pela USP; Professor do Departamento de Psicologia e do Programa
de Pós-graduação em Psicologia (Mestrado) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, e
do Programa Integrado de Pós-graduação em Psicologia Social (Doutorado) da UFPB/UFRN;
Pró-reitor de Planejamento da Universidade Federal do Rio Grande do Norte; Editor da revista
Estudos de Psicologia (Natal). E-mail: ohy@uol.com.br.
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.OGIA EcoMPROMISSO SOCIAL


38 ANA M. B. BOCK

eriêndas, de tal forma que somente podemos sentir ou fazer coisas que
o in tento é debater o compromisso social da Psicologia, é
' ltH..lavia, se
estão prescritas científica ou tecnicamente.
li l'ilo indagar: temos, realmente, o que comemorar nesses quarenta anos de A tese é certamente polêmica, mas muito instigante: traduzida para os
l'l'gu lamen tação da profissão? • c<'OSSOS termos, uma profissão (no sentido modemo do termo) teria por pres-
' suposto a apropriação (privada) de conhecimentos por parte de um grupo
que estabelece critérios de crede~ciamento e uso desses conhecimentos tem
Profissão: o que é, para que regulamentar?
a exclusão como sua contrapartida.
Para construir uma resposta para esta questão, convém precisar o sig- Mas, para além do aspecto meramente corporativo, existem justificati-
nificado de profissão. Partimos da compreensão de que uma profissão é vas alegadas para a manutenção da díade expertise-credencialismo. Uma
uma prática institucionalizada, socialmente legitimada e legalmente san- das principais razões diz respeito à complexidade da expertise que exigiria
cionada (Netto, 1992). • jntermediação de um profissional competente e credenciado e seria a úni-
Algumas das vertentes teóricas às quais se afiliam os estudiosos das ca forma de garantir uma prestação qualificada desse serviço. Dessa forma,
profissões costumam identificar, dentre os traços distintivos de uma profis- na raiz dessa justificativa, estaria a necessidade de proteção do público com
são "autônoma", a existência de duas condições: a expertise e o credencialis- relação a uma possível incompetência na utilização de tais recursos, ao
mo. Em poucas palavras, a expertise significaria o domínio, por parte dos mesmo tempo que o credencialismo estimularia os profissionais a um de-
profissionais, de um conjunto específico e relativamente esotérico de co- sempenho comprometido (Freidson, 1998).
nhecimentos e habilidades que estariam fora do alcance da maioria das Isto posto, a indagação que se impõe é se, com efeito, ao longo desses
pessoas exteriores à ocupação. O credencialismo significaria a instituciona- quarenta anos, a regulamentação tem protegido o público, ao mesmo tem-
lização da expertise, que pressuporia uma organização da profissão para o po em que tem estimulado um desempenho comprometido por parte do
treinamento e p ara a certificação da competência profissional, restringindo
o acesso aos recursos daquela profissão somente àquele grupo selecionado psicólogo?
de p<:t-.soas (Freidson, 1998).
O que está subjacente a esta forma de organização profissional? Sem Profissão de psicólogo no Brasil: tradição e mudança
prdcndcr abordar a questão em maiores detalhes, o que exorbitaria o âm-
Nos primeiros anos da década de 60 do século passado, o Brasil atra-
bilo deste capítulo, é necessário estabelecer alguns pontos para a nossa dis-
cussão. vessava um momento de intensa mobilização popular e crise política, cujo
desenlace é bastante conhecido: dentre as possibilidades postas, o país ini-
Um pressuposto que está na base do sistema de profissionalização
cia um período de vinte anos de regime autocrático-burguês, com desenho
baseado na relação expertise-credencialismo é a questão da propriedade do
conhecimento. Marilena Chaui (1980) discutiu essa questão, tempos atrás. semelhante aos demais nações do cone suP.
O país contava com um sistema universitário já bem estruturado: con-
A tese central de Chaui era de que a nossa sociedade era regulada pelo que
ela chamava de "regra da competência", ou seja, "não é qualquer um que quanto recente', já padecia dos problemas de anacronía do sistema e alvo de
pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qual-
quer circunstância" (p. 27). A regra definia, assim, quem seria competente
para falar sobre os diversos temas (em particular, Chauí focalizava a edu- 1. Para análises sobre a questão, ver, dentre outros, Alves (1989) e Netto (1990).
2. A primeira instituição universitária no Brasil, a Universidade de São Paulo, é criada no
cação). Dessa forma, o discurso de era silenciado e substituído pelo discur-
