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Untitled-7 1 7/12/2009, 11:24

Carlos Coimbra

1
Um Homem Raro
Governador Geraldo Alckmin
Secretário Chefe da Casa Civil Arnaldo Madeira

Imprensa Oficial do Estado de São Paulo


Diretor-presidente Hubert Alquéres
Diretor Vice-presidente Luiz Carlos Frigerio
Diretor Industrial Teiji Tomioka
Diretor Financeiro e
Administrativo Alexandre Alves Schneider
Núcleo de Projetos
Institucionais Vera Lucia Wey
2

Fundação Padre Anchieta


Presidente Marcos Mendonça
Projetos Especiais Adélia Lombardi
Diretor de Programação Rita Okamura

Coleção Aplauso Cinema Brasil


Coordenador Geral Rubens Ewald Filho
Coordenador Operacional
e Pesquisa Iconográfica Marcelo Pestana
Revisão Andressa Veronesi
Projeto Gráfico
e Editoração Carlos Cirne
Carlos Coimbra
Um Homem Raro

por Luiz Carlos Merten

São Paulo, 2004


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Merten, Luiz Carlos
Carlos Coimbra : um homem raro / Luiz Carlos Merten. – São Paulo :
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo : Cultura - Fundação Padre
Anchieta, 2004. – –
304p.: il. - (Coleção aplauso. Série cinema Brasil / coordenador geral Rubens
Ewald Filho)

ISBN 85-7060-233-2 (obra completa) (Imprensa Oficial)


ISBN 85-7060-286-3 (Imprensa Oficial)

1. Cineastas - Brasil 2. Cinema - Brasil - História 3. Coimbra, Carlos -


Crítica e interpretação I. Ewald Filho, Rubens. II. Título. III. Série.

04-5571 CDD 791.430981

Índices para catálogo sistemático:


4 1. Cineastas brasileiros : Apreciação
crítica 791.430981

Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (Lei nº 1.825, de 20/12/1907).

Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

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Introdução

Paulo Emílio Salles Gomes escreveu no começo


dos anos 60, em pleno alvorecer do Cinema
Novo, um artigo no jornal O Estado de S. Paulo
dizendo que não existe grande cinematografia
sem a figura do artesão. Na mesma época, Jean-
Luc Godard, o enfant terrible da Nouvelle Va-
gue, definia o artesão como ‘funcionário da
arte’. Godard esculhambava, Paulo Emílio, tenta-
va ir além da aparência ao relacionar, no seu
texto, dois diretores como Carlos Coimbra e Tri-
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gueirinho Neto.

O primeiro parou de fazer filmes há anos, o se-


gundo virou esotérico e também parou com o
cinema. Trigueirinho é homem de um só filme,
Bahia de Todos os Santos, considerado um dos
marcos deflagradores do ciclo baiano, no qual
irromperia, em seguida, o fenômeno Glauber
Rocha. Coimbra é homem de muitos filmes. Os
últimos não justificam maior interesse, exceto
para espectadores e críticos curiosos para ver o
que não se deve fazer no cinema. Mas há um
núcleo importante no cinema de Carlos Coim-
bra. São os filmes de cangaceiros que ele fez jus-
tamente nos anos 60.

Quando Paulo Emílio discorre sobre a ideologia


do artesão e do autor, é para flagrar o momen-
to em que um artesão como Coimbra consegue
se impor como autor de A Morte Comanda o
Cangaço e, inversamente, para discutir as limi-
tações que a ausência de carpintaria cinemato-
gráfica, por parte de Trigueirinho Neto, impõe
à arquitetura dramática de Bahia de Todos os
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Santos. É um texto interessantíssimo. Impõe um
reconhecimento que Coimbra nem sempre teve,
ao longo de sua carreira. A Morte Comanda o
Cangaço e Lampião, o Rei do Cangaço foram
memoráveis êxitos de público. Você, cinéfilo,
sabe que o desempenho na bilheteria não deve
ser o único e talvez não deva ser nem mesmo
um critério de avaliação. Quantidade (de espec-
tadores) nem sempre rima com qualidade esté-
tica, mas é um dado de uma equação que vale
analisar. Se o lendário Paulo Emílio viu as quali-
dades de Coimbra, por que não nós? Você, eu?
O produtor Oswaldo Massaini gostava de dizer
que ganhou prestígio com O Pagador de Promes-
sas, de Anselmo Duarte, único filme brasileiro a
vencer a Palma de Ouro no mais importante
festival de cinema do mundo, Cannes. Massaini
também dizia que dinheiro quem lhe deu foi
Carlos Coimbra. Ele ficou rico com os cangacei-
ros desse diretor. O próprio Coimbra não ganhou
tanto. E, quando investiu todo o dinheiro que
havia ganhado num filme, cujo êxito parecia cer-
teiro - Signo de Escorpião - o fracasso foi retum-
bante e as economias de uma vida inteira foram
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pelo ralo. Coimbra vive hoje com dignidade e
modéstia. Até nisto tem a cara do Brasil. Apo-
sentado compulsoriamente, gostaria de voltar
à direção, mas sabe que não há mais espaço para
ele num cinema brasileiro no qual o diretor tem
agora de enfrentar um verdadeiro corpo-a-cor-
po com as diretorias de marketing das empre-
sas, para conseguir financiamento, por meio das
leis de incentivo. Coimbra detesta esse tipo de
coisa. Não tem estrutura para bater à porta de
ninguém para pedir dinheiro, mesmo que seja
para um projeto tão sonhado quanto o de seu
filme sobre José de Anchieta. Coimbra não bate
à porta de ninguém, mas abriu a sua. Recebeu o
autor deste livro de coração aberto. Não se fur-
tou a analisar os aspectos mais controvertidos
de sua obra.

Uma obra, justamente. Pela teoria clássica do


cinema de autor, Coimbra seria - ou é - um au-
tor. Ele dirigiu, escreveu e montou a maioria de
seus filmes. Produziu alguns e todas essas fun-
ções acumuladas lhe garantem um extraordiná-
rio controle sobre o material filmado. Existe até
8
um estilo Coimbra - ele sempre gostou das cores
fortes, dos relatos de ação sobre homens leva-
dos ao limite e que vivem perigosamente. O ci-
clo do cangaço forneceu-lhe o material para as
histórias que gostava de contar, que não eram
só sobre homens, mas sobre mulheres, também.
A Dadá de Corisco, o Diabo Loiro e a Marquesa
de Santos e a Imperatriz Leopoldina de Indepen-
dência ou Morte! mostram que as mulheres de
Coimbra podem ser tão fortes quanto seus ho-
mens. São até mais fortes - a amante e a mulher
de Dom Pedro I são pólos em função dos quais
oscila o personagem. A imperatriz possui uma
fortaleza moral que faz dela, quem sabe, a mãe
da pátria e uma reserva de grandeza face à in-
constância do herói, que não é bem um herói,
mas declarou a independência e só isso faz dele
uma figura extraordinária no imaginário do
povo brasileiro. Glauber tinha Deus e o Diabo, o
Dragão da Maldade e o Santo Guerreiro. Por que
Coimbra não poderia narrar também suas histó-
rias com estruturas bipolares? Não seria a primei-
ra aproximação, um tanto despropositada, mas
não impossível, de Coimbra com o gênio baia-
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no. Antes que Glauber adotasse o procedimen-
to em Deus e o Diabo, Coimbra já havia feito do
cantador cego o narrador de Lampião, incorpo-
rando o cordel ao seu cinema.

O estilo Coimbra transparece na movimentação


que ele sempre gostou de imprimir a seus fil-
mes. Coimbra foi o primeiro diretor brasileiro a
usar a lente zoom. E, sempre que possível, fez
do plano-seqüência uma ferramenta indispen-
sável. Gostava de movimentar a câmera e os ato-
res dentro do plano.
Tinha até um gosto pronunciado por um certo
tipo de personagem. Ele tinha tudo - o tema, o
estilo, eventualmente o controle de todas as eta-
pas da produção e da realização. Coimbra con-
ta, adiante, que Oswaldo Massaini não interfe-
ria no seu trabalho, nem mesmo o visitava nos
sets. Mas ele não era, porque nunca quis ser, um
autor. Ou então foi um autor anódino, daque-
les que se apagam por trás das histórias que
querem contar.

Outros diretores reconhecidos como grandes


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adotavam a mesma prática. John Huston disse,
certa vez, que nunca teve consciência de possuir
um estilo. Mudava para ajustar-se às necessida-
des das histórias que queria contar e, por isso,
por volta de 1960, publicações importantes como
Cahiers du Cinéma o tratavam como um diretor
menor, não lhe concedendo o status de autor
que era, alegremente atribuído a cineastas bem
mais insignificantes. Modestamente, Coimbra
também quis ser, sempre, um contador de his-
tórias. Nada mais do que um contador de histó-
rias. Mas algumas de suas histórias são boas e
permitem uma conversa sobre essa figura tão
vilipendiada, o artesão, no cinema nacional. Por
sua modéstia, Coimbra escolheu ser um simples
artesão. Por seu domínio da técnica, fez-se, mui-
tas vezes, um autor, como percebeu Paulo Emí-
lio. Pode-se relacioná-lo a J.B. Tanko, o húnga-
ro, naturalizado brasileiro, que dirigiu os maio-
res sucessos dos Trapalhões e que incursionou
também pelo universo denso de Nelson Rodri-
gues. J.B. quem? Pois é - o destino do artesão é
ser subestimado, relegado ao esquecimento. Foi
o que (quase) ocorreu com Coimbra, mais autor
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do que Tanko, é bom que se esclareça.

Em 2002, um debate agitou a crítica de cinema


do País, provocando polêmicas que mobilizaram
a academia e as redações de jornais. Na origem
dessa discussão estava um livro - ainda inédito,
em 2004 - da crítica e historiadora Ivana Bentes,
no qual ela sustenta que a estética da fome do
Cinema Novo virou cosmética da fome com os
diretores da nova geração do cinema brasileiro,
Andrucha Waddington, Walter Salles, Aluizio
Sanches e Fernando Meirelles. Eu Tu Eles, Abril
Despedaçado, As Três Marias, o próprio Cidade
de Deus seriam representativos dessa tendência
que consiste em embelezar a miséria. Os direto-
res falam da exclusão social e da violência - da
violência da exclusão social - mas são capazes
de sacrificar a ética no altar da estética. Tudo
pela beleza visual. Quando surgiu esse debate,
pouca gente se lembrou, nem Ivana, de que, se
existe uma cosmética da fome no cinema brasilei-
ro, não é coisa recente e, na verdade, é contem-
porânea de Glauber. Seu criador, o oficiante do
culto, foi Carlos Coimbra.
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Ele conta, no livro, o impacto que lhe causou a


descoberta do sertão, quando foi filmar, em loca-
ções, A Morte Comanda o Cangaço. O que mais
o impressionou, em Quixadá, no interior do Cea-
rá, foi o mistério da cor, sob o sol do Nordeste. É
interessante ver o que Coimbra tem a dizer sobre
uma certa mancha vermelha que viu avançar
pelo sertão. Aquela mancha tomou contornos
de gente e, ao aproximar-se, ele viu que eram
vaqueiros vestidos de couro vermelho, segundo
uma tradição da região. Ensandecido de emo-
ção, como quem faz uma descoberta essencial,
Coimbra assumiu que tinha de colocar aquilo no
filme. Seu diretor de fotografia era Tony Raba-
toni, que achava que aquelas cores só poderiam
aparecer na tela com a ajuda de um portentoso
aparato de luz. Foi o que Coimbra fez. Foi o que
ambos fizeram. Levaram rebatedores, gerado-
res, tudo para amaciar a luz e ressaltar as cores,
evitando que elas ficassem contratipadas em cla-
ros e escuros absolutos. Ao descobrir e colocar
na tela as cores do sertão, Coimbra estava ingres-
sando na contramão do que viria a ser uma das
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marcas do Cinema Novo - a luz agreste de clássi-
cos em preto-e-branco, como Vidas Secas, de
Nelson Pereira dos Santos, o citado Deus e o Dia-
bo na Terra do Sol, de Glauber, e Os Fuzis, de
Ruy Guerra.

Havia outra maneira de filmar a cor do Nordes-


te. Foi o que Glauber mostrou em O Dragão da
Maldade contra o Santo Guerreiro. Ao escolher
a sua maneira, nos filmes que fez na região - os
restantes foram realizados no chamado sertão
verde, no interior de São Paulo, onde o sol é
menos escaldante e a luz, conseqüentemente,
é outra - Coimbra não o fez por desonestidade
intelectual, nem despreparo estético. Pelo con-
trário - ele queria ser verdadeiro, fiel à paisa-
gem e aos personagens. Talvez suas escolhas
estéticas possam ser consideradas equivocadas,
mas filmes como A Morte Comanda o Cangaço
e Lampião, o Rei do Cangaço, definidores do
gênero que se chamou de nordestern - a mistu-
ra do cangaço com o western - marcaram época.
Pode ser que as narrativas sejam desequilibra-
das e a ação seja mesmo copiada do cinema
14
americano, que Coimbra amava, mas há brasili-
dade nessas obras que são mais ambiciosas do
que a crítica da época e o próprio Coimbra estão
dispostos a admitir. Uma ponte entre esses fil-
mes e o posterior Independência ou Morte!
mostra que Coimbra desenvolveu, intuitiva-
mente, que seja, um conceito de herói brasilei-
ro. O vaqueiro de A Morte Comanda o Cangaço
tem de conviver com o mal dentro dele, ao levar
a cabo sua missão de vingança contra o bando
que matou sua mãe e a mulher e destruiu o ran-
cho. Lampião é bandido ou mocinho, para usar
uma nomenclatura clássica de Hollywood? Sua
raiz está na terra, ele não faz parte do latifún-
dio que coloca em campo as volantes, para caçá-
lo. Lampião é capaz do bem e do mal e o dire-
tor escolheu um ator que não tinha afinidade
com o gênero - Leonardo Villar, mais tarde o
Augusto Matraga de Roberto Santos - justamen-
te para explorar a ambigüidade do personagem.
Quanto a Dom Pedro, está longe de ser o herói
típico. Ele declara a independência, mas na
maior parte do tempo é um jovem ardente,
obcecado pelo sexo e está mais interessado em
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correr atrás de rabos-de-saia. Como reprovar
Tarcísio Meira? Glória Menezes nunca esteve
mais desejável do que em sua criação como a
Marquesa de Santos.

Durante toda a década de 1960, o cinema de


Coimbra foi visto com certa indulgência porque
era considerado inofensivo. Com as luzes da críti-
ca voltadas para a luta dos autores do Cinema
Novo com o autoritarismo do regime militar,
parecia perda de tempo ficar discutindo um dire-
tor de filmes assumidamente comerciais. O Cine-
ma Novo falava do povo, em nome do povo, mas
esse preferia ver os filmes de Coimbra, que podia
ser considerado um alienado, fazendo cinema
para alienados. Os problemas de Coimbra têm
uma data precisa. Começaram em 1968 - ano
mítico - quando o produtor Oswaldo Massaini
foi contratado pela Metro do Brasil para fazer
Madona de Cedro. Agravaram-se quatro anos
mais tarde, quando Coimbra, de novo com pro-
dução de Oswaldo Massaini, dirigiu Independên-
cia ou Morte! e o regime militar de alguma
forma se apropriou do filme, transformando-o
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na peça central das comemorações do Sesqui-
centenário da Independência. Coimbra afirma
que o filme foi feito para homenagear uma data
importante da História do País. Não se sente
responsável pelo uso que os militares fizeram
do seu trabalho, como peça de propaganda.

No começo dos anos 70, havia uma guerra no


Brasil. A partir do Ato Institucional n.º 5, o fami-
gerado AI-5, a ditadura criou mecanismos que
aviltaram de vez a idéia da democracia. Com o
Congresso e a imprensa censurados, o regime
combatia, a ferro e fogo, a guerrilha, os estu-
dantes e os sindicatos. Tortura e violência torna-
ram-se práticas corriqueiras, mas invisíveis, na
medida em que não ganhavam visibilidade social
na imprensa amordaçada. Nesse quadro, a con-
quista da Copa do Mundo de 1970, no México,
provocou uma onda de ufanismo que os milita-
res, espertamente, utilizaram para encobrir o
horror de um regime que, além de violento, era
também corrupto. Foi a época do ‘Brasil, ame-o
ou deixe-o’. Independência ou Morte! inscreveu-
se - à força, que seja - na exaltação patriótica
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que, vale lembrar o que dizia Samuel Johnson,
era o último refúgio dos canalhas.

Coimbra pode defender-se das acusações de


haver servido ao regime com Independência ou
Morte!. Mal comparando, ele seria a nossa ver-
são masculina de Leni Riefenstahl, que também
proclamava inocência em relação ao nazismo.
De novo, a comparação é despropositada. É fácil,
hoje em dia, perceber que há um subtexto irôni-
co em Independência ou Morte!, produto, mui-
to provavelmente, da admiração do cineasta
pelo livro As Maluquices do Imperador, de Pau-
lo Setúbal, que ele até quis filmar. Mais difícil é
aceitar o que Coimbra fez, a seguir. Um dos
filmes emblemáticos do cinema brasileiro nos
anos 70 foi Iracema, Uma Transa Amazônica, de
Jorge Bodanzky e Orlando Senna. A dupla de
cineastas usou a história de um caminhoneiro
que se envolvia com uma jovem índia prostituí-
da à margem da Transamazônica - a grande
rodovia ligando Brasília a Belém, ou o nada a
lugar nenhum, como dizia a esquerda da época
- justamente para criticar os símbolos de que se
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valia a ditadura, usando o patriotismo para mas-
carar um projeto que não era democrático nem
patriótico. (A outra herança da ditadura - a pri-
meira foi a repressão brutal - foi o aumento co-
lossal da dívida externa.) E havia a questão do
nome da índia. É Iracema, como a virgem dos
lábios de mel de José de Alencar. A Iracema de
Bodanzky e Senna foi proibida e o que fez Coim-
bra?

Ingenuamente, ele terminou fazendo a respos-


ta àquela Iracema, propondo uma acadêmica
versão da Iracema de Alencar, com a bela Hele-
na Ramos no papel da índia desejada pelo colo-
nizador português. Coimbra surpreende-se
quando o autor do livro lhe diz que, aí sim, ele
se aliou aos militares ou foi cúmplice deles,
superpondo a sua Iracema à outra, que era sub-
versiva. Como as coisas nunca são simples e o
maniqueísmo é uma invenção de Hollywood
para dominar os corações e as mentes de todo o
mundo - eles, os americanos, estão sempre cer-
tos, são o bem; nós, os iraquianos de todas as
latitudes, temos de aceitar que somos o mal -
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pode-se duvidar dessa verdade absoluta e ver
no filme mais um aspecto da subversão pela iro-
nia que absolve Independência ou Morte!. Pois
Coimbra não fez a virgem ser interpretada pela
rainha das pornochanchadas, a mulher de todos
da Boca do Lixo, a grande Helena Ramos?

Alguém pode imaginar que o público, numa


época de censura rigorosa em relação ao sexo
(como à política), não foi ver Iracema pela possi-
bilidade de ter nuinha, na tela, a mulherona que
era objeto de desejo do País inteiro?
Dando a palavra a Carlos Coimbra, a Coleção
Aplauso resgata um diretor que tende a ser
subestimado, mas que desempenhou um papel
importante na tentativa de diálogo do cinema
brasileiro com o grande público. É o nó górdio
da atividade cinematográfica no País. Desde os
tempos das chanchadas, esse diálogo é sempre
rechaçado pelos críticos, embora já existam hoje
estudos que celebram a estética da paródia das
comédias musicais da Atlântida como signo de
resistência cultural. Sempre que vai dialogar com
o público, o cinema nacional se diminui. Avaca-
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lha-se sem avacalhar os códigos narrativos, o que
poderia ser salutar. Por que não descobrir, agora,
o que de bom existe no cinema de Coimbra? Por
que não ver nele o pai da cosmética da fome,
retirando da etiqueta seu conteúdo pejorativo,
na medida em que ela não possuía nenhuma
base publicitária, por volta de 1960? E se Coim-
bra, afinal, for política e esteticamente mais
defensável do que os novos cosmetizadores da
fome? Sua atividade múltipla é importante.
Coimbra montou filmes de Walter Hugo Khouri
e Anselmo Duarte. Não um filme qualquer de
Anselmo Duarte, mas o próprio O Pagador de
Promessas, o que significa que ele também tem
o pé na Palma de Ouro. É, por sinal, um dos mais
premiados entre os diretores brasileiros, com
Sacis e troféus Governador do Estado, nas várias
atividades, capazes de encher prateleiras. Coim-
bra já estreou ganhando o prêmio Saci, do jor-
nal O Estado de S. Paulo, que era o Oscar do
cinema do País, nos anos 50. Não dá mais para
ignorar Carlos Coimbra. Quem perde somos nós.
Nas páginas seguintes, ele solta o verbo. É um
homem raro - até para se expor, para defender-
21
se, se cabe a palavra - Coimbra não ataca nin-
guém. Há tantos ressentidos no cinema nacio-
nal. Coimbra não é um deles. Um homem assim
só pode ser generoso. Vamos ser generosos com
quem nos retratou na tela e, se teve um peca-
do, foi o de querer agradar.

Luiz Carlos Merten


22
Capítulo I

O Menino do Coro

Meu nome é Jaime Coimbra Jr., mas pouca gente


sabe disso porque todo mundo me conhece como
Carlos Coimbra, um pseudônimo que adotei lá por
1946-48 e tem uma justificativa curiosa. Naquele
tempo, ser artista era um negócio meio marginal
e o meu pai também se chamava Jaime. Como que
eu ia poder usar o mesmo nome dele, que era um
cara respeitável perante a comunidade? Adotei o
23
pseudônimo de Carlos, porque achei que tinha essa
sonoridade - Carlos Coimbra - não foi nenhum
outro motivo.

Sou de Campinas, onde nasci em 13 de agosto


de 1927. Meu pai se chamava Jaime, como já
disse, e minha mãe era Fantina Orlani, de ori-
gem italiana. Então, eu deveria me chamar Jai-
me Orlani Coimbra, mas nunca usei o nome dela,
ao contrário dos meus irmãos. Éramos quatro
filhos, todos homens. José era o mais velho, Mil-
ton era o segundo, eu o terceiro e o caçula era o
Sérgio. Dois já morreram e agora sobramos só o
Milton e eu.

Estudei num colégio de padres salesianos de


Campinas. Foi lá que fiz o Grupo Escolar. Essa
expressão ganhou outra conotação depois, in-
dicando colégio público, mas naquele tempo
servia para indicar o curso primário. A escola
salesiana se chamava Externato São João e foi
lá que surgiu esse negócio de eu querer ser ar-
tista. O diretor do colégio era um padre muito
festeiro, gordo, bonachão, chamado José Luiz
24
Valentim. E o Padre Valentim, que gostava mui-
to de festa, criou duas coisas que se tornaram
permanentes no Externato. Uma foi o coral, que
ficou conhecido como Canarinhos de Campinas,
formado por uns 20 ou 30 garotos; a outra foi
um grupo teatral, também com as crianças da
escola. O Externato tinha um teatro de verda-
de, coisa até muito grande, mesmo para uma
escola particular. Era um teatro completo, com
não me lembro quantos lugares, mas eram cen-
tenas, e tinha um palco muito grande e todos
aqueles apetrechos indispensáveis a um bom
teatro, para garantir a acústica e controlar a ilu-
minação. Todo mês, o Padre Valentim montava
um espetáculo com as crianças, que era mostra-
do numa sessão especial para os familiares, fos-
sem pais ou parentes, e mais alguns convidados
da comunidade.

Havia primeiro uma parte de variedades, na qual


entrava o coro dos Canarinhos, e depois vinha a
parte cênica, que era sempre uma peça escrita
pelo próprio Padre Valentim, que adorava cele-
brar valores familiares e morais edificantes. Eu
25
pertencia aos dois quadros - cantava no coral e
era ator no teatro. Desenvolvi uma tal paixão
pelo teatro, naquela época, que, em vez de brin-
car na rua com a molecada, eu ficava o dia todo
no teatro, mexendo em tudo. Ajudava a pintar
os cenários. Quando tinha espetáculo, o cenário
era quase todo feito de papelão pintado e eu,
além de pintar, ainda atuava. E isso foi durante
todo o período em que fiz o Grupo Escolar. Fi-
quei no Externato até os 11 anos, exercendo
todas essas atividades que desenvolveram em
mim o desejo de ser artista.
Tive uma infância normal, mas nunca fui muito
traquinas, porque preferia ficar envolvido na-
quelas atividades artísticas, que eram extracu-
rriculares, do Externato. Os meus colegas joga-
vam futebol, praticavam esportes e eu lá, já
querendo ser artista. Tinha uma constituição
franzina. Sempre fui magrelo, miudinho. Minha
mãe também era magra, era miudinha, mas o
pai era forte e os meus irmãos todos puxaram
para ele. Meu filho também é um gatão de dois
metros de altura, só eu era aquela coisa franzina.
Nunca fui um aluno muito bom. Era médio -
26
nunca fiquei entre os melhores da turma, mas
também não era o pior. Nunca repeti de ano,
mas que eu me lembre também nunca tirei nota
10. Meu irmão Milton, sim, era muito levado e
vivia aprontando. E ele me arrastava, às vezes,
nas molecagens dele, mas nunca fomos de dar
dor de cabeça aos pais. Formávamos uma gran-
de família. A nossa tinha seis pessoas, mas a
família da minha mãe era a típica família italia-
na. A nonna, mãe dela, teve 11 filhos e a mãe
do meu pai também teve 8 ou 9. Então, quando
todo mundo se reunia era aquela multidão.
Somando os tios e primos, dava sempre umas 50
pessoas.

A casa ficava na Rua General Câmara, tinha o


número 277 e há alguns anos fui lá. A casa con-
tinua firme, na mesma esquina, precisava refor-
mar, mas é incrível que tenha resistido à espe-
culação imobiliária. Era um casarão e pertencia
ao meu avô português, que tinha um salão para
atender aos clientes na frente. Vovô era alfaia-
te, tinha uma alfaiataria concorrida. Logo de-
pois que eu nasci fomos morar na casa do avô,
27
que tinha um quintal muito grande, cheio de
árvores. Me lembro das goiabeiras; gostava
muito de me pendurar naquelas árvores. Meu
pai era de origem portuguesa. O pai dele nas-
ceu em Coimbra e, quando chegou ao Brasil,
deve ter dado a procedência, que foi entendida
como nome e aí o Manoel Caetano, como ele se
chamava, virou Manoel Caetano Coimbra. Aque-
la era a casa do seu Coimbra...

Embora tenha sido criado dentro das tradições


portuguesas e italianas, nunca tive vontade de
fazer um filme refletindo essa origem familiar.
Minto - a única vez que tentei, o filme seria so-
bre Anchieta, que eu tentei fazer em 1997, quan-
do se comemoravam os 400 anos da morte do
Apóstolo do Brasil. Estudei bastante a vida do
Padre Anchieta, que nasceu numa concessão
espanhola, na Ilha das Canárias, mas foi criado
em Portugal. Escrevi o projeto, que foi aprova-
do pelo Ministério da Cultura, mas não conse-
gui levantar o dinheiro. Seria um filme caro,
porque tinha locações, reconstituição de época.
A história do Padre Anchieta engloba a funda-
28
ção de São Paulo, a fundação do Rio de Janeiro.
Devo ter lido uns 20 livros contando a história
dele. Só no Brasil, o Padre Anchieta viveu du-
rante 44 anos e fez coisas notáveis, mas é incrí-
vel, se você for perguntar a alguém, é possível
que só se lembre do Padre Anchieta como aquele
que escreveu o poema dedicado à Virgem Ma-
ria na areia da praia. Acho que escrevi um bom
roteiro, sólido, bem pesquisado e fundamenta-
do. Vai ficar como um sonho não realizado e
talvez nunca ninguém saiba como seria o meu
Anchieta. O projeto era tão ambicioso que, além
de filme e minissérie para TV, também preten-
dia criar um centro histórico na cidade de
Anchieta, no Espírito Santo, usando os cenários
que eu pretendia construir para a filmagem.

Devia ter uns 7 ou 8 anos quando a minha mãe


me levou a uma sessão infantil, num cinema de
Campinas. Todo domingo de manhã tinha aque-
la sessão para crianças. Eram exibidos desenhos,
comédias, seriados de aventuras. Os filmes de
série eram tipo novela. Toda semana passava um
capítulo e eu me lembro perfeitamente do pri-
29
meiro filme que vi. Chamava-se Os Perigos de
Paulina. Para mim, foi um deslumbramento.

Eu já me considerava meio artista, participando


do teatrinho do Externato e fiquei tão maravi-
lhado com aquilo que nunca mais deixei de ir ao
cinema. Vi a série Os Perigos de Paulina todinha,
e aí entrou outra série da qual não me lembro o
nome, mas que também continuei vendo. Só que
havia um problema - minha família era pobre,
nem sempre eu tinha dinheiro para ir ao cine-
ma e, assim, devo ter falhado alguns domingos,
o que era sempre motivo de grande decepção e
tristeza. Para conseguir os dez tostões da entra-
da, arranjei meu primeiro trabalho remunera-
do, que era catar jornais, em casa e na casa dos
vizinhos. Juntava os jornais, botava na cabeça e
caminhava um quilômetro para ir vender no
mercado.

30
Aos 12 anos, sofri um acidente grave e quebrei
a perna. Tive que fazer uma operação para co-
locar pino e foi um acontecimento. Foi a primei-
ra vez que uma operação desse tipo foi realiza-
da em Campinas. Fiquei quatro meses engessado
em casa, deitado na cama, lendo revistinhas e
vendo filmes num projetor Paté Baby de 8 mm,
que meu pai havia comprado e eu até hoje guar-
do como lembrança. Só pensava em voltar aos
filmes e aí descobri o que ia me ajudar a ter di-
nheiro e facilitar minha entrada no cinema. Fui
ser baleiro. Ficava com aquela caixa cheia de
doces e chocolates, que ia oferecendo ao públi-
co. Circulava pela platéia e podia assistir aos fil-
mes. Trabalhei durante três anos nessa função e
vi muitos filmes duas, três, dez vezes, porque os
filmes de sucesso eram repetidos e ficavam mais
tempo em cartaz, para atender a demanda do
público, que queria vê-los. Vi dez vezes um fil-
me que me produziu uma impressão muito for-
te e só mais tarde descobri que era um clássico -
Do Mundo Nada se Leva, de Frank Capra.

Naquela época, uma empresa monopolizava a


31
atividade de cinema em Campinas. Quando seu
dono se desentendeu com os representantes da
Warner e da Metro, ficamos sem ver os filmes
dessas empresas. Um cara esperto percebeu que
os campinenses não estavam mais vendo filmes
dessas empresas e conseguiu, politicamente, que
a Prefeitura cedesse o Teatro Municipal para que
ele pudesse passar filmes. Era um teatro enor-
me, muito bonito, o Teatro Municipal de Cam-
pinas, que foi derrubado quando o Orestes
Quércia foi prefeito da cidade.
Não sei por que ele fez aquilo, que foi um crime
contra o patrimônio histórico e cultural da cida-
de. Durante um bom tempo, até que fosse
construído o Cine Voga, o Teatro Municipal de
Campinas virou o point para a gente assistir aos
épicos da Warner com o Errol Flynn, aos filmes
de gângsteres, que o estúdio produzia muito, e
eu lavava a alma vendo todos aqueles filmes e
também os da Metro, que fizeram a minha ca-
beça e consolidaram, lá no fundo, o desejo de
fazer cinema. Ficava sonhando com aqueles as-
tros e estrelas - Tyrone Power, Henry Fonda,
Bette Davis, James Stewart, Paul Muni. Só que
32
eu ainda não tinha idéia de como poderia fazer
cinema. Só queria, naquela época...

Foi um processo difícil, mas acredito que não


teria me tornado quem sou se tivesse sido de
outra maneira. Depois de ser baleiro por uns
anos, fui trabalhar no escritório do cinema. Era
uma espécie de ajudante, o que ajudou a me
dar certa popularidade. Fiz algumas amizades,
com jovens que também gostavam de cinema.
Como ocorria muito nas cidades do interior, na-
quela época, a gente se reunia de noite na praça
principal da cidade, o Largo do Rosário, para
jogar conversa fora. Comentávamos os filmes,
víamos as garotas passar... Formávamos um gru-
po pequeno, de uns seis, e o que nos unia era a
paixão pelo cinema. Naquele tempo, os filmes
eram lançados em São Paulo e demoravam para
chegar às praças do interior. Primeiro, tinham
de esgotar o público em São Paulo para só de-
pois itinerar pelas praças do interior. Isso demo-
rava três, quatro meses, às vezes mais. Quando
havia algum filme muito importante, o nosso
grupo não agüentava esperar e a gente fazia
33
excursões à capital.

Vínhamos a São Paulo só para ver filmes. E,


como éramos duros, a gente vinha e voltava
no mesmo dia, porque não tínhamos dinheiro
para pagar hotel. Naquela época havia um crí-
tico muito conceituado, o Carlos Ortiz, que es-
crevia na Folha de S. Paulo. Ele era meio exa-
gerado, mas acho que, talvez até por isso, nós,
que éramos jovens, nos identificávamos tanto
com ele. Começamos a manter correspondên-
cia com ele.
A gente vinha a São Paulo, via os filmes e escrevia
ao Ortiz, dizendo se tinha gostado ou não e ele
respondia. Ficamos assim nos correspondendo,
acho que por mais de um ano, e nunca procura-
mos o Cardozinho nas vindas a São Paulo. Era só
por carta, uma relação epistolar, na qual a gente
dizia o que pensava e queria e ele também era
honesto e sincero. Foi por esta época que comecei
a achar que tinha de fazer alguma coisa para rea-
lizar o meu sonho de ser artista.

