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we aN ye Benedict Anderson Publicado em 1983, Comunidades imaginadas logo se tornou um estu- do classico sobre o nacionalismo. Neste livro notdvel, Benedict An- derson desfaz boa parte dos lugares- -comuns a respeito do tema: longe de se confundir com o racismo ou o fascismo, longe de ser uma sin- drome patoldgica, que faz mé figu- radiante das promessas da globali- zac3o, 0 sentimento nacional tem uma histéria rica e contraditori Como marxista de formagio e dono de um olhar escolado na ob- servacio do Sudeste Asiatico, Ander- son volta-se menos para a instituigao dos estados nacionais e mais paraa ascensio do sentimento nacional. Dai a nocao de comunidades imaginadas —e nao meramente imagindrias —, porque, mais do que simplesmen- te denunciar-lhe as limitacGes e pre- conceitos, Anderson quer examinar como 0 nacionalismo capta e expres- sa anseios e esperancas reais, nas- cidos no calor do conflito social. Para tanto, Anderson mostra co- mo o nacionalismo tem uma histé- ria moderna, que o distingue das antigas comunidades religiosas ou dinasticas, e um curso excéntrico, que comeca com as independén- cias republicanas nas Américas, ga- nha viés dindstico no Velho Mundo e dai, j4 no século XX, passa a0 idedrio dos muitos movimentos de libertacdo na Asia e na Africa. ‘A cada uma dessas passagens, os fatos histéricos vao se transfor- mando em modelos de aco ¢ ima- ginagdo, em que se acomodam, bem ou mal, demandas e elemen- tos novos, as vezes contraditérios. COMUNIDADES IMAGINADAS BENEDICT ANDERSON Comunidades imaginadas Reflexées sobre a origem ea difusao do nacionalismo Tradugao Denise Bottman 3 reimpressio ToMPANHIA = TETRAS (Copyright © Benedict Anderson, 1983, 1991 Grafia atualizada segundo 0 Acordo Ortogréfico da Lingua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2008. Titulo original Imagined communities: reflections on the origin and spread of nationalism Capa Mariana Newlands Foto de capa ‘Todos os esforgos foram feitos para determinar a origem da imagem de capa, tere- ‘mos prazer em creditar a fonte, caso se manifeste. Preparagao Gissela Mate Indice remissivo Luciano Marchiori Revisao Marise S. Leal Valqutria Della Pozza Dados inernaionss de Catlogaeto na Publicasto (ct) (Camara Besilera do Lier, Bras) Anderson Benedict (Comunidades imapinadas:reflexoes sobre « orgem € 2 Aifwsto do nacionaimo / Benedict Anderton stradugto Denise Borman. — Sto Paulo: Companhia das Ltrs, 2008, ‘Title origina: Imagined communities: reflections onthe and spread of naonalism ibiograi ‘5SN97R-S 359.118 em an0 54 Indic para catogo sister LU Nacloralsma: Cine pola 3204 (2013) Todos os direitos desta edigo reservados & EDITORA SCHWARCZS.A. Rua Bandeira Paulista 702 ¢j. 32 04532-002 — Sao Paulo—sP Telefone (11) 3707-3500 Fax (11) 3707-3501 www.companhiadasletras.com.br www.blogdacompanhia.com.br A minha mae ea Tantiette, com amor e gratidao Aquisicao: COMER A FE, * 6 AE RS Biblioteca: UNIRI or LIRARIN sac kth S300. ° 39590) 135026 - A3/03] 2015 BSCLA IL T, af 4 FAPERJ Editl n.2_45 /20.42 Ele considera sua tarefa escovar a historia a contrapelo. Walter Benjamin, lluminagoes Entao de uma Mistura de todo tipo se ‘fez Aquela Coisa Heterogenea, Um Inglés: Em ansioso estupro e furiosa luxtiria gerado Entre um escocés e um bretao pintalgado: Cuja prole fértil depressa aprendeu ase curvar, E.ao arado romano as suas novilhas subjugar: De onde uma Raga hibrida Mestica surgiu entao, Sem Fala nem Fama, nem Nome ou Nagao. Eagora Mesclas de Saxo e Dinamarqués logo Surgiram infundidas nas suas Veias de fogo. Enquanto as suas Filhas de Escol, seguindo os Pais, Com Promiscua Luxtiria as Nacées se davam sem mais. Essa Raga Nauseante continha mesmo, sem hesitagao, O Sangue dos Ingleses de boa extragfo... Daniel Defoe, The true-born Englishman Sumario Apresentacao: Imaginar é dificil (porém necessério) ..... Prefacio a segunda edigao Agradecimentos . Introdugdo... . |, Raizes culturais ... 2. As origens da consciéncia nacional 3. Pioneiros crioulos 4.Velhas Iinguas, novos modelos .........2.-006.e008 5. Imperialismo e nacionalismo oficial 6.A ultima onda 7, Patriotismo e€racisMO ... 6.6... eee e eee eee eee 8.Oanjodahistoria . 9.Censo, mapa, museu . 10. Mem6riaeesquecimento ........... se serene eee Posfécio Bibliografia .. . Indice remissivo 226 Imaginar é dificil (porém necessdrio) F possivel dizer que nacdes nao possuem data de nascimento identificada num registro oficial e quea morte delas, quando ocor- fe, nunca tem uma causa “natural”. Como disse certa vez o histo- tlador Fernand Braudel, acontecimentos como esses sdo poeira: clea utravessam a historia como breves lampejos; mal nascem e jé tetornum a noite e amitide ao esquecimento. E foi em torno dessas verdadeiras politicas coletivas — as nucionalidades — marcadas por algumas lembrancas e muitos emjuecimentos que se debrucou Benedict Anderson: um grande eapecialista na politica e na histéria da Indonésia e do Sudeste Anidtico, Professor emérito da Universidade de Cornell, Benedict nasceu em Kunning, na China, filho de pai de nacionalidade anglo-irlandesa e de mae inglesa. Ele e seu irmao Perry — o famo- ao historiador marxista — foram educados na Inglaterra, tendo Nenedict estudado na Universidade de Cambridge, onde comple- Jou sua formagao. Nao hé evento social que seja totalmente imune a histéria, iax 0 abjeto deste livro — o nacionalismo — é particularmente afeito a este tipo de abordagem que questiona a sincronia ea falta de temporalidade. No entanto, se a discussao ¢ antiga e marcada por interpretacées tradicionais, j4 o argumento de Benedict Anderson € claro e, apesar de amplamente pautado nos exemplos da 4rea politico-geografica de especialidade dele, permite uma reflexao ampla e que acomoda diferentes locais e contextos. O autor se op6e a argumentos consagrados, como os do socidlogo e filésofo liberal Ernest Gellner — que vinculou o nacionalismo ao industrialismo europeu ocidental — ou o do historiador conser- vador Elie Kedourie, 0 qual ligou o nacionalismo @ Ilustracao, a Revolucdo Francesa e ao nascimento do Estado francés. Anderson também discordou da andlise marxista de Eric Hobsbawm, eapos- tou suas fichas em algumas ideias centrais: a importancia do papel daimprensa edo fenémeno que ele denomina de“capitalismo edi- torial”, e a novidade da “vernaculizagao” por oposicao a antiga hegemonia do latim. O resultado é um livro inquietante, que desafia conceitos faceis como a ideia de “invencao”, esse termo que vem sendo casti- gado e utilizado em excesso pela historiografia, de uma maneira geral. Mais que inventadas, nacées sao “imaginadas”, no sentido de que fazem sentido para a “alma” e constituem objetos de desejos e projegdes. Benedict Anderson mostra como 0 nacionalismo, ao contrdrio do modelo marxista, que privilegia a esfera da “emissao” eentende a politica como exercicio exclusivo dos mandatérios e poderosos, possui uma legitimidade emocional profunda; pauta- -se pela ideia de que é preciso fazer do novo, antigo, bem como encontrar naturalidade num passado que, na maioria das vezes, além de recente nao passa de uma selecao, com frequéncia cons- ciente. Essas “amnésias do nacionalismo” sao devidamente anali- sadas tedrica e empiricamente pelo autor, que lanca mao de um. leque variadissimo de exemplos que nao se limita a um local ou temporalidade. Com isso, fica facil acompanhar o argumento do 10 \istoriador, que mostra como a condicao de na¢ao (nation-ness) é « valor de maior legitimidade universal na vida politica moderna «ac tornou “modular”, no sentido de que pode ser transplantado e traduzido, com diversos graus de autoconsciéncia e oficialidade. (Comunidades imaginadas foi publicado pela primeira vez em 1¥H.§ c ganhou outras edi¢ées e até dois capitulos, quase uma déca- du depois, sendo que estes ultimos funcionam como apéndices independentes (¢ estao inclufdos nesta nova edi¢ao brasileira). O livre foi ainda traduzido para um nmero espantoso de idiomas, tevelundo como a discussao proposta pelo autor nao é prisioneira «de determinado contexto ou temporalidade. Se um dos objetivos de Atulerson foi “deseuropeizar” o estudo teérico do nacionalismo, act ntuicesso 6 evidente. Publicado originalmente,e simultaneamen- te, om Londres e em Nova York, 0 livro logo se converteu em biblio- yratla obrigatéria, sobretudo nos cursos sobre nacionalismo. Mas Comunidades imaginadas nao ficaria restrito aos paises «le tradigao inglesa. Foi editado no Japao, na Alemanha, no Brasil (pela primeira vez em 1989), ganhou traducao servo-croata, co- ‘wana, mexicana, turca, isso sem esquecermos outros paises euro- pi vertido para o sueco, o holandés, o noruegués, o francés, « ttaliano, o grego e o polonés. Por fim, em 1990 a obra entrou numa lista dos cem livros mais significativos (e de publicacao recente) na drea de histéria e ciéncias sociais, e recebeu tradugGes para o biilgaro, o esloveno, o russo, o romeno € o lituano. Depois «le 1998 o livro seria editado, ainda, em Taipei, Tel-Aviv e no Cairo, além de ganhar versao catala e portuguesa. Como se vé, Comunidades imaginadas correu mundo, e sua tevepgdo revelou-se das mais promissoras. Afinal, longe da defini- 4a “exsencial” de nacao (como se a mesma contivesse elementos enlaveis ¢ naturais), afastado da versao exclusivamente maquiavé- Nica (que supde um controle absoluto dos governos na conforma- ao dos Estados-na¢ao), Anderson mostrou de que maneira a " nacdo é— dentro de um espirito antropolégico — uma comuni- dade politica imaginada; quase uma questao de parentesco ou reli giao. Nesse sentido, ela é tao limitada como soberana, na medida em que inventa ao mesmo tempo em que mascara. Nao ha, portan- to, comunidades “verdadeiras”, pois qualquer uma é sempre ima- ginadae naose legitima pela oposicao falsidade/autenticidade. Na verdade, o que as distingue € 0 “estilo” como sdo imaginadas e os recursos de que lancam mao. Uma naco é limitada, uma vez que apresenta fronteiras fini- tas e nenhuma se imagina como extensao tinica da humanidade. Contudo, é também soberana, j4 que o nacionalismo nasce exata- mente num momento em que o Iluminismo e a Revolucio esta- vam destruindo a legitimidade dos reinos dindsticos e de ordem divina. Por fim, nagdes so imaginadas como comunidades na medida em que, independentemente das hierarquiase desigualda- des efetivamente existentes, elas sempre se concebem como estru- turas de camaradagem horizontal. Estabelece-se a ideia de um “nds” coletivo, irmanando relacées em tudo distintas. Segundo Benedict Anderson, com o declinio das comunida- des, linguas e linhagens sagradas — isto €, com o fim crescente dos sistemas divinos e religiosos modos de “aprender 0 mundo” e que possibilitam “pensar a na¢ao”. Além do mais, influenciado por Walter Benjamin, o autor mostra como os discursos da nacionalidade sao caracterizados pela nogao de simultaneidade, que inaugura uma ideia de tempo vazio e homogéneo. Abolem-se divisdes cronolégicas claras, e em seu lugar se estabelecem regimes de temporalidade que jogam para aesfera do mito 0 passado e os momentos de fundacio. Eporisso que o romance eo jornal proporcionariam os meios técnicos ideais para “re-presentar”o tipo de comunidade imagina- daa que corresponde uma nagao. A{ estaria o fenémeno do capita- lismo editorial, tao bem analisado por Benedict, o qual demonstra , ocorrem transformacées nos como € por meio do material impresso que a nagdo se converte numa comunidade s6lida, recorrendo constantemente a uma historia previamente selecionada. O jornal, que introduz noti- cias de locais distintos em tempos variados — mas pressupde sempre a ideia de contiguidade —, constituiria elemento recor- rente nas praticas nacionais modernas. Por outro lado, como também concluiu Edward Said, os romances de fundagao acaba- riam por se apresentar como elementos destacados na constru- gio coletiva de um passado e de um “nés” comum e identificado. A partir deles se daria uma espécie de confirmacao hipnotica da solidez de uma comunidade, a qual naturaliza a historia e o pr6- prio tempo. Assim, é possivel imaginar nagdes quando uma determinada lingua escrita se converte em um acesso privilegiado para a cons- trucdo de verdades ontoldgicas. Nesse sentido, a lingua cumpre papel fundamental quando permite a unificacao da leitura, a manutengao do suposto de uma antiguidade essencial, e, sobretu- do, a partir do momento em que se torna oficial. Fica assim mon- tado 0 cendrio para a nagao moderna, que nascia da convergéncia ersida- do capitalismo e da tecnologia da imprensa sobre a fatal de da linguagem humana. Por outro lado, a histria— ou melhor, uma certa concatenacao “natural” e irreversivel de fatos — levou os eventos vividos por diferentes testemunhas e analistas a se transformarem em “coisas” e com nome proprio. Esse é 0 caso, por exemplo, da Revolugao Francesa, cuja experiéncia foi modelada pela pagina impressa, afirmando-se, hoje em dia, como um con- ceito definidor da modernidade ocidental; nos termos de Ander- son, um “conjunto de na¢ées imaginadas”. Benedict destréi, pois, com suas anilises realidades politicas bem constitufdas em nosso imaginério, como a “antiga” {ndia, a “aristocrdtica” Inglaterra ou a “longinqua” Suica. Nada sobrevive a seu olhar, atento a“naturalizagao” de realidades imaginadas. A nogao B unificada de indonésio, 0 conceito de negritude, a realidade politica hoje conhecida como Indochina: tudo surge sob nova luz partir de uma lente que desfoca identidades que parecem homogéneas e esta- bilizadas e demonstra como estas podem ser hibridas. Com efeito, o que este livro comprova, a exaustao, € 0 processo como se constroem solidariedades e como, a partir do momento em quea nagao €imagi- nada, ela é, entao, modelada, adaptada e transformada. Mas engana-se aquele que pensa que esse processo € exter- no as populagées estudadas. Anderson mostra o apego que os povos tém as suas imagina¢ées e como sao capazes de morrer por suas invengGes. Os mexicanos retornam a um passado aste- ca ainda que nao falem mais a lingua; os uruguaios selecionam “um her6i indigena’,¢ os suicos recorrem semprea seu “tradicio- nal multilinguismo” quando essa realidade é absolutamente re- cente e data de finais do século xix. Ha todo um imagindrio afe- tuoso, e o que os olhos sdo para quem desejada, a lingua é parao patriota. Por meio da lingua, que conhecemosao nascer e sé per- demos quando morremos, restauram-se passados, produzem- -se companheirismos, assim como se sonham com futuros e destinos bem selecionados. fato & que dizer que as nacées sao inventadas nao resolve problema algum. Como afirma o antropélogo Roy Wagner, nao h4 como nao inventar culturas, do mesmo modo que nao hé como manter as suas patentes intactas: elas ai estao para ser copiadas e modificadas. Conforme provocava Renan, ainda no século xix, as nacoes precisam “oublié bien des choses”, mas isso nao deixando de muito imaginar. O que as torna possiveis é, efetivamente, seu poder de fazer sentido dentro do repertério das nacdese da gramé- tica dos povos. Pensemos nos Estados coloniais e em trés instituigdes funda- mentais no sentido de moldar as imaginagdes: os censos, os mapas os museus. Juntos, como mostra Anderson, eles conformaram 4 profundamentea maneira como o Estado imaginava seu dominio, a natureza dos seres por ele governados e a geografia de seu terri- t6rio (e, portanto, a legitimidade em relagdo ao passado). Juntos, também, eles criaram realidades unificadas, por mais distintas que fossem; categorias raciais claras em territérios onde os grupos se misturavam e fundiam; historias sequenciais e légicas; mapas e fronteiras fixos. Os censos, mais que espelhar, construfram reali- les clarase rigidas, permitindo prever politicas para essas popu- lagées devidamente imaginadas. Os mapas estabeleceram limites, demarcaram espacos e constitu{ram um novo discurso cartogréfi- co capaz de comprovar a vetustez das unidades territoriais. Por fim, ndo se pode descurar da importancia da imaginacéo museo- logica e dos servicos arqueol6gicos coloniais que se conformaram como instituigées de poder e de prestigio. Edificios viraram monumentos, ¢ histérias particulares foram consagradas como nacionais, nos novos museus coloniais. Com essas operacées comuns, e ordenadas, os dados retirados dos censos, dos museus € dos mapas passaram a ser signo puro, e nao mais bussolas do mundo. Ai pode se encontrar a urdidura essencial desse pensa- mento classificatério e totalizante, que transformava datas em eventos, passagens répidas em marcos fundadores nacionai Osexemplos de Benedict Anderson so muitos eincomodam nossas certezas, também pautadas por Iégicas classificatérias. Nem tao antigas sao as nacdes que consideravamos perdidas no tempo, assim como nem tao novo é esse Novo Mundo americano. Comunidades imaginadas — novamente a disposicao do publico brasileiro — nao perdeu a validade. Sua publicagao pode reacender a discussao, sempre presente entre nds, sobre essa nossa nacionalidade tropical e uma identidade invariavelmente definida pela “falta”. Imaginar é, como vimos, selecionar e obliterar, e éinte- ressante pensar como, em meados do século xIx, em pleno Império, nos entendiamos como europeus ou no maximo indige- 5 nas (tupis de preferéncia), isso quando mais de 80% da populagao era constituida de negros e mesticos. Além disso, na representagao oficial “esquecemos” a instituicao escravocrata — espalhada por todo o pais—e exaltamos a natureza provedora dos tr6picos, como se 0 pais fosse feito basicamente da imagem de sua flora exuberan- te. Valea pena lembrar, ainda, o “milagre” operado nos anos 1930, quando a mestigagem de macula se transforma na nossa mais pro- funda redengao. A partir de entao a capoeira e o candomblé vira- riam “nacionais’,do mesmo modo que o sambaeo préprio futebol, o qualera destituido de sua identidade inglesa e se transformava— como em um passe de m4gica— numa marca da brasilidade. NagGes so imaginadas, mas nao ¢ facil imaginar. Nao seima- gina no vazio e com base em nada. Os simbolos sao eficientes quando se afirmam no interior de uma légica comunitéria afetiva de sentidos e quando fazem da lingua e da hist6ria dados“naturais € essenciais”; pouco passiveis de diivida e de questionamento. O uso do “nés”, presente nos hinos nacionais, nos disticos e nas falas oficiais, faz com que o sentimento de pertenga se sobreponha a ideia de individualidade e apague o que existe de “eles” e de dife- renca em qualquer sociedade. S6 assim se entende, por exemplo,o nosso famoso Hino da proclamagao da Repiiblica, o qual, parado- xalmente, nao é nosso Hino nacional. Escrito em 1889, um ano apés a abolicao da escravidao, ele conclamava os brasileiros a can- tar coletivamente: “Nés nem cremos que escravos outrora tenha havido em tao nobre pais...” A escravidao fora abolida havia ape- nas um ano, mas jé virava matéria do passado, assim comoanacio- nalidade, recém-descoberta, era vista como um grande coletivo devidamente naturalizado. Como diz Anderson, os primeiros movimentos latino-ame- ricanos pela independéncia eram de “pouca espessura social”, mas trataram de ganhé-la. Foi assim que nos transformamos no pais do samba e do futebol, e é por eles que morremos ou defendemos a 16 nacionalidade. A ideia da exclusao social e da violéncia é de certa maneira recente em nossos noticirios, e nunca fez parte de nossa “imaginacao nacional”. Enquanto imaginério, “Deus continua inha. A na¢do constr6i tem- pos vazios e homogéneos, e amnésias coletivas fazem parte desse jogo politico, também por aqui, muito bem disputado. brasileiro” e gosta de cachaca e cai Lilia Moritz Schwarcz Professora do Departamento de Antropologia Universidade de Sao Paulo Prefacio 4 segunda edi¢ao Quem haveria de pensar que a tempestade sopra mais forte quanto mais se afasta do Paraiso? Os conflitos armados de 1978-79 na Indochina, que fornece- ram a ocasiao imediata para o texto original de Comunidades ima- ginadas, parecem jé, decorridos apenas doze anos, pertencerauma outra era. Na época, eu estava obcecado com a perspectiva de outras guerras totais entre os estados socialistas. Neste momento, metade desses estados faz parte das ruinas aos pés do Anjo, e 0 res- tante teme seguir o mesmo destino. O que os sobreviventes enfren- tam sao guerras civis. E muito provavel que, no comeco do novo milénio, nao reste muita coisa da Unido das Republicas Socialistas Soviéticas exceto... reptiblicas. Isso deveria ter sido previsto? Em 1983, escrevi que a Unido Soviética era “a herdeira dos estados dinasticos pré-nacionais, mas tumbém a precursora de uma ordem internacionalista no século xxi". Mas, ao rastrear as explosées nacionalistas que destruiram os vastos impérios poliglotas e poliétnicos governados a partir de Viena, Londres, Constantinopla, Paris e Madri, nao vi que o rasti- 19 lho se estendia pelo menos até Moscou. E um triste consolo ver que ahist6ria est4 confirmando a“légica” de Comunidades imaginadas melhor do que o autor conseguiu fazer. Nao foi apenas o mundo que mudou nestes tiltimos doze anos. Oestudo do nacionalismo também se transformou de maneira espantosa — em método, escala, sofisticagao e quantidade. Para ficar apenas na lingua inglesa, Nations before nationalism, de J. A. Armstrong (1982), Nationalism and the state, de John Breuilly (1982), Nations and nationalism, de Ernest Gellner (1983), Social preconditions of national revival in Europe, de Miroslav Hroch (1985), The ethnic origins of nations, de Anthony Smith (1986), Nationalist thought and the colonial world, de P. Chatterjee (1986), € Nations and Nationalism since 1788 [Nagées e nacionalismo desde 1780, Paz e Terra, 1991], de Eric Hobsbawm — para citar apenas alguns dos textos fundamentais —, tornaram, com o seu alcance histérico e forca teérica, em grande medida obsoleta a literatura tra- dicional sobre oassunto. Em parte gracasaessas obras, desenvolveu- -seumaextraordinaria proliferaco de estudos histéricos, literarios, antropolégicos, sociolégicos, feministas e outros, relacionando os objetos desses campos de pesquisa com nacionalismo e nacao.' ‘Adaptar Comunidades imaginadas as exigéncias dessas enor- mes mudangas no mundo e na bibliografia ¢ uma tarefa que ultra- passa minhas condi¢des atuais. Achei melhor, portanto, deixd-lo como uma pega de época, “sem restauracdo”, com o seu proprio estilo, perfil e humor. Duas coisas me consolam. Por um lado, o resultado final completo da marcha dos acontecimentos no antigo mundo socialista continua envolto em obscuridade. Por outro lado, Comunidades imaginadas, com seu método e preocupacées idiossincraticas, ainda me parece & margem dos estudos mais 1. Hobsbawm tevea coragem de concluir,a partir dessa explosao académica,quea era do nacionalismo esté chegando ao fim: a coruja de Minerva voa no anoitecer. 20 recentes sobre o nacionalismo — nesse sentido, pelo menos, ainda nao totalmente superado. O que tentei fazer, na presente edi¢ao, foi simplesmente cor- rigir erros factuais, conceituais e interpretativos que eu deveria ter evitado ao preparara versao original. Essas corregdes— no espiri- to de 1983, por assim dizer — incluem algumas alteragoes da pri- meira edicao e dois novos capitulos, que tém basicamente carter de apendices. No texto principal, descobri dois erros graves de traducdo, pelo menos uma promessa nao cumprida e uma énfase enganosa. Como nao sabia ler espanhol em 1983, confiei irrefletidamente na traducao inglesa de Noli me tangere, de José Rizal, feita por Leon Maria Guerrero, embora existissem tradugdes anteriores. Foi sé em 1990 que descobri como a tradugao de Guerrero era incrivel- mente deturpada. Em citagao longa e importante de Die National- itdtenfrage und die Sozialdemokratie, de Otto Bauer, eu me baseei, por preguiga, na traducdo de Oscar Jészi. Em uma consulta m: recente ao original alemao, vi até que ponto as preferéncias politi- cas de J4szi tingiram suas citacdes. Pelo menos em duas passagens, prometi levianamente explicar por que o nacionalismo brasileiro se desenvolveu tao tarde e de maneira tao idiossincratica em com- paragao ao de outros paises latino-americanos. No presente texto, procuro cumprir a promessa que quebrei. Em meu plano original, pretendia enfatizar as origens do nacionalismo no Novo Mundo. Achava que havia certo provincia- nismo inconsciente deformando e distorcendo, por muito tempo, a teorizagdo sobre o assunto. Os estudiosos europeus, acostuma- dos ideia de que tudo o que hé de importante no mundo moder- ho comecou na Europa, assumiram descuidadamente a “segunda geracao” dos nacionalismos etnolingufsticos (huingaro, tcheco, grego, polonés etc.) como ponto de partida para suas modelagens, fossem estas “contra” ou “a favor” do nacionalismo. Fiquei espan- a tado ao ver, em varios comentarios sobre Comunidades imagina- das, que esse provincianismo eurocéntrico se mantinha inabalado, e que ocapitulo fundamental sobre as origens americanas do nacio- nalismo era em grande parte ignorado. Infelizmente, nao encontrei nenhumasolucio“instantinea” melhor que mudaro titulo docapi- tulo 3 para “Pioneiros crioulos”. Os dois “apéndices” tentam corrigir sérias falhas tericas da primeira edicdo.? Varios criticos amigos tinham comentado que o capitulo 6 (“A tiltima onda”) de Comunidades imaginadas simpli- ficava demais o processo de modelagem dos primeiros nacionalis- mos do Terceiro Mundo. Além disso, o capitulo nao tratava seria mente da questao do papel do estado colonial local (mais que do metropolitano) ao dar um contorno a esses nacionalismos. Ao mesmo tempo percebi, incomodado, que aquilo que eu acreditava ser uma contribuicao significativamente nova para a reflexdo sobre o nacionalismo — as percepgdes cambiantes do tempo — estava claramente sem a sua necess4ria coordenada complemen- tar: as percep¢des cambiantes do espago. A brilhante tese de dou- torado de Thongchai Winichakul, um jovem historiador tailan- dés, me levou a pensar sobre a contribuicao da cartografia para a imaginacdo nacionalista. Assim, “Censo, mapa, museu” analisa como, inconsciente- mente, 0 estado colonial oitocentista (e as politicas fomentadas pelo seu ethos) gerou dialeticamente a gramatica dos nacionalis- mos que acabaram surgindo para combaté-lo. Na verdade, pode- riamos até dizer que o estado imaginou seus adversérios locais, 2.0 primeiro apéndice surgiu a partir de um trabalho realizado para uma confe- réncia que ocorreu em Karachi, em janeiro de 1989, e que foi patrocinada pelo World Institute for Development Economics Research of the United Nations University. Um esbogo do segundo apareceu no Times Literary Supplement de 13 de junho de 1986, soba rubrica de “Narrando a naga 22 como em um sonho profético e agourento, muito antes que eles viessem a existir historicamente. Para a formagao desse modo imaginativo, a quantificagao/serializagao abstrata das pessoas promovida pelo censo, a racionalizacao do espaco politico pro- porcionada pelo mapa e a genealogizacdo profana, “ecuménica’, realizada pelo museu fizeram contribuigées interligadas. A origem do segundo “apéndice” foi o fato humilhante de per- ceber que, em 1983, eu citara Renan sem entender minimamente o que ele realmente dissera: tomei como facilmente irénico 0 que, na verdade, era extremamente bizarro. A humilhagao também me obri- goua reconhecer que eu nao dera nenhuma explicacao inteligivel de como,e por qué, asnacdes emergentes se imaginavam antigas. Aqi lo que na maioria dos textos académicos aparecia como truque maquiavélico, fantasia burguesa ou exumacio da verdade historica de repente me pareceu algo mais profundo e mais interessante. Esea “untiguidade” fosse, em determinado contexto histérico, a conse- quéncia necessdria da“novidade”? Se, conforme eu pensava, o nacio- nalismo era a expresso de uma forma de consciéncia radicalmente transformada, entdo a percepcao desse rompimento e o necessério esquecimento da consciéncia anterior nao teriam de criar sua pr6- pria narrativa? Desse ponto de vista, as fantasias at4vicas proprias de grande parte do pensamento nacionalista apés 0s anos 1820 surgem como epifenémenos; o que realmente importa é 0 alinhamento estrutural da “meméria” nacionalista p6és-1820 com as premissas € convengées internas da biografia e da autobiografia modernas. A parte qualquer mérito ou demérito tedrico que possam ter osdois“apéndices”, cada um tem as suas proprias limitacdes corri- queiras. Os dados para “Censo, mapa, museu” foram totalmente extraidos do Sudeste Asidtico. Em alguns aspectos, essa regiao ofe- rece excelentes oportunidades para uma reflexao comparada, visto «que abrange reas que foram colonizadas por quase todas as grandes poténcias imperiais (Inglaterra, Franca, Holanda, Portugal, 3 Espanhae Estados Unidos), bem como o Sido, uma 4rea que nunca foi colonizada. Mas testa ver se minha anilise, ainda que plausivel para essa regiao, pode ser aplicada de maneira convincente ao redor do mundo. No segundo apéndice, o material vago empirico se refere quase exclusivamente a Europa Ocidental e a0 Novo Mundo, regides sobre as quais o meu conhecimento é absoluta- mente superficial. Mas esse tinha de ser o foco, jé que foi nessas regides que as amnésias do nacionalismo se pronunciaram pela primeira vez. Benedict Anderson Fevereiro de 1991 Agradecimentos Como oleitor poderé notar,a minha reflexao sobre o naciona- lismo foi profundamente influenciada pelos textos de Erich Auer- bach, Walter Benjamin e Victor Turner. Ao preparar o livro, foram de imenso proveito as criticas e sugestées do meu irmao Perry Anderson, de Anthony Barnett e de Steve Heder. J. A. Ballard, Mohamed Chambas, Peter Katzenstein, o finado Rex Mortimer, Francis Mulhern, Tom Nairn, Shiraishi Takashi, Jim Siegel, Laura Summers e Esta Ungar também me ajudaram de forma inestimavel cm varios aspectos. Naturalmente, nenhum desses criticos amigos 6 de mancira alguma responsavel pelas falhas do texto, as quais cabem inteiramente a mim. Talvez seja 0 caso de dizer que minha especialidade, por formacao e profissao, é 0 Sudeste Asiatico. Essa informacao podeajudar aesclarecer alguns enfoquese exemplos do. livro, além de reduzir suas pretensdes globalizantes. 