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Da virulência

António Fernando Cascais


Universidade Nova de Lisboa

Não atrairás já com teus encantos os car- los males do mundo. Denunciou-se a fragili-
valhos, Orfeu, nem os rochedos nem os dade de todas as certezas e as certezas de to-
rebanhos. Dos animais sujeitos às leis das as intolerâncias. Advogou-se a coragem
que são as suas; Já não entorpecerás o de saber viver nos extremos da vida e o re-
bramido dos ventos. Nem a tempestade gresso ao paraíso perdido de um mundo sem
de granizo ou a neve em rajadas. Não Sida. Contra a cândida ilusão da estabilidade
mais que o estrépito das ondas, pois que intrínseca dos fenómenos naturais, lembrou-
te eis Morto. Muitas vezes te choraram a se a virulência essencial dos fenómenos vi-
sorte, as filhas da Memória e sobretudo vos, contra a crença na bondade alojada no
a tua mãe Calíope. Porquê lamentarmo- mais fundo do coração dos homens, apontou-
nos sobre os nossos filhos exangues, por- se a sempre reactivada virulência que se en-
quanto nem mesmo os deuses conseguem rosca nas melhores cepas da boa vontade.
arrancar a Hades os seus próprios fi- Em todos os terrenos e com todas as armas,
lhos?1 combate-se o vírus da Sida e o não menos
insidioso vírus da discriminação. Nos sen-
Já lhe chamaram praga, castigo divino, timentos precipitados pela Sida e nas atitu-
vingança da natureza, que se abate sobre des em relação a ela concita-se tudo quanto
a humanidade pecadora ou que retalia so- é angústia contemporânea sobre o perigo dos
bre a irracionalidade dos comportamentos. homens e o perigo da natureza, sobre a iden-
Anunciou-se o apocalipse inapelável e a tidade individual e colectiva e o destino das
grande oportunidade da regeneração final. sociedades, sobre a ordem do mundo e das
Anunciou-se a transformação radical da so- coisas, sobre a precaridade dos poderes do
ciedade tal como a conhecemos, anunciou-se conhecimento e as sempre renovadas astú-
até o fim previsível da espécie. Anunciou- cias da dor e da morte.
se o fracasso da ciência moderna e o retorno A luxuriante proliferação de opiniões so-
da moral eterna. Temeu-se a liberdade de bre o sentido da presença da Sida nas soci-
costumes e temeu-se pela liberdade em ge- edades contemporâneas, das suas possibili-
ral. Proclamou-se o fim da permissividade dades de transformação dos modos de vida
e a punição iminente dos responsáveis pe- e dos seus efeitos sobre a economia, a cul-
1
Antípatros de Sidon, Epitáfio de Orfeu, séc. II A. tura, a moral e a política, confundem decerto
C. um público menos atento e tanto mais vulne-
2 António Fernando Cascais

rável quanto são vozes autorizadas por tudo qual a condição humana se encontra religi-
menos a serenidade a turvar as águas onde osamente submetida e que desse modo fixa
melhor lancem as redes dos seus dissimula- limites normativos à intervenção técnica so-
dos ou assumidos interesses. bre os fenómenos. A técnica é aqui intuída
O aparecimento da Sida veio ressuscitar como tentativa sumamente perigosa de que-
um medo atávico do poder da natureza numa brar os limites impostos à condição humana
época em que é cada vez mais generalizado e que, ao concitar para tanto as forças na-
o receio ante o poder da técnica. A epi- turais que escapam ao controle dos homens,
demia irrompe num mundo tecnocientífico sobre eles precipitam a justa retaliação da or-
em que as nossas mais acarinhadas expecta- dem cósmica ultrajada. Foi desde este púl-
tivas e os nossos mais angustiantes receios pito que se lançou o anátema sobre Galileu e
quanto ao que é possível e (in)desejável o heliocentrismo, que, ao retirar o homem do
são filtrados pelas capacidades manipulado- centro físico de um Cosmos finito, estável e
ras de uma tecnociência omnipresente e pelo ordenado, abriu a primeira grande ferida no
sentido que essa manipulação todo-poderosa narcisismo onto-teológico que fazia do es-
dos fenómenos confere à vida e à acção. Um pectáculo do Universo o cenário onde se de-
mundo em que, como assinala Gilbert Hot- senrolava o drama da salvação humana. É
tois2 , a nossa relação com o real é tecnica- este mesmo tipo de pensamento que não as-
mente mediatizada. Uma rápida análise po- similou ainda a segunda grande ferida, aberta
deria detectar facilmente duas atitudes mai- pelo evolucionismo darwiniano, que estilha-
ores em face da epidemia de Sida, cada uma çou o espelho da natureza em que se fazia até
delas enraízada em visões da natureza e da então reflectir a natureza humana, numa an-
técnica em princípio divergentes: uma visão tropologia que aferia a moralidade dos com-
a que chamaríamos mito-teológica e uma vi- portamentos à conformidade com a boa or-
são tecnocrática3 . dem natural. E é à luz do evolucionismo,
A visão mito-teológica pode detectar-se do qual, a despeito porventura de um Ni-
nas concepções populares da natureza e da etzsche, ainda se não terão retirado as neces-
técnica, com raízes no mais remoto passado sárias consequências antropológicas, que se
humano e talvez comuns a todas as cultu- pode compreender a história natural de uma
ras, mas a que as religiões deram por vezes epidemia como a da Sida como um acidente
uma elaboração racional. A natureza é enca- inteiramente esperável da poiesis biológica
rada como uma ordem cósmica inamovível à que rege a evolução e não como uma punição
divina que se abate sobre a “promiscuidade”
2
Gilbert Hottois: Pour une éthique dans un uni-
dos indivíduos, nem fruto de uma revolta da
vers technicien, Bruxelles, Éditions de l’Université de ordem natural ultrajada pela hybris tecnoló-
Bruxelles, 1984 e O paradigma bioético, Lisboa, Edi- gica. Com efeito, o perfil epidemiológico da
ções Salamandra, 1992. Sida não escapa ao próprio perfil do mundo
3
Sobre estas duas visões antagónicas e o esboço que assiste ao seu aparecimento e à sua pro-
de uma alternativa a elas, ver, com maior desenvolvi-
mento, António Fernando Cascais: “Sida: luz e som- pagação.
bra num olhar bioético”, in Revista de Ciência, Tecno- Comum às grandes mitologias, o perigo
logia e Sociedade, no 21, Janeiro/Fevereiro de 1994. de interferir com forças que só aos deuses