ano de 1934. No ano seguinte, é fundada no Rio de Janeiro, a Universidade do Brasil, atual Uni-
so sobre. Exemplifico com um tema familiar: o discurso do louco era substi- versidade Federal do Rio de Janeiro. Para análises acerca da constituição e características da uni-
tuído pelo discurso da Psiquiatria sobre a l~mcura. E assim por diante. En- versidade no Brasil, ver, em especial, Cunha (1980; 1983; 1988) e Fernandes (1977).
fim, a responsabilidade do especialista passa a ser intermediar as nossas ex-
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40 ANAM. B. BOCK rs1cOLOG -
eríodo de crise (planetária) da acumulação capitalista - é que esse
ontestação estudantil. Quanto à Psicologia, havia já uma tradição de produ- urr.i P
quadro começa a se redesenhar.
ção de conhecimento e mesmo de aplicação em alguns de seus campos3 . É Ta l mudança do perfil da profissão associa-se, ao menos, a três vetores:
nesse cenário que a profissão é regulamentada, pela Lei Federal nº 4.119 / 62. (a) contingências específicas do mercado de trabalho - a falência do mo-
Desde os primeiros estudos sobre a profissão, um determinado perfil delo de profissional autônomo associada ao estreitamento da demanda dessa
se desenha: três grandes áreas sendo consagradas, Clínica, Escolar e Indus- modalidade de serviços psicológicos como conseqüência da crise econô-
trial/ Organizacional, com amplo predomínio da primeira. De fato, de acordo mica que o país atravessava; (b) a abertura (extemporânea) de campo de
com dados do único levantamento exaustivo conduzido nacionalmente, aw ação p rofissional pela redefinição do setor bem-estar no primeiro mo-
55,3% dos psicólogos tinham na área Clínica sua atividade principal, con- mento da transição democrática - processo para o qual concorrem a fragi-
tra 19,2% na área Organizacional e 11,7% na área Escolar (CFP, 1988). lização dos segmentos conservadores nos estertores do período autocráti-
Mais do que a marcada preferência pela atividade clínica, porém, o co-burguês e a organização dos setores oposicionistas, aí incluídos os inte-
modelo de profissional liberal moldado à luz das profissões médicas se faz lectuais/ profissionais de natureza vária, que conduz a importantes con-
amplamente hegemónico - o que leva Mello (1975), já no início da década quistas no plano social que têm seu momento emblemático na (progressis-
de 1970, a clamar pelo compromisso social do psicólogo - que deveria ser, ta) Constituição de 19885; e (c) evidentemente, não se podem menosprezar
os embates no plano teórico-ideológico que nutrem uma redefinição dos
pela própria natureza do conhecimento com o qual trabalha, mais do que .
"uma atividade de luxo" (p. 109). Como uma autêntica ciência, e não "uma rumos da Psicologia6 •
técnica p ara solucionar problemas íntimos dos privilegiados" (p. 113), a Os diversos estudos conduzidos, tanto no plano nacional como nos
Psicologia deveria buscar uma inserção social mais significativa para um regionais, envolvendo avaliações da situação profissional (e. g., CFP, 1992;
contingente maior da população. Numa direção próxima, Sílvio Botomé 1994; 2002; CRP /6ª Região, 1995; Yamamoto, Siqueira & Oliveira, 1997;
(J 979), cruzando dados dos honorários de psicólogos que atuavam na área Yamamoto et al., 2001), têm mostrado uma mudança que começa a se pro-
predominante, a clínica, com a distribuição de renda no Brasil, concluía que cessar, gradual e tendencialmente, na configuração da Psicologia no Brasil.
apenas 15% d a população brasileira tinha acesso aos serviços profissionais Tomemos, para ilustrar, os dados de um levantamento conduzido em
do psicólogo. E indagava: os demais 85% não necessitam desse serviço? 2001 pelo Conselho Federal de Psicologia.
A busca por uma resposta, naquele momento, à questão que formula- O quadro resultante evidencia duas tendências: de uma p arte, a ma-
mos - a quem a regulamentação protege e com quem a Psicologia se com- nutenção da hegemonia da atividade clínica com relação às demais, confir-
promete - m ostraria um quadro bastante melancólico, a julgar pelas inú- mando o perfil anteriormente mencionado; de outra, uma ampliação das
meras análises e denúncias sobre os rumos da profissão não faltaram4 (as- oportunidades profissionais, propiciada pela abertura de novos espaços de
sim como ten tativas de proposição de construção de alternativas, é impor- inserção profissional. É nesse particular que se obser va a presença do psicó-
tante assinalar). logo nos campos do bem-estar social de cunho preventivo e compensatório.