25 Introdugio Talvez, sem que tenha sido muito notada, esteja ocorrendo uma transformagdo fundamental na histéria do marxismoe dos movi- mentos marxistas. Os sinais mais visiveis sao as guerras recentes entre o Vietna, o Camboja e a China. Essas guerras so de impor- tancia histérica mundial por serem as primeiras a acontecer entre regimes com independéncia e credenciais revoluciondrias inques- tiondveis,e também porque nenhum dos beligerantes fez qualquer tentativa que nao fosse extremamente superficial para justificar a carnificina nos termos de uma perspectiva tedrica que se pudesse reconhecer como marxista. Se ainda era poss{vel interpretar os conflitos de fronteira sino-soviéticos de 1969 e as intervencdes militares soviéticas na Alemanha (1953), Hungria (1956), Che- coslovaquia (1968) e Afeganistdo (1980) como — dependendo do gosto —“imperialismo socialista’, “defesa do socialismo” etc., ninguém, imagino eu, acredita seriamente que esses termos pos- sam ter muito cabimento diante do que ocorreu na Indochina. Se a invasdo e a ocupacdo vietnamita do Camboja, em dezembro de 1978 ejaneirode 1979, representarama primeira guerra convencio- 26 nalem grande escala de um regime marxista revoluciondrio contra outro,'a investida da China no Vietna, em fevereiro, logo confir- mou o precedente. Apenas alguém muito crédulo se atreveria a upostar que, nesses tiltimos anos do século xx, alguma eclosao sig- nificativa de hostilidade entre Estados haverd de encontrar a Unido Soviética ea Republica Popular da China — sem falar dos estados xocialistas menores — se apoiando ou lutando do mesmo lado. (Quem pode ter certeza de que a lugoslvia ea Albania nao irdo se digladiar algum dia? Esses grupos heterogéneos que pedem a reti- ruda dos acampamentos do Exército Vermelho da Europa Orien- tal deveriam lembrar 0 quanto a presenca esmagadora dessas forcas vem, desde 1945, impedindo o conflito armado entre os regimes marxistas da regiao. Essas observacées servem para ressaltar 0 fato de que, desde « Segunda Guerra Mundial, todas as revolucoes vitoriosas se defi- niram em termos nacionais — a Republica Popular da China, a Repuiblica Socialista do Vietnd e assim por diante — e, com isso, av firmaram solidamente num espaco territorial e social herdado 1 Favothi essa formulagao apenas para ressaltar a escala e o estilo do combate, ¢ tian para atribuir culpas. Para evitar possiveis mal-entendidos, cumpre dizer que 4 invanto de dezembro de 1978 resultou de confrontos armados entre partidarios «lois movimentos revolucionsrios, possivelmente desde 1971. Depois deabril de 1977, 08 ataques nas fronteiras, iniciados pelos cambojanos, mas rapidamen- tw adotadas pelos vietnamitas, aumentaram em tamanho e objetivo, culminando ‘ua grunde incursio do Vietna em dezembro de 1977. Mas nenhum desses ataques pretendia derrubar regimes inimigos ou ocupar grandes territérios, eo nimero «le sokdados envolvidos tampouco se comparava a quantidade de tropas utiliza- «laa em dezembro de 1978. A controvérsia sobre as causas da guerra é apresenta- sla te forma muito ponderada em: Stephen P. Heder, “The kampuchean-vietna- conflict”, in David, W.P. Eliott (org.), The third Indochina conffict,pp.21-67; Anthony Barnett,"“Inter-communist conflictsand Vietnam’, Bulletin ofconcerned Aun wholars, 1:4 (outubro-dezembro 1979), pp.29;¢ Laura Summers, “In mat- teraof war and socialism Anthony Barnett would shame and honour Kampuchea wu much’ ibid., pp. 10-8. 27 do passado pré-revoluciondrio. Inversamente, se a Unido So- viética divide com o Reino Unido da Gra-Bretanha e Irlanda do Norte a rara distingao de néo mencionar nacionalidades em seu nome, isso sugere que ela é nao s6 a herdeira dos estados dindsti- cos pré-nacionais, mas também a precursora de uma ordem internacionalista no século xx1.* Eric Hobsbawm tem plena razao ao afirmar que “os movi- mentos e estados marxistas tm mostrado a tendéncia de se torna- rem nacionais nao sé na forma, mas também no contetido, ou seja, nacionalistas. Nada sugere que essa corrente nao haver4 de conti- nuar”.’ E essa tendéncia nao se restringe ao-mundo socialista. As Nagées Unidas admitem novos membros praticamente todos os anos. E muitas “nagdes antigas”, tidas como plenamente consoli- dadas, veem-se desafiadas por “sub”-nacionalismos em seu pré- prio territério — nacionalismos estes, claro, que sonham com algum futuro feliz, livres dessa condi¢ao de “sub”. A realidade é muito simples: nao se enxerga, nem remotamente, o “fim daera do nacionalismo”, que por tanto tempo foi profetizado. Na verdade, a condigao nacional [nation-ness] € 0 valor de maior legitimidade universal na vida politica dos nossos tempos. Mas, se os fatos sao claros, a explicagio deles continua sendo objeto de uma longa discussao. Nacao, nacionalidade, nacionalis- mo—todos provaram ser de dificilima definicao, que dird de and- lise. Em contraste com a enorme influéncia do nacionalismo sobre o mundo moderno, é notavel a escassez de teorias plausiveis sobre ele. Hugh Seton-Watson, autor do que é de longeo melhor eo mais 2. Quem tiver alguma divida sobre as pretensdes do Reino Unido quanto a essa paridade com a Unido Sovietica que se pergunte: qual a nacionalidade designada pelo seu nome? Gra-Brito-Irlandesa? 3. Eric Hobsbawm, “Some reflections on “The break-up of Britain”, New Left Review, 105 (setembro-outubro 1977), p. 13. 28 ubrangente texto em lingua inglesa sobre nacionalismo, ¢ herdeiro dle uma vasta tradigao liberal de historiografia e ciéncias sociais, observa com pesar: “Assim eu sou levado a concluir que nao é pos- sivel elaborar nenhuma ‘definicao cientifica’ de na¢4o; mas o fen6- meno existiu e continua a existir”.Tom Nairn, autor do inovador ‘The Break-up of Britain, e herdeiro de uma tradicao quase tao vasta dec historiografia e ciéncias sociais marxistas, declara com a maior ninceridade: “A teoria do nacionalismo representa a grande falha histarica do marxismo”.’ Mas mesmo esse reconhecimento é um tanto enganador, pois pode-se entendé-lo como se estivesse refe- rindo-se ao deploravel resultado de uma longa e deliberada busca ie clareza teérica. Seria mais correto dizer que o nacionalismo demonstrou ser uma anomalia incémoda paraa teoria marxistae, justamente por isso, preferiu-se evita-lo, em vez de enfrenté-lo. De que outra maneira se explicaria por que Marx nao esclareceu 0 pronome possessivo crucial na sua memordvel formulacao de 1448: “O proletariado de cada pais deve, naturalmente, ajustar contas antes de mais nada com a sua propria burguesia?”* De que outru maneira, também, se explicaria por que o conceito de “bur- xuesia nacional” foi utilizado por mais de um século sem nenhuma tentativa séria de justificar teoricamentea pertinéncia do adjetivo? Por que essa segmentagao da burguesia — uma classe mundial, na medida em que é definida pelas relaces de producao — tem importancia tedrica? Este livro pretende oferecer,a titulo de ensaio, algumas ideias 4. Vero livro Nations and states, p.5.Grifo meu. + Ver o artigo “The modern Janus’, New Left Review, 94 (novembro-dezembro 1975), p. 3. Este ensaio foi incluido sem alteragdes no livro The break-up of Nestuin, como capitulo 9 (pp. 329-63). 6, Karl Marx ¢ Friedrich Engels, The communist manifesto, in Selected works, 1, p45. Grifo meu. Em qualquer exegese teérica, a palavra “naturalmente” deveria vender uma luzinha vermelha de alerta para o leitor entusiasmado. 29 para uma interpreta¢do mais satisfatéria da “anomalia” do nacio- nalismo. A minha impressao é que tanto a teoria marxista quanto a liberal se estiolaram num derradeiro esforo ptolemaico de “sal- var os fendmenos”. Creio haver uma necessidade urgente de se reo- rientar a perspectiva dentro de um espirito, por assim dizer, coper- nicano. O meu ponto de partida é que tanto a nacionalidade — ou, como talvez se prefira dizer, devido aos multiplos significados desse termo, a condigao nacional [nation-ness] — quanto 0 nacio- nalismo sao produtos culturais especificos. Para bem entendé-los, temos de considerar, com cuidado, suas origens histéricas, de que maneiras seus significados se transformaram ao longo do tempo, e por que dispdem, nos dias de hoje, de uma legitimidade emocio- nal tao profunda. Tentarei mostrar que a criacdo desses produtos, no final do século xvi, foi uma destilacao espontanea do “cruza- mento” complexo de diferentes forcas histéricas. No entanto, depois de criados, esses produtos se tornaram “modulares’, capa- zes de serem transplantados com diversos graus de autoconscién- cia para uma grande variedade de terrenos sociais, para se incor- porarem e serem incorporados a uma variedade igualmente grande de constelacdes politicas e ideol6gicas. Tentarei mostrar também por que esses produtos culturais especificos despertaram apego t4o profundo. 7.Comonota Aira Kemilainen, os dois “pais fundadores” dos estudos académicos sobre o nacionalismo, Hans Kohn e Carleton Hayes, defenderam essa datacao de ‘maneira muito convincente, A meu ver, suas conclusdesndo chegaram a ser obje- to de sérios debates, ano ser por ide6logos nacionalistas em determinados paf- ses. Kemilainen também observa que 0 uso do termo “nacionalismo” generali- zou-se no final do século xix. Nao aparecia, por exemplo, em muitos dicionarios oitocentistas correntes, Se Adam Smith invocoua riqueza das “nagbes” foi parase referir apenas a “sociedades” ou “estados”. Aira Kemildinen, Nationalism, pp. 10, 3348-9. 30 GONCEITOS B DEFINIGOES Antes de encaminhar as questées levantadas anteriormente, seria aconselhavel avaliar rapidamente 0 conceito de“na¢ao” e ofere- cer uma definicdo operacional. £ frequente a perplexidade, para ndo dizer irritag4o, dos tedricos do nacionalismo diante destes trés para- dloxos: (1) A modernidade objetiva das nagées aos olhos do historia- dor versus sua antiguidade subjetiva aos olhos dos nacionalistas. (2) A universalidade formal da nacionalidade como conceito sociocultural no mundo moderno, todos podem, devem ¢ hao de “ter” uma nucionalidade, assim como “tém” este ou aquele sexo — versus a par- ticularidade irremedidvel das suas manifestagSes concretas, de modo «ue a nacionalidade “grega” é, por definicao, sui generis. (3) O poder “politico” dos nacionalismos versus a sua pobreza e até sua incoerén- cin filos6fica. Em outras palavras, o nacionalismo, ao contrario da maioria dos outros “ismos”, nunca gerou grandes pensadores pr6- prios: nenhum Hobbes, Tocqueville, Marx ou Weber. Esse “vazio” cria certacondescendéncia entreos intelectuais cosmopolitase poliglotas. Alguém pode logo concluir, como Gertrude Stein diante de Oakland, «que ndo hd “nenhum ali ali” [no there there]. £ exemplar que até um estudioso tao simpatico ao nacionalismo quanto Tom Nairn possa, mesmo assim, escrever que:“O ‘nacionalismo’ é a patologia da hist6- rin do desenvolvimento modemo, tao inevitavel quantoa‘neurose’no Individuo,e que guarda muito da mesma ambiguidade de esséncia,da tendéncia interna de cair na loucura, enraizada nos dilemas do desamparo impostoa maior parte do mundo (oequivalente do infan- tilismo para as sociedades), sendo em larga medida incuravel”.* A dificuldade, em parte, consiste na tendéncia inconsciente que as pessoas tém de hipostasiar a existéncia do nacionalismo- com-N-maitisculo (como se alguém pudesse terumaIdade-com- A. The break-up of Britain, p.359. 3 -I-maitisculo) e, entao, de classificé-“lo” como uma ideologia. (Nota-se que, se todos tém uma certa idade, a Idade é apenas uma expresso analitica.) Penso que valeria a pena tratar tal conceito do mesmo modo que se trata o “parentesco” e a “religiao”, em vez de colocé-lo ao lado do “liberalismo” ou do “fascismo”. Assim, dentro de um espirito antropolégico, proponho a se- guinte definicao de nacao: uma comunidade politica imaginada — e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo. tempo, soberana. Ela € imaginada porque mesmo os membros da mais mints- cula das nagGes jamais conhecerao, encontrarao ou nem sequer ouvirao falar da maioria de seus companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva da comunhio entre eles.” Era a essa imagem que Renan se referia quando escreveu, com seu jeito levemente irdnico: “Or "essence d’une nation est que tous les indi- vidusaient beaucoup de choses en commun, et aussi que tousaient oublié bien des choses” [Ora, a esséncia de uma na¢do consiste em que todos os individuos tenham muitas coisas em comum, e tam- bém que todos tenham esquecido muitas coisas]. Gellner diz algo parecido quando decreta, com certa ferocidade, que “o naciona- lismo nao é o despertar das nacées para a autoconst inventa nacoes onde elas nao existem’."' Mas o inconveniente dessa ncia: ele 9..CE. Seton-Watson, Nations and states, p. 5:"A Gnica coisa que posso dizer € que ‘uma nagdo existe quando pessoas em niimero significativo de uma comunidade se consideram formando uma nagdo, ou se comportam como se formassem ‘uma’ Podemos traduzir“se consideram” por “se imaginam”, 10, Ernest Renan, “Qu’est-ce qu'une nation?” in Oeuvres completes, 1, p. 892. E acrescenta: “tout citoyen francais doit avoir oublié la Saint-Barthélemy, les mas- sacres du Midi au xite sidcl. Il n'y a pas en France dix familles qui puissent four- nirla preuve d'une origine franque...” [todo cidadao francés deve ter esquecidoa noite de Sao Bartolomeu, os massacres do Sul no século xn. Nao existem na Franca dez familias que possam oferecer provas de uma origem franca...) 11, Ernest Gellner, Thought and change, p. 169.Grifo meu. 32 lormulagao é que Gellner estd tao aflito para mostrar que o nacio- talismo se mascara sob falsas aparéncias, que ele identifica “inven- (@o” com “contrafagao” e “falsidade”, e néo com “imaginacao” e “criagao”. Assim, ele sugere, implicitamente, que existem comu: dudes" verdadeiras” que, num cotejo comas nacées, se mostrariam melhores. Na verdade, qualquer comunidade maior que a aldeia primordial do contato face a face (e talvez mesmo ela) é imagina- da, As comunidades se distinguem nao por sua falsidade/autenti cidade, mas pelo estilo em que sao imaginadas. Os aldedes javane- sen sempre souberam que esto ligados a pessoas que nunca s lacos eram, antigamente, imaginados de maneira parti- cularista — como redes de parentesco e clientela passiveis de m, mas es extensdo indeterminada. Até tempos bem recentes, o idioma java- ués ndo tinha nenhuma palavra que designasse a abstragao “socie- dade”, Hoje em dia, podemos pensar na aristocracia francesa do ancien régime como uma classe, mas certamente ela s6 foi imagi- nuda dessa maneira em época bastante adiantada."* Diante da per- qunta: “Quem € 0 conde de X?”, a resposta normal nao seria “um membro da aristocracia’, e sim “o senhor de X’, “o tio da baronesa ile Y" ou “um cliente do duque de Z”. Imagina-se a nacao limitada porque mesmo a maior delas, {Jue agregue, digamos, um bilhao de habitantes, possui fronteiras finitus, ainda que eldsticas, para além das quais existem outras hagdes, Nenhuma delas imagina ter a mesma extensdo da humani- dude, Nem os nacionalistas mais messianicos sonham com o dia em que todos os membros da espécie humana se unirdo a sua 1» Hobsbawm, por exemple, “fixa” a aristocracia como classe ao dizer que, em 1789, clu consistia em cerca de 400 mil pessoas numa populacao de 23 milhoes. (Ver w weu livro The Age of Revolution, p. 78 [A era das revolugées, Europa 1789- N44, Par e'Terra, 1977].) Mas esse quadro estatistico da nobreza seria imagi wl oh 0 ancien régime? 3B nag4o, como por exemplo na época em que os cristaos podiam sonhar com um planeta totalmente cristdo. Imagina-se a nacao soberana porque o conceito nasceu na época em que o Iluminismo e a Revolucdo estavam destruindo a legitimidade do reino dindstico hierarquico de ordem divina. Amadurecendo numa fase da historia humana em que mesmo os adeptos mais fervorosos de qualquer religido universal se defron- tavam inevitavelmente com o pluralismo vivo dessas religides e com o alomorfismo entre as pretensdes ontoldgicas e a extensdo territorial de cada credo, as nagdes sonham em ser livres — e, quando sob dominacao divina, esto diretamente sob Sua égide. A garantia e o emblema dessa liberdade é 0 Estado Soberano. E, por tiltimo, ela é imaginada como uma comunidade por- que, independentemente da desigualdade e da exploracao efetivas que possam existir dentro dela, a nacdo sempre é concebida como uma profunda camaradagem horizontal. No fundo, foi essa frater- nidade que tornou possivel, nestes dois tiltimos séculos, que tan- tos milhGes de pessoas tenham-se disposto nao tanto a matar, mas sobretudo a morrer por essas criagdes imaginérias limitadas. Essas mortes nos colocam bruscamente diante do problema central posto pelo nacionalismo:o que faz.com queas parcas criagdes imaginativas da historia recente (pouco mais de dois séculos) gerem sacrificios tio descomunais? Creio que encontraremos 0s primeiros contornos de uma resposta nas raizes culturais do nacionalismo. 34 1, Raizes culturais Nao existem simbolos mais impressionantes da cultura mo- derna do nacionalismo do que os cenotéfios e tumulos dos solda- sl desconhecidos.O respeito a ceriménias publicas em que se reve- tencinm e: urque ninguém sabe quem jaz dentro deles, nao encontra nenhum paralelo verdadeiro no passado:' Para sentir a forca dessa mudernidade, basta imaginar a reacdo geral diante do sujeito monumentos, justamente porque estao vazios ou intiometido que “descobre” o nome do soldado desconhecido ou que insiste em colocar alguns ossos de verdade dentro do cenoté- liu, Extranho sacrilégio contemporaneo! E, no entanto, esses ‘ummutos sem almas imortais nem restos mortais identificaveis ientro deles esto carregados de imagens nacionais espectrais.’ (E 1 UIngiegonuntigos tinham cenotéfios, mas para individuos especificos, de iden- stale conhecida, € cujos corpos, por uma razio ou outra, nao puderam receber normal, Devoesta informacaoa minha colega Judith Herrin, estudio- sale Hizancio, ailerem| csporexemplo,essas notaveis expressOes:a.“Osirmaos de armas laltaram, Seo fizessem, um milhao de espectros em verde-oliva pardo, 35 por isso que tantas nagées diferentes tém esses tamulos sem sentir nenhuma necessidade de especificar a nacionalidade de seus ocu- pantes ausentes. O que mais poderiam ser, salvo alemaes, america- nos, argentinos etc.?) O significado cultural desses monumentos ficard ainda mais claro se tentarmos imaginar, por exemplo, um timulo do“marxis- ta desconhecido” ou um cenotéfio para os “liberais tombados em combate”. Nao seria um absurdo? O marxismo e o liberalismo nao se importam muito coma morte ea imortalidade. Se o imaginario nacionalista se importa tanto com elas, isso sugere sua grande afi- nidade com os imaginérios religiosos. Como essa afinidade nada tem de fortuito, talvez valha a pena iniciar uma avaliacao das rai- zes culturais do nacionalismo pela morte, o ultimo elemento de uma série de fatalidades. Amaneira de um homem morrer geralmente parece arbitra- ria, mas sua mortalidade é inevitavel. As vidas humanas estéo cheias dessas combina¢Ges entre acaso e necessidade. Todos sabe- mos que nossa heranca genética pessoal, nosso sexo, a época em que vivemos, nossas capacidades fisicas, Iingua materna, ¢ assim por diante, so fatores contingentes e inelutaveis. O grande méri- to das concep¢oes religiosas tradicionais (o qual, naturalmente, nao deve ser confundido com o papel delas na legi ago de sis- céqui, marrom, azul e cinza, se levantariam de suas lépides brancas trovejando essas palavras magicas: Dever, honra, patria”; b. “O meu juizo (sobre o soldado americano] se formou no campo de batalha ha muitos e muitos anos,e nunca se modificou. Eu via entdo, como o vejo agora, como uma das figuras mais nobres, do mundo; no s6 como uma das personalidades militares mais seletas, mas tam- bémcomo uma das maisimaculadas | sic]... Elepertencea hist6ria por dar um dos maiores exemplos de patriotismo vitorioso [sic]. Ele pertence a posteridade como instrutor de geracbes futuras nos principios da liberdade e independéncia. Ele pertence ao presente, a nés, por suas virtudes e realizagoes”. Douglas MacArthur, “Duty, Honour, Country’, discurso para a Academia Militar Ameri- cana, West Point, 12 de maio de 1962, em seu “A soldier speaks’, pp. 354 € 357. 36 temas espectficos dedominacao e exploracao) éa sua preocupagao vam o homem-no-universo, o homem enquanto espécie e contin- wéncia da vida. A extraordindria sobrevivéncia do budismo, do cristia ismo ou do islamismo ao longo de milénios, e em dezenas le formagées sociais diferentes, comprova uma capacidade de res- posta imaginativa ao tremendo peso do sofrimento humano —a doenga, a mutilacao, a dor, a velhice, a morte. Por que nasci cego? Por que o meu melhor amigo ficou paralitico? Por que a minha irma ¢ retardada? As religides tentam explicar. O grande ponto Iraco de todos os estilos de pensamento evolucionarios/progressi- vos, incluindo o marxismo, é que eles respondem a essas pergun- tax com um siléncio impaciente.’ Ao mesmo tempo, e de diversas maneiras, 0 pensamento religioso também da respostas sobre as ubscuras insinuagées de imortalidade, geralmente transformando a fatulidade em continuidade (karma, pecado original etc.).Assim, « religiao se interessa pelos vinculos entre os mortos e os ainda nor idos, pelo mistério da re-generacao. Quem vive a concep- so © 0 nascimento do sew proprio filho sem apreender difusa- mente uma mescla de ligagao, acaso ¢ necessidade em linguagem «le“continuidade”? (Aqui, de novo, a desvantagem do pensamen- \ C1. Régis Debray, “Marxism and the national question”, New Left Review, 105 (actembro-outubro 1977),p.29. Durante o meu trabalho de campo na Indonésia, ‘nw década de 1960, fiquei chocado com a tranquila negativa de muitos muculma- tm accitaras ideias de Darwin, No comego, interpretei essa negativa como obs- dnmo. Depois vi que era uma tentativalouvavel de manter a coeréncia:a dou- a evolugao era simplesmente incompativel com os ensinamentos doisla. 0 «que lnzer com um materialismo cientifico que aceita formalmente as descobertas sla ais asobrea matéria, mas quese empenha tao poucoem vincular taisdescober- Jasa luta de classes, revolucdo ou ao que for? Serd que o abismo entre os prétons ¢ 1» proletarindo nao oculta uma desconhecida concepgao metafisica do homem? Max veiain-se as interessantes textos de Sebastiano Timpanaro, On materialism ¢ ‘he frewian slip, ea resposta ponderada de Raymond Williams a eles,em“Timpa- ‘nutasa materialist challenge”, New Left Review, 109 (maio-junho 1978), pp. 3-17. 7 to evoluciondrio/progressivo é sua aversdo quase heraclitiana a qualquer ideia de continuidade.) Faco essas observacées talvez simpl6rias principalmente por- que o século xvi, na Europa Ocidental, marca nao sé o amanhecer da era do nacionalismo, mas também 0 anoitecer dos modos de pensamentos religiosos. O século do Iluminismo, do secularismo racionalista, trouxe consigo suas préprias trevas modernas. A fé religiosa declinou, mas o sofrimento que ela ajudava a apaziguar nao desapareceu. A desintegracao do paraiso: nada tornaa fatalida- de mais arbitraria. O absurdo da salva¢ao: nada torna mais neces- sério um outro estilo de continuidade. Entao foi preciso que hou- vesse uma transformagao secular da fatalidade em continuidade, da contingéncia em significado. Como veremos, poucas coisas se mostraram (se mostram) mais adequadas a essa finalidade do que a ideia de nado. Admite-se normalmente que os estados nacionais sao “novos” e “hist6ricos”, a0 passo que as na¢Ges a que eles dao expressao politica sempre assomam de um passado imemorial,'e, 4.0 falecido presidente Sukarno sempre falou com toda a sinceridade sobre os 350 anos de colonialismo a que a sua “Indonésia” fora submetida, embora 0 pré- prio conceito de“Indonésia” seja uma invengao do século xx, e a maior parte do que hoje é 0 pais tenha sido conquistada pelos holandeses apenas entre 1850 1910.0 principal heréi nacional da Indonésia contemporanea é0 principe javanés Diponegoro, do comego do século xix, embora as memérias do principe mos- trem que ele pretendia “conquistar [nao libertar!] Java’,e nao expulsar “os holan- deses”, Na verdade, é evidente que ele nao concebia “os holandeses” como uma coletividade. Ver Harry J. Benda ¢ John A. Larkin (orgs.), The world of Southeast Asia, p. 158; € Ann Kumar, “Diponegoro (1778?