Ficar em Campinas não ia resolver nada e decidi


34
ir para o Rio. Eram os anos do rádio e havia um
programa de calouros muito famoso, apresen-
tado pelo Ary Barroso. Muita gente importante
do rádio passou por ali. Em Campinas, a Rádio
Educadora fez um concurso de calouros para
pegar carona no sucesso do programa do Ary.
Como eu era ex-canarinho e tal, me empolguei
e me inscrevi. Quando ganhei, a empolgação foi
maior ainda e eu, que já queria ser artista, deci-
di que ia ser cantor. Tinha uma voz aveludada,
adorava Orlando Silva, Sílvio Caldas, Gilberto
Alves.
Decidi que a minha vocação era cantar música
romântica e consegui ir para o rádio. Cheguei a
ter um programa meu, de 15 minutos, na Rádio
Educadora, a PR-9, que existe até hoje. Comecei
a cantar num esquema profissional, como
crooner de orquestras em bailes, mas ganhava
pouco, só uns trocados que mal davam para me
ajudar no dia-a-dia. Era famoso na cidade e vi-
via duro, mas tomei consciência de que, se qui-
sesse ser cantor, tinha de ir para o Rio, onde es-
tavam as grandes rádios. Meu irmão Milton já
morava lá e poderia me ajudar. Tinha 20 anos,
35
nessa época a gente não pensa nas conseqüên-
cias dos atos. Fui - mal sabia que estava dando o
primeiro passo para virar cineasta, mas ainda
teria alguns anos de estrada no rádio.
36
Capítulo II

Na era do rádio

Preciso voltar a falar um pouquinho do meu ir-


mão, o Milton. Sempre tive uma identificação
maior com ele do que com os outros irmãos. Tí-
nhamos mais ou menos o mesmo gosto para
tudo. Ele também foi canarinho e ator no Exter-
nato e trabalhou de lanterninha, como eu. E um
dia o Milton fugiu com um circo. Ele gostava
tanto da vida de aventura, gostava tanto de
37
palhaço e picadeiro que, um dia, quando esse
circo passou lá por Campinas, o Milton simples-
mente se foi com eles, quando desarmaram a
lona. Passaram-se anos e a gente só foi
redescobrir o Milton mais tarde, quando ele se
casou e foi morar no Rio, como militar. Fui ao
encontro dele, convencido de que ia me ajudar
e não me enganei. O Milton sempre foi muito
bacana comigo. Preciso contar que, aos 20 anos,
quando cheguei ao Rio, que era a Capital Fede-
ral e a capital da malandragem do Brasil, eu já
tinha uma experiência de vida muito grande ou,
pelo menos, superior à média dos garotos da
minha idade lá em Campinas. Tive um professor
nesse processo, que foi o Alfredinho Moura,
grande violonista. Alfredinho era um boêmio
inveterado, sempre metido em noitadas de far-
ras. Naquele tempo não havia boates, só uns
cabarezinhos lá em Campinas e ele me levava
com ele. Aos 15 anos virei cantor e aos 16 já an-
dava com mulheres da vida, porque, naquele
tempo, para conseguir mulher, era só na zona.
Então, tive uma liberdade e uma experiência que
os outros garotos não tiveram e amadureci an-
38
tes que eles. Acho que, mais tarde, isso foi im-
portante para mim, como diretor. Me ajudou a
entender mais a natureza humana, a dar consis-
tência à personagens que eram diferentes de
mim. Fui sempre muito observador, essa é a ver-
dade, e gostava de olhar aquele mundo que eu
freqüentava, mas ao qual não pertencia, tinha
consciência disso.
Quando cheguei ao Rio, achei que seria fácil
entrar no rádio, depois de atuar vários anos em
Campinas, mas que nada. Havia centenas de
pessoas na porta das rádios, esperando por uma
oportunidade, implorando por uma chance. A
Rádio Nacional, naquele tempo, era a TV Globo
de hoje. E o Rio era o lugar onde tudo se con-
centrava, então ia gente de todo o Brasil para
lá. Quando me dei conta de que não seria fácil
fazer carreira no rádio, tratei logo de arranjar
um emprego, porque eu era duro e precisava
me sustentar, não ia viver à custa do Milton. Em
Campinas, eu já havia trabalhado como ajudan-
te de guarda-livros no escritório do cinema. Não
tinha me formado em nada, mas sabia fazer a
escrita e procurei emprego numa associação que
39
havia sido criada para encaminhar as pessoas.
Dei sorte, porque o funcionário me disse que
tinha dois pedidos de pessoal, para os quais po-
deria me encaminhar. Nem me lembro direito
qual era um, mas o outro era para trabalhar no
escritório de uma empresa ligada a cinema e foi
o que eu procurei, claro. Era uma empresa que
só fez um filme, a Brasfilmes, e foi nesse filme
que trabalhei pela primeira vez como assistente
de direção. Chamava-se Luzes nas Sombras, foi
feito para ajudar numa campanha contra o cân-
cer, com direção do Carlos Ortiz.
40

Nas filmagens de Luzes nas Sombras, com Heládio


Fagundes, Doroty Faggim e Paulo Maurício, 1952

Konstantin Tkaczenko assinava a sonografia. Foi


muito importante ter conhecido o Konstantin,
mais tarde iríamos trabalhar juntos de novo,
quando voltei para São Paulo, mas não vamos
antecipar as coisas.

Já disse que cheguei ao Rio em 1949 e Luzes


nas Sombras foi lançado só em 1953. É uma his-
tória curiosa. O filme foi feito segundo o siste-
ma de cotas e o produtor demorou uns três anos
só para vender essas cotas e levantar a verba
para filmar. Trabalhava no escritório e, simul-
taneamente, continuava tentando o rádio. Foi
quando críticos importantes do Rio, entre eles
Luiz Alípio de Barros, Salvyano Cavalcanti de
Paiva, Moniz Vianna e Jorge Ileli, fundaram o
Círculo de Estudos Cinematográficos. Era um
cineclube que projetava um filme por semana e
a exibição era sempre seguida de debates, mui-
to bacanas. Entrei para o Círculo e virei um
freqüentador assíduo. E também comecei a fre-
41
qüentar a Atlântida, a conhecer os artistas e
técnicos do estúdio que era o mais famoso do
Brasil, na época. Explico como isso ocorreu -
quando saí de Campinas, tive a incumbência de
ser correspondente, no Rio, da revista campinei-
ra Palmeiras. Era uma revista que falava de tudo
e eu ia cobrir a parte de cinema no Rio, que era
onde se concentrava a produção. Não ganhava
muito dinheiro, mas sempre era uma contribui-
ção, mesmo pequena, para as despesas e eu
podia usar o título de jornalista, que me abria
portas.
Abriu as da Atlântida e passei a fazer entrevis-
tas com os astros da Atlântida. O Anselmo Duar-
te, por exemplo, eu conheci na Atlântida e nem
podia imaginar que, mais tarde, iria trabalhar
com ele, como montador e diretor. Passava todo
o tempo disponível na Atlântida, e confesso que
era bastante, circulando ali pelo estúdio, vendo
o movimento, conhecendo as pessoas. Passei a
freqüentar também uma leitaria - não era confei-
taria nem café, era assim mesmo, leitaria - que
se chamava Alvadia e era o ponto de encontro
do pessoal do meio artístico, principalmente do
42
cinema. Foi lá que conheci Jece Valadão, Auré-
lio Teixeira, Fernando de Barros, Wilson Grey e
Herval Rossano, que também estavam começan-
do. A conseqüência de tudo isso é que comecei
a fazer pequenas figurações. Apareci desse jei-
to em alguns filmes e me lembro muito bem de
Também Somos Irmãos, do José Carlos Burle, de
1949-50. Era um filme ambicioso do estúdio, não
era uma chanchada. Tratava do tema do racis-
mo e me recordo que a minha cena era na saída
da Igreja da Glória, sem direito a fala. Era só
figurante.
Um pouco antes de ir trabalhar na Brasfilmes,
mas já na época em que era figurante na Atlân-
tida, tive uma pequena experiência no rádio.
Queria ser cantor, mas ninguém me dava chance.
Fui ser distribuidor de cartas na Rádio Tamoyo,
que não era a Rádio Nacional, mas também rece-
bia um monte de correspondência, e era preciso
alguém para pôr ordem naquele material. Era o
que eu fazia. Separava as cartas, colocava nos
escaninhos. Fazia isso enquanto esperava uma
colocação como cantor. A Tamoyo era uma rá-
dio que só tinha teatro. Era rádio-teatro o dia
43
inteiro e eles tinham um programa semanal de
música, no qual consegui cantar. E também fui
rádio-ator, porque eles precisavam de gente,
naquele monte de horários de rádio-teatro que
tinham. O programa mais famoso era o Pausa
para Meditação, do Júlio Louzada, escrito pelo
batalhão de redatores que eles tinham.

Eram uns 20 caras que criavam esquetes, peque-


nos quadros radiofonizando assuntos do cotidia-
no ou em evidência. Comecei a aparecer como
ator e eles gostavam da minha voz, mas na car-
Coimbra (segundo, à esquerda) nos tempos do rádio
44

teira permanecia como distribuidor de cartas,


que era a minha função oficial, para a qual esta-
va contratado. Por essa época, havia um campi-
neiro que era muito famoso no Rio. Chamava-
se Badu e era comediante contratado da Tupi,
uma rádio maior que a Tamoyo.

Veja só que coincidência - o Badu havia sido meu


professor no Externato São João e agora eu o
reencontrava no Rio, quando tentava dar impul-
so à minha carreira artística. Fui ao Badu e expli-
quei a minha situação, pedi uma força e ele dis-
se: “Pode deixar...” Badu começou a me levar
aos programas e a shows em circos, me apresen-
tava a todo o mundo. Me apresentou ao Paulo
Gracindo, que era a estrela da Tupi, e fui contra-
tado como cantor e como assistente do Depar-
tamento Musical, assessorando o Mário Autuori,
que era diretor musical e violinista spala da
orquestra da Rádio Tupi. Fui ficando por lá, mas
já de olho na Brasfilmes, com a expectativa de
que eles vendessem as cotas para produzir Lu-
zes nas Sombras. Chegou o grande dia, quando
45
anunciaram que já havia dinheiro e poderiam
filmar. O problema é - quem ia dirigir? Os dire-
tores do Rio tinham muito trabalho, cobravam
caro e o Heládio Fagundes, o bambambã da
Brasfilmes, resolveu tentar um diretor paulista,
que sairia mais barato. E ele escolheu o Carlos
Ortiz. Foi outra coincidência que ajudou a mu-
dar minha vida. Já conhecia o Ortiz, com quem
trocava correspondência em Campinas. Ele me
fez seu assistente e também levou, para o elen-
co de Luzes nas Sombras, o Hélio Souto, que já
era um ator conhecido em São Paulo.
Depois desse filme, fiz uma segunda assistência
de direção para o mesmo produtor, mas aí não
era mais a Brasfilmes. O segundo filme foi o
Cavalgada da Esperança, que contava a história
de Nossa Senhora Aparecida, quer dizer, a histó-
ria sobre como foi encontrada a estátua da san-
ta que deu início à devoção. O Heládio veio a
São Paulo e conseguiu levantar o dinheiro, tam-
bém por meio de cotas. Filmamos em Pindamo-
nhangaba e, desta vez, ele tomou coragem e
assumiu também a direção. Heládio era irmão
da Lygia Fagundes Telles e ela colaborou no
46
argumento, mesmo que não tenha crédito de
participação.

O roteiro de Cavalgada da Esperança é co-assina-


do por mim, com o Moisés Gurovitz, que havia
feito um estágio em Paris, no famoso Institut
des Hauts Études Cinématographiques, o IDHEC.
Estava progredindo como radialista, participan-
do como cantor em vários programas importan-
tes da Tupi e até dirigindo programas musicais
na Tamoyo, como os de Dóris Monteiro, Vicente
Celestino e Luiz Vieira, mas foi com o Cavalgada
da Esperança que me convenci de que a minha
vocação era o cinema. Gostava cada vez mais
daquele negócio e procurava me enfronhar, mais
e mais. Já no tempo do Luzes nas Sombras, até
por ser assistente, dei um jeito de ampliar mi-
nhas funções na equipe e fui acompanhar o
trabalho do montador. Hélio Barroso foi um
grande profissional - montador, iluminador, téc-
nico de som. Aprendi muito com ele, que sabia
tudo sobre a técnica do cinema. Fui além. Deci-
dido a me tornar cineasta, resolvi que devia
acompanhar a dublagem e todo o processo de
47
som e laboratório.

Comecei a ser respeitado porque, na prática,


conhecia tudo, sabia tudo. E foi aí que o Kons-
tantin Tkaczenko... Já falei o nome dele. O
Konstantin participou da equipe do Luzes nas
Sombras, como responsável pelo som, e foi o
fotógrafo de Cavalgada da Esperança. Konstan-
tin era russo, tinha fugido do país dele e veio
para o Brasil. Era um cara muito virador que
conseguiu se infiltrar entre o pessoal de cine-
ma, executando diversas funções em diferentes
filmes. Konstantin seria muito importante no
desenvolvimento da minha carreira. Eu era aque-
le cara, o assistente, e foi ele quem me transfor-
mou em diretor. Inspirado no exemplo do Helá-
dio Fagundes, o Konstantin também começou a
vender cotas para um filme que queria produ-
zir. No Brasil, é assim e, naquele tempo, era mais
ainda. O cinema era uma atividade meio margi-
nal e o Konstantin meteu os peitos, vendeu as
cotas e fizemos o filme, que foi o Armas da Vin-
gança. Filmamos em Piracicaba e numa região
de Minas chamada Fronteiras, onde tem a ca-
48
choeira dos Marimbondos, para concluir em
Araraquara.
Nas filmagens de Armas da Vingança
Com José Policena, Aurora Duarte, Luigi Pichi e figurantes,
em Armas da Vingança, 1954

49
É uma coisa interessante porque o filme, roda-
do em 1955 - quando eu tinha o quê? 25, 26
anos - é obra de principiantes. Todos os que fize-
ram o filme estavam estreando. Eu, como dire-
tor; o Konstantin, como produtor. Nossa equipe
era formada por nós e mais duas pessoas - o
Konstantin era o diretor de fotografia, havia um
italiano, o Hélio Coccheo, que era assistente de
câmera, e o quarto era outro italiano que aju-
dou o Konstantin a levantar a produção e virou
uma espécie de faz-tudo, quebrando todos os
galhos no set.
50

Luigi Picchi e Aurora Duarte em Armas da Vingança, 1954


51

Vera Nunes e Hélio Souto em Armas da Vingança, 1954


Chamava-se Alberto Severi e ganhou crédito de
co-direção porque era muito amigo do nosso
produtor financeiro, José Antônio Orsini. Foi um
filme muito pobre, feito na raça. Tinha o rotei-
ro, porque eu escrevi, mas o dinheiro era curto
e não havia equipe. Não tinha assistente de dire-
ção nem nada. Até hoje me pergunto como
conseguimos levar a cabo aquela aventura, mas
levamos. E o filme, que foi feito quase clandes-
tinamente, apesar de ter um elenco super conhe-
cido - Aurora Duarte, Hélio Souto, Vera Nunes,
Luigi Picchi - com aquelas quatro pessoas dando
52
um duro danado, terminou tendo um acabamen-
to de luxo. Graças ao Orsini, conseguimos ter a
Edith Hafenrichter na montagem - e a Edith era
mulher e colaboradora do Oswald Hafenrichter,
o lendário montador da Vera Cruz - e o Gabriel
Migliori na música. E o mais incrível é que esse
filme de principiantes terminou ganhando cin-
co Sacis.

Era o prêmio mais importante do cinema brasilei-


ro, o Oscar do cinema brasileiro, atribuído pelo
jornal O Estado de S.Paulo.
53
Depois, soube que receber o Saci era o sonho de
todo o mundo no cinema paulista, mas naquele
tempo ainda não sabia. Juro por Deus. Tinha
saído diretamente de Campinas para o Rio e,
quando vim para São Paulo, me concentrara no
trabalho de realização e finalização de Armas
da Vingança. Foi quando pintou o convite para
ir à festa de entrega do Saci. Estávamos no cen-
tro e a festa era ali perto, na Major Quedinho.
Fomos todos juntos, em grupo. Konstantin, Luigi,
eu. E aí começaram os anúncios. Melhor música
para o Migliori, por Armas da Vingança. Melhor
54
ator, Luigi Picchi; melhor fotografia, Konstantin
Tkaczenko. Virei o foco de todos os olhares, mas,
palavra de honra, aquilo foi a maior surpresa
que tive na minha vida. Não fazia idéia nem
achava que o filme pudesse ganhar mais prê-
mios. Mas aí veio o Saci do melhor filme. Quan-
do anunciaram o melhor diretor e era eu, quase
desmaiei. Não consegui subir no palco. Fiquei
completamente desnorteado. Para ser sincero
comigo mesmo, tenho de confessar que até hoje
não sei por que me deram aqueles prêmios to-
dos, por que me deram, especialmente, o prê-
mio de direção. Não me envergonho do Armas
da Vingança nem poderia, mas não tenho predi-
leção por ele. A verdade é que devo ser mino-
ria, porque cinco Sacis têm de representar algu-
ma coisa.

Na entrega do Prêmio Saci (1955): Aparecida Coimbra,


Carlos Coimbra, Luigi Picchi, José Policena, Ludmila
Tkaczenko, Konstantin Tkaczenko, Dalva Fagundes
55
56
Capítulo III

Primeiros Passos

Gostaria de esclarecer que muita coisa do meu


aprendizado de vida foi feita pela via do pró-
prio cinema. Falei que ainda era jovem e fre-
qüentava cabarés, onde tive experiências que me
marcaram. Vi coisas que me deram uma maior
compreensão do humano, mas acho que a lite-
ratura e o cinema foram muito importantes na
definição... Ia dizer do meu caráter, mas acho
57
que é mais uma coisa de imaginário, de imagi-
nação. Sempre gostei muito do Monteiro Loba-
to, adorava as histórias do Sítio do Pica-pau
Amarelo e aquilo era uma viagem para mim.
Sempre gostei de ler romances e, quando jovem,
fui sócio do Clube do Livro. Todo mês o clube
publicava um livro de grandes autores e eu lia
todos. Era muito diversificado. Sempre gostei
muito do Paulo Setúbal, adorava o Érico Veríssi-
mo e, quando fui a Porto Alegre lançar o Lam-
pião, tive a oportunidade de conhecê-lo. Pedi
ao Érico que me desse o autógrafo e ele me deu,
com a coleção completa de O Tempo e o Vento,
foi muito gentil. Gostava do Jules Verne, mas
não era todo tipo de literatura folhetinesca e
de aventuras que me atraía. A Coleção Terrama-
rear, da Editora Melhoramentos, nunca li e, se
li, não me marcou muito. Os clássicos, Capitão
Blood, Robin Hood, eu conheci através do cine-
ma, naqueles filmes maravilhosos do Errol Flynn,
mas nunca li nada, não. Acho até que era me-
lhor assim. Os filmes preenchiam integralmente
a minha imaginação.

58
Mais tarde, já adulto, quando freqüentava o
cineclube, no Rio, comecei a me interessar por
livros de cinema. O meu preferido era um que
se chamava ABC do Cinema, com informações
básicas sobre bastidores e tecnologia. Virou uma
Bíblia para mim. Todas essas leituras e mais to-
dos os filmes que vi me levaram ao Armas da
Vingança e, quando eu disse que não entendi
porque me deram o Saci de direção, não é verda-
de. Eu até entendi, porque aquele era o filme
de um garoto aplicado que queria mostrar que
sabia fazer cinema. O filme tem muita coisa que
vi nos filmes dos outros, muita coisa que achei
que seria bonita. Poderia dizer que é um filme
metido a besta, que se pretende artístico e que
até descuida da história e dos personagens. Já
contei como surgiu o Armas da Vingança. O
Konstantin (Tkaczenko), entusiasmado com o
sistema de cotas que o produtor Heládio Fagun-
des desenvolveu para fazer Luzes nas Sombras e
Cavalgada da Esperança, começou a lançar cotas
para um filme que ele pretendia produzir. E o
Konstantin, porque achava que eu tinha bom
conhecimento técnico, me propôs que dirigisse.
59
Eu, muito inconseqüente, topei e assim surgiu
aquele filme que foi, como já expliquei, uma
aventura de estreantes.

O Konstantin não conseguiu levantar muito di-


nheiro, éramos uma equipe reduzida e tal, mas
ele trouxe atores conhecidos para o Armas da
Vingança. Inclusive, o argumento era do mari-
do da estrela, que era a Aurora Duarte, que já
havia filmado com Alberto Cavalcanti na Vera
Cruz. O marido dela, Walter Guimarães Mota,
criou uma história que eu desenvolvi em forma
de roteiro. Era uma história de aventuras toda
desenrolada em torno de uma usina de açúcar.
Tinha um vilão, um sujeito mau, interpretado
pelo Luigi Picchi, o dono do engenho, que que-
ria possuir a menina novinha, interpretada pela
Aurora Duarte. Ela namorava com o Hélio Sou-
to, que tinha uma cena de luta com o Luigi, no
final. Os dois lutavam numa cachoeira e o Luigi
caía, morria afogado. Era uma história boba,
nada original, para falar a verdade, e nós filma-
mos num engenho em Araraquara - a Usina Ta-
moio, da família Morganti - que era uma coisa
60
grandiosa. A usina devia ser a maior do Brasil,
na época, e o dono ainda construiu em volta uma
cidade para abrigar os engenheiros e os operá-
rios. Era um coisa muito grande mesmo e nós
ficamos morando lá um tempo, durante a pro-
dução do Armas da Vingança.

Foi uma produção conturbada, porque teve um


dia em que o Konstantin saiu no tapa com o
Luigi. Os dois brigaram feio e aí ficou um clima
ruim no set. No meio da filmagem, o Konstan-
tin ficou sem dinheiro, porque o que ele havia
conseguido não cobria o custo de toda a produ-
ção. Surgiu um novo sócio, o José Antônio Orsi-
ni, que tinha um hotel em Piracicaba e a equipe
se deslocou para lá. Mais tarde, quando o Armas
ganhou o Saci, o Flávio Tambellini, que era um
crítico importante - depois ele virou diretor - vi-
via querendo conversar comigo sobre o filme. O
Tambellini gostava muito da minha direção. Só
para você ter uma idéia. No filme, tem uma cena
em que Aurora Duarte vem saindo da casa onde
foi assediada violentamente pelo Luigi Picchi. A
casa tinha uma grade na frente e eu usei um
61
carrinho para movimentar a câmera. Filmei a
Aurora por trás das grades e o Tambellini viaja-
va na cena, propondo mil e uma interpretações
para aquilo. Eu não tinha pensado em nada, nem
tinha capacidade para aquilo. Era um moleque
querendo fazer cinema e filmei daquele jeito
porque achei que seria bonito, como efetivamen-
te foi. E essa noção da beleza vinha dos filmes
que havia visto e absorvido.

Esqueci de dizer que, quando morava no Rio,


havia um cineminha na Praça Tiradentes que
projetava quatro filmes por dia. Era assim coisa
de R$ 1 hoje em dia e a Praça Tiradentes era o
point onde se reuniam os artistas desemprega-
dos. Cantores, atores, músicos. Todo dia ia todo
mundo para lá, em frente ao Teatro Carlos Go-
mes, à espera de ser contratado. Eu também ia,
mas usava os meus últimos trocados, que naque-
le tempo eram cruzeiros ou mil réis, nem sei, para
ir ao cinema. E via... Não eram filmes vagabun-
dos, não. Vi o Eisenstein, o Encouraçado Potem-
kin, vi o filme famoso em que a Hedy Lamarr
ficava nua (Êxtase, de Gustav Machaty,1933). E
62
me impressionava muito com a plasticidade
daqueles filmes, com a intensidade dramática
do Encouraçado do Eisenstein. Intuitivamente,
usei as lições que havia aprendido vendo aque-
les filmes no Armas da Vingança. E eu usava
tudo. Havia visto muito neo-realismo. Me lem-
bro que Roma, Cidade Aberta, de Roberto Ros-
sellini, me causou uma impressão muito forte,
naquela cena da morte da Anna Magnani. Armas
da Vingança tem uma história boba, mas do
ponto de visual eu queria que fosse uma expe-
riência intensa.
O filme realmente tem coisas muito bonitas.
Numa cena, a Aurora vai ao cemitério. Nem me
lembro mais quem morreu, se era o Luigi, que
foi morto pelo Hélio Souto. Mas eu filmava ela
chegando pelo meio dos túmulos, depois se ajoe-
lhando. Soprava um vento e os cabelos dela fica-
vam esvoaçando. Era uma coisa linda, todo mun-
do que viu achou aquilo fabuloso e o Oswald
Hafenrichter, que era um grande montador,
gostou tanto que resolveu montar o filme,
embora seja a mulher dele, a Edith, quem tenha
o crédito da montagem.
63

Falei no Armas como um filme de aventuras e


mais tarde eu me especializei como diretor de
ação e aventura. Não era uma coisa intencional,
mas foi assim e eu gostava daquele cinema de
tempos fortes, de heróis decididos, mas no caso
do Armas, até onde me lembro - não vejo o fil-
me há tempos - era uma coisa mais clássica, mais
romântica. Explorava muito o lado lírico e isso
realçava o aspecto mais artístico, o que, tudo
somado, ajuda a explicar o prêmio Saci, que eu,
mesmo assim, explicando, continuo não enten-
dendo. Recebi outros prêmios depois, outros
Sacis, mas aquele foi um espanto, um assombro
para mim. Acho que boa parte daquele sucesso
deveu-se aos atores. Sempre gostei de trabalhar
com atores, nunca tive problemas. Bem... Para
dizer a verdade, tive uma vez, mas é melhor nem
lembrar. Trabalhei com grandes atores de tea-
tro e alguns deles eram considerados difíceis - o
Sérgio Cardoso, por exemplo - mas eu nunca tive
problemas com ele.

No caso do Armas, eu dependia muito da expe-


64
riência dos atores, porque eu não tinha experiên-
cia suficiente e então um dia o Hélio Souto defi-
niu aquilo como uma aventura de moleques brin-
cando de fazer cinema, mas não disse de forma
agressiva. Terminamos todos rindo, porque era
verdade. A Vera Nunes era uma atriz consagra-
da em vários filmes e a Aurora, que era menos
experiente, foi muito dedicada. Então, eu só
podia agradecer e me achar sortudo por ter ali
todas aquelas pessoas.

Depois da consagração do Armas da Vingança no


Saci, o Konstantin conseguiu armar outra produ-
ção e fizemos em seguida o Dioguinho, mesmo
assim se passaram dois anos entre os dois. Não era
fácil para mim. Estava decidido a permanecer
como diretor de cinema, mas levantar dinheiro
sempre foi um problema. Bom - depois eu tive a
minha fase com o Massaini e ele resolvia todos os
problemas de produção, eu só dirigia. Só que, em
1956, eu me casei com a Aparecida, fui pai em
seguida, tinha uma família para sustentar e o cine-
ma era aquela atividade instável. Cada filme era
uma luta. Quando comecei, a Vera Cruz, que havia
65
tentado estabelecer uma indústria de cinema em
São Paulo, estava no finzinho. Havia fracassado. E
eu também não fiz parte da Maristela nem da
Multifilmes, que surgiram depois dela. Cheguei a
ser convidado pelo Mário Civelli para fazer Bru-
ma Seca, mas o filme só saiu anos mais tarde, com
produção de Alfredo Palácios, dirigido pelo Má-
rio Brasini, que trabalhou a partir do meu roteiro,
desenvolvido a partir de uma idéia da Paola Ci-
velli. Bruma Seca era uma aventura na selva, não
sei como teria saído se o tivesse feito, porque fiz o
Dioguinho.
66

Nas filmagens de Dioguinho

O segundo filme não foi uma conseqüência dire-


ta da premiação do primeiro, mas foi outro pro-
duto da tenacidade do Konstantin. Ele era da-
nado.
Depois que terminamos Armas da Vingança,
Konstantin foi para os EUA. Ele já fora algumas
vezes antes e circulava pelo meio do cinema,
digamos, mais alternativo. O Cangaceiro havia
sido um grande sucesso da Vera Cruz em todo o
mundo, distribuído pela Columbia, e o Konstan-
tin, muito virador, conseguiu um daqueles pro-
dutorezinhos de quinta categoria de Nova York,
disposto a colocar dinheiro num filme no Brasil,
o que na cabeça deles devia ser como produzir
um filme na Lua.

67
E a co-produção era a seguinte - o sujeito deu
as latas de negativos e financiou as cópias e o
lançamento do filme. Konstantin me explicou
a situação. Era uma loucura - mas eu estava em-
polgado e o conhecia. Topei e foi aí que o Kons-
tantin, que também estava empolgado com o
fenômeno O Cangaceiro, me propôs que filmás-
semos a história do cangaceiro paulista. Era o
Dioguinho. Quando ele iniciou sua vida de cri-
mes, o Lampião estava no auge e o Dioguinho
passou a ser chamado de Lampião paulista.
Aquilo já era coisa passada - nossa história é
situada em 1800 e alguma coisa - mas o Kons-
tantin achou que haveria interesse nacional e
internacional pelo cangaceiro paulista. Me con-
venceu. Fomos atrás do delegado, o Dr. João
Amoroso Netto, que havia escrito um livro sobre
Diogo da Rocha Figueira, o Dioguinho. O Kons-
tantin comprou os direitos e eu comecei a traba-
lhar no roteiro, contando a história desse ho-
mem que iniciou sua vida de crimes ao matar o
sedutor de sua sobrinha. Com o tempo, o Dio-
guinho se revelou, cada vez mais, um bandido
cruel. Sua ruindade se tornou uma coisa lendá-
68
ria e foi a história desse homem que resolve-
mos contar.

Dioguinho foi o primeiro filme colorido feito no


Brasil, em Eastmancolor, e esta foi outra loucu-
ra que cometemos. O produtor americano deu
as latas de filme contadas e se responsabilizava
pela revelação dos negativos nos EUA. Não ha-
via laboratório para revelar filme colorido no
Brasil e ainda havia outro problema que, agora,
contando, você vai achar divertido, mas na épo-
ca nos causou muitas dores de cabeça.
Eu trabalhava de novo com o cameraman Hélio
Coccheo, que pertencia àquela leva de italianos
que veio para a Vera Cruz. E nós tínhamos uma
câmera cujo visor ficava através do filme. Não
dava para acompanhar as cenas, não dava para
ver nada. Ficava tudo fosco, como se houvesse
uma neblina. Para poder filmar, o Hélio tinha
de botar um pano preto, fechado completa-
mente, e ficar ali uns dois ou três minutos, antes
de conseguir enxergar alguma coisa. Filmáva-
mos, assim, meio na sorte. Sem saber se o que
fazíamos estava bom e sem poder repetir muito
69
as cenas, porque o negativo mal ia dar para con-
cluir o filme. E foi assim que fizemos Dioguinho.

Mais problemas - naquele tempo os filmes colo-


ridos tinham asa 20 ou 25; hoje eles têm asa 1000
ou mais. Isso significava que eu só podia filmar
com muito sol. Ficava limitado ao tempo e ele
não ajudou muito, o que fazia com que eu vives-
se num permanente estado de tensão e de angús-
tia. Como a gente mandava revelar nos EUA,
passavam-se duas e até três semanas antes que
o negativo voltasse revelado e a gente pudesse
ver o resultado. Bem no finalzinho da produção,
mandamos os negativos e aí houve algum proble-
ma, não me lembro qual foi, só sei que o ideal
seria repetir a cena. Mas como? O Hélio Souto,
que fazia o Dioguinho, usa uma barba cerrada
no filme e, por exigência de um outro papel - já
estava desligado da nossa produção - ele raspa-
ra a barba. Não dava para repetir. Uma barba
falsa ficaria muito feia e eu resolvi me virar com
o que tinha. Foi um filme que teve muitas limita-
ções, mais até do que o Armas da Vingança. Mas
eu me lembro de algumas coisas bacanas. Até
70
por ser um filme de época, filmamos na Casa do
Bandeirante, que é uma locação linda. E fizemos
os exteriores numa fazenda muito antiga, chama-
da Guatapará, em Guaratinguetá. Acho que os
cenários do filme são muito legais.

Foi o primeiro filme que montei. Já vinha me exer-


citando na montagem e me achei mais seguro para
encarar o desafio. A dificuldade é que o filme esta-
va sendo revelado e copiado nos EUA. Fiz uma
primeira montagem que o co-produtor america-
no aprovou, mas ele fez algumas modificações
que eu acho que não desfiguram o meu traba-
lho. Essa montagem, é bom dizer, não foi fácil,
porque o Konstantin sempre foi muito apressa-
do. Ele queria as coisas para ontem. Eu ainda
estava montando e ele já queria acabar a mixa-
gem. Tivemos muitos atritos por isso e o resulta-
do é que o Dioguinho não é bom. Não podia
ser, feito nestas condições. Faz quase 50 anos
que não vejo o Dioguinho - só vi na época, por
incrível que pareça, dublado para o inglês e num
cinema de terceira categoria, na Rua 42, em Nova
York. É outro filme do qual gosto pouco. Embo-
71
ra baseado num fato da crônica policial, não é
um thriller. É um filme de aventuras, uma daque-
las histórias de bandoleiros que em Hollywood
produzem bons westerns. A montagem é mais
dinâmica, não é lírica como a de Armas da Vin-
gança e, assim, eu acho que se integra mais ao
objetivo da trama. Havia planos bonitos que eu
achava que seriam apreciados, mas não foram.
Dioguinho, de qualquer maneira, teve críticas
condescendentes - acho, para dizer a verdade,
que a crítica nunca foi dura comigo - e ficou um
tempão em cartaz no Marabá, no centro de São
Paulo, que era, digamos assim, ‘o’ cinema da ci-
dade naquela época. O fato de o filme ser colo-
rido, numa fase em que o cinema brasileiro só
filmava em preto-e-branco, deu a Dioguinho
contornos de superprodução. E o mais engraça-
do é que - descobrimos depois - os negativos que
o americano nos enviou eram vencidos, compra-
dos a troco de banana nos EUA.

72
Capítulo IV

A fama de faz-tudo

Em 1960, fiz o filme que considero divisor de


águas em minha carreira, A Morte Comanda o
Cangaço. Entre Dioguinho e ele há um hiato de
três anos, mas não fiquei parado. Em 1958, sur-
giu a oportunidade de fazer uma fita em Jundiaí
e dirigi Crepúsculo de Ódios, que também é co-
nhecido como Nas Garras do Destino. Foi meu
primeiro filme fotografado pelo Tony Rabatoni
73
e o argumento era de um professor de Jundiaí,
Inocêncio Mazzeria, em parceria com José Júlio
Spiewak, que depois se firmou como crítico. O
roteiro, de qualquer maneira, é meu, assim como
a direção e a montagem. É outro filme rural, de
aventura e foi feito meio no desespero. Estava
sem trabalho quando recebi a proposta desta
direção e não vacilei muito, mesmo que fosse
outra loucura. Meus primeiros filmes surgiram
todos assim - eu queria fazer cinema, queria vi-
ver de cinema e quando surgia a oportunidade
de fazer alguma coisa eu me agarrava porque
sabia que o importante era estar na ativa. Havia
um italiano que fora câmera do Dioguinho e se
mudou para Jundiaí. Era falastrão, boa gente
e rapidamente se enturmou com a turma da ci-
dade.

Conversa vai, conversa vem, ele arrumou um


grupo de pessoas que gostavam muito de cine-
ma. Entre elas, havia até um jornalista que se
correspondia com alguns figurões de Hollywood.
Seu sonho era escrever um roteiro. Tentou vá-
rios, mandava para Hollywood e os americanos
74
nem lhe davam resposta. Pois bem - ele escre-
veu mais um roteiro, que eu usei como argu-
mento, mas antes disso me chamaram para acer-
tar as bases, para saber se aceitava. Topei, mas
fui sincero - disse que esse negócio de cinema
era complicado, que era preciso levantar todo o
dinheiro, porque começar uma filmagem só com
metade do orçamento era muito desgastante. E
mais do que desgastante - pelas minhas expe-
riências anteriores sabia que um filme interrom-
pido no meio terminava custando o dobro.
Comecei a trabalhar no roteiro.
Um mês depois, me chamaram para assinar con-
trato com a empresa deles, a Jundiá Filmes. Ter-
minei indo várias vezes a Jundiaí porque eles
queriam usar muita gente da cidade no projeto.
Testava possíveis atores, via quem possuía apti-
dões técnicas que pudessem ser usadas para a
formação de uma equipe. Chamei a Aurora
Duarte e o Luigi Picchi para trabalhar comigo
de novo e dei a primeira oportunidade a um
estreante, que me pareceu talentoso. Não errei
- era Carlos Zara. Também usei a Norma Montei-
ro, que era uma menina bonita, boa atriz. Essa
75
Norma, tempos depois, cometeu uma loucura.
Brigou com o namorado e ficou tão desatinada
que saiu caminhando e se atirou do Viaduto do
Chá. Poderia ter feito carreira no cinema, mas
cometeu este gesto estúpido, por causa de um
amor não correspondido. Se fosse um filme, todo
mundo ia achar que era melodramático, exage-
rado, mas foi o que ocorreu na realidade.