A questão é que, a despeito das denúncias e avaliações acerca dos ru- Não é nossa intenção discutir em detalhes os dados sobre a configura-
mos da Psicologia, somente na confluência de determinadas condições his- li'l ção profissional da Psicologia; os elementos até aqui levantados são sufi-
tóricas - nomeadamente, o período final do regime autocrático-burguês, ,,..t cientes para estabelecer os pontos para a discussão.
no qual h á uma rearticulação maciça do movimento popular, e o início de
5. Para análises sobre esse momento, ver, novamente, Alves (1989). Para uma d iscussão do
j;
3. Para aná lises históricas sobre a Psicologia no Brasil, com angulações diversas de análise,
ver Antunes (1999), Massimi (1990), Pessotti (1988) e Mello (1975).
·~
"1
papel dos intelectuais na transição democrática, ver Pécaut (1990).
6. Nesse particular, tem grande peso a ação do Conselho Federal de Psicologia, responsável
4. Para alguns ou tros exemplos, ver Bock (1999), Figueiredo (1989), Lane (1981) e Yamamoto
(1 986).
1
:i a
pela condução d e diversos estudos sobre a p rofissão (CFP, 1988; 1992; 1994).
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ANAM. O. OOCK p$iCOLOGIAE COMPROMISSO SOCIAL

erária no processo de constituição da sociedade capitalista (Cerqueira


'l \1bcla 'l - Q uadro comparativo da situação dos psicólogos
brn~i lc i ros em 1988 e 2001 com rei
~fiho, 1982). É, pois,~ .expressão do "processo d: forma:ão e desenvolvi·
ento da classe operaria e de seu ingresso no cenano pohhco da sociedade
Ál'l•,1 l'lll que al'ua como psicólogo 1988* 2001 f,.). É a nianifestação no cotidiano da vida social, da contradição entre o
Clínica 55,3 54,9 roletariado e a burguesia" (Iamamoto & Carvalho, 1983: 77).
Hscolar 11,3 9,2
p Na passagem para o monopo1ismo, · que conduz ao ap1ce
, . a contradi-