-1855)", Indonesia, 13 (abril de 1972),p.103. rifo meu. Analogamente, Kemal Atatiirk deu aos seus bancosesta- taisosnomes Banco Hitita (Eti Banka) e Banco Sumério. (Seton-Watson, Nations and States, p. 259.) Esses bancos so présperos, ¢ nao hé razao para duvidar que muitos turcos, e provavelmente o préprio Kemal, acreditassem seriamente, ¢ ainda acreditem, que os hititas e os sumérios sao seus antepassados turcos. Antes de dar muitas risadas, seria melhor lembrarmos de Artur e Boadicea, ¢ refletir sobre o sucesso comercial das mitografias de Tolkien. 38 imitado. Ea magia do nacionalismo que converte o acaso em destino. Podemos ainda mais importante, seguem rumo a um futuro dizer com Debray: “Sim, é puro acaso que eu tenha nascido francés; mas, afinal, a Franca é eterna”. £ claro que nao estou afirmando que o surgimento do nacio- nalismo no final do século xvut foi “produzido” pelo desgaste das convicgdes religiosas, nem que esse proprio desgaste nao requer uma explicacdo complexa. Também nao estou sugerindo que o nacionalismo tenha, de alguma forma, “substituido” historica- mente a religiao. O que estou propondo é o entendimento do nacionalismo alinhando-o nao a ideologias politicas consciente- mente adotadas, mas aos grandes sistemas culturais que o prece- deram, ea partir dos quais ele surgiu, inclusive para combaté-los. Para nossas finalidades, os dois sistemas culturais pertinentes slo a comunidade religiosa e 0 reino dindstico. Pois ambos, no seu apogeu, foram estruturas de referéncia incontestes, como ocorre tualmente com a nacionalidade. Portanto, é fundamental anali- sar o que conferiu uma plausibilidade autoevidente a esses siste- mas culturais, e ao mesmo tempo destacar alguns elementos- chave na decomposigao deles. MUNIDADE RELIGIOSA Existem poucas coisas mais impressionantes do que a vasta extensdo territorial do Ummah islamico desde 0 Marrocos até 0 urquipélago Sulu, da cristandade desde o Paraguai até 0 Japao,edo ta desde o Sri Lanka atéa peninsula coreana. Asgran- des culturas sacras (e, para nossos objetivos, pode-se incluir também. mundo buc © “confucionismo”) incorporavam a ideia de imensas comunida- des. Mas a cristandade, o Ummah islamico e mesmo 0 Império do ‘entro — que hoje é considerado chinés, mas antes imaginava-se 39 como central — eram imaginados principalmente pelo uso de uma lingua e uma escrita sagradas. Tomemos 0 exemplo do isla: se um maguindanauense encontrasse um berbere em Meca, um des- conhecendo o idioma do outro, incapazes de se comunicar oral- mente, mesmo assim entenderiam os seus caracteres, porque os textos sacros adotados por ambos existiam apenas em drabe cl4s- sico. Nesse sentido, o arabe escrito funcionava como os ideogra- mas chineses, criando uma comunidade a partir dos signos, e ndo dos sons. (Assim, hoje em dia a linguagem matemitica dé prosse- guimento a uma velha tradi¢do. Os romenos nao fazem ideia de como se diz “+” em tailandés, e vice-versa, mas ambos compreen- dem 0 simbolo.) Todas as grandes comunidades classicas se consi- deravam cosmicamente centrais, através de uma lingua sagrada ligada a uma ordem supraterrena de poder. Assim, 0 alcance do latim, do pili, do 4rabe ou do chinés escritos era, teoricamente, ili- mitado. (Na verdade, quanto mais morta é a lingua escrita — quanto mais distante da fala—, melhor: em principio, todos tém acesso a um mundo puro de signos.) Masessas comunidades classicas ligadas por linguas sagradas tinham um cardter diferente das comunidades imaginadas das nagdes modernas. Uma diferen¢a fundamental era a confianga das comunidades mais antigas no sacramentalismo tinico de suas lin- guas, e dai derivamas ideias que tinham sobre a admissao de novos membros. Os mandarins chineses viam com bons olhos os barba- ros que aprendiam a duras penas a pintar os ideogramas do Império do Centro. Esses barbaros jé estavam a meio caminho da plena aceitagao.’ Meio civilizado era muitissimo melhor do que barbaro, Essa atitude certamente nao foi exclusiva dos chineses, nem se restringiu a Antiguidade. Veja, por exemplo, a seguinte s. Daf a tranquilidade com que os mongbis e manchus sinizados foram aceitos como Filhos do Céu. 40 “politica para os barbaros”, formulada pelo liberal colombiano Pedro Fermin de Vargas, do comeco do século xix: Para ampliar a nossa agricultura, seria preciso hispanizar os nossos indios. A preguica, a falta de inteligéncia e a indiferenga deles aos trabalhos normais levam a pensar que eles derivam de uma raga degenerada, que se deteriora conforme se afasta da sua origem |...) seria muito desejavel que os indios se extinguissem através da mis- cigenagdo com os brancos, isentando-os de impostos e outros encargos e concedendo-lhes a propriedade privada da terra.” £, notavel que esse liberal ainda proponha “extinguir” seus indios cm parte “isentando-os de impostos” e “concedendo-Ihes a pro- priedade privada da terra’, em vez de extermind-los com armas de {ogo e micrébios, como logo depois comecaram a fazer seus herdei- ros no Brasil, Argentina e Estados Unidos. Nota-se também, ao lado dessa crueldade com ares condescendentes, o otimismo césmico: av fim eao cabo, 0 indio pode ser redimido — pelaimpregnagio do x¢men branco “civilizado” e pelo acesso a propriedade privada, «wm todos os outros. (Como é diferente a atitude de Fermin em Adiés, Patria adorada, regién del sol querida, Perla del Mar de Oriente, nuestro perdido edén, A darte voy, alegre, la triste mustia vida; Y fuera mds brillante, mas fresca, mds florida, También por tila diera, la diera por tu bien... Entonces nada importa me pongas en olvido: Tu atmésfera, tu espacio, tus valles cruzaré; Vibrante y limpia nota seré par tu ofdo; 2.Oleitor conseguelembrar deimediato nem quesejamapenas rés Hinos de Odio? A segunda estrofe de God Save the Queen/King é muito instrutiva:“O Lord our God, arise/ Scatter her/his enemies,/ And make them fall;/ Confound their politics,/ Frustrate their knavish tricks;/ On Thee our hopes we fix;/ God save us all” [0 Senhor nosso Deus/ Dispersa 0s inimigos dela/dele,/ E faze tornbarem:/ Confunde sua politica,/ Frustra os seus ardis desonestos;/ Em Ti depomosas nossas esperan- ¢a8y/ Deus salve a todos nds]. Nota-se que esses inimigos nao tém identidade, e poderiam muito bem ser ingleses, como quaisquer outros, visto que s4o os inimi- gos “dela/dele’, e nao “nossos”. O hino inteiro é um canto de louvor a monarquia, nd nagao, ou a uma nagdo — que nem chega a ser mencionada uma tinica vez. 3.JaimeC. de Veyra, El ‘Ultimo Adiés' de Rizal: estudio critico-expositivo, pp. 89-90 (tradugao para o inglés de Trinidad T. Subido, pp. 101-2).. 200 Aroma, lu2, colores, rumor, canto, gemido, Constante repitiendo la esencia de mi fe. ‘Mi Patria idolatrada, dolor de mis dolores, Querida Filipinas, oye el postrer adiés. Aht, te dejo todo: mis padres, mis amores. Voy donde no hay esclavos, verdugos ni opresores; Donde la fe no mata, donde el que reina es Dios. Adis, padres y hermanos, trozos del alma mia, Amigos de a infancia, en el perdido hogar; Dad gracias, que descanso del fatigoso dia; Adiés, dulce extranjera, mi amiga, mi alegria; Adiés, queridos séres. Morir es descansar. Nota-se quea nacionalidade dos “verdugos” nao é menciona- da, e que o apaixonado patriotismo de Rizal ¢ magnificamente expresso na lingua “deles”* Podemos decifrar um pouco da natureza desse amor politico nas formas com que as linguas descrevem 0 seu objeto, seja em ter- mos de progenitura (motherland, Vaterland, patria) ou do lar (Hei- matoutanahair (“terrae gua”, expressio dos indonésios para o seu arquipélago natal]). Os dois tipos de vocabulério designam algo ao qual se est4 naturalmente ligado. Como vimos antes, em tudo o que é“natural” sempre ha algo que nao foi escolhido. Dessa maneira, a condicao nacional [nation-ness] € assimilada a cor da pele, ao sexo, ao parentesco ea época do nascimento — todas essas coisas que nao se podem evitar. E nesses “lacos naturais” sente-se algo que poderia ser qualificado como “a beleza da Gemeinschaft [comunidade]”. Em 4- Mas logo foi traduzido para o tagalog pel ‘Andrés Bonificio. A sua versio se encontra i grande revolucionario filipino outras palavras, justamente por nao terem sido escolhidos, tais lagos sao cercados de uma aura de desprendimento. E verdade que, nesses tltimos vinte anos, tem-se escrito muito sobre a ideia da familia~-como-estrutura-articulada-de- -poder, mas essa concepcao é, certamente, estranha a imensa maioria da humanidade. Pelo contrério, tradicionalmente conce- be-se a familia como 0 campo da solidariedade e do amor desinte- ressado. De modo que, mesmo que historiadores, diplomatas, politicos e cientistas sociais estejam plenamente a vontade coma ideia do “interesse nacional”, toda a questao da nado, para a maio- ria das pessoas comuns de qualquer classe social, é que ela é desin- teressada. E exatamente por essa razao ela pode pedir sacrificios. Como vimosantes, as grandes guerras do século xx sao extraor- dinérias nao tanto pela escala inédita em que se permitiu matar,esim pela quantidade colossal de gente dispostaa entregar a sua vida. Nao éverdade que o numero dos que morreram ultrapassou em muito 0 mimero dos que mataram? A ideia de sacrificio supremo vem apenas com uma ideia de pureza, através da fatalidade. Morrer pela patria, a qual geralmente nao se escolhe, assume uma grandeza moral que nao pode se comparar a morrer pelo Par- tido Trabalhista, pela Associago Médica Americana ou talvez até pela Anistia Internacional, pois estas sao entidades nas quais pode- -se ingressar ou sair a vontade. A grandeza de morrer pela revolucdo também deriva do grau de sentimento de que ela é algo fundamen- talmente puro. (Se as pessoas imaginassem o proletariado mera- ‘mente como um grupo na busca fervorosa de geladeiras, férias ou poder, até que ponto elas, inclusive os préprios proletdrios, estariam dispostas a morrer por isso?)* Ironicamente, talvez as interpretagdes 5. Isso nao significa de maneira alguma que os movimentos revoluciondrios néo buscam objetivos materiais. Mas estes sio vistos ndo como uma série de aquisi- es individuais, e sim como condigdes para o bonheur comum de Rousseau. 202 marxistas da historia, na medida em que sao sentidas (mais do que racionalizadas) como representages de uma necessidade ineluté- vel, também adquirem uma aura de pureza e desprendimento. Aqui cabe voltarmos novamente a lingua. Primeiro, nota-se 0 cardter primordial da lingua, mesmo as sabidamente modernas. Ninguém é capaz de dizer a data em que nasce uma lingua. Todas se avultam imperceptivelmente de um passado sem horizonte. (Na medida em que o homo sapiens é homo dicens, talvez seja dificil ima- ginar uma origem da lingua posterior 4 propria espécie.) Assim, as linguas se mostram mais enraizadas do que praticamente qualquer outra coisa nas sociedades contemporaneas. Ao mesmo tempo, €0 que mais nos liga afetivamente aos mortos. Se os angl6fonosouvem as palavras “Earth to earth, ashes to ashes, dust to dust” — criadas hd uns 450 anos —, sentem uma certa sugestao fantasmagérica de simultaneidade atravessando o tempo vazio e homogéneo. O peso dessas palavras se deve apenas em parte ao seu significado solene; cle provém ainda de uma espécie de “anglicidade” ancestral. Segundo, existe um tipo especifico de comunidade contem- poranea que apenas a lingua é capaz de sugerir — sobretudo na forma de poemas e canges. Tomemos 0 exemplo dos hinos nacio- nais, cantados nos feriadosnacionais. Por mais banal quesejaaletra e mediocre a melodia, hd nesse canto uma experiéncia de simulta- neidade. Precisamente nesses momentos, pessoas totalmente des- conhecidas entre si pronunciam os mesmos versos seguindo a mesma misica. A imagem: o unfssono.* Cantar a Marselhesa, a Waltzing Matilda e a Indonesia Raya oferece a oportunidade do unissono, da realizacdo fisica em eco da comunidade imaginada. (O mesmo ao se ouvir [e talvez acompanhar em siléncio] adeclamagao de poesias cerimoniais, como, por exemplo, passagens do Book of 6. Compara-se esse coro a cappella com a linguagem da vida cotidiana, que geral- mente é vivida ao modo decani/cantoris, como dilogo e troca. 203 common prayer.) Como parece desprendido esse unissono! Sesabe- mos que, além de nés, hé outras pessoas cantando essas cangdes exatamente no mesmo momento e da mesma maneira, nao temos ideia de quem podemser, ouatéondeestao cantando, se foraoundo do alcance do ouvido. Nada nos liga, a nao ser o som imaginado. Mas ingressa-se nesses coros com o tempo. Se eu sou um eto, minha filha pode ser uma australiana. O filho de um imigrante ita- liano em Nova York encontrar4 antepassados nos Pilgrim Fathers. Sea nacionalidade traz uma aura de fatalidade, é, no entanto, uma fatalidade encravada na histéria. Aqui, exemplar o decreto de San Martin, batizando os qu{chuas como “peruanos”, num movimen- to que mostra afinidades com a conversao religiosa. Pois ele mos- tra que, desde o comego, a na¢o foi concebida na lingua, e nao no sangue,e que as pessoas podem ser“convidadasa entrar” nacomu- nidade imaginada. Assim, hoje, mesmo as nac6es mais isoladas aceitam o principio da naturalizagao (que palavra magnifica!) por mais que possam dificult4-la na pratica. Vista como uma fatalidade histérica e como uma comunidade imaginada através da lingua, a nacao apresenta-se aberta e, a0 mesmo tempo, fechada. Esse paradoxo fica bem ilustrado nos rit- mos ondulantes desses famosos versos sobre a morte de John Moore durante a batalha de Corufia:” 7.“The Burial of Sir John Moore” in The poems of Charles Wolfe, pp. 1-2. [Nem um tambor se ouviu, sequer uma nota fiinebre,/ Quando levamos o seu corpo ao baluarte;/ Nem um soldado disparou o seu tiro de adeus/ Sobre o timulo ‘em que enterramos o nosso her6i./ Nés o enterramos secretamente na calada da noite,/ Revirandoa terra com as nossas baionetas;/ A luz enevoada dos raios de luar engalfinhados/ E da lanterna ardendo indistintamente./ Nenhum ind- til caixao encerrou o seu peito,/ Nem em len¢éis ou sudérios nés o embrulha- ‘mosi/ Mas ali ficou como um guerreiro em repouso,/ Envolto na sua capa mar- cial.../ Pensamos, enquanto abriamos 0 seu estreito leito,/ E afofivamos o seu travesseiro solitério,/ Que o inimigo e o estranho pisariam sobre a sua cabeca/ Ens estariamos longe singrando as ondas.../ Lentose tristes nés 0 deitamos,/ 204 Nota drum was heard, not a funeral note, Ashis corse to the rampart we hurried; Nota soldier discharged his farewell shot O’er the grave where our hero we buried. We buried him darkly at dead of night, The sods with our bayonets turning; By the struggling moonbeams’ misty light, And the lantern dimly burning. No useless coffin enclosed his breast, Not in sheet or in shroud we wound him; But he lay likea warrior taking his rest, With his martial cloak around him... We thought, as we hollowed his narrow bed, And smoothed down his lonely pillow, That the foe and the stranger would tread o’er his head And we far away on the billow... Slowly and sadly we laid him down, From the field of his fame fresh and gory; We carved nota line, and we raised not a stone — But we left him alone with his glory! Os versos celebram uma memoria heroica, e a sua beleza é indissociavel da lingua inglesa— intraduzivel, e s6 quem |ée fala inglés pode aprecia-la. E, no entanto, Moore eo poeta eram irlan- deses. Endo hé por que um descendente dos “inimigos” franceses Do campo da sua fama fresca e sangrenta;/ Nao gravamos uma linha, nao erguemos uma lépide —/ Mas nés 0 deixamos sozinho com a sua gloria!] 205 ou espanh6is de Moore nao possa captar plenamente a ressonan- cia do poema: o inglés, como qualquer outra lingua, esté sempre aberto a novos falantes, a novos ouvintes, a novos leitores. Ougamos Thomas Browne, que em duas sentengas encerraa histéria do homem na sua extensdo e largura:* Even the old ambitions had the advantage of ours, in the attempts of their vainglories, who acting early and before the probable Meridian of time, have by this time found great accomplishment of their designs, whereby the ancient Heroes have already out — last- ed their Monuments, and Mechanicall preservations. But in this latter Scene of time we cannot expect such Mummies unto our memories, when ambition may fear the Prophecy of Elias, and Charles the Fifth can never hope to live within two Methusela’s of Hector. Aqui, o Egito, a Grécia ea Judeia da Antiguidade estao unidos ao Sacro Império Romano, masessa unificacao atravessando milé- nios e milhares de quilémetros se realiza na particularidade da prosa seiscentista inglesa de Browne.’ Esse trecho, naturalmente, até certo ponto pode ser traduzido. Mas o misterioso esplendor do “probable Meridian of time”, “Mechanical preservations”, “such Mummies unto our memories” “two Methusela’s of Hector” s6 pode causar arrepios a quem é inglés. Aqui nesta pagina, ele se revela amplamente ao leitor. Por outro lado, impresso na pégina oposta, o esplendor igualmente misterioso 8. Hydriotaphia, Urne-Buriall, or, discourse of the sepulchrall Urnes lately found in Norfolk, pp.72-3. obre“o provavel Meridiano dotempo’, compare-se aobispo Otto de Freising. 9. E, no entanto, a “Inglaterra” ndo é mencionada nessa unificago. Isso nos faz Iembrar aqueles jornais de provincia que levavam o mundo inteiro, via Espanha, até Caracas ¢ Bogota. 206 das Ultimas linhas de “Yang Sudah Hiland’ do grande autor indonésio Pramoedya Anata Toer," provavelmente continuaré opaco:"" Suara itu hanya terdengar beberapa detik saja dalam hidup. Getarannya sebentar berdengung, takkan terulangi lagi. Tapi seper- ti juga halnya dengan kali Lusi yang abadi menggarisi kota Blora, dan seperti kali itu juga, suara yang tersimpan menggarisi kenangan dan ingatan itu mengalir juga - mengalir kemuaranya, kelaut yang tak bertepi. Dan tak seorangpun tahu kapan laut itu akan kering dan berhenti berdeburan. Hilang. Semua itu sudah hilang dari jangkauan panc{h]a-indera. Toda Iingua pode ser aprendida, mas esse aprendizado de- manda uma parte concreta da vida da pessoa: cada nova conquista é medida pelos dias que vao diminuindo. O que restringe 0 acesso as outras linguas ndo é a impermeabilidade delas, e sim a mortali- dade do individuo. Dai relativa privacidade de todasas linguas. Os imperialistas franceses e americanos governaram, exploraram e mataram os vietnamitas ao longo de muitos anos. Mas, o que quer que tenham espoliado, a lingua vietnamita ficou intocada. Daf,com tanta frequéncia, a raiva diante da “inescrutabilidade” vietnamita e aquela obscura desesperanga que cria as girias maldosas dos colo- nialismos agonizantes:“gooks”,“ratons” etc.""(A longo prazo,atinica reacdo 4 enorme privacidade da Iingua dos oprimidos é a retirada ou um massacre ainda maior.) 10 In Tjerita dari Blora (Contos de Blora], pp. 15-44, na p. 44. 1. Mesmo assim, leia-os em voz alta! Eu adaptei a ortografia original para seade- quar convengao corrente e tornar a citacdo totalmente fonética, 12.Allégica aquié:a) Vou estar morto antes de conseguir entendé-los.b) Tenho tanto poder que eles tiveram de aprender a minha lingua. c) Masisso significa que eles pe- netraram na minha privacidade. Chamé-los de gooks” é uma pequena vingansa. 207 Tais epitetos sao de cardter tipicamente racista, e ao decifrar- mos esse cardter veremos por que Nairn se engana ao dizer que o racismo e o antissemitismo derivam do nacionalismo — e que, “visto com suficiente profundidade histérica, o fascismo nos revela mais sobre o nacionalismo do que qualquer outro episédio”.” Uma palavra como “slant” [puxado], por exemplo, abreviatura de “slant- eyed” [de olho puxado], nao expressa apenas uma inimizade politi- cacomum. Ela anula a condi¢ao nacional [nation-ness] ao reduzir 0 adversario aos seus tracos fisionémicos biolégicos." Ela nega, por substituicdo, o “vietnamita’, assim como raton nega, por substitui- ¢4o, 0 “argelino”. Ao mesmo tempo, ela mistura o “vietnamita” na mesma lama anénima com 0 “coreano” 0 “chinés”, 0 “filipino”, e assim por diante. O caréter dessa terminologia pode ficar ainda mais claro comparando-a com outras palavras do periodo da Guerra do Vietna, como “Charlie” e “vc”, ou de um periodo anterior, como “boches”, “huns”, “japs” e “frogs”, os quais se aplicam apenas a uma nacionalidade especifica, e assim reconhecem, no 6dio, a participa- 40 do adversério dentro de uma liga de nagdes.” O fato é que o nacionalismo pensa em termos de destinos his- téricos, a0 passo que 0 racismo sonha com contamina¢ées eternas, transmitidas desde as origens dos tempos por uma sequéncia interminAvel de cépulas abominéveis: fora da hist6ria. Os negros, devido a nédoa invistvel do sangue, serao sempre negros;os judeus, 13, The Break-up of Britain, pp. 337 € 347. 14. Nota-se que ndo existe nenhum anténimo ébvio e consciente de “puxado” “Redondo”? “Reto”? “Oval”? 15. De fato, nao s6 numa época anterior. Mesmo assim, hé um leve cheiro de anti- quario nessas palavras de Debray: “Nao consigo conceber nenhuma esperanca para a Europa a nao ser sob a hegemonia de uma Franca revolucionéria, empu- nhando firmemente a bandeira da independéncia. As vezes eu me pergunto se toda a mitologia ‘antiboche’ e 0 nosso antagonismo secular contra a Alemanha nao seré algum dia indispensével para salvar a revolugdo, ou mesmo a nossa heranga democratica nacional’, “Marxism and the National Question’, p.41. 208 devido ao semen de Abraio, serao sempre judeus, nao importam os passaportes que usem ous linguas que falem e leiam. (Assim, para o nazista, 0 alemo judeu era sempre um impostor.)"* Os sonhos do racismo, na verdade, tém a sua origem nas ideo- logias de classe, e nao nas de nacao: sobretudo nas pretensdes de divindade entre os dirigentes e nas pretensdes de “linhagem” e de sangue“azul” ou “branco” entre as aristocracias.” Assim, nao admi- ra que o reputado pai do racismo moderno seja, nao algum nacio- nalista pequeno-burgués,esim Joseph Arthur, conde de Gobineau. E tampouco admira que, no geral, o racismo e 0 antissemitismo se manifestem dentro, e nao fora, das fronteiras nacionais. Em outras palavras, eles justificam mais a repressao e a dominacdo interna do que as guerras com outros paises.” 16. O surgimento do sionismo ¢ 0 nascimento de Israel sio significativos porque © primeiro marca a recriagdo de imagens de uma antiga comunidade religiosa ‘como nag4o, entre as outras nagdes, enquanto o segundo registra uma transfor- ‘magio alquimica do devoto andarilho em patriota local. 17."Do lado da aristocracia fundiéria vieram as ideias de uma superioridade intrinseca & classe dominante, e uma sensibilidade a posigdo social, tragos mar- cantes que se prolongaram até anos avangados do século xx. Alimentadas por novas fontes, essas ideias depois puderam ser vulgarizadas [sic] e se tornaram atraentes para o povo alemao como um todo, nas doutrinas de superioridade racial”, Barrington Moore, Jr. Social origins of dictatorship and democracy, p.436. 18. As datas de Gobineau sao perfeitas. Ele nasceu em 1816, dois anos depois da restauragao dos Bourbon no trono francés. Sua carreira diplomatica, entre 1848 € 1877, floresceu sob o Segundo Impériode Luts Napoledo e o regime monarquis- ta reaciondrio de Marie Edmé Patrice Maurice, conde de MacMahon, antigo pro- consul imperialista em Argel. O seu Essai sur lInégalité des races humaines foi publicado em 1854— em resposta is insurrei¢des populares vernéculo-naciona- listas de 1848, talvez? 19. O racismo sul-africano, na época de Vorster e Botha, nao impediu relacdes amistosas (mesmo que discretamente tratadas) com importantes politicos negros de alguns estados africanos independentes. Se os judeus sofrem discrimi- nado na Unido Soviética, isso nao impediu ativas e respeitosas relacdes entre Brejnev e Kissinger. 209 Onde 0 racismo se desenvolveu fora da Europa no século XIX, esteve sempre associado com a dominacio europeia, por duas razGes complementares. A primeira, e mais importante, foi o surgimento do nacionalismo oficial e da “russificagao” colo- nial. Como ressaltamos varias vezes, 0 nacionalismo oficial foi essencialmente uma resposta dos grupos dinasticos e aristocrati- cos ameacados — as classes altas — ao nacionalismo vernacular popular. O racismo colonial foi um elemento fundamental na- quela concepgao de“império” que tentavaa solda entrea legitimi- dade dindstica ea comunidade nacional. E essa solda se fez trans- pondo-se um principio de superioridade inata e herdada, sobre © qual se fundava (mesmo que precariamente) a sua propria posicao dentro do pais, para a vastidao das possessées ultramari- nas, transmitindo veladamente (ou nem tanto) a ideia de que, se, digamos, os lordes ingleses eram naturalmente superiores aos outros ingleses, isso nao importava: esses outros ingleses tam- bém eram, da mesma forma, superiores aos nativos submetidos. De fato, sentimo-nos tentados a dizer que a existéncia dos ulti- mos impérios coloniais até serviu para escorar bastides aristo- craticos dentro da metrépole, visto que pareciam confirmar antigas concepgées de poder e privilégio num estagio mundial e moderno. Isso podia ter certa eficdcia porque — e esta é a nossa segun- da razéo — o império colonial, com o seu aparato burocratico em rapida expansdo e as suas politicas “russificantes’, permitia a mui- tos burgueses e pequeno-burgueses se fazerem de aristocratas fora da corte central, isto é, em qualquer lugar do império, exceto na terra natal. Em todas as colénias, vernos esse tableau vivant cruel- mente divertido: o cavalheiro burgués declamando poemas, tendo ao fundo um cendrio de vastas mansées e jardins cheios de mimo- sas e buganvilias, e um grande elenco de apoio, com lacaios, cava- larigos, jardineiros, cozinheiras, amas, criadas, lavadeiras e, sobre- 210 tudo, cavalos. Até os que nao podiam ter esse estilo de vida, como. ‘08 jovens solteiros, mesmo assim tinham o status grandiosamente ambiguo de um nobre francés as vésperas de uma insurreigo: * Em Moulmein, na baixa Birmania [essa cidadezinha obscura requer explicages para os leitores na metrépole], eu era odiado por muita gente —a nica vez na minha vida em que eu tive importan- cia suficiente para que isso me acontecesse. Eu era oficial da subdi- visao policial da cidade. Esse “g6tico tropical” tornou-se possivel devido ao enorme poder que o alto capitalismo havia dado a metrépole— tao gran- de que podia, por assim dizer, ficar nos bastidores. Nada ilustra melhor 0 capitalismo fantasiado de feudal-aristocratico do que os militares coloniais, sabidamente diferentes dos das metrépo- les, inclusive, muitas vezes, em termos institucionais formais.”