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“A Beleza salvará o mundo”

J. Alves Pires, S.J.

2009

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Covilhã, 2009

F ICHA T ÉCNICA
Título: “A Beleza salvará o mundo”
Autor: J. Alves Pires, S.J.
Colecção: Artigos L USO S OFIA
Design da Capa: António Rodrigues Tomé
Composição & Paginação: Filomena S. Matos
Universidade da Beira Interior
Covilhã, 2009

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“A Beleza salvará o mundo”


J. Alves Pires, S.J.

Índice

Da evolução do conceito de beleza 5


Sobre a urgente necessidade da inútil beleza 10
Um grande criador e proclamador da beleza salvadora 11
Um excelente leitor do artista Soljenitsine 17
Da arte como artifício ao serviço da beleza 18
A beleza como “esplendor da verdade” 20
Breve leitura da “Carta aos artistas” 26
À maneira de conclusão 32
Bibliografia 34

Em conversa de corredores, ainda não há longos dias, veio a conto


rememorar acontecimentos, esses sim de tempos longínquos e que
dá sempre gosto tentar reviver. Éramos estudantes de Filosofia
Escolástica, de rigores e exigências pouco dados a contemporizar
com os direitos da imaginação e da intuição – que os têm, e tão
humanos ou mais do que os da humana razão.
Mas claro está, moços buliçosos, aprendizes ainda principian-
tes da maiêutica socrática, nada nos tolhia de explorar novos mun-
dos e modos de pensamento. E fazíamo-lo com denodo e “cristãos
atrevimentos”, como diria o Poeta.
E só por associar ideias, recordo-me do alvoroço com que uma
tarde me entra pelo quarto o vizinho do lado exibindo, glorioso, o

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manuscrito de cerca de uma dúzia de páginas A4, acabadinho de


redigir. Que o lesse atentamente, e opinasse.
Era todo um poema, escrito de um fôlego, sem descansos, de
estrofação livre e amplos ritmos, muito à medida dos intuitos e dos
alentos metafísicos inspirativos do poeta. Aqui e ali parecia-me
ouvir o resfolegar do nietzscheano Zaratustra. Mas, tudo muito ao
divino e cristão, já se deixa ver.
Pois foi lá por esses idos que no acaso da discreteação especu-
lativa entre dois desses briosos e fogosos aprendizes de filósofos
em determinado passo diz um deles:
“Toda a intuição é verdadeira.”
De imediato lhe responde o outro, num repente deflagrado e
rimado:
“Pois tenho cá a intuição de que estás a dizer uma grande as-
neira.”
Não recordo que vias tomou o prosseguir do diálogo nem qual
a sequência das argumentações. Pouco importa.
Valeria a pena, isso com certeza, reflectir um nadinha sobre a
questão em si mesma.
Porque a verdade é esta: intuitivamente percebemos que por ali
anda assomada uma qualquer realidade humana, difícil de cingir
mas existente. Ora perguntemo-nos: e se se desse o caso de am-
bos terem razão? Sem o pretenderem, é claro, ao menos de forma
reflexa.
Bem sei que ao admitirmos tal coisa estamos a enveredar pelos
domínios do paradoxo. Mas, e se os campos do paradoxo forem os
mais férteis em verdades permanentes? Os mais abertos à perscru-
tação e descoberta das zonas fecundas e fecundantes do subconsci-
ente individual e colectivo, donde brotam em toda as sua grandeza
humana os veros conteúdos do símbolo e da metáfora?
Mas o melhor é deixarmos estas questões e respectiva dilucida-
ção aos cuidados de um Carl Jung, de um Gaston Bachelard, de um
Gilbert Durand, de um Charles Mauron; de um Serge Doubrovsky

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“A Beleza salvará o mundo” 5

e seus comparsas da psicocrítica, e bem assim dos demais estudi-


osos do fenómeno artístico-literário. São muito bem apetrechados
no respeitante às técnicas de análise, e pelo geral sabem lastrar e
enquadrar a utilização das técnicas a partir de uma noção bastante
complexiva da humana realidade.
E entretanto fiquemo-nos com uma certeza, esta sim de há mui-
to averiguada: é que entre o conhecimento meramente racional ou
por conceitos claros e distintos, e o conhecimento poético-intuitivo
medeia uma distância tão inumerável como um abismo cósmico.
E provavelmente era o que aqueles dois jovens aprendizes de
Aristóteles e de Platão estavam a querer sugerir nesse diálogo de
circunstância, e numa linguagem assim desvigiada, a arrumar, sem
outros matizes, de um lado o Quixote e do outro o Sancho Pança.

Da evolução do conceito de beleza


Da evolução do conceito de beleza

Mas, noto agora que esta entrada se alongou bastante além do


conveniente, pois não queria ser mais do que brevíssima introdução
a uns comentos que aqui me proponho, acerca da bem conhecida
expressão dostoievskiana acima transcrita a modos de título.
“A beleza salvará o mundo”. Este dito de um dos personagens
mais dostoievskianos de todos os criados pelo grande ficcionista
russo – para muitos, e com boas razões à vista, o maior romancista
de todos os tempos – este dito foi exercendo grande fascínio sobre
muita boa gente, e de quadrantes diversos. Aqui evocarei depois
com alguma detença os casos de Soljenitsine, no Discurso que de-
veria proferir (mas não pôde proferir) perante a Academia sueca,
em 1970, aquando do recebimento do Nobel da Literatura, e de
João Paulo II, na “Carta aos Artistas”, na Páscoa de 1999.

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Aos porventura deslembrados recordo que esta “intuição” apa-


rece no romance O Idiota e é proferida pelo príncipe Mychkine,
personagem central, mais precisamente, o “idiota” adentro da nar-
rativa romanesca.
Ainda que apenas em seu contexto mínimo, interessa relermos
o dito do príncipe, inserido no texto do romance. Transcrevo da
tradução de Maria Franco, certamente a mais bem conseguida em
português.
Estamos no cap. V da 3a Parte :

Hippolytos, que adormecera durante a peroração


de Lebedev, acordou de súbito, como se alguém o hou-
vesse aguilhoado. Estremeceu, soergueu-se e, muito
pálido, lançou olhares desvairados à direita e à es-
querda. Quando se recordou, o rosto exprimiu uma
espécie de terror.
– Que fazem? Vão-se embora? Acabou-se? O Sol
já se levantou? – inquiriu com ansiedade, agarrando a
mão do príncipe. – Que horas são? Por favor, diga-me
as horas. Dormi! Foi por muito tempo? – acrescentou
desesperado, como se perdesse qualquer coisa de que
dependia a sua sorte.
– Dormiu ao todo sete ou oito minutos – respondeu
Euguine Pavlovich.
Terentiev deitou-lhe um olhar ávido e pareceu não
compreender.
– Ah, só isso... Então, eu...
Exalou um suspiro prolongado, como quem se de-
sembaraça de um fardo. Percebera que “não acabara
nada”, que o dia ainda não surgira, que se tinham le-
vantado da mesa para a ocupar novamente e que só
terminara a tagarelice de Lebedev. Sorriu. Nas faces
de tísico apareceram-lhe duas rosetas.