Crepúsculo de Ódios conta a história de um assas-


sinato. Um sujeito aparece morto numa cidade
do interior e tudo indica que o assassino é esse
rapaz, interpretado pelo Carlos Zara. A popula-
ção fica revoltada e quer linchá-lo, mas ele foge
e se esconde no mato. Um advogado importan-
te da cidade se interessa pelo caso e resolve pro-
curar o cara. Era o Luigi Picchi e sua namorada
era a Aurora Duarte. A Norma fazia a namora-
da do Zara, mas também era apaixonada pelo
Luigi. Criava-se um triângulo, aliás, um quadri-
látero amoroso. A Aurora queria que o Zara fu-
gisse, a Norma queria que ele se entregasse,
porque achava que era inocente e conseguiria
prová-lo, e o Luigi, implacável, seguia atrás. Não
76
ficava muito claro o interesse do Luigi no caso.
Esta era a revelação final. A perseguição termi-
na naquelas pedras lá em Jundiaí. Os dois bri-
gam, o Luigi cai mortalmente ferido e confessa
que o assassino é ele.

Filmei em preto-e-branco e foi outra odisséia na


minha vida. Apesar do que eu havia dito para
eles, o pessoal da Jundiá não ouviu meus conse-
lhos. Eles não tinham conseguido reunir todo o
dinheiro da produção e, quando chegou na me-
tade, acabou a verba. Nos últimos dias, ficáva-
mos todos parados, lá no meio daquelas pedras,
sem dinheiro para nada. Agora, é engraçado, mas
sofremos muito naquela equipe. No filme, a Nor-
ma ficava correndo atrás do Zara numa charreti-
nha e, quando acabou de vez o dinheiro, era só
aquele transporte que tínhamos. Um dia, a charre-
tinha arriou. Não agüentou tanta ida e vinda. Foi
o caos. Por esta época, já estava desenvolvendo
um... um método; não vou dizer estilo. Sempre
gostei de usar o carrinho. Em meus filmes, há
muito movimento de câmera. E o problema é que
eu só tinha uma câmera. Aliás, era a mesma que
77
eu vinha usando desde o meu primeiro filme, uma
Debrie Parvo-L. E era complicado botar e tirar a
câmera do carrinho e dos trilhos. Exigia tempo,
transporte. Tempo, a gente tinha de sobra, mas
com a charretinha era difícil transportar as coisas
de um lado para outro. Não admira que a charre-
tinha tenha arriado. Não era possível colocar a
câmera nela, porque trepidava muito. E a char-
retinha transportava os atores e técnicos.

Para diminuir o número de viagens, colocáva-


mos cada vez mais gente em cima dela. Acho
que o cavalo foi o verdadeiro herói daquela his-
tória, puxando aquela gente toda.

Estava no meu terceiro filme e nenhuma das his-


tórias havia sido escolhida por mim. Escrevia o
roteiro, fazia mudanças nas histórias pensando
no desenvolvimento dramático e no ritmo, mas
o ponto de partida era sempre proposto pelos
produtores. Os críticos escreveram sobre Crepús-
culo de Ódios que eu conseguia imprimir um rit-
mo forte à trama, mesmo trabalhando com pou-
cos recursos e era o que eu gostava de fazer. De
78
alguma forma, era a maneira que tinha para
imprimir a minha assinatura. O quarto filme tam-
bém foi feito assim. A idéia de A Morte Coman-
da o Cangaço foi da Aurora Duarte. Durante as
filmagens do Crepúsculo, ela me falava do seu
sonho de fazer um filme sobre cangaceiros. E a
Aurora quem me convenceu a dirigir A Morte
Comanda o Cangaço, que foi, como já disse,
muito importante para mim. Só a partir de Lam-
pião, O Rei do Cangaço, foi que comecei a esco-
lher os filmes que queria fazer.
Alberto Rushel em A Morte Comanda o Cangaço (direita)
79
Só que, nesta nova fase, as coisas não mudaram
tanto. Antes, eu já vinha escrevendo dirigindo e
montando os filmes. Continuei fazendo isto, mas
acrescentava a escolha da história. Você quer
saber se, em algum momento, eu me considerei
um autor de filmes? Não, nunca. Era um conta-
dor de histórias. Não tinha essa pretensão, não
tinha a capacidade de ser autor, mas, já que você
está me perguntando, acho que o que une to-
dos esses filmes é uma mensagem de protesto
contra a injustiça.

80
São filmes sobre personagens que enfrentam a
adversidade, que têm de ser fortes, que são leva-
dos ao limite. E, em todos os três - estou falan-
do de Armas da Vingança, Dioguinho e Crepús-
culo de Ódios - os heróis têm de fazer justiça
para salvar a honra. São todos acusados injusta-
mente e até o Dioguinho, que era um crimino-
so, que matou muitos homens, foi levado a isto,
não era uma escolha. Talvez você tenha razão
quando diz que era o que estava acontecendo
comigo. Eu também era levado, não tinha esco-
lha. Ia fazendo os filmes que podia, mas tem
outra coisa. Quando comecei a fazer cinema,
houve uma campanha muito forte para levan-
tar o cinema nacional e eu participei dela, em
muitas reuniões e até passeatas pelas ruas do
Rio. O resultado foi que saiu uma lei de prote-
ção assinada pelo presidente Getúlio Vargas,
instituindo um certo número de dias de obriga-
toriedade para exibição da produção brasileira.
Me lembro que estava no Catete, com toda a
classe cinematográfica, quando ele assinou a
famosa lei do oito por um.

81
82
83
Para cada oito filmes estrangeiros que coloca-
va no circuito, o exibidor estava obrigado a
exibir um nacional. Era pouco e logo passamos
a brigar pelo aumento do número de dias da
obrigatoriedade. Aquilo me marcou muito.
Quando comecei a fazer cinema, tive, desde o
começo, uma diretriz. Queria fazer filmes para
o público, que levassem multidões aos cinemas.
Pensava que o cinema nacional só podia se de-
senvolver e conquistar seu público dialogando
com os espectadores brasileiros. Naquela épo-
ca, filme brasileiro era sinônimo de fracasso. Só
84
as chanchadas faziam sucesso, mas eu não que-
ria aquilo, nunca fiz chanchada na minha carrei-
ra. Não era preconceito, talvez fosse, porque o
que eu queria eram histórias fortes, não aque-
las tramas que costuravam os números musi-
cais nas chanchadas da Atlântida. Sempre achei
que o cinema mais sério também precisava de
público, dependia dos espectadores para se
garantir. E acho que era um pensamento cor-
reto, pois não havia a Embrafilme para finan-
ciar a produção. Era o produtor que colocava o
dinheiro dele e a continuidade de trabalho, a
garantia de que a gente conseguiria fazer
novos filmes, ou não, dependia do retorno na
bilheteria. Foi uma fase de muitos produtores
de um filme só, porque se o filme afundasse na
bilheteria o cara podia dizer adeus ao dinheiro
dele e à carreira.

Queria, portanto, dialogar com o público, fazen-


do filmes que fossem atraentes para as massas.
E queria fazer isto não repetindo a experiência
da Vera Cruz, com todos aqueles europeus que
baixaram aqui em São Paulo. Queria contar his-
85
tórias baseadas na realidade e na experiência
brasileiras. Se você prestar atenção, vai ver que
sempre fiz questão de colocar, em todos os meus
filmes, um traço da nossa identidade, da nossa
cultura. Todos eles têm sempre alguma coisa típi-
ca. No Armas da Vingança, a Aurora Duarte
canta uma música antiga e tem aquela dança, o
cateretê. No Dioguinho, além da paisagem de
Marimbondos, onde se localiza uma das mais
belas cachoeiras do Brasil, uso a congada. Mais
tarde, no Lampião, a história é contada por um
cordelista e eu ainda usei as esculturas artesa-
nais do Mestre Vitalino para fazer as ligações
de cenas. Teve gente que achou que eu estava
tentando ser ‘artístico’, mas não. O que eu que-
ria era pôr o Brasil nos meus filmes e a arte tradi-
86
cional, o artesanato, o folclore, as locações inédi-
tas sempre me pareceram as melhores ferramen-
tas para isto.

Fazia os filmes dentro dessas dificuldades que esta-


mos analisando, mas ainda havia outro capítulo,
outra dificuldade, que era a distribuição. Meus
primeiros filmes tiveram uma distribuição muito
irregular. Até fizeram sucesso. Dioguinho ficou um
tempão em cartaz no Marabá, que era um dos
cinemas mais importante de São Paulo, no come-
ço dos anos 50.
Mas eram pequenos distribuidores independen-
tes e, por conta disso, os filmes não aconteciam,
permaneciam restritos. O caso do Crepúsculo é
exemplar. Quando a charretinha quebrou, fica-
mos um tempão parados. Não havia dinheiro
para nada e eu indo e vindo na rota Jundiaí-São
Paulo. Minha filha nasceu nesta época. Eu esta-
va filmando em Jundiaí e a minha mulher ficou
com a mãe dela, esperando para ter o filho a
qualquer momento. Veio uma menina, a Car-
mem Flávia. Estou lá, no set, e recebo aquele
telefonema dizendo que ela já está com as dores.
87
Larguei tudo e tentei voltar para São Paulo ime-
diatamente. Era duro - um diretor de cinema no
seu terceiro filme e não tinha um carro. Tentei
conseguir uma passagem de ônibus, mas não ti-
nha para aquele dia. Felizmente, havia um ator
jovem, um playboyzinho que tinha uma moto.
Ele me disse: ‘Monta na garupa que eu te levo’.

Viemos feito loucos naquela estrada. Ele, corren-


do demais; eu, que nunca tinha andado de moto,
louco de medo e agarrado nele. Mas chegamos,
peguei a mulher e corremos para o hospital. Era
rebate falso. Voltei para Jundiaí e, quatro ou
cinco dias depois, recebo novo telefonema. Desta
vez o Carlos Zara, que tinha carro, me trouxe
para São Paulo. Criou-se uma situação curiosa -
minha mulher pediu que eu entrasse com ela na
sala de parto. Entrei e o Zara ficou esperando
na ante-sala, fumando feito um louco. Por isto,
digo que o Zara viveu sua verdadeira experiên-
cia de pai com o nascimento da minha primeira
filha.

Foi uma fase difícil. Não podia deixar minha


88
mulher sozinha, com um bebê. Filmava durante
o dia em JundiaÍ e toda noite voltava a São Pau-
lo. Minha filha chorava muito. Nunca vi um bebê
berrar tanto. A noite toda ela berrava e eu che-
guei a uma estafa. Filmava em externas, debai-
xo do maior sol, pegava a estrada e ficava a noi-
te toda acordado. Era tudo muito complicado,
na época. Entre o início da produção e a inter-
rupção de Crepúsculo de Ódios passou-se um
ano, talvez mais. Comecei em 1957 e o filme fi-
cou pronto só em 58. Em 59, nasceu meu filho, o
Cláudio Fernando.
Durante mais de um ano vivi em função do Cre-
púsculo e com aquela estafa produzida pela vida
familiar. Vou te contar - não sei como consegui
imprimir o tal ritmo forte às cenas. Acho que o
meu profissionalismo, na época, já era maior do
que qualquer outra coisa. Apesar de todos os
problemas, eu me esforçava para executar bem
a função para a qual havia sido contratado. Sem-
pre fui assim. Podem me acusar de tudo, menos
de não ter sido profissional, ao longo de minha
carreira.

Première de A Morte..., com Oswaldo Massaini, Anselmo 89


Duarte, Vanja Orico, Marlene França e Ruth de Souza
Tenho de relatar aqui uma experiência. Em 1958-
59, entre Crepúsculo de Ódios e A Morte Coman-
da o Cangaço, montei Fronteiras do Inferno, para
o Walter Hugo Khouri. Nós dois éramos muito
diferentes. O Khouri era um intelectual, um cara
sofisticado que, desde o começo da carreira dele,
sempre quis fazer um cinema autoral, de fundo
filosófico.

E eu sempre fui um intuitivo, um prático do cine-


ma. Apesar das diferenças, nos entendemos
muito bem. O Khouri sabia o que queria e eu
90
executava, porque o filme era dele. Mais tarde,
montei também O Pagador de Promessas, que
ganhou a Palma de Ouro, no mais importante
festival de cinema do mundo. Como diretor ou
montador, eu ia formando um nome. Era um
profissional de cinema. Surgiu aquela fama de
cara que entendia tudo sobre cinema e foi por
isto que a Aurora me quis no filme de cangaço
que era o sonho dela. Só como curiosidade, vale
lembrar que a Aurora, o Luigi Picchi e o Hélio
Souto estavam no elenco do filme do Khouri que
eu montei.
Fronteiras também foi produzido por Konstan-
tin Tkaczenko. Você veja que o cinema paulista
da época era todo feito pelas mesmas pessoas.
Éramos como uma família.

91
92
Capítulo V

A descoberta do sertão

Já disse que a idéia de fazer A Morte Comanda


o Cangaço não partiu de mim, mas da Aurora
Duarte. Da Aurora e do marido dela. Os dois
pegaram carona no sucesso nacional e interna-
cional de O Cangaceiro. O filme do Lima Barre-
to tinha explodido no Brasil inteiro e a Aurora
conheceu um empresário de rádio, muito impor-
tante em Fortaleza, que se dispôs a ajudá-la a
93
conseguir financiamento para um filme de can-
gaço no Ceará. E a Aurora me chamou. Fomos
os dois, na verdade, os três, porque o marido
dela também foi, para Fortaleza, para conver-
sar com o possível produtor. Naquele tempo, era
uma viagem sofrida, num aviãozinho que era
chamado de carroça voadora, um DC-4. Era um
avião militar que, depois da guerra, foi adapta-
do para servir à aviação civil. Era muito seguro e
eu nunca ouvi dizer que um DC-4 tenha caído,
mas ele ia devagar, a 300/350 km/h e assim leva-
mos 13 horas para chegar em Fortaleza.
Saímos de São Paulo às 12 horas, meio-dia, e
chegamos à uma da manhã, completamente
moídos, mas cheios de entusiasmo. Ficamos 25
dias no Ceará, fazendo contatos, fazendo pesqui-
sa e procurando locações.

Confesso que me atraiu muito a idéia de fazer o


primeiro filme de cangaceiros colorido e roda-
do em locações autênticas. O Lima (Barreto) ti-
nha feito O Cangaceiro dele no interior de São
Paulo. E agora eu ia ter a chance de fazer um
filme de categoria, mostrando a imensidão do
94
sertão, em cores. Era uma coisa nova, fascinante
e que me motivou muito. Passei a pensar em A
Morte Comanda o Cangaço como o filme da
minha vida. Queria fazê-lo grandioso, o melhor
possível. Confesso que, de todos os meus filmes,
esse foi o único que teve uma pretensão auto-
ral. Seria o meu melhor filme. Parti de São Paulo
já com esta intenção. Chegamos em Fortaleza e
o Governo do Estado, cuja ajuda o produtor de
rádio havia pedido, colocou à nossa disposição
uma caminhonete oficial, para que percorrêsse-
mos o sertão, em busca de possíveis locais para
filmar. Viajamos dias e dias naquelas estradas
poeirentas, porque na época ainda não eram
asfaltadas, tudo muito impressionante, mas na-
da, assim, como vou dizer? Cinematográfico. No
segundo dia, chegamos a uma cidadezinha, uma
vila encravada no sertão. Chamava-se Quixadá
e ficava a 200 e tantos quilômetros de Fortale-
za. E foi aí que ocorreu essa coisa que você chama
de ‘cosmetização’.

Chegamos a noite, eu estava cansado, comi algu-


ma coisa e caí morto na cama. Aliás, nem era
95
cama, porque o que eles chamavam de hotel era
um casarão cujas paredes não iam até o telha-
do. Eram repartições que deviam ter uns dois
metros de altura e havia redes em cada compar-
timento. E também não havia luz elétrica, só
aqueles candeeiros de querosene. Não eram nem
lampiões. Eram lamparinas, que projetavam uma
luz fraquinha. Caí na rede e dormi, mas, se você
não está acostumado a dormir daquele jeito,
acorda quebrado, mais cansado do que quando
apagou, no dia anterior. Foi o que ocorreu co-
migo.
Acordei me sentindo mal, achando que tudo
aquilo era uma loucura. Sei que estou criando o
clima, como se fosse um filme, mas era assim
que me sentia. E aí abri a janela para que entras-
se um pouco de luz, um pouco de ar, para ver se
me sentia menos péssimo. Abri e me caiu o quei-
xo. Porque o que vi, na minha frente, foi uma
paisagem única, extraordinária, como não havia
outra no Brasil. Era uma visão impressionante e
não foi só uma impressão minha. Todo mundo
que vê aquilo fica paralisado. São montanhas
de pedras que eles chamam de serrotes. Na ver-
96
dade, são serras grandes e pequenas, todas de
pedras e cheias de sulcos profundos, verticais,
como se fossem parte da paisagem lunar.

Fiquei boquiaberto, impressionado com a gran-


diosidade daquele cenário e não era só a cadeia
de serrotes. Ao redor do hotel e da vila, havia
uma imensidão de caatinga, uma desolação, uma
beleza. Filmei em muitos lugares diferentes do
Brasil, posso dizer que conheço bastante este
País, mas nunca vi nada parecido, nada tão des-
lumbrante quanto Quixadá.
Ninguém conhecia aquelas lonjuras, ninguém
havia nos preparado para aquilo. E eu falei:
‘Tem de ser aqui.’ Todo mundo concordou comi-
go e a primeira coisa que fizemos naquele ama-
nhecer, depois do café, foi sair a caminhar. Lar-
gamos a caminhonete e fomos caminhando.
Uma hora, duas horas. Íamos por aquelas estra-
dinhas de mato, umas veredas e as minhas sur-
presas iam se renovando, aumentando cada vez
mais. Tudo me parecia maravilhoso, mas o mai-
or impacto ainda estava por vir. De repente,
foi como se tivessem aberto as portas do infer-
97
no. Veio vindo, de longe, uma minúscula man-
cha vermelha que foi crescendo e tomando a
forma de um bando de vaqueiros encouraça-
dos. Conto isso e parece que é exagero, mas
você precisa ter imaginação, precisa ser susce-
tível a essas coisas para ser diretor de cinema.
Depois, descobri que era normal, que os vaquei-
ros do Ceará usam aquelas roupas vermelhas,
mas de um vermelho vivo, sangue. Havia uns
20 deles e vinham em bloco, todos naquele ver-
melhão, a cavalo.
A mancha foi se aproximando, foi adquirindo
contornos mais precisos, comecei a ver as pes-
soas, os cavalos. E eles vindo. Fiquei paralisado.
Era outra coisa deslumbrante, que eu nunca ti-
nha visto e ali mesmo acho que tudo se dese-
nhou na minha cabeça. O filme que eu queria
fazer, como queria fazer. A história original de
A Morte Comanda o Cangaço era de cangaço,
não era sobre vaqueiros. Era sobre um grupo de
fazendeiros que se rebelava contra os cangacei-
ros e iniciava uma guerra. Foi ali, vendo aquela
mancha, que eu imediatamente senti que devia
98
transformar o grupo de fazendeiros num pelo-
tão de vaqueiros. Logo no começo, os cangacei-
ros atacam a fazenda do Alberto Ruschel e dego-
lam a mãe dele. Arrancam a cabeça e a espetam
num pau, diante da casa. Ele chega da caatinga
e encontra aquele horror. Passa a viver consu-
mido pelo desejo de vingança. Neste sentido,
pode-se dizer que A Morte Comanda o Cangaço
narra uma história clássica de perseguição e vin-
gança. O cara que segue atrás dos assassinos de
sua família é um tema freqüente no cinema
americano de ação.
No policial, no western. Mas eu não pensava
nesse cinema quando ataquei A Morte Coman-
da o Cangaço.

Naquele tempo em que via os filmes de arte no


cinema do centro do Rio, vi muito Eisenstein.
Ivã, o Terrível me marcou muito pela plasticida-
de. Inclusive, quero fazer aqui uma retificação,
antes de seguir adiante com A Morte Comanda
o Cangaço. Disse que Armas da Vingança é um
dos meus piores filmes. Disse isso e depois fiquei
pensando... Estamos falando aqui de coisas que
99
remetem há 50 anos atrás e eu tenho a memó-
ria de um velho de 75 anos. Digo alguma coisa e
aquilo fica me martelando. Descubro que não é
bem verdade. Não acho que Armas da Vingança
seja meu pior filme. O pior é Crepúsculo de
Ódios. Mas eu tenho resistência ao Armas e tal-
vez seja por causa de coisas que ocorreram du-
rante a filmagem. Briguei muito com o produtor,
o Konstantin (Tkaczenko), durante a filmagem,
porque ele queria interferir em tudo. Também
houve um episódio dramático, quando fomos
filmar na Cachoeira do Marimbondo. O rio que
formava a cachoeira parecia que dava pé, eu fui
fazer a travessia e a correnteza me arrastou. Esta-
va me afogando quando me atiraram uma corda,
na qual me segurei, mas não estava adiantan-
do. Corria o risco de despencar pelas pedradas
da queda d’água, que era enorme e violenta. O
Constantin resolveu me salvar, mas também foi
arrastado e se agarrou em mim. Fiquei ali pendu-
rado naquela corda, eu, um sujeito franzino,
pensando que ia morrer e ainda queria fazer
muitas coisas, tinha a vida diante de mim. No
final, conseguiram nos resgatar, mas eu acho que
100
tudo isso criou um bloqueio e não consigo gos-
tar de Armas da Vingança. Foi o filme que qua-
se me custou a vida, literalmente. E agora volto
a A Morte Comanda o Cangaço para tentar expli-
car por que gosto tanto deste filme.

Acho que, num certo sentido, foi meu primeiro


filme. O primeiro meu, pelo menos. Embora o
argumento fosse do marido da Aurora (Duar-
te), o que ele forneceu foi só um resumo, que
até não era ruim, mas não passava de uma sinop-
se. Fui eu que desenvolvi a história e escrevi o
roteiro, acrescentando todos aqueles elementos
que já falei que me impressionaram muito quan-
do cheguei a Quixadá. Trabalhei sob o impacto
que me produziu aquela mancha vermelha,
aquele inferno movendo-se no sertão. Os vaquei-
ros de lá usam aquela verdadeira armadura de
couro para entrar na caatinga, quando precisam
resgatar o gado, alguma rês desgarrada. Achei
aquilo tão cinematográfico que incluí uma corri-
da a cavalo com o Alberto Ruschel. Ele ia que
nem doido pela caatinga, quebrando espinhos,
decepando a vegetação a golpes de facão. Foi
101
uma coisa que impressionou muito a crítica e o
público, na época. Ninguém deixou de comen-
tar. Já falei aqui que sempre gostei de usar carri-
nho, para dar mobilidade à câmera. Nunca gos-
tei da câmera parada, sempre achei que cinema
tem de ter movimento e, por isto, usei tanto o
travelling e, depois, a zoom. Acho que fui o pri-
meiro diretor brasileiro a usar a lente zoom. Isso
ocorreu depois, quando fiz Lampião, o Rei do
Cangaço. No caso da corrida do Alberto Ruschel,
no Morte, não pude usar o carrinho porque o
galope era muito rápido e a extensão de terre-
no era muito grande. Tive de instalar a câmera
num carro e segui-lo a uma certa distância. Ele
corria na caatinga e o carro, com a câmera,
seguia por uma estradinha de terra.

Tony Rabatoni foi o diretor de fotografia e acho


que ele fez um trabalho extraordinário, embo-
ra possa receber críticas. Inclusive, tinha esta tal
cosmética da fome, que eu nunca ouvi falar,
porque não acompanhei polêmica nenhuma.
Conheci o Tony quando estava filmando Armas
da Vingança em Araraquara, em 1954. Era mui-
102
to jovem, mas já estava interessado no negócio
do cinema e deu um jeito de se introduzir no
set. Ficava lá com a gente o dia inteiro, apren-
dendo coisas, vendo como se trabalhava com a
câmera, com a luz. No Crepúsculo de Ódios nos
reencontramos, mas o Tony era só cameraman.
Quando fizemos o Morte, ele já era fotógrafo
profissional. Tinha feito a fotografia de vários
filmes e um deles foi o Cidade Ameaçada, do
Roberto Farias, do qual eu gostei muito, mas
aquele era um filme em preto-e-branco e agora
nós iríamos trabalhar em cores. Queria que o
filme saísse bonito. Meus filmes anteriores fo-
ram quatro loucuras, quatro absurdos e no Mor-
te queria mostrar do que era capaz, queria fa-
zer um filme decente, do qual me orgulhasse.
Isso significava cuidar das imagens e foi o que
fizemos, Tony e eu.

Não creio que esse embelezamento do sertão


fosse uma coisa falsa, porque já contei como
aquela imagem dos vaqueiros avançando na
estrada, todos de vermelho, me marcou e influ-
enciou. E aquilo era real, embasado na tradição
103
dos sertanejos, não foi uma alucinação da minha
cabeça. De comum acordo com o produtor Mar-
celo de Miranda Torres, levamos para o sertão
um gerador, uma coisa pesada que precisava de
caminhão para ser transportada. Naquele tem-
po, o filme colorido tinha no máximo asa 25 e o
Tony ficava o tempo todo com aquele revolvi-
nho na mão, medindo a intensidade da luz. Era
um fotômetro, mas para a gente, que não esta-
va acostumado com aquelas sofisticações, era o
revolvinho do Tony. E ele me dizia que para fa-
zer uma fotografia bonita no sertão era preciso
iluminar, mesmo debaixo do maior sol. Por isso,
levamos dois super arcos voltáicos, que precisa-
vam de duas pessoas para ser transportados. E o
Tony dizia: ‘Vamos iluminar, porque senão va-
mos ter uma fotografia muito dura, muito con-
trastada.” E aí, por conta disso, criou-se aquela
loucura. A gente filmava nas pedras, lá em cima
do serrote e tinha de carregar o gerador, os refle-
tores. E porque o gerador era muito pesado, a
gente levava para o lugar mais perto possível
da locação, quando era no serrote, e puxava o
fio para filmar lá em cima. Tudo era difícil, mas
104
nunca trabalhei num set com tanta gente entu-
siasmada.

Gostaria muito de ter filmado tudo em Quixa-


dá e este era o plano original. Íamos ficar lá
durante todo o tempo da filmagem, isolados
do mundo, porque era uma cidadezinha muito
pequena e distante da capital. Tinha uma esta-
ção de trens, o telégrafo, mas a comunicação
não era instantânea e assim vivíamos meio por
nossa conta, em função do filme. Chegamos no
comecinho de janeiro, logo depois do Ano
Novo. Filmamos o mês todo, entramos por feve-
reiro e aí, lá por meados de março, ocorreu uma
coisa louca - começou a chover no sertão como
eles nunca tinham visto. Choveu que não foi
brincadeira e nós tivemos de abandonar a loca-
ção para continuar o filme no interior de São
Paulo, naqueles locais que podiam se passar
pelo Nordeste e que, no nosso caso, não foram
os mesmos nos quais o Lima Barreto já havia
filmado. Aquela chuva não atrapalhou só o
nosso plano. Foi o ano em que o Nelson Perei-
ra dos Santos também foi para o Nordeste para
105
fazer Vidas Secas e teve de mudar o plano, es-
crevendo rapidamente um roteiro e fazendo
Mandacaru Vermelho para se adaptar àquele
novo Nordeste. Nós filmávamos no interior do
Ceará, ele na Paraíba, senão me engano, e o
Nordeste todo estava debaixo d’água. Chovia
tanto que começou a circular o boato de que o
açude de Orós, o maior do Brasil, ia transbor-
dar e inundar o sertão, transformando tudo
aquilo num lago, já que a água era doce e não
dava para virar mar.
Quem fala em cosmetização ou embelezamen-
to do agreste não sabe nada, não entende nada.
Uma chuvinha, a menor que seja, faz brotar uma
vegetação, um verde que transforma completa-
mente a paisagem da caatinga. Surgem flores
raras, fica uma coisa linda. E, se você filma isso,
está sendo verdadeiro, não está falsificando. Em
Quixadá, ficamos numa fazenda vizinha à da
escritora Rachel de Queiroz. Era do Coronel Ho-
llanda, um desses coronelzões poderosos do
Nordeste, cercado de filhos e agregados. Uma
manhã, levantei muito cedo para filmar e o fi-
106
lho do coronel me disse que, de noite, havia
passado uma neblina. Não dei muita atenção,
porque entendi que ele falava de neblina como
o mesmo fenômeno que ocorre no Sul. Neblina,
aqui, é névoa. Lá é um chuvisco, uma chuva miú-
da. E ele acrescentou: “Logo, logo, tudo isso aqui
vai estar verde”. Pensei comigo: “Esse cara é
maluco”. Maluco era eu, que não sabia de nada
e duvidava dele. Em menos de uma semana
aquela paisagem toda mudou e o que era terra
seca, caatinga virou, não digo uma floresta, mas
um matagal muito verde e florido.
Era outra paisagem, não era mais aquela na qual
havíamos começado a filmar.

Tenho até uma história curiosa. Para chegar ao


local que havíamos escolhido para uma cena,
passávamos por uma pontezinha, sobre um bura-
cão, que era o leito seco de um rio. Um dia, aqui-
lo estava seco e, de repente, com as chuvas, vi-
rou um rio caudaloso. Foi assim, de um dia para
outro, coisa inacreditável. Quem mais se assus-
tou foi o nosso operador de câmera, um austrí-
aco chamado George Pfister. Estávamos usando
107
uma câmera da Vera Cruz e o George vinha
junto. Era uma câmera sofisticada, que funcio-
nava à base de manivelas e exigia um camera-
man experiente para acioná-la, porque uma mão
mexia uma parte do aparelho e a outra mão a
outra. Era complicado, mas o George fazia aquilo
com a maior segurança. Nosso austríaco quase
morreu de susto com aquele rio caudaloso. Pou-
co depois, começaram a surgir uns sertanejos
carregando caniços. Todos se dirigiram para o
que antes era o buraco seco do rio que não exis-
tia.
De novo achei que andava todo mundo louco.
Tudo bem que o rio transbordasse, mas daí a ser
piscoso... Não demorou muito e os sertanejos
voltaram carregando fieiras cheias de peixes.
Nenhum de nós acreditava no que via. Era uma
loucura, mas tinha explicação. Os açudes são pis-
cosos e, com a chuvarada, os açudes transbor-
davam e lá se iam os peixes, carregados pela
água. Iam parar em lugares ermos como aquele
de Quixadá. Poderia ser uma coisa fantástica e
era mesmo, para nós, do Sul. Mas, para eles, era
assim mesmo. Então, como se pode dizer que só
108
exista uma maneira correta, uma maneira certa
de filmar o sertão? Foi uma coisa que aprendi
fazendo filmes. A vida é muito mais complexa
do que se pensa. É simples, mas complicada.
Parece um... Como é que se diz? Paradoxo, mas
é verdade.

Faltando ainda uns 10 ou 15 dias de filmagem,


eu disse para a Aurora (Duarte) que não dava
mais. A paisagem estava muito diferente, havia
aquele medo de que o açude de Orós estouras-
se. E nós pegamos as nossas coisas e voltamos
para São Paulo, para terminar o filme naquela
região perto de Itu e Jundiaí, onde já havia filma-
do o Crepúsculo de Ódios. Felizmente, faltavam
poucas cenas. Uma das mais bonitas do filme, o
casamento do Alberto Ruschel, supostamente se
passa no interior da caatinga, com todos aque-
les cactos. Filmamos em São Paulo e eu tive que
maquiar a paisagem, para que se parecesse com
o Nordeste. As pedras lá de Quixadá eram es-
branquiçadas, as de Itu são quase pretas, num
tom de marrom escuro. E então nós pintamos a
pedreira de branco, passamos uma mão de cal
109
em tudo aquilo e ninguém percebeu a diferen-
ça. Pode-se dizer que o chuva no interior do
Ceará foi o único problema que tivemos em A
Morte Comanda o Cangaço. Poderia ter nos der-
rubado, mas no fim, deu tudo certo e o filme
estourou que foi uma beleza. O Morte bateu
recorde de renda no Brasil inteiro. Quem distri-
buiu foi o Oswaldo Massaini, pai do Anibal, que
ganhou um dinheirão com o filme. Vale acres-
centar que fomos para o Nordeste atraídos pela
idéia de arranjar financiamento no Ceará, mas,
tirando as facilidades que o Governo do Estado
ofereceu, ninguém quis colocar dinheiro no que
parecia ser a aventura de um bando de estran-
geiros. Porque, para eles, éramos estrangeiros
do Sul. O dinheiro para a produção do Morte
veio do interior de São Paulo e também de um
empresário mineiro que acreditou na idéia e in-
vestiu na produção. O cara, que já era rico, ficou
mais rico ainda.

A Morte Comanda o Cangaço não foi bem só de


público. Nunca tive críticas tão boas na minha
carreira. Os críticos elogiavam a parte clássica do
110
filme. Acharam interessante o fato de eu cons-
truir um herói sertanejo, o mocinho interpreta-
do pelo Alberto Ruschel. Nunca ganhei tantos
prêmios. O Morte foi o melhor filme no Saci, eu
recebi o prêmio de roteiro, o Alberto Ruschel foi
melhor ator e o Tony Rabatoni ganhou o prêmio
de fotografia, mas eu não levei o Saci de melhor
diretor. Curiosamente, no prêmio Governador do
Estado, que tinha muito prestígio, levei as esta-
tuetas de roteiro e direção e o Alberto Ruschel e
o Tony continuaram sendo premiados, mas o
Morte não foi considerado o melhor filme. Tam-
bém não foi o melhor filme para o Júri Municipal
de Cinema, que atribuía o prêmio Cidade de São
Paulo, mas eu ganhei meu terceiro prêmio de
roteiro e o Tony também ganhou o terceiro dele,
pela melhor fotografia do ano. Foi uma apoteo-
se. B.J. Duarte, que era crítico da Folha de S. Pau-
lo, publicou textos três dias seguidos, dissecando
o filme. Mas o Morte, com todo o sucesso que
fez, não foi uma unanimidade.

Houve um crítico que bateu forte no filme. Dis-


se que caipira paulista fazendo filme no Nordes-
111
te só podia resultar em frescuras como a da aber-
tura do Morte. O filme começa com uma condu-
ção de boiada, os vaqueiros vão cantando aboios
tradicionais. E o gado está gordo, porque a boia-
da só fica esquelética em época de seca. Então,
o crítico atacou tudo aquilo. Disse que era falso.
É uma questão de opinião, respeitei. Mas faço
questão de dizer que usei a boiada do Coronel
Hollanda e que os vaqueiros eram da fazenda
dele. E lá, quando mostrei o Morte, todo o mun-
do gostou e ninguém disse que era uma coisa
falsa.
112
Capítulo VI

Memória do cangaço

Uma das coisas positivas de A Morte Comanda


o Cangaço, pelo menos para mim, foi que o fil-
me me aproximou do Oswaldo Massaini. Ele
distribuía o filme, por meio da empresa dele, a
Cinedistri. Massaini tinha grande tino comer-
cial, grande visão de empresário. Impressiona-
do com a dinheirama que o Morte ganhou, ele
me chamou para dirigir um filme que ele produ-
113
ziria. E, como não era bobo e não queria arris-
car nada, optou por outro filme de cangaço,
mas não uma aventura qualquer. Seria sobre o
maior dos cangaceiros, o rei do cangaço. Foi
assim que o Lampião me caiu no colo. Acho inte-
ressante estabelecer aqui algumas datas corre-
tas. Morte foi feito em 1960 e estreou no ano
seguinte. O Pagador de Promessas foi feito em
1961 e estreou em 62, depois de ganhar a Pal-
ma de Ouro em Cannes. Lampião, o Rei do
Cangaço foi filmado em 1962 e lançado em 63,
quando fez mais dinheiro do que qualquer ou-
tro filme brasileiro da época. Massaini dizia que
foi o filme com o qual ele ganhou mais dinhei-
ro. A partir do momento em que assumiu a dis-
tribuição do Morte, ele me agregou à sua equi-
pe e eu fui ficando, porque fui sempre muito
tímido e era uma situação cômoda saber que
ele ia produzir o meu próximo filme. Na verda-
de, ele produziu vários - foi o produtor com
quem eu trabalhei o maior número de vezes.
Mas o meu primeiro trabalho para o Massaini
foi como montador. Ele decidiu, de comum
acordo com o Anselmo (Duarte), que eu ia mon-
114
tar O Pagador de Promessas. Anselmo gosta de
dizer que fui pau mandado e fiz só o que ele
mandava. Ou seja - a concepção da montagem
era só dele. Não é verdade.