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pertencem, a hybris, é uma ideia que sub- Idênticas desconfiança e desaprovação po-
jaz também às posições mais fundamentalis- demos detectar, porém, em correntes con-
tas das igrejas cristãs, entre as quais avulta a temporâneas que se pretendem seculares,
intransigência do fundamentalismo católico como são as da ecologia radical ou de certas
perante o recurso à pílula como meio con- medicinas chamadas “alternativas”, que pro-
traceptivo ou ao preservativo como expedi- põem um voluntarioso regresso a um mundo
ente técnico de prevenção da infecção pelo pré-técnico ou a um éden anterior à irrupção
VIH. Sendo pela insistente referência à na- das modernas doenças das sociedades indus-
tureza, à boa ordem natural, que se afere a triais, entendidas como consequência neces-
moralidade dos comportamentos, o uso do sária de uma ruptura com a natureza, tida por
preservativo é visto como um paliativo téc- horizonte normativo originário dos compor-
nico para um problema que essencialmente tamentos humanos. Este tipo de concepção,
nada tem de técnico, e que lhe oculta a ver- que enforma algumas efabulações muito vul-
dadeira essência moral: a epidemia é enten- garizadas a respeito das origens da epidemia
dida como consequência dos nossos actos de de Sida4 , na sua incessante procura de res-
traição ao sentido divino da sexualidade, ou ponsáveis por ela, recupera o efeito de cul-
seja, da nossa relação impiedosa com a or- pabilização a que os fundamentalismos de-
dem natural. Prescrever o uso do preserva- claradamente religiosos recorrem com idên-
tivo é assim um erro sobre um erro, a legi- tico móbil regenerador e salvífico. A origem
timidade moral de o interditar sobrepõe-se à da Sida é desenvoltamente atribuída a tudo
(i)legitimidade biomédica, isto é, tecnocien- quanto é vício malsão que, ao devastar os or-
tífica, que, ao propô-lo como meio de pre- ganismos, os torna vulneráveis à infecção e
venção, não só reconhece como promove a 4
A história das origens da Sida encontra-se bem
desordem de base de comportamentos (não-
descrita, e em termos até hoje ainda não contestados
procriativos, hetero e homossexuais) “anti- em Mirko Grmek: Histoire du Sida. Début et origine
naturais”. Mesmo não sendo vista como d’une pandémie actuelle, Paris, Payot, 1990, 2ème
instrumento directo da vingança divina, a ed.; a respectiva tradução portuguesa tanto faz jus ao
exemplo das antigas mitologias, o que não valor da escolha da obra como emblematiza a escas-
sez de produção literária nacional sobre a Sida: Histó-
seria consentâneo com o pressuposto teoló-
ria da Sida, Lisboa, Relógio d’Água. Anteriormente
gico de um Deus infinitamente bom, a epi- a ela, já tinham sido publicados textos que tematizam
demia de Sida é, no entanto, teologicamente de forma clara todas as controvérsias respeitantes às
interpretável como consequência do esque- origens da Sida e que Grmek desenvolve; V., nome-
cimento humano de Deus. A solução do adamente: Jacques Leibowitch: Sida. Um estranho
vírus de origem desconhecida, Lisboa, Editora Nova
problema é pois fundamentalmente moral, Nórdica, 1986; Luc Montagnier: “Les problèmes de
advogando-se o retorno à monogamia conju- l’origine du virus”, in AAVV: Sida: Épidémies et
gal ou à abstinência, e questiona de raíz a vo- sociétés, Lyon, Fondation Marcel Mérieux/Fondation
cação secularizante da sociedade tecnocien- des Sciences et Techniques du Vivant, 1987, pp. 62-
tífica moderna, perante a qual os fundamen- 66; Mirko Grmek: “Problème des maladies nouvel-
les”, in id., ibid., pp. 97-107 e Henri H. Mollaret:
talismos religiosos exprimem uma desconfi- “Interprétation socio-écologique de l’apparition des
ança e uma desaprovação globais. maladies réellement nouvelles”, in id., ibid., pp. 108-
114.