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– Ah, contou os minutos enquanto eu dormia, Eu-


guine Pavlovich – replicou irónico o doente. – Não
despegou de mim a vista durante toda a noite, bem vi!
Olha, Rogojine... – Fez-lhe um sinal e disse ao ouvido
do príncipe : – Acabo de sonhar com ele. Ah – tornou
a interromper-se –, onde está o orador, o Lebedev? Já
teria acabado? De que é que falou? É verdade, prín-
cipe, haver dito um dia que o mundo será salvo pela
beleza? Meus senhores, o príncipe pretende que será a
beleza a salvadora do mundo! Eu para mim tenho que
a ele ocorrem pensamentos joviais por estar apaixo-
nado. Meus senhores, está apaixonado! Percebi isso
logo que entrou. Não core, príncipe. Senão, lastimá-
lo-ia. Qual é essa beleza que há-de salvar o mundo?
Foi Kolia quem me disse... É cristão praticante? Kolia
alega que o senhor se intitula cristão...
Mychkine observou-o atentamente, mas esqueceu-
se de lhe responder.1
Não pretendendo, ao menos por agora, fazer qualquer comentá-
rio ao texto, permito-me contudo sublinhar o facto de o dito/intui-
ção do príncipe Mychkine lhe surgir em clima psíquico de paixão.
Este dado, se o tivermos presente, projectará luz mais radiosa so-
bre algumas situações de claroescuro que ao diante com certeza
nos vão aparecer.
Entretanto, com Hippolytos, bem andaremos se deixarmos e-
coar dentro de nós a magna questão: “Qual é essa beleza que há-de
salvar o mundo?”
É absolutamente indispensável, na verdade, e antes de prosse-
guir, cuidarmos de assentar em algum conceito de beleza. Não
estou a dizer que nos vamos pôr aqui a assistir à evolução do con-
ceito de beleza, dos diversos sentidos e conteúdos que o conceito
1
Fiodor Dostoievski, O idiota. Trad. Maria Franco. Estúdios Cor, Lisboa,
1969. Vol. II, pp. 113-114.

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foi incorporando e desincorporando a partir de Homero, de Platão


e Aristóteles até aos nossos dias. Longo e curioso e aliciante per-
curso, não há dúvida; mas está feito e bem feito, por estudiosos de
critério afinado e tão bem apetrechados como um David Estrada
Herrero de Estética (Editorial Herder, Barcelona, 1988), ou um
Raymond Bayer de Histoire de l’Esthetique (Armand Colin, Paris,
1961).
Encontrar uma definição essencial de beleza que possa conten-
tar o comum dos humanos é tarefa quase tão íngreme como achar
um melro branco. Para tal concluirmos bastaria folhear com um
mínimo de atenção Tratados como os referidos, sobretudo o de Da-
vid Estrada Herrero, certamente mais circunstanciado e discernido
no apresentar das várias fases da evolução doutrinal dos conceitos.
Assim sendo, o melhor que temos a fazer, julgo, é tentar uma
rapidíssima aproximação a um conceito de beleza, não tanto pelo
lado essencial como pelo descritivo, e que possa de algum modo
ir ao encontro da realidade integral e das humanas sensibilidades
mais exigentes. Tarefa de enfesto, repita-se, mas, “não faltem cris-
tãos atrevimentos”.
Como nota muito pertinentemente David Herrero, perante a
pródiga abundância de definições de beleza dos Tratados de esté-
tica, a tentação maior é a de assumirmos uma atitude de cepticismo,
a desembocar em conclusões relativistas e/ou subjectivistas. Mas,
como bem adverte o mesmo estudioso, a reflexão serena e equâ-
nime facilmente nos levará a um estado de espírito mais construtivo
e realista.
Na realidade, e agora falamos por conta própria, o que é im-
portante e decisivo, neste como em tantos outros casos, é nunca
perdermos de vista a humana natura, em sua realidade integral.
Se tomarmos o fio da evolução do conceito lá desde as origens,
desde Platão e Aristóteles, depois como que refinado pelos neopla-
tónicos com Plotino em primeiríssimo plano, é-nos fácil concluir
que por diversificadas que sejam as definições de beleza, toda elas

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incorporam em maior ou menor grau certos elementos comuns : a


harmonia de proporções, a ordem e simetria, a unidade na varie-
dade...
Com o andar dos anos, a reflexão filosófica foi sentindo a ne-
cessidade de explicar, sobre tal base, a origem e o sentido não ape-
nas dos cosmos mas de toda a humana realidade. Neste ponto,
construindo sobre a herança grega e latina, mas muito principal-
mente embebidos de perfeita mundividência de inspiração cristã,
irão desempenhar papel de relevo único S. Agostinho e o Pseudo-
Dionísio.
No que respeita ao pensamento medieval e escolástico, aí te-
mos S. Tomás, também neste campo, não apenas a fazer a síntese e
a dar coerência aos diversos aspectos da doutrinação anterior, mas
a abrir caminhos novos, ou pelo menos mais decididos à estética
do belo. Totalmente na linha do pensar dos estetas gregos que se
sentiram na obrigação de cunhar um conceito abrangente da bon-
dade e da beleza – kalón kai agathón = kalokagathón – também S.
Tomás, sem incluir de forma directa, como o fizera S. Boaventura,
o “pulchrum” nos transcendentais (i. é, o ser, para S. Boaventura.
é unum, verum, bonum et pulchrum), o faz de maneira indirecta ao
considerar que na realidade concreta, in re, o bonum e o pulchrum
se identificam.
Fiquemo-nos pois com esta certeza, sem mais esmiuçar por
agora: no ser em concreto, ou se quisermos, e melhor para o nosso
tema, na obra de arte concretamente realizada, a bondade e a beleza
identificam-se. Recorrendo à linguagem dos filósofos escolásticos:
bonum et pulchrum convertuntur. E o que se diz do bonum e do
pulchrum diz-se por igual do unum e do verum.

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Sobre a urgente necessidade da inútil beleza

Os poetas, em geral, preferem fazer identificação entre beleza e


verdade, beleza e alegria, beleza e mistério: “A thing of beauty is a
joy for ever – um pedacinho de beleza é uma alegria para sempe”
(Keats); ou ainda o mesmo poeta, na bem conhecida “Ode a uma
urna grega”: “Beauty is truth, truth is beauty – that is all / Ye know
on earth, and all ye need to know – A beleza é verdade, a verdade
beleza – isso é tudo o que / Sabemos sobre a terra, e tudo o que
precisamos saber.”
E ainda esta, inglesa igualmente oitocentista, Emily Dickin-
son, no poema “Beleza e verdade”, muito bem trasladado para o
português pelo grande Manuel Bandeira: “Morri pela beleza, mas
apenas estava / Acomodada em meu túmulo, / Alguém que morrera
pela verdade / Era depositado no carneiro contíguo. / Perguntou-
me baixinho o que me matara: / – A beleza, respondi. / – A mim,
a verdade, – é a mesma coisa, / Somos irmãos.”
A exemplificação sobre o pensar e sentir dos poetas sobre a be-
leza muito longe nos levaria, e por caminhos tentadoramente belos,
sem dúvida; mas exemplificação é isso mesmo, e urge terminar.
Para tal, nada como recorrer a um poeta nosso, e bem nosso: Mi-
guel Torga. No voluminho Odes (1946), após ter dedicado sendas
“odes” “À poesia”, “À terra”, “Ao mar”, “Ao vento”, “À música”...,
dedica também uma “ode” “À beleza”. Vamos lê-la na íntegra, sa-
boreadamente, que o merece:

“Não tens corpo, nem pátria, nem família, / Nem


te curvas ao jugo dos tiranos. / Não tens preço na terra
dos humanos, / Nem o tempo te roi (sic). / És a essên-
cia dos anos, / O que vem e o que foi. // És a carne
dos deuses, / O sorriso das pedras, / E a candura do
instinto. / És aquele alimento / De quem, farto de pão,
anda faminto. // És a graça da vida em toda a parte,

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/ Ou em arte, / Ou em simples verdade. / És o cravo


vermelho, / Ou a moça no espelho, / Que depois de te
ver se persuade. // És um verso perfeito / Que traz con-
sigo a chama do que diz. / És o jeito / Que tem. Antes
de mestre, o aprendiz. // És a beleza, enfim! És o teu
nome! / Um milagre, uma luz, uma harmonia, / Uma
linha sem traço... / Mas sem corpo, sem pátria e sem
família, / Tudo repousa em paz no teu regaço!”2

Embora um tanto por longe talvez, ou a passo demasiado lento,


não custa no entanto a ver que nos vamos acercando, um pouco
mais esclarecidos, ao vero alcance da intuição lançada pelo per-
sonagem dostoievskiano – essa intuição que tão funda impressão
havia de causar neste outro gigante da literatura russa que é Ale-
xandre Soljenitsine, e que tão sabiamente João Paulo II iria apro-
veitar no admirável Documento estético-espiritual que é a “Carta
aos artistas”.
Convenço-me até, que, neste intento de colher a integral ver-
dade e ampla ressonância desse dito de Mychkine, o caminho mais
breve e mais esclarecedor será o de nos cingirmos de perto às su-
gestões luminosas que nos oferecem aqueles dois leitores tão qua-
lificados, tão lúcidos e sensíveis.