* Assim, na Europa, tinha-se o “Primeiro Exército”, formado por soldados recrutados em massa para o servico militar obrigatério, tendo como base os cidadaos da metrépole; concebido ideologi- camente como o defensor do Heimat; vestido com priticos e uti- litérios uniformes céqui; portando as mais modernas armas dis- poniveis; nos tempos de paz confinado nos quartéis, na guerra disposto em trincheiras ou atrés de uma artilharia pesada. Fora da Europa, havia o “Segundo Exército”, recrutado (abaixo do ofi- cialato) entre minorias étnicas ou religiosas locais, em bases mer- 20, Para uma cole¢ao espantosa de fotos desses tableaux vivants nas Indiasholan- desas (e um texto de uma ironia elegante), ver“E. Breton de Nijs’, Tempo Doeloe. 21, George Orwell,“Shooting an Elephant’, in The Orwell reader,p.3.A frase entre colchetes é, naturalmente, interpolagao minha. 22, Oxntt (Koninklijk Nederlandsch-Indisch Leger) era totalmente separado do kt (Koninklijk Leger) na Holanda. A Légion Etrangere foi, quase desde o inicio, legal- mente proibida de operar em solo francés continental, 2 cenérias; concebido ideologicamente como uma forca policial interna; vestido com uniformes precarios ou espalhafatosos; armado com espadas e armas industriais obsoletas; nos tempos de paz em exposi¢ao, na guerra montado a cavalo. O Estado- -Maior prussiano, mestre militar da Europa, enfatizava a solidarie- dade anénima de um corpo profissionalizado, a balistica, as estra- das de ferro, a engenharia, o planejamento estratégico e coisas afins, ao passo que 0 exército colonial enfatizava a gléria, as drago- nas, o heroismo pessoal, o polo e uma cortesia arcaizante entre os seus oficiais. (Ele podia se permitir isso porqueo Primeiro Exército ea Marinha estavam lé na retaguarda.) Essa mentalidade sobrevi- veu por muito tempo. Em Tonquim, em 1894, Lyautey escrevia: ® ‘Quel dommage de n'étre pas venu ici dix ans plus tdt! Quelles car- rigres ay fonder et a y mener. Il n'y a pas ici un de ces petits lieute- nants, chefs de poste et de reconnaissance, qui ne développe en 6 mois plus d’initiative, de volonté, d’endurance, de personnalité, qu'un officier de France en toute sa carriére. Em Tonquim, em 1951, Jean de Lattre de Tassigny, “que gos- tava de oficiais que reuniam coragem e ‘estilo, sentiu uma afei- ao imediata pelo vistoso cavaleiro (coronel de Castries] como seu barrete argelino [spahi] e a faixa em vermelho brilhante, 0 magnifico rebenque ea mistura de maneiras displicentes e por- te ducal, que o faziam irresistivel para as mulheres na Indochina 23, Lettres du Tonkin et de Madagascar (1894-1899), p. 84. Carta de 22 de dezem- bro de 1894, Handi. Grifo meu. (Que pena nao ter chegado aqui dez anos antes! Que carreiras podem-se iniciare seguir! Nao hé aqui um nico pequeno tenente, chefe de posto e de reconhecimento, que ndo desenvolva em seis meses mai ciativa, vontade, resistencia, personalidade, do que um oficial da Franga em toda asua carreira.) 22 nos anos 1950, como havia sido para as parisienses dos anos 1930”. Uma outra indica¢ao instrutiva da derivacao aristocratica ou pseudoaristocrética do racismo colonial era a tipica “solida- riedade entre os brancos”, que unia dirigentes coloniais de dife- rentes metrépoles nacionais, quaisquer que fossem as suas rivali- dades e conflitos internos. Essa solidariedade de curioso carater internacional faz lembrar instantaneamente a solidariedade de classe das aristocracias oitocentistas da Europa, mediada pelos pavilhdes de caca, balnedrios e saldes de baile mutuamente fre- quentados; € a solidariedade daquela confraria de “oficiais e ca- valheiros” que encontra uma expressdo agradavelmente con- tempor4nea na Convencao de Genebra, garantindo tratamento 24, Bernard B. Fall, Hell isa very small place: the siege of Dien Dien Phu, p. 56. Podemos imaginar Clausewitz se revirando na sua tumba [spahi, que deriva, como sepoy (sipaio), do sipahi otomano, designava os membros da cavalaria irre- gular mercenéria do “Segundo Exército” na Argélia]. £ verdade que a Franca de Lyautey e de Lattre era uma republica. No entanto,a Grande Muette, amide tao loquaz, desde o comeco da Terceira Republica tinha sido um asilo para os aristo- cratas cada vez mais excluidos do poder em todas as outras instituigdes impor- tantesda vida publica. Em 1898, nada menos de 25% de todos os generais dedivi- so ¢ de brigada eram aristocratas, Além disso, esse oficialato dominado pela aristocracia foi fundamental para imperialismo francés dos séculos x1x exx."O controle rigoroso imposto sobre o exército na métropole nunca se estendeu intei- ramente a France d’outremer. A ampliagio do Império Francés no século x1x foi em parte resultante da iniciativa incontrolada dos comandantes militares colo- niais. As expansoes da Africa Ocidental francesa, em larga medida criada pelo general Faidherbe, e do Congo francés se deveram basicamente a incursbes mili- tares independentes para o interior dos territérios. Os militares também foram responsdveis pelos faits accomplis que levaram a um protetorado frances no Taiti em 1842 e, em menor medida, a ocupagio francesa de Tonquim, na Indochina, nos anos 1880... Em 1897, Galliéni aboliu sumariamente a monarquia em Mada- gascaredeportou a rainha, tudo isso sem consultar o governo francés, que depois, aceitou 0 fait accompli ...]” John S. Ambler, The French army in politics, 1945- -1962, pp. 10-1 €22. 23 privilegiado aos oficiais inimigos capturados, em oposicao aos guerrilheiros ou aos civis. O argumento esbocado até agora também pode ser valido parao lado dos povos coloniais. Pois, aforaos pronunciamentosde certos idedlogos coloniais, é notavel a rara presenca daquela ambi- gua entidade conhecida como “racismo invertido” nos movimen- tos anticoloniais. Nessa questo, é facil que a lingua nos engane. Por exemplo, a palavra javanesa londo (derivada de “holandés”), além de“holandés’, tinha também a acep¢ao de“branco”. Mas essa propria derivacéo mostra que para os camponeses javaneses, que praticamente nunca viram outros “brancos” além dos holandeses, os dois significados se sobrepunham muito bem. Da mesma forma, nos territérios coloniais franceses, “les blancs” designavam 0s governantes cuja condi¢a4o de franceses nao se distinguia da de brancos. Em nenhum desses casos, ao que eu saiba, londo ou blanc eram pejorativos ou geraram conotagoes depreciativas.® Pelo contrario, o espfrito do nacionalismo anticolonial se mostranacomovente Constitui¢ao da efémera Republica de Kata- galugan (1902), de Makario Sakay, que dizia, entre outras coisas:* Nenhum tagalog, nascido neste arquipélago tagalog, elevard qual- quer pessoa acima das demais por causa de sua raga ou da cordesua 25, Nunca ouvi falar em girias abusivas em indonésio ou javanés para designar “holandés” ou“branco”, Compare-se ao tesouro anglo-saxdo: niggers, wops,kikes, ‘gooks, slants, fuzzywuzzies e centenas de outros. E possivel que essa inocéncia em birias racistas seja propria basicamente de povos colonizados. Os negros dos UA — e certamente de outros lugares — desenvolveram um contravocabulério bastante variado (honkies, ofaysetc.). 26. Cf. cit. na obra magistral de Reynaldo Ileto, Pasyén and revolution: popular movements in the Philippines, 1840-1910, p. 218. A repiblica rebelde de Sakay durou até 1907, quando ele foi capturado ¢ executado pelos americanos. Para ‘entender a primeira frase, é preciso lembrar que trezentos anos de dominio espa- hol eimigracdo chinesa geraram uma populagao mestica consideravel nas ilhas. 24 pele; claros, escuros, ricos, pobres, instruidos e ignorantes — todos sao inteiramente iguais, e devem comungar um tinico lob [esp to interior]. Podem existir diferengas de educagdo, riqueza ou apa- réncia fisica, mas nunca na natureza essencial (pagkatao) nem na capacidade de servir a uma causa. Nao € dificil encontrar semelhangas no outro lado do plane- ta, Os mexicanos mesticos, falando espanhol, remontam a sua genealogia, nao aos conquistadores castelhanos, e sim aos astecas, maias, toltecas e zapotecas j4 semidesaparecidos. Os patriotas revoluciondrios uruguaios, eles prprios crioulos, adotaram 0 nome de Tupac Amari, o tltimo grande rebelde indigenacontraa opressao crioula, morto sob torturas indescritiveis em 1781. Talvez pareca um paradoxo que os objetos de todos esses ape- gos sejam “imaginados” — os conterraneos tagalogs anénimos e desconhecidos, tribos exterminadas, a Mae Russia ou o tanah air. Mas 0 amor patriae, sob esse aspecto, nao é muito diferente das outras afeigGes, em que sempre existe um elemento imagindrio afetuoso, (£ por isso que olhar os élbuns de fotos de casamentos de desconhecidos é como estudar a planta dos Jardins Suspensos da Babilénia desenhada pelo arquedlogo.) O que os olhos sao para quem ama—aqueles olhos comunse particulares com queele, ou ela, nasceu—a lingua — qualquer que seja a que lhe coube histo- ricamente como lingua materna — é para o patriota. Por meio dessa lingua, que se conhece no colo da mae e que sé se perde no tamulo, restauram-se passados, imaginam-se companheirismos, sonham-se futuros. 25, 8.O anjo da histéria Come¢amos este breve estudo com as guerras recentes entre a Republica Socialista do Vietna, a Kampuchea Democratica e a Re- publica Popular da China; assim, nada mais adequado do que re- tornar, enfim, ao ponto de partida. Ser4 que algo do que dissemos nesse intervalo nos ajudard a entender melhor essa conflagracao? Em The Break-up of Britain, de Tom Nairn, hd uma passagem de grande valia sobre a relaco entre o sistema politico britanico e os do resto do mundo moderno:' Somente [o sistema britanico] representou um “crescimento con- vencional, lento, ndo como os outros, produtos de uma invengao deliberada, resultantes de uma teoria”. Chegando mais tarde, esses outros “tentaram sintetizar de uma vez s6 os frutos da experiéncia do Estado, que tinha desenvolvido o seu constitucionalismo ao longo de varios séculos”. [...] Por ter sido a primeira, a experiéncia 1. Pp. 17-8. Grifo meu. A citacdo interna é de Charles Frederick Strong, Modern political constitutions, p.28. 216 inglesa — depois britanica — se manteve distinta. Por terem vindo depois a um mundo onde a Revolugao Inglesa ja tivera éxito e se expandira, as sociedades burguesas posteriores ndo puderam repro- duzir esse desenvolvimento inicial. O estudo e a imitagao geraram algo substancialmente diferente: a doutrina realmente moderna do estado abstrato ou “impessoal” que, devido a sua natureza abstrata, poderia ser imitado na historia subsequente. E claro que isso pode ser considerado como a légica normal dos processos de desenvolvimento. Foi um primeiro espécime daquilo que, mais tarde, seria enaltecido com titulos como “a lei do desenvolvimento desigual e combinado”. E dificilmente seria possivel uma verdadeira repeticao e imitacao, seja em termos politicos, econdmicos, sociais ou tecnolégicos, porque o mundo jé foi modificado demais por aquela causa inicial que se esté copiando. O que Nairn diz a propésito do Estado moderno vale igual- mente para as duas concep¢ées gémeas cuja concretizagao con- temporanea se deu nos trés paises socialistas em guerra: a revolu- ¢40 e 0 nacionalismo. As vezes esquecemos que essa dupla, tal como 0 capitalismo e o marxismo, sdo invengées, e ndo hé como preservar a patente delas. Elas esto ali, por assim dizer, para ser copiadas. E sao essas cépias e apenas elas que geram uma conheci- da anomalia: sociedades como Cuba, Albania e China, que, por serem socialistas revoluciondrias, se consideram “a frente” da Franca, da Suicae dos Estados Unidos, mas que, na medida em que se caracterizam pela baixa produtividade, padroes de vida baixis- simos e tecnologia antiquada, sao igualmente vistas como “atrasa- das”. (Dai o melancélico sonho de Chu En-lai de alcangar a Gra- -Bretanha capitalista no ano 2000.) Como vimos antes, Hobsbawm tinha razdo ao afirmar que“a Revolucdo Francesa nao foi feita ou liderada por um partido ou 217 movimento no sentido moderno, nem por homens tentando exe- cutar um programa sisteméatico”. Mas, gracas ao capitalismo tipo- grafico, a experiéncia francesa radicou-se definitivamente na meméria humana, além disso, tornou-se uma licdo coma qual se poderia aprender. Depois de quase cem anos de teorizacao de modelos e experiéncias préticas, vieram os bolcheviques, que con- seguiram éxito na primeira revolucao “planejada” (mesmo que esse éxito nao fosse possivel sem as vit6rias prévias de Hindenburg em Tannenberg e nos lagos masurianos) e tentaram implantar um programa sistematico (mesmo que, na pratica, a ordem do dia fosse a improvisa¢ao). Também € bastante claro que, sem tais pla- nos e programas, uma revolugdo num império que mal havia ingressado na era do capitalismo industrial estava fora de questao. O modelo revolucionério bolchevique foi decisivo para todas as revolugées do século xx, ao permitir que elas se tornassem imagi- naveis em sociedades ainda mais atrasadas do que todas as Russias. (Ele abriu a possibilidade, por assim dizer, de deter a histéria no passado.) As habilidosas experiéncias iniciais de Mao Tsé-Tung confirmaram a utilidade do modelo fora da Europa. Assim, pode- mos ver a culminancia do processo modular no caso do Camboja, em 1962, com um total de 2,5 milhées de habitantes em idade ativa, dos quais nem 2,5% eram “operdrios”,e nem 0,5% era “capi- talista”? Desde 0 final do século xvii, o nacionalismo passou também por um processo muito parecido de modulacao e adaptacao, con- 2, Segundo os célculos de Edwin Wells, baseados na Tabela 9 in “Cambodge, Mi- nistére du Plan et Institut National de la Statistique et des Recherches Eco- nomiques’, Résultats finals du recensement general dela population 1962. Wells dis- tribui o restante da forga de trabalho ativa da seguinte maneira: funcionérios do governo e nova pequena burguesia, 8%; pequena burguesia tradicional (comer- ciantes etc.),7,5% proletariado rural, 1,8%;camponeses, 78,3%. Haviamenosde 1300 capitalistas donos de indastrias manufatureiras. 28 forme as diversas épocas, regimes politicos, economias e estrutu- ras sociais. Por conseguinte, a “comunidade imaginada” se difun- diu por todas as sociedades contemporaneas possiveis. Se podemos usar 0 caso do Camboja moderno para ilustrar uma transferéncia modular exemplar da“tevolucao”,talvez seja valido usar 0 caso do Vietna para ilustrar a do nacionalismo, fazendo uma répida digressao sobre o nome da nacao. ‘Ao ser coroado em 1802, Gia-Long quis dar ao seu reino 0 nome de “Nam Viét”, e enviou emissdrios para obter a permissio de Pequim. O Filho do Céu manchu, porém, insistiu que fosse “Viet Nam”. O motivo dessa inversao € 0 seguinte: “Viét Nam” (ou, em chinés, Yiieh-nan) significa aproximadamente “ao sul de Viet (Yuieh)”, territério conquistado pelos han dezessete séculos antes € que abrangeria as atuais provincias chinesas de Kwangtung e Kwangsi, bem como 0 vale do rio Vermelho. Mas 0 “Nam Viét” de Gia-Long significava “Viét/Yiieh do Sul”, sendo na verdade uma Pretensdo ao antigo territério. Nas palavras de Alexander Wood- side, “o nome ‘Vietnam; todo junto, dificilmente era tao estimado pelos dirigentes vietnamitas um século atrds, por ter vindo de Pequim, como o é neste século. Sendo uma designacdo artificial, nao era muito usado nem pelos chineses nem pelos vietnamitas. Os chineses se aferraram ao termo tang‘Annam, que era ofensivo. |...] Acorte vietnamita, por outro lado, inventou por conta prépria um outro nome parao seu reinadoem 1838-39, ¢ nao se deu aotra- balho de informar os chineses. O novo nome, Dai Nam (“Grande Sul” ou “Sul Imperial”), aparecia regularmente nos documentos da corte e nas compila¢ées hist6ricas oficiais. Mas nao sobreviveu até os nossos dias.”’ Este novo nome ¢ interessante sob dois aspec- tos. Primeiro, ele nao contém nenhum elemento “viét”-namita. 1. Vietnam and the Chinese model, pp. 120-1. 219 Segundo, a sua referéncia territorial parece puramente relativa— “sul” (do Império do Centro).* © fato de que os vietnamitas de hoje defendam orgulhosa- mente um Viét Nam inventado com desdém por um dinasta man- chu do século xx nos lembra Renan, com a sua maxima de que as nacées precisam “oublié bien des choses”, mas também nos remete, paradoxalmente, ao poder imaginativo do nacionalismo. Se olharmos 0 Vietna dos anos 1930 ou o Camboja dos anos 1960, encontraremos, mutatis mutandis, muitas semelhancas: um enorme campesinato explorado e analfabeto, um operariado mi- niisculo, uma burguesia fragmentada e uma intelectualidade m{nima e dividida.’ Nenhum analista sério da época, vendo obje- tivamente essas condi¢ées, iria prever, em qualquer um dos casos, as revolugdes que estavam por vir owas suas vit6rias devastadoras. (De fato, pode-se dizer quase o mesmo, e pelas mesmas razdes,em relacdo 4 China de 1910.) O que as tornou possiveis, ao fim e ao cabo, foi “planejar a revolugao” e “imaginar a naga 4. Isso no surpreende muito.“O burocrata vietnamita parecia chinés; o campo- nés vietnamita parecia do Sudeste Asidtico. O burocrata tinha de escrever em chi- nés, usar tinicas de estilo chinés, morar numa casa de estilo chinés, andar em litei- rade estilo chinés eatéimitaras ostentacées idiossincréticas deestilo chinés,como ter um lago de carpas douradas no seu jardim sudeste-asidtico.” [bid.,p. 199. 5. Segundo o censo de 1937,93%-95% da populacao vietnamita ainda morava na zona rural. Néo mais de 10% da populagao sabia ler e escrever em nivel funcional em qualquer alfabeto. Nao mais de 20 mil pessoas tinham conclutdo os iltimos anos do ensino primério entre 1920 1938. Eaquilo que os marxistas vietnamitas chamavam de “burguesia local” — que, segundo Marr, consistia basicamente de latifundidrios ausentes, além de alguns empresérios e uns poucos funcionérios de alto escaléo — totalizava cerca de 10 500 familias, ou seja, cerca de 0,5% da popu- lacdo. Vietnamese tradition, pp. 25-6,34 e 37. Comparem-se os dados da nota (2). 6. E, como no caso dos bolcheviques, felizes catéstrofes: para a China, a invasio macica do Japao em 1937; para.o Vietna, o esmagamento da linha Maginoteasua breve ocupacdo pelos japoneses; para o Camboja, o enorme transbordamento da guerra norte-americana no Vietna para dentro dos seus territ6rios orientais apés 220 Somente num sentido muito limitado é possivel atribuir as politicas do regime de Pol Pot a cultura khmer tradicional ou a crueldade, a paranoia ea megalomania dos seus lideres. Os khmers tiveram sua cota de déspotas megalomanfacos, mas alguns deles foram responsaveis por Angkor. Muito mais importantes sao os modelos daquilo que as revolugées precisam, podem, devem fazer ou deixar de fazer, extrafdos a partir da Franca, da ex-uRss, da China e do Vietna — e de todos 0s livros em francés sobre eles.’ O mesmo € valido para o nacionalismo. Sua verséo contem- pordnea é herdeira de dois séculos de transformacées historicas. Por todas as razes que tentei expor, essas herangas s4o realmen- te facas de dois gumes. So as legadas por San Martin e Garibaldi, mas também por Uvarov e Macaulay. Como vimos, o “naciona- lismo oficial” foi, desde o principio, uma politica consciente e autodefensiva, intimamente ligada a preservacao dos interesses dindsticos imperiais. Mas, estando “ali para todos verem’, ele podia ser copiado da mesma maneira que as reformas militares prussianas do inicio do século x1x, e pela mesma variedade de sis- temas polfticos e sociais. O nico trago permanente desse estilo de nacionalismo consistia, e ainda consiste, em ser oficial — isto é, algo que emana do Estado, e serve antes e acima de tudo aos interesses dele. margo de 1970. Em cada um dos casos, 0 ancien régime existente, fosse 0 Kuo- mintang, colonia! francés ou monarquista feudal, foi fatalmente minado por for- casexternas. 7. Uma sugestdo possfvel seria “sim” levée en masse eao Terror, “nao” a Termidor ¢ a0 bonapartismo, na Franca; “sim” ao comunismo de guerra, 3 coletivizagio e 40s julgamentos de Moscou, “nao” aN. E. P.e a desestalinizacdo, na antiga Unido Soviética;"sim” ao comunismo deguerrilha camponesa,ao Grande Salto a Frente ¢ Revolugdo Cultural, “ndo” ao Lushan Plenum, na China; "“sim”a Revolugao de Agosto” ¢ liquidacéo formal do Partido Comunista indochinés em 1945,"nao” as concessdes danosas feitas aos “grandes” partidos comunistas, como nos Acor- dos de Genebra, no Vietna. 221 Assim, o modelo do nacionalismo oficial torna-se aplicavel sobretudo quando 0s revolucionrios conseguem assumir 0 con- trole do Estado, e estao pela primeira vez em condi¢Ges de usar 0 poder deste em favor dos seus objetivos. A aplicabilidade desse modelo é tanto maior na medida em que mesmo os revolucioné- rios mais decididamente radicais sempre, em algum grau, herdam 0 Estado legado pelo regime deposto. Alguns desses legados sao simbélicos, mas nem por isso menos importantes. Apesar do des- conforto de Trotsky, a capital da ex-uRss foi transferida de volta para a antiga capital czarista de Moscou; e por mais de 65 anos os lideres do Partido Comunista da ex-urss fizeram politica no Kremlin, antiga cidadela do poder czarista— entre todos os locais possiveis nos imensos territérios do Estado socialista. Da mesma forma, a capital da Republica Popular da China é a dos manchus (sendo que Chiang Kai-shek a transferira para Nanquim), ¢ os Iideres do Partido Comunista chinés se retinem na Cidade Proi- bida dos Filhos do Céu. Na verdade, sao pouquissimos os lideres socialistas, se é que ha algum, que nao se sentaram nesses tronos mornos e puidos. Num nivel menos evidente, os revolucionarios vitoriosos também herdam as redes de funcionamento do antigo Estado: as vezes os funcionarios e os informantes, mas sempre os fichdrios, os dossiés, os arquivos, as leis, os registros financeiros, os censos, os mapas, os tratados, as correspondéncias, os memoran- dos, e assim por diante. Tal como a complexa rede elétrica de uma grande mansao depois queo dono vai embora, 0 Estado espera que o novo dono ligue os interruptores para voltar a funcionar como antigo brilho. Portanto, nao surpreende muito que as liderangas revolucio- narias, consciente ou inconscientemente, venham a se fazer de senhores da manso. Aqui, nao estamos pensando apenas na iden- tificagdo de Djugashvili com Ivan Groznii, ou na admiragao expli- cita de Mao pelo tirano Ch'in Shih Huang-ti, ou na restauragao da 222 pompaeceriménia ruritania por Josip Broz." O“nacionalismo ofi- cial” se infiltra nos estilos de lideranga pés-revolucionaria de uma maneira muito mais sutil. Quero dizer que essas liderangas ado- tam facilmente a suposta nationalnost dos dinastas mais antigos ¢ do Estado dindstico anterior. Num impressionante movimento retroativo, dinastas que nao tinham a menor ideia da “China’, “lugoslavia’, “Vietna” ou “Camboja” tornam-se nacionais (mesmo que nem sempre “merecedores”). Dessa acomodagao surge inva- riavelmente aquele maquiavelismo de“Estado” que é um trago tao marcante dos regimes pés-revoluciondrios, em contraste com os movimentos nacionalistas revoluciondrios. Quanto mais 0 antigo Estado dindstico é naturalizado, tanto mais os seus antigos orna- mentos podem envolver os ombros revoluciondrios. A imagem de Angkor Wat, de Sityavarman, estampada na bandeira do Kam- puchea Democratico marxista (como nas da republica-fantoche de Lon Nol e do Camboja monérquico de Sihanouk), é um simbo- lo ndo de respeito, e sim de poder.” Usei o grifo em liderancas porque sao elas, e nao 0 povo, que herdam os velhos palicios e painéis de controle. Ninguém imagi- na, suponho eu, que a grande massa do povo chinés dé a minima ao que acontece ao longo da fronteira colonial entre o Camboja e o Vietna, E tampouco é minimamente provavel que os campone- ses khmers e vietnamitas quisessem a guerra entre eles, ou que ico extraordinario relato, de forma alguma totalmente polémico, in Milo- vvan Djilas, Tito: the story from inside, capitulo 4, em esp. pp. 133 ss. 9. Eébvio que as tendénciasacima apresentadas nao so, em absoluto, caracteris- ticas exclusivas dos regimes marxistas revoluciondrios. Concentramo-nos nesses regimes devido ao compromisso hist6rico marxista com o internacionalismo proletario e a destruigao dos estados feudais e capitalistas, e devido também as novas guerras na Indochina. Para decifrar a iconografia arcaizante do regime direitista de Suharto na Indonésia, ver o meu Language and power: exploring poli- tical cuttures in Indonesia, capitulo 5. 223 tenham sido consultados sobre o assunto. Num sentido muito concreto, foram “guerras de chancelaria”, em que o nacionalismo popular foi, em larga medida, mobilizado apés o fato, e sempre numa linguagem de autodefesa. (Dai o pouco entusiasmo na China, onde essa linguagem nao era muito plausivel, mesmo sobo luminoso brasao da “hegemonia soviétic Em tudo isso, a China, o Vietna e o Camboja nao sao absolu- tamente casos unicos."' E por isso que nao ha motivos de esperan- ga de que, um dia, os precedentes que eles inauguraram quanto a guerra entre paises socialistas sejam esquecidos, ou de queacomu- nidade imaginada da nacdo socialista logo seja deixada de lado. Mas nao hé o que fazer para limitar ou prevenir tais guerras, a menos que abandonemos ficgdes como “os marxistas, enquanto tais, nao sao nacionalistas” ou “o nacionalismo éa patologia da his- téria do desenvolvimento moderno’, e, em vez disso, esforcemo- -nos ao maximo para aprender com a experiéncia real e imaginada do passado. Sobre o Anjo da Histéria escreveu Walter Benjamin: Seu rosto esté dirigido para o passado. Onde nés vemos uma cadeia deacontecimentos, ele vé uma catastrofe unica, que acumula incansa- velmente ruina sobre ruina e as dispersa a nossos pés. Ele gostariade 10. A diferenca entre as invengées do “nacionalismo oficial” e as de outros tipos geralmente éa mesma que hi entre as mentirase os mitos. 1. Por outro lado, é possivel que, no final do século xx, 0s historiadores tenham atribuido os excessos “nacionalistas oficiais” cometidos por regimes socialistas pés-revoluciondrios,em grande medida, a defasagem entre o modelo socialistae arealidade agréri 12. Illuminations, p.259 (cit.ed. bras.,p.226]. Os olhos do Anjo sio como a cime- raem movimento, de costas, em Weekend [Godard], diante da qual os destrogos vao aparecendo momentaneamente, um apés outro, numa estrada interminavel antes de sumir no horizonte. 224 deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraiso e prende-se em suasasascom tantaforca que ele ndo pode mais fechd-las. Essa tempestade o impele irresisti- velmente para o futuro, a0 qual ele vira as costas, enquanto o amon- toado de ruinas cresce até o céu. Essa tempestade é 0 que chamamos Progresso. Mas 0 Anjo é imortal, e os nossos rostos estao voltados para a escuridao a nossa frente. 