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à degenerescência: o uso de drogas, a irre- são das consequências desastrosas da viola-


gularidade de hábitos alimentares, a promis- ção tecnológica da ordem natural; outras cor-
cuidade, a ansiedade e o stress que causam rentes sustentam que a fabricação do VIH
os estilos de vida não conformes aos bons se ficou a dever ao propósito deliberado de
hábitos de saúde. Numa retórica que recorda eliminar minorias indesejáveis - neste caso,
a das campanhas higienistas que outrora es- certos activistas gay, isto é, de uma comu-
tigmatizavam por igual a pobreza, a sífilis ou nidade que tem sido particularmente objecto
a tuberculose, a toxicodependência, a prosti- de culpabilização, que as sustentam, mais
tuição e a homossexualidade constituem aqui não fazem que devolver ao pretenso inimigo
os alvos preferenciais e, por mais que, às a tese conspirativa. Este género de mitolo-
vezes, o neguem os seus defensores deste gia, desenvolvida a respeito da tecnociência
tipo de concepção, superficial e momenta- moderna e dos cientistas, vistos como apren-
neamente vergados à coerção que sobre eles dizes de feiticeiros ou declaradamente como
exerce o politicamente correcto como ilusão seres malignos dominados pelos mais incon-
do século que também não deixa de ser em fessáveis interesses, preeenche uma impor-
parte, fazem das suas primeiras vítimas os tante função, a de fornecer uma ilusão de
principais culpados, só se lhes dirigindo para controle da técnica, quando a manipulação
lhes sacrificar a alteridade; e culpados, mais tecnológica se torna cada vez mais omnipre-
que pela sua própria doença, pelo próprio sente e visível e a avaliação dos seus efeitos
perigo em que fariam incorrer a sociedade cada vez mais negativa. Mais subtis ainda,
em geral. Com efeito, e quanto mais não são as opiniões que negam o próprio papel
fora, explicações como estas soçobram ante do vírus no desencadear da Sida, ou que che-
o facto de a Sida se contagiar a indivíduos gam a recusar a sua existência pura e sim-
que de modo nenhum possuem comporta- ples5 e que parecem apoiar-se nos pontos de
mentos susceptíveis de depauperarem o sis- vista de sumidades científicas em algum mo-
tema imunitário, limitando-se, afinal, a des- mento responsáveis pela própria investiga-
locar a hipótese viral de montante para ju- ção laboratorial sobre a Sida6 . Na verdade,
sante dos comportamentos. o processo da descoberta científica, cujo ca-
Presentes desde o início da identificação rácter de erro positivo a comunidade cientí-
clínica da epidemia no ocidente industria- fica reconhece hoje amplamente, encontra-
lizado, estas teses têm-se refinado sazonal- se ainda só numa fase precoce de divulga-
mente, tendo todas elas em comum o facto de ção pública e a necessária controvérsia que
partilharem de uma mesma concepção cons- precipita toda a formulação de hipóteses ex-
pirativa, nomeadamente sobre a questão das
origens da Sida, e limitando-se a transferir o 5
O mais recente exemplo, encontramo-lo em Ne-
alvo que culpabilizam. A imputação da ori- ville Hodgkinson: AIDS. The Failure of Contempo-
gem do vírus da Sida a experiências de ma- rary Science, London, Fourth Estate, 1996.
6
nipulação genética que teriam libertado inad- É o caso de Peter Duesberg; sobre a controvér-
sia científica suscitada pelas suas posições, V. Joseph
vertidamente um microrganismo incontrolá- Wayne Smith: AIDS, Philosophy and Beyond. Philo-
vel constitui um exemplo claro deste tipo de sophical Dilemmas of a modern pandemic, Aldershot,
teses, que neste caso dão corpo a uma vi- Avebury, 1991.