Um grande criador e proclamador da beleza


salvadora
Comecemos por ouvir o Nobel de Literatura de 1970, A. Soljenit-
sine, quando nos fala da sua própria convicção de que “a beleza
salvará o mundo”.
Permita-se-me breve advertência prévia, algo necessária, mes-
mo para tornar mais sensível e atento o nosso ouvido para o que
ele tem a dizer-nos sobre o tema em análise.
2
Miguel Torga, Odes, pp. 53-55. Coimbra Editora, 1946.

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Em primeiro lugar: o Sojenitsine que aqui nos interessa, mais


do que o afamadíssimo e mais ou menos politizado Autor de O
arquipélago do GULAG, é o grande Escritor de O pavilhão dos
cancerosos, de O primeiro círculo, de Um dia na vida de Ivan De-
nisovitch... Por outras palavras, muito mais do que o polemista que
também foi, e de mui nobre estatura, aqui importa-nos é conviver
um nadinha com o grande espiritual da Literatura, não apenas russa
mas universal.
Com fazer semelhante animadvertência, não gostaria de ser in-
terpretado como alguém que minimiza a restante actividade inte-
lectual e interventiva do Escritor nos vários quadrantes: no da polí-
tica, da sociologia e mesmo nas tomadas de posição frente à hierar-
quia religiosa ortodoxa russa. Não custa reconhecer que subjacente
a todos esses escritos está sempre a voz vibrante e autorizadíssima
de alguém que, sobrevivente algo miraculoso não apenas do GU-
LAG mas de um cancro, decidiu empenhar a própria vida na luta
pelos direitos humanos. A todo o transe e assumindo todas as con-
sequências Respeitabilíssimo como os que mais, por conseguinte.
Sucede é que para o caso vertente, como agora se diz, vale e basta-
nos o Escritor como grande espiritual da Literatura. Muito sim-
plesmente, e para tudo dizermos em duas palavras, porque a ajuda
que aqui nos faz falta é a que per prius nos pode supeditar o artista,
como privilegiado vivenciador e criador da beleza.
No entanto, – e talvez esteja de sobra dizê-lo, mas por causa dos
mais desatentos... – o que aqui vamos chamar ao nosso convívio
não é o Soljenitsine criador de beleza, enquanto tal; não é o A. de
O primeiro círculo ou de O pavilhão dos cancerosos, mas essa voz
particularmente sonora e autorizada que em diversos momentos se
levantou a proclamar a transcendente importância do livre cultivo
da arte e da beleza, não apenas em ordem a tornar um pouco mais
habitável o nosso mundo, mas para impedir que se desmorone e
apodreça. “A beleza salvará o mundo”.
Para o Nobel da Literatura de 1970, a arte, e especialmente a

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literatura, é o espelho e o grande veículo da vivência humana. Tem


o poder prodigioso de transmitir de uma língua para outra, de um
país para outro, toda a experiência vital de um povo. Por outras
palavras, é capaz de condensar e transmitir toda a história humana
vivenciada.
“A literatura é a memória vivente de uma nação. Conserva e
reaviva a sua história esquecida sob uma forma inviolável e refrac-
tária a qualquer entorse infligida à autenticidade dos factos. Por
isso a literatura digna deste nome preserva a língua e a alma de um
povo”.3
E logo na pág. seguinte, na sequência e a complementar o pen-
samento anterior: a riqueza da humanidade constitui-se pela diver-
sidade dos povos com suas personalidades colectivas. Porque em
cada, por pequeno que seja, há um reflexo particular da intenção
criadora de Deus.
Assim sendo, qualquer tentativa de abafar a expressão e a ex-
pansão da grande literatura de um povo, pela intervenção do poder
político, não é apenas violar a “liberdade de imprensa”, mas é con-
denar à asfixia o coração desse povo, a sua memória viva. ( p. 106)
Não vem tão directo ao nosso assunto, mas não se levará a mal
refira este judicioso considerando que vem um pouco adiante (p.
110): Soljenitsine vê na ONU, não propriamente uma Organiza-
ção das Nações Unidas, mas sim de Governos Unidos, e por isso
mesmo imoral. Porquê? Porque isso tem como consequência goza-
rem aí de direitos iguais os governos que provêm de eleições livres
e os que foram impostos pela força ou que tomaram o poder pela
violência das armas. Deste modo a ONU, ao mesmo tempo que
defende com denodo a liberdade de certas nações está a desprezar
3
André Martin, Soljenitsyne – Le croyant. Lettres, Discours, Témoignages,
pp. 104-105. Éditions Albatros (Éditions Étapes), Paris, 1973. O texto aqui
transcrito sob o título de “Un Discours jamais prononcé – pour le Prix Nobel”
ocupa as pp. 93-116. Citarei o “Discurso” sempre por esta ed., indicando apenas
a página.

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sistematicamente a de outras. E o discursante bem sabia do que


falava.
Seja como for, conforte-nos o sentimento íntimo de que existe
uma literatura universal, coração imenso a bater ao ritmo das ale-
grias e sobretudo das angústias do nosso mundo de sombras e tra-
gédia. Uma literatura que é fruto sazonado de sensibilidades bem
moduladas e por isso dotada de finas antenas, capazes de captar,
penetrar e fazer sua a unidade crescente do género humano.
Porque em última análise, e continuo a seguir de perto o pen-
samento do grande espiritual da literatura, esta é na sua essência a
vocação do Escritor : ao serviço da língua materna que é força uni-
ficadora e sinal de unidade para o povo e para a terra que ele habita,
tem o poder, mormente nas horas privilegiadas, de dar expressão
aos anseios da alma nacional, e mesmo universal. (pp. 112-114)
Mas parece-lhe no momento estar a ouvir a objecção: “assim
sendo, que pode a literatura, face à pressão impiedosa, implacável,
da violência?”
E a resposta surge com a interior vibração e a credibilidade que
merece alguém que sofreu na carne, na alma, essa mesma violência
implacável e descomiserada :
“Não esqueçamos que a violência nunca está só, que não pode
viver sozinha. Está unida à mentira por laços indissolúveis. Entre
uma e outra existe uma aliança orgânica, um profundo parentesco
de sangue. A violência não tem outro recurso que não seja a men-
tira, e a mentira só pode sobreviver ao abrigo da violência”. Por
isso “o dever elementar do homem humilde, mas não de todo des-
provido de coragem, é recusar a cumplicidade, não colaborar com
a mentira. Que ela tome conta do mundo, que o domine, mas sem
a minha colaboração.”
Mas os escritores, os artistas podem fazer mais, muito mais:
“têm processo de vencer a mentira. A experiência o demonstra:
na luta contra a mentira, a arte triunfou sempre, triunfará sempre,
de maneira manifesta e irrefutável. A mentira poderá ter a última