9. Censo, mapa, museu Na edicao original de Comunidades imaginadas,escrevi que “nas politicas de ‘construcao da nagao’ dos novos estados vemos com frequéncia tanto um auténtico entusiasmo nacionalista popular quanto uma instilagao sistematica, e até maquiavélica, da ideologia nacionalista através dos meios de comunica¢ao de massa, do sistema educacional, das regulamentagoes adminis- trativas, e assim por diante”.' O que eu entao supunha,em minha visdo limitada, era que o nacionalismo oficial nos mundos colo- nizados da Asiae da Africa vinha diretamente modelado sobre o nacionalismo oficial dos estados dindsticos europeus do século xIx. Refletindo mais tarde, percebi que esse ponto de vista era precipitado e superficial, e que a genealogia proxima devia ser buscada na criagdo de imagens do Estado colonial. A primeira vista, essa conclusao pode surpreender, dado que os estados coloniais eram tipicamente antinacionalistas, e muitas vezes de forma violenta. Mas, se olharmos, sob as ideologias e politicas 1. Ver acima, pp. 113-14. 226 coloniais, a gramética em que elas se apresentaram desde os meados do século xx, essa linhagem se torna decididamente mais clara. Poucas coisas mostram mais claramente essa gramatica do que trés instituicdes de poder, as quais, embora inventadas antes de meados do século x1x, modificaram a sua forma e fungio quando as zonas colonizadas ingressaram na era da reprodugao mecaAnica. Essas trés institui¢des sao 0 censo, o mapa e 0 museu: juntas, elas moldaram profundamente a maneira pela qual 0 Estado colonial imaginava o seu dominio — a natureza dos seres humanos por ele governados, a geografia do seu territério ea legitimidade do seu passado. Para analisar o carter dessa conexio, neste capitulo vou concentrar a minha atengao no Sudeste Asidtico, visto que as minhas conclusées sao a titulo de ensaio ¢ as minhas pretens6es de conhecimento especializado se limitam a regiao. No entanto, o Sudeste Asiatico oferece van- tagens especiais para quem nutre interesse pela histéria compa- rada, pois inclui territérios colonizados por quase todas as poténcias imperiais “brancas” — Gra-Bretanha, Franca, Espa- nha, Portugal, Holanda e Estados Unidos —, bem como 0 Sido, que nao foi colonizado. Leitores que tenham maior conheci- mento de outras partes da Asiae da Africa poderao julgar melhor se o meu argumento se sustenta em nivel histérico e geografico mais amplo. 0 CENSO. Em dois importantes artigos escritos recentemente, 0 socié- logo Charles Hirschman deu inicio ao estudo das mentalités dos recenseadores coloniais britanicos nas colénias do Estreito ena pe- ninsula malaia, e de seus sucessores no servico do Estado conglo- 227 merado independente da Malasia.’ Os fac-similes das “categorias de identidade” dos sucessivos censos apresentados por Hirschman, desde a segunda metade do século xix até data recente, mostram uma série de mudangas extremamente rdpidas e superficialmente arbitrdrias, em que as categorias s4o constantemente unificadas, separadas, recombinadas, misturadas e reordenadas (mas aquelas quese referema identidades politicamente poderosas semprelide- ram a lista). Ele tira duas conclusées principais desses recensea- mentos. A primeira é que, com o desgaste do periodo colonial, as categorias censitdrias foram se tornando mais claras e exclusiva- mente raciais.’ A identidade religiosa, por outro lado, foi se per- dendoaos poucos como classificagao priméria. Os“hindus”—ali- nhados com os “klings” e os “bengalis” — desapareceram apés 0 primeiro censo de 1871. Os “parsis” duraram até 0 censo de 1901, do qual ainda constavam — junto com os “bengalis”, os “burme- ses” € os “tamiles” — dentro da ampla categoria de “tamiles outros nativos da India”, Sua segunda conclusao é que, de modo geral, as grandes categorias raciais foram mantidase até reforcadas apés a independéncia, mas agora renomeadas e reescalonadas como “malésios”, “chineses”, “indianos” e“outros”, Todavia, persis- tiram anomaliasaté osanos 1980. No censo de 1980, 0s“sikhs” ainda apareciam idiossincraticamente como uma subcategoria pseudo- 2. Charles Hirschman, “The Meaning and Measurement of Ethnicity in Malaysia: ‘An Analysis of Census Classifications’, J. of Asian studies, 46:3 (agosto 1987), pp. 952-82; “The Making of Race in Colonial Malaya: Political Economy and Racial Ideology”, Sociological Forum, 1:2 (Primavera 1986), pp. 330-62. 3. Durante a era colonial, era espantosa a variedade de “europeus” classificados. Mas, se em 1881 ainda eram agrupados basicamente nos itens “residentes’,“flu- tuantes” e “prisioneiros’, em 1911 ja confraternizavam como membros de uma raga (“brancos”). Pode-se concordar que,atéo fim, osrecenseadores ficavam visi- velmente embaragados, sem saber muito bem onde colocariam os classificados como" judeus” 228 étnica — junto com os “malaiaos” e “telegus”, “paquistaneses” e “bangladeshianos’, “tamiles ceiloneses” e “outros ceiloneses” — sob o rétulo geral de“indianos”. Mas os maravilhosos fac-similes de Hirschman nos incitam a ir além de suas preocupagoes analiticas imediatas. Tome-se, por exemplo, o Censo da Federacao dos Estados Malaios de 1911, que na categoria “Populacao malaia por raga” arrola, na seguinte ordem, “malaios”, “javaneses”, “sakais”, “bajareses”, “boyaneses”, “mendelings” [sic], “krinchis” [sic] ,“jambis”, “achineses”, “bugis” e “outros”. A excegao dos “malaios” (na sua maioria) e dos “sakais”, todos esses “grupos” eram originérios das ilhas de Sumatra, Java, Bornéu do Sule Celebes, areas pertencentes 4 enorme colénia vizi nha das Indias Orientais holandesas. Mas essas origens externas a Federacao dos Estados Malaios nao sao reconhecidas pelos recen- seadores, os quais, ao construirem os seus “malaios”, mantém os olhos modestamente baixados, restringindo-se as suas proprias fronteiras coloniais. (Nem é preciso dizer que, atravessando 0 estreito, os recenseadores holandeses estavam construindo uma imagem diferente dos “malaios”, como uma etnicidade ao lado, e e“krin- nao acima, dos “achéns’, “javaneses” e similares.) “ chis” se referem mais a lugares do que a qualquer coisa remota- mente identificdvel como etnolinguistica. f extremamenteimpro- vavel que, em 1911, mais do que uma infima parcela desses povos assim clasificados e subclassificados se reconhecesse sob tais rotu- los. Essas “identidades” imaginadas pela mentalidade (confusa- mente) classificatéria do Estado colonial ainda aguardavam uma reificagao que, com a penetracao administrativa imperial, logo se tornaria possivel. Pode-se notar, também, a paixdo dos recensea- dores por uma categoriza¢ao exaustiva e inequivoca. Daf a intole- rancia deles diante de identificagdes miltiplas, politicamente“tra- vestidas’, indistintas ou varidveis. Daf a estranha subcategoria de “Outros” em cada grupo racial — os quais, porém, ndo devem de 229 modo algum ser confundidos com outros“Outros”. A ideia ficticia do censo é que todos esto presentes nele, e que todos ocupam um. —e apenas um — lugar extremamente claro. Sem fragoes. Essa maneira de criar imagens, adotada pelo Estado colonial, tinha origens muito anteriores as dos censos dos anos 1870, de modo que, para entender plenamente a grande novidade deles, cumpre observarmos 0 periodo inicial da penetracao europeia no Sudeste Asidtico. Dois exemplos, extraidos do arquipélago filipino e do indonésio, sao elucidativos. Num importante livro escrito recentemente, William Henry Scott tentou reconstruir em deta- Ihesa estrutura de classe das Filipinas pré-hispanicas, baseando-se nos primeiros registros espanh6is.‘ Como historiador profissio- nal, Scott sabe perfeitamente que o nome'“Filipinas” vem de Felipe u da “Espanha’, e que, por sorte ou azar, 0 arquipélago podia ter caido em maos holandesas ou inglesas, ter se segmentado politica- mente ou se recombinado com conquistas posteriores.’ Portanto, sentimo-nos tentados a atribuir sua curiosa escolha do tema ao longo periodo de sua permanéncia nas Filipinas e as suas fortes simpatias por um nacionalismo filipino que, ha um século, segue os rastros de um Eden aborigine. Mas ha boas chances de que a 4.William Henry Scott, Cracksin the parchment curtain, capitulo 7,"Filipino class structure in the sixteenth century”. 5. Na primeira metade do século xv, 0s assentamentos espanhdis no arquipéla- go sofreram repetidos ataques das forgas da Companhia das Indias Orientais, a maior corporagdo “transnacional” da época. Se os piedosos colonos catélicos sobreviveram, foi gracas ao protetor arqui-herético, que manteve Amsterdam acuada durante boa parte do seu governo. Se a Companhia tivesse vencido, pro- vavelmente seria Manila, e nao Batévia {Jacarta], ocentro doimpério“holandés” no Sudeste Asidtico. Em 1762, Londres tomou Manila da Espanha, e a manteve por quase dois anos. £ interessante notar que Madri sé a conseguiu de volta em troca da Flérida, nada mais, nada menos, e de outras “possesses” espanholas a leste do Mississippi. Se as negociagbes tivessem sido outras,o arquipélago pode- ria ter ficado politicamente ligado a Malaia e a Cingapura durante o século xx, 230 base mais profunda para a moldagem da sua imaginacao sejam as fontes em que ele foi obrigado a confiar. Pois 0 fato é que, em qual- quer parte das ilhas que os primeiros padres e conquistadores se aventuraram, avistavam-se em terra firme principales, hidalgos, pecheros e esclavos (principes, nobres, plebeus e escravos) — como queestamentosadaptadosa partir das classificag6es sociais da Ibéria tardo-medieval.Os documentos por eles deixados mostram intime- ros indicios de que os hidalgos praticamente desconheciam a sua miitua existéncia no imenso arquipélago, disperso e pouco povoa- do, e, quando sabiam, costumavam se considerar reciprocamente nao hidalgos, e sim inimigos ou escravos em potencial. Mas o poder da estrutura de referéncia é tao grande que essas indicacées ficam marginalizadas na imaginagao de Scott, e, portanto, ele tem dificul- dade em ver que a “estrutura de classes” do periodo pré-colonial € uma criagdo “censitéria” de imagens, formadaa partir dos tombadi- thos dos galedes espanhéis. Aonde quer que eles fossem, apareciam hidalgos e esclavos, que s6 podiam ser agregados enquanto tais, ou seja, “estruturalmente’, por um Estado colonial incipiente. Quanto a Indonésia, gracas A pesquisa de Mason Hoadley, dispomos de uma apresentagao detalhada de um importante pro- cesso judicial, com foro no porto costeiro de Cirebon, em Java, no final do século xvit.’ Por sorte, os registros holandeses (da Com- panhia das Indias Orientais) e cireboneses locais ainda existem. Se apenas a versao cirebonesa tivesse sobrevivido, saberiamos que 0 réu, acusado de homicidio, era um alto funcionario da corte cire- bonesa, e teriamos apenas 0 seu titulo, Ki Aria Marta Ningrat,enao 0 seu nome pessoal. Mas os registros da Companhia o identificam asperamente como chines — na verdade, esta ¢ a tnica informa- 0 mais importante respeito dele ali disponivel. Assim, fica claro 6. Mason C. Hoadley, “State vs. Ki Aria Marta Ningrat (1696) e Tian Siangko (1720-21)" (ms, inédito, 1982). 231 que o tribunal cirebonés classificava as pessoas por escalao e posi- ¢40 social, enquanto a Companhia classificava por algo equivalen- te a “raga”. Nao ha nenhuma razao para pensar que 0 réu — cuja alta posi¢ao comprova sua longa integra¢do, bem como a de seus antepassados, dentro da sociedade cirebonesa, quaisquer que fos- sem as suas origens — se considerasse “um” chinees. Entdo, comoa Companhia chegou a essa classificacéo? Em que tombadilho foi possfvel imaginar chinees? Com certeza s6 naqueles navios feroz- mente mercantis que, sob comando centralizado, perambulavam incessantes de porto em porto entre o golfo de Mergui e a foz do Yang-tse-kiang. Esquecida da heterogeneidade populacional do Império do Centro, da mutua incompreensibilidade de varias das suas Iinguas faladas, das origens sociais e geogréficas peculiares dasua didspora pelo litoral do Sudeste Asidtico,a Companhia,com o seu olho transocednico, imaginava uma série intermindvel de chinezen, assim como os conquistadores espanh6is tinham enxer- gado uma série infindavel de hidalgos. E, com base nesse inventivo censo, ela comegou a exigir que os coloniais clasificados como chi- nezen se vestissem, morassem, casassem, fossem enterrados e transmitissem herangas deacordo com aquele censo. £ notavel que os ibéricos, muito menos viajantes e mercantis, tenham imagina- do nas Filipinas uma categoria censitdria bem diferente: o que eles chamavam de sangley. Era uma incorporacao ao espanhol do termo hokkiano sengli, que significa “comerciante”.’ Podemos imaginar os protorrecenseadores espanhdis perguntando aos comerciantes atraidos a Manila pelo comércio maritimo: “Quem so vocés?”, e ouvindo a sensata respost: ‘Somos comerciantes”.* 7.Ver, p.ex., Edgar Wickberg, The Chinese in Philippine life, 1850-1898, capitulos re 8. Ocomércio maritimo — cujo entreposto foi, por mais de dois séculos, Manila —trocava sedas e porcelanas chinesas por prata mexicana, 232 ‘Sem navegar pelos sete mares asidticos, por dois séculos os ibéricos continuaram num nevoeiro conceitual confortavelmente provin- ciano, Demorou muito até que o sangley virasse‘‘chinés” —até que a palavra desapareceu no comeco do século xix, dando lugar ao. estilo da Companhia das Indias, com 0 termo chino. Averdadeira inovacao dos recenseadores dos anos 1870, por- tanto, nao consistiu na construgéo de classificagSes etnorraciais, € sim na sua quantificagao sistematica. Os dirigentes pré-coloniais no mundo malaio-javanés jé tinham tentado efetuar uma série de estimativas dos povos sob o seu controle, mas por meio de relagées de impostos e listas de recrutamento. Os objetivos eram concretos e especificos: manter um rastreamento daqueles que realmente poderiam ser tributados e recrutados para o exército — pois esses dirigentes estavam interessados apenas em lucros e potenciais sol- dados. Os primeiros regimes europeus na regio, sob esse aspecto, nao diferiam muito dos anteriores. Mas, apés 1850, as autoridades coloniais estavam usando meios administrativos cada vez mais sofisticados para contabilizar as populagées, inclusive de mulheres e criangas (que os antigos dirigentes sempre tinham ignorado), segundo um labirinto de grades sem nenhum objetivo financeiro ou militar imediato. Antes, os stiditos passiveis de tributagao e recrutamento em geral sabiam muito bem que podiam ser enume- tados; quanto a isso, dominante e dominado se entendiam as maravilhas, mesmo como antagonistas, Mas em 1870 uma mu- Iher“cochinchina’,isenta de impostos e que nao serviria no exér- cito, podia viver a vida inteira, feliz ou nao, nas colénias do Es- treito sem a menor ideia de que era assim que ela estava sendo mapeada de cima. Aqui fica evidente a peculiaridade do novo censo. Ele tentava contar minuciosamente os objetos da sua ima- ginacao febril. Dadas a natureza exclusiva do sistema classificat6- rio ea légica da propria quantificac4o, um “cochinchino” tinha de ser entendido como um digito numa somatéria de “cochinchi- 233, nos” reprodutiveis — dentro, é claro, do territério do Estado. A nova topografia demogréfica arrancou profundas raizes sociais e institucionais, conforme o Estado colonial aumentava de tama- nho e multiplicava as suas funcdes. Guiado por esse mapa imagi- nado, ele organizava as novas burocracias do sistema educacional, juridico, da satide publica, policia e imigracao, que estava cons- truindo sobre o princfpio das hierarquias etnorraciais, sempre entendidas, porém, em termos de séries paralelas. A passagem das. populacées submetidas pela rede diferenciada de escolas, tribu- nais, clinicas, delegacias e departamentos de imigragao criou “habitos de tramitag4o” que, com o tempo, deram uma verdadei- ra vida social as fantasias anteriores do Estado. Desnecessdrio dizer que nem sempre era facil, e que o Estado tropecou muitas vezes em realidades incOmodas. A mais impor- tante delas, de longe, era filiagdo religiosa, que servia de base para comunidades imaginadas muito antigas e estaveis, que nao se encaixavam minimamente no quadriculado autoritério do mapa do Estado leigo. Em diferentes graus, em diferentes colénias do Sudeste Asidtico, os dirigentes tiveram de fazer adaptagdes um tanto desajeitadas, principalmente para o islamismo e 0 budismo. Os templos, as escolase os t ‘ular, continuarama florescer — € 0 acesso a eles era determinado pela escolha indivi- dual do povo, nao pelo censo. O Estado raramente podia fazer mais uunais,em part do que tentar regular, restringir, contar, padronizar e subordinar hierarquicamente essas instituigdes em relacao a si proprio.’ Foi exatamente porque os templos, mesquitas, escolas e tribunais eram topograficamente anémalos que eles passaram a ser enten- didos como zonas de liberdade e — com o tempo — fortalezas de onde os anticolonialistas religiosos, e mais tarde nacionalistas, 9. Ver capitulo 6, acirna (p. 163) sobrea luta do colonialismo francés para separar © budismo no Camboja dos seus antigos vinculos com 0 Sido. 234 podiam sair para a batalha. Ao mesmo tempo, havia frequentes tentativas de implantar uma adequagao maior entre o censo € as comunidades religiosas com — na medida do possivel —aetniza- ao politica e juridica destas ultimas. Na Federagao dos Estados Malaios coloniais, essa tarefa era relativamente facil. Aqueles que o regime considerava pertencentes série“malaios” eram empurra- dos para os tribunais dos “seus” sultdes castrados, em grande medida administrados de acordo com alei islamica." Assim, “isl- mico” era tratado como apenas, na verdade, um sinénimo de “malaio”. (Somente depois da independéncia, em 1957, certos gru- pos politicos se empenharam erh inverter essa Logica, entendendo “malaio” como apenas, na verdade, um sindnimo de “islamico”.) Nas vastas e heterogéneas Indias holandesas, onde no fim da era colonial uma série de organiza¢ées missiondrias rivais havia feito intmeras conversdes em zonas bastante dispersas, uma tentativa parecida encontrou obstaculos muito maiores. No entanto, mesmo. ai, os anos 1920 e 1930 presenciaram o crescimento de cristianis- mos “étnicos” (as igrejas Batak, Karo, Dayak, e assim por diante), que se desenvolveram, em parte, porque o Estado alocou zonas de proselitismo a diferentes grupos missionarios de acordo comasua propria topografia censitaria.Com o islamismo, a Batavia nao teve o mesmo éxito. Ela nao se atreveu a proibir a peregrinagao até Meca, mas tentava inibir o aumento do numero de peregrinos, policiava as viagens e os espionava num posto de fronteira em Jid- dah montado exclusivamente para esse fim. Nenhuma dessas medidas foi suficiente para impedir a intensificagdo dos contatos islamicos das Indias Orientais com 0 enorme mundo do islamis- mo no exterior, sobretudo com as novas correntes de pensamento vindas do Cairo." 10. Ver William Roff, The origins of Malay nationalism, pp. 72-4. 1. Ver Harry J. Benda, The crescent and the rising sun, capitulos 1-2, 235 O MAPA Mas, enquanto isso, Cairo e Meca estavam comecandoaser vis- tos de uma nova e estranha maneira, nao mais como simples locali- dades numa geografia muculmana sagrada, mas também como pontos em folhas de papel que inclufam outros pontos, como Paris, Moscou, Manila e Caracas; a relacao plana entre esses pontos indife- rentemente laicos e sagrados era determinada por nada mais que uma linha reta calculada matematicamente. O mapa de Mercator, introduzido pelos colonizadores europeus, comegava, impresso, a modelar a imaginacao dos sudeste-asiaticos. Numa brilhante tese de doutorado, o historiador tailandés Thongchai Winichakul rastreou os processos complexos de surgi- mento de um “Siéo” com fronteiras préprias entre 1850 ¢ 1910.” Seu estudo é elucidativo justamente porque 0 Sido nao foi coloni- zado, embora aquelas que, ao final, viriam a ser as suas fronteiras foram colonialmente determinadas. No caso tailandés, portanto, podemos ver com uma clareza inusitada o surgimento de uma nova mentalidade estatal dentro de uma estrutura “tradicional” de poder politico. Até a ascensdo do inteligente Rama tv (o Mongkut de O rei e eu), em 1851, existiam apenas dois tipos de mapas no Sido, ambos feitos 4 mao: l4, ainda ndo surgira a era da reproducao mecanica. Um deles era o que se poderia chamar de “cosmogréfico”, uma representagao simbélica formal dos Trés Mundos da cosmologia budista tradicional. O mapa cosmogréfico nao era organizado horizontalmente, como os nossos mapas; consistia numa série de céus supraterrenos e infernos subterraneos que penetravam no mundo visivel ao longo de um eixo vertical. A tinica viagem paraa 12. Thongchai Winichakul, “Siam Mapped: A History of the Geo-Body of Siam’, tese de doutorado, Universidade de Sidney, 1988. 236 qual ele servia era a jornada em busca do mérito e da salvagao. O segundo tipo, totalmente mundano, consistia em diagramas de orientacao para campanhas militares e navegacao costeira. Gros- seiramente organizados segundo o quadrante, seus tra¢os princi- pais eram anotagées sobre o tempo de caminhada e de navegacao, necessarias porque os cartégrafos nao tinham nenhumaconcep¢ao técnica de escala. Cobrindo apenas um espaco terrestre e profano, geralmente eles eram desenhados numa estranha perspectiva ou mistura de perspectivas obliquas, como se os olhos dos desenhistas, acostumados na vida didria a ver a paisagem na horizontal, ao nivel do olho, mesmo assim estivessem subliminarmente influenciados pela verticalidade do mapa cosmografico. Thongchai observa que esses mapas-guias, sempre locais, nunca se situavam num contexto geogréfico estavel e maior,e quea convencao dos mapas modernos, coma vista geral, era totalmente estranha a eles. Nenhum dos mapas marcava fronteiras. Seus criadores acha- riam incompreens{vel a elegante formulacao de Richard Muir: Localizadas nas interfaces entre territrios estatais adjacentes, as fronteiras internacionais tem uma importancia especial para deter- minaros limites da autoridade soberanae para definir a formaespa- cial das regides politicas contidas. {...] Fronteiras [...] existem onde as interfaces verticais entre estados soberanos intersectam a super- ficie da terra. [...] Como interfaces verticais, as fronteiras nao tem extensao horizontal. [...] Existiam marcos miliares e outras demarcagées, e na verdade elas se multiplicavam nas franjas ocidentais do reino, quando os britanicos forcaram a entrada vindo da baixa Birmania. Mas esses marcos eram dispostos de forma descontinua,em vause desfiladei- 13, Richard Muir, Modern political geography, p. 119. 237 Tos estratégicos, e muitas vezes estavam a distancias consideraveis dos marcos correspondentes dispostos pelos adversarios. Eram entendidos horizontalmente, na altura dos olhos, como pontos demarcando a extensao do poder real, e nao “do alto”. Foi apenas nos anos 1870 que as liderancas tailandesas comecaram a pensar nas fronteiras como segmentos de uma linha continua num mapa, que nao correspondia a nada visivel no chao, mas que demarcava uma soberania exclusiva contida entre outras soberanias. Em 1874, apareceu o primeiro manual de geografia, do missiondrio norte- -americano J. W. Van Dyke — um dos produtos iniciais do capita- lismo editorial que entao comegava a penetrar no Sido. Em 1882, Rama v fundou uma escola especial de cartografia em Bangcoc. Em 1892, o ministro da Educacao, principe Damrong Rajanuphab, ao inaugurar um sistema educacional de tipo moderno no pais, fez da geografia matéria obrigatéria nos primeiros anos do secundério. Porvolta de 1900, publicou Phumisat Sayam [Geografia do Sido) de W.G. Johnson, que passou a ser 0 modelo para todos os materiais geogrdficos impressos no pais." Thongchai nota que a convergén- cia vetorial entre o capitalismo tipografico e a nova concep¢io de realidade espacial, apresentada por esses mapas, teve um impacto imediato no vocabulério da politica tailandesa. Entre 1900 e 1915, as palavras tradicionais krung e muang praticamente desaparece- ram, pois imaginavam o territério em termos de capitais sagradas e centros populacionais visiveis e descontinuos.” No lugar delas, veio prathet, “pais”, que o imaginava nos termos invisiveis de um espaco fisico delimitado por fronteiras."* 14. Thongchai, “Siam Mapped’, pp. 105-10, 286. 15. Para uma discussio completa das antigas concepgdes de poder em Java (que, com pequenas diferengas, correspondiam asexistentes no Velho Sido), ver o meu Language and power, capitulo 1. 16. Thongchai, “Siam Mapped’ p. 110. 238 Tal como os censos, os mapas de tipo europeu operavam com base em uma classificacao totalizante, que levou os seus produto- res e consumidores burocraticos a politicas de consequéncias revoluciondrias. Desde a invengao do cronémetro, em 1761, por John Harrison, que permitiu o calculo exato das longitudes, a superficie curva de todo o planeta havia sido submetida a uma grade geométrica que enquadrava os mares vazios e as regides inexploradas dentro de quadriculados medidos com preciso.” A tarefa de, por assim dizer, “preencher” esses quadriculados ficava a cargo de exploradores, topégrafose soldados. No Sudeste Asiatico, a segunda metade do século x1x foi a idade de ouro dos topégrafos militares — coloniais e, pouco depois, tailandeses. Eles se mobili- zaram para deixar o espaco sob a mesma vigilancia que os recen- seadores tentavam impor as pessoas. Triangulac¢ao por triangula- ao, guerra por guerra, tratado por tratado, assim avangava 0 alinhamento entre o mapa e o poder. Nas palavras perspicazes de Thongchai: Em termosde intimeras teorias da comunicacaoedosensocomum, um mapa ¢ uma abstracdo cientifica da realidade. Um mapa apenas Tepresenta algo que ja existe objetivamente “ali”. Na histéria que eu apresentei, essa relagdo estava invertida. Um mapa antecipava area- lidade espacial, e nao vice-versa, Em outros termos, um mapa era um modelo para o que (e nao um modelo do que) se pretendia representar. [...] Ele havia se tornado um instrumento real para concretizar projecdes sobre a superficie terrestre. Agora era neces- sério um mapa que respaldasse as reivindicagées das tropas e os novos mecanismos administrativos. [...] © discurso do mapeamen- 1. David S. Landes, Revolution in time: clocksand the making of the modern world, capitulo 9. 18, “Siam Mapped”, p. 310. 