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plicativas é recebida com descrença e es- ção colectiva e biomédica que nela se integra
cândalo por uma opinião formada nas tradi- como uma variável da sua própria prossecu-
ções positivistas e cientistas de outros tem- ção. O que não é o mesmo que apontar à
pos. Ao mesmo tempo que a Sida trouxe a comunidade científica como um todo, às or-
público, com uma amplitude e uma profun- ganizações de luta contra a Sida, aos mass
didade inéditas, os processos de investigação media e aos próprios doentes, a gigantesca
científica, é a própria síndrome que parece comunhão no erro monstruoso da invenção
levar às últimas consequências aquilo que se de um “vírus que nunca existiu”, possuídos
afigura ser uma autêntica mudança de para- sabe-se lá por que idola tempore que só a
digma nas hipóteses explicativas dos fenó- mente iluminada dos seus denunciantes seria
menos patológicos, aliàs já em marcha na al- capaz de romper, numa tomada de posição
tura do seu aparecimento. No centro dessa que, além de receber equivocamente os pro-
mudança de paradigma encontra-se a teo- cessos erráticos da investigação científica e
ria médica da causalidade, estabelecida pelo as lutas de interesses e intrigas que não dei-
menos desde os princípios da bacteriologia xam de a pautar7 , acaba por não ser capaz de
pasteuriana e consagrada pela terapêutica es- oferecer melhores argumentos do que os da
pecífica de Paul Ehrlich. Assim, de uma con- própria torre de marfim científica que, na sua
cepção em que a uma espécie mórbida espe- pudenda origo, estabeleceu a sua incomen-
cífica se atribui uma causa específica e se faz surabilidade à custa da restrição do acesso
corresponder um tratamento igualmente es- à discussão entre pares, fechando-se assim à
pecífico, segundo uma lógica determinista e opinião crítica por cuja criação foi, em úl-
de certeza, obtível a partir de casos individu- tima análise, responsável.
ais, passa-se progressivamente a uma lógica Enraízada, em última análise, numa tra-
de história clínica que valoriza a narrativa e dição que remonta à revolução científico-
a biografia, e na qual, à determinação de um tecnológica dos séculos XVI e XVII, e impa-
quadro clínico compatível com uma espécie rável desde então, a visão tecnocrática faz da
patológica discriminada se atribui um con- possibilidade da produção de um saber po-
junto de factores e respectiva correlação fun-
cional (em vez de causas da doença), a que, 7
De que a luta pela “patente” da descoberta do ví-
por sua vez, se aplica a prescrição terapêu- rus entre Robert Gallo e os americanos, por um lado,
tica, de acordo com uma lógica indetermi- e Luc Montagnier e os franceses, por outro, não cons-
nista, de incerteza e a partir de grande nú- titui menor exemplo, aliás ilustrativo da vulnerabili-
mero de casos. Na Sida, as hipóteses expli- dade até de paixões tão “nobres” como é a paixão do
conhecimento; v., a este propósito: Bernard Seytre:
cativas dos mecanismos que desencadeiam Sida: les secrets d’une polémique. Recherche, inté-
a doença, sem negar pura e simplesmente a rêts financiers et médias, Paris, Presses Universitai-
presença do VIH e, consequentemente, o seu res de France, 1993; é interessante seguir a perspec-
papel, reforçam cada vez mais a função de tiva pessoal de cada um dos grandes investigadores
co-factores, de acordo com uma história na- iniciais do que posteriormente viria a ser designado
por VIH - V. Robert Gallo: Chasseur de virus. Can-
tural aliàs ainda longe de ter terminado o seu cer, Sida et rétrovirus humains, Paris, Robert Laffont,
caminho e história natural essa que, sabemo- 1991, e Luc Montagnier: Des virus et des hommes,
lo hoje, não é ela própria alheia à interven- Paris, Éditions Odile Jacob, 1994.