Organizacional/Trabalho 19,2 12,4 ção entre a socialização da prod~ção e ª. apr~priação privada através do
'~ontrole dos mercados, o Estado e refunc1onahzado e red1mens10nado, as-
Docência 6,6 2,2
e sumindo a responsabilidade por um conjunto de mecanismos extra-econô-
Pesquisa 1,3 0,6
n:ücos que se articulam com o processo produtivo. Dentre tais funções, uma
Social/Comunitária 2,8 1,7 que adquire primordial importância diz respeito à "preservação e ao con-
Saúde** - 12,6 Úole da força de trabalho, ocupada e excedente" (Netto, 1992: 22).
Trânsito** - 3,9 A articulação das funções econômicas e extra-econômicas (ou especi-
Jurídica** - 2,5 ficamente políticas) assumidas pelo Estado demanda, por um lado, a legiti-
mação política pelo alargamento da sua base de sustentação, através da
Esporte** - 0,1
institucionalização de direitos e garantias sociais. Tal legitimação, p ela u ti-
Outros 3,0 - ' lização dos instrumentos da democracia política, mobiliza uma dinâmica
prego prmc1pal c:ontraditória, tornando o Estado permeável a demandas das classes subal-
A pesquisa de 1988 não trabalhou com essas áreas, por não aparecerem ou por estarem agrupadas na catego-
11
ria Üutros".
ternas.
Nessas condições, as conseqüências da questão social tornam-se obje-
to de intervenção sistemática e contínua por parte do Estado, mas através
Portanto, se de uma parte a inserção do psicólogo no campo das polí-
de um processo peculiar: sem a possibilidade da remissão à totalidade pro-
ti cas sociais se desenha de forma nítida, garantindo à Psicologia uma con-
cessual específica (conforme nossa definição), ela é tratada de forma frag-
siderável extensão da cobertura da atenção psicológica a camadas amplas
da população, de outra, uma questão permanece: essa extensão do campo mentária e parcializada.
de atuação, para além do elastecimento do mercado de trabalho, represen- Política social transmuta-se em políticas sociais (no plural): as expressões
ta um maior comprometimento com camadas mais amplas da população? da questão social são tratadas de forma particular - e assim, enfrentadas.
É, portanto, na forma de políticas setorizadas que as p rioridades no
campo social são definidas. E política, é sempre conveniente lembrar, é
Questão social e políticas públicas conflito, que nas formações sociais capitalistas traduz-se na oposição en-
tre os interesses da acumulação e as necessidades dos cidadãos. As políti-
Antes de discutir a articulação dos temas centrais desta minha inter- cas sociais, como parte do processo estatal da alocação e distribuição de
venção - o compromisso do psicólogo remetido à inserção do psicólogo valores, encontram-se no centro desse confronto de interesses de classes
no campo das políticas sociais - , necessito qualificar o debate partindo da
(Abranches, 1985).
consideração de um elemento pouco usual no tratamento das políticas so- O suposto de que as políticas sociais nos remetem sempre e no limite
ciais, ou seja, a sua remissão à chamada questão social, como parâmetro e ao antagonismo irreconciliável de classes não nos impede, todavia, d e
limite para a ação e o compromisso do psicólogo. pensar em diferentes pontos de equilíbrio entre a acumulação e a privação
De uma maneira muito ampla, questão social significaria o conjunto de social (Abranches, 1985). Tais pontos são dependentes de particulares cor-
problemas p olíticos, sociais e econômicos postos pela emergência da classe
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ANA M. B. BOCI( 46
l!OGIÁ ECOMPROMISSO SOCIAL