239 to era o paradigma dentro do qual funcionavam e serviam as ope- Tacoes tanto administrativas quanto militares. Na virada do século, com as reformas do principe Damrong no Ministério do Interior (um belo nome de mapeamento), por fim a administragao do reino foi posta numa base totalmente car- togréfica territorial, seguindo a pratica anterior vigente nas colé- nias vizinhas. Seria insensato desconsiderar a intersecdo crucial entre 0 mapa eo censo. Pois 0 novo mapa foi um sélido instrumento para romper a série infinddvel de “hakkas”, “ceiloneses nao tamiles” e “javaneses” gerada pelo aparato formal do censo, delimitando ter- ritorialmente, para finalidades politicas, onde cada um deles termi- nava. Além disso, numa espécie de triangulacdo demogréfica, 0 censo preenchia politicamente a topografia formal do mapa. Dessas mudangas surgiram dois avatares finais do mapa (ambos instituidos pelo Estado colonial no seu ultimo periodo) que prefiguram diretamente os nacionalismos oficiais do Sudeste Asiatico no século xx. Com plena consciéncia de que eram intru- sos nos distantes trépicos, mas vindos de uma civilizagéo onde a heranca e a transferéncia legais do espaco geogréfico provinham de longa data,” os europeus frequentemente tentaram legitimar a expansdo do seu poder através de métodos de aparéncia legal. Um dos mais utilizados era tomar como “heranga” as supostas sobera- nias dos dirigentes nativos, eliminados ou submetidos pelos euro- 19. Nao me refiro simplesmente & heranca ea venda de propriedades fundidrias privadas no sentido usual. Mais importante era a prética europeia de efetuar transferéncias politicas das terras, junto com as respectivas populagdes, através dos casamentos dindsticos. As princesas traziam ducados e pequenos principa- dos como dote de casamento para os maridos,e essas transferéncias eram formal- mente negociadas e “assinadas”. O lema Bella gerant alii, felix Austria, nubel seria inconcebfvel em qualquer Estado da Asia pré-colonial. 240 peus. De qualquer forma, os usurpadores estavam reconstruindo, sobretudo em relacdo a outros europeus, a histéria da aquisicao das novas posses. Dai o surgimento de “mapas hist6ricos”, em especial na segunda metade do século xix, destinados a demons- trar, no novo discurso cartografico, a vetustez de unidades territo- tiais especificas solidamente delimitadas. Através da sequéncia cronolégica dada a esses mapas, surgia uma espécie de narrativa politico-biografica daquele espaco, as vezes com vasta profundi- dade histérica.” Por outro lado, essa narrativa foi adotada, mesmo sofrendo varias adaptacées, pelos Estados nacionais que, no sécu- lo xx, se tornaram os herdeiros dos Estados coloniais.” O segundo avatar era 0 mapa-como-logo. Suas origens eram razoavelmente inocentes — o costume dos estados imperiais de, nos mapas, colorir as suas colénias com uma tinta imperial. Nos mapas imperiais de Londres, as colnias britanicas geralmente eram pintadas de rosa-vermelho, as francesas de purpura-azul, as holandesas de amarelo-marrom, e assim por diante. Colorida dessa forma, cada colonia aparecia como uma peca separada de um quebra-cabega. Como esse efeito de “quebra-cabeca” tornou- -se normal, cada “peca” podia ser totalmente destacada do seucon- texto geografico. Na sua forma final, todos os dados explicativos podiam ser sumariamente removidos: as linhas de latitude e lon- 20. Ver Thongchai, “Siam Mapped’ p. 387, sobre a absor¢ao desse estilo de cria- ao de imagens pela classe dominante tailandesa. Além disso, de acordo com esses mapas histéricos, o corpo geolégico ndo é uma particularidade moderna, mas remonta a mais de mil anos. Os mapas hist6ricos, portanto, ajudam a refutar qualquer sugestdo de que a nacionalidade teria surgido recentemente,e.liminaa tese de que 0 Sido da época era o resultado de rupturas. Bem como aiideia de que a origem do Sido estava na ligacdo entre as autoridades siamesas ¢ europeias. 21. Fssa adogdo nao foi de maneira alguma um ardil maquiavélico. A consciéncia dos primeiros nacionalistas em todas as colénias do Sudeste Asidtico foi profun- damente moldada pelo “formato” do Estado colonial e das suas instituicdes. Ver capitulo 6. gitude, os nomes dos lugares, os simbolos dos rios, dos mares e das. montanhas, e os vizinhos. Puro signo, nao mais bussola para o mundo. Com esse formato, o mapa ingressou numa série que podia ser reproduzida ao infinito, podendo ser transferido para cartazes, selos oficiais, cabecalhos, capas de revistas e manuais, toa- lhas de mesa e paredes de hotéis. Imediatamente identificavel, vis{- vel por toda parte, o mapa-logo penetrou fundo na imaginacao popular, formando um poderoso emblema para os nacionalismos anticoloniais que vinham nascendo.” A Indonésia moderna nos oferece um belo e doloroso exem- plo desse proceso. Em 1828, foi assentada a primeira colonia holandesa infestada de febre na ilha da Nova Guiné. Ela teve de ser abandonada em 1836, mas a Coroa holandesa proclamou a sobe- raniasobreaquela parte da ilhaa 141 grausde longitude leste (uma linha invis el que nao correspondia a nada no solo, mas enqua- drada nos espagos em branco de Conrad, que vinham diminuin- do),* com a excegdo de algumas faixas litoraneas sob a soberania dosultdo de Tidore. Apenasem 1901, Haia comprouapartedosul- tao e incorporou a Nova Guiné Ocidental as Indias holandesas — 22, Nos textos de Nick Joaquin, importante homem de letras — ¢ incontestavel patriota — das Filipinas de hoje, podemos ver a poderosa atuagao desse emble- ma operando sobre a mais sofisticada inteligéncia. Joaquin afirma que o general Antonio Luna, tragico heréi da luta antiamericana de 1898-99, apressou-se em “cumprir o papel que foraiinstintivo nos crioulosdurantetrés séculos:a defesa da {forma das Filipinas contra um destruidor estrangeiro’, A question of heroes, p. 164 (grifo meu). Em outra passagem, cle observa, de modo surpreendente, que “os mercenérios, convertidos e aliados filipinos [da Espanha] enviados contra 0 rebelde filipino podem ter mantido o arquipélago como espanhol e cristéo, mas também oimpediram de se esfacelar’,e que eles “estavam lutando (oque quer que pretendessem os espanh6is) para manter o Filipino uno’ ibid., p. 58. * Referéncia a imagem usada por Joseph Conrad para designar as regiGes jé mapeadas, mas ainda inexploradas, do globo. (Ed. bras.: O coragio das trevas, trad. Albino Poli Jr. Porto Alegre, L&:PM, 1998, pp. 13-4.) 242 bem na hora certa da logoizacao. Grandes partes da regiao conti- nuaram espacos em branco no sentido conradiano até depois da Segunda Guerra Mundial; os poucos holandeses que la moravam eram, na maioria, missiondrios, mineradores — e guardas de pri- sbes especiais para nacionalistas indonésios radicais e intransigen- tes. Os pantanosao norte de Merauke, no extremo sudeste da Nova Guiné holandesa, foram escolhidos para isso justamente porque a regido era considerada muito distante do resto da colénia, ea populacao local, da “idade da pedra”, nao tinha sofrido nenhum contagio com o pensamento nacionalista.” Odesterro, e muitas vezes 0 enterro, de martires nacionalistas na regio deua Nova Guiné Ocidental um lugar de destaqueno fol- clore da luta anticolonial, e converteu-a num sitio sagrado para o imagin4rio nacional: a Indonésia Livre, de Sabang (na ponta noroeste de Sumatra) até — onde mais? — Merauke. Nao fazia a menor diferenga o fato de que, tirando as poucas centenas de pri- sioneiros, nenhum nacionalista jamais tivesse visto com os pr6- prios olhos a Nova Guiné, até os anos 1960. Mas os logomapas que percorriam a colénia, mostrando uma Nova Guiné Ocidental sem nada ao seu leste, reforgavam inconscientemente os lacos que se desenvolviam na imagina¢4o. Quando os holandeses, no desfecho das 4speras guerras anticoloniais de 1945-49, foram obrigados a ceder a soberania do arquipélago para os Estados Unidos da Indonésia, eles tentaram (por razdes que nao precisam nos deter aqui) separar novamente a Nova Guiné Ocidental, manté-la por algum tempo sob dominio colonial e prepar4-la como uma nag4o independente. Esse empreendimento sé foi abandonado em 1963, em virtude de uma forte pressao diplomatica americana e de ata- ques militares indonésios. Foi sé af que o presidente Sukarno, aos 23, Ver Robin Osborne, Indonesia's secret war, the guerrilla struggle in Irian Jaya, pp. 8-9. 243 62 anos, visitou pela primeira vez uma regido que havia sido obje- to de seus incansaveis discursos durante quatro décadas. Podemos atribuir as dificeis relages que entao se estabeleceram entre os povos da Nova Guiné Ocidental e os emissdrios do Estado indoné- sio independente ao fato de que os indonésios consideram esses Ppovos como “irmiaos e irmas” — e nisso sao mais ou menos since- r0s—,a0 passo que os referidos povos, de modo geral, veemas coi- sas de maneira muito diferente.” Essa diferenga se deve, em larga medida, ao censo e ao mapa. O terreno acidentado e a distancia da Nova Guiné criaram, ao longo dos milénios, uma extraordinaria fragmentagao linguistica. Quando os holandeses sairam da regidio, em 1963, calculavam que, entrea popula¢ao de 700 mil habitantes, havia bem mais de duzen- tas linguas, na maioria incompreensiveis entre si.” Muitos dos grupos “tribais” mais remotos nem sequer sabiam da sua muitua existéncia. Mas, sobretudo a partir de 1950, missionérios e funcio- narios holandeses empreenderam pela primeira vez um verdadei- ro esforco para “unificé-los”, fazendo recenseamentos, ampliando as redes de comunicagées, montando escolas e construindo estru- turas governamentais supra-“tribais”. Esse esforgo foi realizado por um Estado colonial que, como notamos antes, tinha a caracte- ristica nica de ter governado as Indias, nao basicamente numa 24, Desde 1963, ocorreram intimeros epis6dios sangrentos na Nova Guiné Oci- dental (agora chamada Irian Jaya — Grande Irian), em parte devido a militariza- ‘G20 do Estado indonésio desde 1965, em parte devido as atividades guerrilheiras intermitentes do chamado Movimento Papua Livre (0PM). Mas essas brutalida- des empalidecem ao lado da selvageria de Jacarta no Timor Leste, ex-col6nia por- tuguesa, onde cerca de 1/3 dos 600 mil habitantes morreu devido a guerra,a fome, a doenga erecoloniza¢ao” nos trés primeiros anos apés a invasio de 1976. Nao acho que seja um erro sugerir que essa diferenga se deve, em parte, auséncia de Timor Leste nas logoimagens das [ndias Orientais holandesas e, até 1976, da Indonésia. 25. Osborne, Indonesia's secret war, p. 2. 244 lingua europeia, mas num “malaio administrativo”.* Assim, a Nova Guiné Ocidental foi “criada” na mesma lingua em que a In- donésia havia crescido antes (e que, com 0 tempo, passou a ser a lingua nacional).A ironia é que, dessa forma, o bahasa Indonesia se tornou a lingua franca de um nacionalismo nascente na Nova Guiné Ocidental, a Papua Ocidental.” Mas © que unificou, principalmente depois de 1963, os jovens nacionalistas da Papua Ocidental que viviam em desaven- as foi o mapa. E verdade que o Estado indonésio mudou o nome da regiao, de West Nieuw Guinea para Irian Barat (Irian Ociden- tal) e depois para Irian Jaya, mas ele enxergava a sua realidade local a partir do atlas da era colonial, com uma espécie de vista aérea. Antropélogos, missionérios e funcionérios locais, disper- sos ali e acol4, podiam conhecer e pensar sobre os ndanis, os asmats e os baudis. Mas 0 Estado em si, e através dele a populagao indonésia como um todo, via apenas um fantasmag6rico “ nés” (orang irian), assim designado a partir do mapa; por ser fan- tasmagorico, podia ser imaginado quase como um logo: de tracos “negroides”, com tanga, e assim por diante. De uma forma que nos lembra como a Indonésia foi inicialmente imaginada, dentro das estruturas racistas das Indias Orientais holandesas do comeco do século xx, surgiu entéo um embriao de comunidade nacional “irianesa’, delimitada pelo meridiano 141 e pelas provincias vizi- nhas das Molucas do norte e sul. Quando Arnold Ap, o seu porta- -voz mais importante e atraente, foi assassinado pelo Estado em 1984, ele era o curador de um museu do Estado dedicado a cultu- ra“irianesa” (da provincia). ia- 26. Ver acima, p. 110. 27, 0 melhor sinal disso é que o nome da organizagao guerrilheira nacionalista contra a Indonésia — Organisasi Papua Merdeka (opm) — é composto de pala- vras indonésias. 245 © MUSEU O vinculo entre a profissdo e o assassinato de Ap nao é de forma alguma casual. Pois os museus e a imaginacao museologi: zante sao profundamente politicos. O seu museu tinha sido insti- tuido por uma distante Jakarta, fato que nos mostra 0 quanto 0 novo Estado nacional da Indonésia tinha aprendido com o seu antecessor imediato, as Indias Orientais holandesas coloniais. A atual proliferacao de museus em volta do Sudeste Asidtico sugere que hé um processo geral de incorpora¢ao de herangas politicas em andamento. Para entendermos minimamente esse processo, temos de avaliar a nova arqueologia colonial oitocentista que pos- sibilitou a existéncia de tais museus. At€ 0 inicio do século x1x, os dirigentes coloniais no Sudeste Asidtico mostravam pouquissimo interesse pelos antigos monu- mentos das civilizagdes que haviam subjugado. Thomas Stamford Raffles, sinistro emissdrio da Calcut de William Jones, foi o primei- ro funcionério colonial importante que nao se limitou a reunir uma grande colecdo pessoal de objets d’art locais, mas estudou sistemati- camente a histéria deles.” A partir dai, e numa rapidez sempre maior, as grandezas do Borobudur, de Angkor, de Pagan e outras localidades antigas foram sucessivamente desenterradas, capinadas, medidas, fotografadas, reconstruidas, removidas, analisadas e pos- tas em exposi¢ao.” Os servicos arqueoldgicos coloniais se tornaram 28, Em 1811, as forgas da Companhia das Indias Orientaistomaram todasas pos- sessdes holandesas nas Indias (Napoledo havia anexado a Holanda a Franga no ano anterior). Raffles governou Java até 1815. A sua monumental Histéria de Java foi editada em 1817, dois anos antes que ele fundasse Cingapura. 29. A museificagao do Borobudur, o maior templo budista do mundo, exemplifi- caesse processo. Em 1814,0 regime de Raffles o “descobriu” retirou o mato que © recobria, Em 1845, Schaefer, aventureiro ¢ artista alemao auténomo, conven- ceu as autoridades holandesas na Batdvia a lhe pagarem para fazer os primeiros 246 instituigdes de poder e prestigio, convocando os servicos de alguns funciondrios com erudigao e de capacidade excepcional.” Analisar minuciosamente por que isso ocorreu na época em que ocorreu nos levaria longe demais. Aqui, talvez baste sugerir que essa mudanga esteve associada ao eclipse dos regimes colo- niais comerciais das duas grandes Companhias das Indias Orien- tais e ao surgimento da verdadeira colénia moderna, diretamen- daguerrestipos. Em 1851, a Batévia enviou uma equipe de funcionérios publi- cos, coordenada pelo engenheiro civil F.C. Wilsen, para um levantamento siste- mitico dos baixos-relevos também para montar um conjunto“cientifico” com- pleto de litogravuras. Em 1874, 0 dr. C, Lemans, diretor do Museu de ‘Antiguidades de Leiden, publicou, por ordem do ministro das col6nias,aprimei- ra grande monografia especializada; ele se baseou essencialmente nas litogravu- ras de Wilsen, nunca chegando a visitar o local. Nos anos 1880, 0 fot6grafo pro- fissional Cephas fez um levantamento fotogréfico completo, de tipo moderno. Em 1901, 0 regime colonial formou uma Oudheidkundige Commissie (Comis- sao de Antiguidades). Entre 1907 ¢ 1911,a Comissao supervisionou a restaura- ‘ho integral do templo, executada por uma equipe comandada pelo engenheiro civil Van Erp e financiada pelo Estado. Decerto em reconhecimento desse suces- 0, a comissio foi promovida em 1913 a um Oudheidkindigen Dienst (Setor de Antiguidades), responsével pela manutencio cuidadosa do monumento até 0 final do periodo colonial. Ver C, Lemans, Boro-Boudour, pp. ii-lv;eN.]. Krom, Inleiding tot de Hindoe-Javaansche Kunst, 1, capitulo 1. 30. 0 vice-rei Curzon (1899-1905), um aficionado por antiguidades que, segun- do Groslier, “energizou” a Inspecdo Arqueolégica da India, expos muito bem a questao: “E [...] igualmente nosso dever desenterrar e descobrir, classificar, reproduzir e descrever, copiare decifrar, cuidar e conservar”, (Foucault nao diria melhor.) Em 1899, foi fundado o Departamento Arqueolégico da Birmania entéo parte da India britanica—, que logo deu inicio a restauracdo de Pagan. No ano anterior, fora inaugurada a Ecole Francaise d’Extréme-Orient em Saigon, logo se seguindo uma Diretoria de Museus e Monumentos Histéricos da Indochina. Imediatamente depois que os franceses tomaram Siemreap ¢ Bat- tambang do Sido, em 1907, foi montado um Servico de Conservagao de Angkor para “curzonizar” os monumentos antigos mais impressionantes do Sudeste Asidtico, Ver Bernard Philippe Groslier, Indochina, pp. 155-7, 174-7. Como vimos acima, a Comissio de Antiguidades colonial holandesa foi montada em 1901.A coincidéncia das datas — 1899, 1898, 1901 — nao sé mostra o quanto as 247 tevinculada a metrpole.” Dessa forma, agora o prestigio do Esta- do colonial estava intimamente ligado ao do seu superior na terra natal. E notavel como os trabalhos arqueoldgicos se concentra- ram macigamente na restauracdo de monumentos imponentes (e como estes comecaram a ser colocados em mapas para distribui- 40 e instrugao do publico: estava em curso uma espécie de censo necrolégico). Sem duivida, essa énfase refletia modas orientalistas gerais. Mas o grande volume de recursos investidos nos permite suspeitar que o Estado tinha as suas proprias raz6es nao cientifi- cas. Trés se apresentam de imediato, sendo a ultima certamente a mais importante. Em primeiro lugar, o momento desse dinamismo arqueol6- gico coincidiu com a primeira luta politica sobre os programas educacionais do Estado.” Os “progressistas” — colonos e nativos poténcias coloniais rivais se observavam mutuamente, como também indica profundas mudancas em curso no imperialismo na virada do século. Como seria de esperar, o Sido independente caminhou mais devagar. O seu Servigo Arqueo- 6gico s6 foi fundado em 1924, € 0 seu Museu Nacional em 1926. Ver Charles Higham, The archaelogy of mainland Southeast Asia, p.25. 31. A Companhia Holandesa das Indias Orientais,falida, foi liquidada em 1799. Masa colénia das Indias holandesas data de 1815, quando a Holanda recuperou a sua independéncia com a Sagrada Alianca, e Guilherme 1 de Orange instituiu um trono holandés, inventado primeiramente por Napoledo € 0 seu bondoso irmao Luis,em 1806. A Companhia Briténica das Indias Orientais sobreviveu até ‘o grande Motim indiano de 1857. 32. A Oudheidkundige Commissie foi montada pelo mesmo governo que (em 1901) inaugurou a nova “Polftica Etica” para as Indias, a qual, pela primeira vex, tinha como objetivo instituir um sistema educacional de tipo ocidental para parcelas consideraveis da populacao colonizada. O governador-geral Paul Doumer (1897-1902) criou tanto a Diretoria de Museus e Monumentos Hist6ricos da Indochina quanto o aparato educacional moderno da colénia. Na Birmania,a enorme expansio do ensino médio e universitério— queentre 1900 e 1940 octuplicou o numero de alunos secundaristas, passando de 27401 para 233 543, e multiplicou por vinte o ntimero de estudantes universitdrios, 248 — pressionavam por investimentos de monta na escolarizagao moderna. Contra elesalinhavam-se os conservadores, que temiam as consequéncias a longo prazo dessa escolarizagao e preferiam que Os nativos continuassem nativos. A essa luz, as restauragGes arqueolégicas — logo seguidas por edi¢des de textos literdrios tra- dicionais, patrocinadas pelo Estado — podem ser vistas como uma espécie de programa educacional conservador, que também servia como pretexto para resistir 4 pressao dos progressistas. Em segun- do lugar, o programa ideolégico formal das reconstrugdes sempre colocava os construtores dos monumentos e os nativos coloniais numa determinada hierarquia. Em alguns casos, como nas Indias Orientais holandesasaté os anos 1930, alimentava-se aideia deque os construtores, na verdade, nao eram da mesma “raga” dos nati- vos (eram “realmente” imigrantes indianos).” Em outros casos, como na BirmAnia, o que se imaginava era uma decadéncia secu- lar, de modo que os nativos contemporaneos nao eram mais capa- zes das realizagGes dos seus ditos ancestrais. A essa luz, os monu- mentos reconstruidos, ao lado da pobreza rural circundante, diziam aos nativos: a nossa mera presen¢a mostra que vocés sem- pre foram, ou hé muito tempo se tornaram, incapazes de grande- za ou de autogoverno. A terceira razao nos leva mais fundo, e mais perto do mapa. Vimos antes, na nossa discussao sobre o “mapa histérico”, que os regimes coloniais come¢aram se apegando, além da conquista, a de 115 para 2365 — comegou justamente quando o Departamento Arqueo- logico da Birmania entrou em agao. Ver Robert H. Taylor, The state in Burma, p. 114. 433. Parcialmente influenciados por esse tipo de pensamenteo, intelectuais, arquedlogos ¢ funcionérios tailandeses conservadores continuam até hoje a atribuir Angkor ao misterioso Khom, que desapareceu sem deixar rastro, ¢ certamente nao tém nenhuma ligagdo com os desprezados cambojanos de hoje. 249 questées de antiguidade, a principio por razdes estritamente maquiavélico-legalistas. Mas, com o passar do tempo, as alega- goes francamente brutais sobre o direito de conquista foram diminuindo, e aumentaram os esfor¢os de criar uma legitimida- de alternativa. Crescia o numero de europeus que nasciam no Sudeste Asidtico e queriam que aquele fosse seu lar. A arqueolo- gia monumental, cada vez mais ligada ao turismo, permitia que 0 Estado aparecesse como o guardiao de uma tradicao generali- zada, mas também local. Os antigos sitios sagrados deviam ser incorporados ao mapa da colonia, eo seu venerando prestigio (0 qual, se tivesse desaparecido, como amitide se deu, seria revivi- do pelo Estado) envolveria também os cartégrafos. Ilustra bem essa situacao paradoxal o fato de que os monumentos recons- trufdos eram cercados por gramados elegantemente tragados, sempre com placas explicativas, cheias de datas, dispostas aqui e ali, Além disso, foram feitos para permanecer vazios ou com meia duizia de turistas perambulando (na medida do possivel, nada de peregrinagées ou ceriménias religiosas). Assim musei- ficados, eles eram reposicionados como insignias de um Estado colonial secular. Mas,como notamos acima, um tra¢o caracteristico dos recur- sos instrumentais desse Estado laico eraa reprodutibilidade ao infi- nito, tecnicamente possivel devido a imprensa e a fotografia, mas politico-culturalmente possfvel devido a descrenca dos préprios dirigentes no carater sagrado desses sitios locais. Por toda parte nota-se uma espécie de progressdo: (1) relatérios arqueolégicos macigos, tecnicamente sofisticados, com dezenas de fotografias, registrando o processo de reconstrugao de cada ruina; (2) livros luxuosamente ilustrados para consumo publico, inclusive estam- pas exemplares de todos os principais sitios reconstrufdos dentro da col6nia (tanto melhor se santuérios budistas hindus pudessem ficar ao lado de mesquitas islamicas restauradas, como no caso das 250 Indias holandesas).* Gracas ao capitalismo tipografico, os stiditos do Estado passam a ter acesso, mesmo que a alto custo, a uma espé- cie de censo pictorico do patriménio estatal; (3) uma logoizacao geral, posstvel gracas aos processos de laicizacao anteriormente mencionados. Modelares, nessa fase, sao os selos postais, com as suas séries tipicas — aves, frutas, fauna dos trépicos, e por que ndo monumentos também? Mas 0s cart6es-postais e os livros didaticos seguem a mesma légica. A partir daqui, basta um passo para o mer- cado: Hotel Pagan, Borobudur Fried Chicken, e assim por diante. Esse tipo de arqueologia, que amadurecia na era da reprodu- ¢40 mecanica, era profundamente politico, mas em um nivel tao profundo que quase ninguém, nem mesmo o funcionalismo do Estado colonial (que, nos anos 1930, era 90% composto de nativos em grande parte do Sudeste Asidtico), se apercebia do fato. Ele havia se tornado totalmente normal e corriqueiro. Era precisa- mentea reprodutibilidade cotidiana infinita das suas insignias que revelava o verdadeiro poder do Estado. Decerto nao surpreende muito que os estados pés-indepen- déncia, que mostravam nitidas continuidades com os antecessores coloniais, tenham herdado essa forma de museificacao politica. Por exemplo, em 9 de novembro de 1968, como parte das comemora- ‘goes do 15* aniversério da independéncia do Camboja, Norodom Sihanouk mandou expor uma grande réplica de madeira e papier 34. Um belo exemplo tardio é Ancient Indonesian art, do estudioso holandés A. J. Bernet Kempers, que se apresenta como “ex-diretor de arqueologia na Indonésia [sic]". Nas pp. 24-5, encontramos mapas que mostram a localizagao dos sitios, antigos. O primeiro é especialmente instrutivo, visto que o seu formato retangu- lar (enquadrado alleste pelo meridiano 141) incluia contragostoa Mindanao fili- pina, o norte de Bornéu da Malisia Britanica, a peninsula malaia e Cingapura. Todos estes estéo em branco, sem nenhum sitio arqueolégico € nem sequer nomes, exceto um solitério ¢ inexplicavel “Kedah. A passagem do budismo hin- dujsta para o islamismo aparece depois da ilustragao 340. 251 maché do grande templo Bayon de Angkor no estadio nacional de esportes em Phnom Penh.” A réplica era tremendamente rude € grosseira, mas serviu ao seu objetivo — reconhecimento instanta- neo, gracas a uma historia de logoizacao durante a era colonial. “Ah, nosso Bayon” — mas com o apagamento total da lembranga dos restauradores coloniais franceses. Reconstruido pelos france- ses, Angkor Wat, novamente uma pega solta de quebra-cabeca como vimos no capitulo 8 do presente livro, tornou-se o simbolo central das sucessivas bandeiras do regime monarquista de Sihanouk, do militarista de Lon Nol e do jacobino de Pol Pot. Ainda mais impressionantes so as mostras de incorporacao da heranca anterior num nivel mais popular. Um exemplo revela- dor consiste numa série de pinturas de episédios da histéria nacio- nal, encomendadas pelo Ministério da Educagao da Indonésia nos anos 1950, As pinturas deviam ser produzidasem massa e distribui- das por toda a rede de ensino do primeiro grau; os jovens indoné- sios deviam ter representagdes visuais do passado do seu pais nas paredes das salas de aula— em toda parte. A maioria dos panos de fundo era naquele previsivel estilo sentimental naturalista da arte comercial do comego do século xx, e as figuras humanas seguiam os dioramas de museu da era colonial ou 0 teatro folclérico pseu- do-histérico, o popular wayang orang. Masa série mais interessan- te mostrava as crian¢as uma representa¢ao do Borobudur. Na ver- dade, esse monumento colossal, com 504 imagens de Buda, 1460 painéis pict6ricos e 1212 painéis de pedra decorativos é um repo- sitério fantastico da antiga escultura javanesa. Mas 0 respeitado artista imagina essa maravilha no seu auge, no século Ix d.C. de uma maneira instrutivamente distorcida. Borobudur é pintado totalmente de branco, sem nenhum tra¢o visivel de escultura. Cer- cado de gramados bem aparados e alamedas arborizadas e regula- 35. Ver Kambuja, 45 (dezembro 1968), para algumas fotografias curiosas. 