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sitivo sobre os fenómenos, e da capacidade ciedade contemporânea à avaliação genera-


de manipulação eficaz deles que, mais do lizada e pública da bondade da ciência e do
que aplicar esse saber positivo, chega inclu- sentido do progresso por ela postulado, vi-
sivamente a reger-lhe o critério de verdade, síveis, e por vezes atrozmente visíveis, que
um ideário de transformação social. Não é são agora os seus efeitos perniciosos em to-
outro o ideário de um Auguste Comte, que dos os campos e a um ponto insuspeitado
erige a racionalidade científica em modelo pelo próprio Comte, que, ao mesmo tempo
geral da racionalidade e culmina com o pri- que propunha um projecto de racionaliza-
vilégio quase absoluto do imperativo técnico ção global do mundo social, descria, nomea-
nas mais recentes correntes tecnocráticas, se- damente, da possibilidade de racionalização
gundo o qual tudo o que é (tecnicamente) completa dos fenómenos vivos que as mo-
possível é legítimo e mesmo desejável. Mo- dernas ciências biomédicas parecem em vias
delada à luz da racionalidade emergente de levar a cabo, em particular no domínio da
das ciências da natureza pós-renascentistas, engenharia genética. É a necessidade impe-
este tipo de racionalidade afigurar-se-ia, aos riosa desta avaliação global do sentido e dos
olhos do pensamento iluminista do século efeitos da tecnociência moderna,e da ambi-
XVIII, a matriz de uma razão emancipató- guidade fundamental das expectativas, tão
ria capaz de libertar os homens da servidão positivas quanto negativas, que ela no nosso
em face do seu semelhante, o que se con- tempo suscita, conjugadas com a consciên-
sagraria numa ciência ético-política que es- cia aguda de que as bases racionais, os juízos
tabeleceria as bases da democracia, da paz e procedimentos da ética e da política lega-
universal e da realização humana finalmente das pelas tradições grega, cristã e iluminista
liberta da sua menoridade, tal como então não são suficientes para levar a bom termo
a razão científica parecia dar sobejas pro- essa avaliação da extensão da racionalidade
vas de libertar os homens da sua ancestral científico-tecnológica às próprias condições
heteronomia em face dos fenómenos natu- da acção humana, que abre o campo de teo-
rais. Recuperando da tradição messiânica rização de domínios tão actuais como os da
judeo-cristã o ideal de uma história teleoló- crítica filosófica das ciências e das técnicas,
gica com o sentido e o destino da salvação fi- da ecologia ou da bioética, esta com particu-
nal, o pensamento iluminista apropria para a lar incidência nos saberes e poderes das ciên-
faculdade racional exclusivamente humana, cias e tecnologias biomédicas, mas com um
conciliando-a mais ou menos com os dog- alcance que se afigura capaz de superar em
mas da fé transformados em religião racio- muito os porventura estreitos limites da me-
nal, a obra de um progresso humano inde- dicina e da biologia.
finido, cumulativo e contínuo, o qual, con- Com efeito, o alvo fundamental da filoso-
tra o que terão sido as previsões e até as fia crítica das ciências e das técnicas, da eco-
prescrições dos grandes pensadores ilumi- logia e da bioética, é a visão tecnocrática que
nistas como Kant, foi em grande medida re- encara a natureza como uma matéria prima
gida pelos saberes e poderes tecnocientífi- indefinidamente disponível e a técnica como
cos. A experiência recente deste processo um simples instrumento livremente utilizado
levado às últimas consequências trouxe a so- para a transformação dessa matéria prima ao