O curioso é que eu já tinha feito o Dioguinho,


contando a história do Lampião paulista, e ago-
ra ia contar a história do verdadeiro Lampião,
uma fita grande, cheia de ação. E o Lampião cres-
ceu ainda mais depois que O Pagador ganhou a
Palma de Ouro e ele virou o maior produtor do
cinema brasileiro.
Massaini comprou os direitos de dois livros - Lam-
pião, o Rei do Cangaço, de Eduardo Barbosa, do
qual mantivemos o título, e Capitão Virgulino
Ferreira, um livro-reportagem de Nertan Macha-
do, que reunia todas as reportagens que ele es-
creveu sobre o personagem. Trabalhei com um
radialista, o Thalma de Oliveira, que também
havia feito, para o rádio, uma série sobre canga-
ço, centrada na figura de Virgulino. Tínhamos
uma boa base para desenvolver a história, mas
eu quis ir para o sertão da Bahia, nos próprios
locais em que Lampião agira, para fazer pesqui-
115
sas de campo. Fomos, o Thalma e eu. Ficamos
mais ou menos uns dois meses percorrendo o
sertão e ouvindo gente que conhecera o pró-
prio Lampião. Já se haviam passado quase 25
anos da morte dele, em 1938, e o que mais me
impressionou foi constatar o quanto sua memó-
ria ainda estava viva no imaginário dos sertane-
jos. Eles nunca diziam: “Lampião era, ou fez, ou
disse”. Era sempre: “Lampião é, faz, diz”. Fala-
vam como se estivesse vivo, no presente. Conheci
os pais de Maria Bonita. O seu Felipe, que já era
bem velhinho, contou coisas muito interessan-
tes. Seu Felipe tinha uma fazendinha em Santo
Antônio da Glória, perto de Geremoabo, e era
lá que o Lampião se escondia com o bando. Se
você pensa na fama de sanguinário de Lampião,
podia achar que ele tinha raptado a Maria Boni-
ta, sei lá, feito alguma violência. Foi um namoro
bem tradicional. Seu Felipe lembrou como Lam-
pião fez a corte à sua filha, como cantava sere-
natas para ela, pois era metido a compositor.

116

Em Paulo Afonso, pesquisando para Lampião


Todas aquelas histórias nos estimularam a fazer
um argumento bem verista. Queríamos, Thalma
e eu, ser fiéis às histórias que nos contaram.
Quando o filme estreou, recebemos algumas
críticas negativas que diziam que havíamos ro-
manceado o personagem, fazendo um retrato
positivo. Nunca nos passou pela cabeça a idéia
de que devíamos fazer um retrato positivo ou
negativo. Construímos o retrato mais verdadei-
ro que pudemos, a partir dos depoimentos que
colhemos, e eles apontavam para um Lampião
ambivalente, sanguinário, mas capaz de gestos
117
de grande humanidade, de grande ternura. Ten-
tamos mostrar esse Lampião humano. Não sei
se conseguimos, mas espero que, pelo menos,
tenhamos fugido do unidimensional. Acho que
a gente trairia Lampião se o filme sinalizasse
numa só direção. Pouca gente sabe, mas a paten-
te de capitão ele ganhou de chefes políticos,
incluindo o Padre Cícero, para combater a colu-
na Prestes, quando o comunista Luiz Carlos Pres-
tes percorreu o Brasil, arregimentando gente e
propagando a idéia da revolução. Lampião im-
pôs ao seu grupo de cangaceiros uma rígida dis-
ciplina militar, mas um dia um compadre dele
trouxe um jornal da capital, onde o governo di-
zia que não era capitão coisa nenhuma - era ban-
dido e ia continuar sendo caçado como tal. Lam-
pião não era mais útil para o governo depois da
derrocada do Prestes. Os grandes coronéis, do-
nos de terra, também o usaram. Pagavam pela
proteção do bando, pagavam para se ver livres
de inimigos. Quando o governo lhe negou a
patente de capitão, o efeito foi brutal sobre o
Lampião e aí, por um tempo, ele cometeu os cri-
mes mais bárbaros da carreira dele.
118

O roteiro não desenvolve esse lado político como


gostaríamos e a culpa é minha, já que, como sem-
pre, o Thalma construiu a história comigo e eu
escrevi o roteiro sozinho. O compromisso de fazer
um filme de ação pode ter esvaziado um pouco a
dimensão política, mas eu acho, de qualquer ma-
neira, que ela está lá. Filmar tão longe era compli-
cado, mais, ainda, naquela época do que hoje. Era
preciso levar tudo, desde o equipamento de filma-
gem até roupas e adereços. E também era preciso
resolver o problema do alojamento para os artis-
tas e técnicos, porque uma filmagem desse porte
envolve muita gente. Só de água precisávamos de
muitos tambores diários, naquele sol de 45 graus.
Estabelecemos nossas bases de produção em Petro-
lina e Juazeiro, duas cidades situadas em margens
opostas do Rio São Francisco. Petrolina era uma
cidadezinha. Tinha um hotel muito do mixuruca,
que não conseguia abrigar todo mundo. E quan-
do fazia um filme assim, você podia dar adeus ao
mundo. Ficava pelo menos uns três meses isolado,
sem correio, sem telégrafo, sem telefone. Não é
como hoje que as pessoas se ligam na internet,
119
onde quer que estejam.

Por facilidades de logística da produção, a gen-


te nunca saía junto da base da produção. A pri-
meira leva era do grupo que ia preparar o set, a
luz. Depois, iam os demais técnicos e os artistas,
e eu ia com eles. Mas houve um dia em que saí-
mos todos juntos. Meu carro ia na frente e eu
fiquei muito impressionado numa subida, ao
olhar para trás, e ver aquele comboio. Porque
era um comboio - tinha um caminhão só para o
gerador, outro para os equipamentos pesados,
kombis para o equipamento de câmeras e para
roupas e maquiagem e muitos carros para carre-
gar a equipe. Era uma coisa impressionante,
numa estradinha de chão batido como aquela,
ver aquele exército em movimento. Penso em
exército porque, na verdade, fazer cinema sem-
pre foi uma guerra. A guerra de Lampião me
levou a um mergulho profundo nas coisas da
nossa terra.

Nas filmagens, com Vanja Orico e Leonardo Villar

120
Thalma e eu percebemos que podíamos querer
humanizar a figura de Lampião, mas ele era,
como se diz no cinema americano, maior do que
a vida e pertence à lenda. Por isto, resolvemos
começar o filme numa feira e eu filmei numa
feira de verdade, onde o cantador cego puxa o
fio das histórias sobre Lampião e se inicia o rela-
to sobre a vida dele, desde garoto até à morte,
cercado pelas volantes - as forças da polícia e do
Exército. No fim, volta o cantador, na feira, para
provar que, a despeito de toda tentativa de
humanização, o personagem tem esse lado
121
mítico.

E, dentro daquele meu projeto de sempre valo-


rizar a cultura local, coloquei no filme danças
populares do sertão, o Bumba Meu Boi local,
canções tradicionais da época e também usei as
figuras do Mestre Vitalino. Coloquei de forma
muito consciente - aqueles grupos que ele gos-
tava de criar no artesanato dele, que era uma
forma de arte. Grupos de nordestinos em todo
tipo de atividade cotidiana. Usei as esculturas
dele como uma representação do povo, ou como
coro nas tragédias gregas, para fazer a ligação
entre as cenas. Acontece alguma coisa de bom
ou de ruim e entram aquelas figuras, ilumina-
das de uma maneira especial, e é como se, por
meio delas, eu estivesse dizendo para o público
o que penso sobre aquele momento da vida do
Lampião. Voltei ao sertão, com aquele filme, e
voltei de corpo inteiro, porque filmamos no
interiorzão de Pernambuco e da Bahia. Não ti-
nha a exuberância de Quixadá, no Morte Coman-
da o Cangaço, mas acho que a paisagem é mui-
to importante e, de novo, eu tinha o Tony Raba-
122
toni na fotografia, fazendo outro trabalho extra-
ordinário. Tony foi lá com seus refletores e fil-
tros e fez outro trabalho maravilhoso, recupe-
rando as cores do sertão, que foi sempre o que
me seduziu. Me arrisco a ser linchado, mas acho
que recriar a dramaticidade do agreste em pre-
to-e-branco é uma facilidade, é o que se espera.
Difícil é fazer isso com a cor.

Já contei que, no tempo do Morte, o filme era


de asa 25 e isso exigia muita luz para iluminar a
cena, evitando o contraste que a iluminação
natural favorecia dentro da imagem. Havia se
passado só três anos, mas no tempo do Lampião
o filme já era de asa 50, mas ainda exigia aquele
esforço todo, daí que levamos aquele gerador-
zão, enorme. Era um esforço carregar aquele
monstro para cima e para baixo, naqueles sets
de fim de mundo em que filmávamos. E ocorriam
coisas inacreditáveis. Ficamos num hotelzinho,
o único de Petrolina. E o cara servia para a gen-
te, todos os dias, carne de tatu.

123
Não agüentávamos mais comer aquela carne. E
aí, um dia, eu fui procurar uma locação. Precisa-
va de um cemitério, mas queria um especial, bem
característico. Encontrei o que procurava. Pare-
cia uma igrejinha, um cemitério pequenininho
no agreste. Disse: ‘Vamos filmar aqui.’ E come-
çamos a montar o set. Me chamaram a atenção
alguns buracos no chão, perto das sepulturas.
Quis saber o que era e um daqueles sertanejos
me explicou que eram buracos de tatu, que eles
escavavam para comer as carnes dos cadáveres,
que era o alimento deles. Me deu um embrulho
124
no estômago. Os tatus comiam os mortos e nós
comíamos os tatus. Daquele dia em diante, proibi
terminantemente que fosse servido aquele tipo
de carne. Se não tivesse outra, a gente comia só
mistura, mas tatu nunca mais.

Quando me chamou para fazer o filme, o Massai-


ni já tinha a intenção de colocar o Milton Ribei-
ro no papel do Lampião. Nem discuti, porque
me parecia uma escolha natural. O Cangaceiro
era o maior sucesso internacional do cinema bra-
sileiro e o Milton era o próprio. Na cabeça das
pessoas, e não só no Brasil, ele era identificado
com o cangaço. Acho que o Milton sabia que o
Massaini o queria no papel. Comecei a traba-
lhar no projeto com o Milton na cabeça. Mas aí,
o Thalma e eu fomos para o sertão, ouvimos
todas aquelas histórias e começou a ficar claro,
para mim, que o Milton não poderia fazer o
papel. Milton era um tipo, não um ator. Sabia
criar o Lampião truculento, violento, mas esse
era só um lado do personagem. Eu queria que
ele fosse mais complexo, queria mostrar um Lam-
pião mais humano, mais sofrido. A morte do ir-
125
mão, por exemplo, opera uma mudança no per-
sonagem e eu precisava de um ótimo ator para
deixá-la convincente na tela. Comecei a imagi-
nar quem poderia fazer o papel e, como já falei,
eu havia feito a montagem do Pagador de Pro-
messas. Trabalhando sobre aquelas imagens,
pude perceber a extensão do talento do Leonar-
do Villar. O Zé do Burro é aquele Cristo moder-
no, o homem do qual todos abusam. Mas havia
uns lampejos de raiva, de ódio e eu comecei a
achar que ele poderia ser o meu Lampião. Quan-
do levei minha idéia ao Massaini, ele achou que
126
127
eu estava louco. Mas o negócio do Massaini era
garantir o sucesso comercial do filme e, assim
como ele havia pensado no Milton Ribeiro por-
que era conhecido em todo o mundo, o Leonar-
do também era, e mais ainda, depois do sucesso
internacional do Pagador. Coloquei o Milton no
filme, mas em outro papel. Podia sentir o quan-
to ele estava mortificado, mas era preciso, para
fazer o filme que queria.

Leonardo topou porque achou que seria um


desafio. E começamos a trabalhar no desenho
128
do físico do personagem, para torná-lo pareci-
do com a imagem que temos de Lampião. A
Vanja (Orico) como Maria Bonita era outra esco-
lha natural, depois do Cangaceiro, e ela eu acei-
tei porque sabia que ia conseguir. A história
daqueles dois era muito interessante. Antes do
romance de Lampião, cangaço era coisa só de
homem. Mulheres, só aquelas que eles estupra-
vam nas vilas. Mas, depois que o Lampião se
apaixonou e levou a Maria Bonita para o ban-
do, outros cangaceiros começaram a se casar e
as mulheres foram integradas ao cangaço. Hou-
ve outras duplas famosas - Corisco e Dadá, cuja
história eu também contei em outro filme, feito
depois. Em Lampião, tenho outros atores que
vieram do elenco de O Pagador de Promessas -
o Dionísio de Azevedo, a Glória Menezes. O
Massaini queria os dois no filme e nós criamos,
Thalma e eu, o personagem do cangaceiro que
encontra a antiga namorada na zona, como
mulher da vida, e ele a leva para o bando. Gló-
ria, na época, estava começando o romance com
Tarcísio Meira, mas nem tiveram tempo de na-
morar direito porque logo embarcamos para a
129
Bahia, na divisa com Pernambuco.

Com Glória Menezes e Oswaldo Massaini


Romance novo é fogo, é paixão, e a Glória mor-
ria de saudade do Tarcísio. Íamos ficar um tem-
pão naquele lugar e a comunicação era difícil.
Depois de um tempo, Glória implorou para que
o Tarcísio fosse ao encontro dela, Glória aban-
donaria o set. E lá se foi o Tarcísio, que não traba-
lhava no filme, mas ficou com a gente.

Lá estavam também o Geraldo Del Rey e o Antô-


nio Pitanga. O engraçado é que alguns atores
foram premiados pelo filme, mas não o Leonar-
do. A Glória e o Pitanga ganharam o Saci de
130
melhor atriz e melhor coadjuvante, a Vanja foi
melhor atriz no Festival de Curitiba e também
ganhou o Prêmio Governador do Estado. Eu ga-
nhei o Governador em duas categorias - direção
e montagem.

Para completar o depoimento sobre Lampião, o


Rei do Cangaço, preciso acrescentar duas coisas.
O filme foi muito comentado, na fase de pré-
produção. Começaram a surgir notícias quase
que diárias na imprensa de São Paulo, sobre os
preparativos do filme, e aí apareceu um libanês
querendo embargar a produção, porque dizia
que possuía os direitos de imagem do Lampião.
A justificativa dele é que o Lampião havia cedi-
do os direitos ao cinegrafista libanês Benjamim
Abrahão, que o filmou no sertão. E o Abrahão,
por sua vez, teria cedido esses direitos ao cara
que agora tentava embargar a produção. Foi
uma polêmica e tanto. Massaini cercou-se de
advogados para garantir que o filme seria feito,
mas até o início das filmagens a imprensa explo-
rava o caso, alimentando o noticiário com nova
troca de informações.
131

O outro aspecto que acho importante destacar


é que, com o Lampião, fui o primeiro diretor
brasileiro a usar a lente zoom. Havíamos levado
uma câmera de São Paulo, mas ao chegar em
Salvador eu já sabia que ia precisar de outra
câmera, mais leve, para usar como segunda
câmera nas cenas de combates. O filme tem qua-
tro ou cinco dessas cenas. São combates encarni-
çados e eu precisava de uma câmera dentro das
cenas, para aumentar o realismo.
Quero até fazer uma ressalva, aqui. Sempre gos-
tei muito das inovações técnicas. Sempre gostei
de testar, de inovar. Faz parte do meu tempera-
mento. Já disse que o movimento é importante
nos meus filmes, que gosto de combinar movi-
mento de câmera com movimento dos atores para
criar a mobilidade. Mas movimento de carrinho
você pode usar só se o travelling não for muito
longo. Tinha um sujeito comigo no set, o Waldo-
miro Reis, um cara que era carpinteiro e gostava
quando eu propunha coisas difíceis para ele. Sem-
pre quis usar a câmera bem baixa, rente ao chão,
132
e era difícil, porque precisava um carrinho, um
apoio para a câmera e somando tudo o visor fica-
va sempre a um metro ou quase um metro do
chão. Para acompanhar certas enquadrações bem
baixas, eu queria a câmera no chão e ele me criou
uma solução muito interessante - um sistema no
qual a câmera ficava suspensa num eixo, na late-
ral do carrinho, correndo quase rente ao solo,
como eu queria. Em Corisco, o Diabo Loiro, eu
quis colocar a câmera por baixo da carreta que
levava o corpo do cangaceiro agonizante e, de
novo, ele me forneceu a solução. Era um cara
muito criativo, devo muito à habilidade dele. Fiz
travellings cinematográficos incríveis em tapetes
arrastados, cadeiras de rodas - não havia idéia
que o Waldomiro não me ajudasse a concretizar.

Então, ousar, eu sempre ousei. Chego lá na Bahia,


falo com o cara que ia me fornecer a segunda
câmera e ele me falou dessa novidade recém
adquirida, uma lente que havia acabado de com-
prar, a primeira existente no Brasil. Era a zoom. E
ele me explicou as vantagens da lente que permi-
tia a aproximação da imagem dentro da mesma
133
tomada, sem necessidade de trocar a lente. Até
então, havia aquela limitação de ordem técnica.
Você precisava de uma lente para as tomadas à
distância e de outra para as tomadas próximas.
Com a zoom, uma só lente resolvia a questão.
Resolvi usá-la e, até onde eu sei, fui o primeiro
diretor a usar a zoom no Brasil. E usei do meu
jeito, combinando movimento da câmera no carri-
nho com movimento da lente e dos atores.

Nunca pensei se o público perceberia isso, para


dizer a verdade, às vezes, nem os críticos sabiam,
ou percebiam. Mas todos tinham aquela sensa-
ção do movimento, aquela intensidade e era o
que eu queria. Estava me sentindo cada vez mais
seguro para usar todos esses elementos, adqui-
ria cada vez mais confiança para montar e, mui-
tas vezes, já filmava certas cenas pensando na
edição que ia fazer mais tarde.

Com Anselmo Duarte, Vanja Orico, Jaqueline Myrna,


Roberto Ferreira, Félix Aidar e Leonardo Villar na estréia
de Lampião..., Cine Ipiranga - SP, 1963
134
Capítulo VII

Santo humor!

Massaini vinha de dois sucessos extraordinários.


Ele mesmo dizia que com O Pagador de Promes-
sas ganhou prestígio e com o Lampião, Rei do
Cangaço ganhou muito dinheiro. O filme foi
aquele sucesso em todo Brasil e nos criou um
problema. Fazer o quê, eu pensava, depois do
Morte Comanda o Cangaço e do Lampião? Fazer
o quê, também pensava o Massaini? Foi quando
135
alguém, nem me lembro quem, me convidou
para ver uma peça.

Com o Anselmo (Duarte), havia sido a mesma


coisa. Ele tinha um projeto, queria fazer um filme
sobre um Cristo moderno, mas a coisa não anda-
va, quando foi ver O Pagador de Promessas no
teatro e descobriu que a peça do Dias Gomes
tinha tudo o que ele queria. Comigo, ocorreu
uma coisa parecida. Me arrastaram para ver O
Santo Milagroso e terminou sendo o meu próxi-
mo filme.
A história da peça é curiosa. Lauro César Muniz
é um cara do interior. Veio para São Paulo e con-
seguiu, não sei como, que encenassem a peça
dele. Não era um grupo importante, o elenco
não tinha ninguém muito famoso, mas a peça
pegou, porque era divertida. Fui ver, gostei e
achei que dava filme. Sugeri ao Massaini que
comprasse os direitos. Ele não se interessou
muito. Massaini havia feito comédias por mui-
tos anos. Eram aquelas chanchadas no Rio, onde
ele começou como co-produtor, trabalhando
com os irmãos Ramos, o Alípio e o Eurides, com
136
José Carlos Burle, Watson Macedo e outros. A
Palma de Ouro transformou o Massaini num pro-
dutor importante, muito respeitado, o sucesso
do Lampião também lhe deu lastro financeiro
para fazer o que quisesse e ele achou que seria
retrocesso voltar à comédia. Mas aconteceu que
um amigo do Massaini também foi ver a peça e
foi logo lhe contar: ‘Que coisa mais sensacional!’
Eu também tinha gostado e, de minha parte,
buzinava o tempo todo no ouvido dele, para
tentar convencê-lo de que seria uma boa levar
O Santo Milagroso para o cinema.
Tanto comentamos, o amigo e eu, que o Massaini
foi ver a peça, gostou e se convenceu de que daria
filme. Fomos ao Lauro para comprar os direitos. O
Lauro desempenhava uma função burocrática
numa estatal. E ele quase não acreditou, porque
achava que já tinha sido uma sorte conseguir quem
montasse a peça. Agora, verter para o cinema...
Lauro ficou tão contente que colaborou de peito
aberto com a gente.

Estudando os desenhos de abertura com Ely Rui Barbosa,


Oswaldo Massaini e Lauro César Muniz
137
Fez tudo, topou tudo. Escrevi o argumento com
o Oswaldo Moles, que era um radialista famoso
na época, mas o Lauro ajudou bastante e tam-
bém tem crédito. Ele trouxe muitas boas idéias
que, para mim, deixaram o filme mais engraça-
do ainda. Mas, antes de começar a filmar, todo
mundo achava que era loucura minha. Vinha de
dois filmes de cangaço, com muita violência.
Meus filmes anteriores também eram de ação.
Eu até entendia o medo das pessoas. Elas temiam
que eu não tivesse mão para a comédia, diziam
que era um gênero estranho para mim, mas nada
138
desse falatório me preocupava porque, no fun-
do, tinha confiança de que me sairia bem. As
pessoas que tinham medo, que diziam aquelas
coisas, podiam ser amigas e estar sinceramente
preocupadas, mas não sabiam da minha expe-
riência no teatrinho da escola e com grupos ama-
dores de Campinas. Foram 7 ou 8 anos de teatro
escolar, com 9 ou 10 peças todos os anos. A maio-
ria era de comédias, claro que amadoras, nada
num esquema profissional, mas me deram a se-
gurança íntima para achar que eu poderia me
sair bem no gênero.
Achava que devia ousar, não ficando só naque-
las fitas de cangaço, por mais que tivessem me
dado prazer e ainda dariam mais, porque voltei
outras vezes àqueles filmes. Mas agora eu que-
ria mudar. Na escola, havia feito comédias. Uma
que fez muito sucesso fui eu que escrevi. Chama-
va-se Arca de Noé e era sobre um sujeito que
cria bichos. Agradou tanto ao público da escola
que tivemos de montar várias vezes. Então, eu
sabia que daria conta do recado e, por isso, insisti
tanto com o Massaini.

139
Minha maior dificuldade no Santo, você sabe
qual foi? Não foi filmar, não. A filmagem foi
tranqüila. Éramos uma equipe coesa, com profis-
sionais de alta qualidade. Meu problema foi a
montagem. Porque o riso tem - como é que vou
dizer? - uma dinâmica. Charles Chaplin era mui-
to bom nisso. Sabia que a piada tem um tempo
e que, se ele for ultrapassado, perde a graça.
Foi o que me fez sofrer na montagem do Santo,
pois a montagem é um processo lento. Você vê
o filme muitas vezes, avalia as tomadas, analisa
as melhores combinações entre elas. E o proble-
ma é que quando você vê muitas vezes um filme,
principalmente se for uma comédia, ele vai per-
dendo a graça. Você vai perdendo a capacidade
de avaliar. Foi o que ocorreu na montagem do
Santo. Foi-se aquele elemento que torna o humor
imprevisível e divertido. Montei o filme inteirinho,
de cabo a rabo, e aí fiz uma projeção particular.
Para minha surpresa, já que estava tão confiante,
achei aquilo uma tremenda chatice. E voltei à sala
de montagem para fazer tudo de novo. A filma-
gem do Santo Milagroso foi, talvez, a mais fácil
da minha carreira, mas, em contrapartida, nenhum
140
outro filme me criou tantos problemas na edição.
Tenho um vídeo do filme, mas faz tempo que não
o vejo.

Aliás, não sou de ficar revendo meus filmes, não


gosto, acho que diretor nenhum gosta. A gente
olha e vê só os defeitos, aquilo que gostaria de
mudar e não pode. Não sei, portanto, se O San-
to Milagroso continua bom, até porque essas coi-
sas da igreja e da religião mudaram muito nos
últimos anos, mas o filme era muito engraçado
porque a comédia do Lauro César Muniz era
engraçada e tudo o que eu fiz foi levá-la para a
tela me esforçando ao máximo para não tirar a
graça. A peça era, principalmente, muito bem
bolada, muito bem construída, contando a his-
tória de um padre e de um pastor protestante
numa cidade bem pequena, uma vilazinha. E
havia aquela rivalidade entre os dois, cada um
tentando levar mais gente para o seu rebanho
de fiéis. É um padre que gosta de pescar, o pas-
tor também e um dia o padre está pescando na
ponte sobre o rio quando chega o pastor, que
também joga a isca e os dois fisgam o mesmo
141
peixe. É aquela briga e a solução é fazer como o
Salomão, na Bíblia - eles dividem o peixe ao
meio. O problema é que, apesar da rivalidade
entre os dois, há um lado, assim, Romeu e Julie-
ta na história, porque o sacristão começa a na-
morar a irmã do pastor. Namoram escondido
porque... Imagine se o padre sabe, se o pastor
sabe. Todo o cuidado não resolve, o pastor desco-
bre e vai reclamar ao padre. E os dois estão discu-
tindo quando chega o coronelzão, que manda
na cidade. Ele quer uma prosa com o padre, que
a primeira coisa que faz é esconder o pastor.
É Semana Santa, as estátuas de santos estão todas
encobertas com aqueles panos roxos e o pastor
fica escondido. Mas o padre e o coronel dizem
não sei o quê, o pastor não agüenta, responde e
surge a lenda do Santo Milagroso, do santo que
fala. Vira a maior romaria, vem gente do Brasil
inteiro, todas aquelas pessoas fazendo promessas.
Os comerciantes transformam a igreja num imen-
so bazar, todos querendo vender a imagem do
santo. O padre fica todo metido com o sucesso da
igreja e o pastor furioso, porque não consegue
denunciar a farsa. É quando chega o bispo e a
142
confusão aumenta ainda mais.

O padre era o Leonardo Villar, o pastor era o


Dionísio Azevedo, o sacristão era o Geraldo Del
Rey e a irmã do pastor era a Vanja Orico. Havia
também o David Neto, que era um ator de rá-
dio e televisão e fazia o coronel. O público ado-
rou e O Santo Milagroso foi meu terceiro suces-
so consecutivo. O povo fazia filas para ver o fil-
me, que era em preto-e-branco, numa época em
que o cinema brasileiro já começava a ser todo
em cores, menos as fitas do Cinema Novo.
Foi feito assim, fotografado pelo Konstantin
Tkaczenko, porque, no fundo, o Massaini não
acreditava no projeto e não queria arriscar mui-
to dinheiro. O sucesso do filme foi uma surpresa
para ele. Até eu, que acreditava no potencial da
história, me surpreendi, porque não imaginava
que seria aquela coisa. E virei, então, diretor de
comédia, sem deixar de ser diretor de ação. Foi
bom porque todo mundo começou a dizer que
eu era versátil, que fazia bem filmes de todos os
gêneros, essas coisas.

143
O Santo Milagroso ganhou até prêmios - foi o
melhor filme no Festival de Santa Rita do Passa
Quatro, eu ganhei o prêmio de montagem no
Festival de Juiz de Fora e o filme também foi
premiado pelo Júri Municipal de Cinema, com o
troféu Cidade de São Paulo. Procurei durante
muito tempo as locações. Queria uma cidade
pequena, com uma igreja bem provinciana,
numa pracinha sem postes de fiação elétrica.
Filmamos além de Itapecerica da Serra, toman-
do uma estradinha que vai para o sul, numa cida-
dezinha chamada Juquitiba.
144
145
Já contei que sempre fui fã das comédias do Frank
Capra, que não eram só para rir, mas tinham toda
uma dimensão social. Mas no caso do Santo fui
mais influenciado pela comédia italiana.

Sempre gostei muito do Alberto Sordi, do Vitto-


rio Gassman. do Totò. Acho que eram grandes
cômicos, daqueles que põem a cara do povo do
seu país na tela. Oscarito também tinha essa
qualidade, o Mazzaropi. Mas de quem eu gosta-
va mesmo era do Vittorio De Sica, do Luchino
Visconti, do Federico Fellini. Sempre fui o maior
146
fã do De Sica, como ator e diretor. Ele tinha
aquela coisa séria, mas também era o Marechal
naquelas comédias que faziam sucesso nos anos
50, Pobres mas Belas e Pão, Amor e Fantasia.
Trabalhei com o Leonardo e o Dionísio pensan-
do no De Sica, na respeitabilidade dele. Afinal,
eram um padre e um pastor. Mas também fui
muito influenciado por... Como é mesmo o nome
daquele filme do Kirk Douglas? A Montanha dos
Sete Abutres, do Billy Wilder, trata daquele re-
pórter que cria um circo explorando o infeliz que
está morrendo numa mina.
Santo tinha esse lado de circo, de exploração,
que o Lauro e eu denunciávamos, como o Billy
Wilder no filme dele. Deu também para colocar
umas danças típicas da região - congadas, reisa-
dos. Foi um filme que me deu trabalho na mon-
tagem, como já disse, mas saiu tudo certo, até
os críticos gostaram. Recebi elogios pela minha
direção e o bom é que os críticos também redimi-
ram o Leonardo. No Lampião, o fato de eu usar
o Leonardo Villar num contra-emprego foi preju-
dicial para ele, que recebeu muitas críticas ruins,
embora eu, particularmente, achasse que eram
147
injustas. Leonardo segurou muito bem o papel
que não parecia adequado para ele e era o que
eu queria. Causar um estranhamento, fugir ao
estereótipo do cangaceiro, que, naquela época,
depois do sucesso do filme do Lima Barreto e do
Morte Comanda o Cangaço, tinha de ser o Mil-
ton Ribeiro.

Acho que a contribuição dos atores é sempre


fundamental. Nenhum filme consegue ser bom
se o ator não estiver bem, se não conseguir nos
convencer daquilo que está fazendo.
Trabalhei muitas vezes com atores de teatro e o
que posso dizer é que eles possuem uma disci-
plina muito grande. Digo disciplina, mas pode
ser um método, uma técnica. Cada um tem seu
jeito de entrar no personagem, mas eles se dedi-
cam e vão fundo, usando a coisa mais técnica
ou a emoção mais espontânea, não importa. Por
isso, usei várias vezes atores de teatro em meus
filmes. Foram três com o Leonardo, quatro com
o Dionísio, dois com o Ziembinsky. Leonardo
desenvolveu o laboratório dele para fazer aquele
padre, nem me pergunta o que foi ou como foi,
148
mas quando começamos a filmar ele já tinha o
personagem pronto. Nunca me deu problema.
Com o Dionísio foi a mesma coisa. Ele tinha uma
conduta verdadeiramente fora de série.

E havia o Geraldo Del Rey, que foi ator de tea-


tro na Bahia. Foi como o conheci - integrando
um grupo pequeno, mas cheio de gente talen-
tosa, no Teatro Castro Alves. Muita gente é ca-
paz de pensar hoje, que escolhi o Geraldo por
causa do sucesso de crítica que ele obteve no
filme do Glauber, Deus e o Diabo na Terra do
Sol. Quando fizemos O Santo Milagroso, ele já
tinha trabalhado com o Glauber, mas a minha
relação com o Geraldo era anterior. Inclusive,
ele fazia um dos cangaceiros do bando de Lam-
pião, o irmão querido de Virgulino, que morria
em combate. Era outro cara disciplinado. E era
doce, o Geraldo. Fazia o maior sucesso com as
mulheres, com a fala mansa que tinha.

149
150

Com Milton Rodrigues, filmagens de Cangaceiros, 1967


Capítulo VIII

Vingança de boiadeiro

Voltei ao cangaço no filme seguinte e fiz Canga-


ceiros de Lampião, que começa no dia em que
as forças governistas destroem Lampião e o ban-
do dele. Moita Brava e um grupo reduzido de
cangaceiros conseguem escapar do cerco e saem
barbarizando pelo sertão. Uma das vítimas é um
vaqueiro pacato, que acaba de se casar. Moita
Brava e seus homens estupram a mulher, ela
151
morre e o vaqueiro jura vingança, perseguindo
o bando. É mais uma história de vingança, que
se aproxima dos esquemas narrativos do faroes-
te. Já disse que não gosto de rever meus filmes,
mas este eu revi na TV e me surpreendi. Não
tinha muito apreço pelo Cangaceiros. De memó-
ria, não achava que fosse um de meus filmes
importantes, mas aí comecei a ver e não conse-
gui desgrudar o olho. Achei interessante e mais
bem feito do que pensava. Filmei na região de
Itu, usando as pedras que já falei e acho que o
filme é plasticamente muito bonito.
Vinha do Santo Milagroso, onde o fotógrafo era
o Konstantin Tkaczenko. O Massaini queria fa-
zer o filme barato, em preto-e-branco, e o Kons-
tantin virou uma opção. No Cangaceiros, voltei
ao Tony Rabatoni e aí foi outra coisa, mesmo
que o filme não fosse visualmente tão elabora-
do quanto A Morte Comanda o Cangaço. Com
o Tony, a coisa fica automaticamente de outro
nível, vira uma fotografia de alto padrão, por-
que ele era um puta profissional. Você quer sa-
ber se não pensamos em mudar o estilo de foto-
grafar? Por que? Ah, sim, Deus e o Diabo na Terra
152
do Sol e Vidas Secas já haviam estabelecido aque-
le novo padrão para se fotografar o sertão. E
eram filmes em preto-e-branco, como o Canga-
ceiros. Aliás, foi meu último filme em preto-e-
branco. Já vinha trabalhando com a cor, mas
depois desse filme todos os demais foram colo-
ridos.

Já disse que ele foi feito bem longe do Nordes-


te, em Itu, onde a paisagem até pode ser pareci-
da, com todas aquelas pedras e aqueles cactos,
mas a luminosidade é outra, não tem nada a ver
Nas filmagens do Cangaceiro
153

com a do sertão, não tem aspereza. Como conse-


qüência, seria absurdo se o Tony e eu quisésse-
mos mudar o nosso estilo de fotografar só por
causa daquele pessoal do Cinema Novo.

O que fazíamos era diferente e eu sempre tive


consciência disso. Sou um contador de histórias,
não um autor de filmes, e me sentiria mal con-
tando minhas histórias do jeito deles. Aí, sim,
acho que soaria falsa, mas eu nunca nem consi-
derei essa possibilidade.
Comento aqui, agora, só porque você está me
perguntando. No Cangaceiros de Lampíão, como
em A Morte Comanda o Cangaço, crio outro
personagem de herói sertanejo e o cara tam-
bém é vaqueiro. Inclusive, o personagem é co-
nhecido como Pedro Boiadeiro e é assim que se
chama a toada que escrevi e Gabriel Migliori fez
o arranjo musical. Já vinha há tempos trabalhan-
do com o Gabriel. E criamos essa música para
ser utilizada como aquelas baladas nos grandes
faroestes. Não sei se o Matar ou Morrer foi o
primeiro a fazer isso, mas a música toca nos crédi-
154
tos de apresentação e depois, em geral, vira tema
do herói.