252 es, no se vé um nico ser humano.” Talvez alguém alegue que esse vazio reflete o desconforto de um pintor muculmano contempo- raneo diante de uma antiga realidade budista. Mas eu desconfio que, na verdade, o que estamos vendo é um descendente incons- ciente e direto da arqueologia colonial: Borobudur como insignia do Estado e como logoimagem do tipo “claro, é ele”. E um Borobu- dur tanto mais poderoso como signo da identidade nacional por- que todos sabem que ele se situa numa série infinita de idénticos Borobudurs. Assim, mutuamente interligados, censo, mapa e museu ilu- minam 0 estilo de pensamento do Estado colonial tardio em rela- do aos seus dominios. A “urdidura” desse pensamento era uma grade classificat6ria totalizante que podia ser aplicada com uma flexibilidade ilimitada a qualquer coisa sob o controle real ou ape- nas visual do Estado: povos, regiées, religides, linguas, objetos pro- duzidos, monumentos, e assim por diante. O efeito dessa grade era sempre poder dizer que tal coisa era isso e nao aquilo, que fazia parte disso e nao daquilo. Essa coisa qualquer era delimitada, deter- minada e, portanto, em principio enumerdvel. (Os cémicos itens classificatérios e subclassificatérios do censo, chamados “Outros”, ocultavam todas as anomalias da vida real com um espléndido trompel’oeil burocratico.) A“trama” era o que podemos chamar de serializagdo: 0 pressuposto de que o mundo era feito de plurais reprodutiveis. O particular sempre aparecia como um representan- te provisdrio de uma série, e devia ser tratado a essa luz. E por isso que o Estado colonial imaginava uma série chinesa diante de qual- 36. Aquioargumento se baseia em material analisado mais extensamenteem Lan- ‘guage and power, capitulo 5. 253 quer chinés, e uma série nacionalista diante do surgimento de qualquer nacionalista. Quem nos apresenta a melhor metéfora dessa estrutura men- tal é0 grande romancista indonésio Pramoedya Ananta Toer, que deu ao tltimo volume da sua tetralogia sobre 0 periodo colonial o titulo de Rumah Kaca —a Casa de Vidro. E uma imagem, tao vigo- rosa quanto o Pandptico de Bentham, de levantamento e rastrea- mento total. Pois o Estado colonial nao pretendia apenas criar, sob oseucontrole, uma paisagem humana de plena visibilidade;acon- dicdo dessa “visibilidade” era que tudo e todos tivessem (por assim dizer) um numero de série.” Esse estilo de criagao imagindria nao nasceu do nada, Foiresultante das tecnologias de navega¢ao, astro- nomia, horologia, topografia, fotografia e impressdo gréfica, para nem mencionar a tremenda forca propulsora do capitalismo. Assim,o mapaeocenso modelaram a gramitica que, no devi- do tempo, possibilitaria o surgimento da“Birmania” e dos“birma- nianos’, da “Indonésia” e dos “indonésios”. Mas a concretizacao dessas possibilidades— que ainda prospera vigorosamente, muito tempo apéso fim do Estado colonial — é largamente tributaria do tipo especifico de criagdo de imagens do Estado colonial em rela- 40 a histéria e ao poder. A arqueologia era uma atividade incon- cebivel no Sudeste Asidtico pré-colonial; ela foi adotada no Sido, que nao foi colonizado, j4 numa época bem adiantada, e seguindo oestilo do Estado colonial. Ela criou a série“monumentosantigos’, segmentada dentro da rubrica classificat6ria geografico-demo- 37. Uma resultante politica exemplar desse imagindrioda Casa de Vidro— da qual © ex-prisioneiro politico Pramoedya tem doloroso conhecimento — éa carteira de identidade classificatéria que todos os indonésios adultos precisam portar 0 tempo todo. Esse documento de identidade ¢ isomérfico com o censo — ele representa uma espécie de censo politico, com perfuragdes especiais para os que se enquadram nas subséries “subversivos” e “traidores”, Note-se que esse tipo de censo s6 foi aprimorado depois da conquista da independéncia nacional. 254 grafica das “Indias holandesas” e “Birmania britanica”. Concebida dentro dessa série laica, cada ruina tornou-se suscetivel a fiscaliza- do ea reprodugdo ao infinito. Quando o departamento arqueol6- gico do Estado colonial tornou tecnicamente possivel reunir a série sob forma de mapas e fotografias, o proprio Estado podia olhd-la como um Album de seus antepassados até a época histori- ca. Acoisa fundamental nunca foi o Borobudur especifico, nem o Pagan especifico, pelo qual o Estado nao tinha nenhum interesse especial, mantendo apenas ligagdes arqueolégicas. A série repro- dutivel, porém, criou uma profundidade hist6rica que foi facil- mente incorporada pelo sucessor p6s-colonial do Estado. O resul- tado I6gico final foi o logo — de “Pagan” ou das “Filipinas”, pouca diferenga fazia— que, pelo seu vazio, auséncia de contexto, inten- sidade visual e a infinita reprodutibilidade em todas as direcdes, reuniu censo e mapa, trama e urdidura, num amplexo definitivo. 10. Meméria e esquecimento ESPAGO: NOVO E VELHO. New York, Nueva Leon, Nouvelle Orléans, Nova Lisboa, Nieuw Amsterdam. Jé no século xvi, os europeus tinham comega- doa adotar o estranho habito de denominar lugares remotos, pri- meironas Américasena Africa, depois na Asia, Australia e Oceania, como “novas” vers6es de (portanto) “velhos” topénimos em suas terras de origem. Além disso, eles mantiveram a tradi¢do mesmo quando esses lugares passaram para outros senhores imperiais, de modoque Nouvelle Orléans se tornou tranquilamente New Orleans e Nieuw Zeeland, New Zealand. Nao que, de modo geral, 0 uso do adjetivo “novo” para nomear locais politicos ou religiosos fosse tao inédito assim. No Sudeste Asiatico, por exemplo, ha cidades razoavelmente antigas cujos nomes trazem o termo indicando novidade: Chiangmai (Cidade Nova), Kota Bahru (Vila Nova), Pekanbaru (Mercado Novo). Mas, nesses nomes, “novo” significa invariavelmente “sucessor” ou “herdeiro” de algo desaparecido. “Novo” e “velho” 256 estdo alinhados diacronicamente, e o primeiro deles parece sem- pre invocar uma ambigua béncdo dos mortos. O que é desconcer- tante nos nomes americanos dos séculos xvi a XVIII € que “novo” e “velho” eram entendidos sincronicamente, coexistindo dentro do tempo vazio e homogéneo. Vizcaya est ao lado de Nueva Vizcaya, New London ao lado de London: um idioma que mais indicava rivalidade entre irmaos do que de sucessao hereditéria. Essa inédita novidade sincrénica sé podia surgir historica- mente quando houvesse grupos considerdveis de pessoas em con- digdes de se conceberem vivendo vidas paralelas as de outros gru- pos consideraveis de gente — mesmo que nunca se encontrassem, mas com certeza seguindo a mesma trajetéria. Entre 1500 e 1800, umactimulo deinovagées tecnolégicas —naconstrugao de navios, navegacao, horologiae cartografia, com a mediacao do capitalismo editorial — foi tornando possivel esse tipo de criacao de imagens.' ‘Tornou-se concebivel morar no planalto peruano, nos pampas da Argentina ou nos portos da “Nova” Inglaterra, e mesmo assim sen- tir-se ligado a certas regiGes ou comunidades, a milhares de quil6- metros de distancia, na Inglaterra ou na peninsula Ibérica. A pessoa podia ter plena consciéncia de compartilhar lingua e credo religio- so (em graus varidveis), costumes e tradi¢Ges, sem grandes expec- tativas de algum dia conhecer seus companheiro: 1. Esse actimulo atingi um zénite desenfreado na tentativa “internacional” (i. é, europeia) de se encontrar uma medida exata da longitude, narrada de maneira divertida in Landes, Revolution in time, capitulo 9. Em 1776, quando as Treze Col6- nias se declararam independentes,o Gentleman's Magazine incluiuesse curtonecro- 6gio de John Harrison: “Ele foi um mecdnico extremamente engenhoso, e ganhou oprémio de 20 mil libras [de Westminster] pela descoberta da longitude [sic]”. 2. A difusio tardia dessa consciéncia na Asia é habilmente mencionada nas pri- meiras paginas de Burni Manusia {Terra da Humanidade],o grande romance his- t6rico de Pramoedya Ananta Toer. O jovem heréi nacionalista brinca que nasceu na mesma data da futura rainha Guilhermina: 31 de agosto de 1880. “Mas, enquanto a minha ilha estava envolta na escuridao da noite, o pais dela estava banhado de sol; e se 0 seu pais era abragado pelo negrume da noite, a minha ilha brilhava a plena luz equatorial’, p. 4. 257 Para que esse senso de paralelismo ou simultaneidade pudes- se surgir e também ter vastas consequéncias politicas era necess4- rio que a distancia entre os grupos paralelos fosse grande, e que o mais novo deles tivesse um tamanho consideravel e fosse estabele- cido de forma duradoura, além de estar solidamente subordinado ao mais velho. Essas condigées foram encontradas nas Américas, como nunca ocorrera antes. Em primeiro lugar, a imensidao do oceano Atlantico e as condicées geograficas profundamente dife- rentes em cada um de seus lados impediam aquela forma de absor- ‘ao gradual dos povos dentro de unidades politico-culturais mais amplas que transformou Las Espafias na Espanha e submergiu a Escécia dentro do Reino Unido. Em segundo lugar, como vimos no capitulo 3, a migragao europeia para as Américas se deu em escala realmente impressionante. No final do século xvi, havia nada menos que 3,2 milhées de “brancos” (incluindo no maximo 150 mil peninsulares) no total de 16,9 milhdes de habitantes do Império Ocidental dos Bourbon espanhéis.’ O puro e simples tamanho dessa comunidade de imigrantes, tanto quanto a sua esmagadora superioridade militar, econdmica e tecnolégica em relacao aos povos indigenas, garantia que ela mantivesse coesio 3. Desnecessdrio dizer que a classificag4o “branco” era uma categoria legal que mantinha uma relagao claramente tangencial com as complexas realidades sociais. Como disse o préprio Libertador, “nds somos a progenie desprezivel dos ‘espanhéis predadores que vieram a América para sangré-lae procriar comassuas, Vitimas. Mais tarde, os frutos ilegitimos dessas unides se juntaram com a proge- nie dos escravos trazidos da Africa’. Grifo meu. Lynch, The Spanish-American revolutions, p. 249. Deve-se ter cuidado para ndo ver nada de“eternamente euro- peu” nessecriollismo. elembrarmos todos aqueles Da Souza devotamentebudis- ta-singhaleses, aqueles Da Silva piedosamente catélico-florineses ¢ aqueles So- riano cinicamente cat6lico-manilenses, que nao tém problemas em desenhar papéis sociais, econdmicos politicos no Ceiléo, nalndonésia enas Filipinas con- tempordneas, poderemos reconhecer que, sob as circunstancias adequadas, os europeus podiam ser suavemente absorvidos nas culturas nao europeias. 258 cultural e ascendéncia politica local.* Em terceiro lugar, a metr6- pole imperial dispunha de formidaveis aparatos burocraticos ¢ ideolégicos que lhe permitiram impor a sua vontade sobre os crioulos durante varios séculos. (Quando pensamos nos proble- mas puramente logisticos, a capacidade de Londres e Madri de empreender longas guerras contrarrevoluciondrias sobre os colo- nos americanos rebeldes é realmente impressionante.) Anovidade de todas essas condigées se patenteia numa com- paracdo com as grandes migracées drabes ¢ chinesas (mais ou menos na mesma época) para o Sudeste Asidtico e a Africa Orien- tal. Essas migracdes raramente foram “planejadas” por alguma metrépole, e ainda mais raramente criaram relages estaveis de subordinagao. No caso chinés, a tinica leve semelhanca éa extraor- dindria série de viagens atravessando 0 oceano Indico, comanda- das, no comeo do século xv, pelo brilhante almirante eunuco Cheng-ho. Esses empreendimentos arrojados, por ordens do imperador Yung-lo, tinham como objetivo impor um monopélio real sobre o comércio exterior com o Sudeste Asidtico e as regiGes mais a oeste, contra as depredacdes dos mercadores chineses pri- vados.’ Em meados do século, ficou claro o fracasso dessa politica, ea dinastia Ming abandonou as aventuras ultramarinas e fez tudo © que péde para impedir a emigracao do Império do Centro. A queda do sul da China nas maos dos manchus em 1645 provocou um grande fluxo de refugiados para o Sudeste Asidtico, que consi- deravam impensvel qualquer la¢o politico com a nova dinastia. A politica Ching subsequente nao diferia muito da dos ultimos Ming. 4. Compare com o destino da enorme imigracao africana, Os mecanismos bru- tais da escravidio acarretaram nio s6 a sua fragmentagao politico-cultural, mas, também eliminaram rapidamente a possibilidade de imaginar comunidades negras na Venezuela ena Africa Ocidental seguindo uma trajet6ria paralela. 5. Ver O.W. Wolters, The fal of Srivijaya in Malay history, apéndice C, 259 Em 1712, por exemplo, o imperador Kang-hsi promulgou um edito proibindo todo e qualquer comércio com 0 Sudeste Asiatic edeclarou que o seu governo iria “solicitar aos governos estrangei- ros que repatriem os chineses que estejam no exterior, para que possam ser executados”® A tiltima grande onda de migracao ultra- marina ocorreu no século xx, quando a dinastia se desintegrou e surgiu uma enorme demanda de mao de obra chinesa nao quali- ficada no Sido e no Sudeste Asiatico colonial. Como quase todos os migrantes estavam politicamente afastados de Pequim, e além disso eram pessoas analfabetas falando linguas mutuamente incompreensfveis, eles foram mais ou menos absorvidos pelas cul- turas locais ou ficaram terminantemente subordinados aos euro- peus que avangavam.’ Quanto aos 4rabes, a maioria dos fluxos migratérios proveio do Hadramaut, que nunca foi uma verdadeira metrépole na época do Império Otomano e do Império Mughal. Individuos mais empreendedores até conseguiam fundar principados locais, como €0 caso do mercador que fundou o reino de Pontianak em Bornéu ocidental, em 1772; mas ele se casou com uma local, logo perdeua sua “condigao de 4rabe”, se nao o seu islamismo, e manteve-se subordinado aos impérios holandés e inglés que entao surgiam no Sudeste Asidtico, e no a qualquer poténcia do Oriente Proximo. Em 1832, Sayyid Sa’id, senhor de Muscat, montou uma base pode- rosa na costa oriental africana e estabeleceu-se na ilha de Zanzibar, convertendo-a no centro de uma florescente economia baseada no cultivo de cravo-da-india. Mas os britanicos usaram meios milita- 6. Cit. in G, William Skinner, Chinese society in Thailand, pp. 15-6. 7. As comunidades chinesas no ultramar pareciam ser de dimensées suficientes para despertar uma profunda paranoia europeia até a metade do século xvii, quando finalmente cessaram as terriveis perseguicdes dos europeus contra os chineses. A partir dai, essa desagradavel tradigao foi transferida para as popula- Ges indigenas. 260 res para lev4-lo a romper seus lagos com Muscat. Assim, nem os arabes nem os chineses, embora aventurando-se no ultramar em enormes ondas migratérias mais ou menos nos mesmos séculos que os europeus ocidentais, conseguiram estabelecer comunida- des coesas, présperas, conscientemente crioulas, subordinadas a um grande centro metropolitano. Por isso o mundo nunca viu o nascimento de nenhuma Nova Basra ou Nova Wuhan. O duplo cardter das Américas e as suas respectivas razées, acima esbocadas, ajudam a explicar por que o nacionalismosurgiu primeiro no Novo Mundo, e nao no Velho Mundo.’ Também elu- cidam duas caracteristicas peculiares das guerras revoluciondrias que assolaram o Novo Mundo entre 1776 e 1825. Por um lado, nenhum revolucionario crioulo sonhou em manter o império intacto apenas rearranjando a distribuicao interna do poder, invertendoa relacao anterior de sujei¢ao e transferindo a metrépo- le de uma sede europeia para uma sede americana.” Em outras palavras, o objetivo nao era que New London sucedesse, derrubas- se ou destruisse Old London, e sim salvaguardar o paralelismo entre ambas. (Para avaliar quao inédito era esse estilo de pensa- mento, é sé levar em conta a hist6ria dos impérios anteriores na fase do seu declinio, quando era frequente o sonho de substituir 0 velho centro.) Por outro lado, embora essas guerras causassem 8, Ver Marshall G. Hodgson, The venture of Islam, vol. 3, pp. 233-5. 9. Um sinalimpressionante do profundo enraizamento do eurocentrismoéofato de que inimeros estudiosos europeus continuam, a despeito de todasas evidén- cias, considerando o nacionalismo como uma invengio europeia. 10, Mas veja 0 caso irénico do Brasil. Em 1808, 0 reid, Joao v1 se refugiou no Rio de Janeiro, para escapar ao exército de Napoledo. Embora Wellington tivesse expulsado os franceses em 1811,0 monarca emigrado, temendoa agitacao repu- blicana em Portugal, permaneceuna Américado Sul até 1822, de forma queo Rio foi,entre 1808 ¢ 1822,0 centrode um império mundial queseestendia até Angola, Mocambique, Macau e Timor Leste. No entanto, esse império era comandado por um europeu, ndo por um sul-americano, am imensos sofrimentos e fossem marcadas por grandes barbarida- des, estranhamente, nao era muito 0 que estava em jogo. Fosse na América do Norte ou na América do Sul, os crioulos nao precisa- vam temer 0 exterminio fisico nem a escraviza¢ao, ao contrario do que ocorreu com tantos outros povos que estavam no caminho do avanco destruidor do imperialismo europeu. Afinal, eles eram “brancos”,cristaose falavam o espanhol ou inglés; eram também os intermediarios necessdrios as metr6poles, para que a riqueza econémica dos impérios ocidentais pudesse continuar sob 0 con- trole europeu. Assim, eles constitufam o tinico grupo extraeuro- peu significativo, submetido & Europa, que nao precisava morrer de medo da metrépole. As guerras revolucionarias, por mais duras que fossem, ainda assim eram tranquilizadoras, na medida em que eram guerras entre parentes."' Esse vinculo familiar garantia que, apés um certo periodo de ressentimento, fosse possivel reatar inti. mos la¢os culturais, e as vezes politicos e econdmicos, entre as ex- -metrépoles e as novas nagées. TEMPO: NOVO E VELHO Para os crioulos do Novo Mundo, os estranhos topdnimos discutidos acima representavam figurativamente a sua incipiente capacidade de se imaginarem como comunidades paralelas e com- pardveis as da Europa; no entanto, alguns acontecimentos extraor- dindrios no ultimo quarto do século xvii, de subito, conferiram a essa novidade um significado inteiramente novo. O primeiro deles 11. Sem duivida foi isso que permitiu que o Libertador, a certa altura, exclamasse que uma revolta negra, isto é, de escravos, seria “mil vezes pior do que uma inva- sao espanhola” (ver acima, p.86). Uma jacquerie escrava,se vitoriosa, poderia sig- nificar o exterminio fisico dos crioulos. 262 foi, com certeza, a Declaracao de Independéncia das Treze Col6- niasem 1776,esua defesa militar vitoriosa nos anos seguintes. Essa independéncia, e 0 fato de ser republicana, foi vista como algo absolutamente inédito, mas ao mesmo tempo também, apés ter ocorrido, absolutamente razodvel. Por isso, quando a histéria pos- sibilitou, em 1811, que os revoluciondrios venezuelanos redigis- sem uma Constituigao para a Primeira Republica Venezuelana, eles nao viram nenhum servilismo em se apoderar verbatim da Cons- tituigdo dos Estados Unidos da América." Pois o que as pessoas na Filadélfia tinham escrito nao era, aos olhos dos venezuelanos, algo norte-americano, e sim algo de verdade e valor universais. Logo depois, em 1789, a explosdo no Novo Mundo teve o seu paralelo no Velho Mundo, com a irrupgao vulcanica da Revolucao Francesa.” Hoje é dificil imaginar um tipo de vida em que se percebia a nagao como algo completamente novo. Mas era assim naquela época. A Declaragio de Independencia de 1776 nao faz absoluta- mente nenhuma referéncia a Crist6vao Colombo, a Roanoke ou aos Pais Peregrinos, e tampouco se apresenta qualquer justificati- vade tipo “histérico” para a independéncia, no sentido de ressaltar a antiguidade do povo americano. Na verdade, e o que é incrivel, nem sequer se menciona a na¢ao americana. Logo se espalhou uma profunda sensacao de que estava ocorrendo uma ruptura radical com 0 passado — um certo “explodir 0 continuum da his- téria”? Nada ilustra melhor esse sentimento do que a decisdo, tomada pela Convention Nationale em 5 de outubro de 1793, de jogar no lixo o secular calendario cristao e inaugurar uma novaera mundial com 0 Ano 1, comecando pela abolicao do ancien régime 12. Ver Masur, Bolivar, p. 131. 13. Revolucdo Francesa, por sua vez, teve o seu paralelo no Novo Mundo com a insurreigao de Toussaint L.Ouverture em 1791, que em 1806 resultou na segunda rtepiiblica independente do hemisfério ocidental, no Haiti, fundada por obra de ex-escravos. 263 ea proclamacao da Reptiblica em 22 de setembro de 1792." (Ne- nhuma revolucdo posterior teve essa sublime confianca na novi- dade, mesmo porque a Revolugao Francesa sempre tem sido vista como uma ancestral.) Desse profundo sentido de novidade surgiu também nuestra santa revolucién, 0 belo neologismo criado por José Maria More- los y Pavén (proclamador da Republica do México em 1813), pouco tempo antes de ser executado pelos espanhéi bém surgiu o decreto de San Martin, de 1821, determinando que, “no futuro, os aborigines nao serio chamados indios ou nativos; eles sao filhos e cidadaos do Peru e serao conhecidos como perua- nos”. Essa frase faz com os “indios” e/ou “nativos” 0 mesmo quea Convenco em Paris tinha feito com o calendario cristéo — abole a velha designacao desprestigiada pelo tempo e inaugura uma época totalmente nova. Assim, “peruanos”e “Ano 1” marcam reto- ricamente uma profunda ruptura com o mundo existente. Mas as coisas nao podiam permanecer muito tempo dessa maneira — precisamente pelas mesmas razées que, antes, haviam precipitado o sentido de ruptura. No ultimo quarto do século xvint, s6.a Gra-Bretanha fabricava de 150 mil a 200 mil reldgios por ano, muitos deles para exportacao. A producao europeia total deve ter ficado perto de 500 mil unidades anuais.” Os jornais publicados 'S Dele tam- 14.0 jovem Wordsworth estava na Frangaem 1791-92,emaistarde,em The Pre- ude, escreveu esses famosos versos rememorativos: “Bliss was tin that dawn to be alive, But to be young was very heaven!” Grifo meu. {Era uma béngao estar vivo naquele alvorecer,/ Mas ser jover era proprio parai- sol—N.T.] 15.Lynch, The Spanish-American revolutions, pp. 314-5. 16. Cf.cit.acima, capitulo 3. 17. Landes, Revolution in time, pp. 230-1, 442-3. 264 em série ja faziam parte integrante da civilizagao urbana. O mesmo quanto ao romance e sua possibilidade espetacular de representacao de acées simultaneas dentro do tempo vazio e homogéneo." Sentia-se cada vez mais que a horologia césmica que tornara inteligiveis os nossos emparelhamentos transoceanicos sincrénicos acarretava uma visdo serial, totalmente intramundana, da causalidade social; essa percep¢ao de mundo agora aprofunda- varapidamentea sua influéncia nas imaginacées ocidentais. Assim, é compreensivel que, menos de vinte anos apés a Proclamagao do Ano |, tenham se institufdo as primeiras cdtedras académicas de historia — em 1810, na Universidade de Berlim, e em 1812 na Sor- bonne de Napoledo. No segundo quarto do século xix, a hist6ria ja se constituira formalmente como uma “disciplina’, com o seu ela- borado leque de publicagées especializadas.” Logo o Ano I cedeu espaco ao ano 1792 d.C., e as rupturas revolucionarias de 1776 e 1792 passaram a ser apresentadas como fenémenos encravados na série hist6rica e, portanto, como precedentes e modelos histéricos.” Assim, para os membros dos movimentos nacionalistas, diga- mos, da “segunda gera¢4o”, que se desenvolveram na Europa entre 18. Ver acima, capitulo 1. 19. Ver Hayden White, Meta-histéria: imaginagdo histérica do século x1x (EDUSR, 1994], pp. 135-43, para uma discussdo sofisticada dessa transformagio. 20, Masera um d.C. com uma diferenca. Antes da ruptura,esse calendario cristo ja mantinha, por mais frégil que fosse nas plagas esclarecidas, uma aura teo- \égica cintilando a partir do seu latim medieval. O Anno Domini [d.C.,em por- tugues: depois de Cristo] evocava aquelairrupcao da eternidade dentro do tempo mundano que havia ocorrido em Belém. Depois da ruptura, reduzido ao mono- gramitico d.C., ele se juntou a um a.C. (antes de Cristo), que abrangia uma his- t6ria cosmolégica serial (paraa quala nova ciéncia da geologia dava grandes con- tribuigdes). Podemos avaliar a extensdo do abismo entre a.C./4.C, observando quenem o mundo budista nem o mundo islimico, mesmo hoje,imaginam qual- quer época definida como “antes do Gautama Buda” ou “antes da Hégira”. Ne- nhum dos dois estaria a vontade com o estranho monogramaa.C. 265 1815e1850,e também paraa gera¢ao que herdouos estados nacio- nais independentes das Américas, jé nao era possivel “recapturar/ 0 primeiro belo e despreocupado éxtase” dos predecessores revo- luciondrios. Por diferentes razGes e com diferentes consequéncias, os dois grupos, entao, deram inicio ao processo de leitura geneal6- gica do nacionalismo — como a expressao de uma tradigao hist6- rica de continuidade serial. Na Europa, os novos nacionalismos comecaram quase de imediato a se imaginar “despertando do sono’, imagem totalmen- te estranha para as Américas. J4 em 1803 (como vimos anterior- mente no capitulo 4), o jovem nacionalista grego Adamantios Koraes dizia a um receptivo publico parisiense: “Pela primeira vez, anacdo [grega] assiste ao medonho espetdculo da sua ignoranciae treme ao medir com os olhos a distancia que a separa da gloria dos seus ancestrais”. Aqui est4 perfeitamente exemplificadaa transi¢ao do novo parao velho tempo. “Pela primeira vez” ainda traz os ecos das rupturas de 1776 e 1789, mas os doces olhos de Koraes esto voltados nao paraa frente, para o futuro de San Martin, e sim para trds, trémulos, para glérias ancestrais. Nao tardaria muito para que essa estimulante duplicidade desaparecesse, substituida por um despertar modular e “continuo” de um cochilo cronologica- mente medido no estilo d.C.: um retorno garantido a uma essén- cia aborigine. Sem duvida, muitos elementos diversos contribuiram para a espantosa popularidade dessa metéfora.” Para as presentes finali- dades, eu mencionaria apenas dois. Em primeiro lugar, a metéfora 21. Ainda em 1951, 0 inteligente socialista indonésio Lintong Mulia Sitorus podia escrever:“Até final do século xix, 0s povos decor ainda dormiam profundamen- te, enquanto os brancos estavam trabalhando com afinco em todos os campos”, Sedjarah Pergerakan Kebangsaan Indonesia {Hist6riado Movimento Nacionalista Indonésio], p.5. 266 levava em conta senso de paralelismo que havia gerado os nacio- nalismos americanos e que fora intensamente reforcado pela vité- ria das revolugées nacionalistas daquele continente. Ela parecia explicar por que os movimentos nacionalistas haviam estranha- mente brotado no Velho Mundo civilizado num periodo tao obvia- mente posterior ao do Novo Mundo barbaro.” Entendido como um despertar tardio, mesmo que estimulado de longe, ela abria uma imensa antiguidade por tras do sono de uma época. Em segundo lugar, a metéfora oferecia um elo figurativo crucial entre alinguae 0s novos nacionalismos europeus. Como vimos antes, os princi- pais estados da Europa oitocentista eram enormes entidades poli- ticas poliglotas, cujas fronteiras quase nunca coincidiam com as comunidades linguisticas. A maioria da populacao alfabetizada tinha herdado dos tempos medievais 0 habito de considerar certas Iinguas—se nao mais o latim, entao o francés, o inglés, o espanhol ou o alemao — como linguas de civilizagao. Na Holanda, os bur- gueses abastados do século xvi se orgulhavam de falar apenas o francés dentro de casa; 0 alemao era a lingua da cultura em grande parte do império czarista ocidental, bem como na Boémia “tche- ca”, Até data bem avangada do século xvi, ninguém achava que essas linguas pertencessem a algum grupo territorialmente defini- do. Mas logo depois, por razSes apresentadas no capitulo 2, 0s ver- naculos “nao civilizados” comegaram a operar politicamente da mesma forma que, antes, fizera o oceano Atlantico: isto é, a“sepa- rar” as comunidades nacionais submetidas dos antigos reinos dindsticos. E como na vanguarda da maioria dos movimentos nacionalistas populares europeus estavam pessoas letradas, em geral desacostumadas a usar esses verndculos, tal anomalia deman- 22, Talvez se possa dizer que essas revolucdes, aos olhos dos europeus, eram os primeiros acontecimentos politicos realmente importantes que ocorriam do outro lado do Atlantico. 