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palavra em muitas zonas da vida humana, mas nunca no duelo com


a arte.
Quando a mentira for desmascarada, a violência desvendar-se-á
em toda a sua repugnante nudez e a sua malévola sedução desapa-
recerá.”
E o apelo final chega-nos com a sonoridade profunda de um
clamor de esperança e, mais do que isso, de vésperas de ressurrei-
ção:
“Amigos! Esta a razão por que julgo podermos prestar ajuda
eficaz a este nosso mundo angustiado e entregue às chamas. Não
nos desculpemos com julgarmo-nos de mãos desarmadas! Não nos
refugiemos na segurança beata de uma vida sem preocupações. En-
frentemos a adversidade!
A língua russa gosta muito de certos provérbios que, referentes
à verdade, exprimem por vezes de forma percuciente o duro destino
do nosso povo.
“Uma palavra de verdade tem maior peso do que o universo
inteiro.”
Este princípio, a abrir brechas na lei de conservação da massa-
energia, constitui o fundamento de tudo o que faço e inspira-me
o apelo que daqui dirijo aos escritores do mundo inteiro.” (pp.
115-116)
Quem assim fala é um homem que fez travessia do deserto,
no sentido mais amplo e mais profundamente bíblico do termo, e
só na medida em que pudermos sintonizar em plenitude com essa
realidade existencial vivida pelo escritor é que saberemos colher
em totalidade a total ressonância destas e de outras palavras suas.
Estamos, convém não esquecer, perante alguém que depois de ter
sobrevivido, não apenas a um cancro mas a onze anos de degredo
siberiano no GULAG, e talvez por isso mesmo, preserva cada vez
mais robusta a certeza de que “só vivemos uma vez, mas para nunca
mais morrer”. É possível que esta ideia fosse nele algo de titube-
ante ao iniciar a sua existência de concentracionário, mas não pre-

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cisou de longos dias de experiência e observação, no convívio com


essa multidão de humilhados e ofendidos, para que uma tal certeza
se lhe impusesse como conclusão insofismável.
Mais ainda: doravante algumas outras obscuridades se irão dis-
sipando, ou pelo menos vão ganhando maior claridade.
Entra a compreender, por ex., que afinal o mundo não é cria-
ção do homem, mas simplesmente é-lhe oferecido como que ina-
cabado, informe, à maneira de um material, para ser moldado, sem
dúvida, mas sobretudo como uma realidade que leva em si mesma
fundamente inscrito um sentido secreto, misterioso talvez, mas que
urge decifrar. E é então que este intelectual sensível e perscrutador
entra a compreender – e o que é muito mais, entra a saber (“sa-
pere”) – que afinal o trabalho humano, por mais humilde e quotidi-
ano que seja, tem sempre algo de criação artística, a exigir contínua
transcensão e a abrir sobre a consciência espiritual.
Porque afinal, vistas de perto as coisas, o universo mundo e o
trabalho humano que o vai moldando têm um sentido, e o agente
imediato do desvelamento desse sentido, a pessoa humana, age sob
impulso interior tal que, no mais profundo de si mesmo, só pode ir
desembocar na beleza e no mistério.
Na realidade, este grande espiritual da literatura – como já um
século antes acontecera ao seu genial compatriota Dostoievski, por
igual quando concentracionário na Sibéria – em meio aos trági-
cos acontecimentos que houve de viver durante a sua travessia, foi
compreendendo, e “sabendo” existencialmente, que em última aná-
lise, todo o ser humano é artista, e por isso mesmo criador de be-
leza, isto é, participa analogicamente do poder do Supremo Artista
Criador.
Que a participação analógica da criatura no poder criador do
Supremo Artista admite graus, sobra dizê-lo, e basta um simples
olhar sobre a inumerável diversidade e modos de beleza artística à
nossa volta.

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Um excelente leitor do artista Soljenitsine

Mas no Discurso do Nobel que vimos lendo encontramos mais al-


guns tópicos de reflexão muito ao nosso caso e que nos podem
ser de ajuda não pequena ao pretendermos decifrar um nadinha do
mistério daquela frase, sem dúvida enigmática do sibilino perso-
nagem de Dostoievski . “A beleza salvará o mundo”. Curarei de
utilizar um estilo com seu quê de telegráfico ou cifrado, para bons
entendedores, com o fito tentar dizer no mínimo de espaço/tempo
o máximo de conteúdo e sugestividade.
Felizmente, além das obras de Soljenitsine – todas elas, mor-
mente as de ficção, impregnadas de belos apontamentos orientáveis
ao nosso intuito – tenho aqui à mão, lido e relido, um precioso es-
tudo intitulado L’esprit de Soljenitsyne ( Éd. Stock, Paris, 1974),
de Olivier Clément. Trata-se de um cristão “ortodoxo”, ocidental,
Autor de vários e valiosos estudos sobre a história da literatura es-
piritual do Oriente cristão, e que no presente volume, pondo como
que entre parênteses a faceta política/polémica, chamemos-lhe as-
sim, do A. de O arquipélago do GULAG, nos oferece, quase em
tom meditativo, uma excelente literário-espiritual do grande escri-
tor de obras como O primeiro círculo, O pavilhão dos cancerosos,
Um dia na vida de Ivan Denissovitch, e diversas outras.
Dispensado que me sinto de apresentar uma interpretação por
inteiro original do tema em análise, de bom grado me valerei, ad-
mirador e grato, das propostas e sugestões que o seu estudo esplen-
didamente por vezes influi, sempre que válidas ao intuito que me
move.
Ainda dentro do objectivo premente de abreviar, direi que, do
volume denso de O. Clément, de 384 pp. numeradas, nos vamos fi-
xar principalmente nas referentes ao cap. 4, sobre “L’acte créateur”
(83-106). Muita coisa se nos diz aí no atinente ao nosso propósito
e o difícil é seleccionar. No entanto, mais do que fazer antologia,
procederei antes com a subjectividade descomprometida de quem

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18 J. Alves Pires, S.J.

recolhe sugestões e as entretece ao sabor dos seus próprios intuitos.


Cuidando de evitar divagações dispensáveis, naturalmente.

Da arte como artifício ao serviço da beleza

Ao dizermos que a arte implica artifício e está ao serviço da beleza


estamos simplesmente a dizer algo de parecido com um truísmo.
Outra coisa é que todo o artista, em sua actividade artística, tenha
verdadeira consciência dessa realidade e lhe assuma os parâmetros
de exigência.
O artista Soljenitsine possui como poucos uma consciência bem
reflexa e assumida de uma tal realidade: conforme insinua em di-
versos teclados, o artista que se preza tende sempre a pôr a sua
arte ao serviço do mistério da verdadeira beleza, isto é, ao ser-
viço dessa beleza que é capaz de colher o homem todo inteiro,
sacudindo-o desde as profundezas e empolgando-o a caminho da
contínua transcensão de si mesmo. A arte arranca o homem de um
certo clima de sonambulismo e letargia espiritual, que o quotidiano
propende a influir-lhe, e lança-o nos caminhos do que Dionísio o
Areopagita chama de “tensão para uma vida mais alta”.
Por outro lado, a beleza assim compreendida é sempre reflexo
dessa luz profunda e misteriosa que, pela visão fugidia, abre sobre
realidades inacessíveis à secura da razão.
Na realidade, considera o Nobel de 70, a própria arte se encar-
rega de nos demonstrar que, embora nem tudo esteja ao alcance
da palavra humana, a linguagem da arte tem o condão de em certo
modo ultrapassar o meramente humano e, pelo esplendor e pelo
horror, franquear portas sobre o mistério da existência, interpre-
tando o silêncio dos corações e a infinda sugestividade dos rostos.
É nesta linha de sentir e pensar que ele diz sem ambages, no