Era o que ocorria no Cangaceiros e o mais inte-


ressante no argumento do Aurélio Teixeira, que
eu mesmo transformei em roteiro, é que o Pe-
dro se vinga de todos os cinco caras, mata um a
um e cada morte é num estilo, como se fossem
cinco equações diferentes. Até pensei em usar o
Aurélio como ator, mas ele estava muito gordo
e eu desisti. Aurélio começou como rádio-ator
na Tamoyo. Era meu amigo desde aquela épo-
ca. Até moramos juntos no Rio. Aurélio foi meu
parceiro em roteiros que escrevemos no início
de nossas carreiras. Ele fez vários filmes como
ator. Fez o Arara Vermelha, por exemplo, que
contava uma história violenta de garimpo e no
qual ele perseguia até à morte o Anselmo Duar-
te, que havia fugido com uma pedra rara. Auré-
lio depois virou diretor e dirigiu Meu Pé de
Laranja Lima, baseado no romance de José Mau-
ro de Vasconcelos, que pode ser acusado de sen-
timentalismo, mas foi um super-sucesso de pú-
blico.
155

No filme, Pedro Boiadeiro deveria usar métodos


diferentes para matar cada um dos cangaceiros,
o que seria uma maneira de individualizar cada
um dos vilões, enriquecendo-os com caracterís-
ticas pessoais só deles. Por exemplo, um dos ca-
ras o Pedro encontra numa cidadezinha, onde
ele se tornou dono do único poço e faz a popu-
lação de refém do seu poder sobre a água. Quan-
do o herói chega, os dois travam um duelo de
morte. A luta é de facão, um duelo justo, mas
quem faz justiça é o povo, que se revolta e com-
pleta o serviço do Pedro, linchando o vilão. Ti-
nha outro cangaceiro que eu queria que fosse
engraçado, sem deixar de ser sanguinário, e para
este papel eu contratei o palhaço Pimentinha.
Foi uma escolha que causou certa sensação. Ima-
gina, um palhaço num filme de cangaço. Pedro
mata todos, menos o primeiro, que ele captura
e leva para o delegado. No começo, é um cara
ético. Quer acreditar na lei e na ordem, leva o
bandido e, quando está saindo da cidade, ouve
um tiro, porque o delegado mata o cangaceiro
no meio da praça. A partir, daí o Pedro se decep-
156
ciona e começa a fazer justiça por conta própria.

O Pedro era interpretado pelo Milton Rodrigues,


um ator loiro, bonitão, meio parecido com o
Geraldo Del Rey, que depois foi para o México e
fez uma porção de filmes por lá. Todos os anos
ele me mandava um cartão de Boas Festas, con-
tando o que havia feito e sempre enumerava
um monte de coisas. O Milton tinha cara e jeito
de galã, não era muito adequado para um filme
de cangaço, mas tinha uma qualidade que já
ressaltei. Ele sabia lutar, o que era importante
para o estilo do filme que queria fazer. Canga-
ceiros de Lampião tem, talvez, as melhores ce-
nas de lutas do cinema brasileiro e foi o que me
surpreendeu quando revi o filme na televisão.
São lutas de todo tipo: facão, porrada, soco,
pontapé, tiro. Um dos cangaceiros era o Antô-
nio Pitanga, que luta capoeira, então a luta dele
com o Milton era na base da capoeira e ritmada
pela música.

Nas filmagens, com Milton Rodrigues e Jaqueline Myrna


157
É uma das cenas que prefiro no filme. Tem ou-
tro cangaceiro que é um caso curioso, por causa
do ator. O Eduardo Abbas era um ator de TV,
mas era intuitivo, não tinha técnica nenhuma,
fazia tudo na raça. O problema é que era desas-
trado. No encontro dele com o Milton, o Abbas
tenta fugir e corre para uma pontezinha, para
fazer a travessia do rio. Era uma ponte de ver-
dade que conseguimos encontrar no Tietê,
daquelas de madeira que balançam. Achei que
seria legal para aumentar a intensidade dramá-
tica da cena de luta, mas não podia prever o
158
que ia acontecer. O Abbas vinha correndo, o Mil-
ton grudado no pé dele saltou e conseguiu apa-
nhá-lo, que é o que estava previsto no roteiro.
Na primeira tomada, o Abbas, que era todo
desengonçado, caiu de mau jeito e deu de cara
na madeira, arrebentando todos os dentes. Fica-
mos, sei lá, 15 ou 20 dias sem poder filmar, con-
sertando a cara do Abbas, trocando os dentes
dele. E aí fomos repetir a tomada. Eu lhe pedi,
pelo amor de Deus, que tomasse cuidado, mas
você acredita que o Abbas caiu de novo de cara
e se arrebentou mais uma vez? Tudo igualzinho.
Que coisa mais incrível, aquele Abbas era um
sujeito muito desajeitado. Era a segunda vez que
trabalhava com ele, pois no Lampião o Abbas
também fazia um cangaceiro. Era um dos inte-
grantes do bando de Virgulino. Havia uma cena
em que o Abbas corria atrás da Marlene França,
para estuprar a menina dentro d’água e o cara
foi tão animal que deixou a Marlene toda ma-
chucada.

Já que falamos nos atores, no Milton, no Pitanga


e no Abbas, deixa eu completar que a Jacqueline
159
Myrna fazia a Rosinha, a mulher do herói, que era
morta logo no começo e desencadeava toda a
trama de vingança. Jacqueline era linda, uma
doçura de pessoa. E o Pedro ganhava a ajuda de
outra mulher, que também queria se vingar e essa
outra era interpretada pela Vanja Orico, uma figu-
ra necessária em filmes de cangaço. A Vanja fez O
Cangaceiro com o Lima Barreto e depois traba-
lhou quatro vezes comigo. Aliás, sempre gostei
de repetir os atores. Se você consultar minha filmo-
grafia, vai ver que muitos deles aparecem duas,
três, quatro vezes nos meus filmes.
160
161
Com a Vanja no papel, a gente sabia que o públi-
co ia acreditar na idéia de uma mulher de faca
na bota. E ainda havia o Milton Ribeiro, que fa-
zia o chefe do bando, o Moita Brava. Apesar
dessa qualidade que eu redescobri agora, reven-
do o filme, Cangaceiros não repetiu o sucesso
de A Morte Comanda o Cangaço e Lampião. Foi
só razoável de bilheteria, mas como não era um
filme caro se pagou e ainda deu algum lucro para
o produtor.

Foi, de todos os meus filmes, o que menos traba-


162
lho me deu na hora de montar. Já tinha prática
de filme de cangaço e montei o filme rapidinho.
A impressão é de que o serviço se fazia sozinho
e olhe que tem todas aquelas cenas de ação, que
sempre precisam ser resolvidas na edição, para
aumentar a intensidade dramática. Meu filme
seguinte foi Madona de Cedro, que narra outro
tipo de história, mas eu ainda voltei ao filme de
cangaço com Corisco, o Diabo Loiro, que foi meu
último filme do gênero.
Capítulo IX

Tempo de excesso

Meu filme seguinte surgiu de uma lei que favo-


recia o investimento de empresas estrangeiras
na produção nacional. A coisa funcionava da
seguinte maneira - quando as grandes distribui-
doras americanas enviavam seus lucros para o
exterior, parte da remessa ficava retida no País,
como um imposto de renda, e o governo faculta-
va às empresas que investissem pelo menos parte
163
desse dinheiro na produção de filmes brasilei-
ros. A Metro tinha um dinheirão retido e resol-
veu produzir Madona de Cedro, que era um
projeto do coração do produtor Oswaldo Massai-
ni. Para um cara como eu, acostumado a traba-
lhar com pouco dinheiro e até sem dinheiro
nenhum, aquilo foi uma coisa inacreditável. O
Massaini só me contou depois, mas há muito
tempo ele tinha o projeto de filmar o livro do
Antônio Callado. Na verdade, era um projeto
anterior a O Pagador de Promessas. Não me lem-
bro mais se ele tinha lido o romance, mas em
todo o caso o Massaini gostou muito do tema
da promessa e achou que dava filme. Só que o
Anselmo Duarte surgiu com a idéia do Pagador
e atropelou o projeto de Madona de Cedro, que
ficou relegado para segundo plano. Só que o
Massaini nunca desistiu da história e resolveu
voltar ao Madona. Ele queria até dirigir o filme,
eu seria só uma espécie de supervisor, para evi-
tar que cometesse erros técnicos.

Nunca vi um produtor como o Massaini. Ele sim-


plesmente detestava acompanhar filmagens. Fi-
164
zemos dez filmes juntos e ele, quando muito,
deve ter ido ao set de uns três deles. Visitou o
set de O Santo Milagroso, de Madona de Cedro
e Independência ou Morte e, assim mesmo, eram
visitas breves. Nos outros, ficava sempre na reta-
guarda, à distância, administrando os problemas
de dinheiro, mas sem interferir na realização.
Massaini dizia que era eficaz na comercializa-
ção e distribuição dos filmes. Além disso, havia
o problema de que ele morria de medo de via-
jar de avião. Tanto que foi de navio para a Fran-
ça, quando O Pagador de Promessas concorreu
em Cannes. Demorou 15 dias para ir e outros 15
para voltar. O Anselmo voltou de navio com ele.
Chegaram com a Palma de Ouro no porto de
Santos e foi aquela apoteose. Pelo seu medo de
avião, o Massaini nunca se aventurou a visitar
os sets daqueles filmes que fizemos no Nordes-
te. Só queria saber de viagens curtas, por terra.
No caso de Madona, como já disse, ele queria
dirigir, mas alguém lhe fez ver que não tinha
prática nem jeito para a coisa e o Massaini sen-
satamente desistiu e eu assumi a direção. Mado-
na de Cedro, a essa altura, já tinha virado uma
165
obsessão para ele. Quando substituiu Madona
pelo Pagador, Massaini o fez convencido pelo
Anselmo, que tinha vivido na França e havia
freqüentado bastante o Festival de Cannes. O
Anselmo o convenceu de que um filme com as
características do Pagador teria grande impacto
lá sobre eles, o que, de fato, ocorreu. Mas a
semente do Madona ficou martelando na cabe-
ça dele e eu desconfio de que começou a achar
que, com outra história de promessa, poderia
voltar a Cannes e até ganhar outra Palma de
Ouro.
Quando o Massaini foi ao Rio para tratar dos
direitos, o Callado tentou ponderar que um fil-
me como Madona de Cedro, depois do Pagador,
não fazia mais sentido. “Você vai estar se repe-
tindo”, dizia o Callado, mas ele não queria nem
saber. Eu sei porque estava junto com o Massai-
ni. O Callado ainda tentou oferecer outro livro,
que achava que daria um filme mais interessan-
te, mas ele não topou. Disse que era aquele que
queria, que gostava do tema. Aí o Callado se
deu por vencido e disse: “Bom, se você quiser
pagar...” E o Massaini pagou bem. Imediatamen-
166
te, comecei a trabalhar no roteiro. Fiz a adapta-
ção com a ajuda de um rapaz do Rio de Janeiro,
que tinha sido assistente de vários filmes do
Sanin Cherques. Fizemos isso num apartamento
que o Massaini tinha no Guarujá e quando vol-
tei a São Paulo, com o roteiro pronto, o Massai-
ni já havia desistido de dirigir e eu então parti
para outra etapa, prevendo a decupagem das
cenas, como sempre gostei de fazer. Preciso
esclarecer que o Madona é um de meus filmes
de que mais gosto. Houve, com ele, uma mu-
dança completa no meu método de trabalho.
Sempre gostei de carrinho, de movimentar a
câmera, mas foi no Madona que comecei a fazer
as tomadas mais elaboradas da minha carreira.
Era tudo muito pensado, muito consciente de
minha parte.

Uma tomada, em especial, me marcou muito.


Era o plano-seqüência de quase cinco minutos
em que o Sérgio Cardoso, que era o sacristão,
queria comer a Leila Diniz de qualquer jeito. Ele
vai até a lojinha que ela tem com o marido, que
é o Leonardo Villar, de novo fazendo o pagador
167
de promessas da história, e fica cantando a Lei-
la. O plano começa quando ela abre a porta e o
Sérgio entra, vai se insinuando, encurralando a
Leila. Tudo isso ocorre na lojinha, que era um
espaço real, não era um cenário de estúdio. Tudo
era minúsculo, um espaço de uns 3 por 3 ou 4
metros, com uma divisão no meio, um muro. E
havia aquelas mesas, sobre as quais estavam dis-
postas as estátuas de santos, todas de pedra-sa-
bão, porque o Madona foi feito em Minas, em
Congonhas do Campo, um dos lugares mais boni-
tos em que filmei.
O Sérgio avança, a Leila se afasta, vai contor-
nando as estátuas e ele segue atrás, até encur-
ralá-la num canto, quando o avanço vira tenta-
tiva de estupro. Era tudo muito complicado de
fazer, porque havia o problema do espaço, o da
câmera e o dos atores. A cena exigia grande con-
centração do Sérgio e da Leila, mas eles, enfim,
eram atores e o Sérgio, que era um grande nome
do teatro, não teve problema para se situar na
cena, que fez com grande profissionalismo. Ele
deu o - como é que se diz? - diapasão e a Leila
seguiu atrás. Permaneciam os problemas da câ-
168
mera e do espaço. Desde logo, ficou evidente
que eu não ia poder usar carrinho. A câmera teria
de contornar mesas, objetos, não dava para usar
carrinho não só pelo espaço, mas também pela
quantidade de curvas que a câmera teria de fa-
zer, à esquerda e à direita.

Criou-se o impasse - como resolver? Foi aí que


entrou o Waldomiro. Sempre trabalhei com ele,
era o maquinista/eletricista da equipe. O Miro
quebrava qualquer galho.
Eu apresentava o problema e ele me dava a solu-
ção, mesmo que tivesse de queimar pestana a
noite toda, sem dormir. Quero fazer aqui uma
homenagem a todos os “Miros” do cinema brasi-
leiro, porque acho que o cinema não se faz só
com os artistas que aparecem, mas também com
essas pessoas anônimas que dão o sangue para
que as coisas saiam certas. O que eu comentei
com o Miro foi que, na televisão, as câmeras se
movem muito porque eram colocadas sobre
tripés de rodinhas. E por que não usamos esse
tripé, propus? Foi o que o Miro fez, usando o
169
tripé dos refletores e amarrando nele um assento
improvisado de madeira, no qual se colocava o
George Pfister, que era o nosso fotógrafo. De uma
maneira muito prática, o que ele fez foi anteci-
par a steady-cam, mas se você pensa que isso
resolvia os nossos problemas... Não, não resol-
via. Porque ainda havia outro problema - o foco.
Na câmera que usávamos, o foco era manual e
como ele podia ser ajustado manualmente numa
câmera que deslizava sobre tripé num espaço
exíguo como aquele? Bom, aí foi a chance do
Osvaldo dar a contribuição dele.
O Osvaldo Oliveira era o nosso primeiro assis-
tente de câmera, que ajusta o foco, mas não
havia como encaixá-lo com o fotógrafo na enge-
nhoca criada pelo Miro. O Osvaldo então teve
uma idéia - pegou uma vareta comprida que
podia ser ajustada ao pino da câmera que con-
trolava o foco. E lá ia ele, acionando o foco como
um malabarista, enquanto o George mantinha o
olho no visor. Foi a tomada mais maluca que fiz
na vida e vou contar uma coisa - ficou linda. Se
você vir o filme preste atenção para confirmar o
que estou dizendo. Dizem que os deuses do cine-
170
ma ajudam a gente, quando se faz as coisas com
paixão, e foi o que ocorreu naquele dia. Não posso
deixar de prestar, aqui, minha homenagem ao
Osvaldo, um homem de equipe, excelente pro-
fissional, com quem trabalhei em vários filmes.
Foi assistente de câmera, iluminador e até meu
assistente em Independência ou Morte, além de
ajudar muito no setor de produção.

O curioso é que essa cena da lojinha, com todas


as complicações que teve, não foi a mais difícil
de filmar em Madona. Sempre fui inconforma-
do com as limitações técnicas que, na época,
condenavam o cinema brasileiro a uma posição
de inferioridade que me parecia injustificável.
Por isso, vivia inventando carrinhos malucos,
zooms malabaristas, tomadas cheias de movi-
mento interior. O auge dessa minha indignação
pode ser considerado a cena final do filme, com
a imagem do Leonardo Villar morto, crucifica-
do no adro da igreja, entre os profetas do Aleija-
dinho e de frente para a multidão estarrecida.
Queria mostrar o Leonardo do mesmo ângulo
com que Salvador Dalí focaliza o Cristo morto
171
em seu quadro famoso, mas não queria uma
imagem parada. Queria que tivesse movimento
de zoom, de carrinho e de grua. Só que não havia
no Brasil daquele tempo uma grua que alcan-
çasse os 16 metros necessários para eu posicio-
nar a câmera, de forma a enquadrar o Leonar-
do bem de cima, como estava querendo. Nova-
mente me vali da habilidade do Miro Reis. Após
muitas trocas de idéias e sugestões, ele construiu
uma gigantesca gangorra de tábuas, canos e cor-
das que, colocada sobre o carrinho, conseguiu o
prodígio de uma tomada que sai do rés do chão,
172
173
aproxima-se do crucificado, sobe pelo corpo dele
e termina numa enquadração em plongé, aproxi-
mada em zoom, que reproduz exatamente a
cena do Dalí. Foi uma tomada realmente espeta-
cular, talvez a mais audaciosa invenção engen-
drada pela parceria do fabuloso Miro comigo.

Filmamos o Madona em Congonhas do Campo


porque era uma escolha natural. Precisava da
igreja com as estátuas dos profetas, esculpidas
pelo Aleijadinho, e ela fica lá. Então, não havia
nem o que escolher. A única coisa que não era
174
de Congonhas e eu encaixei foi a gruta da Lapi-
nha, também em Minas. Tudo aquilo, a igreja, a
gruta, já preenchia a cota de brasilidade que
sempre gostei de colocar nos filmes, mas ainda
havia a procissão do Senhor morto, na Sexta-
Feira da Paixão. Todo ano, na Sexta-Feira Santa,
realiza-se em Congonhas aquela procissão que
percorre todas as estações da Via Sacra, com
personagens vestidos a caráter, com roupas da
Bíblia. É uma coisa tão grandiosa, tão imponen-
te, com milhares de pessoas, que não haveria
condições de filmar aquilo fora de época, recons-
tituindo a tradição. A procissão, por isso, foi fil-
mada fora do cronograma. Mesmo com a dinhei-
rama da Metro sairia muito caro montar aquilo
só para o filme. E eu acho que tem mais uma
coisa - na Sexta-Feira Santa, as pessoas estavam
mais integradas ao espírito da religião. Se fos-
sem figurantes numa filmagem, não sei se pode-
ríamos captar aquele fervor que serve tanto à
história.

175
Até pelo prestígio da produção com a chancela
da Metro, conseguimos reunir em Madona de
Cedro o maior elenco de minha carreira. Não,
talvez eu esteja exagerando, porque no Indepen-
dência ou Morte também conseguimos reunir
grandes nomes. Mas no Madona, pela primeira
vez, eu tinha a disposição todos aqueles mons-
tros sagrados do teatro, da televisão e do cine-
ma. Foi uma guerra de egos, cada um tentando
mostrar que era melhor do que o outro, mas
nada que não desse para administrar. Gostei
muito daquela guerra.
176

Até o Anselmo está bem. Acho que é um dos


melhores trabalhos dele como ator. Faz um sujei-
to malandro, um vigarista. Depois da Palma de
Ouro, o Anselmo havia virado o grande diretor
do cinema brasileiro e o Massaini, que, além de
amigo, era seu admirador, pediu que eu o le-
vasse como supervisor de produção. O Anselmo
foi nos ajudar e, como já disse, fez um trabalho
espetacular como ator, mas não sei porque ele
implicou com o diretor de fotografia, o George
Pfister.
O George era um profissional 100%. Havia se
formado no cinema europeu, mas era um cara
humilde. Trabalhou comigo em vários filmes
como câmera e progrediu tanto que lhe ofereci
a direção de fotografia do Madona de Cedro, o
que foi um grande salto para ele. Era um cara
esclarecido, estudioso e eu sabia que poderia
criar a imagem colorida que estava procurando.
Mas houve o problema com o Anselmo, que sem-
pre pegava no pé do George.

O coitado ficou tão abalado que quis abando-


177
nar a produção. Dizia que era impossível traba-
lhar num filme no qual o supervisor de produ-
ção era contra ele. Nunca entendi direito aque-
la implicância, porque o George era um profissio-
nal extraordinário, um sujeito de uma dedica-
ção e de uma entrega muito grandes. Aquele
clima de tensão do Anselmo com o George era
uma coisa negativa e o Madona foi muito marca-
do pelo negativismo. Tinha dinheiro, uma equi-
pe excepcional, uma história fabulosa, coisas que
poderiam apontar para um grande sucesso, mas
você pode imaginar que fazer um filme com di-
nheiro, numa cinematografia pobre como a bra-
sileira, gerava a maior ciumeira na classe artísti-
ca. Madona começou a ser mal falado.

Mais tarde, outros diretores começaram a filmar


com dinheiro das empresas americanas, mas o
fato de a gente ter sido o primeiro pesou nega-
tivamente. Havia também a personalidade do
Massaini, que tinha ganhado a Palma de Ouro e
agora conseguia um apoio inédito para filmar
no País. Ele não fez nada por baixo do pano,
mas a animosidade contra o Madona crescia,
178
antes mesmo da estréia. Para agravar, o Massai-
ni ofereceu, no final da filmagem, um grande
jantar comemorativo para toda a classe cinema-
tográfica e convidou a imprensa, no Copacaba-
na Palace. Aquele jantar de luxo, uma coisa nun-
ca vista antes, deixou todo mundo louco. Um
crítico que era meu amigo confidenciou que
havia pegado mal pra burro. “Tá todo mundo
puto porque acha que vocês estão querendo nos
esnobar”, me disse. Começou, assim, um movi-
mento contra o Madona. O crítico do Estadão,
que nem me lembro o nome, escreveu uma críti-
ca violenta, não contra o filme, mas contra o
Massaini e eu, coisa pessoal, mesmo. Disse que
havíamos transformado num grande livro numa
chanchada de luxo. E chegou a pedir nosso bani-
mento do País.

Foi uma ofensa tão declarada que o Massaini


ficou louco da vida, achando que era desrespei-
to, e exigiu uma retratação do jornal.

Dirigindo Leonardo Villar e Anselmo Duarte


179
O Estadão disse que não se retratava, porque a
opinião era de um de seus profissionais e tinha
de ser respeitada. O jornal dava apoio. O Massai-
ni entrou na Justiça contra o crítico e o jornal.
Não sei, sinceramente, que fim teve esse proces-
so, mas a coisa ficou feia. Criou-se uma tal situa-
ção que a Metro, que havia colocado Madona
de Cedro na sua programação internacional,
recuou e simplesmente tirou o filme de cartaz
no Brasil e arquivou a idéia de lançá-lo no exte-
rior. Madona foi o filme mais caro e o menos
visto da minha carreira. Apesar das críticas demo-
180
lidoras, ficou em cartaz uma ou duas semanas
no Rio e em São Paulo.

Madona entrou no limbo. Como a Metro tinha


os direitos e não autorizava a exibição, o filme
foi sendo esquecido. É quase inédito. Compre-
endo a reação negativa, no quadro em que sur-
giu, mas ela foi injusta e anulou um filme que
foi feito com muito empenho. Insisto que é um
dos meus filmes de que mais gosto, pelo que
representa de renovação do meu estilo de dire-
ção.
E não foi nenhuma politicalha do Massaini que
abriu o cofre da Metro. Estava na lei, era perfei-
tamente legal, só que, por falta de informação,
ninguém sabia. E, se sabia, achava que não valia
a pena. O precedente do Madona abriu uma
prática que se tornou corrente. Só que, para nós,
foi uma chateação imensa. Pagamos o preço do
ineditismo. Para mim, Madona de Cedro é um
filme que merece uma segunda chance. Não tem
nada de chanchada.

181
É sério e muito fiel, acho até que fiel demais, ao
romance do Callado. Está aí uma crítica que se
pode fazer ao Madona - a fidelidade excessiva
ao espírito e à letra de um romance pode ter
seus inconvenientes. Só que ninguém fez essa
crítica. O que houve foi uma coisa irracional, um
ódio que só posso entender como produto da
animosidade criada pela crescente importância
do Massaini, depois do prêmio em Cannes.

182
183
184
Capítulo X

Corisco e Dadá

Falei do Madona de Cedro e eu não falei sobre


Leila Diniz. Era uma figura excepcional. Leila era
uma atriz talentosa, uma mulher carinhosa, um
ser humano solidário. Nos anos 60, houve uma
grande inundação que provocou desmorona-
mentos no Rio. A Leila passou vários dias como
voluntária, ajudando os desabrigados e necessi-
tados. Ela era assim, generosa. Sempre gostei
185
muito dela, mas acho que, no caso do Madona,
ela se sentiu atingida pelas críticas ao filme e
ficou retraída. Isso não impediu que estivesse no
meu filme seguinte, que marcou uma volta ao
cangaço.

Foi Corisco, o Diabo Loiro, no qual a Leila contra-


cenava com Maurício do Valle e o filme ainda
tinha o Milton Ribeiro, o nosso cangaceiro ofi-
cial, fazendo pela primeira vez o papel de Lam-
pião. Vou contar aqui uma coisa que não sei se
muita gente sabe.
186

Maraci Melo e Milton Ribeiro em Corisco, 1969


Em 1965 ou 66, ia fazer o Cangaceiros de Lam-
pião e precisava de uma atriz para fazer a canga-
ceira da história. Quem interpretou o papel foi
a Vanja Orico, mas fomos ao Rio, o Massaini e
eu, para encontrar uma atriz jovem que nos ha-
viam recomendado. Tínhamos o endereço dela
em Copacabana e fomos. Era um prédio enor-
me, só de kitchenettes e, numa delas, morava a
Leila, que naquele dia estava fazendo faxina. Nos
recebeu de short, toda desalinhada, o cabelo
estava um horror, o joelho marcado porque ela
estava lavando o chão. Como primeira impres-
187
são, foi péssima e o convite nem foi feito para
ela interpretar a cangaceira. Achamos que não
tinha o tipo.

Leila estava começando a aparecer, fazia uns


papéis pequenos em novelas, só em 1966 foi que
ela fez Todas as Mulheres do Mundo, que lhe
deu projeção e a transformou em musa de Ipane-
ma. Já era uma estrela em Madona de Cedro,
mas, no fundo, continuava uma menina de uma
espontaneidade impressionante. A Leila era um
doce, mas desconcertava porque não respeita-
va nada nem ninguém. Dizia palavrão pior que
homem e aquilo foi ajudando a construir sua
fama. Era determinada, tinha uma personalida-
de muito forte e foi um prazer fazer dela a Dadá
de Corisco, o Diabo Loiro.

A gênese do filme você pode imaginar, se pen-


sar um pouco. Havíamos feito um filme caro e
malsucedido. Qual seria a reação do Oswaldo
Massaini, como produtor? O maior sucesso de
público da carreira dele foi Lampião, o Rei do
Cangaço. É claro que o Massaini ia querer voltar
188
ao cangaço para recuperar o terreno perdido.
Já tínhamos feito o Lampião, que era o rei do
cangaço, o cangaceiro mais famoso do Brasil.
Imediatamente depois dele vinha o Corisco, uma
espécie de príncipe do cangaço. Depois da histó-
ria do rei, íamos contar, então, a história do
príncipe do cangaço.

A idéia, a bem da verdade, não foi do Massaini,


mas do Anibal, filho dele, que era um garotão
na época, querendo se iniciar no cinema. O Ani-
bal deu os primeiros passos no cinema comigo,
em Madona de Cedro. Teve o estalo: ‘Pô, se é
para contar uma história de cangaceiro, vamos
contar a do Corisco.’ Aceita a idéia, a primeira
coisa que fizemos foi chamar para São Paulo a
companheira de aventuras do Corisco, Dadá, que
ainda estava viva e podia, melhor do que nin-
guém, contar a história dos dois.

O ano era o quê? 1968? Chegou aquela velhi-


nha de perna amputada acima do joelho, usan-
do muletas. Dadá tinha mais de 70 anos. Nos
encerramos com ela, com um gravador e fica-
189
mos um mês inteiro ouvindo a Dadá contar suas
histórias de cangaço. Nem tudo o que ela con-
tou foi para o filme, porque foi preciso selecio-
nar, de forma a construir uma trama com desen-
volvimento dramático. Mas tudo o que está no
filme é fiel ao relato da Dadá. Ela não contou
cronologicamente. Lembrava um dia uma coisa,
outro dia outra, voltava atrás, avançava. Não ti-
nha seqüência naquilo e, por isso, o roteiro to-
mou a forma de um flash-back, narrado como
delírio do homem, o Corisco, que está morren-
do num carro de bois, sendo transportado do
sertão para a capital, Salvador. Dadá contou
coisas impressionantes. Como foi estuprada aos
16 anos, como o Corisco a levou de casa e de
como ela o odiava. Era uma história bonita, de
um grande amor que nasceu do ódio, pois inicial-
mente ela tinha aversão por ele. Com o tempo,
Corisco foi ganhando a Dadá na convivência. Era
um homem de uma dedicação muito grande, ela
contou. Corisco vinha de família boa. Num meio
como o cangaço, era letrado. E a primeira coisa
que fez, depois de estuprar a Dadá e fazer dela
sua companheira, foi ensiná-la a ler, desvendan-
190
do um mundo imenso para a garota analfabe-
ta. Também ensinou outras coisas - a atirar, trans-
formou-a numa guerreira. Tudo veio na convi-
vência, ele sempre dedicado, amoroso, porque
o Corisco amava aquela mulher e ela também
aprendeu a amá-lo.

Dadá não forneceu apenas a base para o rotei-


ro, com suas histórias. Ela também desempe-
nhou um papel muito importante na produção,
dando assessoria para que todos os detalhes
fossem fiéis à época e ao contexto da trama.
Acessórios, bornais, enfeites nos chapéus, tudo
ela confeccionou pessoalmente ou supervisio-
nou, com uma generosidade excepcional. Fez
tudo antes, porque tinha dificuldade de locomo-
ção e não podia nos acompanhar no set. A esta
altura, enquanto a Dadá trabalhava nos adere-
ços, já sabíamos que seria interpretada pela Leila
e as duas se encontravam para que a Leila pu-
desse encontrar o tom da personagem. Foi um
processo muito bonito, para um filme que cus-
tou barato. Corisco não foi feito em locações
no Nordeste. Foi todo feito entre Jundiaí e Itu.
191
Como o entusiasmo maior pelo filme era do
Anibal, o Oswaldo não investiu muito dinheiro
na produção. Colocou o necessário para ficar
decente e ganhou bastante, porque Corisco foi
bem na bilheteria, mesmo sem estourar como o
Lampião.

Naquela época, nos anos 60, estavam na moda


os filmes coloridos com detalhes em preto-e-
branco e, assim, eu incorporei o recurso, jogan-
do com a cor e o preto-e-branco para estabele-
cer as diferentes fases da narrativa e também
para deixar claro que se trata ora de delírio, ora
de realidade. Na história que a Dadá me ajudou
a formatar, Corisco é ferido em combate e feito
prisioneiro pelo Zé Rufino, que eu conheci pes-
soalmente, quando pesquisei para o Lampião.
Ele foi nosso cicerone, quando Thalma de Olivei-
ra e eu percorremos o sertão, em busca de depoi-
mentos e locações. Zé Rufino é o sargento da
milícia que carrega Corisco para a cidade grande,
num carro de bois. Com ele vai a Dadá e o filme
alterna o delírio do Corisco, agonizante, com a
evocação das aventuras dos dois. Começa em
192
preto-e-branco, depois fica colorido e, ocasional-
mente, volta a ficar em preto-e-branco, de for-
ma a mostrar que a verdadeira vida de Corisco e
Dadá foi quando eles romperam com a vida fa-
miliar medíocre e ingressaram no crime.

Corisco foi meu primeiro filme inteiramente


narrado em flash-back. No Lampião, eu tinha o
cantador de feira tecendo o fio da história, do
começo ao fim, e o filme ia ilustrando o que ele
contava, mas não era um flash-back.
Acho que o recurso, aqui, é válido. Uma tentati-
va de desmistificação? Pode ser, mas confesso que
não foi consciente, não. Aliás, muitas coisas me
vêm e eu não consigo dizer porque. Às vezes, só
muito tempo depois, com o distanciamento, e
outras vezes nem assim, eu consigo descobrir
porque fiz certas escolhas - de temas, de situações,
de personagens. Quis sempre ser um narrador,
você sabe, e tudo o que fiz foi na tentativa de
contar minhas histórias da melhor maneira possí-
vel, mas já descobri que não dá para procurar os
motivos de tudo. É bom, mesmo, que certas coisas
193
permaneçam inatingíveis até para quem fez. Não
sou nenhum especialista em psicanálise, mas acho
que talvez seja nestes momentos que a gente,
inconscientemente, consegue dizer mais sobre si.

Fiquei perturbado com uma coisa. No caso do


Madona de Cedro, as reações contrárias não
chegaram a me abalar, embora me parecessem
injustas. Não sou um cara ressentido. Acho até
que a vida me deu mais do que poderia esperar,
mas os ataques que sofri...
Minha preocupação principal foi sempre fazer
filmes para o público, para conquistar o públi-
co. É claro que, desta maneira, eu sempre me
coloquei na contramão do pessoal do Cinema
Novo. Nunca fiz cinema como uma bandeira.
Para mim era mais uma comemoração que com-
partilhava com o público e que eu tentava enri-
quecer com meus conhecimentos das pessoas e
da técnica. A partir daí, compreendo que os críti-
cos e os diretores ligados ao Cinema Novo consi-
derem tudo o que eu fiz uma porcaria, que quei-
ram colocar tudo no lixo. Modestamente, penso
194
que nem tudo deve ser julgado com excessiva
severidade. Fiz coisas boas, sei disto. E a reação
do Cinema Novo não era só contra mim. Eles
também execravam a chanchada, a Vera Cruz,
achavam tudo ruim. Era um direito deles, mas
eu penso que talvez estivessem errados. Ao nive-
lar tudo por baixo, ao tentar destruir tudo aqui-
lo que não era deles, foram contra todos os
pioneiros que ajudaram a construir o cinema bra-
sileiro fazendo um cinema popular, de massas,
como Adhemar Gonzaga, Moacyr Fenelon, Car-
mem Santos, J.B. Tanko, José Carlos Burle, Lima
Barreto e tantos outros. O mais curioso é que,
se você for ver, o que anda fazendo o pessoal
do Cinema Novo? O Glauber Rocha não, porque
morreu, mas o Cacá Diegues? Não apenas ele.
Paulo César Saraceni, Zelito Viana, estão todos
fazendo cinema comercial, numa linha popular,
e são filmes bons. Até o Nelson Pereira dos San-
tos andou numa linha de cinema mais populares-
co, fazendo A Estrada da Vida com Milionário e
Zé Rico. Não estou atacando o Nelson, nem os
outros. Acho legal que venham para o lado da
gente. E o Nelson foi sempre cordial comigo,
195
sempre me tratou com respeito. De todo o pes-
soal do Cinema Novo, o único com quem conse-
gui manter uma relação foi ele. Foi sempre mui-
to humano, tolerante.