267 dava uma explicacdo. A melhor que apareceu foi a do “sono”, pois permitia que essas camadas intelectuais e burguesas, que vinham seconscientizando como tchecas, huingaras ou finlandesas, enten- dessem os estudos das linguas, dos folclores e das muisicas em tche- co, magiar ou finlandés como uma “redescoberta” de algo que, lé no fundo, sempre fora conhecido. (Além disso, depois que se comega a pensar a nacionalidade em termos de continuidade, poucas coisas parecem tao enraizadas historicamente quanto as linguas, cujas origens nunca podem ser fornecidas em termos de datas.)” Nas Américas, o problema se colocava de outra maneira. De um lado, a independéncia nacional por quase todas as partes tinha sido internacionalmente reconhecida nos anos 1830. Portanto, tinhase tornado umaheranga,e, enquanto tal, deveriaentrar numa série genealégica. Mas o instrumental europeu que se desenvolvia ainda nao estava dispontvel. A lingua nunca havia sido uma ques- t4o nos movimentos nacionalistas americanos. Como vimos, foi justamente o fato de partilhar com a metrépole a mesma lingua (e também a religiao ea cultura) que havia possibilitado as primeiras criagdes de imagens nacionais. Sem divida, hé alguns casos inte- ressantes em que percebemos uma espécie de pensamento “euro- peu” j4 em ago. Por exemplo, o American dictionary of the English language, de Noah Webster, de 1828 (ou seja, “de segunda gera- 40”), pretendia fornecer um imprimatur oficial para uma lingua americana cuja linhagem era diferente da do inglés. No Paraguai,a tradicdo jesuita setecentista de usar o guarani permitiu que uma Ingua “nativa” radicalmente nao espanhola se tornasse uma Iin- 23, Mas a profundidade histérica nao é infinita. Em algum ponto, o inglés desa- parece no franco-normando e no anglo-saxdo; 0 francés no latim e no franco- ~“germanico’, e assim por diante. Veremos adiante como se obteve uma maior profundidade de campo. 268 gua nacional, durante a longa ditadura xenéfoba de José Gaspar Rodriguez de Francia (1814-40). Mas, de modo geral, qualquer tentativa de conferir profundidade hist6rica A nacionalidade por meios linguisticos enfrentou obstdculos insuperaveis. Pratica- mente todos os crioulos tinham ligagées institucionais (através das escolas, dos meios impressos, de habitos administrativos, e assim por diante) com idiomas europeus, e nao indigenas. Qual- quer énfase excessiva sobre as linhagens linguisticas ameagava apagar justamente aquela “memoria da independéncia’”, que era essencial manter. A solugao aplicada tanto no Novo quanto no Velho Mundo foi encontrada na histéria, ou melhor, na determinados enredos. Observamosa rapidez com que as catedras de hist6ria se seguiram ao Ano |. Como observa Hayden White, € igualmente surpreendente que os cinco génios patronos da histo- riografia europeia tenham nascido no quarto de século que se seguiua ruptura temporal da Convencao: Ranke em 1795, Michelet em 1798, Tocqueville em 1805, Marx e Burckhardt em 1818." Entre os cinco, talvez seja natural que Michelet, que se autodesig- nou historiador da Revolugao Francesa, seja o que ilustra com maior clareza.acriagdo de imagens nacionais que entao se iniciava, pois ele foi o primeiro a escrever conscientemente em nome dos istéria montada em mortos.” A seguinte passagem ¢ tipica: ‘Oui, chaque mort laisse un petit bien, sa mémoire, et demande qu'onla soigne. Pour celui qui n’a pas d’amis, il faut que le magistrat y supplée. Car la loi, la justice, est plus stire que toutes nos tendres- 24, Metahistory, p. 140. Hegel, nascido em 1770, a estava no final da adolescéncia quando eclodiu a Revolugdo, mas as suas Vorlesungen iiber die Philosophie der Weltgeschichte foram publicadas apenas em 1837, seis anos apés sua morte. 25. White, Metahistory, p. 159. 269 ses oublieuses, nos larmes si vite séchées. Cette magistrature, c’est l'Histoire. Et les morts sont, pour dire comme le Droit romain, ces miserabiles personae dont le magistrat doit se préoccuper. Jamais dans macarrierejen’ai pas perdu de vuece devoir deT'historien. J'ai donné beaucoup de morts trop oubliés|'assistance dont moi-mémej'aurai besoin. Je les ai exhumés pour une seconde vie. [...] [Is vivent mainte- nant avec nous qui nous sentons leurs parents, leurs amis. Ainsise fait une famille, une cité commune entre les vivants et les morts.” Aquie em outras passagens, Michelet deixou claro queo obje- to da sua exumagao nao era de forma alguma um conjunto aleat6- rio de mortos anénimos e esquecidos. Eram aqueles cujos sacrifi- cios, ao longo de toda a histéria, possibilitaram a ruptura de 1789 € 0 surgimento autoconsciente da nacao francesa, mesmo quando esses sacrificios nao eram entendidos como tais pelas vitimas. Em 1842, escreveu ele a respeito desses mortos: “II leur faut un Oedi- pe qui leur explique leur propre énigme dont ils n’ont pas eu le sens, quileurapprenneceque voulaient dire leurs paroles,leursactes, quiils n’ont pas compris” 26, Jules Michelet, Oeuvres completes, xxi, p. 268, no preficio ao volume 2 (“Jusqu'a 18e Brumaire”) da sua inacabada Histoire du xtxe siécle. Devoessareferénciaa Metahis- tory, mas a traducdo utilizada por White é insatisfatéria. (Sim, cada morte nos deixa ‘um pequeno bem: sua meméria,e exige que cuidemos dela. Para aqueles que néotém amigos, é preciso que um magistrado os compense. Pois a lei e a justica so mais figis do que todas as nossas ternuras esquecidas, nossas ligrimas que secam num instante, Esse magistrado €ahist6ria. Eos mortos sao, parafraseando o direito romano,as mise- rabiles personae com quem o magistrado deve se preocupar. Nunca,em minha carrei- ra, perdi de vista esse dever do historiador. Conferi a uma porgao de mortos demasia- damente esquecidos a ajuda de que eu préprio irei precisar. Exumei-os para uma segunda vida. [..] Hoje eles vivem entre nés como nossos parentes e amigos. Assim se faz uma familia, uma cidade comum entre os vivose os mortos. —N.T.] 27.Cit.in Roland Barthes (org.), Michelet par lui-méme, p.92. 0 volume das Ocu- vres completes com essa citagao ainda nao foi editado. [£-Ihes necessdrio um Edipo que lhes explique o seu préprio enigma, cujo sentido nao entenderam, que 270 Essa formulacao é provavelmente inédita. Michelet nao s6 dizia falar em nome de legides de mortos anénimos, mas também insistia, com uma autoridade comovente, que saberia dizer 0 que eles“realmente” quiseram dizer e “realmente” quiseram fazer, visto que eles préprios “ndo compreenderam” A partir dai, o siléncio dos mortos nao era mais um obstaculo para a exumacdo de seus mais profundos desejos. Dentro desse espirito, nas Américas e em outras partes do mundo, uma quantidade sempre maior de nacionalistas “de segunda geracéo” aprendeu a falar “pelos” mortos, com os quais seria impossivel ou indesejavel estabelecer umaligacao linguistica. Esse ventriloquismo as avessas ajudou a abrir caminho para um indigenismo autoconsciente, sobretudo na América Latina. No limite: mexicanos falando em espanhol “em nome” das civilizagoes “indias” pré-colombianas, cujas linguas eles ndo entendem.* O cardter revoluciondrio desse tipo de exumaco fica muito claro se ocompararmos a formulacao de Fermin de Vargas citada no capi- tulo 1. Pois, enquanto Fermin ainda pensava animadamente em “extinguir” indios vivos, muitos de seus netos politicos ficaram obcecados em “lembrar” e até “falar em nome” deles, talvez justa- mente porque jé estivessem em boa parte extintos. © FRATRIC{DIO TRANQUILIZADOR E extraordinério que 0 foco de atencao nas formulacées “de segunda geracao” de Michelet seja sempre a exumagio de pessoas hes ensine o que queriam dizer as suas palavras, os seus atos, que eles nao com- preenderam.—N.T.] 28. Por outro lado, existe uma tinica estdtua de Hernn Cortés em todo México, Esse monumento, discretamente escondido num nicho da Cidade do México, s6 foi colocado ali no final dos anos 1970, pelo regime odioso de José Lépez Portillo. an ¢ fatos em risco de esquecimento.” Ele nao vé necessidade alguma de refletir sobre “esquecer”. Mas em 1882 — mais de um século depois da Declaracao da Independéncia na Filadélfia e oito anos apésa morte de Michelet—, quando Renan publicou o seu Qu’est- -cequ’une nation?,o que o preocupou foi exatamenteanecessidade de esquecer, Por exemplo, vejamos outra vez a formulacao citada no capitulo 1: Or, "essence d’une nation est que tous les individus aient beaucoup de choses en commun et aussi que tous aient oublié bien des choses. ‘Tout citoyen frangais doit avoir oublié la Saint-Barthélemy, les massacres du Midi au xulle. siécle.* A primeira vista, essas duas frases podem parecer simples e diretas." Mas alguns momentos de reflexdo mostram como elas sao realmente estranhas. Nota-se, por exemplo, que Renan nao vé necessidade de explicar aos leitores o que significa “la Saint- -Barthélemy” ou “les massacres du Midi au xuie.siécle”. Mas quem, senao os “franceses’, por assim dizer, entenderiam de imediato que 29. Decerto porque, durante boa parte da sua vida, ele sofreu sob as legitimidades restauradas ou substitutivas. Seu compromisso com 1789 ea Franca fica visivel, de forma comovente, na sua recusa em prestar juramento de lealdade a Luts Napoledo. Bruscamente demitido do seu cargo como arquivista nacional, ele viveu praticamente na pobreza até a sua morte, em 1874 — tempo suficiente, porém, para presenciar a queda do charlatdo e a restauragao das instituigdes republicanas. 30. Renan nasceuem 1823, um quarto de século depois de Michelet, e passou gran- de parte da juventude sob o regime oficial cinicamente nacionalista do persegui- dor de Michelet, [Ora, a esséncia de uma nacdo consiste em que todos os indivi- duos tenham muitas coisas em comum, ¢ também que todos fenham esquecido muitas coisas. [..| Todo cidadao francés deve ter esquecido a noite de Sio Bar- tolomeu, os massacres do sul no século x1tt.—N.T.] 31. Assim entendi em 1983, infelizmente, 272. “Ja Saint-Barthélemy” se refere ao furioso ataque anti-huguenote do monarca de Valois, Carlos 1x, e de sua mae florentina, em 24 de agosto de 1572; ou que “les massacres du Midi” designam o exter- minio dos albigenses na larga drea entre os Pireneus e os Alpes do Sul, instigado por Inocéncio 11, um dos mais culpados numa longa série de papas culpados? E Renan também nao achou nada esqui- sito esperar que os seus leitores tivessem “meméria” de aconteci- mentos ocorridos trezentos e seiscentos anos antes. O que espanta também é a sintaxe peremptoria de doit avoir oublié (e nao doit oublier) — “ja devem ter esquecido” — que sugere, no tom caver- noso dos cédigos tributérios e das leis de servico militar, que “jé ter esquecido” antigas tragédias é um dever civico contemporaneo de primeira importancia. Com efeito, Renan diz aos leitores que estes “4 tinham esquecido” o que as suas préprias palavras supunham que eles lembrariam naturalmente! Como explicar esse paradoxo? Podemos comecar observan- do que a singular designacao em francés “la Saint-Barthélemy” abrange indistintamente quem matou e quem morreu — isto 6, aqueles catélicos e protestantes que desempenharam um papel ape- nas local na vasta Guerra Santa, nada santa, que assolou o centro e o norte da Europa durante o século xvi, e que certamente nao se sentiam num mutuo aconchego enquanto “franceses”. Da mesma forma,a expresso “os massacres do sul no século xm” anulaas viti- mas ¢ os assassinos por trés da pura francesice do “Midi”. Ele nao precisa lembrar aos seus leitores que a maioria dos albigenses assassinados falava provencal ou catalao, e que os assassinos vinham de muitas partes da Europa Ocidental. O efeito dessa tro- pologia é representar os epis6dios dos gigantescos conflitos reli- giosos europeus da Idade Média e do come¢o da Idade Moderna, como guerras tranquilizadoramente fratricidas entre — quem mais? — conterraneos franceses. Como podemos confiar que a imensa maioria dos contemporaneos franceses de Renan, deixa- 273 dos a si mesmos, nunca tinha ouvido falar em “la Saint-Barthé- lemy” nem nos“massacres du Midi”, percebemos entéo umacam- panha historiografica sistemética, empreendida pelo Estado sobre- tudo através do sistema de ensino publico, para “lembrar” toda a juventude francesa de uma série de carnificinas antigas agora ins- critas como “histéria de familia”. Dever “jé ter esquecido” tragédias que precisam ser incessantemente“lembradas” revela-se um meca- nismo tipico na construcdo posterior das genealogias nacionais. (£ instrutivo que Renan ndo diga que todo cidadao francés precisa “jé ter esquecido” a Comuna de Paris. Em 1882, ela ainda nao era um mito ea sua lembranga permanecia viva e dolorosa o bastante para que nado fosse tao facil entendé-la sob o signo do “fratricidio tran- quilizador”) Desnecessério dizer que, em tudo isso, nao havia, e nem hé, nada de especialmente francés. Uma enorme indistria didatica trabalha incessantamente para obrigar a juventude norte-ame- ricana a lembrar/esquecer as hostilidades de 1861-65 como uma grande guerra “civil” entre “irmaos”, em vez de (como foram por um breve tempo) dois estados nacionais soberanos. (Mas pode- mos ter certeza de que, sea confedera¢o tivesse conseguido man- ter a independéncia, essa “guerra civil” teria sido substituida na meméria por algo nada fraterno.) Os manuais de hist6ria ingle- sa oferecem o espetaculo divertido de um grande Pai Fundador, e todas as criangas aprendem a chaméa-lo de Guilherme, o Con- quistador. As mesmas criangas, porém, nao aprendem que Gui- Iherme nao falava inglés, e nem poderia, poisa lingua inglesa nao existia naquela época; e tampouco lhes informam “Conquista- dor de qué?”. Pois a tinica resposta inteligivel moderna seria “Conquistador dos ingleses”, 0 que converteria o velho predador normando em precursor mais bem-sucedido de Napoledo e de Hitler. Dessa maneira, “o Conquistador” opera como o mesmo tipo de elipse de“la Saint-Barthélemy” para lembrar alguém de 374 algo que se deve esquecer imediatamente. Assim, 0 normando Guilherme e 0 saxo Haroldo se encontram no campo de bata- Iha de Hastings, se nao como parceiros de danga, pelo menos como irmaos. Mas, com certeza, é demasiado facil atribuir esses antigos fratricidios tranquilizadores aos calculos frios de funciondrios publicos. Num outro nivel, eles refletem uma profunda remode- lagem da imaginacao, da qual o Estado mal tinha consciéncia e sobrea qual ele tinha, eainda tem, pouco controle. Nos anos 1930, muitas pessoas de varias nacionalidades foram lutar na peninsu- la Ibérica porque viam af uma arena onde se digladiavam causase forcas hist6ricas globais. Quando o longo regime de Franco cons- truiu o Vale dos Caidos, ficou determinado que sé poderiam ser enterrados na higubre necropole aqueles que, segundo o regime, haviam tombado na luta mundial contra o bolchevismo e o atefs- mo. Mas, as margens do Estado, j4 estava surgindoa“meméria” de uma Guerra Civil “Espanhola”. Foi apenas depois da morte do ardiloso tirano e da transigao surpreendentemente tranquila para a democracia burguesa — na qual ela desempenhou um papel fundamental — que essa “meméria” tornou-se oficial. De forma bastante parecida,a enorme guerra de classes que se alastrou entre o Pamir eo Vistula, entre 1918 e 1920, foi lembrada/esquecida nos filmes e na literatura soviética como a “nossa” guerra civil, enquanto o Estado soviético, no geral, manteve uma leitura mar- xista ortodoxa dessa luta. Sob esse aspecto, os nacionalismos crioulos das Américas sio particularmente esclarecedores. Pois, de um lado, os estados ame- ricanos, durante muitas décadas, foram fracos, efetivamente des- centralizados e bastante modestos em suas ambicdes pedagégicas. Por outro lado, as sociedades americanas, em que os colonos “brancos” eram contrapostos aos escravos “negros” e aos “nativos” semiexterminados, estavam internamente divididas de uma 275 maneira sem nenhum paralelo na Europa. Mas a criacao de ima- gens daquela fraternidade, sem a qual nao pode nascer a ideia de um fratricidio tranquilizador, aparece muito cedo, e com uma popularidade curiosamente auténtica. Esse paradoxo tem um excelente exemplo nos Estados Unidos. Em 1840, em meio a uma guerra brutal de oito anos contra os seminoles da Flérida (na mesma época em que Michelet invocava o seu Edipo), James Fenimore Cooper publicou The Pathfinder, 0 quarto dos seus cinco Leatherstocking tales, de imensa popularida- de. O que é central nessa novela (e em todas as demais, exceto na primeira) é 0 que Leslie Fiedler chamou de “amor austero, quase inarticulado, mas inconteste” entre o mateiro “branco” Natty Bumppo e 0 nobre cacique Chingachgook (“Chicago”!) de Delaware.” No entanto, o cendrio renanesco dessa irmandade nao & a década sangrenta de 1830, e sim os ultimos anos esqueci- dos/lembrados do dominio imperial britanico. Os dois homens sdo apresentados como “americanos” lutando pela sobrevivéncia — contra os franceses, seus aliados “nativos” (os “diabélicos min- gos”) e os agentes traicoeiros de Jorge Ill. Quando Herman Melville, em 1851, descreveu Ismael e Quee- queg comodamente deitados na mesma cama na Estalagem do Jorro (“I4, entao, nalua de mel dos nossos cora¢Ges, estavamos dei- 32. Ver o seu Love and death in the American novel, p. 192. Field interpretou essa relagdo em termos psicol6gicos e-histéricos, como exemplo da incapacidade da literaturaamericanaem tratar oamor heterossexual adultoe da sua obsessiocom amorte,oincestoe ohomoerotismo inocente. Suspeito que aqui, maisdo que um erotismo nacional, trata-se de um nacionalismo erotizado. As ligagdes masculi- nas numa sociedade protestante que, desde o inicio, proibiu a miscigenagao tém uum paralelo nos “amores sagrados” entre homem e mulher da literatura naciona- lista na América Latina, onde o catolicismo permitiu o crescimento de uma gran- de populacéo mestica. (E significativo que o inglés tenha tomado 0 termo “mes- tizo” de empréstimo ao espanhol.) 276 tados eu e Queequeg”), o nobre selvagem polinésio foi ironica- mente norte-americanizado da seguinte maneira:” [...] certo era que a sua cabega constituia um excelente exemplar frenolégico. Pode parecer ridiculo, mas ela me lembrava a cabeca de George Washington, como aparece nos seus bustos populares. Ela tinha a mesma longa inclinacao, projetando-se para tras de maneira regular e gradual, acima das sobrancelhas, as quais eram também muito salientes, como dois longos promontérios densa- mente arborizados no alto. Queequeg era um George Washington canibal. Coube a Mark Twain criar em 1881, bem depois da “Guerra Civil” e da Proclamagao de Emancipacao de Lincoln, a primeira imagem indelével do negro e do branco como “irmaos” norte- -americanos: Jim e Huck amistosamente a deriva pelo vasto Mis- sissippi.* Mas o cendrio é um antebellum lembrado/esquecido em que o negro ainda é escravo. Essas notaveis criagdes imaginérias oitocentistas da frater- nidade, surgindo “naturalmente” numa sociedade fraturada pelos mais violentos antagonismos raciais, classistas e regio- nais, mostram da maneira mais clara possivel que o nacionalis- mona época de Michelet e Renan representava uma nova forma de consciéncia — que brotou quando nao era mais possivel enciar a na¢do como novidade, como o momento supremo da ruptura. 33, Herman Melville, Moby Dick, p.71. Como o autor deve ter saboreado a mali- ciosa frase final! 34. Convém observar que Huckleberry Finn foi publicado poucos meses antes da evocacao renanesca de“la Saint-Barthélemy’. 277 A BIOGRAFIA DAS NAGOES Todas as mudancas profundas na consciéncia, pela sua propria natureza, trazem consigo amnésias tipicas. Desses esquecimentos, em circunstancias histéricas especificas, nascem as narrativas. Depois de passar por transformacdes emocionais e fisioldgicas da puberdade, éimpossivel “lembrar” a consciéncia da infancia. Quan- tos milhares de dias transcorridos entre a primeira infancia e o comego da idade adulta desaparecem para além de qualquer evo- cacao direta! Como ¢ estranho precisar da ajuda de alguém para saber que aquele bebé nu na fotografia amarelada, esparramado todo feliz no tapete ou na caminha, é vocé! A fotografia, belo fruto da era da reproducao mecanica, ¢ apenas o mais definitivo exem- plar dentre um enorme acimulo moderno de evidéncias docu- mentais (certiddes de nascimento, didrios, fichas de anotacées, cartas, registros médicos e similares) que registra uma certa conti- nuidade aparente e, ao mesmo tempo, enfatiza a sua perda na memoria. Desse estranhamento deriva um conceito de pessoa, de identidade (sim, vocée aquele bebezinho sao idénticos),a qual, por nao poder ser “lembrada’, precisa ser narrada. Contra a demons- tracdo biolégica de que cada célula do corpo humano é substitui- da em sete anos, as narrativas biogréficas e autobiograficas inun- dam os mercados do capitalismo editorial ano apés ano. Essas narrativas, tal como os romances e jornais tratados no capitulo 1, sao situadas no tempo vazio e homogéneo. £ por isso que tantas autobiografias comecam narrando circunstancias refe- Tentes aos pais e avés, em relagao aos quais 0 autobidgrafo sé pode dispor de evidéncias textuais circunstanciais;eé por isso que o bid- grafo tem dificuldade em registrar as datas, pelo calendério cris- to, de dois fatos biogréficos que o seu tema biografado nunca pode lembrar: os dias do nascimento e da morte. Nao hd nada que acentue melhor a modernidade dessa narrativa do que o inicio do 278 Evangelho segundo Sao Mateus. Pois 0 evangelista nos apresenta uma sébria lista de trinta homens em sucessivas geracoes, desde 0 patriarca Abrado até Jesus Cristo. (Apenas uma mulher é mencio- nada uma vez, e ndo por ser a genitora, e sim por ser uma moabita nao judia.) Nao hé nenhuma data para esses antepassados de Jesus, muito menos qualquer informasao politica, fisioldgica, cultural ou sociolégica. Esse estilo narrativo (o qual também reflete a rup- tura-em-Belém que se tornou meméria) era totalmente razodvel para o genealogista sagrado porque ele nao concebia Cristo como uma “personalidade” histérica, mas exclusivamente como o ver- dadeiro Filho de Deus. O que ocorre com as pessoas modernas ocorre também com as nagées. A consciéncia de estarem inseridas no tempo secular e serial, com todasas suas implicagées de continuidadee, todavia, de “esquecer” a vivencia dessa continuidade—fruto das rupturas do final do século xvi —, gera a necessidade de uma narrativa de “jdentidade”. Esta posta a tarefa para o magistrado de Michelet. E, no entanto, hé uma diferenga central de funcao entre as narrativas pessoais e as nacionais. Na hist6ria secular da “pessoa”, hé um comego e um fim. Ela surge dos genes dos pais e das circunstancias sociais, subindo a um palco hist6rico efémero, onde desempenha- r4.um papel até a sua morte. Depois disso, nada resta além da penumbra da fama ou da influéncia que perdura. (Imaginem como hoje seria estranho concluir uma biografia de Hitler dizen- do que, em 30 de abril de 1945, ele foi direto para o inferno.) As nagSes, porém, nao possuem uma data de nascimento claramen- te identificdvel, e a morte delas, quando chega a ocorrer, nunca é natural.’* Como nao existe um criador original da nagao, sua bio- grafia nunca pode ser escrita de uma forma evangélica, “avancan- 35. O neologismo “genocidio” para designar esses holocaustos foi cunhado em data muito recente. 279 do no tempo” ao longo de uma cadeia generacionista de procria- Ges. A tinica alternativa é moldé-la “recuando no tempo” — atéo. homem de Pequim, o homem de Java, o rei Artur, onde quer que a lampada da arqueologia lancea sua luz oscilante. Essa modelagem, porém,é marcada por mortes que, numa curiosa inversio da genea- logia convencional, comecam num presente origindrio. A Segunda Guerra Mundial gera a Primeira Guerra Mundial; de Sedan vem. Austerlitz; o antepassado do Levante de Vars6via é 0 Estado de Israel. Mas as mortes que estruturam a biografia de uma nacio so de um tipo especifico. Ao longo das 1200 paginas do seu impres- sionante La Méditerrannée et le monde méditerranéen a l’époque de Philippe n, Fernand Braudel menciona “la Saint-Barthélemy” de Renan apenas de passagem, embora o fato tenha se dado exata- mente nel mezzo del camin do reinado do monarca Habsburgo. “Les événements’, escreve o Mestre (vol. 2, p.223) “sont poussiére; ils traversent l'histoire comme des lueurs bréves; a peine naissent- -ils quils retournent déja a Ja nuit et souvent a l’oubli”.* Para Braudel, as mortes que importam sao aquelas miriades de fatos anénimos, que, somados e tabulados em indices médios de mor- talidade por século, lhe permitem mapear as condicées de vida (de lenta transformag’o) para milhdes de pessoas anénimas cuja nacionalidade seria a ultima coisa a ser perguntada. Dos cemitérios implacavelmente crescentes de Braudel, po- rém, a biografia da nacdo agarra, a revelia dos indices de mortali- dade, aqueles suicidios exemplares, os martirios dolorosos, os assassinatos, as execugdes, as guerras e os holocaustos. Mas, para servir a finalidade narrativa, essas mortes violentas precisam ser lembradas/esquecidas como “nossas” mortes. *“Os acontecimentos sdo poeira; eles atravessam a historia como breves lampe- jos; mal nascem ¢ jé retornam noite e amitide ao esquecimento.” [N.T.] 280 Posfacio* Percursos e passagens: sobre a geobiografia de comunidades imaginadas Decorridos quase 25 anos desde a primeira edigo de Comu- nidades imaginadas, parece possivel tracar a historia dos seus per- cursos luz de alguns temas centrais do proprio livro: 0 capitalis- jo metaférico positivo, mo tipografico, a cépia pirateada no sent jiza¢ao e o casamento indissolivel entre o nacionalismo avernaci eo internacionalismo. De modo geral, ainda sao bastante raros os estudos sobre a difusdo transnacional dos livros, exceto no campo da histéria literaria, onde Franco Moretti forneceu um exemplo extraordi- nério. Hé material para algumas reflexes comparativas preli- minares. No final de 2006, o livro (a partir daqui, citado como Cl) terd sido editado em trinta paises e em 37 linguas.' Essa difu- * Este posféicio nao teria sido possivel sem a ajuda generosa do meu irmao Perry, sobretudo, mas também de Choi Sung-eun, Yana Genova, Pothiti Hantzaroula, Antonis Liakos, Silva Meznaric, Goran Therborn e Tony Wood, aos quais eu gos- taria de agradecer profundamente. 1. Além de ser sucinta, a abreviatura ci da um certo repouso a duas palavras que agora estdo exdnimes, depois que os vampiros da banalidade lhes sugaram quase todo o sangue. 281

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