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serviço da prossecução dos móbeis huma- nalmente, por ocasião dos surtos de peste: a
nos. O ideal da criação de uma “natureza quarentena, com as suas típicas práticas de
mais perfeita do que a própria natureza” teve arregimentação e cooptação coerciva e mili-
largas e profundas repercussões nas tecno- tarizada das populações. As campanhas de
ciências biomédicas e deu corpo ao contri- salubridade erguidas no Ocidente a partir de
buto destas para a concepção geral de pro- finais do século XVIII foram assim enforma-
gresso humano indefinido, expresso na pas- das por um modelo bélico de guerra genera-
sagem de um estádio da medicina das do- lizada às condições patogénicas do ambiente
enças de ambiente para um estádio da me- em que os indivíduos figuravam como reser-
dicina das doenças de comportamento. A vatórios inertes de micróbios cujo estado de
medicina das doenças de ambiente teria sido saúde exigia um esquadrinhamento perma-
o primeiro estádio da medicina clínica mo- nente, empreendido por uma medicina dos
derna, tendo-se ocupado das doenças causa- elementos, mais que dos homens, no quadro
das pelas condições patogénicas ambientais, geral da medicalização da vida que um autor
tais como a peste, a cólera ou a tuberculose, como Michel Foucault descreveu inspirada-
caracterizadas pela sua elevada morbilidade mente como o processo da bio-história. É
e mortalidade. As grandes pandemias con- esta a era de ouro do paternalismo médico
tinuariam porém a ser típicas dos países do que outorga ao clínico individual e à classe
Terceiro Mundo, que se veria a braços com o médica como um todo, ao serviço do po-
tipo de procedimentos a que, desde o século der do moderno Estado-Nação, secularizado
XVIII, o Ocidente teria recorrido com indes- e somatocrático, doravante ocupado com a
mentível sucesso, traduzido na superação da saúde dos corpos, que já não com a salvação
milenar impotência humana ante os fenóme- das almas, o privilégio exclusivo do princí-
nos naturais em geral e patológicos em par- pio de beneficência, isto é, de reger a prá-
ticular, de modo mais ou menos linear, e por tica profissional dos médicos e as políticas
mais errática e aventurosa que a narrativa le- de saúde pública por um critério de bem, do
gitimadora das ciências biomédicas conceda doente ou de populações inteiras, cujas defi-
que o processo histórico seja. Com efeito, a nição e aplicação recaem sobre aqueles que
medicina das doenças de ambiente propõe e detêm o saber científico e o poder técnico
assiste às grandes campanhas de saúde pú- de curar. A eficácia das políticas de saúde
blica e ao advento da era da microbiologia pública, tomada ao modelo experimental de
pasteuriana que conjugam esforços para dar mensuração dos fenómenos oriundo de ciên-
um combate sem tréguas aos agentes patogé- cias naturais como a física e a química, per-
nicos, enfim claramente identificados. mitiu erradicar do mundo ocidental industri-
Contemporâneo, nos seus primórdios, da alizado as doenças de ambiente, de tal modo
vertente autoritária do pensamento ilumi- que a medicina poderia então dedicar-se às
nista que é o despotismo esclarecido, este doenças devidas aos comportamentos, quer
processo recuperou e estabeleceu como prá- individuais, quer colectivos - desde o taba-
tica institucional permanente os modos de gismo e os deficientes hábitos alimentares
proceder a que desde a época medieval se re- à poluição industrial ou inclusive aos efei-
corria excepcional e, por assim dizer, artesa- tos de prolongamento da esperança média de

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vida e o consequente envelhecimento da po- rica, só atesta uma comum visão instrumen-
pulação, por acção do próprio processo de tal e fundamentalmente positiva da técnica,
medicalização generalizada da vida - patolo- porquanto se trata de procedimentos clara-
gias tais como o cancro e as doenças cardio- mente técnicos e administrativos que, ao
vasculares, ou as doenças degenerativas que mesmo tempo que consubstanciam o espí-
assolam as vastas camadas de uma popula- rito higienista de outrora, reformulam nos
ção senior que, no mundo desenvolvido, so- termos da política oficial de Estado o en-
brevive doravante às infecções que dizima- trincheiramento fundamentalista numa iden-
vam os seus antepassados antes da maturi- tidade crispada que sacrifica ostensivamente
dade. Definida como doença de comporta- a alteridade dos grupos e a autonomia dos
mento, a Sida possui porém uma morbilidade indivíduos. Não se trata, porém, de uma crí-
e uma mortalidade que a aproximam parado- tica exclusivamente moral que denunciaria
xalmente do perfil das tradicionais doenças antes de mais a perigosa conjunção entre o
de ambiente, o que, aliado ao estigma de pe- espírito tecnocrático moderno e o atavismo
riculosidade social que se insinuava na iden- de representações deploráveis e discrimina-
tificação originária de grupos de risco, faz tórias da doença e do doente; com efeito,
acordar os velhos procedimentos de quaren- aquilo que foi eficácia técnica de um dispo-
tena e esquadrinhamento militar que tão efi- sitivo de vigilância permanente, que obteve
cazes se revelaram em face das doenças de amplo sucesso profiláctico sobre as doenças
ambiente. Assim se compreende a proposi- de ambiente antes mesmo que uma terapêu-
tura de medidas tão draconianas como, além tica específica ou uma vacina fossem pos-
da quarentena, o teste compulsivo dos indiví- síveis para debelar as grandes infecções de
duos indiciados como pertencentes a grupos outros tempos, é hoje insuficiência técnica:
de risco, ou de turistas e imigrantes, senão além de se não terem descoberto ainda tera-
mesmo a despistagem maciça e universal de pêutica ou vacina eficazes contra a Sida, o
populações inteiras, a notificação obrigatória prolongamento cada vez maior da expecta-
e identificativa (isto é, não anónima, ao con- tiva média de vida dos doentes, ao ponto de a
trário do que prevalece nas actuais doenças Sida se tornar progressivamente numa afec-
de declaração obrigatória) e o isolamento co- ção crónica, o facto de a Sida ser uma doença
ercivo dos portadores do VIH, por esse meio de comportamento, a despeito das suas atípi-
detectados, em “sidatórios”, ou o requisito cas morbilidade e mortalidade, e de os com-
pré-nupcial da declaração do estatuto seroló- portamentos de risco envolverem profundís-
gico. simas convicções e hábitos ou serem mesmo
Que medidas como estas tenham sido de- consentâneos com alguns dos valores fun-
fendidas, ou efectivamente postas em prá- dadores da sociedade contemporânea (como,
tica, por correntes políticas e sociais aparen- por mero exemplo, a liberdade de inicia-
temente tão incompatíveis como as do ultra- tiva ou de circulação, ou os direitos cívicos
direitista francês Jean-Marie Le Pen e o go- mais básicos), tudo isto obriga a uma neces-
verno cubano, ou as dos governos provin- sária cooperação voluntária, activa, compe-
cial da Baviera, na Alemanha, e estadual tente e autónoma dos indivíduos como cida-
do Illinois, nos Estados Unidos da Amé- dãos, nos diferentes estádios de prevenção da