Talvez o pessoal do Cinema Novo pudesse pen-


sar que eu estava fazendo provocações para eles.
Mas o cantador de Lampião antecipa o de Deus
e o Diabo na Terra do Sol. Se alguém copiou,
não fui eu. E nunca me passou pela cabeça que
um filme como Corisco, o Diabo Loiro pudesse
ser visto como uma conseqüência de Deus e o
Diabo. Retomo o Corisco, personagem impor-
tante no filme do Glauber, e o ator também é o
Maurício do Valle, que fazia o matador de canga-
ceiros no filme dele, mas Deus e o Diabo não
era uma referência, nem a ser seguida, nem a
ser evitada. Acho que o filme do Glauber é uma
interpretação muito pessoal dele sobre o proble-
ma social do cangaço. Acho até legal que tantos
filmes diferentes explorem e desenvolvam esses
temas do Brasil. O cinema fica muito mais rico e
a gente consegue entender melhor as próprias
raízes.
196

Embora fosse uma produção barata, filmada no


interior de São Paulo, quero dizer que Corisco
não foi feito por isto com menos capricho. Ti-
nha um diretor de fotografia competente, o
Oswaldo de Oliveira, e estávamos usando a
câmera Arriflex, o que nos dava mais mobilida-
de. Tentei construir alguns planos muito elabo-
rados. A cena em que Corisco recebe a notícia
da morte de Lampião e se descontrola foi feita
como plano-seqüência, bem do jeito que eu
gosto.
A câmera se mexe e o ator também se mexe den-
tro do plano. Corisco também tem a cena mais
violenta que filmei. Uma violência tremenda, que
até me assusta. Tive oportunidade de rever a fita,
quando passou na TV e fiquei remoendo - como
consegui fazer uma cena daquelas?

Assim como o bando de Lampião tinha os luga-


res-tenentes dele, o de Corisco, depois da morte
do chefe, também tinha vários subchefes. E um
deles era esse cangaceiro negro, o Zé Macaco,
interpretado pelo Antônio Pitanga. Zé Macaco
197
é feio - com esse nome só podia ser, não? - mas
é casado com uma mulher branca e linda, que é
interpretada pela Georgia Gomide no filme. Até
por reconhecer as diferenças entre os dois, Zé
Macaco é devotado à mulher e a trata como se
fosse uma bonequinha, mas a Georgia, no fil-
me, é uma vaca. Quer dar para um cangaceiro
novinho, bonitinho e branco. E aproveita a au-
sência do marido para levar o cara para o mato
e fazer o serviço. Só que outro cangaceiro vê,
também quer e, ante a recusa da Georgia, corre
para alertar o Zé Macaco, que quer matar o rival,
mas Corisco não deixa. Diz que o Zé Macaco pode
fazer o que quiser com a mulher, mas com o
outro cangaceiro quem decide é ele. É uma coisa
muito machista, mas o machismo é dos perso-
nagens, não é meu. O racismo, se houver, tam-
bém.

Zé Macaco manda que amarrem a mulher numa


árvore, enquanto pensa no que vai fazer com
ela. A Georgia, pendurada na árvore, grita pelo
amor de Deus que nunca mais vai fazer aquilo,
implora para que ele a solte. Zé Macaco se isola
198
na barraca dele, o bando fica naquela expecta-
tiva e a mulher gritando, a noite toda. De ma-
nhã, a cena é muito tensa, ele levanta e é segui-
do pelos olhares de expectativa do bando todo.
Carrega uma pá, tira todos os seus apetrechos
de cangaceiro e se põe a cavar um buraco dian-
te de uma árvore. A Georgia vê que ele está
cavando uma sepultura e grita mais ainda. Zé
Macaco segue em frente. Impassível. Quando
acha que a cova está pronta, corta um galho da
árvore e improvisa um porrete. Quebra a mu-
lher de pancada, atira ela ainda viva na cova,
199

Georgia Gomide
joga terra por cima e cai num pranto descontro-
lado sobre o túmulo da mulher amada que truci-
dou. É uma coisa impressionante. Sou um cara
franzino, controlado, tranqüilo. A violência da
cena é tão grande que eu me pergunto como
foi possível, como consegui? E aí chego à conclu-
são de que não é diretor de cinema o cara que
não consegue fazer uma coisa que é o oposto
dele. Como diretor você tem de entender o ou-
tro, de se colocar na cabeça do outro. É duro,
mas é o lado fascinante da profissão.

200
No Brasil, a gente não filma pelo dinheiro nem
pela glória. Filma para contar histórias que te-
nham a nossa cara, para tentar entender os ou-
tros e, ao fazê-lo, terminar entendendo quem é
você mesmo. Uma cena dessas, que você faz, é
uma violência que tem um efeito bumerangue.
Ela volta e te coloca a questão - por que fiz? Por
que me incomoda? E é assim que você vai se
descobrindo.
201

Na estréia de Corisco, com Gabriel Migliori


202

Na estréia de Se Meu Dólar Falasse, com Vera Nunes


Capítulo XI

Um dólar para Dercy

Quando fiz O Santo Milagroso, muita gente


estranhou que eu, um diretor de filmes de ação,
fizesse uma comédia. Em 1970, dirigi minha
segunda comédia e aí ninguém mais estranhou.
A história de Se Meu Dólar Falasse é engraçada.
Nunca imaginei fazer um filme com a Dercy Gon-
çalves, mas fiz e a origem do projeto é a seguin-
te: o Oswaldo tinha a Dercy sob contrato, que
203
ele havia assinado um ou dois antes. Passou-se
o tempo, o contrato estava vencendo e o Massai-
ni resolveu que tinha de fazer logo um filme com
ela, senão ela ia receber sem trabalhar para ele.
O Oswaldo deu a partida, mas quem exerceu a
função de produtor, na prática, foi o Anibal, que
se havia iniciado no cinema comigo, fazendo
Madona de Cedro lá em Minas. Aliás, eu tenho
de falar uma coisa que ainda não disse até ago-
ra e que talvez ajude a esclarecer, quando eu
digo que certos filmes que fiz com Oswaldo
Massaini foram alvo de preconceito. O Massaini
era considerado um produtor de chanchadas.
Todos os filmes dele até O Pagador de Promes-
sas eram chanchadas. E aí, quando o Anselmo
Duarte, com quem o Massaini já havia feito Ab-
solutamente Certo! o convenceu a produzir um
filme sério, ele ganhou, de cara, a Palma de
Ouro. Você pode imaginar que as pessoas tive-
ram uma dificuldade muito grande para deglu-
tir o que, para elas, era um absurdo, um desafo-
ro. Para o pessoal do Rio, o Oswaldo não era
nem um produtor. Era um distribuidor que, às
vezes, botava dinheiro nos filmes. Mas ele ga-
204
nhou a Palma de Ouro, que todo mundo que-
ria, e foi o primeiro a fazer filmes usando recur-
sos das grandes empresas americanas no Brasil.
Por tudo isto, como é que você acha que as pes-
soas seriam simpáticas com Oswaldo? Elas, no
fundo, ficavam babando na expectativa de vê-
lo fracassar.

E o Oswaldo iniciou uma linhagem ligada ao


cinema. Era filho de um imigrante modesto. Fre-
qüentou grupo escolar e se iniciou, profissional-
mente, como técnico de contabilidade.
O Oswaldo veio de baixo, mas o filho já teve
melhores condições, o que não depõe nada con-
tra a capacidade de empreendimento do Anibal
(Massaini Neto). Sempre me dei muito bem com
o Anibal, talvez porque o tenha visto crescer.
Quando comecei a trabalhar com o pai dele, o
Anibal era garoto. Devia ter o quê? Uns 12, 13
anos. O primeiro trabalho dele no cinema foi
comigo, no Santo Milagroso, depois ele foi assis-
tente em vários filmes meus, no Cangaceiros de
Lampião, no Madona, No Corisco e Dadá, já era
produtor executivo, função que voltou a exer-
205
cer em Se Meu Dólar Falasse. O primeiro filme
do Anibal como produtor foi Superfêmea, com
a Vera Fischer. Depois, ele produziu vários fil-
mes, mas nunca trabalhei com ele como produ-
tor. Íamos refazer O Cangaceiro em 1997 e, aí
sim, ele seria o produtor. Cheguei a planejar a
produção com o Anibal, a participar do roteiro
e a escolher elenco e locações, mas, quando falta-
va um mês para o começo das filmagens, tive
um descolamento da retina e precisei me afas-
tar. O Anibal tentou arranjar um substituto e
não conseguiu.
Como havia um problema de data, pois era preci-
so filmar antes da estação das chuvas, que trans-
forma a caatinga num jardim florido, o próprio
Anibal assumiu a direção. Quando melhorei um
pouco, visitei o set em Pesqueira, Pernambuco,
e dirigi algumas cenas adicionais, para serem
usadas na versão de TV, em formato de minissé-
rie, que está em compasso de espera, porque o
Anibal preferiu se concentrar no filme dele com
o Pelé, Pelé Eterno.

De volta ao Se Meu Dólar Falasse, devo dizer


206
que, no começo, não era um filme para eu diri-
gir. O Oswaldo e o Anibal tentaram primeiro
Carlos Manga, que tinha toda aquela experiên-
cia da chanchada e parecia mesmo o cara indi-
cado para fazer a Dercy render. O Manga, naque-
la época, estava em São Paulo, fazendo na TV
Record um programa de sucesso, o Quem Tem
Medo da Verdade? Ele tinha a idéia de fazer um
faroeste com a Dercy, uma coisa muito louca e
que poderia sair divertida, pois o Manga já ti-
nha feito na Atlântida o Matar ou Correr, com o
Oscarito e o Grande Otelo.
O tempo foi passando e um dia, o Massaini deu
um aperto no Manga, porque a data limite esta-
va se aproximando. E o Manga confessou que
não ia poder fazer por causa do programa. Mas-
saini então me suplicou para que eu resolvesse
o problema, porque faltavam só dois meses para
vencer o contrato da Dercy.

Era preciso fazer tudo correndo. Minha primei-


ra providência, antes mesmo de procurar a histó-
ria, foi procurar o maior número de comedian-
tes. Já que vou filmar com a Dercy, vou cercá-la
207
de comediantes, foi o que pensei. Chamei o
Grande Otelo, teria chamado o Oscarito, mas ele
já estava mal e morreu naquele mesmo ano, e
recrutei o maior número possível de artistas que
faziam um humorístico na Record, A Praça da
Alegria. Era um monte de gente do ramo para
fazer, como se diz, escada para a Dercy, se bem
que ela nunca tenha precisado de ninguém con-
tracenando para ser engraçada. Tinha o elenco,
mas não a história e o tempo continuava corren-
do. Foi aí que me interessei por um caso que
havia ocorrido na época e que vinha sendo co-
mentado na imprensa. Foi em Santos. Uma mu-
lher rica tinha um pacote de dólares guardado
numa gaveta. A empregada, muito tonta, fazen-
do a limpeza, viu aquele pacote, achou que era
coisa velha e jogou no lixo. Quando a patroa
descobriu, ficou louca e começou uma corrida
atrás do dinheiro, que tinha ido parar num lixão.
Achei que dava filme, ainda mais que poderia
usar não só a Dercy como o monte de comedian-
tes que queria que contracenassem com ela. O
filme é exatamente isso. A Dercy é dona de uma
butique e tem uma cliente vigarista, mas que
208
ela não sabe que não presta. A freguesa pede
que a Dercy sirva de intermediária na compra
uma estatueta pertencente a um japonês, que é
da Máfia. E lhe dá o dinheiro, uma bolada de 15
mil dólares que a Dercy põe na gaveta e a empre-
gada joga no lixo, como ocorreu na realidade,
em Santos.

Começa, a partir daí, uma história muito engra-


çada, de rolar de rir, mas que não fez sucesso.
Acho que, de todas as minhas fitas com o Massai-
ni, esta foi a que deu menos dinheiro - no caso
do Madona de Cedro, como a produção era da
Metro, ele não teve de investir. Aqui, investiu e
não teve bom resultado.

Você pode achar que o filme foi feito a toque


de caixa, porque havia aquele condicionamen-
to de tempo. Mas Se Meu Dólar Falasse não foi
feito de qualquer maneira, não. Foi feito no ca-
pricho. Naquele tempo, era comum que um fil-
me fosse feito em dois ou três meses, era assim
que se trabalhava. E este foi feito inteiramente
em São Paulo. Foi o meu único filme feito na
209
cidade. Vi outro dia na televisão e achei muito
engraçado. Tem um padrão muito bacana, uma
sofisticação visual, porque a Dercy é dona de
uma butique de luxo e tem aquelas clientes grã-
finas. A principal é a Zélia Hoffman, que era uma
atriz especializada nesse tipo de papel e que,
por sinal, fazia muito bem. Mas a Dercy não de-
cora texto. Nos outros filmes dela, era fácil, por-
que os diretores faziam planos curtos e ela preci-
sava fazer pouca coisa de cada vez. Mas eu gos-
to de plano-seqüência, gosto de carrinho e, por
isso, as falas eram maiores.
Tudo tinha de ser muito bem coordenado, para
que a câmera e os atores andassem no mesmo
tempo, no mesmo movimento, com sincronismo
de ação, de paradas, de diálogos. Eu ensaiava,
ajustava o foco, parecia que ia dar tudo certo
e... Pá - os atores diziam seus textos direitinho,
mas a Dercy, na vez dela, errava as falas e era
preciso começar tudo de novo. Aquilo começou
a cansar, não só a mim, mas à equipe inteira. Ela
me dizia que não tinha idade para ensaiar. E mais
- que, se o Massaini tivesse falado em ensaios,
ela não teria assinado o contrato. Isso terminou
210
criando um clima muito grande de tensão no
set. Acho que nunca tive isto com nenhum outro
ator.

Gosto do filme. Acho que Se Meu Dólar Falasse


é muito bom, como comédia. E, revendo, tenho
de admitir que os meus problemas com a Dercy
não aparecem em nenhum momento na tela.
Ela é uma comediante excepcional, tem a cara
do Brasil e o público se identifica com ele. Tem
coisas no filme que só podia fazer porque era a
Dercy. Ela esculhamba com tudo e as pessoas
riem mesmo quando percebem que são o alvo
das tiradas da Dercy. Acho até que Se Meu Dólar
Falasse tem um lado social. A questão do dólar
é importante, porque a moeda brasileira foi sem-
pre atrelada à americana. No filme, os mendi-
gos sonham em mudar de vida com os dólares,
que passam a representar a possibilidade de
mudança.

Quando comecei a desenvolver o argumento,


chamei, do Rio, um rapaz que trabalhava com
comédia e era muito talentoso, o Alexandre Pi-
211
res. Formamos uma boa dupla, um incentivan-
do o outro, e foi assim que criamos os mendigos
como um retrato bastante diversificado do Bra-
sil. Tinha até um que era psicólogo, que era o
chefe do grupo, todo cerimonioso. Era interpre-
tado pelo Borges de Barros, que no Praça da
Alegria fazia o Caro Colega. Você se lembra dis-
so? Era aquele morador de rua todo esculham-
bado, que recebia no banco da praça as maiores
personalidades e falava todo empolado, tratan-
do todo mundo de colega no programa de TV
(sua voz também é muito conhecida como o
dublador, no Brasil, do Dr. Smith, do seriado
americano Perdidos no Espaço) . Tinha também
a excelente Zilda Cardoso, como uma mendiga
briguenta; o Sady Cabral, como um velho filóso-
fo; o Milton Ribeiro, que fazia um detetive viga-
rista; e até o David Cardoso, que fazia sua estréia
no cinema. Fiz poucas comédias na minha carrei-
ra, só três, e acho que O Santo Milagroso pode
ser melhor porque é outro estilo, mais detalha-
do, mais inteligente. Mas, como comédia popu-
lar, acho Se Meu Dólar Falasse bom. Pena que o
público não tenha descoberto. Acho que é o tipo
212
do filme que mereceria ter feito sucesso não pelo
dinheiro que poderia render, mas pelo prazer
que se pode ter vendo a Dercy, o Grande Otelo
e toda aquela gente maravilhosa correndo atrás
de um pacote de dinheiro, que, inevitavelmen-
te, transforma a vida de todo o mundo.

Meu filme seguinte surgiu só dois anos depois e


foi o mais discutido da minha carreira, mas acho
importante destacar que, entre Se Meu Dólar
Falasse e Independência ou Morte!, eu montei
dois filmes que me deram muito prazer. Foram
dois filmes de época, duas adaptações de livros,
mas de naturezas distintas.

Ana Terra, de Durval Garcia, foi adaptado de O


Tempo e o Vento, do Erico Verissimo. A Marcha,
do Oswaldo Sampaio, teve por base o romance
do Afonso Schmidt. Um é mais intimista, o outro
mais épico. Acho Ana Terra um filme belíssimo
e até hoje lamento que o Durval não tenha tido
o reconhecimento que merecia. Poderia ter vira-
do um grande diretor.

213
Já A Marcha, que tinha Pelé como ator e um
ótimo elenco, acho que não tem tanta força dra-
mática, embora também seja bonito, com aquela
marcha de protesto dos escravos fugidos, no
momento em que a escravidão estava se acaban-
do. Montar filmes foi sempre uma grande satis-
fação para mim. E eu sempre gostei de ver os
filmes ganhando vida própria, tomando forma
na moviola, os meus e os dos outros, também.
214
Capítulo XII

Independência ou Morte!

Já vinha trabalhando com o (Oswaldo) Massaini


há muito tempo. E, então, em 1971, ele decidiu
que estava na época de se aposentar, mas antes
queria fazer um filme de despedida. Queria
encerrar a carreira com chave de ouro, com um
filme de grande categoria, de grande repercus-
são. E decidiu que seria Independência ou Mor-
te!, contando a história de Dom Pedro I e de
215
como ele proclamou a Independência, às mar-
gens do Ipiranga. O Massaini era esperto e deve
ter intuído que havia clima para um filme daque-
les. Havia, mesmo, uma onda de nacionalismo
muito forte, a partir da conquista do tricampe-
onato de futebol, no México.

Mas daí a dizer que o filme foi encomendado


pelo regime militar, que era um filme oficial do
governo... Não sei de onde veio essa intriga, mas
é pura balela, acho que preconceito, contra mim
e o Massaini.
Já vinha de longe, desde que aquele crítico do Esta-
do disse que éramos chanchadeiros, por ocasião
do incidente envolvendo Madona de Cedro. Vou
contar tudo sobre Independência ou Morte!, com
a mesma franqueza e honestidade com que tenho
falado sobre a minha carreira. Talvez eu seja acu-
sado de querer me retratar ou de puxar a brasa
para a minha sardinha. Só espero que me ouçam
e me deixem contar a minha versão.

Para fazer o grande filme que sonhava, Massai-


ni quis se cercar de um grupo de peso e come-
216
çou por contratar um historiador que era do Es-
tado de S. Paulo, o Péricles Pinheiro. Fomos os
três, o Pérciles, o Abílio Pereira de Almeida e eu
para o apartamento que o Massaini tinha no
Guarujá. Ficamos um mês inteiro enfurnados lá
dentro, lendo tudo o que havia sobre o episó-
dio e os personagens que queríamos retratar.
Era uma infinidade de livros, de artigos de jor-
nais e revistas. Líamos compulsivamente. Anotá-
vamos, cruzávamos informações. Nossas pesqui-
sas abrangiam alguns dos mais conceituados his-
toriadores que esmiuçaram a história do Impé-
rio brasileiro. Fomos selecionando fatos, figuras
e, desta maneira, montamos um esboço de histó-
ria para traçar o retrato fiel do período pré-im-
perial do Brasil. Terminada a fase do Guaru-
já, voltamos para São Paulo e aí ficamos, os três,
com o acréscimo de Anselmo Duarte e Lauro
César Muniz, tecendo a linha do argumento, que
eu mais tarde transformaria em roteiro, como
sempre fiz. Anselmo deu boas idéias, Lauro tam-
bém trouxe uma contribuição definitiva para o
argumento final. Fomos construindo um Dom
Pedro aventureiro e impulsivo, grande amante
217
das mulheres e rebelde quanto aos rumos que a
Coroa portuguesa queria imprimir ao Brasil.

Quando assumi o compromisso de realizar um


filme sobre os acontecimentos históricos ligados
ao processo de Independência do Brasil, confes-
so que, por alguns dias, fiquei preocupado e um
tanto assustado com tamanha responsabilidade.
Afinal, nunca, anteriormente, o cinema brasi-
leiro havia retratado um assunto tão específico,
tão cheio de características próprias, com perso-
nagens de comportamentos inusitados, com ri-
tos e cerimônias peculiares, com tramas e intri-
gas muito exclusivas dos personagens focaliza-
dos. Não havia, realmente, ninguém com expe-
riência anterior que pudesse auxiliar, por pouco
que fosse, no direcionamento da linha a ser esta-
belecida como estrutura da obra. Este foi o pri-
meiro grande obstáculo a ser vencido.

Mais até do que o roteiro, a fase de preparação


foi marcada por imensas dificuldades. Quería-
mos começar a filmar em fevereiro, depois do
carnaval, para estrear no 7 de setembro. Não
218
podíamos perder a data. Tinha de ficar pronto
para 7 de setembro, ainda mais que 1972 era o
ano do sesquicentenário da independência.
Acho que surgiu daí a idéia de que usaríamos a
máquina oficial. Bom, a filmagem atrasou princi-
palmente por causa do guarda-roupa. Não havía-
mos mensurado direito o que seria a necessida-
de de criar um guarda-roupa com dezenas de
milhares de peças, porque não era preciso vestir
apenas os protagonistas da história. Mesmo o
mais anônimo figurante no fundo da cena deve-
ria ter um guarda-roupa adequado. Quando nos
conscientizamos disso, começou um trabalho
insano de preparação dos figurinos. Levou dois
meses. A filmagem foi adiada e jogada para
abril, mas a data limite da estréia continuava a
mesma - 7 de setembro.

Para compensar o atraso, Massaini alugou um


casarão na Tijuca, no Rio, que virou o QG da pro-
dução. Vivíamos todos lá - artistas, técnicos, todo
mundo se hospedava naquela casa. Enquanto a
equipe de guarda-roupa costurava enlouqueci-
damente, eu, de minha parte, tentava dar solu-
219
ção a outro problema. Já vinha, há seis meses,
procurando os locais para filmar. Tenho a impres-
são de que rodei o Brasil inteiro em busca dos
locais apropriados, procurando vielas e palácios,
já que sairia muito caro criar uma cidade ceno-
gráfica. O tempo corria e nada de eu conseguir
os cenários que procurava. Até que, um dia, por
acaso, passando pela Rua Larga lá do Rio, que
agora se chama Marechal Floriano, eu vi o anti-
go Palácio do Itamaraty, do tempo em que o
Rio ainda era a Capital Federal.
Eu já conhecia o palácio por fora, do tempo em
que morava no Rio. Trabalhava na Tupi e o Ita-
maraty ficava no caminho. Quando revi aquele
casarão, foi como se um raio tivesse me atingi-
do. Fui lá e toquei a campainha. Apareceu um
porteiro que me disse que o Ministério das Rela-
ções Exteriores tinha ido para Brasília, mas tudo
ali dentro estava impecavelmente conservado.
Gastei um tempão convencendo o caseiro a me
deixar entrar, para ver aquelas relíquias. Quan-
do ele, finalmente, me facilitou a entrada, foi
para me deixar besta, porque ali dentro estava
220
inteirinho o cenário que eu precisava. Salões
maravilhosos, muitos salões com seu mobiliário
de época. Só precisava colocar os atores e a câme-
ra e começar a filmar.

Nos meus meses de pesquisas, havia visitado


muitos casarões, mas a residência oficial da famí-
lia real, a Quinta da Boa Vista, no Rio, virara
museu e o antigo palácio de Dom João VI, na
Praça XV, abrigava uma agência dos Correios.
Em São Paulo, o Ipiranga também era museu,
cheio de repartições que inviabilizavam qualquer
tentativa de usá-lo como cenário. E agora eu
descobria aquela beleza. Expliquei que era dire-
tor de cinema, que queria fazer um filme sobre
Dom Pedro I. Ele me informou que teria de pe-
dir autorização ao Ministério das Relações Exte-
riores. No mesmo dia, acionei o Massaini, dizen-
do que tínhamos o local. Ele fez a petição e real-
mente conseguimos a autorização para filmar
no Itamaraty, mas essa foi a única facilidade ofi-
cial que tivemos para fazer o filme que tanta
gente considera uma peça institucional do gover-
no militar. Vou dar um exemplo de como não
221
havia esse vínculo. Queria reproduzir o quadro
famoso em que Dom Pedro empunha a espada
e lança seu grito - Independência ou Morte! -
mas as autoridades não atenderam nosso pedi-
do de empréstimo das fardas dos chamados ‘Dra-
gões da Independência’ e nós tivemos de confec-
cioná-las, usando o quadro como referência.
Outra coisa que pedimos foi o direito de usar
uma carruagem que estava no Museu do Impé-
rio, também no Rio. Não houve jeito de conse-
guir a liberação. Estava chegando a hora da fil-
magem da cena e continuávamos à espera. O
filme oficial, na verdade, não tinha apoio al-
gum. Na véspera, tivemos que construir a nossa
carruagem na marra, trabalhando 24 horas
seguidas, no meio da rua, em frente ao casarão
da Tijuca.

Usamos uma daquelas charretes que ficavam


estacionadas diante do Museu de Petrópolis,
para passeios dos turistas. Em cima da charrete,
com cartolina e madeira compensada, recorren-
do ao isopor para criar os enfeites, o nosso cenó-
grafo e diretor de arte, que era o Campello Neto,
222
montou uma carruagem que ficou perfeita, fil-
mada com as cores do Rudolf Icsey, outro dos
grandes diretores de fotografia com quem traba-
lhei. Nem as fardas, nem a carruagem. Não con-
seguimos nada do governo, que se mantinha à
distância e foi muito bom assim. Quando o Inde-
pendência ou Morte! ficou pronto, mandamos
uma cópia para Brasília, para a censura, porque
todo filme precisava de aprovação para passar.
E foi aí que alguém viu e alertou o governo de
que havia um filme como o nosso, capaz de en-
grandecer os festejos do sesquicentenário da
independência. O presidente, que era o Gene-
ral Médici, pediu para assistir ao filme e nós fo-
mos em bloco até Brasília - Massaini, eu, o Ani-
bal, Tarcísio Meira, Glória Menezes, Abílio Perei-
ra de Almeida, Lola Brah e Fernando de Barros.
Chegamos e estava o staff completo - Médici,
Jarbas Passarinho, que era seu ministro da Educa-
ção. Foi aí que eles viram o filme pela primeira
vez e decidiram que iam participar do lançamen-
to. Foi o que houve - no lançamento, eles de-
ram apoio total. Até o noticiário da Hora do Bra-
sil criou um boletim diário para falar do Indepen-
223
dência ou Morte!

Nunca imaginei que o pessoal da crítica, os jorna-


listas de maneira geral, pudesse pensar que o
nosso filme foi feito para promover a ditadura.
Até compreendo a posição dessas pessoas. O
regime era antidemocrático, havia tortura, vio-
lência. Neste quadro, podia parecer que a utili-
zação do filme pelo governo fosse algo planeja-
do, mas não foi. Aconteceu, simplesmente. Vou
dar um exemplo. Agora mesmo comemoram-se
os 450 anos de fundação de São Paulo. Todo
mundo quis pegar carona na festa e você acha
que, por isto, todas essas entidades e pessoas
estão dando seu apoio à administração do PT,
que está na Prefeitura? Com a gente, foi a mes-
ma coisa. Queríamos aproveitar a data, o sesqui-
centenário da independência. Queríamos resga-
tar um sentimento nacional, não servir ao regi-
me militar. Talvez, se tivéssemos recusado o ofe-
recimento do governo para lançar o filme, isto
ficasse mais evidente, mas eu realmente não ti-
nha esse poder e nem sei como reagiria, se o
tivesse. Foi uma decisão do produtor, mas não
224
vou ser hipócrita de jogar a culpa no Massaini,
pois é claro que, depois de tanto esforço, de tan-
to murro em ponta de faca, eu também queria
que o filme fosse visto. Foi um erro, talvez, mas,
como no caso do Madona de Cedro, eu gostaria
que Independência ou Morte! fosse visto pelo
que está na tela e não por todas essas histórias
que são de bastidores.

Para que Independência ou Morte! conseguisse


ficar pronto para o 7 de setembro, tive de me
desdobrar, literalmente. Nos meses finais, eu fil-
Nas filmagens de Independência ou Morte! 225

mava o dia inteiro e à noite corria para o labora-


tório, onde ficava montando as cenas já filma-
das até de madrugada. Dormia duas ou três ho-
ras, apenas, e a data limite se aproximava. Não
sei como não morri de esgotamento. Mas tive o
meu castigo - quando voltei para casa, em São
Paulo, minha mulher pediu o divórcio. Na minha
cabeça, tudo isso está muito misturado. Gosto
de muitas coisas no Independência ou Morte! e
desgosto de outras.
Acho que conseguimos desenvolver um Dom
Pedro imaturo, inconseqüente, sem nenhum sen-
tido de responsabilidade monárquica e as pes-
soas nem percebem que ele é mais bon vivant
do que herói. Gosto da maneira como Tarcísio
Meira incorpora Dom Pedro e da dupla que ele
forma com a Glória Menezes, como a Marquesa
de Santos. Gosto do Dionísio de Azevedo como
José Bonifácio de Andrade e Silva. Trabalhei
muitas vezes com o Dionísio e ele foi sempre um
ator e tanto.
Maria Cláudia e Tarcísio Meira
226
Não gosto do seguinte - em todo filme biográfi-
co, você fica limitado a certos fatos, que não
podem faltar. É muito difícil fugir ao que já está
no imaginário das pessoas, porque senão elas
vão achar que você está mentindo ou não está
sendo fiel. Esta coisa oficialesca tem um nome.
Como é que é? Hagiografia? Mas veja - pesqui-
samos em muitas fontes e quase nunca encon-
tramos a mesma interpretação para certos fatos
essenciais. Por exemplo, um dos historiadores
que consultamos dizia que Dom Pedro veio a
São Paulo para impedir uma tentativa de revolu-
227
ção. Ele teria ido a uma festa, um banquete no
qual comeu alguma coisa que lhe fez mal. En-
tão, quando parou ali no Ipiranga foi por causa
de um desarranjo intestinal. Que coisa pouco
heróica, não? Outros historiadores invocam
motivos mais nobres para aquela parada. Quem
tem razão?

De alguma forma tomamos partido. Dom Pedro,


no filme, está de cócoras, e ainda lava a mão antes
de avançar para empunhar a espada e dar o grito.
Não mostrei um Dom Pedro de calças arriadas
atrás da moita porque aí seria desrespeitoso. Há
várias versões para o encontro dele com a Mar-
quesa de Santos. Escolhi a que me pareceu mais
cinematográfica - a da liteira, que vira o cenário
do namoro que mudaria a história do 1º império
brasileiro. O Dom Pedro de Independência ou
Morte! não é um herói épico. É popularesco, não
tem nenhuma classe e, na maior parte do tempo,
está mais interessado em sexo do que em políti-
ca. Nada disso é por acaso. Quando o filme saiu
na coleção de vídeo da revista IstoÉ, conversei com
o Inácio de Loyola Brandão, que escrevia o fascícu-
228
lo correspondente. O Inácio talvez tenha sido um
dos que criticaram Independência ou Morte! em
1972, porque ele me disse, com muita sinceridade,
que percebeu, revendo o filme, que havia muitas
coisas irônicas sobre o personagem e o status quo
da monarquia. Um dos meus livros de referência
é As Maluquices do Imperador, de Paulo Setúbal,
que mostra um Dom Pedro humano, devasso e
divertido. Um pouco dessas maluquices já está em
Independência ou Morte!, com o objetivo de
humanizar, não necessariamente desmistificar e,
menos ainda, ridicularizar Dom Pedro I.
Se o filme surgiu como homenagem, como re-
constituição de um momento importante da his-
tória do País, não faria sentido esculhambar.
Nem o Setúbal faz isso - mesmo quando crítica,
ele é amoroso com o Dom Pedro dele. Para mim,
toda a relação de Dom Pedro com a Marquesa
de Santos - e a Glória Menezes é impecável no
papel - faz dele um homem, mais do que um
herói. Se há uma personagem maior que a vida,
uma heroína, é a imperatriz Leopoldina, inter-
pretada pela Kate Hansen. Ela não é só a mulher
traída. É a digna, a patriota, mais afinada com
229
os visionários que sonham com a separação do
Brasil de Portugal do que da irresponsabilidade
do marido. Kate acrescentou a tudo isso sua bele-
za. É maravilhosa, criando a Imperatriz Leopol-
dina de maneira inesquecível e antológica.

Não há, em Independência ou Morte!, nada de


que me envergonhe ou que me deixe constran-
gido. Mas sei que a apropriação do filme pelo
regime militar foi uma maldição que vai fazer
com que ele nunca seja olhado pelo que é e sim,
pelo que fizeram dele.
Também fui julgado pelo que não fiz. Se tivesse
me oposto à utilização do filme pelos militares,
teria me transformado, quem sabe?, num mártir
do cinema popular. Mas aí teria morrido e não
sei quantos iriam ao meu enterro.

230
Capítulo XIII

A maldição do Zodíaco

Ganhei vários prêmios na minha carreira. Em


todas as categorias - melhor filme, diretor, rotei-
rista, melhor montador. A Morte Comanda o
Cangaço ganhou 8 Sacis, do jornal O Estado de
S. Paulo, prêmios Governador do Estado e o da
Prefeitura de São Paulo, que eram todos os prê-
mios importantes da época. Concorreu ao Globo
de Ouro e foi indicado pelo Brasil para concor-
231
rer ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Foi
indicado aqui, mas não foi selecionado lá. Não
digo que o filme merecesse, mas os americanos
têm essa antipatia por filmes brasileiros. É coisa
antiga. Todo mundo ganha Oscar, menos a gen-
te. Não acredito que seja por falta de mereci-
mento. Depois do Independência ou Morte!,
montei O Descarte para o Anselmo Duarte. Já
havia montado O Pagador de Promessas, mas
pela edição do Descarte ganhei a Coruja de Ouro
de 1973. Quero registrar aqui que Independên-
cia ou Morte!, pelos motivos aqui registrados,
não ganhou nenhum dos prêmios daquele ano
- nenhum! -, exceto o de qualidade da Embrafil-
me. O Descarte não foi um filme difícil de mon-
tar. Era uma trama de mistério, mais do que de
suspense, sobre uma mulher que recebe cartas
anônimas e ameaçadoras que, depois, se desco-
bre que foram escritas por ela mesma. Uma coi-
sa sombria, psicológica, com a Glória Menezes e
o Ronnie Von. O Descarte fez mais de um mi-
lhão de espectadores, o que significa que foi um
sucesso razoável. Também teve boas críticas. Até
onde me lembro, foi considerado um dos melho-
232
res filmes brasileiros da década.

Fiz a montagem de vários filmes no começo dos


anos 70. Montei até um filme de José Mojica
Marins, O Exorcismo Negro, que provocou escân-
dalo por suas cenas de horror muito fortes. E aí
me envolvi então num projeto que terminou
sendo desastroso na minha carreira. Foi Signo
de Escorpião, um filme de suspense, sobre um
astrólogo, o Professor Alex, que constrói uma
máquina para a leitura científica de horóscopos.
233
Ele convida um grupo de pessoas para a casa
dele, numa ilha, para testar o experimento. Co-
meça uma série de assassinatos no estilo de O
Caso dos Dez Negrinhos, de Agatha Christie. No
caso de Signo de Escorpião, são 12 pessoas, cada
uma de um signo do zodíaco, que ficam isola-
das na ilha inacessível e vão morrendo, incluin-
do o Professor Alex, que de suspeito passa a víti-
ma. Sobram no fim três personagens que se en-
treolham, um desconfiando do outro e a verda-
de vem à tona.