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Discurso do Nobel, que “toda a obra-prima autêntica traz consigo


uma força de convicção irresistível, capaz de subjugar os corações
mais rebeldes”. Mais: a arte, por sua natureza tende a ser vitória
sobre as forças da morte, mesmo, e sobretudo, quando as explora;
porque a beleza que cria prova que a descida aos infernos não pode
ser a última etapa. Assim, a força de ressurreição que a arte traz
consigo é tal que “é capaz de abrasar mesmo a alma que morre de
frio e se debate nas trevas, para a lançar nas vertiginosas vias da
demanda espiritual”. (ibid.)
Por mor da clareza, forçoso é dizer que estes raciocínios têm
subjacente a concepção soljenitsineana do chamado romance “sin-
fónico”, a que neste passo apenas podemos aludir, e para sublinhar
a densidade humana que o A. de O pavilhão dos cancerosos intro-
duz no conceito de arte “verdadeira”.
Em duas palavras, e sigo de perto a leitura de O. Clément: se
toda a arte é por definição “incarnativa” da realidade, a grande arte,
ou, na linguagem de Soljenitsine, a arte “verdadeira”, é-o na exacta
medida em que for incarnativa da realidade integral. Explicitando:
a arte romanesca “verdadeira” é a que procura e consegue dar-nos,
por um lado a densidade mais incarnada, o peso de história e de
universo das existências pessoais, e por outro lado, ou em simultâ-
neo, aquilo que podemos chamar o seu peso de eternidade. É in-
carnando a densidade da história, mediante os personagens e suas
inter-relações, que o romancista logra alcançar as raízes da meta-
história.
Desembocamos assim, por via um tanto diversa, na consabida
verdade estética segundo a qual o artista se alcança o universal é
pelo aprofundamento no real concreto, individual e local. Ou, re-
correndo de novo à linguagem do Nobel de 70, o artista será tanto
mais “verdadeiro” quanto mais souber manter o equilíbrio entre
actualidade e eternidade: incarnando, pela densidade da expressão
artística, as tragédias e as esperanças e as alegrias do seu tempo,
atinge a unicidade de cada pessoa, do mesmo passo com que vai

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20 J. Alves Pires, S.J.

descrevendo a totalidade humana e cósmica representada ou quali-


ficada por essa pessoa. Por outro lado, conclui o grande escritor, o
artista “verdadeiro” intuiu e deixou pressentir “o centro para onde
convergem todas as linhas”.

A beleza como “esplendor da verdade”

Com certeza que a estas horas há muito tirámos por conclusão,


sem esforço de maior, que a “verdade” da obra artística, de que nos
vem falando Soljenitsine, se não identifica, de modo nenhum, com
uma qualquer verdade ideológica. Não cabe dentro de nenhuma
ideologia ou sistema, pois bole com a realidade última dos seres e
das coisas, com o seu mistério.
A essa verdade gosta de chamar-lhe “verdade-justiça”, infun-
dindo no conceito uma breve tonalidade bíblica. E assim proce-
dendo, conforme anotam os estudiosos, Soljenitsine limita-se a re-
cuperar, para lá das deturpações do regime, o poderoso vocábulo
“pravda” (“justiça-verdade”), em toda a sua força e suculência ori-
ginária.
Todo o seu combate, nas diversas frentes, é por esse teor de
verdade, e procede bem à maneira daquele guerrilheiro lúcido que
encontramos em O pavilhão dos cancerosos, que se declara inca-
paz de lutar sem saber os motivos últimos por que luta.
Escritor cristão que é, sabe que esse combate vale a pena quan-
do em favor da “verdade” assim entendida; porque então estará
ao serviço, não de uma qualquer abstracção ideológica, mas sim
da pessoa humana concreta, da pessoa integralmente olhada – de
todas as realidades criadas a que verdadeiramente reflecte em si o
absoluto.
O artista será autêntico, ou “verdadeiro”, na exacta medida em

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“A Beleza salvará o mundo” 21

que souber pôr a sua arte ao serviço da “verdade” da pessoa hu-


mana. E como, segundo a bela expressão platónica, “a beleza é o
esplendor da verdade”, sempre que assim proceder estará a criar
beleza, ou seja, a desvelar diante dos nossos olhos e da nossa sen-
sibilidade maravilhados a verdade, quanto possível em todo o seu
esplendor.
Daí, a vital e transcendente importância da missão do artista.
E nós captamos também um pouco melhor o alcance e a amplís-
sima ressonância do apelo feito aos artistas, e concretamente aos
escritores, no final do Discurso do Nobel: porque “uma palavra
de verdade tem maior peso do que o universo inteiro”, mormente
quando proferida em timbre artístico. Na realidade a linguagem
própria da arte é a linguagem simbólica, por sua própria natureza
voltada para o mistério da beleza e sua celebração.
Neste contexto, ainda que a modo de parêntesis, julgo oportuno
referir, porque muito justa e pertinente, a observação de O. Clément
(o. c., p. 306) segundo a qual a arte de Soljenitsine tem seu quê
de raro, se não de único, na literatura universal – está a referir-se
mais a O arquipélago do GULAG : a arte de Soljenitsine, diz este
seu leitor sensibilíssimo, em sua sobriedade, mais do que no gé-
nero romanesco ou no género trágico, deve é qualificar-se como
integrando-se no “mistério litúrgico em que o passado se actua-
liza em sua significação permanente: vasta liturgia da Sexta-feira
santa da história, da crucifixão e da descida aos infernos de tantos
inocentes. Seria (esta arte) realizável sem a presença secreta de
um Inocente ressuscitado, com quem estamos indissoluvelmente
unidos? A história, pela metanoia, acede à comunhão dos santos
que é antes de mais a dos humilhados. Nenhum homem, nenhuma
nação, nenhuma comunidade de destino pode hoje passar ao lado
desta purificação que faz com que tenhamos acesso à intercessão
dos excluídos, dos malditos, dos crucificados. Recusar e verdade é
aceitar a vitória da morte, a fuga perante o nada de que nos pressen-

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22 J. Alves Pires, S.J.

timos cúmplices. Só a história, assim liturgicamente restabelecida,


nos pode abrir à comunhão dos viventes.”
A citação foi algo extensa, mas creio que estou desculpado,
porque na verdade alude a aspectos vários e abre para fecundas su-
gestões respeitantes ao nosso tema, e que naturalmente podemos e
devemos dispensar-nos de aqui desenvolver ou sequer referir, fa-
lando como falamos para entendedores excelentes.
Não será de todo deslocado nem ocioso, ainda na linha inter-
pretativa de O. Clément, dizermos mais uma palavra, em comple-
mento do que fomos escrevendo, sobre a génese profunda e a seiva
vital de que se alimenta a escrita artística soljenitsineana, e que de
facto acaba por nela imprimir tamanha amplitude de sonoridade e
vibração humana.
Vale recordar que o engenheiro Alexander Soljenitsine foi alto
graduado do exército soviético, e o que lhe “mereceu” os oito anos
(a que se somaram mais três) de trabalhos forçados na Sibéria – sob
temperaturas que atingem os 50 graus negativos, e alimentação de
mera sobrevivência – foi o “crime” de um dia em carta a um amigo
ter escrito que Estaline em questões de estratégia militar era nulo.
Isto acontece na década de quarenta.
Essa espécie de degelo da década seguinte, sob Krutchev, tor-
nou possível o regresso de centenas de milhar (há quem fale de
milhões) de concentracionários do GULAG. No meio dessa multi-
dão de semifantasmas e esqueletos ambulantes vinha também este
que viria a ser o A. de O arquipélago do GULAG. Esta obra –
como deixámos entrever, obra de difícil catalogação entre os gé-
neros literários existentes, mas, no essencial, estritamente cingida
à mais rigorosa documentação histórica, só que em sua redacção
passada através da pluma de um escritor de eleição – esta obra, é
claro que só pôde ser escrita porque o seu A. logrou conquistar as
boas graças do novo “pai dos povos”, que, incapaz de alcançar to-
das as consequências futuras do gesto, lhe concedeu o privilégio de
aceder aos Arquivos ultrassecretos da KGB e transcrever toda essa