relações de forças presentes no cenário político em cada conjuntura histó-


rica específica. áção sobre os altos rendimentos, da abolição de controles sobre os fluxos
"'anceiros, da criação de níveis maciços de desemprego, do controle e re-
Desse ponto de equilíbrio, nas nações afluentes, dependerá o grau de
' s·.s ão do movimento sindical, do corte dos gastos sociais pela desmonta-
,re
proteção social e de garantia dos padrões mínimos de vida, na forma de
;,.em dos serviços públicos, além de um amplo programa de privatizações.
políticas universalistas, basicamente, de natureza preventiva. Nos demais
,:s suas premissas fundamentais são o estabelecimento do mercado como
países em que, com grau e amplitude diferenciados, a destituição decor-
tância mediadora fundamental e a idéia de um Estado mínimo (nos
rente do próprio processo de acumulação capitalista é a regra, do ponto de
õldes assinalados anteriormente) como a única alternativa para a demo-
equilíbrio conseguido resultarão não apenas as ações de caráter universa-
er:acia (Netto, 1993).
listas, mas aquelas de combate às situações de extrema pobreza, através de
políticas de caráter compensatório e redistributivo. ... O aspecto que nos toca de perto, evidentemente, diz respeito ao trata-
mento dispensado para a questão social. Mesmo nesse aspecto, pode-se dizer
Intervir como profissão no terreno do bem-estar social, portanto, reme- que o neoliberalismo não logrou alcançar, de forma generalizada, a des-
te a Psicologia para a ação nas seqüelas da questão social, transformadas em montagem do sistema de proteção social-o que é verdade, sobretudo, em
políticas estatais e tratadas de forma fragmentária e parcializada, com prio- 1
algumas nações escandinavas, com forte tradição social-democrata.
ridades definidas ao sabor das conjunturas históricas particulares. Isto con- Se a desmontagem do sistema de proteção social não pode ser consi-
ferirá tanto a relevância quanto os limites possíveis da intervenção do psi- derada um sucesso em diversas nações afluentes 7, em nações como as lati-
cólogo.
no-americanas, que se notabilizam pela debilidade na cobertura e pelos
Dessa forma, na análise de tais limites, entram em jogo ao menos três 'reduzidos graus de eficácia, sob a égide de políticas de cunho meritocráti-
vetores: as formas peculiares de organização político-econômica que reba- co~particularistas8, tende a acentuar as desigualdades e aprofundar o qua-
tem no tratamento das questões sociais; a organização e a capacidade de dro de miséria social.
resistência das classes subalternas; e a situação específica das profissões do Tomemos como exemplo o caso brasileiro. Apesar de melhora em ín-
setor bem-estar, no nosso caso, do psicólogo: organização profissional e dices específicos (aumento da expectativa de vida, dos níveis de escolariza-
compromisso social, hegemonia de tal ou qual modelo (teórico-técnico) de ção, diminuição da mortalidade infantil entre outros)9, o tratamento dado à
intervenção e condições/ características da formação acadêmica. questão _social foi absolutamente insuficiente para tirar o Brasil da posição
O primeiro desses pontos, as formas de organização político-econô- que ocupa nos indicadores do Programa das Nações Unidas para o Desen-
mica que definem as chamadas políticas sociais, merece uma consideração volvimento (PNUD), de "médio desenvolvimento humano" 1º. Pelo contrá-
especial. rio, a situação de desigualdade social, com um quadro de degradação geral
das condições de vida, é alarmante: em 1990, aproximadamente 40 milhões
de brasileiros (de uma população estimada em 147 milhões) estavam na ou
Ajuste neoliberal e desajuste social
7. Para análises sobre a questão, ver, dentre outros, a análise de Anderson (1995).
A crise do modelo econômico, experimentada no segundo quartel da 8. A denominação é de Titmuss/ Áscoli, também chamado de modelo "conservador-corpo-
década de 1970, traduzida por uma profunda recessão, baixas taxas de cres- rativista" por Esping-Andersen. Para a discussão da situação do Brasil, ver Cabral Neto (1993),
cimento econômico e explosão das taxas de inflação, dá início a um proces- Draibe (1993) e Soares (2001).
so que culminaria com a hegemonia, no âmbito planetário, do ideário e 9. Para dados sobre a situação social no Brasil nos anos que se seguem à transição democrá-
agenda neoliberais. tica, ver, dentre outros, Abranches (1985) e Soares (2001).
10. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil, em 2000, era de 0,757 - o que
Tomada em suas linhas mais gerais, a agenda consistiria da contração coloca o país em 73º lugar dentre 173 nações avaliadas (UNDP, 2003).
da emissão monetária, da elevação das taxas de juros, da diminuição da O faz passar da incômoda situação de país de "baixo desenvolvimento humano" em 1970
(IDH de 0,494) para o de "médio".
, 46