234
Sempre gostei muito dos filmes de Alfred Hitch-
cock. E sempre quis fazer um filme de suspense.
Cheguei à conclusão de que estava maduro para
encarar o projeto. Seria naquele momento ou
nunca. Comecei a desenvolver a história das pes-
soas que vão morrendo misteriosamente, por-
que há um assassino entre elas. Mostrei para o
meu irmão, o Sérgio, e ele sugeriu que eu relacio-
nasse as mortes aos signos do zodíaco, o que
me pareceu uma ótima idéia. Procurei o Omar
Cardoso, que era o maior astrólogo do Brasil,
para me dar assessoria.
Brasileiro gosta tanto de horóscopo que eu achei
que estava fazendo um grande negócio. Naquele
tempo, a Embrafilme era a grande financiadora
do cinema brasileiro e eu fiz o que nunca havia
feito antes. Fui ao Rio, pessoalmente, mostrar o
projeto de Signo de Escorpião à diretoria da
Embrafilme, que me antecipou parte do dinhei-
ro da produção. Anos depois, na época do (ex-
presidente Fernando) Collor, todos pintaram a
Embrafilme como o maior antro de corrupção,
mas no meu caso o que houve foi uma antecipa-
ção da verba da produção, para ser recuperada
235
na bilheteria. Todo o dinheiro que me antecipa-
ram, eu devolvi com as rendas do Iracema, qua-
tro anos depois.

Para fazer o filme, fundei uma produtora, a CSC


Produções Cinematográficas. O aspecto mais
interessante do filme, que acho que deve valer
até hoje, é que, em 1974, ainda não havia com-
putador e eu desenvolvi o modelo do que viria
a ser um computador para ser a engenhoca cien-
tífica do Professor Alex. Planejei, nos mínimos
detalhes, o que seria a máquina do filme, que
deveria fornecer os horóscopos eletronicamen-
te. Mais uma vez me vali do Miro Reis para execu-
tar o engenho. Até hoje me surpreendo com o
que fizemos, pois sempre gostei mais de suspen-
se e aventura do que de ficção científica. E Sig-
no de Escorpião tem esse lado futurista, que acho
bem logrado. A máquina é convincente, não é
ridícula. Campello Neto também foi muito vali-
oso no processo. Ele foi o grande cenógrafo que
já havia quebrado todos os galhos na hora de
construir o visual de Independência ou Morte!,
com todos aqueles problemas que tivemos. E o
236
Campelo fez outro trabalho sensacional na dire-
ção de arte de Signo de Escorpião. No elenco,
também reuni Carlinhos Lyra e a mulher dele, a
Kate. Não eram muito conhecidos no cinema e,
para contrabalançar, eu recorri a monstros-
sagrados do teatro e do cinema. Tinha o Rodol-
fo Mayer como o Professor Alex e o filme foi o
último que ele fez. Tinha a Maria Della Costa.
Aliás, foi por causa da Maria que filmamos em
Paraty. A trama se desenrolava numa ilha, junto
a uma praia e a Maria e o Sandro Polloni já ti-
nham o hotel deles, o Coxixo. Assim, era natural
que toda a equipe se hospedasse em Paraty e o
hotel virasse o QG da produção.

Tenho de reconhecer agora como as coisas po-


dem ser irônicas. Como foram irônicas contra
mim, especificamente. Havia feito dez filmes de
grande sucesso que arrecadaram muito dinhei-
ro para seus produtores e me deram conforto.
Investi tudo no Signo de Escorpião e perdi até o
último centavo do que investi.

237
O elenco de Signo de Escorpião
A ironia foi que, quando Signo virou um filme
de horóscopo, eu recorri logo ao papa do horós-
copo no Brasil, o Omar Cardoso, que era o maior
astrólogo da época e, para muita gente, é o
maior astrólogo que o País já teve. O Omar mora-
va num sítio em Campinas. Fui lá e falei com ele.
Omar ficou entusiasmado, achou a idéia fabu-
losa. Me levou para conhecer o sítio, no qual
havia montado um estúdio, onde produzia mate-
rial para mais de 50 jornais e não sei quantas
rádios do Brasil inteiro.

238
Wanda Cosmo em Signo de Escorpião
Fiquei impressionado quando vi umas dez pes-
soas numa mesa, separando cartas que eram tira-
das de dois sacos enormes. Ele explicou que era
a correspondência que recebia de todos os can-
tos dos Brasil. Era um mundo de gente pedindo
que fizesse horóscopo. Se eu ainda tinha algu-
ma dúvida sobre o potencial de Signo de Escor-
pião, acho que perdi ali.

Pôxa, pensei comigo, esse negócio é uma mina


de ouro. Quando o filme ficou pronto, o Omar
adorou e se prontificou a ajudar na promoção
239
do lançamento. Cheio de entusiasmo, ele me
falou: “Pode escrever, esse filme vai ser o maior
sucesso que já houve em cinema no Brasil”. E
ele me explicou por quê: “As mulheres brasilei-
ras não fazem nada sem consultar o horóscopo.
Elas escolhem os filmes que querem ver e elas
vão encher as salas”. Veja que Deus me casti-
gou, porque fui ganancioso e me deixei levar
pelo otimismo do Omar.

Lancei o filme primeiro no Rio, porque não ti-


nha data disponível em São Paulo e também
porque achei que seria legal chegar aqui já com
os números consagradores que o Omar dizia que
eu ia ter no Rio.

Fiquei mais de um mês por lá, trabalhando na


promoção. Saiu notícia em tudo que é jornal,
revista, rádio, TV. Fiz uma avant-première no
Hotel Nacional, na época, o hotel mais luxuoso
da cidade, com um auditório imenso, lotado de
gente bacana. Veio da própria direção do Hotel
Nacional a idéia de transformar aquilo num
evento. E eles decidiram que deveria haver um
240
show com um grande desfile de modas, esco-
lhendo uma coleção do Ugo Castellana, que já
era um estilsta famoso, com modelos que repre-
sentavam os signos do zodíaco. O Rotary Club
do Rio patrocinou o evento, que foi beneficen-
te. Cumprindo sua promessa, Omar Cardoso foi
apresentar o show. Ao ver aquele auditório lota-
do, acreditei na previsão do Omar. A essa altu-
ra, não pensava mais em Signo de Escorpião
como um filme. Havia virado uma mina de ouro.
Na manhã da estréia, levantei cedo e fui para a
porta do cinema, ali na Cinelândia.
241

Na premiére, com Omar Cardoso


O cinema começava a funcionar meio-dia. Deu
onze horas, onze e meia, meio-dia. Não entrava
ninguém. Olha, se entraram cem pessoas naquele
cinema o dia inteiro acho que foi demais.

Até hoje não entendi o que foi que aconteceu.


Foi um fracasso total, o maior da minha carrei-
ra. E não acho que tenha sido porque o filme
fosse ruim. Na sessão beneficente, as pessoas
chegavam para mim e falavam maravilhas, até
alguns críticos reconheciam qualidades na fita.
Mas, na hora de pagar para ver Signo de Escor-
242
pião, nenhuma daquelas pessoas que respeita-
va Omar Cardoso como guru do horóscopo quis
colocar a mão no bolso para pagar o ingresso.
Foi uma rejeição muito grande, uma coisa assim
homérica.

Olha, para resumir deixa só eu contar como foi


a estréia em Marília. Era a terra do Omar Cardo-
so, ele estava fora há um tempão. Propus que a
gente fizesse um grande lançamento em Marí-
lia para levantar a bilheteria. O Omar topou.
Fomos e ele ficou um dia inteiro dando entrevis-
ta na rádio, fazendo horóscopo das pessoas e
chamando todo o mundo para a estréia, que
seria à noite. A rádio não parava de receber tele-
fonemas. Era o dia do aniversário da cidade e
naquela noite haveria um super-show com artis-
tas da televisão e uma carreata pelas ruas prin-
cipais. Na hora da sessão, cadê o povo? Não en-
trou ninguém. Nem na terra dele. Não sei se
aqueles críticos que haviam elogiado o filme no
Rio estavam me bajulando, mas nos jornais eles
caíram matando. Para ser sincero, eu tive boas
críticas na minha carreira até O Santo Milagro-
243
so. Depois do Madona de Cedro, os críticos pare-
ce que se divertiam para saber quem iria bater
mais em mim. O caso de Signo de Escorpião foi,
de qualquer maneira, excepcional - quero dizer,
excepcionalmente ruim. Não adianta nem per-
guntar onde foi que errei.

Acho, hoje, que o erro maior foi ter caído naque-


la euforia produzida pela ambição. Foi uma lição
tardia que tive. Fiz um monte de filmes de suces-
so. Fiz outros ruins que até acho que mereciam
fracassar, embora tenha dirigido todos com o
mesmo empenho, o mesmo cuidado. O sucesso
vinha como conseqüência. O único filme que eu
fiz pensando no sucesso foi um desastre. Está
certo. O cinema é um ofício, uma vocação. Não
deve ser só uma mina de ouro. O sucesso é neces-
sário porque te qualifica para seguir filmando.
Ninguém investe num diretor de filmes que não
dêem nada. Tem de ter algum retorno. No caso
de Signo de Escorpião, o único retorno que tive
foi uma tremenda frustração. E até o meu dinhei-
ro foi para o ralo. O filme teve míseros 23.015
pagantes. Só para comparar, Independência ou
244
Morte! fez mais de 10 milhões de espectadores.

Não adiantou nem tentar um título alternativo,


A Ilha dos Devassos, algum tempo depois. Nem
como fita de sacanagem o público foi ver Signo
de Escorpião.
Capítulo XIV

No olho do furacão

Em 1975, estava meio jogado às traças, amargan-


do o fracasso de Signo de Escorpião, quando
recebi a proposta para fazer O Homem de Pa-
pel. A idéia foi do Ezaclir Aragão, um jornalista
de Fortaleza que gostava muito de cinema. Aliás,
nem só de cinema - o Ezaclir gostava de tudo
que é show bizz, promovia shows, essas coisas.
Um dia ele convenceu um empresário do Ceará,
245
o Edson Queiroz, a investir dinheiro na produ-
ção e desceu para São Paulo em busca de um
diretor. Procurou primeiro o Anselmo (Duarte),
que estava filmando, não podia nem pensar em
aceitar, e indicou meu nome. Estava parado, sem
nenhuma perspectiva imediata e topei na hora.

Havia feito A Morte Comanda o Cangaço no


Ceará, mais exatamente em Quixadá, lá no ser-
tão e agora ia filmar em Fortaleza. Nunca mais
tinha ido ao Ceará, nem para promover os mui-
tos filmes que fiz depois do Morte. Fui e fiquei
na casa do Ezaclir, escrevendo o roteiro. Ele tinha
uma história sobre um repórter policial cansado
de ser espezinhado na redação e que forjava
uma grande denúncia a partir de informações
falsas sobre um caso de contrabando. Desmas-
carado, o cara resolvia investigar por conta pró-
pria, mas os contrabandistas descobriam e o
abandonavam desacordado, de arma na mão e
com um cadáver do lado. Esse personagem se
chama Carlos e o tempo todo tenta se passar
por herói, pelo menos aos próprios olhos. Quan-
do tudo fica contra ele, o Carlos se revela como
246
é - um fraco, covarde, o homem de papel do
título.

Se não era autobiográfica, a história tinha a


vivência das redações que Ezaclir freqüentara e
era alimentada por tipos verdadeiros, que ele,
com certeza, havia conhecido. Havia uma histó-
ria, portanto, mas não um roteiro. Fiquei um mês
em Fortaleza, escrevendo o roteiro e procuran-
do locações. Como as duas coisas eram feitas
simultaneamente, já desenvolvia o tratamento
de algumas cenas em função de locais que me
atraíam e pensava em utilizar. Acho que saiu um
filme bem aceitável, um policial que não é ruim,
que é ágil e possui um elenco muito bom. Conse-
gui reunir Ziembinski, Milton Moraes e José
Lewgoy. Tinha também a Terezinha Sodré e a
Vera Gimenez, que trouxe o Jece Valadão, casa-
do com ela, para o projeto. Embora seja poli-
cial, o filme é divertido. Pode ser definido como
uma comédia de suspense.

247
No Ceará fez grande sucesso de público, mas só
lá. Em São Paulo e no Rio, fez bilheteria medío-
cre. Como se trata de um filme de muita ação,
escolhi as locações para mostrar o que havia de
mais bonito em Fortaleza.

E comecei O Homem de Papel com um plano


geral, com uma grua que desvenda a cidade, a
partir do cais do porto. Usei os guindastes do
próprio porto para fazer essa grua, que saiu
bonita. Filmei também muitas perseguições em
Fortaleza e elas eram acompanhadas por um
248
numeroso público que se divertia acompanhan-
do a filmagem de longe. Acho que foi por isso
que O Homem de Papel fez sucesso no Ceará -
as pessoas de Fortaleza queriam se ver na tela e
chamavam parentes e amigos. Existe na cidade
um bairro só de mansões e eu filmei acho que
na mais imponente delas - a casa de um sena-
dor, um homem muito rico. Também utilizei
como cenário outra casa de alto luxo que tinha
até cascata na sala. No filme, era a casa do Ziem-
binski, um mafioso de alta estirpe, que se cerca
de garotos bonitos porque só gosta de rapazes.
Era uma coisa um pouco ousada, mas na qual
não carregamos muito para evitar problemas.
Houve até críticos que, por causa desse perso-
nagem homossexual, acusaram o filme de ser
homófobo. Nunca encarei a história dessa ma-
neira, mas já que havia a figura tentei fazê-la
verdadeira, com a cumplicidade do Ziembinski,
que tem, como ator e diretor, uma folha corrida
extraordinária de serviços prestados ao cinema
e ao teatro brasileiros.

Entre a preparação, a filmagem e a finalização


249
de O Homem de Papel, fiquei uns seis meses no
Ceará. Como a Universidade Federal tinha uma
moviola, comecei lá mesmo a montagem e fui
retardando a minha volta para São Paulo. Fui
me deixando contagiar pelo clima, a cultura e
comecei a pensar que o Ceará merecia outro fil-
me, não uma fita urbana de ação como O Ho-
mem de Papel, mas alguma coisa encravada nas
tradições e na história locais. Qualquer pessoa
que visite o Ceará percebe a importância que
tem, para o Estado, o culto a Iracema, a heroína
criada pelo escritor José de Alencar.
De novo fui buscar apoio da Embrafilme, que
me antecipou o financiamento, mas com mui-
tas exigências de garantias. A Embrafilme finan-
ciou cerca de 30% do orçamento de Iracema,
para eu iniciar a produção, mas com aquilo eu
não conseguia filmar, até porque o dinheiro não
saía de uma só vez. A Embra dava 10% antecipa-
do, na assinatura do outro, mais 10% contra a
apresentação do copião e os 10% restantes na
entrega da cópia final. Então, eu teria só 10%
para iniciar Iracema.

250
Com aquilo, não faria nada. Não tinha dinheiro
meu para investir, porque havia perdido tudo
em Signo de Escorpião, e não queria perder a
data redonda. Iracema poderia ficar pronto a
tempo de pegar carona nas comemorações do
centenário da morte de José de Alencar. Pressio-
nado, sentindo que não poderia fazer o filme,
vendi 20% da minha participação na produção
para um distribuidor. Consegui filmar, mas na
fase de finalização fiquei de novo a zero e aí só
me restou vender mais 10% do Iracema para
exibidores de São Paulo, a empresa Serrador.
251
No final, sobravam só 40% do filme, mas não
eram meus. Por lei, ainda havia a parte dos donos
das salas, que foi a que me comeu mais dinhei-
ro. Restaram uns 30%10%, que eu para quitar a
dívida que ainda tinha com a Embrafilme, por
causa de Signo de Escorpião. Ao contrário do
meu filme com Omar Cardoso, Iracema foi um
estouro de bilheteria e deu um ótimo retorno
para os investidores.

Filmei com a Helena Ramos, que já era famosa


nas pornochanchadas, era um mito do cinema
252
da Boca do Lixo, mas não a escolhi por apela-
ção, não. Tem o nu das índias, mas de maneira
geral a fita é muito lírica, muito fiel ao romance
do Alencar e tanto que nem teve problemas com
a censura. Foi proibida só até 14 anos. O que eu
não sabia é que estava comprando outra briga
fenomenal. Fui parar no olho do furacão. Tem
gente que até hoje me odeia por causa de Irace-
ma, achando que fiz o jogo dos militares. Acon-
tece que, enquanto eu lá, no Ceará, me conven-
cia de que seria interessante contar a história
de Iracema, surgia outra Iracema, a de Jorge
Bodansky e Orlando Senna. Era a história de uma
jovem prostituta usada por posseiros e caminho-
neiros ao longo da Transamazônica, a grande
estrada rasgando o Brasil que os milicos consi-
deravam uma peça importante de integração na-
cional. Essa Iracema foi proibida pela censura e,
aí sim, os intelectuais que já não tinham gosta-
do do Independência ou Morte!, achando que
eu me ligara à ditadura, reagiram contra a mi-
nha Iracema. Surgiram histórias de que eu tive
interferência nesse episódio de censura e eu não
tive. Juro por Deus, palavra de honra. Quando
253
me falavam da outra Iracema, eu nem sabia
o que era. Estava inteiramente ligado no meu
filme.

Iracema, como eu já disse, foi um grande suces-


so de público e eu também gostei de fazer o
filme em homenagem ao Ceará, que me acolheu
tão bem, mas não tenho uma lembrança muito
boa daquela experiência. Isso se deve um pouco
à maledicência que cercou o filme, mas assim
como precisava de uma mulher bonita para fa-
zer a Iracema, e a Helena Ramos preenchia o
requisito, também precisava de um ator que ti-
vesse um tipo para ser o português. E aí eu esco-
lhi o Tony Correia, que não era exatamente um
ator, era um tipo bonitão que havia feito uma
novela de sucesso na TV Globo. O Tony estava
na crista da onda. Era, assim, uma coisa fora de
série. Durante toda a filmagem, tínhamos de
manter o mulherio à distância, porque as fãs
estavam loucas pelo Tony. A popularidade dele
era tremenda, mas também não foi por isso que
o escolhi. O Tony é português, como o Martim,
e eu queria colocar um ator de Portugal no pa-
254
pel. O Tony vinha a calhar, embora não estives-
se à altura da importância do papel. Do ponto
de vista comercial, ele somou e foi importante.
Ainda estávamos no set de Iracema e o Tony fica-
va martelando o meu ouvido com uma história
que queria filmar, sobre um aristocrata portu-
guês de passagem pelo Brasil e um típico malan-
dro carioca, que se conhecem a caminho do autó-
dromo, ficam amigos, descobrem que têm o mes-
mo sonho e resolvem concretizá-lo. Os dois que-
rem ser pilotos de automobilismo. O Tony dizia
que seria fácil levantar o patrocínio, porque
namorava uma garota e o pai dela, muito seu
amigo, era presidente do Automóvel Clube do
Brasil, uma entidade com ligações em todo o cir-
cuito automobilístico nacional. Tony me garan-
tiu que seria fácil fazer o filme só com merchan-
dising e eu falei para ele: “Se você consegue,
ótimo, a gente faz, mas não conta comigo, por-
que não sou bom nesse negócio de buscar patro-
cínio e nem gosto”. O Tony cumpriu a parte dele
e nós terminamos fazendo Os Campeões só com
merchandising, principalmente da Volks, e uma
pequena parte de dinheiro dele. Neste sentido,
255
foi uma experiência inédita em minha carreira.
Assino sozinho a direção, o roteiro e a monta-
gem e o Tony tem crédito como co-produtor e
autor da história. Ele até fundou uma empresa
para fazer o filme, a Adepi do Brasil.

O mais engraçado é que o Tony quis contratar


só gente da Globo. Ele tinha trabalhado lá e
achava que o segredo do sucesso era usar o pes-
soal famoso da TV no filme. Os Campeões é,
assim, cheio de artistas da Globo e eu nem me
queixo se eles são bons ou ruins.
256
257
O problema é que eram muito ocupados na
emissora, o que criou problemas que rebenta-
ram nosso cronograma de produção. Foi o caso
do Marcelo Picchi, que estava no elenco de uma
novela de época, na qual aparecia com barba.
Começamos a filmar com o Marcelo daquele jei-
to. ‘Não tem problema, vamos ter um piloto
barbudo’, pensei comigo. No meio da filmagem,
acabou a novela e a Globo escalou o Marcelo
para outra, na qual ele aparecia sem barba.
Criou-se o problema. Como a gente filma fora
de ordem, não podia ter o Marcelo ora barbudo
258
ora sem barba, em cena. A solução foi arranjar
uma barba postiça, que sou obrigado a admitir
que não ficou muito convincente. Todo dia ocor-
riam essas coisas.

Armando Bogus estava no elenco e fazia um


papel importante, mas aí a Globo o escalou como
principal de uma novela e o Bogus não teve mais
tempo para a gente. Foi um sufoco continuar
filmando nas folgas dos atores na Globo, ainda
mais que era uma filmagem complicada, com
cenas em autódromos de Porto Alegre, do Rio,
de São Paulo e Brasília. Considerando-se o que
foi a dificuldade, acho até que saiu passável, mas
não vou ser louco de dizer que Os Campeões é
um bom filme.

É apenas uma comédia razoável, mas é muito bem-


feita. Conseguimos filmar as corridas com a parti-
cipação de pilotos profissionais, que nos ajudaram
a resolver todos os problemas que uma filmagem
desse tipo consegue colocar. No filme, há duas
categorias de carros de corrida. Tem o carro co-
mum, que a gente chama de stock-car, e o carro
259
incrementado, especial para as pistas. A Volks tinha
naquele tempo uma prova que chamava de
Fórmula V. Era um carro de disputas em todo o
Brasil, um pouco menor do que o da Fórmula Um,
mas que tinha as suas escuderias e as suas corridas
específicas. Contratamos os pilotos, alguns até
bastante conhecidos, e mandamos ver. Só que não
era fácil acompanhar aqueles feras na pista. Des-
montamos uma perua Variant e adaptamos nela
um tablado, no qual iam a câmera e os técnicos.
Eu mesmo ia em cima daquilo, todo amarrado para
não cair.
E a gente ia numa corrida louca atrás ou na frente
dos carros. Sempre gostei de pôr ação nos meus
filmes, mas nunca havia feito isso com a velocida-
de de Os Campeões. Para quem gosta de aventu-
ra, como eu, foi divertido de fazer. Essa parte do
filme me parece, ainda hoje, realmente muito boa.
O que eu não sabia é que estava me despedindo
do cinema. Já se passaram mais de 20 anos e eu
não consegui tornar viável nenhum dos projetos
que tinha e tenho para cinema. Ocasionalmente,
colaboro nas produções do Anibal (o produtor e
diretor Anibal Massaini Neto, filho de Oswaldo
260
Massaini). Mas fiz TV e essa é outra experiência
que vale relatar.
Capítulo XV

A Televisão

Sempre me considerei, essencialmente, um ho-


mem de cinema. Pinto hoje, por lazer, umas pai-
sagens, mas é só como distração. E, de vez em
quando, ainda ponho no papel idéias para rotei-
ros que, a esta altura, talvez não consiga mais
realizar. Abandonei O Cangaceiro por motivos
de saúde e o único filme que tentei fazer, nos
últimos anos, sobre o Anchieta, também tive de
261
abandonar por falta de investidores. Não sou
bom de sair por aí pedindo dinheiro, mas não
me queixo.

Levo a vida satisfeito com os dois filhos que só


me deram alegrias na vida. O Cláudio Fernando
mora em São Paulo, tem a casa dele, mas nos
encontramos seguido. A Carmem Flávia, minha
filha, se casou com um americano, Jack Branca-
to, e mora nos EUA. Adquiriu a cidadania ameri-
cana e não volta mais para o Brasil. Tem a vida
dela lá, com meus três netinhos - Martha, Vin-
cent e Alexander. Vou sempre visitá-los em Nova
York para matar as saudades e renovar as ener-
gias desgastadas com a idade. O cinema foi sem-
pre a minha praia, mas tive duas experiências
na televisão. A primeira foi logo depois que dei-
xei de trabalhar com o (Oswaldo) Massaini.
Quando foi? Lá por 1973-74. Eu tinha um amigo
desde o tempo de Campinas, o Irvando Luiz, que
era produtor de TV. Me convidou para fazer um
humorístico.

Havia, na época, um programa de sucesso cha-


262
mado Só o Amor Constrói, que era uma chora-
deira danada, uma baboseira, lá na Record e ele
me chamou para fazer Só o Humor Destrói, que
era para ser um deboche do outro programa.
Agüentei uns três meses, fiz dez programas, no
máximo, e aí parei. Era na época em que a Re-
cord estava na pior. Não tinha dinheiro, não
pagava ninguém e, para receber, você tinha de
brigar, o que nunca foi uma coisa fácil para mim.
Gostei da experiência, porque era novidade, era
tudo uma loucura, mas nunca me conformei
muito com a idéia de que o humorístico tinha
de ser feito no estúdio. Queria levar o progra-
ma para a rua, mas não dava porque não havia
dinheiro. Olha, só para ter uma idéia, no dia da
estréia, queria iniciar o programa com o apre-
sentador em close, depois afastava a câmera e
ele aparecia de corpo inteiro, vestindo smoking.
Era uma brincadeira que eu queria fazer para
contrastar com os quadros popularescos que vi-
riam a seguir. Os humorísticos da Record eram
na linha da Praça da Alegria, só com gente po-
bre, mendigos, e eu queria, para variar, fazer rir
com um sujeito vestido de gala. Chegou a hora
263
da gravação e o que eu encontrei? O meu apre-
sentador vestido como um marginal. Perguntei:
‘Cadê o smoking?’ E ele respondeu - ‘Tenho, mas
não trago, porque não me pagam.’ Era tudo as-
sim. Tive que botar a mão no bolso e colocar
dinheiro meu para o cara ir buscar o smoking
em casa, porque também sou teimoso e decidi
que, sem smoking, não haveria programa.

Outro dia, quis fazer a cena humorística numa


praça com o mendigo de Se Meu Dólar Falasse.
Não me lembra mais qual era a piada, mas ele ia
entrar comendo galinha. Na hora de gravar a
cena - cadê a galinha? ‘Ué, não compraram?’
Não, porque a produção não tinha dinheiro. De
novo, coloquei a mão no bolso e usei o meu
dinheiro para comprar galinha assada no barzi-
nho da esquina. Era assim, sempre. Então, não
dava para se fazer coisa nenhuma, nem eu ia
ficar pagando para trabalhar. A falta de dinhei-
ro era fatal para as nossas ambições de fazer um
programa decente, divertido, mas o elenco era
muito bom, tinha gente talentosíssima, como a
Zilda Cardoso e o Rogério Cardoso. Ele come-
264
çou comigo. Era legal, era novinho e muito en-
graçado. Não dava para ficar sério vendo o Rogé-
rio trabalhar. Mais tarde, ele conseguiu se desen-
volver na Globo, obteve o reconhecimento que
merecia e eu confesso que senti a morte dele.

As pessoas eram ótimas, mas não dava para


agüentar. Você dizia para o cameraman: ‘Vamos
puxar um pouquinho a câmera, para lá ou para
cá’. E o cara respondia: ‘Não dá porque está tudo
preso com arame e esparadrapo.’ Era um negó-
cio inacreditável mesmo.
Minha segunda experiência na TV foi na Ban-
deirantes, em 1986, com o especial A Guerra dos
Farrapos. Esta foi feita no capricho, com condi-
ções tão boas como poucas vezes tive até no cine-
ma. Eu tinha outro amigo desde que comecei
no cinema. Era o Waldir Bonnas, um técnico de
som que fez vários filmes comigo. Ele agora era
direção artística do Canal 13 e me chamou para
dirigir um especial escrito por um gaúcho ilus-
tre, o Barbosa Lessa, que era historiador, para
homenagear a Revolução Farroupilha. Definido
o projeto, o Waldir disse: ‘Para fazer um troço
265
desses, só tem, uma pessoa, o Carlos Coimbra.’
Topei. Achei que seria uma coisa bacana. O Bar-
bosa escreveu um argumento que eu transfor-
mei em roteiro, como sempre fiz na minha carrei-
ra. E me mandei para o Sul com o Bonnas, para
escolher as locações em toda aquela região onde
ocorreu a Guerra dos Farrapos. Percorri aquelas
cidades todas - Piratini, São Gabriel, Triunfo...

E escolhi São Gabriel por um motivo simples. No


início, mais do que A Guerra dos Farrapos, a idéia
era fazer A República das Carretas, porque os
farrapos ficavam rodando o Rio Grande de carre-
ta, para não serem pegos pelas forças governis-
tas. E iam de um lado para outro de carreta,
aquelas carretas lindas que existem lá no Sul.
Decidi que as carretas seriam as personagens
mais importantes da minha trama, mas aí, veja
como são as coisas, a emissora foi buscar patro-
cínio e quem deu o dinheiro foi o Leonel Brizo-
la, que na época era Governador do Rio. E o
Brizola insistiu que não se chamasse A Guerra
das Carretas, tinha de ser A Guerra dos Farra-
pos, embora as carretas continuassem presen-
266
tes o tempo todo nas duas horas do especial.
Como São Gabriel era o lugar que tinha mais
daquelas carretas antigas, foi lá que instalamos
a base da produção e gravamos a maior parte
das cenas.

A epopéia dos farrapos é uma história muito


bonita, cheia de aventura, de amor e idéias no-
bres, sobre liberdade e organização social. Hou-
ve agora essa minissérie da Globo, A Casa das
Sete Mulheres, que fez um sucesso merecido.
Meu Bento Gonçalves foi o Nelson Xavier. Não
era o mais indicado para o papel, o que não des-
merece o talento do Nelson. Ele é um ótimo ator,
mas eu não conseguia vê-lo como Bento Gonçal-
ves, como tinha visto, por exemplo, o Tarcísio
Meira como Dom Pedro I. Falei com mais de 50
atores e atrizes e todos achavam a coisa interes-
sante, mas declinavam para não se indispor com
a Globo. Tive de me contentar com os que esta-
vam fora da Globo ou escanteados. Aí, resolvi
usar o máximo de gaúchos possível. Convidei a
Maria Della Costa, que é gaúcha, mas ela não
aceitou, achou que o papel era sem importân-
267
cia. Chamei o Ênio Gonçalves para o segundo
papel em importância e a Aldine Müller para
ser Anita Garibaldi. Ambos são gaúchos. Colo-
quei nos demais papéis inúmeros atores e atri-
zes de Porto Alegre.

Para as cenas de batalha, contei com uma ajuda


excepcional - todo o regimento Osório foi colo-
cado à minha disposição. Eram cavaleiros, ou
cavalarianos, como se diz por lá, muito bons. São
caras que têm um entendimento muito grande
com os cavalos e formam uma coisa só. Gravei
com câmeras de vídeo, naquele videotape anti-
go. E, apesar dos recursos, encontrei dificulda-
des pelo seguinte - a Bandeirantes, naquele tem-
po, não tinha nenhum programa desse tipo. Não
fazia novela, teleteatro, nada. Como conseqüên-
cia, não tinha formado quadros especializados
em nada. Não dava para contratar profissionais
de outras emissoras, muito menos da Globo.

Me deram os melhores operadores de câmera


que tinham, mas eles eram inexperientes, pelo
simples fato de que nunca haviam feito nada
268
daquela grandiosidade. Meu maior problema foi
convencer aquela gente toda de que era preci-
so ensaiar. Queria usar planos-seqüências, e ti-
nha as câmeras de vídeo para isso, mas precisa-
va de sincronia dos atores com a câmera. Então,
tinha de ensaiar, mas ninguém estava habitua-
do a isso. O tipo de TV que eles faziam era jor-
nalístico. Você vai com a câmera e pronto. Se é
entrevista, liga a câmera, o sujeito fala e não
tem repetição. É pá-pum. E eu queria usar uma
linguagem de cinema, usava três câmeras fixas,
com enquadramentos e funções diferentes,
numa linguagem de cinema. Foi duro conven-
cer aquele pessoal, mas eles se conscientizaram
e aí ficou legal. No fim, veio todo mundo me
agradecer - ‘Olha, desculpa, no início a gente
não sabia, mas não daria para fazer essas coisas
sem ensaiar.’

Já tinha usado a grua na cena do porto em O


Homem de Papel, mas não era grua de verdade.
No Madona de Cedro, também havia sido uma
grua improvisada. No Guerra dos Farrapos, não.
É grua de verdade, com toda aquela movimen-
269
tação possível numa câmera alta, que eu usava
principalmente nas batalhas ou para mostrar os
deslocamentos dos cavaleiros. E combinava a
grua com a zoom - ou seja, precisava de ensaio
para fazer à minha moda.

Devo ter errado muito na minha carreira, mas


sempre lutei para fazer as coisas do meu jeito,
mesmo quando trabalhava para os outros.

O cinema é uma coisa maravilhosa, mas também


é frustrante, porque quando você completa um
filme vai assisti-lo, descobre um monte de coisas
que podiam ser melhores ou podiam ser diferen-
tes. É inevitável - acho que todo diretor só conse-
gue ter o seu filme ideal na cabeça. Hoje em dia
até que ficou mais fácil. Você tem o monitor de
vídeo para ver exatamente como a cena está sain-
do, mas antigamente, você podia preparar tudo
nos mínimos detalhes, mas quem via era o opera-
dor de câmera, porque ele é que estava com o
olho no visor. Já tive muita surpresa na minha vida
quando fui ver o copião. Coisas que pareciam ex-
traordinárias não saíam tão boas assim e outras,
270
pelo contrário, que você era capaz de jurar que
eram ruins, essas saíam boas.

No meu caso, que sempre gostei de misturar


carrinho e zoom, tem coisas que te dão vontade
de sair gritando, porque ficam pavorosas. Duvi-
do que exista um diretor que se considere satis-
feito com o que fez. Eu não. Cometi muitos erros
e, embora existam acertos para equilibrá-los, o
conjunto todo me deixa insatisfeito e até mes-
mo amargurado por coisas que aconteceram.
Uma coisa que sempre perguntam é: Qual o teu
melhor filme? Diretor tem sempre uma respos-
ta padrão. Filme é como filho, não dá para esco-
lher. Mas é bobagem. Todos temos os filmes que
consideramos melhores ou que preferimos. No
meu caso, deixa eu ver qual é... A Morte Coman-
da o Cangaço é um dos melhores, não sei se te-
nho um de preferência, mas o Morte, com cer-
teza, é um dos meus melhores filmes. Com os
outros talvez seja mais ambivalente - tem coisas
que eu gosto muito e outras que não gosto.

No limite, tendo de escolher, acho que os três


271
preferidos são o Morte, Madona de Cedro e Inde-
pendência ou Morte, mas também gosto de Lam-
pião, o Rei do Cangaço, Santo Milagroso, Coris-
co e Dadá, Signo de Escorpião e Iracema. Reava-
liando aqui a minha carreira, fica muito claro,
para mim, que nunca tive a pretensão de ser o
autor intelectual dos filmes que fiz. Mas eles são
meus, não tenho dúvida. Não sei se os outros
encontram, mas sei que há uma marca minha
em cada um deles. Essa questão da autoria é
engraçada. A única fita que fiz e foi absoluta-
mente minha, porque produzi, escrevi, dirigi,
montei e escolhi o elenco sozinho, foi Signo de
Escorpião. Não existe ali a mão de ninguém. Foi
um tremendo fracasso de público e, para um cara
que sempre quis dialogar com o público, foi uma
frustração. Mas Signo de Escorpião, sem levar
em conta o sucesso ou não, é um dos meus fil-
mes de que mais gosto. Realizei com ele meu
sonho de fazer um policial, uma fita de misté-
rio. Tenho outros sonhos que não consegui rea-
lizar no cinema.