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“A Beleza salvará o mundo” 23

trágica documentação histórica hoje ao nosso alcance, em toda a


sua fidedignidade original.
Não precisamos de grandes dotes de intuição para entender-
mos que a partir da revelação desse terrível corpus documental
muita coisa iria mudar, no respeitante à concepção mirífica oci-
dental do que era o paraíso soviético. O muro de silêncios cúmpli-
ces e protectores não só entrou a abrir fenda mas começou a ruir
com estrondo impossível de abafar. Mas enfim, estes fragmentos
de história, não vindo directamente ao nosso tema, deixemo-los a
desbanda.
O que certamente não seria de bom conselho era o pôr de banda
aqueles outros dados informativos de feição biográfica acerca do
Nobel de 70, ao decidirmo-nos a conviver com este homem, em
qualquer das vertentes da sua actividade de escritor – actividade
multifacetada, como de há muito nos foi dado perceber.
Para o momento presente da nossa análise, o que mais importa
sublinhar nesse período tão “fértil” da vida do concentracionário,
ou se quisermos em linguagem bíblica, da sua travessia do deserto,
é o facto de se ter operado na existência deste homem uma espécie
de iluminação a nível profundo da psique : uma quase convulsão
interior que levou a profunda alteração na sua escala de valores e
a olhar o mundo das coisas e dos humanos sob luz muito outra,
rejuvenescida, no melhor sentido da palavra. Qualquer coisa de se-
melhante ao que acontecera com Dostoievski, por igual degredado
na Sibéria, embora em condições menos cruéis e degradantes.
Um e outro, mediante essa como que descida aos infernos, al-
cançaram foi passar de cultuadores de uma tal ou qual utopia polí-
tica para o culto misteriosamente fecundo de um certo visionarismo
profético.
Com as consequências bem à vista, ao menos dos iniciados
no universo artístico e humano de um e outro: Dostoievski, ex-
poente máximo, e muito adentro da catalogação sprangueriana do
“homo religiosus”, da arte romanesca, a merecer a qualificação,

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quase unânime, de o maior romancista de todos os tempos – aquele


que até hoje, sobretudo com essa pentalogia bem conhecida (Crime
e castigo, O adolescente, Os demónios, O Idiota, Os irmãos Kara-
mazov) elevou ao mais alto grau de realização o ideal artístico-
romanesco; Soljenitsine, alguém que, sem abdicar em momento
algum das exigências e prerrogativas da arte literária, soube utilizá-
la com terrível eficácia no combate denodado pela dignificação da
pessoa humana e da sociedade. Ao ponto de hoje podermos re-
ferenciar à sua própria obra literária esse dito seu, tão feliz como
verdadeiro: a palavra de um grande escritor, dentro de uma nação,
vale por muitos exércitos.
Resumindo e concluindo esta que apesar das aparências gosta-
ria não fosse tomada por simples divagação ociosa: também es-
tes dois profetas dos tempos modernos, Dostoievski e Soljenitsine,
– muito à semelhança dos dos tempos antigos, desde Moisés e
Elias, passando por João Baptista e o próprio Cristo – houveram
de retirar-se ao deserto, fazer a sua travessia dolorosa e catártica,
para depois, de olhar purificado, poderem aceder a essa beleza se-
creta dos seres e das coisas, ou seja do “esplendor da verdade”.
Depois sim, acharam-se preparados e disponíveis para departi-
rem, construtivamente, salvadoramente, com os companheiros de
viagem que são todos os humanos, as grandezas humanas apreen-
didas e as belezas vivenciadas.
Não duvidemos, a beleza salvará o mundo, e tudo está em que
o número destes sentidores e departidores da beleza vá crescendo
em ritmo cada vez mais acelerado, até ao dia em que a secreta e
misteriosa beleza, sempre libertadora e salvífica, nos pervada em
corpo e espírito.
E tudo nos convidaria a colocar aqui ponto final, nesta des-
pretensiosa e informe reflexão sobre essa fala enigmática do prín-
cipe “idiota” dostoievskiano, e segundo a qual “a beleza salvará o
mundo. Tudo parece encaminhado para um fecho oportuno aqui,
apesar das vozes tão sentidas que julgo ouvir, vindas lá dos lados

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“A Beleza salvará o mundo” 25

de Soljenitsine, cuja obra tinha tanto a dizer-nos ainda, em ordem


a esclarecer-nos, nestes terrenos permeados de obscuridade – não
apenas da obscuridade do enigma mas do mistério. E recordo que
as palavras “mistério” e “misterioso” são das mais recorrentes na
escrita artística soljenitsineana.
Para concluir com chave de oiro o nosso encontro com o admi-
rável conquistador e pregoeiro da beleza, Soljenitsine, nada melhor
do que transcrever aqui a oração por ele um dia escrita no reverso
de uma estampa iconográfica enviada a um amigo:

“Como é fácil para mim viver convosco, Senhor


meu Deus!
Como me é fácil crer em Vós!
Quando os meus pensamentos vacilam, assediados
pela dúvida, e o meu espírito desfalece,
Quando os mais inteligentes não vêem nada para lá
deste entardecer e não sabem o que os espera amanhã,
É então que Vós, Senhor, me enviais a clara certe-
za: Vós existis e Vós mesmo cuidareis de que nem
todos os caminhos da Beleza se nos fechem!
Do alto da celebridade terrena contemplo maravi-
lhado o caminho sem esperança que aqui me trouxe,
De tal modo que até eu pude transmitir ao longe,
no meio dos homens, o reflexo da Vossa glória!
Enquanto o julgardes necessário, Vós mesmo me
haveis de dar os meios,
E quando eu já nada puder fazer,
É porque então já confiastes a outros esta missão...”4

4
Cf. André Martin, o. c., p. 91.

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Breve leitura da “Carta aos artistas”

Não há dúvida que tudo parece encaminhado para deixarmos cair


aqui o ponto final sobre estas reflexões, pese embora a sua escassa
valia. Mas dá-se o caso de não termos satisfeito uma parte do que
prometemos logo de início: uma referência ao enquadramento em
que João Paulo II, na “Carta aos artistas” datada da Páscoa de 1999,
reassume o famoso dito do personagem dostoievskiano. E como o
prometido é devido...
Ultrapassei já o espaço que de começo me propunha utilizar
nestas minhas cogitações, e por isso sinto ainda mais premente
agora a obrigação de condensar. E no entanto a “Carta aos artistas”,
no que diz respeito ao nosso tema, é tão densa de verdade estética e
de sugestões que mal se compadece com afloramentos apressados.
Entre parêntesis, mas, no contexto, quase como obrigação, mui-
to convém advertir que o “epistológrafo” aqui invocado, mais do
que o Papa João Paulo II, é o escritor Karol Wojtyla, autor de uma
obra artístico-literária consistente e significativa a vários níveis, e
que não terá sido até hoje bastantemente estudada pela razão óbvia
de que os vectores da sua actividade cultural das duas últimas dé-
cadas – marcante em definitiva neste nosso mundo, e aquela que,
como é normal, concita as atenções – escapa aos enquadramentos
e qualificações do mero plano do artístico-imaginário.
Nos parágrafos a seguir, que tentarei reduzir ao mínimo, quero
apenas pôr algum sublinhado em dois ou três tópicos de maior al-
cance na “Carta aos artistas” e julgo virem de facto acrescentar
algo de substancial ao que vimos dizendo.
Já se percebeu de há muito que o conceito da beleza é um con-
ceito analógico; que por conseguinte pressupõe o que os filósofos
chamam o analogatum princeps, ou, no caso, a Beleza com maiús-
cula, e depois diversos graus de aproximação a esse conceito de
conteúdo integral, globalizante.
A pergunta que se põe é: qual o critério, ou o aferidor, para eu