l l abaixo da linha da pobreza; 32 milhões em situação de indigência. Interna-


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mente, regiões mais pobres como o Nordeste brasileiro contavam com mais ·:,, '· nta uma elevação nos gastos do setor, é também aquele que tem os
1 rese . .
de 40% da populaç~o em situação de indigência (Soares, 2001) 11 • . · :.-.di'ces
iores ..... , tanto em termos absolutos (medidos em US$ per capita), quan-
,,. ·:-relativos (percentual do PIB).
t@
Nesse quadro é que se faz sentir o impacto dos cortes dos gastos pú-
blicos no setor social (Tabela 2). · · Analisando os gastos setoriais, o Brasil investe cinco vezes menos que
":géntina e três v~zes menos que o ~éxico no setor educacional. ~uanto
'êtor saúde, considerando-se o Brasil como uma das poucas naçoes que
Tabela 2 - Quadro comparativo do gasto público ·eu impor, mesmo com todas as dificuldades já amplamente analisadas,
social total e setorial de três países lat'-- - -·- sistema único e descentralizado nos moldes preconizados pela Organi-
.Ía'ÇãO Mundial de Saúde/Organização Pan-americana de Saúde (OMS/
Total Educação Saúde fÕpAS), investe quatro vezes menos que a Argentina e metade do que gasta
Argentina
Total % PIB (1980 / 1)
; 'México.
"-'!';;
16,2
Total % PIB (1990 /3)
3,3 4,0 Para além do aspecto regressivo do gasto público no setor social, a
15,5 3,4
US$ per capita (1980/1) 4,4 aesestruturação neoliberal dos serviços sociais se processa através de três
569,9
US$ per capita (1990/3)
113,5 154,0 '~ecanismos: a descentralização dos serviços (que implica transferência de
516,5 104,1 133,8 iesponsabilidade aos níveis locais do governo a oferta de serviços deterio-
Brasil
. rados e sem financiamento); a privatização total ou parcial dos serviços (pro-
Total % PIB (1980/1) movendo uma dualidade, com oferta de serviços de qualidade diferencia-
9,3 0,9
Total % PIB (1990/3) 1,8
11,8 1,9 da conforme a capacidade de pagamento do usuário) e a focalização (intro-
US$ per capita (1980/ 1) 2,4
159,6 16,7 duzindo um corte de natureza discriminatória para o acesso aos serviços
US$ per capita (1990/ 3) 29,9 II
177,3 20,l sociais básicos pela necessidade de comprovação da condição de pobre-
38,0
México ·~a11) (Soares, 2001).
Total% PIB (1980/1) Portanto, a análise da condição social no Brasil - de resto, equivalen-
8,0 3,1
Total% PIB (1990/3) 3,5
6,5 . te aos demais países latino-americanos - requer a consideração de dois
2,7 3,2
US$ per capita (1980 / 1) .vetores: de uma parte, a situação de miséria social que tipifica uma imensa
224,8 87,6
US$ per capita (1990/3) 94,0
167,4 parcela da população; de outra, o progressivo descompromisso do Estado
67,2 80,1
235).
com o financiamento da proteção social, associada à refuncionalização dos
mecanismos de atendimento no setor.
Considerado esse quadro - e tendo por suposto que políticas sociais
são expressões da questão social cujo equacionamento nos remeteria à con-
Os dados mostram que o financiamento do gasto social no conjunto II
tradição principal do modo de produção capitalista, ou seja, que a maxi-
das nações latino-americanas não se altera de forma significativa, mas a
mização da eqüidade é incompatível com a maximização do processo
tendência é regressiva. O Brasil, que dos países apresentados é o único que
acumulativo" (Santos, 1989: 40) - é que se pode aquilatar o significado
preciso da afirmação de que as definições desse setor seriam metapolíticas,
entendendo políticas sociais como ordenamento de escolhas trágicas 12 •
11. Os dados originais provêm de fontes oficiais: da Pesquisa Nacional por Amostra de Domi-
cílios (PNDA), da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). "Pobreza" equi-
valia, em 1990, a uma renda familiar per capita de US$ 34,4 mensais; "Indigência" aqui é tomada
como a condição de uma pessoa cuja renda familiar corresponde, no máximo, ao valor que permite 12. Segundo o autor, tomando como base o pensamento de Douglas Rae, "qualquer princí-
a aquisição de uma cesta básica, conforme os padrões nutricionais da FAO/ OMS/ ONU. pio de justiça, simples ou complexo, produz resultados contrários ao que se deseja quando apli-
cado da mesma forma em qualquer circunstância" (Santos, 1989: 39).
1111
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A Psicologia, políticas sociais e compromisso social