Fui sempre muito ligado à música, desde o coral


272
na escola e, depois, na minha fase de cantor e
diretor de programas de rádio. Muitas vezes tive
vontade de dirigir um musical, mas não tive
chance. Logo depois do Independência ou Mor-
te! cheguei a trabalhar um pouco no projeto de
adaptação de Lo Schiavo, que seria baseado em
Carlos Gomes. Queria fazer um filme atualiza-
do, no estilo de Carmen Jones, do Otto Premin-
ger, mas não deu.

Trabalhei com o (maestro Gabriel) Migliori, co-


loquei muita música de raiz nos filmes, princi-
palmente nos de cangaceiros. Mas a verdade é
que, embora a música seja importante nos fil-
mes que fiz, ela é sempre funcional, é uma mú-
sica de trilha sonora. O musical foi um sonho
que fiquei devendo a mim mesmo.

273
274
Artesãos e autores
por Paulo Emílio Salles Gomes

A classificação dos cineastas em artesãos e artis-


tas, ou melhor, autores, é bastante arbitrária,
mas oferece vantagens expositivas, e apesar de
excessivamente simplificadora, reflete razoavel-
mente a natureza dos homens que fazem filmes.
Usada com as devidas precauções, instaura cer-
ta ordem. Ninguém ousaria afirmar, por exem-
plo, que John Ford é apenas um artesão, mas
evidentemente ele é muito menos autor do que
275
Orson Welles. A divisão não implica em hierar-
quia de valores. André Cayatte é incomparavel-
mente mais autor do que Jacques Feyder, porém
nunca fez um filme tão bom quanto a artesanal
Kermesse Héroique.

O artesão, mesmo quando possui autoridade no


esquema da produção, é um homem com pro-
fundo espírito de equipe, modesto participante
de uma obra de expressão coletiva, ao contrário
do autor, que procura sempre dar relevo à sua
personalidade.
Este último é mais moderno, pois participa da
concepção individualista, relativamente recen-
te, da obra de arte. O artesão aproxima-se mais
dos fabricantes de epopéias e catedrais.

As noções de artesão e autor não se aplicam exclu-


sivamente aos que exercem na cinematografia as
funções de diretor, mas também aos produtores
executivos, roteiristas e argumentistas, abrangen-
do ainda, de forma mais complexa, os encarrega-
dos de tarefas técnicas. A associação automática
entre filme e o nome do diretor é fruto da conven-
276
ção. O papel de figura criadora central freqüente-
mente escapa ao diretor, em benefício das outras
categorias profissionais. Em qualquer caso, certo
tom do filme depende da predominância do arte-
sanato ou da autora. A presença numa mesma
produção de artesãos e autores com personalida-
de e autoridade equivalentes é uma fonte de con-
flitos com resultados nem sempre desfavoráveis.
Os artesãos harmonizam-se entre si facilmente.
Uma discrepância entre artesão e autor em geral
prolonga-se mais, porém pode ter efeitos benéfi-
cos para ambos e para a obra. As que mais se apro-
fundam são as divergências entre autores, quase
sempre fatais para o filme.

A obra de artesão tende a ser social, não no senti-


do de crítica revolucionária ou reivindicadora,
mas como expressão de idéias coletivas já estru-
turadas. A autoral tem inclinação psicológica e
sugere uma natureza humana conflitiva. O fil-
me artesanal coaduna-se melhor com moldes
clássicos ou acadêmicos, o de autoria é românti-
co ou vanguardista. O mundo exterior, os outros,
existem objetivamente para os cineastas artesa-
277
nais. Quanto aos autores, eles debatem, sobre-
tudo os seus problemas, debatem-se neles, con-
fessam.

Dois nomes da atualidade cinematográfica brasi-


leira, Carlos Coimbra, diretor de A Morte Coman-
da o Cangaço, e Trigueirinho Neto, realizador
de Bahia de Todos os Santos, ilustram essa or-
dem de considerações. Eles facilitam bastante o
trabalho do comentarista, pois se apresentam
deliberadamente, em declarações públicas ou no
comportamento cotidiano, um como artesão e
o outro como autor. Coimbra dá a impressão de
ser modesto, preciso, cauteloso, de certo modo
tímido, isto é, tem uma série de características
associadas habitualmente ao artesão. A aparên-
cia de Trigueirinho lembra a de muitos autores:
muita confiança em si própria, imprudência,
eventualmente alguma impertinência. Quanto
às obras, se por um lado confirmam que um é
essencialmente artesão e o outro autor, por ou-
tro introduzem muitas emendas nas impressões
que suas personalidades provocam no observa-
dor, e em ambos os casos as iluminam com luz
278
nova.

A formação dos dois cineastas brasileiros foi


muito diversa. Carlos Coimbra nasceu numa fa-
mília modesta do interior do Estado, e Trigueiri-
nho Neto emana da burguesia paulistana. As
primeiras trocas de idéias e impressões foram
vividas por Coimbra num grupo de quatro ami-
gos campineiros que vinham juntos a São Paulo
para ver filmes e que procuravam corresponder-
se com os críticos da Capital. O ambiente inicial
de Trigueirinho foi o Centro de Estudos Cine-
matográficos, o Museu de Arte Moderna e a
convivência de Almeida Salles e B. J. Duarte. A
iniciação profissional do primeiro efetuou-se ao
lado de Carlos Ortiz, tendo-se desenrolado em
seguida na via crucis da produção cinematográ-
fica paulista, no período imediatamente poste-
rior ao declínio da Vera Cruz. O outro teve opor-
tunidade de trabalhar com Cavalcanti ainda nos
tempos áureos da Companhia, e partiu em segui-
da para aperfeiçoar seus conhecimentos na Euro-
pa. Os prêmios que Coimbra recebeu tiveram,
sobretudo repercussão corporativa. Os de Tri-
279
gueirinho conferiram-lhe prestígio intelectual.
Essa diversidade de experiências humanas e téc-
nicas deixou o seu sinal em A Morte Comanda o
Cangaço e Bahia de Todos os Santos, que expri-
mem a fisionomia artística atual dos seus dire-
tores.

Carlos Coimbra foi chamado para fazer um fil-


me já ideado pelos produtores, já concebido
mesmo em forma de sinopse. Participou em se-
guida, ao lado de Walter Guimarães Motta e
Aurora Duarte, da pesquisa de material e das
viagens preliminares aos locais de filmagem, ten-
do sido encarregado de redigir o roteiro. Ainda
aqui não se tratava de um trabalho propriamen-
te pessoal, e sim de dar forma a idéias achadas e
discutidas em comum, que exprimiam sobretu-
do as concepções dos idealizadores da película.
Já nessa fase, entretanto, Coimbra, ao mesmo
tempo em que se diluía modestamente no gru-
po, provavelmente se impunha pela experiên-
cia e competência. Tudo indica que no decorrer
da produção esse mecanismo de humildade-afir-
mação tendeu a acentuar progressivamente o
280
segundo termo. Seria totalmente errôneo inter-
pretar esse fenômeno como um jogo calculado
da parte do diretor.

O espírito de equipe, a boa vontade, a paciên-


cia são características de Coimbra. É com natu-
ralidade que recebe sugestões ou mesmo ordens,
sendo o primeiro a desejar que se confiram a
outros as tarefas para as quais não se sente dota-
do, como, por exemplo, escrever diálogos. Du-
rante as filmagens, não foram só os produtores
Walter Guimarães Motta e Aurora Duarte, tam-
bém respectivamente argumentista e intérprete
da fita, que participaram ativamente da elabo-
ração das cenas, mas também os outros mem-
bros da equipe técnica e artística, particularmen-
te o ator Alberto Ruschel. Como esse espírito
aberto de colaboração se associa em Coimbra a
muita pertinência, essa segunda fase da realiza-
ção de A Morte Comanda o Cangaço recebeu
ainda mais do que os trabalhos preliminares a
marca do diretor. E chegado o momento da
montagem, cuja execução exige muita experiên-
cia técnica, Coimbra foi rei.
281

O resultado foi uma história clara, bem contada


e ritmada, com heróis e vilões bem definidos.
Carlos Coimbra e a equipe responsável por A
Morte Comanda o Cangaço tiveram a sua tarefa
facilitada pelo fato de já existir como ficção acei-
ta e cultivada pela imaginação coletiva a atmos-
fera geral da obra e seus principais personagens.
O fenômeno social do cangaceirismo e de certo
tipo de religiosidade nordestina já sofreram
durante gerações o processo de estilização artís-
tica.
É por já terem sido longamente elaborados pela
imaginação que esses dados sociológicos adqui-
rem tão facilmente valor de realidade aos olhos
do público. Através de Os Sertões, da literatura
de cordel, de altos momentos do romance brasi-
leiro moderno, de O Cangaceiro, de Lima Barre-
to, da cerâmica de mestre Vitalino, do desenho
de Aldemir Martins, de tantas outras manifes-
tações ilustres ou anônimas, a temática particu-
lar do Nordeste impregnou a imaginação e a
sensibilidade do brasileiro. Um dos motivos do
imenso êxito de Lima Barreto e Carlos Coimbra
282
é que eles nos falam de algo familiar, ou me-
lhor, algo que já existe dentro de nós como fic-
ção.

Para os brasileiros do sul, a gesta nortista adqui-


re significações suplementares. As condições
objetivas, geográficas, culturais e econômicas da
unidade nacional-brasileira ao serem filtradas
como sentimento admitem extensa margem
imaginária. Quando tentou exprimir o cerne da
nacionalidade, Euclides da Cunha deu as costas
ao Brasil real, moderno, litorâneo e sulista, que
se estava constituindo na confusão ingrata e a
estética dos primeiros tempos republicanos para
contemplar com afeição nostálgica um mundo
arcaico, em composição e condenado. Nada dis-
so impediu que a obra euclidiana exercesse nas
imaginações uma poderosa influência unifica-
dora. O folclore nordestino, emanação das condi-
ções sociais retrógradas, conserva uma enorme
vitalidade, inclusive e, sobretudo para os sulis-
tas, que tiveram suas tradições artísticas popu-
lares devoradas pelo progresso. Amar o norte é
uma das maneiras que o paulista encontra de
283
sentir-se efetivamente brasileiro. Folclore da era
industrial, o cinema é praticado por nós em São
Paulo, porém nunca fomos capazes de exprimir
plenamente a linha paulistana moderna sugeri-
da por O Grande Momento. As ocasiões mais
felizes do nosso cinema permanecem aquelas em
que utilizamos, interpretamos e industrializamos
o folclore nordestino.

Essa digressão serviu para esclarecer que Carlos


Coimbra trabalhou em estruturas existentes. Os
personagens e as situações mais convincentes,
como o cangaceiro, a benzedeira, ou alguns
momentos de religiosidade e crueldade, provêm
desse fundo comum, desse domínio público da
imaginação brasileira. Não precisaram ser muito
trabalhados para adquirir relevo e verdade, al-
guns traços justos foram suficientes, nós comple-
tamos o retrato e o todo adquire o pulsar miste-
rioso e verdadeiro da ficção. Como os outros
personagens de A Morte Comanda o Cangaço
não eram tão óbvios, precisariam ter sido mais
metodicamente e profundamente pensados, a
fim de alcançarem a mesma plenitude.
284

Seria um erro deduzir de algumas dessas consi-


derações que Coimbra foi apenas um artesão
preciso. Tal momento do cangaceiro na rede,
meditação noturna de guerreiro, possui ecos
shakespearianos ou de algumas fitas japonesas.
A uma cena litúrgica de casamento falta algu-
ma coisa (não são certamente a igreja ou o pa-
dre, dispensados do episódio) que não consegui
esclarecer, o que não impede a manifestação de
uma veia poética muito rara em nosso cinema.
É necessário igualmente sublinhar que em A
Morte Comanda o Cangaço o artesão Coimbra
transforma-se, eventualmente, em autor. Pen-
so, particularmente, no papel que tem na obra
o tema de pé humano. Nas seqüências de cami-
nhada, dança ou desejo, o pé é um ‘leitmotif’
que pontua o desenvolvimento do filme. Acho
difícil que se trate de algo arbitrário ou ocasio-
nal. O fenômeno transmite-nos o sentimento de
escolha e empenho, da ordem dos que exprimem
as mitologias interiores de um autor. Deve-se à
presença dessa parcela da anatomia humana à
qual raramente é oferecida oportunidade dra-
285
mática em cinema, o alto momento erótico em
que uma entrega amorosa é expressa por uma
carícia do pé.

Se para A Morte Comanda o Cangaço, de Carlos


Coimbra, situar a ação no norte era uma exigên-
cia primordial, o mesmo não acontecia com
Bahia de Todos os Santos, de Trigueirinho Neto.
Dos motivos que levaram o autor a colocar seus
personagens e sua história na Bahia percebo
dois, aliás contraditórios, pois um é de natureza
comercial e o outro deliberadamente anticomer-
cial. É sabido, com efeito, que a Bahia vende
bem, sobretudo no mercado exterior, e esse cál-
culo deve ter influído nas disposições de Triguei-
rinho. Ao mesmo tempo, porém, ele escolheu
uma cidade espetacular para servir de quadro a
uma obra concebida como antiespetáculo. Esta
última resolução é compreensível na perspecti-
va estética em que o autor se colocou. Ele consi-
derou que o seu empenho polêmico adquiriria
maior virulência num quadro tradicionalmente
belo e humanamente pitoresco, do que num feio
ou neutro. Como, porém, as suas intenções só
286
parcialmente se tornaram comunicáveis, o estí-
mulo dialético transmutou-se em ambigüidade
e incerteza.

Trigueirinho Neto é um autor e pôde dispor das


condições teoricamente ideais para um cineasta
desse tipo, pois imaginou, escreveu, dialogou e diri-
giu Bahia de Todos os Santos e foi o seu próprio
produtor. Essa situação permitiu que se regis-
trassem com a mesma clareza as suas virtudes e os
seus defeitos, as primeiras ligadas à sua sensibi-
lidade, e os últimos oriundos do seu pensamento.
A maior qualidade artística de Trigueirinho é a lu-
cidez e a delicadeza com que vislumbra a debili-
dade escondida atrás da força, a pureza encoberta
pelo desgaste, em suma a criança no adulto, pelo
menos na visão convencional que se tem de uma e
de outro. Nessa ordem de idéias e para citar um só
exemplo, que possui algo de sublime em sua simpli-
cidade íntima, temos o momento em que o perso-
nagem central da fita se encolhe para dormir na
cama de vento dos amigos que o recolheram.

O defeito principal do pensamento de Trigueiri-


287
nho é a concepção que tem da espontaneidade.
Suas idéias a esse respeito destroem a própria no-
ção do que possa ser pensamento. São muito fre-
qüente os autores cinematográficos que criam,
sobretudo com suas emoções e sentimentos, para
os quais o desenvolvimento lógico intelectual não
oferece serventia, mas trata-se daqueles que obe-
decem às apalpadelas à lógica interna que im-
pregna a obra em elaboração.

Não é o caso do jovem cineasta que estamos exami-


nando, pois Trigueirinho deseja ser um autor inte-
lectual. Ao mesmo tempo, porém, ele não aceita
que o pensamento seja uma técnica. Ele delibera
utilizar conscientemente a espontaneidade, mas
ao mesmo tempo não toma nenhuma das medi-
das indispensáveis para construí-la.

Como cineasta, Trigueirinho Neto permanece fiel


ao estilo dos artigos que publica em jornais e
revistas de São Paulo, e essa identidade demons-
tra que possui personalidade de autor. Esses tex-
tos caracterizam-se por uma junção de impres-
sões parciais, estados de espírito difusos, associa-
288
ção bastante livre de idéias e fatos, uma irrup-
ção constante de polêmicas dirigidas a esmo,
resultando em suma uma divagação bastante
solta ou antes, num devaneio.

Foi Bahia de Todos os Santos que esclareceu para


mim a atividade literária anterior de Trigueirinho
e permitiu que formulasse um julgamento sobre
os seus textos, pois quando os lia tinha a tendên-
cia a atribuir a uma insuficiente atenção de mi-
nha parte ou a más-condições de receptividade a
dificuldade que sempre encontrei em acompanhar
o desenvolvimento das idéias. Contudo, a liber-
dade abusiva, o emprego desse tipo de esponta-
neidade, tem em cinema conseqüências mais gra-
ves do que na escrita. O espírito moderno admite
uma margem bastante larga de irracionalidade e
não se preocupa com a maior ou menor concate-
nação entre frases ou parágrafos. Com as imagens
em movimento boladas umas às outras a situação
é diversa, pois o cineasta é obrigado a servir-se do
instinto ou da inteligência, e dispô-los de acordo
com suas intenções. Caso contrário, é inútil espe-
rar que elas vagueiem numa imprecisão que pode-
289
ria eventualmente ser poética. O que acontece é
que se articulam por conta própria, escapam do
controle do autor e conduzem o filme e o espec-
tador para caminhos que levam ao nada. Quando
o cineasta readquire o domínio da situação, o es-
pectador já foi desnorteado, a narrativa truncada
e o ritmo perdido.

Num texto sobre a fita. Trigueirinho Neto escre-


veu que “bastou a câmara rodar, diante de ato-
res expressivos e ambientes verdadeiros”, refe-
rindo-se ainda à “busca da verdade, que se en-
contra em toda a parte”. Certamente, o cineas-
ta encontrou verdades e as registrou em pelícu-
la, da mesma maneira que nos artigos introdu-
ziu anotações inteligentes, novas e justas. Mas
as verdades e as idéias que não se comunicam
com um mínimo de continuidade são inoperan-
tes, e a condição para esta última reside na noção
de contexto contra a qual o autor se rebela.

O tipo de pensamento que Trigueirinho advoga


impediu que os personagens do filme realmen-
te nascessem. Nesse particular, a sua tarefa era
290
incomparavelmente mais difícil do que a de Car-
los Coimbra. Sociologicamente os personagens
de Bahia de Todos os Santos são próximos aos
de Capitães de Areia, mas a inspiração de Triguei-
rinho Neto não tem o menor parentesco com o
lirismo romanesco de Jorge Amado. Tonio e seus
companheiros, a inglesa e a prostituta, são pro-
dutos diretos do universo do autor. Só que eles
permanecem ainda no limbo da espontaneida-
de ou antes, na terra de ninguém situada entre
a imaginação do autor e a película realizada. A
experiência de Bahia de Todos os Santos esti-
mula o comentário. Permite discorrer sobre a
ideologia dos artesãos e dos autores.

(Transcrito de O Estado de S.Paulo, Suplemento Literário


de 15 de abril de 1961)

291
292
Filmografia comentada

1955 - Armas da Vingança


Direção de Alberto Severi e Carlos Coimbra, com
Aurora Duarte, Hélio Souto, Vera Nunes, Luigi Picchi
e Lia Cavalcanti.
Para ajudar o pai, que está falido, garota casa-se com
o irmão do namorado, que fica ressentido, mas o
marido morre e a vida se encarrega de reaproximá-
los.
Vencedor dos principais prêmios Saci do ano – me-
lhor filme, diretor, ator (Luigi Picchi), fotografia
(Konstantin Tkaczenko) e música (Gabriel Migliori).
“Dirigi o filme sozinho, embora o Severi tenha
o crédito de co-direção. É a obra de um mole-
que irresponsável que quer mostrar que pode
293
fazer cinema. O interessante é que os críticos
gostaram e, de cara, eu ganhei o prêmio mais
importante da época, que era o Saci. Aquilo me
deu uma projeção extraordinária. Nem eu conse-
guia acreditar no que estava ocorrendo”.

1957 - Dioguinho
Direção e montagem de Carlos Coimbra, com Hélio
Souto, John Herbert, Norma Monteiro e José Police-
na.
Cinebiografia de Diogo da Rocha Figueira, o famoso
Dioguinho, que iniciou sua carreira no crime ao assas-
sinar o homem que seduziu sua sobrinha. Chamado
de ‘Lampião paulista’, Dioguinho foi, caracteristica-
mente, um personagem rural de São Paulo. Foi o pri-
meiro filme colorido de Coimbra.
“O segundo filme já foi mais difícil. Teve mais
limitações do que o primeiro, mas tem coisas
bacanas. Como era de época, usei uma locação
linda, a Casa do Bandeirante. E foi o primeiro
filme que montei. Só que, como o produtor era
americano, o copião foi enviado para os EUA,
onde o meu primeiro corte sofreu algumas modi-
ficações”.
1958 - Crepúsculo de Ódios
Direção, roteiro e montagem de Carlos Coimbra, com
Luigi Picchi, Aurora Duarte, Carlos Zara, Norma Mon-
teiro, Léo Avelar e José Lima.
Aventura rural centrada numa trama de vingança.
Teve um título alternativo – Nas Garras do Destino.
“Minha primeira filha, a Carmem Flávia, nasceu
enquanto fazia este filme e é a lembrança mais
294
notável que guardo dele. Foi um filme compli-
cado, porque lá pelo meio o dinheiro acabou e
ficamos meses parados. A história mais diverti-
da é que, a precariedade era tanta, que usáva-
mos uma charretinha para transportar a equipe
e os equipamentos. Quando a charretinha que-
brou, o filme danou-se”.

1960 - A Morte Comanda o Cangaço


Direção e montagem de Carlos Coimbra, roteiro de
Coimbra e Francisco Pereira da Silva, com Alberto
Ruschel, Aurora Duarte, Milton Ribeiro, Ruth de Sou-
za, Lyris Castellani, Edson França, Léo Avelar e Mar-
lene França.
O bando do cangaceiro Silvério exige dinheiro do
pacato Raimundo, que vive com a mãe num rancho
modesto. Quando ele se nega a ceder às exigências
dos bandidos, Silvério ataca a casa, degola a mãe de
RAimundo e finca sua cabeça numa estaca. O cabra
então se revolta e passa a perseguir os integrantes
do bando, abatendo um a um. O primeiro filme de
Coimbra com o diretor Tony Rabatoni foi feito em
locações em Quixadá, no Ceará, e venceu vários prê-
mios. Recebeu os Sacis de argumento, roteiro, dire-
ção, ator (Alberto Ruschel), atriz coadjuvante (Lyris
Castellani) e fotografia; e repetiu a vitória em todas
essas categorias no Prêmio Governador do Estado de
São Paulo. Recebeu também os prêmios de melhor
ator coadjuvante (Edson França), roteiro, fotografia
e cenografia (Apolo Monteiro), atribuídos pelo Júri
Municipal de Cinema, com o nome de Prêmio Cida-
de de São Paulo. E Alberto Ruschel foi o melhor ator
do ano para a revista Cinelândia. 295
“Não sei se tenho um filme preferido, mas, se
tiver, só pode ser o Morte. Não foi só o meu fil-
me mais premiado, mas aquele que mais se apro-
xima do que queria fazer. Fiquei muito impres-
sionado com as cores do sertão e quis colocar
aquilo tudo na tela, numa história cheia de ação,
movimento e violência. O público gostou, os crí-
ticos também e eu achei que aquela devia ser a
via do meu cinema.”

1962 - Lampião, o Rei do Cangaço


Direção, roteiro e montagem de Carlos Coimbra, com
Leonardo Villar, Vanja Orico, Milton Ribeiro, Glória
Menezes, Antônio Pitanga, Dionísio Azevedo, Mar-
lene França e Geraldo Del Rey.
Cinebiografia de Virgulino Ferreira da Silva, mostran-
do como ele, para vingar a morte dos pais, se trans-
formou no temido Lampião, terror do sertão nordes-
tino. O filme produzido por Oswaldo Massaini utili-
za o elenco principal de O Pagador de Promessas.
Ganhou o Prêmio Saci, nas categorias de atriz (Gló-
ria Menezes) e ator coadjuvante (Antônio Pitanga).
O Governador do Estado de São Paulo especial foi
para o produtor e o filme ainda ganhou o Prêmio
Cidade de São Paulo nas categorias de atriz (Vanja
Orico) e montagem (Coimbra).
“Este é um daqueles filmes pelos quais tenho
um sentimento ambivalente. Gosto muito de
algumas coisas e gosto menos de outras. Ou seja
– ele não saiu exatamente como eu gostaria, mas
foi bom trabalhar com o Leonardo Villar, fazen-
296
do um Lampião que não é só o do clichê, mas é
um homem com toda a sua complexidade e
ambivalência, capaz do bem e do mal”.

1965 - O Santo Milagroso


Direção, roteiro e montagem de Carlos Coimbra, ba-
seado na peça de Lauro César Muniz, com Leonardo
Villar, Dionísio Azevedo, Vanja Orico, Geraldo Del Rey,
David Neto e Pio Zamuner.
Numa pequena comunidade, o padre e o pastor dis-
putam a liderança espiritual da comunidade e a situa-
ção fica crítica entre eles quando um equívoco faz com
que o povo pense que houve uma milagre na sacristia.
Prêmio Cidade de São Paulo, na categoria de monta-
gem. E prêmio especial para o produtor Oswaldo Mas-
saini no 1º Festival de Juiz de Fora, MG.
“Foi minha primeira comédia e todo mundo
achou absurdo que um diretor de ação, como
eu, enveredasse por este caminho. Mas eu acho
que me saí bem e o filme tem muitas coisas di-
vertidas. Dá para rir e não é um riso burro. O
humor do Santo é inteligente”.

1966 - Cangaceiros de Lampião


Direção, roteiro e montagem de Carlos Coimbra, com
Milton Rodrigues, Vanja Orico, Maurício do Valle,
Milton Ribeiro, Jacqueline Myrna, Antônio Pitanga,
David Neto, Sady Cabral e Fauzi Mansur.
Vaqueiro jura vingança quando um dos remanescen-
tes do antigo bando de Lampião, Moita Brava, à fren-
te de um bando de cangaceiros, mata sua mulher.
“Nunca tive muito apreço pelo Cangaceiros, mas 297
me surpreendi ao revê-lo na TV. Achei interes-
sante e mais bem-feito do que pensava. Filmei
no chamado sertãso verde, na região de Itu, e o
filme é plasticamente muito bonito”.

1968 - Madona de Cedro


Direção e roteiro de Carlos Coimbra, baseado no ro-
mance de Antônio Callado, com Leonardo Villar, Leila
Diniz, Anselmo Duarte, Jofre Soares, Ziembinski, Cley-
de Yáconis, Sérgio Cardoso e Leonor Navarro.
Morador de Congonhas do Campo é pressionado por
amigos a integrar bando que rouba a Madona de Ce-
dro do título. É a mais valiosa relíquia religiosa do san-
tuário local. Devorado pelo remorso, ele devolve a san-
ta, e o povo pensa que é milagre, mas o caso tem des-
dobramentos que culminam em tragédia.
“Este foi meu primeiro filme a produzir ciumei-
ra e a gerar celeuma. Muita gente não nos per-
doou, o (produtor Oswaldo) Massaini e eu, por
termos conseguido dinheiro dos americanos para
fazer um filme tão caro. Um crítico, para me atin-
gir, disse que transformei um romance sério
numa chanchada. Acho injustiça. Fiz, no Mado-
na, algumas das tomadas mais elaboradas da
minha carreira. E acho que o filme tem coisas
ótimas”.

1969 - Corisco, o Diabo Loiro


Direção, roteiro e montagem de Carlos Coimbra, ba-
seado no relato da própria Dadá, com Maurício do
Valle, Leila Diniz, Milton Ribeiro, John Herbert, Geor-
298 gia Gomide, Laura Cardoso, Antônio Pitanga e Turíbio
Ruiz. A trajetória de Cristiano, pacato vaqueiro que se
transforma em Corisco, o Diabo loiro, lugar-tenente
de Lampião. Ele seqüestra Dadá e a integra ao bando
e juntos tentam vingar a morte do chefe. O filme de-
senrola-se em flash-back, como delírio do cangaceiro
que está morrendo na carreta que o leva para a cidade
grande.
“Fiz este filme baseado nas histórias que ouvi da
própria Dadá, mulher do Corisco. O produtor não
botava muita fé e investiu pouco dinheiro. O fil-
me custou barato, mas saiu muito bonito. Quan-
do estourou na bilheteria, o (Oswaldo) Massaini
ficou ainda mais rico. Foi meu segundo filme com
Leila Diniz e o que posso dizer é que ela era fora
de série”.
1970 - Se Meu Dólar Falasse
Direção, roteiro e montagem de Carlos Coimbra, ba-
seado num argumento de Coimbra e Alexandre Pi-
res, com Dercy Gonçalves, Grande Otelo, Borges de
Barros, Zilda Cardoso, Milton Ribeiro, Dedé Santana
e Marlene França.
A dona de uma butique de luxo é encarregada por
amiga de servir como intermediária na compra de
uma valiosa estatueta chinesa. A transação é feita
em dólares e o dinheiro, a partir de uma série de
equívocos, vai parar num depósito de lixo, resgata-
do por mendigos que sonham em mudar de vida.
“Foi minha segunda comédia, mas não era para
eu dirigir. O projeto era para o Carlos Manga e
o Massaini me chamou quando ele pulou fora.
O filme foi feito rapidamente para aproveitar
299
que o Massaini tinha a Dercy (Gonçalves) sob
contrato e a validade estava vencendo. Revi na
TV e acho que tem um padrão visual muito ba-
cana. E, com a Dercy, você não pode deixar de
rir. Tive problemas com a Dercy no set, mas na
tela a única que se vê é como ela é engraçada”.

1972 - Independência ou Morte!


Direção, roteiro e montagem de Carlos Coimbra, ba-
seado num a\rgumento de Abílio Pereira de Almeida
(que também escreveu os diálogos), com Tarcísio
Meira, Glória Menezes, Kate Hansen, Dionísio de
Azevedo, Anselmo Duarte, Emiliano Queiroz, Mano-
el de Nóbrega, Heloisa Helena, Renato Restier, José
Lewgoy, Jairo Arco e Flexa, Vanja Orico, Francisco Di
Franco, Carlos Imperial, Edson França, Lola Brah, Sér-
gio Hingst, Clóvis Bornay, Rodolfo Arena, Tarcísio Fi-
lho, Ângelo Labanca e Rubens Ewald Filho.
Cinebiografia de Dom Pedro I, centrada na sua rela-
ção com a Marquesa de Santos e tendo como momen-
to culminante o Grito de Independência, às margens
do riacho Ipiranga, em 7 de setembro de 1822. A ce-
nografia de Campello Neto obteve reconhecimento em
vários foros e ganhou o Prêmio Governador do Esta-
do, e a Coruja de Ouro do Instituto Nacional de Cine-
ma, o INC. Kate Hansen recebeu o Prêmio Air France e
Oswaldo Massaini também recebeu o Prêmio Gover-
nador, na categoria de produção.
“Fiz um filme em que Dom Pedro I é pintado
como devasso e fui crucificado pela crítica por
ter feito o filme oficial da ditadura militar. Não
acho que sou melhor do que ninguém, mas acho
300 que não entenderam nada. Não acho que Inde-
pendência ou Morte! seja 10. Tem coisas que não
gosto no filme, mas tem outras das quais gosto
muito.”

1974 - Signo de Escorpião


Produção, direção, roteiro e montagem de Carlos
Coimbra, com Maria Della Costa, Rodolfo Mayer, Kate
Lyra, Carlos Lyra, Sandro Polônio, Wanda Kosmo, e
Omar Cardoso.
O Professor Alex reúne, numa ilha, convidados para
o lançamento de seu novo livro e também a inaugu-
ração de um computador criado para promover a
leitura científica de horóscopos. Durante a festa, uma
das convidadas morre misteriosamente e isto é só o
início de uma série de assassinatos que vai eliminan-
do, um a um, os integrantes do grupo. Título alter-
nativo – A Ilha dos Devassos.
“De todos os filmes que fiz, este é aquele que
tem mais a minha cara. É o único absolutamen-
te meu – porque fiz tudo, escolhi o tema e o
elenco, produzi, dirigi e montei. Coloquei todo
o meu dinheiro e perdi tudo. Sem levar em con-
ta o fato de ter sido sucesso ou não, é um dos
meus filmes preferidos. Fiz o filme de gênero
que queria, um policial de mistério. E acho que
tem coisas muito legais”.

1976 - O Homem de Papel


Direção, roteiro e montagem de Carlos Coimbra, so-
bre argumento de Ezaclir Aragão, com Milton Mo-
rais, Vera Gimenez, Ziembinski, Teresa Sodré, José 301
Lewgoy, Jece Valadão, Ezaclir Aragão, Esdras Guima-
rães e Waldir Onofre.
Repórter frustrado faz reportagem fraudulenta para
se promover e fica na mira de todo mundo – o pa-
trão, da polícia e dos contrabandistas que implicou
na história. O filme tem um subtítulo – Volúpia de
Um Desejo.
“Este foi um filme que fiz sob contrato, mas não
saiu ruim. Acho que é um policial bem razoável.
É ágil e tem um elenco muito bom. Filmei em
Fortaleza, aproveitando as locações da cidade,
e o público de lá gostou do que viu. O filme foi
um grande sucesso no Ceará”.

1978 - Iracema, a Virgem dos Lábios de Mel


Produção, direção, montagem e cenografia de Car-
los Coimbra, baseado no romance de José de Alen-
car, diálogos de Zaé Júnior, com Helena Ramos, Tony
Correia, Francisco di Franco, Carlos Koppa, Alberto
Ruschel e Mário Benvenuti Filho.
Guardiã do segredo do segredo do licor de Jurema,
a bela Iracema, filha do pagé dos tabajaras, apaixo-
na-se por conquistador português que faz viagem de
reconhecimento na região habitada pela tribo. O
problema é que ela está prometida a Tupã e os índi-
os estão em guerra com os brancos que invadem suas
terras.
“Fiquei um tempão em Fortaleza fazendo O
Homem de Papel e pude ver o quanto o livro do
José de Alencar é importante para os cearenses.
Vem daío que fiz este filme como uma homena-
302 gem. Mal podia imaginar que estava compran-
do outra celeuma. Fui acusado de fazer o jogo
da ditadura, com a minha Iracema que seguia
uma linha oposta à do filme de Jorge Bodanzky
e Orlando Senna que a censura proibiu. Juro que
nem sabia do filme deles. Usei a Helena Ramos,
que era famosa nas pornochanchadas, mas Ira-
cema é muito lírico, é até bobo do ponto de vis-
ta do erotismo”.

1981 - Os Campeões
Direção e montagem de Carlos Coimbra, roteiro de
Coimbra e Tony Correia, com base num argumento
do próprio Correia, que também é ator, com Arman-
do Bógus, Marcelo Picchi, Monique Lafond, Tamara
Taxman, José de Abreu e Moacir Deriquén.
Aristocrata português de passagem pelo Brasil liga-
se a carioca que vende enciclopédias e sonha ser pi-
loto de automobilismo.
“Não vou ser louco de dizer que este filme é
bom, porque não é verdade. É uma comédia
romântica boba e um filme de aventuras ape-
nas passável, mas acho que as cenas de corridas
apresentam um padrão técnico muito bom e isto
é um mérito num cinema como o brasileiro, que
não dispõe de muitos recursos para filmar esse
tipo de ação”.

303

Créditos das fotografias:

pág.44 - Studio Cid


pág.79 - Studio Esdras
pág.137 - J. Amaral
pág.202 - Renan Andrade

Demais fotografias do acervo pessoal de


Carlos Coimbra.
304
Untitled-7 1 7/12/2009, 11:24

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