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“A Beleza salvará o mundo” 27

poder dizer que o conceito de beleza utilizado por este escritor é


mais denso de conteúdo do que o utilizado por aqueloutro escritor?
Qual é o referente?
A resposta é clara: é o ser humano. É evidente que no subsolo
de toda a criação artística, de toda a produção de beleza, estará
sempre uma tal ou qual noção de homem. Se essa noção é abran-
gente, isto é, se envolve a humana realidade integral, por parte do
artista, naturalmente a arte, e portanto a beleza, que produzir ten-
derá a ser por igual incarnativa da humana realidade global.
Bem sei que este raciocínio, mormente quando olhado em suas
consequências, tem seu quê de linear, e estaria a pedir matização
circunspecta. Mas há a premência do tempo e do espaço, e valha-
nos também de escusa o facto de, em relação aos nossos intentos,
essa matização cair um tanto a deslado.
Na “Carta”, João Paulo II dirige-se aos “artistas, construtores
geniais de beleza”, “a quem me sinto ligado por experiências dos
meus tempos passados e que marcaram indelevelmente a minha
vida.”5 Depois, muito oportunamente, com a clareza e agudeza de
excelente filósofo, explica a diferença entre “criador” e “artífice”,
para esclarecer que em sentido estrito “criador” só existe um: Deus,
o único a poder tirar do nada – produzir ex nihilo sui et subiecti.
O ser humano, o “artífice”, esse “utiliza algo já existente, a que dá
forma e significado.”
Se é certo que nem todos são chamados a ser artistas, no sentido
específico do termo, não é menos certo que “todo o homem recebeu
a tarefa de ser artífice da própria vida : de certa forma, deve fazer
dela uma obra de arte, uma obra-prima.”
Sublinha-se de seguida a estreita conexão entre as duas ver-
tentes e/ou predisposições do ser humano: a moral e a artística.
“Ambas se condicionam de forma recíproca e profunda.” O que
equivale a dizer que “o artista, quando modela uma obra, exprime-
5
“Carta do Papa João Paulo II aos Artistas”. Secretariado Geral do Episco-
pado. Ed. Paulinas, 1999. As citações são desta edição.

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se de tal modo a si mesmo que o resultado constitui um reflexo


singular do próprio ser, daquilo que ele é e de como o é.” Todo o
artista, na medida em que o é, tende a transfundir-se na obra de arte
que cria, a incarnar nela a sua mundividência e a sua personalidade.
Logo a seguir a “Carta” põe em relevo a íntima relação entre
arte e beleza: “O tema da beleza é qualificante, ao falar de arte”. E
muito a preceito invoca-se o livro do Génesis, onde diz que Deus
olhando tudo o que tinha criado viu que tudo era “ belo” – o vocá-
bulo grego da versão dos Setenta, mais apropriado que o de “bom”
da Vulgata, para a tradução do correspondente vocábulo do original
hebraico. E depois a alusão, inevitável, ao convívio dos dois con-
ceitos, “bom” e “belo”, que na filosofia grega, como atrás referido,
desembocaria no conceito unificante e unificado: “kalokagathón”.
Isso, porque, vistas bem de perto as coisas, pode dizer-se que “a
beleza é a expressão visível do bem, do mesmo modo que o bem é
a condição metafísica da beleza”.
Tudo isso expressou vigorosamente Platão quando no Filebo
escreveu que “a força do Bem se refugiou na natureza do Belo”.
Pouco adiante, em sequência lógica e admiravelmente lúcida
de raciocínio, a “Carta” põe em igual plano de urgência para a
sociedade do nosso tempo a necessidade de artistas e a necessidade
dos demais intervenientes na construção da sociedade onde valha a
pena viver: pais, professores, cientistas, técnicos, testemunhas da
fé, enfim, todos esses que garantem o crescimento sadio da pessoa e
o progresso sólido da comunidade, “através daquela forma sublime
de arte que é a ‘arte de educar”’.
Como de esperar, alude a “Carta” ao monumento de grandeza
artístico-humana absolutamente único – a Bíblia ou o Livro por
excelência – quer pela beleza que contém em si mesmo, quer, e
talvez mais ainda, pela que ao longo de milénios foi inspirando a
artistas de todos os quadrantes e crenças.
E resume, concluindo: “para todos, crentes ou não, as realiza-

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“A Beleza salvará o mundo” 29

ções artísticas inspiradas na Sagrada Escritura continuam a ser um


reflexo do mistério insondável que abraça e habita o mundo.”
Mesmo sob o aperreio do tempo não me eximo a citar a for-
mulação feliz de uma ideia, que nem por muito repetida deixa de
parecer inédita para não poucos: “toda a intuição artística autên-
tica ultrapassa o que os sentidos captam e, penetrando na realidade,
esforça-se por interpretar o seu mistério escondido. Ela brota das
profundidades da alma humana, lá onde a aspiração de dar um sen-
tido à própria vida se une com a percepção fugaz da beleza e da
unidade misteriosa das coisas. Uma experiência partilhada por to-
dos os artistas é a da distância incomensurável que existe entre a
obra das suas mãos, mesmo quando bem sucedida, e a perfeição
fulgurante da beleza vislumbrada no ardor do momento criativo
: tudo o que conseguem exprimir naquilo que pintam, modelam,
criam, não passa de um pálido reflexo daquele esplendor que bri-
lhou por instantes diante dos olhos do seu espírito.”
É extensa a citação, e peço escusas, mas seria impossível con-
densar-lhe, sem traição, o conteúdo. De resto é fácil concluir, a
uma leitura não de todo ligeira, que toda a “Carta” está redigida
numa linguagem de admirável poder condensativo, como se pre-
tendesse, mais do que informar, sugerir tópicos de meditação no
dilatado horizonte das questões humanas em análise. Atitude que
pelo mais subtende todos os grandes escritos do Papa.
A “Carta” elabora de seguida poderosa síntese, percorrendo a
traço grosso mas essencial os momentos cimeiros do que podería-
mos chamar a história da humana criação da beleza artística, tendo
sempre, como seria de esperar, a referência inalienável que é a da
plena interpretação da existência humana.
Esse percurso, a ocupar sensivelmente metade do texto – tal a
importância que a “Carta” atribui à fundamentação histórica das
propostas e/ou afirmações que faz – vamos naturalmente aqui so-
brevoá-lo, pelos motivos repetidos e óbvios. Impossível no entanto

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30 J. Alves Pires, S.J.

escusar-me de aduzir, sublinhando, a introdução a esse recorrido


histórico:
“Toda a forma autêntica de arte é, a seu modo, um caminho
de acesso à realidade mais profunda do homem e do seu mundo.
E, como tal, constitui um meio muito válido de aproximação ao
horizonte da fé, onde a existência humana encontra a sua plena
interpretação. Por isso é que a plenitude evangélica da verdade não
podia deixar de suscitar, logo desde os primórdios, o interesse dos
artistas, sensíveis por natureza a todas as manifestações da beleza
íntima da realidade.”
A arte, sendo por sua natureza transfigurativa do real concreto,
prolongadora do real no sentido da vida possível, tende por isso
mesmo a ser apelo do insondável e do mistério, ou melhor dizendo,
do Mistério, com maiúscula. É assim que na “Carta” se nos diz com
toda a razão que “mesmo quando perscruta as profundezas mais
obscuras da alma ou os aspectos mais desconcertantes do mal, o
artista torna-se de qualquer modo voz da esperança universal de
redenção.”
A invocação, na “Carta”, da Constituição pastoral Gaudium et
spes do Vaticano II tem enquadramento e ressonância muito pró-
prios quando sabemos do papel que Karol Wojtyla desempenhou
na elaboração do documento. É assim particularmente grada e so-
nora a voz que aqui se faz ouvir ao citar o Vaticano II, pois arranca
de convicções antigas e bem sazonadas: “os Padres Conciliares su-
blinharam a “grande importância “ da literatura e das artes na vida
do homem”. E cita o no 62 do Documento: “Elas procuram dar ex-
pressão à natureza do homem, aos seus problemas e à experiência
das suas tentativas para conhecer-se e aperfeiçoar-se a si mesmo e
ao mundo; e tentam identificar a sua situação na história e no uni-
verso, dar a conhecer as suas misérias e alegrias, necessidades e
energias, e desvendar um futuro melhor”.
Ganha assim mais veemência e amplitude sonora o apelo final
dos PP. Conciliares feito aos artistas em 8 de Dez. de 1965: “O