mais profissionais do campo, no desenvolvimento de estratégias de inter-
venção da "vigilância da saúde", que resultam da combinação de promo-
Retomemos, agora, aos nossos ternas de origem: a regulamentação da
ção da saúde, de prevenção das enfermidades e dos acidentes, e da atenção
profissão (com a proteção ao público como premissa); o compromisso da
curativa (Mendes, 1996), e nos Núcleos e nos Centros de Atenção Psicosso-
Psicologia e o campo das políticas sociais (as conseqüências da questão so-
cial (NAPS/CÀPS), modelo alternativo (conduzido por equipes rnultipro-
cial transformadas em alvo das políticas particularizadas por parte do Es-
fissionais) para o tratamento manicomial.
tado), no contexto da reforma neoliberal do Estado em urna nação como o
Brasil, como espaço de atuação comprometida do psicólogo. A prática dos profissionais nos diversos equipamentos de saúde, con-
tudo, tem se mostrado bastante problemática. Silva (1988 e 1992) afirma
As transformações em processo na Psicologia brasileira, decorrentes que o modelo tradicional de psicoterapia tem impedido o psicólogo de de-
do conjunto de vetores específicos em jogo assinalados, empurrando o psi- senvolver ações de atenção primária à saúde (embora outros autores, corno
cólogo para as classes subalternas (conforme antecipava Campos, 1983), Campos (1988), lembrem que a psicoterapia, embora não seja a única, não
permitem-nos mudar, ao menos provisoriamente, a resposta à questão do deixa de ser uma atividade de atenção primária à saúde, coerente com as
compromisso do psicólogo com relação ao quadro dos primeiros vinte anos. distinções entre ações de cunho preventivo e compensatório).
De fato, o elitismo da prática denunciada pelos estudiosos naqueles anos
A questão em jogo, sem embargo, não nos parece simplesmente a pos-
ainda é a tendência hegemônica da Psicologia, mas é possível afirmar que
sibilidade ou não da transposição de recursos técnicos tradicionais da Psi-
existe um movimento bastante consistente do psicólogo para a atenção a cologia, em especial, o instrumental clínico desenvolvido para contextos
parcelas mais amplas da população brasileira.
socioculturais bastante diversos nos serviços públicos de saúde, mas a
A questão não parece residir em com quem a Psicologia, nesse movi- viabilização de uma prática que possa se articular, de forma qualificada,
mento, vem se comprometendo, mas na forma desse compromisso. nas chamadas "políticas de vigilância da saúde", antes aludidas.
Para discutir essa questão, tomemos o caso do setor da saúde, aquele Estudos que conduzimos no estado do Rio Grande do Norte, para to-
no qual a Psicologia tem logrado uma inserção mais significativa. Os deter- mar um exemplo, têm demonstrado que estamos longe dessa meta. Ao con-
minantes históricos dessa inserção - a reorganização profissional no con- trário, a intervenção do psicólogo tem, virtualmente, se resumido à repro-
texto da luta antiditatorial dos anos 80, politizando os debates antes de dução _d o modelo clínico tradicional, em boa parte dos casos, informado
cunho mais corporativo (Bock, 1999; Pécaut, 1990; Yamamoto, 1996), as con- pelas diversas vertentes psicanalíticas, sem nenhuma problematização acer-
ferências nacionais de saúde, os embates no nível congressual na Assem- ca da adequação desses modelos teórico-técnicos para as exigências do ser-
bléia Nacional Constituinte, enfim, a incorporação, no texto constitucional
de 1988, da idéia de saúde como responsabilidade do Estado e direito de .1
, viço público de saúde, ou de desenvolvimento de ações integradas em equi-
pes multiprofissionais 15 •
todos e a previsão da organização de um sistema integrado de saúde - são A questão mais preocupante é que, se em anos passados a tentativa
temas já amplamente debatidos na literatura 13• (nem sempre eficiente) de focalização das atenções dos psicólogos para as
Concretamente, os psicólogos ingressam no campo da saúde através classes subalternas, no contexto da rearticulação do movimento popular
14
de duas formas : nas Unidades Básicas de Saúde, articulado com os de- (de corte antiditatorial), era fortemente motivada por um reconhecimento
da importância do comprometimento social da ação profissional, hoje, o
quadro nos parece radicalmente diverso. A ação profissional dos psicólo-
13. Existe uma farta produção acerca da questão. Apenas como referência, citamos Guima-
rães & Tavares (1994), Teixeira (1995) e Mendes (1996).
14. Há um terceiro eixo de inserção que se refere ao hospital geral, que não está sendo objeto
15. É conveniente assinalar que, embora essa tendência seja dominante, a busca por alterna-
de análise aqui, em virtude das especificidades dessa instituição e da forma pela qual os psicólo-
tivas mais consistentes não está totalmente descartada do horizonte dos psicólogos. Diversos
gos têm desenvolvido suas ações. Para discussões sobre essa questão, ver Yamamoto e Cunha
(1998) e Yamamoto, Trindade e Oliveira (2002). estudos têm demonstrado essa preocupação, como os de Boarini (1996), Dimenstein (1998), Lo
Bianco et ai. (1994), Silva (1988 e 1992) e Spink (1992), apenas para citar alguns.
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50 ANA M. B. BOCK