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doença, primária, secundária e terciária, coo- que oferecer, impõe desse modo a sua resis-
peração contra a qual haveria que sopesar os tência ao backlash em países onde é forte a
consequentes riscos de refracção individual tradição de movimentos gay e a aquisição de
e de conflitualidade social acrescida. Por ou- uma nova respeitabilidade, em países como
tras palavras, a estratégia de guerra generali- o nosso, onde essa tradição é inexistente ou
zada contra as condições patogénicas do am- incipiente e, como consequência, a sua visi-
biente não pode, com a Sida, transpôr-se para bilidade foi durante muito tempo nula. Os
os indivíduos sob pena de os transformar em fenómenos que acompanham o alastramento
peões contra si próprios. Se, à luz da narra- da Sida fazem aqui figura de experimentação
tiva de progresso cumulativo e contínuo dos social10 , com toda a conotação trágica que
saberes e poderes biomédicos, era inverosí-
mil o aparecimento de uma pandemia com as Éditions Autrement, 1992, pp. 24-39; Michael Pol-
características da Sida, o modelo bélico8 das lak, Françoise Dubois-Arber, Michael Bochow: “La
respostas biomédicas, sociais, culturais e po- modification des pratiques sexuelles”, in La Recher-
che, no 213, Septembre 1989, pp. 1100-1111; Mi-
líticas à sua indómita virulência também não chael Pollak, Marie-Ange Schiltz: “Identité sociale et
se adapta ao perfil dela, que repete o próprio gestion d’un risque de santé: les homosexuels face au
perfil da sociedade contemporânea. Ilustra-o Sida”, in Actes de la Recherche en Sciences Sociales,
bem a procura da cooperação activa de gru- no 68, Juin 1987, pp. 77-102; Martin P. Levine: “The
pos tradicionalmente estigmatizados; ou o Implications of Constructionist Theory for Social Re-
search in the AIDS Epidemic Among Gay Men”, in
forçar da acção social e política e dessa co- Gilbert Herdt, Shirley Lindenbaum, eds. et allii: The
operação, neste caso por parte de comunida- Time of AIDS: Social analysis, theory, and method,
des como a comunidade gay 9 , que, mais do Newbury Park, Sage Publications, 1990, pp. 185-198;
Douglas Crimp: “How to Have Promiscuity in an Epi-
8
O texto de Michael Sherry sobre a linguagem da demic”, in Douglas Crimp, ed. et allii: AIDS: Cultu-
guerra no discurso da Sida é exemplo significativo ral Analysis, Cultural Activism, MIT Press, 1989, pp.
dos avatares desse modelo bélico e constitui-se em 237-271; Dennis Altman: AIDS in the Mind of Ame-
parte como comentário às teses de Susan Sontag: Illl- rica, Garden City, N.Y., Anchor Press/Doubleday,
nes and Metaphor and AIDS and its Metaphors, New 1986; Randy Shilts: And the Band Played On. Po-
York, Anchor Books/Doubleday, 1990; sobre a mu- litics, People and the AIDS Edpidemic, London, Pen-
dança de um paradigma bélico para um paradigma guin Books, 1988;Michael Denneny: “AIDS Writing
cognitivo nas ciências biomédicas em geral e na imu- and the Creation of a Gay Culture” in Judith Laurence
nologia em particular, V. António Fernando Cascais: Pastore, ed. et allii: Confrontong AIDS Through Li-
“A recepção do sindroma de imunodeficiência adqui- terature. The Responsibilities of Representation, Ur-
rida: imagens e mitos”, in Revista de Comunicação e bana and Chicago, University of Illinois Press, 1990,
Linguagens, no 10/11, Março de 1990. pp. 36-54 e James W. Jones: “The Sick Homosexual:
9
Sobre os efeitos da epidemia na comunidade gay AIDS and Gays on the American Stage and Screen”,
e respectivas respostas, além do manifesto histórico in id., ibid., pp. 103-123; Susanne B. Montgomery,
de Larry Kramer aqui recolhido, V. Michael Pollak: Jill G. Joseph: “Behavioral Change in Homosexual
“Géographie sociale et morale d’une peur. Le groupe Men at Risk for AIDS: Intervention and Policy Im-
à risques: une mystification” (entrevista), in Emma- plications”, in New England Journal of Public Policy,
nuel Hirsch: Le Sida. Rumeurs et faits, Paris, Éditi- Vol. 4, No. 1, Winter/Spring 1988, pp. 323-334 - a
ons du Cerf, 1987, pp. 35-50; Les homosexuels et le lista de outras referências pertinentes seria infindável.
10
Sida. Sociologie d’une épidémie, Paris, Éditions A. Acerca do valor e sentido das reacções à Sida
M. Métailié, 1988; “Histoire d’une cause”, in AAVV: como forma de experimentação social, V., além do
L’homme contaminé. La tourmente du Sida, Paris, próprio texto incluído nesta recolha: Allan M. Brandt:

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10 António Fernando Cascais

possui a “experimentação” ao nível dos fe- das concepções mito-teológicas ou tecno-


nómenos humanos, e não só trágica por se cráticas, para os problemas colocados pela
tratar de uma doença actualmente fatal como epidemia de Sida, sugeri-lo-íamos apenas,
a Sida, mas porque, ao contrário da experi- mais do que passar pelo primado de um
mentação nas ciências naturais, em que o en- princípio de beneficência, de acordo com a
saio se pode sempre repetir em caso de fra- mais antiga tradição médica, ou pelo reforço
casso, o que humanamente se “experimenta” da ideia de solidariedade, como o aponta
nunca pode deixar de ser aventura singular, um Richard Rorty, deverá privilegiar, na
insubstituível, irrepetível. sua formulação, um princípio de autonomia
A propósito da Sida podem pois capaz de recolher e sintetizar, das visões
distinguir-se dois grandes projectos au- mito-teológicas, a reivindicação de uma
toritários. Correspondente à concepção exigência ética e, das visões tecnocráticas, a
mito-teológica, e directamente fundado nela, reivindicação de uma exigência de eficácia
um autoritarismo com um móbil anti-técnico técnica, sem todavia acolher a virulência
e de pendor moralista. Em contrapartida, totalitária de que aquelas são portadoras.
as soluções tecnocráticas para os proble- Na finitude da condição que é a nossa,
mas postos pela epidemia configuram um bem podemos dizer que somos, todos, do-
projecto igualmente autoritário, mas de entes de Sida. E a assumpção ética dessa
pendor militarista. As limitações de ambos, condição tem no amor próprio a sua matéria
esboçámo-las já no curto espaço disponível, prima e o ponto de partida para a formação
que as suas implicações muito mais exigi- de leis que cada um possa impôr a si mesmo
riam, como necessariamente longa teria de no pleno uso da sua liberdade. Não é possí-
ser a formulação de uma alternativa, que vel impôr a ninguém um “Tu deves” sem lhe
temos de deixar para alhures, tendo tão só reconhecer ao mesmo tempo um “Tu vales”.
esboçado as bases para a revisão de algumas “Deves”, no pleno uso da tua liberdade de
ideias feitas. A superação dos constrangi- seres, porque “Vales” irredutivelmente por
mentos intrínsecos às soluções autoritárias, aquilo que és. Nas pessoas dos doentes de
Sida, é a sociedade contemporânea, pletórica
de direitos e de consumos, que, à custa de um
No Magic Bullet: A social History of Venereal Dise-
ase in the United States since 1880, New York, Ox- penoso e solitário trabalho da dor, vai for-
ford University Press, 1987, rev. ed.; “A Historical jando essa injunção moral que nos devolve
Perspective”, in Scott Burris, Harlon Dalton, Judith ao imperioso dever de nos amarmos antes de
Miller, eds. et allii: AIDS Law Today. A new Guide mais a nós próprios. De amarmos a vida em
for the Public, New Haven, Yale University Press,
1992, pp. 46-53; tem aqui todo o cabimento assinalar
nós, que não nos é - nunca foi - dada para
um texto português que além de absolutamente raro, que a aceitemos nas múltiplas formas de pe-
senão singular na produção nacional sobre Sida, ilus- quena morte que a limitam, mas para que a
tra o alcance da ideia de experimentação social na luta cultivemos, como o querer que nos faz que-
contra a epidemia: Cristiana Bastos: “Geomorfologia rer, o ávido sol que nos faz correr o sangue
do Poder na Produção Social da Ciência: a propósito
da luta global contra a SIDA”, in Revista Crítica de nas veias. Virulentamente.
Ciências Sociais, no 41, Dezembro de 1994, pp. 63-
84.

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