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“A Beleza salvará o mundo” 31

mundo em que vivemos tem necessidade de beleza para não cair


no desespero. A beleza, como a verdade, é a que traz alegria ao
coração dos homens, é este fruto precioso que resiste ao passar
do tempo, que une as gerações e as faz comungar no deslumbra-
mento.”
Já para o final, feito o percurso das razões fundamentadoras,
a “Carta” exorta os artistas “a descobrir a profundeza da dimensão
espiritual e religiosa que sempre caracterizou a arte nas suas formas
expressivas mais nobres.”
E passadas duas páginas aí estão os parágrafos conclusivos,
como de despedida muito familiar e afectuosa, em tom prodigi-
osamente entusiasta e vibrante, de molde a causar assombro, so-
bretudo se temos presente que a mão que escreve estas palavras é
a de alguém que após uma vida de realização e plenitude sem pa-
ralelo neste nosso século, se encontra hoje tão debilitada, no corpo
enfermo – embora com uma clarividência porventura só explicável
pela força daquele Espírito que sopra onde quer.
Vários outros parágrafos da “Carta” estariam a pedir aqui re-
ferência sublinhada, porque em perfeita sintonia e sem dúvida a
irradiarem luz esclarecedora e forte sobre um tema que, já o fomos
percebendo, se apresenta com tanto de nobre como de enigmático
e misterioso – “a beleza salvará o mundo”. Não me sendo permi-
tido no entanto, sem abuso, protelar por mais tempo a conclusão
destas mal cerzidas reflexões, reduzo-me a transcrever, evitando
comentar, ainda mais dois ou três incisos
“A beleza que transmitireis às gerações futuras seja tal que
avive nelas a admiração deslumbrada. Diante da sacralidade da
vida e do ser humano, diante das maravilhas do universo, essa ad-
miração é a única atitude condigna.”
Essa vossa visão deslumbrada e deslumbrante da humana re-
alidade será suscitadora de entusiasmo, e “a humanidade poderá,
depois de cada extravio, levantar-se de novo e retomar o seu cami-

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nho. Precisamente neste sentido foi dito, com profunda intuição,


que “a beleza salvará o mundo”.
Porque, “A beleza é chave do mistério e apelo ao transcendente.
É convite a saborear a vida e a sonhar o futuro. Por isso, a beleza
das coisas criadas não pode saciar, e suscita aquela arcana saudade
de Deus que um enamorado do belo, como S. Agostinho, soube
interpretar com expressões incomparáveis: “Tarde Vos amei, ó Be-
leza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei!”.(Confissões, 10, 27)

À maneira de conclusão

Têm cabimento, ao que julgo, duas rápidos anotações finais que de


algum modo ajudem um nadinha a ver mais de perto a coesão de
pensamento que apesar de tudo pervive nos raciocínios e nos vários
testemunhos, nestas páginas aduzidos no intuito de iluminarmos
um pouco o enigma da proposição dostoievskiana, através do seu
príncipe “idiota”, e segundo a qual “a beleza salvará o mundo”.
Vou reduzir-me à indicação semitelegráfica de dois ou três tópi-
cos ao leitor, capazes de lhe facilitarem a tarefa de melhor perceber
a convergência e o alcance dos elementos aparentemente descosi-
dos, incorporados no discurso que acabou de ler.
– O personagem de O idiota de Dostoievski, o príncipe Mych-
kine, autor da intuição de que “a beleza salvará o mundo”, é visto
quase unanimemente pelos grandes comentadores do romance co-
mo sendo uma das principais (para vários, a principal) figuras de
Cristo na obra romanesca do grande russo – que, como é geral-
mente sabido traçou diversos esboços da figura de Cristo. Quando
falo em grandes comentadores do romance dostoievskiano, tenho
presentes, entre outros, nomes grados e tão sonantes como: o Ro-
mano Guardini de O mundo religioso de Dostoievski, o N. Ber-

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“A Beleza salvará o mundo” 33

diaeff de O espírito de Dostoievski, o George Steiner de Tolstoi


ou Dostoievski, o L. Chestov de A filosofia da tragédia, o Jacques
Rolland de Dostoievski – a questão do outro.
– Seria talvez de bom aviso – recordo que, durante os anos de
exilado na Sibéria, Dostoievski teve praticamente como única bi-
blioteca uma Bíblia – e de não pequena valia pelo poder sugeridor,
aproximarmos aquele personagem de O idiota ao Menino da pro-
fecia de Isaías (cc. 9-11). Como estamos lembrados, esse Menino
misterioso, messiânico, é o ser incontaminado, capaz de ver as ma-
ravilhas do mundo todos os dias como se fosse a primeira vez e
ensinar poesia aos adultos; esse Menino será o apaziguador univer-
sal, e sob o seu mando não mais haverá guerras: o lobo e o cabrito
pastarão juntos, o leão e a pantera hão-de viver em harmonia, e o
Menino poderá meter a mão na toca da víbora que nada de mal lhe
acontecerá.
Dir-se-ia que a intuição do príncipe “idiota” nasce da antevisão
dessa universal harmonia futura.
– Apesar de bastantemente aludida atrás esta ideia, gostaria de
a sublinhar – tanto mais que, a darmos ouvido à oportuna adver-
tência de Nélson Rodrigues, uma ideia que não se repete morre
inédita. Os três guias que mais assiduamente nos foram orientando
na penosa viagem em demanda de alguma luz sobre o misterioso
significado da intuição do personagem de O idiota – o próprio A.
do romance, o Nobel da Literatura em 1970 e o A. da “Carta aos
artistas” – todos eles, embora por vias diferenciadas, antes de apa-
recerem como profetas da alegria e da beleza, precisaram de fazer a
dolorosa travessia do deserto quaresmal. Só depois puderam avis-
tar, desnubladamente, a terra prometida, e tiveram o irreprimível
impulso de audácia para a anunciarem, como enviados urgentes
em missão salvadora.
De bom grado me entregaria a explicitar os subentendidos desta
afirmação, se o espaço/tempo o consentisse, ou se tal fosse por aí
além necessário. Na verdade não o é, pois no essencial tais su-

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bentendidos facilmente se entregam a quem tiver seguido com um


mínimo de atenção e relacionado os principais elementos do dis-
curso das páginas anteriores.
Metaforicamente falando, tudo se poderia fazer convergir para
aquele versículo do 4o Evangelho: Nisi granum frumenti cadens
in terram, mortuum fuerit; ipsum solum manet; si autem mortuum
fuerit, multum fructum affert. (Jo., XII, 24) Isto é, o grão de trigo,
lançado à terra, só passando pela morte produzirá abundância de
fruto. Sapientemente o compreendeu, com um saber de experi-
ência feito, o nosso Dostoievski, ao tomar este preciso versículo
do Evangelho como epígrafe daquele que muitos, com muito boas
razões, têm como o maior dos seus romances: Os irmãos Karama-
zov.
É que, em linguagem absolutamente católica, universal, o es-
plendor e a beleza, isto é, a glória, da manhã de domingo da res-
surreição só se são possíveis depois da tarde de sexta-feira santa.
Em Dostoievski, em Soljenitsine, em João Paulo II, o abismo
do sofrimento faz-se história, sim, mas para, no final, ir desembo-
car na alegria e na beleza.

Bibliografia

– Obras mais presentes na elaboração do texto, para lá das citadas.


Ch. Mauron, Des métaphores obsédantes au mythe personnel.
José Corti, Paris, 1962.
Ch. Durand, Les structures anthropologiques de l’imaginaire.
P.U.F., Paris, 1963
Jacques Maritain, L’intuition créatrice dans l’art et dans la poé-
sie. Desclée de Brouwer, Paris, 1966.

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“A Beleza salvará o mundo” 35

João Mendes, Teoria da literatura. Ed. Verbo, Lisboa, 1980.

Estética literária. Ibid., 1982.

Serge Doubrovsky, Pourquoi la nouvelle critique. Mercure de


France, 1970.

Carlos Bousoño, Teoría de la expresión poética. 7a ed., 2 vols..


Gredos, Madrid, 1985.

George Weigel, Biografía de Juan Pablo II – Testigo de espe-


ranza. Trad. de Patricia Antón, Jofre Homedes y Elvira
Heredia. Plaza & Janés, Barcelona, 1999.

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