Jtças da qual resultam eventuais avanços no campo das políticas so-


gos que atuam no campo da saúde (ao menos considerados os exemplos
que temos em mãos, o que não representa, necessariamente, a ausência de
}1 quanto pelo desenvolvimento, no campo acadêmico, de outras pos-
·.aades teórico-técnicas, inspiradas em vertentes teórico-metodológicas
outras formas de inserção) nos indica uma extensão da prática convencio-
rgentes das que têm se constituído na Weltanschauung (hegemônica)
nal (calcada no modelo médico) com uma escassa ou nenhuma problemati-
zação dessa forma de intervenção, reforçando um dos aspectos mais dra- sicologia.
máticos da prática dos profissionais que atuam no setor social público: 0
acesso desqualificado por parte de parcelas cada vez maiores da população
aos serviços básicos no setor social.
Se tiver pertinência essa linha de raciocínio, é urgente que todos que CHES, S. H. Os despossuídos: crescimento e pobreza no país do milagre 2. ed. Rio
estão envolvidos com a produção de conhecimento e com as agências res- de Janeiro, Jorge Zahar, 1985.
ponsáveis pela formação dos profissionais, sem a desconsideração das ca- • NES, M. H. M. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). 5. ed. Petrópolis, Vozes,
racterísticas do mercado de trabalho e das condições por ele impostas, dis- 1989.
cutam a construção de alternativas conseqüentes do ponto de vista da aten- DERSON, P. Balanço do neoliberalismo. ln SADER, E.; GENTIL!, P. (Ed). Pós-
ção às demandas das classes subalternas partindo de outras modalidades de neoliberalismo. São Paulo, Paz e Terra, 1995. p.9-23.
leitura do real e de abordagem do fenômeno psicológico 16 . TUNES, M. A. M. A Psicologia no Brasil: leitura histórica sobre sua constituição. São
É importante lembrar que nosso objeto, aquí, são as ações desenvolvi- Paulo, Unimarco/EDUC, 1999.
das pelos psicólogos no campo das políticas sociais públicas tradicionalmen- ·'BOARINI, M. L. A formação (necessária) do psicólogo para atuar na Saúde Pública.
te definidas. Embora a relevância da inserção nesse terreno seja indiscutí- . Psicologia em Estudo, Maringá, v. 1, n. 1, p . 93-132, 1996.
vel, o quadro da exclusão social que é a tônica das nações latino-america- ·BOCK, A. M. B. Aventuras do Barão de Münchhausen na Psicologia. São Paulo, Cortez,
nas coloca erri. questão a possibilidade e a necessidade de ação de profissio- 1999 .
nais do setor bem-estar, no nosso caso, do psicólogo, em outros contextos, ._________; GONÇALVES, M. G. M.; FURTADO, O. (Ed.). Psicologia sócio-histórica: uma
não necessariamente públicos, não necessariamente vinculados às políticas perspectiva crítica em Psicologia. São Paulo, Cortez, 2001.
sociais clássicas, mas atinentes à questão social capitalista, como são os ca- BOTOMÉ, S. P. A quem, nós, psicólogos, servimos de fato? Psicologia, São Paulo, v.
sos de assentamentos decorrentes dos movimentos sociais no campo, as 5, n. l, p. 1-16, 1979.
questões vinculadas à violência nas cidades, a exploração sempre presente CABRAL NETO, A. Notas sobre o Estado do Bem-Estar Social. Educação em Questão,
do trabalho infanto-juvenil, entre tantos outros tópicos. As possibilidades, Natal, v. 5, n. 2, p. 19-51, 1993.
pesando as condições, limites e questões postas para o exercício profissio- CAMPOS, F. O psicólogo, o usuário e a saúde mental na instituição pública. Dissertação
nal do psicólogo, estão abertas. (Mestrado)- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1988.
Finalmente, gostaríamos de propor que, considerando os limites da CAMPOS, R. H. F. A função social do psicólogo. Educação & Sociedade, Campinas, v.
atuação profissional do psicólogo - e eles estão dados por sua posição na 5, n. 16, p. 74-84, 1983.
divisão social do trabalho e pelas possibilidades de ação nas seqüelas da CERQUEIRA FILHO, G. A "questão social" no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Bra-
questão social capitalista -, o desafio posto para a categoria é ampliar os sileira, 1982.
limites da dimensão política de sua ação profissional, tanto pelo alinhamento CHAUI, M. S. Ideologia e Educação. Educação & Sociedade, Campinas, v. 2, n. 5, p.
com os setores progressistas da sociedade civil, fundamental na correlação 24-40, 1980.

17. Tarefa que vem sendo realizada de forma bastante competente e responsável pelas últi-
16. Sem entrar no mérito das proposições, uma das tentativas nessa direção é explorada por
mas gestões do Conselho Federal de Psicologia e pelo Sistema Conselhos.
Bock, Gonçalves e Furtado (2001).

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